Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente

March 2, 2019 | Author: Jucyara Winchester | Category: Slavery, Economics, Brazil, State (Polity), Sugarcane
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Hamilton de Mattos Monteiro

Nordeste Insurgente (1850-1890)

ÍNDICE

Introdução A região As insurreições As revoltas urbanas Conclusão Indicações para leitura

INTRODUÇÃO Durante muito tempo, a historiografia brasileira refletiu as hi hist stór ória ias s da das s el elit ites es vi vito tori rios osas as e de dedi dico couu-se se, , na ma maio ior r parte, a acompanhar as mudanças do eixo econômico dentro do territóri terr itório o naci nacional onal. . Assi Assim, m, temos vasta prod produção ução não só sobr sobre e o No Nord rdes este te co colo loni nial al, , co como mo ta tamb mbém ém so sobr bre e as Mi Mina nas s Ge Gera rais is no século XVIII, a província fluminense e a Corte no século XIX e São Sã o Pa Paul ulo o no sé sécu culo lo XX XX. . Al Além ém do in inte tere ress sse e pe pela las s mu muda danç nças as econ ec onôm ômic ica as, ne nes sse ses s pon ont tos de atr traç ação ão, , al algu guns ns te tem mas sã são o continuamente pesquisados, entre outros a escravidão africana, a industrialização, etc. No conjunto, apesar de sua importância, estas regiões, épocas ou temas, com seu poder de atração, contribuíram para um relativo esquecimento de outros assuntos e também da história de outras regiões em determinadas épocas. Modern Mod ername amente nte, , saí saímos mos des desse se pro provin vincia cialis lismo mo int intele electu ctual al e começamos a escrever as histórias locais, das épocas esquecidas. Retomamos o fio da meada, deixado por hist hi stor oria iado dore res s e cr cron onis ista tas s re regi gion onai ais s qu que, e, po por r mu muit ito o te temp mpo o igno ig nora rado dos s na nas s pr prat atel elei eira ras s da das s bi bibl blio iote teca cas, s, vo volt ltam am a te ter r importânc impo rtância ia ao se escr escrever ever a verd verdadeir adeira a história história bras brasileir ileira a que não deve ser somente a dos vencedores, mas também a dos venc ve ncid idos os, , a da Co Cort rte e co como mo a da pr prov ovín ínci cia, a, a da das s re regi giõe ões s "desenvolvidas" "desenvolvidas" como a das empobrecidas e exploradas. Aqui neste opúsculo, restauramos um pouco da história do Nord No rdes este te br bras asil ilei eiro ro qu que, e, de depo pois is de te ter r si sido do um uma a da das s ma mais is importantes regiões geo-econômicas da era moderna, fornecedora praticamente exclusiva do açúcar consumido no mundo ocidental, é deixada à sua própria sorte, a partir do século XIX. O Nordeste é uma das provas do resultado da exploração predatória dos recursos econômicos de uma região para atender a interesses externos, que, depois de esgotada, é abandonada. De regi re gião ão he heró róic ica a da ép époc oca a áu áure rea a da pr prod oduç ução ão aç açuc ucar arei eira ra e da vitória contra os holandeses, passa a ser acusada de ignora ign orante nte, , fan fanáti ática ca e ind indole olente nte, , qua quando ndo eco econom nomica icamen mente te não mais interessa. No presente trabalho, limitar-nos-emos a escrever sobre a segunda metade do século XIX, já que a primeira será objeto da atenção de outros especialistas e que, no conjunto, cont co ntri ribu buir irão ão pa para ra da dar r ao no nord rdes esti tino no a co cons nsci ciên ênci cia a de se seu u passado sempre heróico e glorioso.

A REGIÃO A Paisagem Quando nos referimos ao Nordeste brasileiro, tratamos da área que engl engloba oba os atua atuais is Esta Estados dos do Mara Maranhão nhão, , Piau Piauí, í, Cear Ceará, á, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Esta Es ta va vast sta a re regi gião ão ap apre rese sent ntaa-se se su subd bdiv ivid idid ida a em qu quat atro ro outras out ras, , con consoa soante nte seu tip tipo o de sol solo, o, cli clima ma e veg vegeta etação ção. . São elas a Zona da Mata, o Agreste, o Sertão e o Meio-Norte. A Zo Zona na da Mat ata a ab abar arca ca cer erca ca de 18, 8,2 2% da ár área ea to tot tal al, , este es tend nden endo do-s -se e do Ri Rio o Gr Gran ande de do No Nort rte e à Ba Bahi hia. a. Se Seu u cl clim ima a é quente e úmido e ali se cultiva principalmente cana-de-açúcar, cacau e fumo. Estendendo-se mais para o interior, está o Agreste. Não apre ap rese sent nta a cl clim ima a e ve vege geta taçã ção o un unif ifor orme mes, s, co cont nten endo do al algu guma mas s regiões que se assemelham ao Sertão e outras à Zona da Mata. É uma área de transição entre essas duas outras que lhe fazem limites. As atividades econômicas são múltiplas, destacando-se o algodão, os gêneros alimentícios e a pecuária. O Sertão ocupa a maior parte do Nordeste, abrangendo cerca de 49% do total. Seu relevo é mais uniforme e o clima mais seco. Em grande parte, a vegetação é de caatinga e a ocupação huma hu mana na ma mais is ra rare refe feit ita. a. As at ativ ivid idad ades es pr pred edom omin inan ante tes s sã são o a pecuária pecu ária e a cult cultura ura do algo algodão. dão. Nele exis existem tem algumas regiões regiões que qu e sã são o au autê tênt ntic icas as il ilha has, s, on onde de se pr prat atic ica a um uma a ag agri ricu cult ltur ura a variada e há maior concentração populacional. São as várzeas dos rios sertanejos, as regiões serranas e o vale do Cariri. O Meio-Norte (Maranhão e Piauí) é tipicamente uma região de transição entre a floresta equatorial (floresta amazônica) e o Se Sert rtão ão. . A pa pais isag agem em se al alte tera ra de oe oest ste e pa para ra le lest ste. e. No extremo oeste do Maranhão, a vegetação e as condições climáticas se assemelham à Amazônia e, à medida que se avança para leste, cada vez mais se parece com o Sertão. A pecuária e o extrativismo vegetal predominam na atividade econômica, se bem que ali também se desenvolvam a produção de algodão e a de arroz. A distribuição da Terra e a Sociedade O elemento principal que atuou na formação da sociedade nordestin nord estina a foi a posse da terr terra; a; a part partir ir dela dela, , estr estrutura uturaramramse os principais grupos sociais. Como Com o se sab sabe, e, tem pre predom domina inado do ali a gra grande nde pro propri prieda edade de cuja origem remonta às doações sesmariais. Na Zona da Mata, desenvolv dese nvolveu-s eu-se e a cult cultura ura da cana cana-de-de-açúca açúcar; r; no Agreste, Agreste, foi dada maior atenção à pecuária e/ou à cultura do algodão; no Sertão, a pecuária extensiva teve grande êxito e, na região do Maranhão e Piauí, houve grande dedicação tanto ao extrativismo

vegetal quanto à pecuária. As pequenas propriedades são poucas e dedicam-se geralm ger alment ente e à pro produç dução ão de gên gênero eros s ali alimen mentíc tícios ios e, em alg alguns uns casos, ao algodão. No Agreste, estas localizam-se nos chamados "brejos", regiões mais elevadas e, portanto, beneficiadas por um cl clim ima a de ma maio ior r um umid idad ade, e, e, no Se Sert rtão ão, , no norm rmal alme ment nte e na nas s regiões que margeiam os rios. Muitas vezes são tão pequenas, entre 5 e 10 hectares, que obrigam os agricultores a procurar trabalho adicional. Por outro lado, havia também as terras arrendadas, onde se prat pr atic icav ava a um uma a ag agri ricu cult ltur ura a ge gera ralm lmen ente te vo volt ltad ada a pa para ra gê gêne nero ros s alimen ali mentíc tícios ios. . Na Zon Zona a da Mat Mata, a, cul cultiv tivava avam m a can cana-d a-de-a e-açúc çúcar ar para pa ra fo forn rnec ecim imen ento to ao aos s en enge genh nhos os e, no Ag Agre rest ste e e no Se Sert rtão ão, , também o algodão, sendo que os grandes proprietários tinham maior interesse na atividade pecuária. Comu Co mum m ta tamb mbém ém er era a a ex exis istê tênc ncia ia de "r "roç oças as" " fe feit itas as pe pelo los s moradores, também chamados agregados, os quais constituíam-se em trabalhadores eventuais que moravam nas fazendas e a quem era permitido cultivar uma pequena área. Estas "roças" eram quase quas e sempre sempre de mand mandioca ioca, , milho e feijão, feijão, alim alimentos entos comuns comuns na refeição nordestina. Sobre esta divisão e utilização da terra, assentava-se uma estrat est ratifi ificaç cação ão soc social ial tam também bém div divers ersifi ificad cada. a. Em res resumo umo, , sem querer esgotar o assunto e tendo em vista que nosso propósito é ape apenas nas est estabe abelec lecer er o qua quadro dro da soc socied iedade ade nor nordes destin tina a par para a efeito de melhor compreensão dos temas que serão tratados, a região apresentava as seguintes camadas sociais: de um lado, no áp ápic ice e da pi pirâ râmi mide de so soci cial al, , es esta tava va o gr gran ande de pr prop opri riet etár ário io (senhor de engenho na Zona da Mata, fazendeiro e/ou criador no Agre Ag rest ste e e no Se Sert rtão ão), ), is isto to é, o co coro rone nel l to todo do-p -pod oder eros oso o da Guarda Guar da Naci Nacional onal, , senhor senhor de fato da regi região ão sob sua infl influênci uência. a. Do outro lado, estavam os escravos e os moradores, que, embora livres, gozavam de piores condições de vida que os próprios escravos. Entre estes dois grupos, situava-se uma enorme variedade de tip tipos os soc sociai iais s que eng englob lobava avam m des desde de os peq pequen uenos os e méd médios ios prop pr opri riet etár ário ios s e ar arre rend ndat atár ário ios, s, os "o "ofi fici ciai ais" s" as assa sala lari riad ados os (com (c omo o os me mest stre res s de aç açúc úcar ar no nos s en enge genh nhos os e o cu curt rtid idor or na nas s fazendas de criação) ou autônomos (como alfaiates, oficiais de cantaria, carpinteiros etc), até os profissionais liberais e os funcionários públicos. A de desi sigu gual al di dist stri ribu buiç ição ão da te terr rra a ir iria ia di dico coto tomi miza zar r a popu po pula laçã ção o ru rura ral l na me medi dida da em qu que e um nú núme mero ro re redu duzi zido do te teri ria a acesso a ela como proprietário ou arrendatário e uma grande mass ma ssa, a, pro rog gre ress ssiv iva ame ment nte e aum umen enta tad da, por for orç ça mesm me smo o do crescimento natural, teria de se contentar com a condição de morado mor adores res ou ent então ão per peramb ambula ular r de pro propri prieda edade de em pro propri prieda edade de como jornaleiros. Estes últimos constituíam mão-de-obra barata e ab abun unda dant nte, e, vi vive vend ndo o mi mise sera rave velm lmen ente te, , de on onde de pr prov ovin inha ham m os jagunços, os cabras e os cangaceiros. "Nas cidades, o papel da agitação social estava reservado

a uma pequena classe média, que sofria primeiro os efeitos da carestia e se compunha de artesãos (alfaiates, mestrescarapinas, mestres-de-obra e seus oficiais) e de profissionais liberais, imbuídos, muitas vezes, de idéias de justiça social, quando não era tal papel, com bastante freqüência, representado pelo clero." Na longa crise por que passou o Nordeste no século XIX, estes grupos não se limitaram a esperar pacificamente pela solução de seus problemas. Reagiram a seu modo, a curto ou a longo prazo. Dos mais pobres ou empobrecidos que não emigraram, saíram levas de bandidos que infestavam o Sertão e também os "sediciosos" que colaboraram na rebeldia dos coronéis ou rebelavam-se diretamente contra os que os exploravam. Dos setores médios urbanos, emergiram os "conspiradores", que nos clubes políticos, ou através de comícios, panfletos e jornais, não cessavam de fazer a crítica ao regime vigente e lideravam intelectualmente e na prática os motins e revoltas urbanos. Dos mais poderosos, dos grandes proprietários, surgiram as "guerras" contra seus pares, as violências contra seus agregados, as contestações ao poder público; isoladas ou coletivas estas últimas tomaram os mais variados aspectos, desde a explosão coletiva de 1874, quando a crise se apresentou com toda a sua intensidade, até a abstenção com relação à sorte da monarquia, em 1889, já cansados de esperar a atenção que achavam justa merecer. Todavia, dada a importância, para a compreensão das lutas sociais, do papel desempenhado pelos grandes proprietários e pelos homens pobres livres (a quem chamaremos genericamente de lavradores), consideramos necessário maior detalhamento sobre estes dois grupos.

Os grandes proprietários Fundamentavam sua dominação no latifúndio e na exploração da mão-de-obra, sob relações sociais de produção que iam desde o contrato mediante salário até a escravidão, conforme suas conveniências e lucratividade. Impuseram-se socialmente pela violência, a qual se caracterizou, desde a fase colonial, pela expropriação do indígena, privando-o de suas terras e, em muitos casos, de sua liberdade; pela privação da liberdade do negro e sua coação ao trabalho; pela apropriação da quase totalidade das terras por uma minoria, impedindo que uma ampla camada de homens livres, cada vez maior, se tornasse também proprietária. Instalou-se, portanto, uma ordem caracterizada pela violência. O grande proprietário, o "coronel", necessitou impor-se autoritariamente sobre a população de seu "domínio", para assegurar a posse dos seus bens ante a maioria que se constituía em trabalhadores livres, escravos e jagunços. Ele

se acastela em sua propriedade e se cerca de um numeroso "exército" privado, com o qual comete toda a sorte de violências. Deve precaver-se contra possíveis "traições", porque é assim que entende as discordâncias dos que habitam sua área de mando; contra seu rival, também grande proprietário territorial, com o qual disputa a influência e até mesmo as terras, e, por último, contra o Estado monárquico que, tentando instalar uma ordem em certa medida racional, toma atitudes que contrariam seus interesses. Como centro de convergência das lutas sociais e políticas no Nordeste, fundamentalmente no meio rural, está, de fato, o coronel. Ele é que, direta ou indiretamente, traçava os rumos do relacionamento social e político. Ele era a célula de todo o sistema. Enfeixava em suas mãos o poder econômico, jurídico, político e, pela influência sobre o vigário local, até mesmo determinava os parâmetros da ação religiosa. Qualquer estudo sobre a violência da sociedade local não pode ignorar a ordem social que ali se instalou sob o primado da lei do mais forte, regida por um código próprio, o código do coronel. Sua ética era muito simples. Era o "divisor de águas", e o bem e o mal se definiam a partir de seus interesses privados. Bem era tudo que fosse a seu favor e mal tudo que lhe fosse contra. "Conquistador" de suas terras ou herdeiro de "conquista", organizador da produção local e "domador" da população aborígene ou adventícia, o coronel era muito cioso de suas propriedades e posses e exigia de todos o reconhecimento de seus direitos de mando. Na sua lógica, nada havia de mais correto e insofismável. Ele estava acima do julgamento dos subordinados, restando a estes balizar seu comportamento pela fidelidade irrestrita ou então discordar e cair nas suas iras. O coronelismo, fruto do latifúndio e da omissão ou ausência do poder público, encontrar-se-ia, entre 1850 e 1889, situado entre dois fogos. De um lado, a crise do setor exportador que, quando não o arruína, torna sua situação econômica instável; do outro, a tentativa da monarquia em fazer valer seu poder em meio a esses autênticos "potentados", como os alcunhava Euzébio de Queirós. Acostumados ao mando sobre seus vastos domínios, numa autoridade adquirida desde os tempos coloniais, os coronéis sofreriam os efeitos da centralização monárquica a partir do momento em que os Braganças formaram no Brasil um Império autônomo e aplicaram as idéias centralizadoras tão ao gosto das casas reais européias. Passado o período regencial, durante o qual a obra centralizadora esteve paralisada e em alguns casos retroagiu, e vencida a revolta Praieira, em 1850, a monarquia recomeça a sua obra de centralização e de instalação de uma estrutura político-administrativa mais racional e menos patrimonial. Este fato provocaria atritos, se bem que, na maior parte dos casos, estabelecessem — o poder público e o poder privado — um modus vivendi. Mas, apesar de

tudo, os coronéis não cedem na sua autoridade e agem como se fossem o poder maior, descaracterizando o poder público na sua área de influência, desmoralizando a justiça e oprimindo desapiedadamente os que estão na sua dependência. Mesmo assim, o relacionamento entre coronéis e Estado, nessa época, foi, podemos dizer, harmonioso. O coronel entendia o Estado como expressão de seus interesses privados, e este adotava uma política dúbia, mas lógica dentro dos objetivos nacionais. Estávamos muito perto dos movimentos insurrecionais que marcaram a primeira metade do século XIX, e ao Império atemorizava a idéia de qualquer convulsão interna. Diante da eclosão de algum motim, insurreição etc, caso partisse das camadas mais pobres, a resposta do governo imperial se fazia pronta e enérgica, e protelatória e cuidadosa, caso partisse dos coronéis. Ela foi violenta no caso do "Quebra-quilos", mas aos coronéis não foi aplicado "o colete de couro" e foram absolvidos ou anistiados. O que se depreende desse relacionamento é que foi feito em níveis diversos e de formas diferentes. Em nível local, houve a submissão quase completa das autoridades ao coronel; em nível geral, houve uma ação decisiva, com alguns recuos táticos para enquadrar os grandes proprietários no Estado racional que se formava. Podemos dizer que o Império, ciente da importância do coronel como "primeira garantia da ordem pública", no dizer de Henrique Millet, e ciente, também, da necessidade de organizar o país em bases mais condizentes com o século, colocou esta organização como objetivo permanente a longo prazo, evitando uma ação imediata que provocaria reações incontroláveis. Salvavam-se a paz interna e a unidade política em troca da concessão de uma parcela do poder, em nível local, aos coronéis, enquanto a administração pública, em nível geral, mantinha a independência relativa necessária para alcançar seus objetivos. Quando eclodiram os conflitos entre os coronéis e o Império, foi porque este ou adotou medidas contrárias aos interesses dos grandes proprietários ou não atendeu às suas reivindicações. Tais confrontos quase sempre terminaram com a conciliação, geralmente em detrimento do poder estatal. Mas, se não houve conflitos que jogassem decisivamente os coronéis contra o Estado, também não podemos dizer que houve uma ligação bem alicerçada. A colaboração existia porque, por mais que divergissem, tinham interesses comuns que se traduziam, por exemplo, na necessidade de defender a manutenção da ordem numa sociedade com parcela considerável de subempregados, marginalizados e escravos. Além do mais, alimentavam a esperança de auxílio financeiro da parte do Estado à sua economia cada vez mais descapitalizada. Ressaltese, ainda, o fato de que os coronéis jamais se mostraram unidos na oposição ao governo. A reforma da Guarda Nacional, em 1873, a nova lei do recrutamento militar, de 1874; a falta do tão solicitado

financiamento estatal e o agravamento dos problemas econômicos, à partir da grande seca de 1877-79, serviram para o distanciamento decisivo entre aquela elite e o regime monárquico. Os lavradores Esta parcela da população caracteriza-se pela heterogeneidade mas, qualquer que seja sua condição em termos sócio-econômicos, deve-se ter em mente a imensa distância que os separava dos grandes proprietários e que formavam a maioria da população regional. Compunha-se esse grupo de pequenos arrendatários, pequenos proprietários, moradores e jornaleiros. Suas condições de vida e trabalho eram precárias. Como moradores ou agregados de uma grande propriedade, habitavam por favor nas terras do senhor, numa situação instável, podendo a qualquer momento ser expulsos, perdendo as benfeitorias e, inclusive, a "roça", Não tinham a necessária liberdade para decidir suas vidas e mesmo a contragosto eram convocados, não podendo-se recusar, para realizar tarefas nada legais sob o mando arbitrário do coronel. Se não eram moradores, constituíam-se em força de trabalho disponível conforme as necessidades dos proprietários. O fato de serem trabalhadores eventuais, geralmente convocados nas épocas de plantio ou colheita, sob ínfimas condições de pagamento, fazia dessa gente uma população sofrida, subnutrida e mendicante, muitas vezes migrando de paróquia para paróquia, à procura de trabalho e alimentos. Após o fim do tráfico negreiro, com problemas de reposição de mão-de-obra, os grandes proprietários tiveram dificuldades em atrair trabalhadores rurais, devido, entre outros fatores, às condições exploratórias que impunham. Nos finais dos anos 50, ouve-se o clamor dos fazendeiros que exigem das autoridades medidas tendentes a obrigar os homens pobres livres a trabalhar em suas terras. Em 1860, a pedido, o Arcebispo da Bahia, Marquês de Santa Cruz, emite uma pastoral onde afirma que a ociosidade era um dos maiores pecados e concita, dessa forma, os pobres a procurar trabalho. Na década de 70, acentuando-se o problema, os delegados de Polícia são alertados para efetivar a aplicação do § 2º, do artigo 12, do Código de Processo Criminal e do artigo 111, do Regulamento de 31 de janeiro de 1842. O Chefe de Polícia da Província de Sergipe seria bem claro ao afirmar que "devido à fakta de braços para a lavoura, não se podia permitir a vadiagem". Estes parágrafos e artigos constituíam-se em verdadeiras leis contra a pobreza, mendicância e ociosidade. Os que fossem encontrados sem trabalho teriam o prazo de 30 dias para encontrar ocupação, findo o qual poderiam receber três tipos de penas: multa até 30 réis, prisão até 30 dias e 3 meses de casa de correção ou oficinas públicas. Reeditava-se, no Brasil

do século XIX, a versão cabocla das famosas poor-laws inglesas do século XVI. Estes homens pobres livres viviam praticamente à margem da lei. Não recebiam proteção dela, pois, no seu vasto mundo, os coronéis eram a lei suprema. Os julgamentos e decisões dos juízes,as resoluções das Câmaras Municipais, às ações da polícia; etc, tudo se colocava sob o arbítrio daqueles landlords. Não havia recurso diante de seu autoritarismo, a não ser abandonar a terra, acomodar-se, ou então transformar-se em bandido. O banditismo rural foi uma das soluções encontradas por esta população que vivia em condições subumanas. A falta de consciência política levou-os a reagir instintivamente e a tornarem-se bandoleiros, também chamados cangaceiros. Optar pelo banditismo significava a solução extrema diante da penúria e de certa forma a "liberdade", se bem que em termos individuais. Embora cometessem toda a sorte de crimes, estes homens eram vistos como heróis e olhados com admiração pela população em geral, da qual, inclusive, recebiam ajuda. Sua audácia e independência ante o coronel transformavam-nos em exemplos vivos de saída possível. A partir da década de 70, principalmente após a grande seca de 1877-79, houve um incremento considerável deste tipo de "saída", não sendo por coincidência que ocorreu justamente na época em que a crise econômica se mostrava mais aguda e as relações sociais se faziam mais impessoais, e menos velado se tornava o aspecto exploratório desse "relacionamento. A violência gerava a violência e ameaçava explodir de forma imprevisível, com sérias conseqüências. Os lavradores pobres, por seu turno, só se revoltavam quando a situação tornava-se aflitiva ou quando se aproveitavam de divisões ocorridas na elite dominante e eram insuflados por um dos lados. Dessa forma, saíram em campo, lutando contra seus opressores ou aqueles que identificaram como tais. Atacaram as fazendas na revolta de 1851-52 e, entre outros, as Câmaras Municipais e Coletorias na de 1874-75. Em ambas, com o mesmo pavor de serem escravizados, pois foi assim que entenderam (ou foram induzidos a tal) os decretos inovadores do registro civil, do sistema métrico decimal e da nova lei do recrutamento militar. Esta atitude serve para demonstrar o quanto de contas tinham a ajustar com seus "senhores". Demonstra, outrossim, que possuíam certa consciência da miserabilidade, dependência e opressão em que viviam e não achavam estranha a possibilidade de virem a ser escravizados. Os rebeldes derrotados engrossavam as fileiras dos bandidos e os bandos desciam do Sertão quando as rebeliões eclodiam no Agreste ou na Zona da Mata. Os matutos viam o banditismo como saída possível para sua situação de penúria e explodiam em rebelião quando a situação atingia seu ponto crítico. Se não conseguiram atingir seus objetivos é porque

lhes faltaram a necessária conscientização e a liderança saída de seu próprio meio. Quando foram conscientizados e alertados contra quem os oprimia, pelos radicais ou padres jesuítas, não receberam o apoio necessário para a continuação da luta. Diante da revolta popular, diante da revolta dos homens "sem nenhuma importância social e menos política", como os chamava certa autoridade, as elites se retraíam e se conciliavam. A revolta pregada pelas elites, quando de dissensões internas ou com o aparelho estatal, não era revolução, mas sim uma forma de levantar esses "proletários" para atingir objetivos que lhes interessavam. A elite, porém, não podia admitir perder o controle da situação e se isso era provável as suas facções se conciliavam. Como afirma José Honório Rodrigues, a conciliação sempre foi feita contra e em detrimento do povo; surgia como defesa da classe dominante contra a classe dominada. Ao sentir a gravidade do problema, os membros da elite que haviam insuflado a revolta popular preferiam esquecer as rivalidades e apoiavam a repressão governamental. As últimas décadas do século XIX foram assinaladas, no Nordeste, pelo incremento do banditismo rural, do fanatismo religioso e pelo desânimo dos grandes proprietários que se desinteressaram pela sorte da Monarquia. A violência se consolidou como forma de relação natural entre a população nordestina e refletia a acentuada deterioração das condições sociais. O desenrolar dos acontecimentos levaria ao confronto, a uma autêntica luta de classes, caso outros fatores não contribuíssem para esvaziar a tensão. Entre estes, colocamos como fundamental as migrações internas que deslocaram, progressivamente, para o litoral, para a Amazônia e, posteriormente, para o Sul, grandes levas de nordestinos. A situação econômica As revoltas devem ser entendidas, sem excluir aspectos particulares e conjunturais, a partir da crise econômica que assola a região e que se aprofunda nas décadas finais do século XIX. Inicialmente, não devemos esquecer que o Nordeste foi colonizado e explorado tendo em vista as necessidades econômicas da expansão comercial européia. A procura de metais preciosos, especiarias e produtos tropicais havia provocado as grandes navegações dos séculos XV e XVI e colocado, à mercê dos homens de negócios da Europa, novas áreas, muitas das quais praticamente despovoadas. Em algumas regiões coloniais, encontraram grande densidade populacional e formas de trabalho que souberam adaptar aos objetivos europeus; em outras, como no caso brasileiro, tiveram que montar toda uma infraestrutura de produção, trazendo para aqui sua técnica, capitais e, inclusive, mão-de-obra forçada. De que adiantava ter-se dinheiro, sementes e instrumentos de trabalho se

faltava gente para trabalhar? A escravidão negra foi uma solução para tornar viável os investimentos e fechar o círculo da economia: Não estavam em jogo os direitos humanos, mas sim a rentabilidade econômica. O Nordeste mostrou-se propício à produção de alguns artigos tropicais, principalmente a cana-de-açúcar, cujo consumo aumentava continuadamente no Velho Mundo e, posteriormente, de outros, como o algodão e o arroz. Seguindo estas necessidades externas, pôde a região durante longo tempo, na época colonial, entrar no circuito da produção e comércio mundiais, cujo centro achava-se nos Países Baixos, passando evidentemente pelos portos portugueses. Em fins do século XVI, a Zona da Mata nordestina ocupava o primeiro lugar na produção mundial do açúcar. A sua importância fica patenteada quando, após o Brasil passar para o domínio espanhol, em 1580, e tendo em vista a guerra entre a Holanda e a Espanha, os holandeses resolvem conquistar a região para não perder tão importante fonte de lucros. Mas tanta importância e riqueza gerada no nordeste brasileiro que fazia a fortuna de muitos comerciantes portugueses e batavos estava assentada sobre base instável, que iria ser a responsável pela crise que a região passaria nos fins do século XVIII e todo o século XIX. Um ponto fundamental que o leitor deve observar está na própria gênese da economia local, nascida a partir de necessidades externas, ou seja, visando a atender a um consumo que estava milhares de quilômetros distante, isto é, na Europa. Disto advêm problemas sérios: 1º) o plantador nordestino, que assumia todas as despesas e riscos do plantio e colheita da cana e da produção do açúcar, não tinha controle sobre o preço e a venda do artigo que ele próprio produzia. Afastado da comercialização, ficava ao sabor das flutuações dos preços que, muitas vezes, não chegavam a pagar os custos da produção, gerando o seu endividamento e, em alguns casos, a ruína; 2º) não tinha a garantia de que sua produção seria efetivamente adquirida pelos comerciantes estrangeiros. Investimentos holandeses, ingleses e franceses, nas Antilhas, fizeram desta região um centro produtor de açúcar concorrente do Brasil e sua proximidade da Europa, além de outros fatores, fizeram com que o Nordeste perdesse fatia considerável deste importante comércio. A isto acrescente-se o esforço do continente europeu em extrair, com sucesso, o açúcar da beterraba; 3º) na medida em que não tinha possibilidades de influir no comércio internacional, o fazendeiro nordestino, ao mesmo tempo que via os preços de seus artigos baixarem de forma real, era forçado, numa autêntica troca desigual, a adquirir manufaturados europeus (implementos agrícolas, objetos de consumo pessoal, etc.) por preços que se elevavam

continuamente; 4º) a utilização do escravo como principal força de trabalho era rentável enquanto o preço do produto no mercado fosse elevado. O fazendeiro, ao comprar o escravo, imobilizava nele um capital (dinheiro) e tinha que, obrigatoriamente, fornecer casa, comida e roupa. Quer produzisse ou não, a despesa com esta força de trabalho era relativamente constante. Para que se produzisse com mão-de-obra escrava, não se podia lançar mão de instrumentos de trabalho muito sofisticados, e necessário se tornava, também, que a terra fosse abundante e fértil para que a técnica rudimentar fosse compensada pela natureza. Visando a retirar, no mais curto espaço de tempo possível, o capital investido no escravo, o fazendeiro era obrigado a exigir dele cotas de trabalho bem maiores (média de 14 horas por dia), o que tornava sua vida útil muito curta. Portanto, além do alto preço do produto, da abundância e fertilidade da terra, a escravidão, para continuar a existir como forma de trabalho, exigia reposição continua de mão-de-obra; 5º) tendo sido montada como economia produtora de artigos para exportação, a região tendia à monocultura em detrimento da produção de alimentos para o consumo local. A importação de muitos alimentos de outras regiões ou países deixava, pois, as cidades sob a ameaça da escassez e à mercê da alta dos preços dos gêneros de primeira necessidade; 6º) tendo em vista que a principal produção da região visava a mercados externos (não só no sentido de estrangeiros, como de outras regiões do país), o fazendeiro não tinha por que pagar bons salários aos trabalhadores livres, quando os possuía, já que não era entre estes que estavam seus principais consumidores. Da mesma forma que agia com os escravos, exigia dos homens livres cotas excessivas de trabalho em troca de diárias irrisórias. No Nordeste, a partir de fins do século XVIII, encontramos todos estes problemas que se irão agravar no século XIX. Os produtos da região perdem, cada vez mais, importantes fatias dos mercados tradicionais; há uma queda real dos preços desses artigos e observa-se o esgotamento do solo, caindo a produtividade. A redução dos lucros impede a introdução, em forma ampla, de uma moderna tecnologia que, por certo, estava além das posses da grande maioria dos fazendeiros. Com o fim do tráfico negreiro, a partir de 1850, o fazendeiro nordestino, às voltas com esses problemas, começa a se desfazer de seus escravos. Vende-os para o Sudeste que, em fase de expansão, pode pagar elevados preços pelos cativos. Mas tal fato não significa que a recuperação do capital imobilizado naquela força de trabalho venha resolver seus problemas; pelo contrário, como sua situação chegara a um ponto crítico, na verdade, ele estava desfazendo-se de seus bens para saldar dívidas. Aí está a explicação para o tráfico interprovincial de

escravos que, nas décadas de 60 e 70, encheu de horror o país. A proibição do tráfico internacional não permitira ao Brasil livrar-se deste comércio degradante que então passava a ser feito às claras, dentro do próprio território nacional. Contudo, o fim do tráfico e a crise do setor exportador fizeram com que a abolição da escravidão chegasse mais cedo ao Nordeste do que no resto do país. O braço escravo foi sendo substituído pelo livre em condições extremas de miserabilidade. Na região, já havia uma reserva de mão-de-obra livre suficiente para assegurar a reprodução daquela economia exportadora sem ter que pagar salários elevados. Segundo cronistas que visitaram a região naquela época, a situação desses trabalhadores livres era pior do que a dos escravos, pois estes últimos, pelo menos, tinham assegurados vestuário, alimentação e moradia. Em síntese, era esta a situação do Nordeste. Perda de mercados tradicionais, queda dos preços dos artigos de exportação, esgotamento do solo, rendimento decrescente do setor agro-exportador e uma "massa" progressivamente aumentada de homens livres vivendo miseravelmente. Celso Furtado (1974:147-149), comparando dados das duas últimas décadas do século XIX, diz que, enquanto a população nordestina cresceu cerca de 80%, a renda real gerada pelo setor exportador não ultrapassou 54%, cabendo admitir que "houve declínio da renda per capita da região". Este declínio, no cômputo geral e no nível das classes sociais, traduz-se no empobrecimento ainda maior dos assalariados, arrendatários e meeiros e na concentração de renda em mãos dos grandes proprietários. Esta concentração de renda repousa e gera a proletarização de amplas camadas sociais. Uma parte considerável dos grandes fazendeiros inicia um processo de ampliação das áreas destinadas ao cultivo dos artigos de exportação, às expensas das que produziam gêneros alimentícios. Os relatórios dos chefes de Polícia das províncias mostram uma crescente relação de casos de violência praticados pelos fazendeiros contra os moradores de suas terras. Estes são expropriados, perdendo suas "roças". Aumenta o número de desocupados e miseráveis. A dinâmica e as contradições da acentuada dependência brasileira no marco do capitalismo internacional provocavam a destruição da pequena produção e ampliavam a economia de  plantation. Eliminavam, pouco a pouco, a produção de artigos de subsistência (em sua quase totalidade, feita por esses moradores) e forçavam a que todos entrassem em uma economia de mercado, num processo que ainda hoje não se completou. À pobreza e ociosidade de grande parte da força de trabalho disponível somavam-se a escassez e alta dos preços dos artigos básicos da alimentação local. Verificaram-se violentas insurreições urbanas e casas comerciais foram depredadas e incendiadas. O Nordeste estava, neste período, à beira da efervescência

revolucionária. Tudo era motivo para revolta e atos de violência. Nas principais cidades, de tempos em tempos, ocorriam motins populares. Ás decisões governamentais que não tinham apoio ou compreensão popular não eram acatadas. A população revoltava-se contra o recrutamento militar, contra o aumento de impostos, contra o registro civil dos nascimentos e óbitos, contra o censo geral da população do Império, contra a aplicação dos novos padrões de pesos e medidas etc. Não realizava simples passeatas de protestos, mas autênticas lutas com mortos e feridos. Além disso, desde a Praieira (1848-50), havia uma animosidade latente entre grandes proprietários e trabalhadores rurais. A tudo isto somava-se a atuação da imprensa e dos políticos radicais, bem como a luta entre facções da elite, disputando o controle das funções públicas. A difícil situação da economia regional ocasionava o rompimento da precária paz entre as classes sociais, e entre estas e o Estado monárquico. As insurreições, conflitos e violência demonstravam a profundidade das contradições econômicas que ameaçavam transformar a região em um bolsão revolucionário.

 AS INSURREIÇÕES Introdução Denominaremos genericamente de insurreições os violentos movimentos sociais que sacodem o Nordeste, nesta segunda metade do século XIX. Cabe-nos, no entanto, antes de descrevêlas, distinguir insurreição de revolução, seguindo a lógica de Um-berto Melotti (1971:34-36). A diferença entre revolução e insurreição consiste em que a primeira tem como objetivo derrubar o sistema existente para substituí-lo por outro que seja a expressão das transformações sociais ocorridas. Insurreição, por outro lado, constitui-se em um estágio anterior à revolução e serve para demonstrar que o antigo equilíbrio social foi rompido. Os movimentos insurrecionais podem ser dirigidos para atingir objetivos específicos, localizados e imediatos, tais como oposição a uma lei, a impostos considerados extorsivos, à alta de preços, etc. Os participantes dos movimentos insurrecionais, descrentes dos aparelhos do Estado, perderam a confiança na reclamação por meios legais (oficiais), mas ainda não chegaram ao ponto de propor a transformação total. Em vista disso, acusam a autoridade mais próxima, atacam os comerciantes, enfim, aqueles que muitas vezes são apenas executores e/ou sofrem os efeitos dos mesmos problemas. Não conseguem ainda relacionar fatos isolados e, muitas vezes, conjunturais, com contradições estruturais. Pode ser que com o prolongamento do movimento, no tempo e no espaço, adquiram esta conscientização mas, neste ínterim, já estamos nos limites de uma revolução. É assim que devemos entender as rebeliões nordestinas. Elas anunciavam as transformações que se operavam na sociedade local. Apontavam a necessidade de mudanças globais, o que pode ser atestado pelo incremento do banditismo rural e do fanatismo religioso, com a proliferação de "santos" e "beatos" que pregavam o isolamento ante aquela ordem injusta e aguardavam a salvação celeste, única esperança que lhes restava. Cangaceiros e fanáticos são faces de uma mesma moeda. Não é por coincidência que, no exato momento em que a crise econômica e a seca agravam os problemas regionais, aumenta o número de Chicos Beatos, Antônio Conselheiro, Jesuíno Brilhante, Quirinos, Viriatos, Calangros, etc, no rastro de uma herança que daria no século XX os famosos Padre Cícero e Lampião, aliás, amigos entre si. Um dos traços mais fascinantes da história das lutas sociais nordestinas está na própria memória histórica que cultuaram. Os líderes revolucionários de 1874 lembraram em panfletos os heróis de todas as revoltas anteriores, desde 1817 a 1848, numa prova de que as repressões passadas não

haviam conseguido torná-los esquecidos entre a população pela qual morreram.

O "Ronco da abelha" (1851-52) Terminada a Praieira (1848-1849), grupos remanescentes continuaram agindo no interior do Nordeste, principalmente de Pernambuco, Paraíba e Alagoas. Pedro Ivo, um dos líderes mais populares daquele movimento, organizou nas matas de Água Preta (Pernambuco) um dos mais importantes grupos de resistência. O próprio Ministro da Justiça, Euzébio de Queirós, em relatório apresentado em janeiro de 1850, reconhecia a dificuldade em combatê-lo. "É necessário porém acabar quanto antes esse germe de revoltas", exclamava enfaticamente o ministro. De fato, a existência desses pontos rebeldes constituía-se numa ameaça à tranqüilidade da região porquanto não só estimulava o aparecimento de outros focos semelhantes, como também constituía-se num excelente atrativo para que outros descontentes viessem engrossar aquelas fileiras. A figura de Pedro Ivo continuava a servir de esperança para a população insatisfeita. As notícias que chegavam ao Rio de Janeiro davam conta de que o líder rebelde era visto como o "predestinado", encarregado de fazer surgir "a nova idade do ouro". Paralelamente ao auxílio que populares prestavam a Pedro Ivo, o governo, extremamente preocupado, aumentava suas forças para persegui-lo. Em contraposição, em diferentes pontos da região, grupos rebeldes se formavam e agiam isoladamente. O aparecimento desses "focos sediciosos", um "ato espontâneo de patriotismo", no dizer da oposição, era visto pelo governo como manobra visando a "cansar o governo, separar e distrair suas forças" e, assim, manter vivo o espírito revolucionário. A prisão de Pedro Ivo não foi suficiente para eliminar os grupos guerrilheiros. Em seu relatório de 13 de maio de 1851, Euzébio de Queirós ainda se queixava de que o "valhacouto" de Serra Negra (comarca de Pajeú das Flores, Pernambuco), apesar de tantas vezes dispersado, renasce como ponto "azado para tais reuniões". Enquanto no interior a situação, de certa forma, continuava intranqüila, o ministro mostrava-se preocupado com a campanha dos políticos da oposição que exigiam "por meios revolucionários reformas radicais nas instituições". O clima apresentava-se tenso. O fim da Praieira não fora o fim do estado de agitação. A prisão dos seus principais líderes não significou que os revoltosos tivessem esquecido suas reivindicações. Ao mesmo tempo que grupos isolados agiam pelo interior do Nordeste, numa flagrante contestação ao governo conservador, a oposição continuava sua política de manter vivos os grandes temas liberais e praieiros. Formaram-

se duas facções: uma mais moderada, pedindo a convocação de uma Constituinte, e outra mais radical que organizava "sociedades", apelando para a "agitação" e assustando a população, no entender do Ministro da Justiça.

Foi neste ambiente "pré-revolucionário" que, nos meses de dezembro de 1851 e janeiro de 1852, as províncias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, com maior intensidade, e as do Ceará e Sergipe, de forma mais amena, foram assoladas por movimentos armados de oposição aos decretos 797 e 798, de 18 de junho de 1851, que instituíam, respectivamente, o Censo Geral do Império e o Registro Civil dos Nascimentos e Óbitos. O decreto 797 determinava que o arrolamento da população para o censo seria feito no dia 15 de julho de 1852, após afixação de editais nas Igrejas matrizes e anúncios nos jornais, a partir de 1º de junho daquele ano. Quanto ao decreto 798, constava que o registro civil da população, a ser feito pelos escrivães dos juízes de Paz dos distritos, entraria em vigor, "impreterivelmente", a 1º de janeiro de 1852. Foi na província de Pernambuco, "que o movimento apareceu com caráter mais grave, não só pelo número de grupos que se armaram, como por serem mais numerosas as freguesias e os termos em que ele se manifestou". Naquela província, levantaram-se os termos de Pau d'Alho, Limoeiro, Nazaré, Goiana, Vitória, Garanhuns, Rio Formoso, Igaraçu e as freguesias de Ipojuca, Jaboatão, São Lourenço e Munheca. Na da Paraíba, foram envolvidas as vilas de Ingá, Campina Grande, Alagoa Nova, Alagoa Grande. Na de Alagoas, as localidades de Laje do Canhoto, Mundaú-Mirim, Porto Calvo, Porto de Pedras, Riachão, Arrasto, Juçara, Jacuípe, São Brás, Salomé e Barra Grande, além dos moradores das matas de Cocal e Angelim. Nas do Ceará e Sergipe, a sedição limitou-se às localidades, respectivamente, de Jiqui e Porto da Folha. Em todos os pontos, os fatos foram idênticos. Ataques às vilas e engenhos, fuga das autoridades e grandes proprietários, ameaças e reuniões suspeitas feitas por "conspiradores" que, dentro dos engenhos, incitavam os moradores a tomarem das armas "se não querem ficar reduzidos com seus filhos ao cativeiro". A "plebe" revoltada clamava contra a "declaração da escravidão". Espalhara-se a notícia de que os decretos 797 e 798 visavam a "escravizar a todos os recém-nascidos e aqueles batizados com as formalidades prescritas por aquela lei" que fazia parte de um plano geral para reduzir "à escravidão as pessoas livres" e, para enfim, "reduzir à escravidão a gente de cor". O momento era propício para a exploração política dos decretos, apresentando-os como medidas escravizadoras da parte do governo conservador. Em 1850, regulamentara-se a repressão ao tráfico de escravos e os grandes proprietários reclamavam da falta de braços, ao mesmo tempo em que se queixavam da "preguiça" e "resistência ao trabalho" por parte dos trabalhadores livres. Esta situação tenderia a provocar da parte dos senhores de engenho, de um lado, a exigência de

maiores cotas de trabalho dos moradores e, do outro, a solicitação de "leis repressoras da vadiagem, que forçassem os homens ao trabalho". Quando em 1851 dois novos decretos determinaram que se fizesse o censo geral da população do Império e que todo nascimento e morte fosse registrado no livro do juízo de Paz, segundo a cor da pele (como era natural no Brasil até há pouco tempo), qualquer argumentação, mesmo simples, serviria para levantar em sedição a população amedrontada. Esta "gente de cor", estes "caboclos", na sua simplicidade e ignorância, viam-se diante de todos esses decretos como alvo da voracidade do senhor de engenho e tenderiam a reagir violentamente. Uma reação deste tipo não seria novidade, pois, por ocasião da Praieira, ouvindo a pregação dos radicais do partido da Praia, os lavradores haviam-se revoltado contra os senhores. É o povo mais pobre, principalmente moradores e jornaleiros, que forma o "grosso" da revolta. A correspondência vinda dos locais amotinados especifica que os revoltosos são o "povo mais miúdo", são a "gente baixa", são "a maioria da população menos abastada", enfim, "gente da última ralé" e "sem nenhuma importância social e menos política". Torna-se claro que as autoridades locais, identificadoras da origem social dos revoltosos, procuraram, taxativamente, assinalar que eles não pertenciam à elite da região; da mesma forma procederam os presidentes de Província e o próprio Ministro da Justiça. Assim fazendo, procuravam descaracterizar o movimento, visando a não estimular adesões e procurando mantê-lo circunscrito às localidades já sublevadas, evitando transformá-lo em outra Praieira ou algo de maior proporção, já que sabiam do descontentamento que grassava no Império, principalmente da ala mais radical do partido liberal, "deposto" em 1848. O governo conservador, expressão do "partido da ordem", tinha que aparecer perante a nação como o restaurador da paz interna e não o "divisor de águas"; a eclosão de uma nova Praieira demonstraria não só sua debilidade, como também a capacidade de resistência e luta do adversário. Na verdade, à primeira vista, a insurreição caracterizavase por ser um movimento da população rural mais pobre ("moradores", "proletários", etc.) contra os senhores de engenho e as autoridades nas vilas e cidades. Mas, teriam esses "moradores" e "proletários", sabidamente afastados da cultura da elite, condições de por si só julgarem o conteúdo dos decretos 797 e 798 e associarem-no ao de repressão ao tráfico negreiro e às atitudes tomadas pelos grandes proprietários? Acreditamos que não. Stavenhagem (1972:83), analisando a grande propriedade rural monocultora da América Latina, diz que entre o grande proprietário e os trabalhadores existem diferenças muito grandes; para ele, a "classe dominante é muito politizada, na

proporção em que o campesinato dominado quase não tem atividades nem participação políticas". Dessa forma, à luz da documentação que consultamos, muito embora não haja indicação explícita da participação de outros grupos sociais, achamos que ela provavelmente existiu e partiu dos grupos remanescentes do partido da Praia. O partido da Praia defendera, por ocasião da revolta de 1848, um programa de profundo cunho social; seus ataques eram dirigidos contra os senhores de engenho (principalmente o poderio do "clã feudal e parental" dos Cavalcantis) e os comerciantes portugueses, aqueles por monopolizarem a terra e estes, o comércio das cidades. Insuflaram os moradores dos engenhos contra seus senhores, e distribuíram perto de cinco mil armas entre o povo. Assim podemos entender quando Nabuco chama a Praieira de "movimento de expansão popular" e a vê sem "disciplina". A disciplina que lhe faltava era a limitação do movimento nos parâmetros do interesse da elite descontente. "Expansão popular" significa, neste caso, confronto com as elites, significa de fato um conflito social na medida em que passa a ser um levante popular, ultrapassando os objetivos iniciais. Quando as elites percebem as "terríveis forças" que acionaram, retraem-se, conciliam-se e a repressão é feita. E é Nabuco que isto observa no caso da revolta da Praia: "Diante da nova situação, os homens abastados, tendo em vista que os Praieiros eram indiferentes à sorte de sua propriedade e de suas vidas, pensaram em aproximar-se uns dos outros" (Nabuco, 1975:101-111). Por que não poderia ser a sedição de 1851-52 uma continuação da Praieira? Os problemas que levaram à sua eclosão não haviam desaparecido. No interior, grupos rebeldes continuavam agindo em autêntica "guerra de guerrilhas". Os "matutos" continuavam sob o "mando" incontestado dos poderosos senhores de engenho. Os liberais, e, mais do que nunca, os radicais da Praia, continuavam na oposição. Não estaria aí formado o "pano de fundo" para a interpretação dos decretos 797 e 798, de forma a exaltar novamente a "gente baixa" e tentar com nova sublevação a "inversão de tudo que havia oficialmente"? Apesar da preocupação em caracterizar o movimento como da exclusiva responsabilidade do "povo mais miúdo", as fontes deixam transparecer a participação de elementos de outros grupos sociais. Os primeiros as serem apontados são os párocos: "Alguns párocos, imaginando ou fantasiando prejuízos que da execução do decreto lhes devem resultar, consentem se não aprovam essas disposições hostis à lei..." (apud  Monteiro, 1980:124). Em segundo lugar, na procura dos "anarquistas" que fomentam a revolta da "gente rude", apontam os políticos do partido liberal:

"Os conspiradores continuam a fazer reuniões em seus engenhos e a proclamar que tomem as armas se não querem ficar reduzidos com seus filhos ao cativeiro e que o Partido Liberal é oposto a esse decreto e está pronto a defendê-lo (apud  Monteiro, 1980:125). De qualquer modo, a participação do clero e de elementos identificados com os ideais "praieiros" deu-se de forma velada. Procuraram dissimular sua atuação, evitando um confronto direto com o governo. Prepararam o terreno na esperança de um levante geral, a partir do qual, quem sabe, pudessem retornar à ação os antigos líderes foragidos no sertão ou então presos. A revolta de 1851-52 demonstrava que, embora a Praieira tivesse sido sufocada, as reivindicações ainda estavam bem vivas nas mentes dos nordestinos e que a repressão, que naquela ocasião fora feita, não havia sido suficiente para desestimulá-los. A repressão seguiu uma escala progressiva. Inicialmente, enviaram-se circulares às autoridades do interior no sentido de investigar a "verdadeira origem do preconceito" contra os decretos e que se empregassem "meios suasórios", usando "todo o legítimo ascendente do cargo que ocupa para desvanecer as impressões desfavoráveis"; sugeriam, também, que se encontrasse "o melhor modo de coibir a propagação do erro" e que se processassem os "amotinadores" (Monteiro, 1980:125). Além dessas medidas, foi mandado às localidade sublevadas o Frei Caetano de Messina, capuchinho, para organizar "santas missões" e ver se, dessa forma, acalmavam-se os descontentes. Sua pregação seguia uma norma comum nos sermões desse tipo: lamentava o erro dos devotos, aconselhava o arrependimento e mostrava-se interessado no bem-estar deles, ao mesmo tempo que os ameaçava com os piores castigos caso não ouvissem sua exortação; ou concordavam com ele ou seria derramado o "sangue dos filhos de Pau d'Alho". O trabalho do missionário era lento mas a cada dia, afluindo de vários outros lugares, ia crescendo o número dos que acorriam a Pau d'Alho para colocar-se sob a proteção do Frei e, portanto, a salvo da perseguição que começara a ser feita por tropas de primeira linha. Estes "proletários" eram usados, sob a direção do capuchinho, para a realização de obras públicas; em Pau d'Alho foram reparadas as igrejas de Santa Teresa, do Rosário e do Livramento: "Os homens fabricando tijolos e telhas, conduzindo pedras, cortando madeiras (...) e as mulheres conduzindo areia, tijolos e telhas, andando todos no maior contentamento e alegria, como se cada um dia de tanto trabalho fosse para todos a melhor festa. Nessa missão recebi trinta e seis clavinotes para entregá-los à competente autoridade" (apud

Monteiro, 1980:126). Entrementes, o governo não podia deixar o fim da sedição entregue ao lento trabalho do missionário; afinal, as propriedades começavam a ser ameaçadas, o que exigia pronta repressão. Do Recife, foi enviado o 4º Batalhão de Artilharia para juntar-se ao 9º Batalhão de Infantaria que já havia sido mandado anteriormente para Pau d'Alho e que estava acampado no Engenho Cajueiro, a pouca distância daquela vila. Tendo em vista que a todo momento "chegassem notícias desagradáveis de Nazaré, Limoeiro, Santo Antão, Goiana e outros lugares", a Guarda Nacional foi convocada. Na segunda quinzena de janeiro, as autoridades já podiam anunciar a pacificação, muito embora apontassem ainda a existência de grupos armados. Os lavradores, em parte, optavam pela "guerrilha", embrenhando-se pelas matas. Estes francoatiradores, à medida que não se reintegravam nas antigas atividades econômicas, preferiam refugiar-se no interior, no Sertão, e transformavam-se em "bandidos". Na verdade, as forças governamentais não chegaram a lutar com os sediciosos. Da mesma forma que se abateram sobre os engenhos e vilas — de surpresa e em ação rápida —, desapareceram sem deixar vestígios. Alguns participantes dos grupos de razia foram reconhecidos por pessoas da localidade ou de fazendas invadidas, mas não houve referência posterior sobre abertura de processo-crime. O governo preferiu, a 29 de janeiro de 1852, pelo decreto 907, suspender a execução do Registro dos Nascimentos e Óbitos e do Censo Geral. Estando a pouco mais de um ano do início da conciliação, o gabinete conservador, ao que parece, já envolvido pela atmosfera que iria resultar no ministério de 6 de setembro, resolve conciliar. A suspensão das medidas pretensamente causadoras da revolta e o caráter brando da repressão, que mais pareceu uma demonstração de força, confirmam esta hipótese. Os lavradores revoltados não contaram com uma unidade de ação, com uma liderança. Incentivados ou não por elementos de outros grupos sociais, os registros não assinalam nenhum chefe, nenhuma organização. Embora em maior número, o levante em grupos esparsos facilitaria a reação da classe dominante e a repressão. Evidentemente que essa classe, por sua própria posição, tinha mais condições de se organizar, não só por contar com os "aparatos ideológicos" que levavam a população em geral a condenar o levante, mas, também, por pertencer à Guarda Nacional que a transformava em classe armada e, finalmente, pelo apoio que tinha do Estado através das "forças de linha" (exército regular). Â participação de elementos do Partido Liberal, do clero, de radicais etc, cai de importância ante o problema maior que se apresentava: a luta de classes que, de latente, passava a declarada.

O "Quebra-quilos" (1874-75) Nos últimos meses de 1874 e princípios de janeiro de 1875, quatro províncias do Nordeste — Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas — foram assoladas por uma nova rebelião que abalou as principais comarcas da Zona da Mata e Agreste de Pernambuco e Paraíba e várias localidades de Alagoas e Rio Grande do Norte. De maneira geral, os fatos ocorreram de forma idêntica. A cobrança dos impostos provocava protestos, e daí partia-se para a agressão, com a "turba" descontente quebrando os pesos e medidas do novo sistema métrico decimal e, em seguida, destruindo os arquivos das Câmaras Municipais, Coletorias, Cartórios (inclusive o de registro de hipotecas) civis e criminais e até mesmo, em algumas localidades, os "papéis" dos Correios; ou então, repentinamente, a cidade ou vila era invadida por bandos de homens armados, cujo número variou de 60 a 600, que realizavam os mesmos "feitos" (destruição dos novos padrões e incêndio dos arquivos) e partiam prometendo voltar a qualquer momento. O movimento teve início na vila de Fagundes, da comarca do Ingá, na Paraíba. Por ocasião da feira, a 31 de outubro de 1874, "o povo que ia à feira para abastecer-se de gêneros alimentícios" pronunciou-se contra o arrematante de impostos que cobrava o denominado "imposto do chão". A grande quantidade de pessoas que protestava e o reduzido número da força policial deram vitória aos insurre tos. "A notícia voou." O comandante das forças imperiais na província atribui a rápida propagação da insurreição à vontade de sacudir, dos ombros, fardos que ele supunha pesados demais à pobreza da população. A partir de então, uma após outra, várias localidades da Paraíba sofreram os efeitos das "massas desenfreadas". No mês seguinte, levantava-se Pernambuco e, em seguida, Alagoas e Rio Grande do Norte. Os revoltosos traziam "um rosário" de queixas. Explodiam em rebelião por um acúmulo de problemas que se acentuavam a cada ano. Algumas foram comuns a todas as agitações: reclamação contra os impostos (novos ou aumentados), contra a nova lei do recrutamento militar e contra o novo sistema métrico decimal. A queixa contra os impostos era dirigida, em primeiro lugar, ao aumento do número de taxas cobradas, tanto pela fazenda provincial quanto municipal, e à elevação de inúmeros deles; em segundo lugar, ao abuso verificado na cobrança dos mesmos pelos arrematantes. Conforme explicamos anteriormente, as províncias do Nordeste vinham sofrendo os efeitos da queda dos preços dos seus principais gêneros de exportação — o açúcar e o algodão —  e da contínua perda do mercado mundial. O resultado disso, no plano financeiro, foi a diminuição das rendas provinciais. Em tais circunstâncias, por solicitação das presidências e

Câmaras Municipais, as assembléias provinciais foram votando o aumento dos impostos existentes e a criação de novos. Dentre os impostos criados, estava o que instituiu o imposto de consumo de alguns gêneros alimentícios, entre os quais o da carne seca e da farinha, que tantos protestos iria causar. Explicando esta sobrecarga de taxas, dizia o presidente Lucena de Pernambuco: "convém aqui ponderar que, sendo neste segundo período consideravelmente maiores os encargos da Província e demasiadamente escassos os meios de ocorrer a eles, NÃO ERA MUITO QUE SE ALTERASSE A TABELA DE IMPOSIÇÕES, TANTO QUANTO FOSSE BASTANTE PARA CONSEGUIR-SE RENDA SUFICIENTE" (apud Monteiro, 1980:132). Tal argumento poderia ser considerado lógico, mas não naquelas circunstâncias, onde qualquer majoração ou criação de impostos não deixaria de elevar o custo de vida. A imprensa liberal vê nessas elevações uma forma de transferir para o povo, entre o qual, principalmente, os mais afetados seriam a "gente miúda", a responsabilidade de sustentar a burocracia estatal, ou seja, "para fazer viver na opulência a meia dúzia de ladrões". Quanto aos arrematadores dos impostos, sabemos que, tendo arrematado ao município ou à província determinada taxa, procuravam eles arrecadar o máximo que pudessem visando a aumentar "seus lucros". Os expedientes por eles utilizados não têm sido devidamente estudados, mas dois dos exemplos citados pelo Comandante das Forças Imperiais na Paraíba são suficientes para ter-se uma idéia dos motivos por que as populações tinham tanta prevenção contra esses "capitalistas". "Um pobre homem trazia às vezes para a feira uma certa quantidade de farinha no valor de 2$000 rs., logo que pousesse no chão o saco que trazia, pagava imediatamente uma certa quantia, porém se por qualquer circunstância ele mudava de lugar tinha que pagar novamente o imposto e pagaria quantas vezes mudasse de lugar; de modo que muitas vezes, sem ter ainda vendido o que trazia, já tinha pago ao exigente arrematador o dobro do valor do que trazia para vender" (Arquivo, 1937:120). "Em Pedras de Fogo o arrematante, vendo que um homem que trazia uma pequena quantidade de frutas no valor de 160 réis não lhe dava lugar a cobrar o imposto no chão por não querer descansar o cesto, usou o artifício de entreter com ele conversação e oferecer-lhe um cigarro, e assim que o homem, para acender o cigarro, descansou o cesto, o arrematante cobra-lhe 200 réis que aquele lhe era devedor" (Arquivo, 1937: 120). A freqüência de fatos como esses transformava a cobrança dos impostos em momentos de grande tensão. Os revoltosos de Panelas queixavam-se das "extorsões dos arrematantes" e os de Bom Jardim diziam que o coletor "cria impostos para si".

Assim, compreendemos por que, em grande número dos casos, as agitações têm início com discussões nas feiras sobre a legalidade dos impostos, daí partindo para as agressões já citadas. Compreendemos também porque, nas vilas atacadas, um dos alvos quase sempre eram as coletorias. A arrecadação de impostos já havia ultrapassado o limite natural que uma população psicologicamente considera como justo. Na difícil situação em que se encontravam — os senhores de terras se descapitalizando passo a passo e os "proletários" sofrendo os efeitos da crise da lavoura —, as novas taxas eram não só um "abuso" como um "cinismo"; aqueles, reclamando da queda dos preços e da perda de mercados, pediam financiamento e recebiam aumento de impostos, estes, sofrendo as agruras do desemprego, teriam que pagar mais caro até mesmo pelos alimentos. Realmente, como dissera o Presidente Lucena: "bastava uma faísca". A esse problema que consideramos o mais grave, acrescentese, como já afirmamos, a oposição à nova lei do recrutamento militar (Lei nº 2.556, de 26.09.1874) "que, espalharam, torna o cidadão escravo". Era um argumento semelhante ao utilizado em 1851-52. Curiosa é a preocupação, que atemorizava a população, geralmente "mestiça", quanto a ser transformada em escrava. Retrata uma certa desconfiança para com as elites ou para com o governo; deixa perceber a imagem que as populações mais pobres fazem da burocracia governamental e dos senhores na medida em que não são ouvidas politicamente, não têm proteção legal ante os tribunais, a não ser com apoio de uma "pessoa influente" e não têm perspectiva de melhoria de sua situação, pois do governo nada mais esperam. A escravidão, se viesse a cair sobre eles, não causaria estranheza, mas naturalmente iriam lutar contra tudo que lhes pudesse parecer um caminho para aquela forma de trabalho. Além dos pobres, a repulsa à nova lei partia também dos senhores. Acostumados a substituir os seus parentes recrutados por escravos ou "cabras" da área de seu domínio, ouviam agora dizer que a lei 2.556 iria impedir que os recrutados fossem pessoas só de "baixa condição", ouviam dizer que ela igualaria a todos. Era muito para os poderosos "senhores de homens e terras". A atitude deles passa a ser a de uma ostensiva oposição, como no caso do Tenente-Coronel Luís Paulino, fazendeiro em São Bento, comarca de Buíque, que contratou o bando de José Cesário para ajudá-lo a se opor à nova lei, ou como aconteceu em Panelas, onde o juiz de Direito reclamava não ter "encontrado por parte dos cidadãos mais prestáveis e com os quais me hei entendido o menor indício de coadjuvação em qualquer emergência" (apud Monteiro, 1980:134). No nosso entender, o ato de quebrar os novos padrões do sistema métrico decimal, e que dá o nome ao movimento —  "Quebra-quilos" — situa-se na mesma linha de destruição e

incêndio dos arquivos dos municípios, trata-se da exteriorização de uma revolta contra o governo e seus representantes. A revolta do "Quebra-quilos", na verdade, tem suas origens na crise por que passava a economia nordestina; o problema dos impostos e a nova lei do recrutamento serviram para acionar a sedição. A isto acrescentem-se, também, os problemas de ordem política e religiosa (a oposição liberal ante um governo conservador e a prisão do Bispo D. Vital) que não só aproveitaram-se da crise econômica, como também ajudaram a exaltar os ânimos. Para se ter uma exata compreensão desta revolta, torna-se necessário analisar a participação dos que nela atuaram. Os elementos principais que formaram a maioria dos revoltosos foram os grandes proprietários de terra e os indivíduos de "baixa condição", ora denominados "moradores" ora "proletários". Além desses dois grupos, dela também participaram os políticos da oposição, o clero e os oficiais da Guarda Nacional. Houve participação menor, geralmente em casos isolados e bem específicos, de marchantes, negociantes, arrematadores de impostos e inspetores de quarteirão. Podemos afirmar, portanto, que a sedição teve como seus principais atores os grandes proprietários de terra, os "proletários", os políticos da oposição e o clero. Vamos analisar cada caso em separado. A participação dos grandes proprietários de terra caracterizou-se pela ação direta, chefiando a "turba" descontente, ou, como relata o Comandante das Forças Imperiais na Paraíba, pela neutralidade comprometedora, quando não era "indiferença culposa ou uma animação mais culposa ainda". Dessa forma, temos arrolados como "cabeças da sedição", entre outros, os fazendeiros Virgínio Horácio de Freitas, senhor do Engenho Lajes, em Itambé, Francisco Roma, senhor do Engenho Jatobá, em Goiana e Antônio José Henriques, senhor do Engenho Serra, em Bonito. Em oficio datado de 13 de dezembro de 1874, o Delegado de Policia de Panelas reclamava que os "homens importantes" da região negaram-lhe auxilio contra os sediciosos dizendo que estavam "alcançados", não dispondo de meios para reunir o povo, isto é, estavam endividados. A participação direta ou a omissão desses cidadãos que, como diz Henrique Millet, constituem a "primeira garantia da ordem pública", pode ser explicada a partir da difícil situação econômica em que se encontravam. A produção de suas terras — o açúcar e o algodão — sofria, como já dissemos, os efeitos da perda do mercado internacional e da queda dos preços, ao mesmo tempo em que a crise financeira restringia o crédito. Nesta situação extremamente aflitiva, a ponto de terem de começar a se desfazer, segundo Millet, de parte do seu capital imobilizado, compreendemos que possuíam motivos

suficientes para rebelarem-se ou para ficarem indiferentes à sorte do governo que não olhava por eles. Quanto aos "proletários", foram eles que formaram a "massa" dos descontentes. Foram eles que, em grupos que variavam de 60 a 600, invadiram as vilas e destruíram os pesos e medidas e os arquivos. Nessa categoria, de forma abrangente, podemos agrupar os "moradores", os "proletários" e os "mercadores das feiras". Foram indiciados como "cabeças" do grupo que atacou a povoação de Vertentes, Umbelino de tal, "morador na Borba", Jorge Marques Defensor do Império, "morador na Tapada" e Manuel Francisco da Silva, "morador no Estreito". Em Panelas, comunicava o Delegado de Polícia a 13 de dezembro de 1874 que Leôncio, "morador em Camaratuba" andava "falando contra os impostos". Em todos os pontos de revolta, a "massa" dos sublevados era formada pelos "mercadores da feira e por grande número de proletários" que se identificavam pela "baixa condição" ou, como disse o Comandante do Batalhão de Panelas, são pessoas que "não têm o que comer". Fica muito difícil distinguir quem, exclusivamente, pertence a uma destas 3 categorias pois um "morador" não deixa de ser um "proletário" e ambos podem ser um "mercador de feira". Entenda-se por "morador" o indivíduo a quem é permitido morar nas terras de um grande proprietário, com direito a ter sua "roça" e, eventualmente, quando o senhor necessita, presta serviços em troca de remuneração. Quanto ao termo "proletário", de acordo com os relatórios da época, são os que estão à procura de trabalho, conseguem ocupação normalmente na época do plantio e colheita recebendo por jornada, isto é, são jornaleiros. Por conseguinte, um jornaleiro pode ser aquele que não tem acesso à terra de forma alguma, mas também pode ser o pequeno proprietário, um pequeno arrendatário, foreiro ou "morador" que procura no trabalho assalariado a complementação da sua renda para poder adquirir aqueles objetos que não é capaz de produzir. Dependem, como diz Henrique Millet, "senão para a subsistência diária, que em grande parte tiram diretamente, do solo, rios e matas, pelo menos para todas as mais precisões da vida civilizada, dos salários que lhes pagam os agricultores" (apud Monteiro, 1980: 136). De qualquer forma, tendo acesso à terra ou não, estes trabalhadores eventuais podem participar da feira do arraial ou vila próximos, vendendo produtos agrícolas que lhes sobraram de sua diminuta produção ou artesanato em madeira, couro, barro e palha que preparam nas horas de folga. "Os produtos são vendidos no mercado para produzir uma margem extra de 'entradas' com as quais compram bens que não produzem domesticamente" (Wolf, 1972:10). Assim sendo, estas pessoas que as autoridades locais designam como de "baixa condição", "ignorantes e cheias de

preconceitos", são as que vivem em condições precaríssimas em épocas normais e em situação extremamente difícil em épocas de crise, como essa por que passava a economia nordestina em 1874-75. Em 1874, não só as possibilidades de trabalho tornaram-se muito limitadas, devido à crise da economia, como também uma série de leis novas havia sido criada, como a que mudava o padrão de pesos e medidas, a que estabelecia novas regras de recrutamento para o exército e armada, entre outras, e especialmente as que criavam e aumentavam impostos provinciais e municipais, todas parecendo uma forma de opressão do Estado. É bem sintomático que os movimentos de rebeldia tivessem início por ocasião das feiras, no momento em que se dava início à cobrança dos impostos. Estas imposições, novas ou aumentadas, provocavam irritação pois constituíam, por menor que fosse, uma sobrecarga aos já tão sacrificados trabalhadores e pequenos proprietários rurais. Não se tratava, portanto, da simples oposição de "população ignorante" às leis que não sabiam compreender; tratava-se, isto sim, da explosão de revolta de uma população pobre, vivendo em condições subumanas, reagindo de forma aparentemente irracional contra um estado de coisas cada vez pior e sem perspectivas aparentes de melhoria. Quando os senhores de engenho cruzam os braços e deixam a "turba" livre para agir, ou usam-na como forma de pressão contra as autoridades constituídas, visando a fazê-las olhar para a situação, o que se vê são ações isoladas de grupos de "proletários" que resolvem "acertar contas muito antigas em suas aldeias ou regiões" (Wolf, 1972:6-8). Ao falarmos em "acertar contas", podemos ser levados a pensar em luta entre "proletários" e "senhores", mas acontece que os trabalhadores rurais, neste momento, vêem os grandes proprietários não como seus exploradores, mas como indivíduos que sofrem os efeitos do mesmo mal. De certa forma, com eles ficam solidários, ou melhor passam a identificar o "inimigo" real contra o qual devem reagir de imediato: o Estado. O relacionamento entre grandes proprietários e seus jornaleiros não é uma simples troca de trabalho por salário. Além do compadrio que o transforma numa ligação pessoal, com traços de afetividade, a "Casa Grande" realiza uma enorme obra de assistência social, moral e jurídica, de que resulta a permissão de morar gratuitamente nas terras do senhor, além de dar conselhos e proteção. É evidente que este relacionamento não deve ser entendido no seu sentido puro, pois existiram diferenças, de acordo com a evolução histórica, com as condições econômicas e com as necessidades e nível de entendimento dos grupos envolvidos. Assim, as secas, como a de 1869, que trazem do Sertão para o Agreste ou Mata os vaqueiros foragidos, transformando-os em lavradores, dão como resultado, de certa forma, a "injeção" de idéias de altivez e reação no tradicional ambiente rural.

Outro ponto que não devemos esquecer é o trabalho de conscientização levado a efeito por grupos políticos e religiosos que tiveram sua primeira expressão na "Praieira" e na revolta de 1851-52; nesses movimentos, os trabalhadores rurais chegaram mesmo a ignorar os laços afetivos e de submissão, atacando as próprias fazendas, como demonstramos anteriormente. As características da crise econômica e as medidas administrativas governamentais serviram para colocar, lado a lado, estes dois grupos rurais — os trabalhadores e os grandes proprietários — contra o Estado que nada faz em benefício deles; trata-se de uma luta do "campo" contra a "cidade", ou melhor, como definiu Irineu Jofily, contemporâneo ao acontecimento, uma revolta contra o "governo que chamavam de doutores ou bacharéis", numa clara referência às diferenças de visões e ao divórcio entre a sociedade rural e a burocracia governamental (Jofily, 1892:188). O clero participou da revolta do "Quebra-quilos" e foi um dos mais punidos. Os padres foram apontados como instigadores; alguns, como o vigário Calisto Correia da Nóbrega, de Campina Grande, na Paraíba, e o Padre Manuel de Jesus, de Granito, em Pernambuco, foram acusados de serem "cabeças" de sedição; outros, como os jesuítas estrangeiros Mário Arcioni, João Batista Royberti, Felipe Sottovia, Luis Cappuci, Vicente Mazzi, João Berti, Antônio Aragnetti e Onoratti, foram expulsos do Império. Os governos imperial e provincial ligaram a questão dos bispos e a atuação do clero ao "Quebra-quilos". A atitude dos padres tem uma característica toda especial e deve ser vista sob ângulos diversos. Um que merece destaque se refere à conjugação de duas crises, uma econômica e outra políticoreligiosa que tem seu desdobramento com a agitação "popular", desenrolada na mesma época. Se acreditarmos nos relatórios oficiais, o problema religioso prepondera sobre o econômico e, neste caso, os padres jesuítas tiveram papel destacado na rebelião. Mas não devemos esquecer que, atribuindo maior importância à questão da prisão dos bispos, desviavam-se as atenções do problema mais grave, que era a difícil situação da lavoura nordestina. O governo, assim, escondia seus fracassos ante a crise econômica e, ao culpar o povo, liderado pelos padres jesuítas, pela rebelião, tirava de si próprio a responsabilidade, deixando-a para a idéia vaga de "povo ignorante", ao mesmo tempo em que tinha nos "padres estrangeiros" os necessários elementos para "sacrificar" e justificar a revolta. Ao transformar o "Quebra-quilos" num movimento de fundo religioso e de prova da interferência estrangeira (da Igreja Romana) nos negócios internos do país, o governo adquiria o papel de representante da independência e nacionalidade ofendidas, pretendendo unir em torno de si o maior número de defensores. Distorciam-se os fatos para beneficiar politicamente o

gabinete conservador, que seis meses depois (junho de 1875) não resistiria e seria mudado. O papel desempenhado pelos padres jesuítas é outro ponto delicado. Usaram o púlpito, escreveram artigos nos jornais e falaram, nas "missões", contra o Estado. Como funcionários públicos e religiosos, ao mesmo tempo, estavam em situação difícil: defendendo o Bispo D. Vital, colocavam-se contra o governo imperial a quem deviam obediência; não ficando a seu lado, colocar-se-iam numa posição de rebeldia ante seu pastor. Podemos dizer que ficaram do lado de sua consciência e por isso incorreram nas "iras" do Estado. Mas, fica uma interrogação: até que ponto esta simples disputa de autoridade   — entre a Igreja e o governo imperial — seria motivo para levantar o povo em revolta? Se não houvesse a crise econômica, com as implicações já vistas, os "matutos" iriam pegar em armas contra o governo, somente devido à prisão de D. Vital? Na nossa opinião, o problema era bem mais complexo. Em ofício de 25 de dezembro de 1874, o Juiz Municipal de Granito (Pernambuco) acusava o Padre Manuel de Jesus, da paróquia local, de incutir "no espírito do povo rude e ignorante idéias perigosas e subversivas da ordem social". Referindo-se ao mesmo vigário, diz o comandante do destacamento policial de Granito que "não satisfeito com sua jesuítica doutrina, na Igreja, domingo, 19 do corrente (dezembro), NA FEIRA DESTA VILA, PROFERIU PALAVRAS INSTIGANTES AO POVO PARA NÃO SE SUJEITAR A IMPOSIÇÕES COM REFERÊNCIA A ATACAR GÊNEROS ANTES DA HORA MARCADA PELAS POSTURAS DA RESPECTIVA CÂMARA". Este era um ponto de suma relevância porque a cobrança de impostos aos feirantes levara à adoção de uma norma pela qual as feiras só teriam início com a chegada do presidente da Câmara Municipal ou seu representante, acompanhado pelo coletor de impostos. Ora, se cada um, à medida que fosse chegando, "atacasse" os seus artigos, isto é, começasse a vendê-los, o fisco ficaria prejudicado na cobrança. Em carta apreendida pela polícia, o professor público de Vertentes, Xavier Ribeiro, escrevia ao vigário de São Lourenço da Mata (Pernambuco) dando conta de seu trabalho de conscientização dos "matutos": "Estes povos, como já tenho dito, detestam o maçonismo, mas detestam-no por um sentimento vago; não é porque eles saibam o que é a maçonaria, nem seus modos, fins etc, etc. Há outra pessoa, como este seu criado, que, arrostando as iras da energúmena, não cessa de instruir os matutos convenientemente, etc, etc. Eu sei que os cachorros estão danados comigo, assim como parece-me que em certas localidades (do mato, bem entendido) eles não ladram" (apud  Monteiro, 1980:140). A atuação dos padres e seus agentes, pelo que a documentação deixa perceber, foi de conscientização da população mais pobre, alertando-a para as profundas injustiças sociais de que era alvo, agora aprofundadas com as instigações

contra o Estado "algoz de bispo". Pode-se dizer também que, na luta contra o Estado que se mostrava "inimigo" da Igreja, postando-se ao lado da maçonaria, a arregimentação do povo levou à radicalização das prédicas dos religiosos a ponto de, ao mesmo tempo que criticavam uma situação política, começassem a levantar problemas sociais. Aqui, o ponto de convergência. A crise econômica e a religiosa fornecem, reciprocamente, "razões" para a revolta. No caso dos padres jesuítas, podemos dizer que tiveram na "crise da lavoura" um aliado de suma importância, mas daí atribuir ao movimento um caráter preponderantemente religioso é supervalorizar o confronto entre o Bispo D. Vital e o Gabinete Rio Branco, é esquecer o sofrimento daqueles "proletários", atingidos mais diretamente pela crise econômica. A revolta de 1874-75 foi o renascer do "espírito liberalradical" que já se manifestara em 1817, 1824 e 1848. Não foi como na revolta de 1851-52 onde a participação dos grupos político-radicais, se houve, foi marcada pela timidez. Agora, passados quase trinta anos, ouviam-se os mesmos gritos de luta pela liberdade: "O Leão do Norte será sempre o mesmo. Sim, liberal paraibano, não terás glórias nem martírios que não sejam também nossos. Patrícios de Nunes Machado, abracemos os patrícios de José Peregrino! A liberdade é o anel de ouro das núpcias dos patriotas! Firmes que Deus é pela liberdade! Um pernambucano." A fermentação política em todo o Império estava por esta época marcada pela contestação de fato ao regime. Desde 1868, quando os liberais foram "despejados" do governo, com a queda de Zacarias, a situação, a cada ano, tornava-se mais tensa; havia-se passado das críticas ao poder moderador, responsável por aquela "derrubada", ao manifesto republicano de 1870 que pregava abertamente a necessidade de se extinguir a monarquia. Na revolta de 1874-75, o que se via era o desembaraço dos radicais que, de certa forma, estava de acordo com o que se passava em nível nacional. A ação política foi feita em vários níveis. A imprensa liberal criticou severamente a situação. Aproveitando-se do momento, tomava partido contra tudo que emanava do governo conservador, desde as novas leis até o problema da prisão do Bispo D. Vital. Tudo era motivo para atacar o gabinete e a administração provincial. Em ofício datado de 31 de dezembro de 1874, queixava-se o Presidente Lucena:

"O partido que se diz liberal, em publicações diárias e avulsas, difundia doutrinas subversivas, com alteração da verdade e deturpação dos fatos, na linguagem a mais virulenta e inconveniente (apud Monteiro, 1980:141-142). Enviaram-se agentes às localidades com o propósito de orientar a resistência. Os radicais fundamentaram sua propaganda nos pontos que evidentemente mais sensibilizariam os setores descontentes. Colocaram-se contra o governo na questão dos bispos, chamando-o de maçom e, como disse o Presidente de Pernambuco, "especulando com o sentimento religioso", procurando atrair o clero e sensibilizar a população católica. Anunciaram que a nova lei do recrutamento tinha por objetivo escravizar os "homens pobres". Este argumento havia sido decisivo na sedição de 1851-52 e como as circunstâncias o permitiam, nada melhor do que usá-lo outra vez. Outro ponto também muito utilizado foi a oposição às leis relativas aos impostos. Pregaram a resistência ao pagamento numa argumentação semelhante à que havia sido empregada, com êxito, na revolta de 1817. Os ataques variavam desde pontos evidentemente corretos às mentiras mais torpes, como a futura criação de impostos para "estender roupa para secar", 100 réis por cada galinha que possuíssem, dois mil-réis para usar óleo no cabelo, etc. Mas todos os ataques terminavam sempre com o mesmo refrão de que "era chegado o tempo de libertar-se". Não ficaram ao nível dos discursos e conversas "ao pé do ouvido"; imprimiram-se manifestos que foram espalhados pela Zona da Mata e Agreste. Fizeram, como disse o Juiz de Direito de Tacaratu, um verdadeiro "chuveiro de manifestos". Pudemos ler três exemplares que foram apreendidos na ocasião (Monteiro, 1980:165-173). O primeiro transcreve um manifesto supostamente redigido por "um paraibano" onde, depois de historiar a ajuda que a Paraíba prestou a Pernambuco nas revoltas de 1817 a 1848, reclama que agora, quando a Paraíba precisa de ajuda, o que Pernambuco fez foi enviar soldados para sufocar o movimento ali iniciado. De fato, atendendo ao pedido do Presidente da Paraíba, o Presidente Henrique Pereira de Lucena, de Pernambuco, enviou uma companhia de soldados para auxiliá-lo na repressão. O manifesto aos pernambucanos lembra ainda algumas das atitudes de Lucena: reduziu o povo à miséria; "matou os brios de teus filhos", transformando-os em algoz dos paraibanos; chamou-os de "canalha" no parlamento; especulou com os cadáveres, "concedendo privilégios de carros fúnebres"; mandou "espaldeirar" o povo, tingindo de sangue as calçadas das ruas e, além de fazê-lo passar por todas essas humilhações, reduziu a província à condição de "feitoria". Em resposta, "um pernambucano" fala da identidade entre as duas populações e que os brios dos pernambucanos não devem deixar o "rubor"

subir à face, nem "estremecer os manes de Nunes Machado". O segundo manifesto, sob título POVO!!!, protesta contra os "impostos pesados que absorvem todo o teu trabalho, te reduzem à miséria e matam à fome a tua mulher e os teus filhos". E pergunta: "Não tens um cacete, uma faca, um bacamarte? Já estás tão fraco que não possas com uma garrafa de gás, para te vingares de quem te rouba e te injuria?"

E numa direta alusão a Lucena, que participou da revolta de 1848-49 e agora defendia os do "partido da ordem": "Ao lampião com os que ontem diziam que devias fazer a revolução e hoje te injuriam e te ridicularizam, porque foram comprados pelo governo!..." Finaliza, conclamando à luta armada, conclamando à revolução: "É preciso um dilúvio de sangue para que desapareçam eternamente desta terra os ladrões e espaldeiradores. Une-te e serás invencível!" O terceiro, sob o título CIDADÃO GUARDAS NACIONAIS DO  RECIFE  , opõe-se ao aquartelamento determinado por Lucena, objetivando formar batalhões para sufocar a sedição: "Isto é, depois de haver roubado o pão, o bacalhau e a carne seca do povo, tira os pais de família dos bancos de trabalho, acaba a obra de destruição do povo pela miséria e pela fome!" E sugere a resistência. Pede que os cidadãos não se apresentem pois devem deixar "correr os acontecimentos". Lembra os "mártires da liberdade pernambucana", citando: Nunes Machado — Joaquim Nunes Machado, morto na revolta de 1848; Caneca — Frei Joaquim do Amor Divino, participante das revoltas de 1817 e 1824 e executado a 13 de janeiro de 1825; Roma — Padre José Inácio de Abreu Lima, executado a 29 de março de 1817; Miguelinho — Padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro, executado a 12 de junho de 1817; Teotônio — Domingos Teotônio Jorge Pessoa, executado a 10 de julho de 1818; José Peregrino — José Peregrino Xavier de Carvalho, herói paraibano, executado a 21 de agosto de 1817; Pedro Ivo — um dos líderes da Praieira (1848-49), assassinado em 1852 depois de "fugir" da fortaleza em que se encontrava preso no Rio de Janeiro. Finaliza, conclamando os pernambucanos a honrar essa "sagrada memória" e tranqüilizar "esses adoráveis manes". A repressão foi considerada pela historiografia como extremamente violenta. Podemos distinguir nela duas etapas diferentes: numa primeira, a sugestão do emprego de "meios suasórios e brandos", com a demonstração da verdade. Nesta fase, assistimos às tentativas de arregimentar a população local, nas próprias vilas atacadas, para a defesa; o

apelo aos senhores de engenho para colaborarem com o Governo arregimentando seus "moradores" e o envio de missionários capuchinhos para exortá-los a não prosseguirem no movimento. Os resultados não foram satisfatórios. Com a população das vilas não puderam contar de fato; de maneira geral, as populações apoiaram os revoltosos ou mantiveram uma neutralidade "comprometedora". Os senhores de engenho, como vimos, alegavam estar sem condições de "reunir povo"; alguns prestaram auxílio, como foi o caso do Coronel Comandante Superior da Guarda Nacional de Pau d'Alho, Luís de Albuquerque Maranhão, do Barão de Buíque, Francisco Alves Cavalcanti Camboim, do Barão de Tracunhaém, João Cavalcanti Maurício Wanderley, que acorreram com "seus moradores", mas este apoio foi, de fato, isolado, não caracterizando uma atitude generalizada dos senhores de engenho que preferiram omitir-se quando não participavam. Os padres capuchinhos, como sempre, colaboraram, realizando suas "santas missões" e indo ao encontro dos revoltosos para tentar demovê-los dos seus intentos. Entre outros, colaboraram o Frei Venâncio, que atuou na região de Itambé e cuja participação mereceu um elogio do Ministro da Justiça, no relatório de 01/05/1875, o Frei José que atuou na região do Bom Conselho e Frei Fidélis Maria Fogmano que agiu na região de Panelas. Mas também esta atuação não deu os resultados esperados, pois as participações que vinham do interior freqüentemente noticiavam que suas exortações não eram atendidas. Numa segunda etapa, passa-se ao emprego de medidas "enérgicas" com a "exemplar punição dos autores e coniventes". O Presidente da Paraíba solicita auxílio de tropas ao Presidente de Pernambuco, no que é atendido; o mesmo faz o Presidente do Rio Grande do Norte ao do Ceará. Em dezembro de 1874, chegam finalmente à Paraíba as forças enviadas pelo Governo imperial. Tratava-se de um contingente de 750 praças e 47 oficiais sob o comando do Coronel, depois General, Severiano da Fonseca que, juntamente com a força da polícia local da província, formou um efetivo de 1203 praças. A Província de Pernambuco contava apenas com uma força policial de 1400 praças, espalhados pelas várias comarcas já que a Guarda Nacional havia sido desmobilizada desde setembro do ano anterior. A ação das tropas foi de verdadeira "selvageria, aplicada cegamente contra culpados ou inocentes". José Américo de Almeida, no seu livro A Paraíba e seus Problemas, transcreve depoimento do Deputado João Florentino em 1879, onde se pode ter a idéia do tipo de repressão: "Fizeram-se prisões em massa, velhos e moços, solteiros, casados e viúvos, todos acorrentados e alguns metidos em coletes de couro, eram remetidos para a capital. Alguns desses infelizes, cruelmente comprimidos e quase

asfixiados, caíam sem sentidos pelas estradas, deitando sangue pela boca" (Almeida, J. Américo, 1923: 219). O "colete de couro", segundo consta, fora inventado pelo Capitão Longuinho, comandante de uma das colunas que seguiu para o interior, e consistia em envolver o tórax do indivíduo em couro cru, molhado, que, ao secar, comprimia o peito "a ponto de provocar vômito de sangue". "Os que sobreviveram a esse suplício, diante do qual se regalava o Capitão Longuinho, não escaparam da tuberculose ou das lesões cardíacas que, cedo ou tarde, os levariam ao túmulo" (Almeida, Horácio, 1958:145). O clamor contra a "selvageria" da repressão levou o Coronel Severiano a enviar um ofício circular aos oficiais comandantes dos destacamentos, determinando que se atenuasse o rigor das prisões e impedissem roubos e atos de violência por parte dos soldados. A esse ofício responde o Capitão Longuinho dizendo que tem usado cordas e correias de couro para prender os "criminosos e sediciosos" por não ter algemas, mas que isto "não os magoa tanto". Durante muitos anos uma modinha popular, cantada no interior nordestino falava da triste sorte dos "quebraquilos": "Sou quebra-quilos encoletado em couro Por vil desdouro me trouxe aqui; A bofetada minha face mancha À corda, à prancha me afligir senti Na De De As

cans modesta a tesoura cega... minha enxerga só me resta o pó; esposa e filhos violentam rudes sãs virtudes, seu tesouro só.

E ao quebra-quilo desonrado, louco É tudo pouco quanto a infâmia faz; Se aqui contempla da família o roubo, Ali, no dobro, o flagelam mais. Tiranos vedes que miséria tanta, Nem os quebranta? meu pungir, meus ais; Martírios, ultrajes de negror fazei-me Porém dizei-me se também sois pais" (Andrade, 1946:203).

 A "Guerra das mulheres" (1875-76) Evidentemente que há um pouco de exagero no título, ao chamarmos o movimento de "guerra das mulheres". Na verdade, os homens ali também se achavam, mas deve-se ressaltar a participação preponderante e decidida das mulheres que, pela primeira vez na história do Brasil, atuaram, coletivamente, em um movimento insurrecional. A revolta decorre da aplicação da Lei nº 2 556, de 26 de setembro de 1874, que alterou a forma do recrutamento de soldados para o Exército e Armada. Aliás, o recrutamento que sempre fora mal visto pela população, gerava conflitos sérios, e, no que tange à lei de 1874, esta provocou não reclamações ou conflitos isolados, mas um movimento coletivo que deu-se, simultaneamente, se bem que em dias e meses diferentes (entre agosto de 1875 e julho de 1876) em várias províncias do Império. Mas, para se entender melhor a Lei 2556, acreditamos ser necessária uma síntese da situação do alistamento militar nos anos anteriores. Até 1874, o recrutamento era feito por uma pessoa designada pelo Presidente da Província (conforme Decreto 73, de 06.04.1841) para recrutar "todos os homens brancos e solteiros e ainda pardos libertos de idade de 18 a 35 anos" respeitando-se as isenções da Portaria Real de 10 de julho de 1822. A população pobre era a que mais sofria os efeitos do recrutamento, pois a Lei nº 45, de 29.08.1837, permitiu que os recrutados pudessem dar substitutos ou serem dispensados mediante o pagamento de quatrocentos mil-réis, numa época em que o salário de um artesão especializado não ultrapassava os trinta mil-réis mensais. Esta forma de recrutamento permitia muitos abusos e transformou-se numa arma de perseguição política, pois afastava da região indivíduos indesejáveis aos grandes proprietários, já que estes tinham influência na indicação dos recrutadores. Transformou-se, portanto, o recrutamento em verdadeira caçada. A todo instante um elemento podia ser recrutado e preso, e, caso resistisse, ficaria, a partir de então, sujeito à severa disciplina militar que incluía castigos corporais. Era, por conseguinte, uma ameaça constante que pesava sobre os habitantes. Pelo horror que inspirava, pelos conflitos que gerou e por retirar homens válidos de pobres famílias de lavradores, esta lei ficou conhecida como "imposto de sangue". Para evitar os abusos do recrutamento constante, baixou-se o Decreto nº 1089, de 14 de dezembro de 1852, pelo qual se estabeleciam cotas anuais para cada província. Ou seja, cada uma forneceria um contingente anualmente, conforme número determinado por lei. Mas cada recruta ou voluntário que conseguisse dava ao recrutador o direito de receber 5$,

importância que foi alterada pelo Decreto 2171, de 1º de maio de 1858, para 10$ por recruta apurado e 20$ por voluntário. O recrutamento virou negócio. Apesar de tudo, os abusos e ilegalidades continuaram. Os conflitos se sucediam. Após a guerra contra o Paraguai, o assunto volta a ser discutido e, em 1874, aprovava-se nova lei, que tomou o número 2556, em que se instituíam juntas de alistamento e o sorteio. A junta era formada pelo juiz de Paz, a autoridade policial mais graduada do local e o pároco. A lei deveria, no primeiro ano de vigência, arrolar todos os solteiros e casados, que tivessem entre 19 e 30 anos de idade. O sorteio seria feito em data posterior, a ser designada. As juntas paroquiais se organizaram, expediram as proclamas convocando todos os homens válidos naquela faixa etária e começaram os trabalhos em 1875, utilizando geralmente as instalações das igrejas locais. Os boatos correram dando conta de que todos os homens dessa idade seriam efetivamente recrutados. Outros diziam que era uma nova lei de escravidão para os trabalhadores rurais. Como sempre, os políticos radicais dela se serviram para atacar o gabinete conservador do Visconde do Rio Branco, acirrando ainda mais os ânimos. Os grandes proprietários temeram perder o controle desta "arma legal" que tanto utilizavam. As mulheres temeram perder seus maridos e filhos. O ambiente já estava propício para mais uma insubordinação. Instaladas as juntas e tendo-se iniciado os trabalhos, grupos de mulheres, em sua maioria, invadem as igrejas, rasgam os editais e exemplares da lei, destroem móveis e utensílios e partem ameaçando voltar a qualquer momento. No Ceará, ocorrem distúrbios em Acarape, Limoeiro, Quixadá, Boa Viagem, Baturité e Saboeiro. No Rio Grande do Norte, conflitos em Mossoró, São José de Mipibu e Canguaretama. Na Paraíba, houve oposição nos municípios de Alagoa Grande, Alagoa Nova, Ingá, Campina Grande e Pilar. Em Alagoas, são atingidas as comarcas de Palmeira dos índios e Penedo e na Bahia, a comarca de Camamu. Mas, conforme assinala Câmara Cascudo, de todos os conflitos o que chamou mais atenção foi o que ocorreu em Mossoró. O cabeça do movimento foi uma mulher chamada Ana Floriano. Ela conseguiu reunir 300 mulheres. "O cortejo rebelde partiu da atual rua João Urbano indo até à, hoje, praça Vigário Antônio Joaquim Rodrigues. Aí foram rasgados os editais pregados na porta da igreja e despedaçados vários livros. Dessa praça, dirigiram-se as amotinadas à praça da Liberdade, passando pela, hoje, rua Trinta de Setembro. Naquele logradouro público, achava-se disposto um corpo de polícia, ali posto com o fim de dominar a sedição. Aos gritos de avança, logo ficaram confundidos, no tumulto da luta, soldados e mulheres" (Cascudo, 1955:79-80). A interferência de pessoas importantes evitou que o conflito tivesse maiores conseqüências. Mesmo assim, a lei continuou em vigor. Periodicamente, ao

se instalar a Junta de Recrutamento, em várias regiões do país, grupos se organizavam e partiam para a agressão. Nos anos finais do Império, os relatórios ainda dão notícias, se bem que esparsas, desses atentados.

AS REVOLTAS URBANAS Introdução Algumas cidades brasileiras foram, durante longo tempo, focos de movimentos sediciosos, principalmente as capitais que se encontravam mais livres do "mandonismo" dos grandes proprietários. Para esta situação vários fatores contribuíram, tais como: maior heterogeneidade da sociedade local; a situação de refúgio dos que se "libertavam" da autoridade e/ou da exploração dos coronéis; os contatos mais freqüentes com os "progressos" e as "novas idéias" que grassavam na Europa e sua posição intermediária entre a região produtora "colonial" e o grande centro consumidor europeu, sofrendo, portanto, os reflexos das crises de uma ou outra, o que geraria, como gerou, graves descontentamentos sociais. Neste capítulo, nos restringiremos apenas aos movimentos que grassaram em Salvador, capital da província da Bahia, mas o leitor deve compreender que tais movimentos fazem parte de um amplo leque de agitações sociais que abalaram várias cidades do Nordeste brasileiro, entre as quais citamos Recife, Natal, Fortaleza, Mossoró, Macau, Mucuripe, São Luís, Caxias, Alcântara, etc. Todas estas revoltas têm motivações próprias, frutos de situações específicas locais, mas, de qualquer forma, inserem-se dentro de um contexto mais amplo que é a crise regional. Expressam, em nível urbano, as contradições da estrutura econômica regional. As cenas são semelhantes. Repentinamente, por motivos aparentemente simples e variados, a população irrompe pelas ruas, depredando casas de comércio, ameaçando edifícios públicos e entrando em luta com as forças policiais. Gritam contra a "carestia", saqueiam e, muitas vezes, incendeiam os depósitos dos grandes atacadistas e monopolistas do fornecimento dos gêneros alimentícios. Ao brado de "mata marinheiro", voltam-se contra os portugueses, geralmente comerciantes, a quem acusavam de responsáveis pela situação. Em excelente trabalho publicado em 1978, Kátia Matoso estuda a cidade de Salvador, sua população e as condições de seu mercado, abastecimento, preços e salários no século XIX. Caracteriza a maioria da população da cidade como vivendo em condições precárias e ameaçada de indigência e, portanto, incapaz de constituir estoques dos gêneros de primeira necessidade — carne verde, farinha de mandioca, feijão e arroz. Por outro lado, quanto ao abastecimento, apresenta quatro pontos que dificultavam o fornecimento e encareciam os preços: o primeiro, ligado à produção das regiões próximas que não era suficiente para atender à demanda citadina, obrigandoa a importar de regiões distantes a farinha (do Paraná e Rio

Grande do Norte), arroz (do Maranhão), feijão (de Portugal e de regiões brasileiras) e carne (de regiões situadas a centenas de quilômetros); o segundo, ligado à precariedade dos meios de transporte e das vias de comunicação; o terceiro, à ambivalência da administração que ora liberava os preços, ora taxava-os; o quarto, ao fato de a cidade, além de ser um centro importador-exportador, ser também distribuidora de gêneros alimentícios para todo o Nordeste brasileiro, com base em uma estrutura monopolista e açambarcadora. "Com efeito, bastava que uma necessidade se tornasse premente em alguma área que se achava sob o controle dos comerciantes da Bahia, para que a população sofresse na carne as conseqüências" (Matoso, 1978:258). Tomando por base o salário de um pedreiro (em torno dos 30$000 mensais na década de 60) e as variações dos preços dos três artigos básicos (farinha, feijão e carne verde), Kátia Matoso estabelece as percentagens do salário necessárias para adquiri-los. Ano

Percentagem

1845 1854 1858 1866 1873 1878 1885

41,36% 47,27% 58,47% 44,89% 35,93% 58,77% 41,10%

(Matoso, 1978: 369-371)

Não é simples coincidência que as três mais sérias revoltas em Salvador tenham ocorrido, justamente, nos anos em que estas percentagens ficaram mais elevadas: 1854, 1858, 1878, isto é, nos anos em que foi necessário utilizar uma parte maior do salário para adquirir os alimentos. Deve-se levar em conta, também, os aumentos que ocorreram em outros itens, como moradia, vestuário, etc, tornando difícil a vida da população soteropolitana. Tomando por base os preços unitários de dois produtos mais consumidos, chegamos também a conclusões semelhantes:

Ano

Farinha (1 LITRO)

Carne verde(Kg)

1845 1854 1858 1866 1873 1878 1885

$ 30,40 $ 50,71 $ 101,94 $ 71,94 $ 86,61 $ 103,38 $ 77,34

$ 217,10 $ 221,00 + $ 459,42 + $ 335,38 $ 487,71 $ 480,00 + $ 447,91

(Matoso, 1978: 369-371)

Este é o pano de fundo das revoltas que se verificaram nas cidades nordestinas, de uma maneira geral, neste período. A população, em que pese outras variáveis que entraram no acirramento dos ânimos, revoltava-se contra uma situação que considerava insustentável — a alta do custo de vida, a depreciação de suas condições de vida — mas que, além de ser um problema conjuntural, refletia as contradições estruturais daquela região. Em resumo, podemos citar os cinco grandes problemas que estão por trás das revoltas: a) queda dos preços dos artigos de exportação e perda de mercados tradicionais no exterior, gerando redução na capacidade de acumulação de capital local; b) redução das áreas destinadas à produção de gêneros alimentícios para o consumo local; c) precariedade do abastecimento dos centros urbanos; d) monopolização dos principais gêneros de consumo popular, provocando elevação artificial dos preços; e) problemas climáticos que prejudicavam a produção e o abastecimento. As revoltas, devido às situações em que ocorriam, receberam cognomes interessantes. Assim é que a de 1854 ficou conhecida como a do "pano do Teatro São João", a de 1858 como "carne sem osso, farinha sem caroço", somente a de 1878 não recebeu alcunha específica. Trataremos, a seguir, dessas três revoltas. "Pano do Teatro São João" (1854)

No dia 23 de setembro de 1854, a partir de um incidente verificado na inauguração do Teatro São João, ocorrem, pelas ruas da cidade, choques entre a população e a força pública, com muitos feridos. O quadro no qual se insere esta revolta tem dois componentes básicos. O primeiro é o alto custo de vida que alimenta um forte sentimento antilusitano, pois os portugueses

eram os "senhores" do comércio atacadista, bem como do chamado de "retalho". Desde 1848, quando foi apresentada, na Assembléia Geral do Império, proposta de nacionalização do comércio a retalho, que tal oposição aos portugueses vinha sendo sustentada por muitos jornais, contribuindo para aumentar o sentimento "antimarinheiro". O segundo componente refere-se à oposição liberal ao governo conservador de João Maurício Wanderley, presidente da província. A oposição era encabeçada pelo jornal liberal O Século, dirigido por João Barbosa de Oliveira, pai de Rui Barbosa. A imprensa local juntava os dois elementos em seus ataques. Apresentava os conservadores e os comerciantes portugueses como que mancomunados, atribuindo à situação conservadora interesses em não frear a alta dos preços (Pinho, 1937:246). Na fala apresentada à Assembléia provincial, em 1º de março de 1855, Cotegipe queixava-se da imprensa. Dizia que nos "países cultos" ela guia a opinião, mas aqui constitui-se no "pelourinho das reputações e o algoz do sacrário das famílias". E concluía: "Se houvesse um inimigo das garantias sociais, acharia por certo seus melhores cúmplices nos incansáveis apóstolos dessa licença desmoralizadora que se arreia com o manto da liberdade" (Wanderley, 1855:4). O estopim seria a pintura encomendada pelo governo para o pano de boca do Teatro. Por ordem de Wanderley, fora concluída a reforma do prédio e aberta a concorrência para a pintura do pano. Foi vitorioso o alemão Bauch que, conforme estabelecia o edital, pintou uma cena da história do Brasil. A cena era a chegada de Tomé de Souza à Bahia; nela figuravam os índios, depondo os arcos, admirados e prostrados ante o governador que empunhava a bandeira portuguesa. A oposição viu nisto mais uma prova para seus ataques e recrudesceu a campanha contra o governo e "seus aliados" portugueses. Na véspera do incidente, a 22.09.1854, Cotegipe escrevia ao Presidente do Conselho, o Marquês de Paraná: "Escrevem e proclamam que a cena é um insulto à nacionalidade, porque estão os brasileiros (tupinambás) curvados ante os portugueses; que foi muito de propósito escolhida para indicar ao povo o plano do absolutismo que o governo quer proclamar" (Pinho, 1937:273). Apesar de estar a par dos planos para promoverem uma "assuada" e depois queimarem o pano no dia da inauguração, Cotegipe não recuou. E afirmava: "tenciono pois experimentar a ousadia desses meus senhores, e depois de mostrar-lhes que não os temo, arredarei este pé de cantiga" (Pinho, 1937: 273).

Assim foi feito. Na noite de 23, o teatro achava-se lotado. Não só de povo, como também de autoridades. Nos corredores e platéia, de espaço em espaço, viam-se policiais, estrategicamente postados à espera de qualquer tumulto. Concluída a apresentação, como não fosse baixado o aludido pano, levanta-se o alferes reformado do exército, João José Alves, tio de Castro Alves, e, dirigindo-se para o camarote do presidente, grita: "Sr. Wanderley, mande vir abaixo este pano infame que queremos despedaçá-lo! Abaixo o pano infame! Fora o presidente traidor!" (Pinho, 1937:274). Forma-se o tumulto. O alferes é preso. O presidente, atingido por uma pedra que lhe feriu uma das mãos, retira-se. Quando a comitiva chega à calçada, a multidão vaia. Bradam os protestos e uma chuva de pedras cai em direção ao teatro. Várias pessoas são feridas. A polícia enfrenta a multidão. "Corre sangue." Finalmente os amotinados são contidos pela polícia, com a ajuda das tropas de linha, muito embora seu comandante, o capitão Alexandre Gomes de Argolo Ferrão, recusasse a desembainhar a espada contra o povo. Wanderley mostrara que não estava disposto a se submeter à oposição. Aplicara a força sobre o povo amotinado, mas o pano que acionara a revolta nunca mais foi utilizado. Novo pano foi encomendado e inaugurado no mesmo ano. Representava uma cena neutra: "Febo conduzindo o carro do Sol, tirado por quatro pégasos e circundado de deusas simbolizando as Horas. Era denominado Pano da Aurora" (Bocanera:58). Em relatório datado de 15 de maio de 1855, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, anunciava à Assembléia Geral que no ano anterior, ocorrera em Salvador "uma ridícula desordem motivada pela pintura do pano do teatro público". Dessa forma, omitiam-se ao país as condições da população soteropolitana que, como diz Kátia Matoso, estava à beira da indigência e vivia na dependência de uma estrutura de abastecimento exploradora e monopolista. "Carne sem osso, farinha sem caroço" (1858)

Nos dias 28 de fevereiro e 1º de março, a cidade de Salvador foi novamente palco de violentos choques entre o povo e as forças militares que ficaram conhecidos como a revolta da "carne sem osso, farinha sem caroço" ou, ironicamente, como "revolução dos chinelos". Governava a província João Luís Vieira Cansanção de Sinimbu que ocupou o cargo de 19 de agosto de 1856 a 16 de julho de 1858. O presidente, um conservador, estava sendo "asperamente combatido" pelas velhas facções políticas que não aceitavam a forma como se fazia na província a política de

conciliação, iniciada, em nível nacional, por Paraná. O apoio declarado de Sinimbu à candidatura de Nabuco de Araújo ao Senado fez com que as oposições acirrassem os ataques ao presidente. Juntamente com este problema de ordem política, acrescentavam-se a escassez e a alta dos preços da farinha de mandioca e da carne fresca que levaram a Câmara Municipal da capital a entrar em "verdadeira guerra" com o presidente. Este aparece como o defensor dos atacadistas e monopolistas dos gêneros de primeira necessidade, e aquela como defensora dos consumidores. Aos problemas políticos somava-se o da carestia e estava preparado o "palco" para a cena que se iria desenrolar (Ruy, 1953:220). Os atritos têm início com disputas para definir atribuições a que a Câmara se arvorava e o presidente negava. Com o propósito de evitar os constantes aumentos do preço da farinha, a Câmara Municipal vota, a 16 de janeiro de 1857, uma postura pela qual aquele gênero só poderia ser vendido em lugares determinados por aquele conselho. Sinimbu determina a suspensão do ato até que fosse votado pela Assembléia Provincial; como esta encerra o período de reuniões sem discutir o problema, os vereadores dirigem ao presidente ofício, datado de 17 de fevereiro, no qual dizem que estavam cansados de esperar e que iriam colocá-lo em vigor, apesar da suspensão presidencial (Ruy, 1953:311-312). O ofício historia magnificamente a situação dos gêneros de primeira necessidade em Salvador, notadamente da farinha e da carne, os principais. Acusa a existência de "monopólios calculadamente estudado" e que, no caso daqueles gêneros, era exercido por "três ou quatro indivíduos somente". Dizia que não podia e nem devia cruzar os braços "diante de uma crise como a atual, consentindo que a população desta capital continue a ser vítima do monopólio e da ambição de alguns homens que, não se contentando com razoáveis lucros, soem especular com as necessidades do povo de quem somente almejam sugar até a última substância" (Ruy, 1949:565-567). Em resposta, o presidente determina que a polícia garanta os comerciantes de farinha contra os fiscais da Câmara e ordena que a mesma revogue o edital. Com efeito, em vários pontos da cidade, funcionários municipais entravam em choque com a polícia, aumentando os ataques ao presidente Sinimbu. A Câmara retruca afirmando que uma postura só poderia ser anulada por um corpo legislativo e que "nenhuma autoridade, em face do Ato Adicional, pode revogá-la sem proposta da respectiva Câmara". Diz que a ação da polícia retrata um ato de "desobediência às leis municipais" e culpa o presidente pelos conflitos que "se hão de reproduzir" (Ruy, 1953:569570). Considerando a atitude dos vereadores como rebeldia, Sinimbu suspende-os por 160 dias e convoca os suplentes. A medida, sumamente impopular, exalta os ânimos e aumenta o ódio

contra o presidente, acusado de proteger os atacadistas. A oposição acusa-o também de ter punido os camaristas como manobra política visando a evitar que aqueles vereadores fizessem a apuração dos votos da eleição senatorial marcada para 1? de março. Os acontecimentos foram muito habilmente explorados pela oposição. Nos principais pontos da cidade, oradores incitam o povo contra o presidente. Propõem uma grande concentração para impedir a reunião dos suplentes. Sinimbu determina a prontidão das tropas e ameaça responsabilizar criminal-mente os exaltados. O clima eleitoral contribui para aumentar a tensão e criar um ambiente de luta. O estopim da revolta coletiva foi o incidente entre as internas do Recolhimento da Misericórdia e as freiras de São Vicente, encarregadas de dirigir a casa. O Recolhimento funcionava desde 1716, como legado deixado por João de Mattos Aguiar à Santa Casa de Misericórdia, com o fim de acolher e educar moças pobres. Com o tempo, a disciplina foi sendo relaxada e em meados do século XIX, a Casa já era famosa por seus escândalos. Toda Salvador sabia da intensa vida sexual que ali se travava, com as internas recebendo no próprio local os seus amantes. Para coibir tais abusos, a Santa Casa entrega a direção às freiras de São Vicente. As vicentinas encontram as maiores dificuldades para impor a ordem e então a Mesa resolve transferi-las para o Convento da Lapa. No dia da mudança, as moças recebem a direção da Misericórdia com vaias e insultos. Algumas chegam à janela pedindo socorro. A população concentrada nas imediações resolve invadir o prédio para auxiliá-las. As irmãs de caridade foram agredidas e se refugiaram nas casas vizinhas e no palácio do governo. Também foi atacada a Casa da Providência, situada na Baixa do Sapateiro, que teve sua porta arrombada a machado. Outro grupo dirigiu-se ao bairro de Nazareth onde tentou invadir o Colégio de São Vicente, dirigido pelas mesmas freiras, mas foi contido por um piquete de cavalaria. Ao mesmo tempo, populares se agrupavam no largo do Pelourinho e em São José. A multidão dirige-se à praça do palácio da presidência onde protesta contra a alta dos preços. O povo gritava em uníssono: "queremos carne sem osso e farinha sem caroço", em alusão ao problema da carne e da farinha de mandioca. Enquanto a Câmara era invadida e tinha seu sino tocado a rebate, a multidão apedrejava o palácio. Finalmente, já era noite quando uma força de linha dispersou os manifestantes. No dia seguinte, 1º de março, a praça do palácio encontrava-se ocupada por um batalhão da Guarda Nacional. Os quartéis estavam de prontidão. Mesmo assim, populares foram chegando para assistir à sessão da Câmara Municipal, marcada para as 10 horas da manhã, onde os suplentes convocados deveriam efetuar a verificação de votos para a eleição de um senador. Ao iniciar os trabalhos, a Câmara foi invadida pelo

povo que tumultuou seus trabalhos. A tropa evacuou o recinto. A multidão volta-se contra o palácio, cantando rimas espirituosas e algumas até obscenas, ridicularizando Sinimbu. A repressão que se seguiu foi violenta. Piquetes foram colocados nos pontos estratégicos. Tropas de infantaria e cavalaria fecham as saídas e invadem a praça do palácio. A população foi dispersada a golpes de espada e patas de cavalo. Não houve mortos, mas os feridos foram muitos. No dia seguinte, via-se a praça coberta por uma infinidade de chinelos; daí, por ironia, veio o nome de "revolução dos chinelos". No dia 25 de março, por ocasião das comemorações do aniversário da Constituição, tentaram alvejar o presidente com um tiro. A 16 de julho, foi designado outro dirigente para a província. Para deixar a capital, Sinimbu teve que ser escoltado por tropas do exército que o livraram das agressões físicas, mas não da chacota dos que foram assistir a sua partida, guardado como um prisioneiro. A 19 de agosto, os vereadores foram reintegrados (Ruy, 1953: 222).  A Revolta de 1878 

Outra vez, a 1º de junho de 1878, os incidentes se repetiram. Desde 1877, o Nordeste estava sendo assolado pela grande seca, uma das piores de sua história. Faltavam alimentos e os retirantes morriam de fome. Devido à escassez dos alimentos, os preços subiram vertiginosamente. Os negociantes de outras províncias, notadamente Pernambuco e Piauí, enviavam ao Recôncavo baiano emissários com o propósito de adquirir gêneros de primeira necessidade, entre os quais, a farinha de mandioca. Estes compradores dirigiam-se aos locais da produção e ofereciam preços mais altos do que os do mercado local. Atraídos pela possibilidade de lucros maiores, os grandes atacadistas soteropolitanos iniciaram uma prática semelhante. Mandavam seus agentes ao interior para a compra da farinha, estocavam-na na cidade e contratavam a venda para outras províncias, especulando com as dificuldades pela qual passavam. Em Salvador, obviamente, premidos pela especulação e estocagem, os preços deste alimento se elevaram muito acima do normal ao mesmo tempo em que praticamente desapareciam das casas comerciais. Enquanto isso, os atacadistas tinham seus depósitos repletos (Ruy, 1953:313-314). A 13 de março de 1878, preocupado com o problema, o presidente da província, Barão Homem de Melo, recomenda à Câmara Municipal providências urgentes. A 30 do mesmo mês, este órgão submetia ao presidente uma postura na qual se regulamentava a exportação da farinha, desde que atendido o consumo local. No mesmo dia, à noite, uma grande multidão se concentrou em frente ao palácio da presidência exigindo uma solução para o problema (Mello, 1878:65-67).

Paralelamente, elevam-se os preços da carne fresca e seca. Evidentemente, isto ocorre também ligado ao problema da grande seca bem como aos decorrentes da queda das exportações platinas. O presidente diligencia, no sentido de que sejam mandados a Salvador, navios transportando estes gêneros e, na ocasião, comunica à população reunida que eles já estavam a caminho.

As medidas adotadas não produziram os efeitos desejados e a escassez e a alta dos preços continuavam a afligir a população. A 1º de junho, a cidade acordou sobressaltada com os boatos que anunciavam o saque e incêndio das casas exportadoras de gêneros alimentícios. As patrulhas policiais foram reforçadas. Uma manifestação popular foi dissolvida pela cavalaria. Os populares se concentraram, posteriormente, em frente à casa do comerciante de farinha (atacadista) José Rebelo Brandão, e apedrejam-na, mas são contidos pelas autoridades. A "turba", já engrossada, segue aceleradamente pela ladeira do Taboão, aos gritos de "ao comércio, ao incêndio, à farinha!" Mais uma vez a cavalaria avança e consegue conter os insurretos, antes que realizassem seu intento (Mello, Correspondência...). A 11 de julho, o Barão Homem de Melo sancionava a lei provincial que autorizava o governo a subsidiar a farinha. Esta deveria ser vendida ao consumidor pela quantia de 80 réis o litro, enquanto seu preço "se conservasse acima do ordinário". Os anos finais do século XIX mostram um Nordeste descrente das soluções legais/oficiais. Abandonado e sofrendo, fornece o ambiente ideal para a proliferação de "santos", "beatos" e bandidos. A elite brasileira, em sua quase totalidade, assimila e divulga o problema de forma inversa. Transforma causa em efeito. Aponta, como razões do atraso e pobreza regionais, a ignorância, o fanatismo e o ócio, numa imagem que inclusive hoje muitos acatam. Afinal não podia e nem interessava dizer a verdade, pois de acusadora passaria a réu. A tragédia de Antônio Conselheiro, ao mesmo tempo que mostrava cruamente o drama nordestino, dava elementos para reforçar as falaciosas explicações da elite. A repressão tinha que ser brutal para servir de exemplo. Nada de comunidades isoladas produzindo para o autoconsumo. Os caboclos do Nordeste tinham que se proletarizar, entrando no circuito capitalista: ser mão-de-obra ocupada ou ser "exército de reserva", contribuindo de uma forma nova para a reprodução do capital.

CONCLUSÃO No conjunto, o Nordeste era, e não deixou de ser, o retrato do subdesenvolvimento. A exaustão do solo, causada pela exploração predatória; a propriedade da terra monopolizada por uma minoria e a maioria da população se sujeitando a regimes de trabalho humilhantes ou então permanecendo desempregada, miserável e faminta, dão uma triste visão do problema. A revolução não eclodiu, embora condições houvessem. As saídas que encontraram foram as migrações e a formação de comunidades milenaristas. Mas, como tantos especialistas já registraram, o termo subdesenvolvimento não deve ser utilizado unicamente para apontar os aspectos negativos de uma região. Ele deve servir para mostrar como determinada área chega a tal situação crítica dentro do capitalismo. O drama nordestino é brasileiro e também de todos os povos colonizados de forma exploratória. O capitalismo destrói a natureza, esgota os recursos, ignora os direitos humanos mais elementares, como o de prover a todos moradia, alimentação, vestuário e emprego decentes, enfim, o direito à vida, e subordina tudo ao lucro em benefício de poucos. O nosso Nordeste não se explica somente em si mesmo mas, também, no seu processo histórico, na história brasileira e ocidental. Portanto, para se entender de fato o problema nordestino, temos que conhecer a sua gênese. Esse estudo passa pela expansão e evolução da sociedade européia e, podemos dizer, ocidental que se entrelaça dialeticamente com os fatores nacionais e locais. Assim, estaremos desmitificando as teses, muitas vezes consagradas, que apontam causas absurdas, tais como clima e etnia, e traremos, para o plano real, o debate sobre o assunto. O tema ainda é atual. Ontem tivemos as insurreições, o fanatismo religioso e o banditismo rural, hoje há a criminalidade urbana, as favelas e os alagados e os menores abandonados. Ao aceitarmos passivamente explicações simplórias, estaremos sendo coniventes e permitiremos continuadamente a reprodução das desigualdades sociais. Urge desmascarar os arrazoados mentirosos e dar ao nordestino a base histórica para que se conscientize, repila os falsos discursos e atue objetivamente na solução de seus problemas. ----------************----------Revisão: Argo – www.portaldocriador.org

INDICAÇÕES PARA LEITURA  Andrade, Manuel Corrêa de - A Terra e o Homem no Nordeste. São Paulo, Brasiliense, 1973. Esta obra faz uma análise global do Nordeste a partir de seus aspectos geográficos e históricos. Expõe muito bem as formas de propriedade da terra e as relações sociais de produção que encontramos na regiaão. Eisenberg, Peter L. - Modernização sem Mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. Um dos mais importantes trabalhos sobre o Nordeste na segunda metade do séc. XIX. Analisa a crise econômica e social e a transição do trabalho escravo para o assalariado. Monteiro, Hamilton de Mattos - Crise Agrária e Luta de Classe; o Nordeste Brasileiro entre 1850 e 1889 . Brasília, Horizonte, 1980. Estudo da violência na sociedade nordestina. Análise dos movimentos sociais enquanto formas de luta de classes, a partir da crise da economia local.

Bibliografia Almeida, Horácio de. Brejo de Areia. Rio de Janeiro, MEC, 1958. Almeida, José Américo de. A Paraíba e seus Problemas. Paraíba, Imp. Oficial, 1923. Andrade, Delmiro Pereira de. Evolução Histórica da Paraíba do Norte. Rio de Janeiro, Minerva, 1946. Arquivo Nacional. Publicações Janeiro, 1937, Vol. 34.

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Bocanera, Silio. O Teatro na Bahia. Salvador, s.d. . Cascudo, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro, MEC, 1955. Furtado, Celso. Nacional, 1974.

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Jofily, Irineu Ceciliano Pereira. Notas sobre a Paraíba. Rio de Janeiro, Tip. do Jornal do Comércio, 1892. Mattoso, Kátia M. de Queirós. Bahia: a Cidade do Salvador e seu Mercado no Século XIX. São Paulo, Hucitec, 1978. Mello, Homem de. Correspondência. Arquivo Nacional, IJ1427, SPE/AN. Mello, Homem de. Fala do Presidente da Província da Bahia. 1878. Melotti, Umberto. Revolución y Sociedad  . México, FCE, 1971. Monteiro, Hamilton de M. Crise Agrária e Luta de Classes. Brasília, Horizonte, 1980. Nabuco, Joaquim. Um Estadista do Império. Rio, Nova Aguilar, 1975. Pinho, Wanderley. Cotegipe e seu tempo. São Paulo, Nacional, 1937. Ruy, Afonso. História da Câmara Municipal Salvador. Salvador, Câmara Municipal, 1953.

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Ruy, Afonso. História Política e Administrativa da Cidade do Salvador  . Salvador, Tip. Beneditina, 1949.

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