GOMES A Condição Urbana
March 10, 2017 | Author: Myllena Azevedo | Category: N/A
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O urbano tem sido objeto de interesse por parte dos geógrafos desde, pelo menos, os primeiros anos do século XX, consoante as profundas transformações, em curso, verificadas tanto no espaço urbano quanto na rede urbana. Tratava-se de registrar e interpretar aqueles impactos que o capitalismo industrial produziu nas velhas cidades européias e nas novas cidades americanas. O interesse foi crescente e marcado, como em outras áreas de interesse por parte dos geógrafos, pela adoção de muitas matrizes teórico-metodológicas que caracterizaram a geografia e as ciências sociais em geral. Uma perspectiva determinista foi incorporada aos estudos da cidade. A influência da Escola de Chicago, de Robert Park, foi, e ainda é, muito grande. Um viés calcado no positivismo lógico, com seus modelos hipotéticodedutivos, marcou os estudos geográficos sobre o urbano. A análise crítica, fundada nas seminais contribuições de Henri Lefébvre, iria ampliar o interesse dos geógrafos sobre o urbano: os trabalhos de David Harvey e Edward Soja são expressões de grande calibre dessa influência. Recentemente ainda, a partir de meados dos anos 70, os geógrafos incorporaram, em suas análises sobre o urbano, uma perspectiva que inclui as práticas socioespaciais e seus significados, envolvendo crenças, valores e intersubjetividades diversas, admitindo a coexistência de múltiplas espacialidades cons1ruídas, percebidas e vivenciadas por uma sllCÍl'dadc gue é fragmentada, estando longe de
A CONDIÇÃO URBANA
Do Autor:
Paulo Cesar da Costa Gomes
Geografia e Modernidade
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A CONDIÇAO URBANA ENSAIOS DE GEOPOlÍTICA DA CIDADE
IB
BERTRAND BRASIL
Copyright © 2001 Paulo Cesar da Costa Gomes
Capa: Rodrigo Rodrigues
SUMÁRIO
Apresentação 7
2002 Impresso no Brasil Printed in Brazil
Introdução 11
Primeira Parte CJP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FO'ITE SJ'IDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ
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Gomes, Paulo Cesar da Costa A condição urbana: ensaios de geopol ítica da cidade 1 Paul o Cesar da Costa Gomes. -Rio de Janeiro: Bcrtrand Brasil, 2002 304p.
1. Espaço urbano - Rio de Janeiro (RJ). 2. Espaço urbano- Paris (França). 3. Geopolítica. L Título.
CDD - 307.76 CDU- 316.334 56
Todos os direitos reservados pela: EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 - 1~andar- São Cristóvão 20921-380- Rio de Janeiro- RJ Tel.: (0xx21) 2585-2070- Fax: (0xx2l) 2585-2087 Não ·é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer me tos, sem a prévia autorização por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal.
I. O nomoespaço 31 Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas 40
11. O genoespaço 60 Quando a idéia da diferença funda um espaço 66
Ill. Os modelos políticos: Que lugares para a cidadania moderna? O Estado, a Nação e os Estados-nações 81
Inclui bibliografia ISBN 85-286-0956-1
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DUAS MATRIZES TERRITORIAIS: NOMOESPAÇO E GENOESPAÇO
IV. Os modelos sociológicos: Os espaços da civilização ou territórios das culturas 102 V. Os limites metodológicos dos modelos de nomoespaço e geuoespaço 113 O recurso às matrizes como modo de operação analítico 121
Segunda Parte A APLICAÇÃO DAS MATRIZES AOS CASOS
VI. Cidadania e espaço público: O que a geografia tem a dizer? 129 Um olhar geográfico sobre o debate da cidadania moderna 141 A importância da dimensão física: Os espaços públicos 159
VII. O espaço público e as manifestações do recuo da cidadania 169 A atual dinâmica do espaço público 176 A apropriação privada dos espaços comuns 176 A progressão das identidades ten-itoriais 180 O emuralhamento da vida social J82 O crescimento das ilhas utópicas 186 O recuo da cidadania 188 VIII. Rio-Paris-Rio: Ida e volta com escalas 192 A ida: Das praias aos bulcvares ou dos arrastões aos casseurs 192 As escalas ou como cada local mobiliza elementos de alcance diverso na compreensão de sua dinâmica 206 A volta: Uma territorialidade na praia 216
IX.
O futebol e sua dimensão estética: Entre a geopolítica da bola e a geopolítica dos torcedores 231 O f~tebol como metáfora de uma disputa territorial 234 A c1dade como metáfora do futebol 242
X. Viva o Quebec livre! Os paradoxos de uma democracia 252 Do tradicional ao moderno: Mudanças na escala territorial da identidade 255 O pós-moderno: Um novo contexto na Juta pela soberania? 262 Democracia e território: As lições do Canadá 265 Versões e contraversões: As diferentes leituras da diversidade socioterritorial 273 Os paradoxos de uma democracia 282
Últimas notas 287 Bibliografia citada 294
APRESENTAÇÃO
O que pode haver de comum entre ir à praia ou ao jogo de futebol, no Rio de Janeiro, as manifestações estudantis que ocorrem no Boulevard Beaumarchais, em Paris, ou a luta pela independência da Província do Quebec, no Canadá? O que poderia relacionar estes eventos com a discussão sobre a cidadania? O que estes assuntos, aparentemente tão díspares, podem conter de geográfico? Nosso grande desafio é demonstrar que estes fenômenos, habitualmente tratados por especialistas de áreas muito diversas (cientistas políticos, historiadores, antropólogos, sociólogos etc.), possuem um componente comum e essencial: uma dinâmica espacial. Mais especificamente queremos trazer à tona um elemento que nos parece estrutural nestes fenômenos: a disputa territorial. Se lograrmos êxito nesta demonstração, teremos que concordar que, daqui por diante, estes temas merecem figurar na agenda da geografia. Durante muito tempo predominou, e ainda hoje persiste, a idéia de que a geografia estaria fadada a produzir longos inventários descritivos de lugares -quando bem-feita, a obra geográfica se confundia com um exercício de erudição; quando malfeita, o resultado se avizinhava à pura banalidade. Hoje, cada vez mais conscientemente, a geografia toma para si aresponsabilidade de produzir uma verdadeira interpretação dos fenômenos, por meio de uma inovadora análise espacial. Isto
implica manter-se fiel ao compromisso de exprimir primordialmente a importância e o alcance da dimensão espacial nos fenômenos que ela estuda. Duas principais conseqüências derivam daí. Em primeiro lugar, a ordem espacial dos objetos e das práticas sociais passa a ser o elemento central desta análise, ou seja, a trama relaciona! das localizações é um dos elementoschave na compreensão dos fenômenos. Em segundo lugar, esta ordem espacial, além de ser uma das condições básicas para a existência das práticas, é também concebida, simultaneamente, como portadora de sentidos, ou seja, esta análise espacial pode produzir uma interpretação original desses fenômenos. Convém insistir no fato de que, por tratar-se de uma interpretação, alguns elementos e aspectos serão mais valorizados do que outros neste trabalho e, dessa forma, uma leitura sui generis acena para a possibilidade de um verdadeiro diálogo interdisciplinar, mantendo-se, todavia, a identidade do olhar geográfico. Assim, reafirmamos aqui a intenção de somar, e não a de substituir. Em outras palavras, os princípios de coerência e lógica na dispersão das coisas sobre o espaço podem trazer à luz um novo ângulo para a compreensão de certas dinâmicas sociais e constituem a contribuição propriamente geográfica na análise dos fenômenos que habitualmente são estudados por áreas disciplinares vizinhas. Voltando aos temas citados no início, como já o dissemos, o que há neles de constante, segundo o ponto de vista defendido aqui, é uma central valorização do papel da espacialidade no seio destes eventos e da capacidade que a análise desta dimensão pode trazer para a compreensão de certas manifestações e características destes movimentos sociais. Assim, a questão do regionalismo ou do nacionalismo do Quebec é examinada sob a ótica dos desafios e dos impasses que uma identidade territorial pode criar quando se associa a um discurso que pretende obter legitimidade a partir da idéia de democracia ou de consulta popular. O futebol é visto como uma atividade que tira sua força
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da estetização do processo de luta e de domínio territorial e, como tal, tende a se transformar em um veículo de referência para outras arenas de luta, fora do controle imposto pelas regras que o limitam dentro do campo. Igualmente, a freqüência às praias do Rio de Janeiro e os recentes movimentos dos arrastões são examinados como fenômenos territoriais, ou seja, como frutos de uma classificação das pessoas a partir do espaço que conquistam e ocupam, ou ainda, pelas referências ao espaço de onde elas procedem. Assim, é-nos permitido aproximar esta dinâmica carioca de uma outra, esta parisiense, que também classifica e distingue os sujeitos pela sua procedência e delimita práticas diferenciadas sobre um espaço de luta, como no caso dos casseurs I infiltrados nas passeatas estudantis dos bulevares da capital francesa. Finalmente, prosseguindo na apresentação do raciocínio que guia este livro, a cidadania é aqui concebida como algo que se traduz no cotidiano e nas ações mais habituais do cenário da vida pública, ou seja, onde há vida pública há discussão e conflitos, que, de uma forma ou de outra, traduzem-se em uma disputa tenitorial. Dentro desta perspectiva, cidadania e democracia não podem ser pensadas sem refletirmos sobre a noção de espaço público e sobre as dinâmicas sociais que aí se desenvolvem. Esperamos que os leitores se sintam interpelados e seduzidos a prosseguir a leitura após esta primeira e breve enunciação dos nossos propósitos. Para cada um destes exemplos, dedicamos um capítulo, em que tentamos construir um quadro de elementos que justificam a centralidade da dinâmica territorial. Escolhemos a forma de ensaio para trabalhar estes casos como uma estratégia para tornar a leitura mais agradável e dar autonomia ao leitor, que poderá optar livremente sobre a ordem ou 1 A tradução literal para esta expressão é "quebradores" e se aplica aos jovens pro~e nientes dos subúrbios parienses que promoveram um ceno número de saques às loJaS por ocasião das grandes manifestações estudantis ocorridas nos anos 90.
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escolha dos capítulos a serem lidos. Eles são, no entanto, precedidos por uma necessária discussão teórica geral em que figuram as matrize~_ epistemológicas desta reflexão e que dão o fundamental suporte metodológico e analítico ao que se segue. Esperamos também que o prazer vivido ao longo da pesquisa que nos levou a estas "pequenas descobertas" esteja fielmente retratado nesta narrativa, para poder ser compartilhado com nossos eventuais leitores.2
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Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq e, por meio de bolsas de Iniciação Ctentffica: permitiu que alunos de graduação em geogralia desenvolvessem alguns dos temas aqUJ apresentados em seus trdbalhos de monografia. O autor também estende os agradecimentos a todos os seus colegas professores do Dcpto. de Geografia da UFRJ e aos alunos da Graduação e da Pôs-Graduação em Geografia da mesma instituição, asstm como aos alunos c professores da Uni versidade de La Rochelle, pelas renovadas e instigantes di scussões realizadas durante os cursos e seminários.
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INTRODUÇÃO
Três noções básicas estruturam toda a reflexão contida neste livro: teJTitório, política e cidade. Evitaremos a tentadora veleidatl.c de buscar nestas noções um sentido único, estabelecido de uma vez por todas, de forma definitiva. O interesse que nos move aqui é muito mais o de percorrer alguns dos temerádos acessos que podem existir entre elas ou, ainda de forma mais precisa, a tentativa é a de valodzar as zonas de sombreamento que existem na superposição e na interseção destas três noções. Aliás, esta intenção já está sinteticamente contida no título escolhido. A expressão "condição urbana" era utilizada na época do Império Romano para distinguir um estatuto próprio adquirido por um ce11o adensamento populacional, dotado de formas estritamente relacionadas à organização urbana: Jari, templos, e a orientação dos arruamentos, seguindo o cardo e o decumanus. Indissociável destas formas era a estrutura de poder, e as cidades constituíam simultaneamente sua sede, sua representação e a condição para o seu exercício. A concepção romana do poder o associava necessariamente a uma extensão física, um território, sobre a qual ele se organizava e se exprimia. A herança grega da polis, simultaneamente forma física e fonna de organização social, foi, neste sentido, inteiramente reatualizada. Acrescentemos a isto o fato de que a divisão espa~ial é uma daSToiTiiãSmaiSãntigas gue cõnheéemos de classificar as coisas, não apenas por seus atributc>s ou valores singulares, mas sobretudo por sua localização.
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Sem a pretensão de estabelecer uma definição acabada, um certo número de precisões parece ser necessário no uso da idéia de território, visto o seu largo emprego na geografia. Entendemos aqui por territorializar o movimento de um agente titular no ato de presidir a lógica da distribuição de objetos sobre uma dada superfície e de, simultaneamente, controlar as dinâmicas que afetam as práticas sociais que aí terão lugar. O território é, pois, neste sentido, parte de urna extensão física do espaço, mobilizada como elemento decisivo no estabelecimento de um poder. Ele é assim uma parcela de um terreno utilizada como forma de expressão e exercício do controle sobre outrem. Por meio deste controle é possível a imposição das regras de acesso, de circulação e a normatização de usos, de atitudes e comportamentos sobre este espaço. Este controle do território é a expressão de um poder, ou seja, ele é aquilo que está em jogo em grande parte das disputas sociais, aí incluídas aquelas que disputam um direito à cidade. Finalmente, a territorialidade é vista aqui como o conjunto de estratégias, de ações, utilizadas para estabelecer este poder, mantê-lo e reforçá-lo) Por isso, ao contrário de muitos geógrafos, não acreditamos que a noção de território se confunda com qualquer dimensão emotiva ou de identidade, pois estas já seriam parte de uma estratégia de tomada de controle.4 Tampouco, assemelhamos tout court a noção de território à idéia de apropriação, pois esta última pode ser construída a partir de múltiplos veículos, imaginário, sentimentos, posse, propriedade, uso, sem que
3 Somos inteiramente tributários das reflexões sobre o tema desenvolvidas por Sack, R. The Human territoriality: lts cheory and history, Cambridge University Press, Cambridge, 1986. 4 Esta visão do território como definido pelo sentimento de identidade é uma das mais utilizadas pela geografia. Ver, por exemplo, Bailly, A. & Ferras, R. Éléments d'épistémologie de la géograpl1ie, Armand Colin, Paris, 1997; e Raffestin, C. Por uma geograjia do poder, Ed. Ática, São Paulo, 1993.
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nenhum deles signifique sempre o exercício efetivo de um controle sobre os objetos e as práticas sociais que aí ocorrem. Queremos dizer que a idéia de território traduz, ao m-esmo tempo, uma classificação que exclui e inclui; um exercício de gestão que é objeto de mecanismos de controle e de subversão; e uma qualificação do espaço que cria valores diferenciais, redefinindo uma morfologia de cunho socioespacial. Estes paresexclusão/inclusão, submissão/subversão, e valorização/desvalorização- criam tensões e resultam em lutas territoriais que almejam modificar seus limites, sua dinâmica, suas regras ou seus valores. Por isso, chamamos este fenômeno de geopolítica, ou seja, lutas que têm como objeto de disputa a busca pela afirmação de ufi.fiJÕderque étãmbérn a luta por um território.-Aesco111ãdã._dênominãção "geopolítica urbana" se fez pelõ"fato de que esta luta se constrói dentro de um quadro restrito, ou melhor, a partir de uma certa estrutura que associa pessoas a uma forma fís ica específica, a cidade. Estas pessoas, movidas por diferentes anseios e expectativas, estão reunidas sobre este terreno comum da cidade e aí desenvolvem relações orientadas e organizadas tenitorialmente. Como nos ensina Arendt, "a política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças".s A cidade exprime com eloqüência, em sua forma física e em sua dinâmica, urna das modalidades fundamentais de "organização" destas diferenças; poderíamos mesmo dizer que esta é uma de suas condições fundadoras. Voltaremos à questão da definição de cidade; antes, entretanto, vejamos rapidamente dois exemplos. Recentemente, em um documentário televisivo sobre os problemas dos direitos civis dos negros nos EUA, foram mostradas cenas e entrevistas que faziam alusão à violência que s Arendt, Hannah. O que é política?, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998, p. 21.
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caracterizou as lutas raciais ocorridas na cidade de Chicago no final dos anos 50. O discurso dessa apresentação fazia apelo a expressões diretamente inspiradas na imagem da guerra. Assim, palavras como invasão, ocupação, terra de ninguém, conquistas, avanços, zona limítrofe etc . foram utilizadas como material narrativo adequado para caracterizar esse movimento. O objeto central da discussão eram as lutas pelos direitos dos negros norte-americanos na cidade de Chicago, mas a forma da apresentação, ao valorizar a idéia de uma guerra, chamava indiretamente a atenção para um dos elementos estruturantes do evento: a disputa territorial. Havia estratégias espaciais de lado a lado: das organizações negras, cotizando-se para adquirir casas em bairros brancos; dos brancos, organizando barreiras físicas legais e manifestações para impedir o livre acesso dos negros a determinadas áreas. O problema dos negros na cidade de Chicago era em grande parte o do confinamento espacial no gueto, no qual eles deveriam permanecer marginalizados do resto da cidade, assim como o eram da ordem social hegemônica. Na evolução dos acontecimentos, o conhecido gueto negro extrapolou seus lirrútes, conquistou direito à cidade, e uma nova geografia surgiu deste movimento. O poder público, representado sobretudo pela prefeitura, organizou planos de deslocamento e assentamento das populações, controlou preços, e o setor sul da cidade passou a ser objeto de grandes intervenções, após os incêndios e as depredações que lembravam claramente manobras de guerra.6 Atualmente, no Rio de Janeiro, com freqüência podemos ler nas manchetes dos jornais que a polícia "ocupou", "invadiu" ou "fez um cerco" à favela. Este vocabulário nos revela 6 O confronto étnico/territorial na cidade de Chicago já havia inspirado, no primeiro quarto do século XX, a escola de sociologia urbana, conhecida como Escola de Chitago, corrente pioneira em valorizar a idéia de disputa tetTitorial entre diferentes comunidades, muito embora a concepção de território ainda fosse largamente tributária dos modelos ecológicos e, portanto, carregada de fortes tintas naturalizantes.
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In los lx~stante interessantes. Ele nos indica que se trata de uma de guerra entre territórios, por meio da qual se afirma 'l:tramcn te que estes espaços estariam submetidos a forças ltl'p.cmônicas diferentes: de um lado, a sociedade "legalmente" 'onslituída; de outro, um território controlado "informalmenlt>" pela força ou pelo prestigio de grupos marginais. O fato rciL:vante aqui é apresentarmos esses relatos fazendo apelo a um raciocínio que se nutre da imagem de uma oposição entre dois territórios mutuamente excludentes, embora, em principio, ambos façamp;:rt~ e-~on~tituam aquilo que denominamos a cidade do Rio de Janeiro. Esta dualidade não existe apenas no discurso dos meios de comunicação; ela se manifesta como uma experiência vivida no cotidiano dos moradores e se traduz de várias formas) Uma delas se revela na expressão "favelados" e "moradores do asfalto". A pavimentação age aqui como símbolo da demarcação de territórios diferentes, e a fronteira l'ísica pretende delimitar formas diferentes de comportamentos espacial e social. Dessa maneira, a exclusão social deixa de ser apenas um estatuto abstrato; ela ganha a forma de um território. Estes dois exemplos poderiam ser multiplicados infinitamente na demonstração do ponto de vista que será aqui sustentado: a cidade é também, sem dúvida, um fenômeno de origem político-espacial, e a manifestação deste caráter se revela em sua dinâmica territorial.8 Em outros termos, a ordem espacial ·.tttt:t~ão
7 Outra
forma discursiva largamente utilizada para se re ferir às pessoas que habitam a favela é a denominação de "comunidade". De fato, esta categoria, que, à primeira vista, pode parecer simpática, pois confere um estatuto de grupo organizado e "harmônico" a estas pessoas, na verdade, age como um reforço da idéia de exclusão. na medida em que diferenc ia estas "comunidades" de uma sociedade urbana global que forma a cidade. A este respeito, ver também Souza, Marcelo L. O desafio metropolitano. Bertr.J.nd Brasil, Rio de Janeiro, 2000, p. 62. 8 Em seu ensaio sobre a cidade, Max Weber (La ville, ed. Aubier Montaignc, Paris. 1982), afirmava que o conceito de cidade é próprio da civilização ocidental, pois é fruto da simultaneidade histórica das regulamentações próprias a uma economia urbana, associadas à afirmação de uma a utoridade político-admin istrati va que reunia, em um mesmo território e sob uma mesma gestão, uma população sujeita às mesmas regras. A cidade para ele é, pois, ao mesmo tempo um fato econômico e uma relação polftica.
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da cidade, isto é, sua disposição física unida à sua dinâmica sociocomportamental, são os elementos fundadores da condição urbana. A tal ponto isto é importante, que, ao procurarmos uma definição para o fato urbano, podemos nos perder detalhando critérios que podem parecer para cada situação mais ou menos apropriados, mas não possuem a capacidade de abrangência. Os autores que se debruçaram sobre este problema tendem a matizar sempre seus critérios e a admitir, por fim, que nenhum deles é suficientemente capaz de recobrir o essencial na idéia de cidade.9 O critério demográfico está entre os mais freqüentes; entretanto, facilmente compreendemos que a simples densidade de população não pode ser responsável pelo aparecimento da cidade. Além disso, ainda que saibamos que o gradiente de densidade da ocupação populacional do espaço varie enormemente, os limites que estabelecem os umbrais do fenômeno urbano são obrigatoriamente arbitrários. lO Em uma publicação multidisciplinar que pretende fazer um balanço dos estudos sobre a cidade e o urbano, o artigo referente à contribuição dos geógrafos demonstra a perenidade
O papel precursor desta obra já foi, aliás, reconhecido por inúmeros comcntadores que se debruçaram sobre o mesmo tema. Ver, por exemplo, Cardoso, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1975, e McCrone, D. & E lliot, B. The Cily: Patterns ofdomiJtaliOil and conflicr. The McMillan Press, Londres, 1982. Para mais detalhes sobre as relações entre cidade e política no pensamento weberiano, consul tar Bruhns, H. "La ville bourgeoise ct l'émergence du capitalisme moderne" in Lepetit, B e Topalov (di r.), La vi/le des sciences sociafes, Belin, Paris. 2001, pp. 47-78. 9 Esta constatação é quase uma regra para todos aqueles autores que se confrontaram com o problema da generalização do fenômeno urbano, seja em sua extensão espacial, seja na história ou em ambas as dimensões, como, por exemplo, Bairoeh, Paul. De Jéricho à Mexico. Vifles er économie dans l'histoire, Gallimard, Paris, 1985; Beaujeu Garnicr, J. Géographie urbaine, Armand Colin, Paris, 1980; Mumford, Lewis The Ciry in llisrory, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961; Bnwdcl, Fernand. Civilisarion matérielfe. économie et capiralisme, XV•-XVIII• siecle (capítulo "Les Villes"), Armand Colin, Paris, 1967; Duby. Gcorges, (dir.) Hi.stoire de la France urbaine, Seuil, Paris, 1985; Roncayolo Mareei. La vii/e et ses terriroires, Gallimard, Paris, 1990, entre outros. lll Ver a este respeito a idéia de contimmm exposta em Catter, Harold. Study oj urban gmgmphy. Arnold, Londres, 1973.
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dl! uma tripla orientação que marca este campo da pesquisa na grografia francesa.Jl Em primeiro plano, os trabalhos sobre a ridade foram concebidos como a descrição da morfologia de ruas e atividades, e esta orientação esteve sempre presente, seja nas grandes monografias urbanas, seja nos estudos mais sistemáticos que tendiam a concluir por uma tipologia da forma urbana. A segunda grande tendência é aquela que parte de um sistema de aglomerações, ou seja, concebe o fato urbano como um conjunto de cidades, e estas são vistas como elementos de um território. Este segundo tipo de abordagem teve como grande marco inicial o trabalho de Christaller sobre as localidades centrais. Atualmente, ainda que os modelos sejam outros, como no caso de Pumain, que busca inspiração na teoria da auto-organização, continua-se a se procurar explicar e mensurar a geometria do processo de urbanização e suas principais inflexões, sendo a cidade tomada como unidade dentro de um processo mais geral, que é o verdadeiro objeto destas pesquisas.12 Finalmente, uma terceira grande linha de orientação das pesquisas foi aquela de analizar a organização interna das cidades. Este tipo de abordagem tem raízes antigas na geografia e sofreu fortes influências, primeiro, do modelo funcionalista e, em seguida, da escola de Chicago e das correntes da economia espacial de cunho neoclássico. Mais tarde, estes estudos agregaram também u ma preocupação marxista e desenvolveram a idéia de produção do espaço e de divisão territorial do trabalho urbano. Os fenômenos investigados, no entanto, têm uma certa recorrência; dizem respeito à segrega-
t1 Lussault, Michel. « La ville des géographes » in Paquot, T. & Lussault M. BodyGendrot (dir.) La vil/e et l'urbainl'état des savoirs, La Découverte, Paris, 2000, pp. 21-35. 12 A adoção de um modelo fundado na teoria da auto-organização é apresentada e justificada pela própria Pumain como estudo da interdependência entre as cidades, ~m um breve artigo, "Le devenir des villt!S el la mod~lisation" Íl! Michaud, Yves (dtr.) L'Université de ww;les savoirs. qu'est-ce que lasociété, Odile Jacob , Paris, 2000, pp.
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ção espacial, à funcionalidade ou à qualificação das diferentes pattes da cidade, e o que se procura fundamentalmente é interpretar o processo de organização e diferenciação do espaço no interior da cidade de forma mais ou menos classificatória.l3 Este quadro esboçado para a geografia urbana francesa bem poderia ser aplicado ao Brasil, e, tanto em um caso como no outro, só muito recentemente a geografia vem se mostrando mais sensível nestes estudos urbanos às representações institucionais no espaço aos verdadeiros sistemas de valores e quadros de referência que se exprimem por meio de imaginários complexos e diferenciados que têm uma importância fundamental na definição da vivência urbana e de sua dimensão espacial. O que se pode concluir desta breve descrição é que só muito recentemente a tentação de tomar a morfologia como uma referência objetiva e a finalidade classificatória têm sido abandonadas pelos geógrafos.l4 As formas urbanas ganham assim outras dimensões, já não sendo associadas de maneira unívoca a uma atividade ou função. O comportamento, dinâmico e mutável, dos atores sociais é considerado de forma relevante, e surge tod~ ga~a de problemas e de ~~qualifica ções do espaço, estranhas ao modelo das tip?logias tradicionais. Este tipo de abordagem obriga também os geógrafos a uma colaboração mais estreita com profissionais de outras disciplinas que também vêm estudando o fenômeno urbano: arquitetos, sociólogos, antroprólogos e historiadores.
Uma exceção dentro deste quadro foi o hvm de Clava!, Paul. La logique des villes, Litec, Paris, 1982, em que a cidade é concebida como o lugar de maximização das interações sociais. 14 Uma contribuição decisiva neste sentido tem sido dada nos últimos anos pela assim chamada "nova geografia cultural", e dois exemplos significativos destas novas orientações dos trabalhos sobre o urbano são Cosgrove, D. Tlle pal/adian /andscape: 13
Environmentaltransformations and its cultural representatiollS and renais~·ance ltaly, Leiccster University Press, Leicester, 1992, e Duncan, J. "The city as a text: The poli te of Jandscape interpretation", in The Kandian Kingdom, Cambridge Uoiversity Press, Cambridgc, 1990.
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A ét: sociologique, Gallimard, Paris, I 967.
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dio; a significação desse espaço, seu comportamento, suas estratégias e seus interesses nele é que são fundamentalmente diferentes nas duas situações. Cidadão e membro de uma "tribo" convivem na mesma pessoa sem que haja necessariamente distúrbios de personalidade. A mesma praça que de dia é um território de descanso e amenidade do espetáculo da vida pública pode, à noite, transformar-se em terreno de urna gangue em luta contra a polícia.t64 Percebemos a distinção dos comportamentos mas ainda assim esses comportamentos díspares podem se abrigar em uma mesma pessoa ou em um mesmo grupo. Da mesma forma, pode não haver diferença dos objetos espaciais, mas há a praça pública e a praça de guerra. As d iferenças estão na significação. Seria mais fácil se uma mudança de comportamento estivesse sempre associada a uma forma, e justamente por ser mais fácil é que alguns de nós insistem em criar morfologias explicativas. Fazemos nossas as palavras de Geertz: Acreditando, como Max Weber, que o homem é um an imal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua aná lise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significados.J65
Poderíamos substituir a palavra cultura pela palavra espaço, e a ciênc ia interpretativa em pauta seria então a geografia. Acreditamos, pois, que nossas matrizes podem interpretar certos comportamentos territoriais, tanto o do cidadão quanto o do membro tribal, sem que precisemos, para isso, considerar que se tratam de duas pessoas distintas. A distinção é, antes de 164 Veja esse respeito também a descrição da complexa dinâmica social de urn j'oirail (praça do mercado} feita por Corbin, A. Le vil/age des cannibales, Champs· Flammarion, Paris, 1996. t65 Geertz, C. A interpretação das culturas, Zahar Eds ., Rio de Janeiro, 1973, p. 15.
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mais nada, do comportamento territorial e de sua significação. A separação é de ordem metodológica e não precisa necessariamente se impor ao real como dado concreto independente. A "cidade grande", ou a metrópole, é o palco de todas essas "esquizofrenias".166 Abriga os mais variados comportamentos e permite a mudança de papel e a alternância de estatuto pessoal. Os comportamentos são relacionais nas imprevisíveis trocas diárias que o cotidiano metropolitano nos impõe. A cidade dos indivíduos de interesses racionais e lógicos, do consumo e da produção em massa, superpõe-se à cidade dos grupos de afinidade, das tribos. Ela é o espaço do discurso geral e inteligível, o espaço das trocas, o espaço político por excelência, mas não é só isso. Ela é a o espaço das compartimentações, das pequenas comunidades, das lutas por um território de reconhecimento e da heterogeneidade de valores. Nesse sentido, sua constituição é sempre dinâmica, e os significados das marcas espaciais não são jamais possíveis de ser aprisionados dentro de um único significado. A cidade "é uma máquina de transformar matéria em símbolos".J67 A idéia de uma "floresta de signos" também já foi bastante utilizada para ~ falar da cidade, mas continua a ser boa no sentido de que indica ........ _
uma multiplicidade semiológica, universo do caos e da ordem, da transformação infinita, da polifonia e da variedade de interpretações. O espaço é assim uma construção social, mas nem por isso pode ser objeto de uma interpretação tirânica e fixista, dado o seu caráter mutável e transformador. Essa demonstração é justamente um dos nossos maiores interesses neste trabalho.
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No sentido durkheimniano, grande parte das territorialidades ilegais poderia ser vista como manifestações normais, uma vez que fazem parte de todas as sociedades que estabelecem um controle normativo do espaço, e a transgressão é, nesse sentido, apenas o outro lado da moeda. No entanto, segundo uma interpretação mais precisa e análoga àquela utilizada para classificar as formas de suicídio, elas seriam "anômicas" (patológicas), na medida em que não anunciam a passagem a um regime social ou econômico fundamentalmente diferente; são a prova de uma desorganização da sociedade moderna. Além disso, segundo Durkheim, o princípio de justiça é essencial e indispensável à sociedade moderna, e toda estabilidade social (saúde) depende do respeito da idéia de justiça. Durkheím, E. Le suicide, PUF, Paris, 1960. Nesse ponto é interessante contrapor a interpretação da anomia trazida por J. Duvignaud, para quem esses comportamentos desviantes anunciam sempre a orientação das mudanças sociais, e, assim, essas manifestações territoriais podem ser vistas como demandas de integração que ocorrem pela não-assistência das necessidades de um grupo em relação às possibilidades que a sociedade oferece de satisfazê-las. Duvignaud, J. lntroduction à la sociologie, Gallimard, Paris, 1966. 167 Duvignaud, Jean. Lieux et nonlieux, Ed. Galilée, Paris, 1977, p. 14. 166
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SEGUNDA PARTE A aplicação das matrizes aos casos
VI -Cidadania e espaço público: O que a geografia tem a dizer?
"Assim, segundo a concepção da Antigüidade, o status do indivíduo é tão exclusivamente dependente do espaço no qual ele se move de cada vez, que o mesmo homem, como filho crescido de um pai romano, era subordinado ao seu próprio pai... na condição de cidadão poderia cair no caso de dar-lhe ordens como senhor." Hannah Arendt
Definitivamente, a cidadania está na moda. Em diferentes terrenos da vida social, assim como em diversos domínios científicos, esta noção aparece, muitas vezes, justaposta a outras (cidadania e cultura, cidadania e história, cidade e cidadania etc.) e, por meio dessa colagem, os sentidos de justiça, de eqüidade, solidariedade, ética ou direitos civis são sugeridos. Cidadania é, portanto, hoje simultaneamente uma idéia muito valorizada, mas, ao mesmo tempo, imprecisa em suas significações ou contornos. Uma das questões que se colocam imediatamente é, pois, a de saber qual poderia ser a contribuição da geografia nessa discussão. Para isso, parece ser necessário, de imediato, renunciar à sedução do simples efeito de moda, que, na maior parte das vezes, esconde atrás desse novo rótulo de cidadania velhos argumentos e conhecidos pontos de vista que procuram ares de renovação, fazendo apelo à simples substituição da denominação. Para nós, aqui o problema maior é o de primeiramente nos
interrogarmos sobre a possível relação existente entre a condição cidadã e a configuração espacial. Em seguida, é necessário analisar em que medida essa relação pode contribuir para trazer alguma perspectiva nova na investigação dessa multifacetada dinâmica. Atrás da aparente simplicidade de tal problemática, escondem-se duas legítimas preocupações de operacionalização bastante complexa. A primeira é a de construir um objeto teórico, delimitando com precisão seus contornos, de maneira a se prevenir contra o uso indiscriminado de um conceito em voga que todavia pode se mostrar pouco profundo, devido à ausência de uma reflexão que o estruture. A segunda preocupação diz respeito à contribuição possível de uma reflexão geográfica sobre esse problema. Esta última se justifica essencialmente pelo fato de que acreditamos poder demonstrar que no próprio conceito de cidadão existe uma matriz territorial, isto é, a idéia de cidadania possui em sua base um componente espacial. É fundamentalmente em torno dessa demonstração que iremos desenvolver nossos esforços neste capítulo. Antes de mais nada, devemos convir que se hoje essa nova forma de se referir à cidadania corresponde simplesmente a uma maneira imprecisa de caracterizar uma preocupação ética e de justiça social, difusamente contida nessa expressão, o mesmo não ocorreu em outros períodos históricos e em outros contextos sociais. Podemos inclusive observar de forma bastante clara que, em outros momentos de valorização dessa noção, ela foi o veículo de transformações bastante específicas. No mundo grego, onde a expressão tem sua origem, cidadania era uma forma de relação social, mas não apenas isso. Ela significou também uma nova forma de arranjo espacial dessas relações, e isso poucas vezes nos é dito. O poder cidadão surgiu da confrontação dos habitantes, concentrados em uma certa área, no caso a cidade de Atenas, contra o poder de uma oligarquia rural que controlava o poder político e a produção da riqueza dessa sociedade. Essa oligarquia, como tantas 130
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outras da Antigüidade, até então se reproduzia segundo as regras da filiação e da limitação ao acesso a um grande número de lugares (nos dois sentidos do termo, isto é, como hierarquia social e como lugar físico). A valorização da cidadania na Grécia era, portanto, a luta pela reorganização do poder travada contra os genos e as fatrias e suas formas de solidariedade, baseadas em laços de consangüineidade. Esse processo resultou também na adoção de uma nova forma de legitimidade para o exercício do poder, não mais submisso às hierarquias da tradição, mas a partir de então estabelecido sob critérios de justiça, baseados numa argumentação racional-lógica, segundo o princípio da nãocontradição. O novo valor que se impunha era, pois, o de atingir uma posição de completa isonomia (posição de igualdades social e espacial, segundo, por exemplo, o modelo da cidade ideal platônica).168 Toda essa transformação denominada como o "milagre grego" é bastante conhecida, e uma farta e erudita bibliografia sobre o terna pode ser facilmente consultada. O que propriamente nos interessa aqui não é voltar às descrições desse momento, nem explorá-lo em seus múltiplos aspectos, mas sim mostrar que na raiz dessas transformações havia um importantíssimo componente espacial. Mais do que isso, acreditamos que o fenômeno espacial é co-fundador do fenômeno político, o que aliás transparece em uma série de textos fundadores sobre o universo do mundo grego. Em sua obra clássica sobre a cidade antiga, Fustel de Coulanges afirma a existência de uma continuidade entre o clã, o genos, ajatria, a tribo e o demos, ou seja, entre o núcleo familiar, consangüíneo, grupo unido pela imagem dos ancestrais comuns e a assembléia dos cidadãos; haveria uma continuidade e uma evolução em que um grau de complexidade e desenvolvimento crescente se pôs em marcha.l69 Dessa forma, Les Lois", in CEuvres completes, Gallimard, Paris, 1985. Fustel de Coulanges & Numa Denis. La Cité antique, ( 1864], Albatros, Paris, 1982.
168 Platão," 169
sua tendência é ver e sublinhar, no comportamento dos cidadãos do século V a.C., os reflexos da antiga comunidade familiar. A cidadania seria assim uma conquista, um desenvolvimento natural na evolução do espírito humano em seu infinito progresso. Segundo alguns comentadores, essa continuidade foi a forma de valorizar a diferença e evolução da democracia moderna, fundada em instituições impessoais e não comprometida com os interesses privados, em relação com a democracia do mundo antigo, ainda fortemente influenciada pelos laços sangüíneos e comunitários, pois derivada diretamente da estrutura da família. Em outra obra não menos clássica sobre a cidade grega, André Glotz não esconde desde o início sua discordância com desse ponto de vista. nO Para ele, ao contrário de uma continuidade, foi rompendo os laços da solidariedade familiar que a democracia grega pôde surgir e se desenvolver. A passagem do poder do genos ao demos significou uma ruptura pela qual toda a estrutura social e política se viu completamente redefinida. Seu livro é, em grande parte, dedicado à descrição dessas mudanças em diversos campos da vida social nas c.idades gregas. Ainda segundo Glotz, a principal causa da decadência do mundo helenístico se deveu à fragmentação espacial em unidades políticas autônomas e à incapacidade das cidades-Estado em firmarem acordos perenes. Assim, a fragmentação do solo resultou em um isolamento municipal "oposto à formação de um grande Estado helenístico". Para Claude Mossé, grande helenista contemporâneo, a interpretação de Glotz está impregnada do espírito dominante do momento em que ele escreveu sua obra.l71 De fato, desde os anos revolucionários, predomina na França uma leitura que se alimenta da oposição entre atenienses e espartanos, pretendendo demonstrar a superioridade política dos primeiros e a inca170 Glotz, 171
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André: La cité grecque, Albin Michel, Paris, [ 1928), 1988. Mossé, Claudc. Histoire d'une démocratie: Athenes, Seuil, Paris, 1971.
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pacidade de se produzir uma paz duradoura entre regimes tão díspares e antagônicos, a aristocracia e a democracia. 172 Da mesma forma, a concepção de Glotz do genos como unidade harmônica, comunitária, coletivista e solidária, explicar-se-ia muito mais por uma perspectiva ideológica do que propriamente pelas provas documentais, que, aliás, segundo Mossé, contestariam essa concepção. Ele concorda, no entanto, que houve uma ruptura fundamental entre o sistema gentílico e a democracia, e corrobora para demonstrar que esse momento ocorreu justamente a partir do governo do tirano Clístenes e de suas reformas, no que é acompanhado por outros especialistas. 173 Dois fatos interessantes devem ser assinalados nesses comentários. Primeiramente, sabemos que as reformas de Clístenes, quase consensualmente concebidas como o momento fundador da democracia grega, consistiram essencialmente na substituição da representação politica baseada nas tribos gentílicas por uma representação de base espacial, ou seja, estabelecida por uma divisão territorial, e não mais por uma divisão que respeitava as fronteiras sangüíneas e de afinidades definidas pelos genos .174 Importa, pois, perceber aqui a relevância fundadora dessa divisão territorial, vista como um momento original de um fato político, no caso um dos fundamentos maiores da democracia. Importa também assinalar que a partir desse momento original surge uma nova categoria ou estatuto do espaço, o espaço público, lugar dessa nova ordem social. Assim, não parece exagerado afirmar que foi a partir da disposição de uma nova ordem espacial que se fundou esse momento político.
m Essa oposição foi também muitas vezes utilizada na demarcação entre a cultura francesa e algumas outras culturas européias, sobretudo a alemã. . .. 173 Por exemplo, Vernant, Jean-Pierre. Mythe et pe11Sée cllez les Grecs, Ltbrame François Maspero, Paris, 1965. . . 174 Lcveque, Pierre & Vidai-Naquet, Pierre. Clisthene, l'athénien, Annales L1ttératres de J'Université de Besançon, Lcs Belles Lettres, Paris, 1964.
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De forma análoga, a decadência e a perda de poder das cidades gregas, assim como a fragilidade ulterior das instituições democráticas nessas mesmas cidades, foram vistas também como um produto da fragmentação espacial. Segundo Glotz, a democracia no mundo grego manteve sempre um caráter local, e a representação política emforí mais largos nunca foi verdadeiramente experimentada com êxito.l76 Assim, parece que podemos afirmar sem medo que, a despeito do pouco relevo explícito da questão territorial no discurso de alguns especialistas sobre a questão da cidadania, o território, sua dinâmica, sua configuração, sua constituição e natureza são assinalados como elementos fundamentais na redefinição das relações políticas. A democracia começa quando urna divisão territorial das tribos é adotada, segundo a maior parte dos historiadores, e termina ou se enfraquece, segundo alguns, pela excessiva fragmentação também territorial. A dinâmica territorial está assim associada de forma necessária ao fato político da democracia sob todos os seus ângulos. Dessa forma, a democracia e a cidadania surgem a partir de uma reorganização do território. O ancestral comum deixa de ser o elemento-chave da solidariedade comunitária, e esse laço agora é exercido pela delimitação de um território, um limite físico de inclusão, e conseqüentemente pela delimitação de outros territórios de exclusão. Isso demonstra que ser cidadão é, em certa medida, uma localização na teia das relações sociais e simultaneamente uma localização espacial. Nada
mais significativo do que o fato de polis ser não só o nome dessa estrutura espacial, "a cidade", mas também ao mesmo tempo, um feixe de relações sociais formais que originou a palavra "política". Resumidamente, ser cidadão é pertencer a uma determinada porção territorial, ou seja, esta é sem dúvida uma classificação espacial. Corrobora com essa interpretação a etimologia da palavra cidadão, que tem origem no fato de habitar na cidade. Não uma cidade qualquer, mas uma cidade que se define como uma associação de pessoas unidas por laços formais e hierárquicos; uma cidade que dispõe de lugares próprios a essa nova atividade e natureza do homem grego, espaços públicos; uma atividade e natureza que não advêm simplesmente do fato de habitar juntos, pois nem todos os moradores são originariamente cidadãos, o que nos dá uma medida da diferenciação espacial interna à própria cidade. As cidades de cidadãos exibem representações espaciais do exercício dessa cidadania, definindo ao mesmo tempo os espaços de exclusão, assim o foi desde a Grécia Clássica até a moderna aglomeração urbana, que exprime com complexidade toda uma rede espacial de pertencimento diferencial. Em uma das mais difundidas e respeitadas obras de síntese histórica, lê-se no início do capítulo sobre a cidade grega: "A cidade é, necessariamente, um Estado de pequenas dimensões. De resto, o território desempenha papel insignificante em sua definição. O essencial são os cidadãos, o povo, o demos."l77 (0 grifo é nosso.) O interesse central de nosso trabalho é demonstrar exatamente o grave equívoco dessa afirmativa, que, infelizmente, ainda resiste em vários domínios das ciências sociais. Relações políticas e território são duas dimensões interatuantes e fundadoras na constituição e no exercício do poder. As denominações "cidade" e "Estado" possuem, amalgamadas a elas, uma imagem física e territorial, podendo tanto servir para indi-
Arendt, H., op. dt., p. 50. 176 Glotz, A., op. cit.
m Aymard, André. "O Oriente e a Grécia Antiga", in História geral das rivilizaçiit:s, Crouzet, M. (org.), vol. I, Bertraud Brasil, Rio de Janeiro, 1990.
Decisivo dessa liberd ade política era o fato de ser ela vinculad[a espacialmente. Quem deixava sua polis ou era dela degredad perdia não apenas sua terra natal ou pátria, mas também o único espaço no qual poderia ser livre. Perdia a companhia daqueles que eram seus iguais.t75
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car determinados tipos de relações políticas quanto servir como referência a certo tipo de fenômeno espacial. Não se trata aqui, todavia, apenas da idéia simplista de uma coalescência perfeita entre uma dada organização política e sua expressão física o que pretendemos desenvolver. De fato, nesta relação entre poder e espaço há dinâmicas complexas que exigem uma reflexão mais acurada dos fenômenos normalmente vistos sob ângulos excludentes, ou seja, de um lado o político e, do outro, o espacial. Chegamos aqui ao ponto talvez mais importante desta apresentação. Em que medida a cidadania pode ser um objeto de pesquisas geográficas? Que contribuições efetivas a reflexão geográfica poderia trazer a este importante tema? Comecemos pela noção de território e seus atributos. Essa noção é denotativa de uma delimitação espacial, e, quando estabelecemos limites, estamos de fato criando uma separação e uma classificação das coisas que têm como parâmetro fundamental sua distribuição no espaço. Isso corresponde a dizer que o território é um conceito que atua como uma das chaves de acesso à interpretação de práticas sociais circunscritas a uma dada porção do espaço. O território é o limite dessas práticas, o terreno onde elas se concretizam e, muitas vezes, a condição para que elas existam. De fato, a territorialidade humana tem muito pouco em comum com aquela vivida pelo mundo animal. É possível afirmar que os três principais fatores da territorialidade humana são a classificação das coisas e das relações por área, o controle de uma determinada porção do espaço e a comunicação da efetividade desse poder.l78 A expressão da estratégia utilizada para o aparecimento de uma territorialidade em grupos humanos é, portanto, fruto de uma dinâmica social, revelada por um certo código de condutas que poderíamos chamar de cultural e 178 Sack, Robert. The lzuman territoriality: lt:s theory and history, Cambridge University Press, Cambridge, 1986.
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o acesso ao controle muito mais sutil do que simplesmente aquele ditado pelo uso da força ou da intimidação direta. Tudo isso se relaciona a necessidades e interesses muito mais complexos do que a simples reprodução física do grupo. Portanto, a despeito de toda uma tradição geográfica de procurar no naturalismo ou na biologia a essência do modelo de regras territoriais para a sociedade, como uma dinâmica comum a todos os seres vivos e da qual aliás deriva o próprio conceito de territorialidade, desenvolvido por biólogos no final do século XIX, queremos mais uma vez afirmar a irredutível diferença e especificidade da territorialidade humana. Assim, necessidades da reprodução social querem dizer aqui imposições da dinâmica social, imposição de certas regras de acesso e controle de uma dada porção do espaço. Por outro lado, a disposição dessas práticas no território e seus limites de ação são partes constituintes de urna ordem espacial. Isso corresponde a dizer que a interpretação da vida social é em grande parte tributária da compreensão da lógica territorial sobre a qual ela está organizada. Em outras palavras, toda interpretação da vida social que prescinda da análise da lógica espacial corre o sério risco de resultar em equívocos ou julgamentos parciais.I79 De certa forma, a geografia tem, por intermédio de alguns autores, insistido nessa dimensão essencial do espaço na compreensão da vida social.lBOPorém, ainda que muitos geógrafos nos tenham precedido na afirmação da importância dessa 179 Para ser mais claro, vejamos um exemplo disso: na fdade Média européia, em algumas cidades, os judeus gozavam de inteira liberdade política e religiosa, ou ainda, esse era o estatuto legal a eles atribuído. No entanto, o tetTitório da cidade era a concessão de um senhor ou um direito comprado pela comunidade urbana, o que resultava no fato de que a definição de um espaço "comum" e o direito a circular nele se restringiam àquelas pessoas submetidas às ordens senhoriais medievais, e, dessa forma, a comunidade "livre" dos judeus, por exemplo, era, por muitas vezes, obrigada ao confinamento, urna \'ez que estava excluída dessas ordens. Assim, a decantada liberdade política e religiosa resultava, nesse caso, em prisão. tso Essa é uma tradiç-ao que pode ser localizada na geografia acadêmica desde os seus primórdios, na obra de Ratzel e de Reclus, e continuamente renovada, sobretudo pelos geógrafos que se dedicaram à geografia política.
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dimensão, no que diz respeito à cidadania e sobre suas possíveis relações com o território, muito pouco há como bibliografia, e o pioneirismo é quase absoluto.ISI Isso pode se explicar em parte pela forte associação criada entre as noções de justiça social e a de classes sociais. Nos anos 70 e 80, muito marcados pela influência do instrumental marxista, a geografia multiplicou as análises sobre a segregação espacial, movimentos sociais e desigualdades espaciais, tendo, no entanto, como referência quase exclusiva a diferenciação de classes.182 Dentro dessa perspectiva, como as classes sociais são fruto da diferente inserção dos grupos na esfera da produção, essas análises facilmente derivaram para uma leitura matizada de um certo economicismo. Mais grave ainda, elas praticamente desautorizavam quaisquer outras divisões que não aquelas que pudessem ser rebatidas na dita esfera da produção. Ainda hoje, na parca bibliografia disponível sobre cidadania, pode-se perceber o peso dessa influência na tentativa de utilizar esse mesmo marco, as classes sociais, como critério fundamental para a análise. Se aceitarmos, no entanto, que uma reflexão de identidade geográfica é aquela que procura discutir uma certa "lógica" na ocupação do espaço, ou seja, em outras palavras, que a análise geográfica tem um compromisso maior com a ordem espacial das coisas, compreenderemos toda importância de um tratamento geográfico da questão da cidadania. A geografia pode enriquecer o debate que comumente trata a cidadania como uma referência direta ao Estado nacional. Dispomos dos instrumentos para estabelecer a diferenciação existente na vivência da identidade territorial, para compreender também, portanto, através da dinâmica territorial na sociedade, os diferen181 Mais uma vez, cabe ressaltar a iniciativa pioneira de Milton Santos ao escrever o livro O espaço do cidadão, em 1987, que, embora conduza sua análise em outra direção, é sem dúvida um marco no tratamento desse tema na geografia. 182 Um exemplo, entre outros, é o de Reynaud, Alain. Société, espace etjuscice, PUF, Paris, 1981, p. li. Segundo Reynaud, no estudo das relações entre espaço, sociedade c justiça social, "um primeiro conceito se impõe, o de classe socioespaciaJ".
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tes graus de implicação e penetração do discurso sobre o direito e o dever social. Estamos aptos a ver no espaço os signos e a apropriação diferenciada deles no exercício e na consciência dessa cidadania. Como já foi dito anteriormente, o conceito de território é antes de mais nada uma classificação, não simplesmente uma classificação de coisas, mas de coisas dentro de u m espaço. Visto dessa forma, o território é definido pelo acesso diferencial do qual ele é o objeto, por uma certa hierarquia social da qual é a representação e finalmente por um certo exercício do poder do qual é produto e um dos principais instrumentos. A noção de território na geografia moderna fez assim emergir com força a reflexão sobre o poder referenciado ao controle e à gestão do espaço. Acreditamos assim que o poder, sua conquista, seu exercício e sua configuração estão sempre associados ou rebatidos sobre um plano espacial. Assim, pactos político-sociais constituem sempre, em qualquer nível que se considere, local, regional ou global, reestruturações no arranjo espacial daquela sociedade, e o conceito geográfico que incorpora essa reflexão é o conceito de território.183 A cidadania não é assim simplesmente uma representação dos indivíduos dentro do Estado nacional, mas, sem dúvida, um fenômeno muito mais complexo que incide no quadro da dinâmica territorial cotidiana da sociedade. Em um excelente estudo sobre as transformações da sociabilidade e da concomitante mudança das representações da idéia de nação Argentina no século XIX, Quiróz nos demonstra que: 183 Nesse sentido, a decantada crise do Estado moderno bem poderia ser vista como uma crise dos modelos espaciais de representação política, inadequação da divisão territorial ou de redefinição do quadro territorial das esferas do poder. De qualquer modo, é disso que se trata essencialmente quando se discute sobre a nova relação dos Estados dentro de novos conjuntos espaciais (União Européia, Mercosul etc.) ou de muitos aspectos da globalização e de suas repercussões sobre as estruturas estatais, ou ainda quando falamos da progressão dos modelos de representação fundados sobre a idéia com unitarista (nacionalismos, regionalismos, integrismos religiosos etc.) .
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As formas de sociabilidade contratuais foram um fator de transformação da sociedade e de suas representações( ... ). Nesse sentido, elas serviram para veicular uma nova representação da coletividade como "sociedade nacional". Efetivamente, o discurso associacionista é freqUentemente utilizado pelas elites culturais e políticas para pensar a agregação social ; a associação é pensada por elas como uma forma de pedagogia cívica pela qual o cidadão apreende a coisa pública, constitutiva da comunidade política; a prática associativa, que aliás ultrapassa o quadro das elites, inscreve-se em uma rede de relações que rompe com 0 quadro local de referência instaurando um novo espaço de relações a partir do qual é pensada a sociedade como um agregado de indivíduos racionais e a agregação social como produto de um contrato voluntário. Essas práticas declinam o pertencimento a uma nação que tende a se definir como sociedade ci viJ.184
O mais importante, entretanto, é que este estudo nos demonstra também como a transformação de práticas relacionais estava inteiramente associada às mudanças nas formas de organização do espaço urbano da cidade de Buenos Aires. O desenvolvimento de uma outra sociabilidade e de um inédito imaginário relativo à nação existe por intermédio de uma nova configuração física, nos recém-criados bulevares e praças, na distribuição de cafés, clubes, associações etc., onde se fixam os elementos que remetem à nova idéia da nação Argentina. De tal forma essas dimensões estavam associadas, que o trabalho dessa autora, que pretendia ser uma compreensão das formas históricas da sociabilidade, viu-se forçado a desenvolver uma cartografia analítica e um "geografismo da sociabilidade", que pudesse dar conta destas concomitantes transformações. Sua
conclusão é que se desenvolve uma equivalência entre cid ade c nação e que "certos aspectos da representação nacional do ser coletivo se exprimem na ocupação desse espaço".tss Assim, parece que as práticas re lacionais cotidianas têm uma relação direta com os processos políticos mais globais, de construção e vivência do político, da presença efetiva do estado e da construção da idéia de nação. Podemos então afirmar que as diferentes vivências da cidadania não são sinalizadas apenas pelo vago sentimento de nacionalidade em relação a um Estado que se mantém distante, mas também são vividas cotidianamente e referidas ao quadro territorial imediato onde deixam marcas e escrevem seus códigos territoriais (de acesso, hierarquia, valorização etc.). As discussões sobre a cidadania e a democracia não podem, portanto, ignorar mais que estas noções possuem uma dimensão espacial ontológica e fundadora. Tendo em vista essa dimensão, os fenômenos relativos a disputas socioterritoriais que ocorrem no mundo atual ganham um novo relevo, colocando em jogo um espaço que é simultaneamente condição e meio de exercício dessa cidadania.
Um olhar geográfico sobre o debate da cidadania moderna A cidadania não é uma característica universal ou permanente na história das sociedades. Cada momento a definiu de maneira diversa, e cada forma concreta se revestiu de manifestações próprias.t86 Muitos autores se dedicaram a demarcar as fronteiras que identificam a aparição desse fenômeno na mo-
Quiróz, Pilar Gonzales Berna! do de. Civilité et politique, op. cit., p. 323. Nesse sentido é muito interessante perceber como foi feita a tradução da palavra cidadão paiitantes franceses nessas áreas.
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As escalas ou como cada local mobiliza elementos de alcance diverso na compreensão de sua dinâmica Nesse tipo de problema, estamos, sem dúvida, privilegiando elementos de uma escala local. lsso, no entanto, não quer dizer que eles sejam visíveis apenas nessa escala ou que podem ser completamente inteligíveis apenas dentro desse universo de tamanho.26l De fato, nessa escala local podemos relacionar, com mais facilidade e mais elementos, a teia de sentidos das localizações. A busca de coerê ncia e ntre o s istema de arranjo dos objetos e a organização dos comportamentos sociais a ele relacionada aparece com muito maior expressão quando estamos neste patamar de observação. No entanto, o sentido dessa dialética espaço-comportamento, ainda que observada localmente, não poderá ficar aí restrito. Não é recomendável voltar ao singularismo de uma geografia que pretendia simplesmente alinhar estudos de casos únicos. A observação local não pode ficar restii ta a uma descrição das diferenças e propriedades singulares. É necessário dispor de condições para proceder a comparações e a reconstituições possíveis dos problemas, em outras escalas. Nós, geógrafos, acostumamo-nos a empregar a expressão "jogo de escalas" para exprimir o que constituiria uma certa particularidade e riqueza metodológica associada à própria natureza da geografia. O primeiro e me nor problema desse raciocínio é que isso não corresponde exatamente a uma exclusiva particularidade da geografia, pois outras disciplinas também utilizam o mesmo recurso (a história, a antropologia, a biologia etc.).262 O maior problema, todavia, constitui-se no ~6 1 Os parrtgrafos qu e seguem já foram, com algumas modificações, apresentados no trabalho "A cultura pública e o espaço: Desafios metodológicos", no li Encontro de Geografia Cultural, UERJ , ouL de 2000. 262 Veja, por exemplo, Castro, lná E. "O problema da escala", i11 Geografia: Conceilos e remas, Castro, I. e/ ali i (org.), Bertrand 13rasil, Rio de Janeiro, 1995; Boudon, P. De l'archilecwre à /'épisrémologie. La quesrion de /'échel/e, Paris, PUF, 199 1, e Revel, Jacques. (dir.). Jeux d'échel/es. IHESS, Paris. 1996.
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