Fundamentos da ética cristã

November 27, 2018 | Author: MPteologia | Category: God, Morality, Bible, Revelation, Saint
Share Embed Donate


Short Description

Download Fundamentos da ética cristã...

Description

25

Fundamentos da ética cristã

 Ele nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do  Espírito; pois a letra mata, mas o Espírito Espírito vivifica.

O reverendo Henry Maxwell, pastor da Primeira Igreja de Raymond, acabara de fazer  seu sermão naquela manhã de domingo, e o quarteto se preparava para entoar o hino final. De repente, a seqüência cuidadosamente ordenada do culto foi interrompida por  um estranho que entrou correndo pelo corredor central. Postando-se bem embaixo do  púlpito, o estranho relatou que ele, um tipógrafo que enviuvara recentemente, recentemente, vira seu emprego ser destruído pela nova tecnologia. Ele queria saber como a congregação podia falar com tanta facilidade sobre seguir Cristo diante da lamentável situação dos que eram vítimas daqu daquelas elas circunstância circunstâncias. s. Assim Assim que terminou terminou seu pronunciamen pronunciamento, to, a desamp desampara arada da figura figura desab desabou ou sobre sobre o pav pavime imento nto ao lado lado da mesa mesa da comunhã comunhão. o. Visi Visive velm lmen ente te como comovi vido do com com o fato fato,, o mini minist stro ro deu deu orde ordens ns para para que que o cida cidadã dãoo inconsciente fosse levado à casa pastoral.  Na manhã do domingo seguinte, o estranho faleceu. No sermão, o pastor Maxwell explicou à congregação congregação como as palavras que o falecido proferira no domingo anterior e a morte dele, que ocorrera em sua casa, o haviam levado a perguntar-se, como nunca fizera: "O que significa seguir a Jesus?". O pastor fez em seguida um desafio a seus ouvintes:

26

O que vou propor propor ago agora ra é algo algo que que não deveria deveria parecer parecer estranho estranho ou de modo algum algum impraticável. Todavia, tenho consciência de que assim poderá ser considerado por muitos membros da igreja. Mas, para que possamos ter um entendimento pleno do que estamos analisando, vou expor o que quero dizer de modo direto, talvez até com rudeza. Quero voluntários que se comprometam, séria e honestamente, por um ano inteiro, a não fazer  coisa alguma sem antes perguntar a si mesmos: "O que Jesus faria?". E depois de se  perguntar isso, cada um seguirá exatamente o que lhe ditar a consciência, sem levar em conta o resultado. 1

Esse incidente, que abre o romance  Em seus passos, que faria Jesus?, de Charles Sheldon, prepara o cenário para a história subseqüente de um grupo de cristãos que ousou levar a sério o discipulado cristão. Essa história cativante tornou-se a cartilha de toda uma geração acerca das implicações da vida ética cristã.  Nos seis capítulos anteriores, percorremos o caminho que nos levou da ética geral à ética especificamente cristã, entendida em suas ligações com a revelação da intenção universal de Deus para a existência humana. Neste capítulo, pretendo desenvolver com mais clareza a visão especificamente cristã da vida ética, começando por levantar mais uma pergunta fundamental: "De que maneira a vida ética deriva de sua fonte primária na revelação?". No contexto da resposta, apresentarei os temas teológicos centrais decorrentes da narrativa bíblica, que formam, moldam e impulsionam essa ética.

 A REVELAÇÃO REVELAÇÃO COMO FONTE DA ÉTICA CRISTÃ CRISTÃ Os cristãos muitas vezes são descritos como "o povo do Livro". Essa descrição é apropriada no sentido de que reconhecemos a Bíblia como a incorporação da redenção divina e por isso sempre buscamos as Escrituras a fim de obter orientações sobre o que crer e fazer. Procuramos na Bíblia informações que nos permitam andar fielmente na  presença de Deus, como seguidores de Cristo. Por isso, Stephen Fowl e L. Gregory Jones Jones lembra lembram-n m-nos os com razão razão de que o objeti objetivo vo compar compartil tilhad hadoo pelos pelos cristã cristãos os é "planejar nossa vida comum em situações em que possamos estar de acordo com as  personagens,  personagens, convicções convicções e práticas apresentadas apresentadas nas Escrituras". Escrituras".

26

O que vou propor propor ago agora ra é algo algo que que não deveria deveria parecer parecer estranho estranho ou de modo algum algum impraticável. Todavia, tenho consciência de que assim poderá ser considerado por muitos membros da igreja. Mas, para que possamos ter um entendimento pleno do que estamos analisando, vou expor o que quero dizer de modo direto, talvez até com rudeza. Quero voluntários que se comprometam, séria e honestamente, por um ano inteiro, a não fazer  coisa alguma sem antes perguntar a si mesmos: "O que Jesus faria?". E depois de se  perguntar isso, cada um seguirá exatamente o que lhe ditar a consciência, sem levar em conta o resultado. 1

Esse incidente, que abre o romance  Em seus passos, que faria Jesus?, de Charles Sheldon, prepara o cenário para a história subseqüente de um grupo de cristãos que ousou levar a sério o discipulado cristão. Essa história cativante tornou-se a cartilha de toda uma geração acerca das implicações da vida ética cristã.  Nos seis capítulos anteriores, percorremos o caminho que nos levou da ética geral à ética especificamente cristã, entendida em suas ligações com a revelação da intenção universal de Deus para a existência humana. Neste capítulo, pretendo desenvolver com mais clareza a visão especificamente cristã da vida ética, começando por levantar mais uma pergunta fundamental: "De que maneira a vida ética deriva de sua fonte primária na revelação?". No contexto da resposta, apresentarei os temas teológicos centrais decorrentes da narrativa bíblica, que formam, moldam e impulsionam essa ética.

 A REVELAÇÃO REVELAÇÃO COMO FONTE DA ÉTICA CRISTÃ CRISTÃ Os cristãos muitas vezes são descritos como "o povo do Livro". Essa descrição é apropriada no sentido de que reconhecemos a Bíblia como a incorporação da redenção divina e por isso sempre buscamos as Escrituras a fim de obter orientações sobre o que crer e fazer. Procuramos na Bíblia informações que nos permitam andar fielmente na  presença de Deus, como seguidores de Cristo. Por isso, Stephen Fowl e L. Gregory Jones Jones lembra lembram-n m-nos os com razão razão de que o objeti objetivo vo compar compartil tilhad hadoo pelos pelos cristã cristãos os é "planejar nossa vida comum em situações em que possamos estar de acordo com as  personagens,  personagens, convicções convicções e práticas apresentadas apresentadas nas Escrituras". Escrituras".

27

 No entanto, como funciona o compromisso básico de ser um povo que vive de acordo com a revelação divina na tentativa de ser também um povo ético? De que modo a revelação divina nos orienta a viver como povo de Deus? E qual o relacionamento entre as Escrituras e o Espírito na construção da ética cristã? Os eticistas cristãos divergem entre si acerca de como a revelação divina orienta o viver  ético e também discordam acerca da união entre o Espírito e a Palavra. Duas posições  básicas e, ao que parece, mutuamente excludentes encontram, muitas vezes, expressão entre pensadores cristãos. Alguns eticistas propõem uma abordagem fundamentalmente "heterônoma", que enfoca de modo exclusivo o repositório da revelação nas Escrituras, ao passo que outros sustentam o que muitas vezes é mencionado como uma espécie de entendimento "autônomo", porque exalta o cristão individual que possui a luz interior  da revelação por intermédio do Espírito Santo que nele habita.  Heteronomia: a revelação enfocada na Palavra. Muitos eticistas cristãos buscam suas orientações éticas primeiramente - quando não exclusivamente em fontes externas. Deus nos revelou como viver, argumentam eles. Nossa tarefa é ouvir o que ele disse e obedecer às suas diretrizes. Uma vez que essa visão pressupõe que o veículo da atividade reveladora de Deus - e, portanto, a fonte que determina a natureza da vida ética - é externo ao agente moral, podemos chamá-la “abordagem hererônoma” Tradicionalmente, os protestantes têm atentado para a Bíblia como a fonte suprema de orientação divina. Em seu conflito com a Igreja Católica Romana, os reformadores expuseram o princípio da  sola Scriptura. Sendo o primeiro repositório da revelação especial de Deus, argumentavam, as Escrituras são por si só o supremo tribunal de apelação não apenas em questões de crença cristã, mas também para o entendimento do viver cristão. Alinhando-se com a tradição da Reforma, John Murray enuncia de forma esclarecedora: "Na ética bíblica, preocupamo-nos com as normas, os cânones ou os  padrões de comportamento que são enunciados na Bíblia para criar, orientar e regular o  pensamento,  pensamento, a vida e o comportamento de acordo com a vontade de Deus". Mas que forma assume a revelação bíblica? E como passamos da Bíblia para as questões práticas da vida? Nesse ponto, os heteronomistas divergem entre si.

28

Uma concepção proeminente afirma que a revelação divina nos chega na forma de mandamentos ou leis. Além de tudo o que ela possa ser, sugerem seus proponentes, a Bíblia é um livro de preceitos concebidos para regulamentar a conduta humana. A vida ética, por sua vez, envolve obediência às leis divinas tais como inscritas na Bíblia. Desse entendimento das Escrituras, decorre um método ético aparentemente óbvio. A tarefa do eticista cristão é sintetizar as várias exortações reveladas na Bíblia para a ordenação das ações humanas. João Calvino talvez sugira essa abordagem nesta observação: "Será útil recolher de vários lugares nas Escrituras uma norma para a reforma da vida". Seja como for, A. A. Hodge, teólogo de Princeton do século XIX, apresenta uma interpretação semelhante quando descreve o objetivo da teologia prática como "deduzir, das doutrinas e preceitos da Bíblia, regras para a organização e administração da igreja cristã em todas as suas funções e para a orientação do cristão individual em todas as suas relações durante a vida". Muitos cristãos seguem as pegadas de Calvino e Hodge quando procuram resolver  questões éticas apelando para versículos específicos das Escrituras que eles acreditam referir-se a elas. Dessa maneira, a reflexão ética torna-se a procura de exortações ou de mandamentos bíblicos que instruam o cristão sobre como agir em cada situação. Os legalistas evangélicos - os que basicamente fundamentam a vida ética nas leis encontradas nas Escrituras - em geral procuram evitar duas eternas armadilhas. Uma delas é ver a obediência à lei divina como o método de salvação ou o meio pelo qual  podemos conseguir o favor de Deus. 13 Fugindo do erro dos fariseus dos tempos de Jesus, os evangélicos em geral apelam para a asserção bíblica segundo a qual o ser  humano não consegue cumprir a Lei, ou então para a ênfase paulina sobre a incapacidade da Lei em produzir uma conduta piedosa, em virtude do difundido poder  do pecado. Assim, para o cristão, o objetivo das injunções das Escrituras não é obter a salvação (que é o dom gracioso de Deus para os que crêem), e sim guiar-nos na busca de uma vida santa.15 Da mesma forma, a maioria dos legalistas evangélicos evita situar todas as leis bíblicas no mesmo nível. Mais especificamente, distinguem cuidadosamente as leis do AT designadas apenas para Israel das que continuam obrigatórias para o povo de Deus, ou seja, para toda a humanidade, em todos os tempos.

29

Esses eticistas muitas vzes argumentam que os aspectos nacionais e cerimoniais da Lei, dada a Israel, estão superados, ao contrário da lei moral codificada nos Dez Mandamentos. Esta continua em vigor, mesmo na era da Igreja.  Não é por acaso que o legalismo cristão continua sendo popular como método ético. Ele se apresenta como um aviso de que a Bíblia contém certas prescrições que não são opcionais para o povo de Deus. Apesar de tudo, como sistema ético, o legalismo está cheio de problemas que o enfraquecem. A abordagem "livro-da-lei" levanta a questão sobre como devemos comportar-nos diante de uma grande variedade de situações que enfrentamos hoje em dia e que não são contempladas na Bíblia. Por isso, o método legalista oferece-nos apenas uma ética aparentemente truncada, que nada diz sobre muitas das realidades sociais da vida contemporânea. A abordagem livro-da-lei também levanta a questão da aplicabilidade de inúmeras injunções das Escrituras para a vida presente. Quase todos os estudiosos da Bíblia concordam que muitos mandamentos inseridos nas Escrituras não são universais ou não são universalmente obrigatórios. Conseqüentemente, negam que simplesmente  possamos retirar qualquer injunção bíblica de seu contexto histórico e aplicá-la aos dias de hoje. No mínimo, é preciso tentar discernir preceitos designados especificamente  para os povos antigos dos que são aplicáveis a todas as épocas. Sempre que o cristão come carne de porco (Lv 11.7,8), deixa de apedrejar  transgressores sexuais (Dt 22.13-24) ou permite que as mulheres orem sem véu (ICo 11.5,13), está dando um testemunho silencioso da inadequação da ética do livro-da-lei. Esse fenômeno sugere algum princípio no estabelecimento dos critérios para diferenciar  as leis das Escrituras universalmente aplicáveis daquelas referentes a situações específicas. Admitir a existência de tal princípio nos permitirá fazer mais que simplesmente tratar a Bíblia como um livro de preceitos éticos. Considerações como essas muitas vezes levam os eticistas cristãos a propor uma abordagem um tanto diversa, embora ainda incontestavelmente heterônoma. Em vez de seguir os legalistas, que consideram a Bíblia um livro de regras, eles a vêem  primeiramente como um livro de princípios.

30

Esses pensadores - a quem podemos denominar "principialistas cristãos" – atentam para os princípios das Escrituras mais que para leis específicas como fonte primária de orientação para a vida ética. 18 Os principialistas cristãos reconhecem que as leis e os preceitos são importantes. Mas a importância estaria em sua natureza, como expressão de axiomas morais universais subjacentes e mais profundos, dentro de situações e contextos particulares. E os  princípios apropriados não se limitam à legislação bíblica, uma vez que também emergem de outros gêneros presentes nas Escrituras. Conseqüentemente, o objetivo do  principialista cristão é discernir axiomas universais revelados nas Escrituras e aplicá-los a situações paralelas da atualidade. Seja ela a busca das leis apropriadas, seja a busca de princípios adequados, a abordagem heretônoma, tomada isoladamente, padece de um sério defeito, que lhe reduz a capacidade de proporcionar um fundamento adequado para a ética cristã. 19 Todos os métodos éticos heterônomos assentam-se sobre a suposição de que a revelação divina é fato dado. Seus proponentes assumem que a revelação existe "lá fora" especificamente, nas páginas das Escrituras - e aguarda ser descoberta e aproveitada por  quem quer viver eticamente nos dias de hoje. Para que isso ocorra, nada mais se exige além do método ético apropriado de extrair o significado da Bíblia e aplicá-la às situações da vida. Essa interpretação evidencia um problema endêrnico do modelo heterônomo em geral. Seja qual for o método, essa abordagem baseia-se numa noção truncada da natureza da revelação e, conseqüentemente, numa idéia equivocada da importância dos princípios e mandamentos bíblicos. Assim, não consegue captar a verdadeira intenção da autorevelação de Deus e, portanto, das próprias Escrituras. Ver a Bíblia primeiramente como o repositório de princípios ou normas atemporais para a conduta humana implica o risco de não enxergar o objetivo da revelação. O supremo  propósito da auto-revelação de Deus é o de nos pôr em contato não com um corpo de leis atemporais ou axiomas morais universais, mas com o Deus que revela a si mesmo e,  por conseguinte, com os seres humanos e com toda a criação. Os preceitos e princípios morais encontrados nas páginas das Escrituras estão a serviço do propósito central, isto é, facilitar a comunhão ou a comunidade.

31

Definindo a vida ética como viver de acordo com um conjunto de leis ou axiomas objetivos, a abordagem heterônoma também conduz a um entendimento equivocado da natureza da resposta humana à iniciativa de Deus. Esse método nos estimula a supor  que o que Deus deseja é nossa obediência a regras ou princípios de conduta impostos externamente. Embora alguns heteronomistas possam levantar veementes protestos a essa crítica, outros facilmente a reconhecem como verdadeira. Por isso, J. A. Motyer  afirma sem rodeios: "No Antigo Testamento, assim como no Novo (e.g., At 5.32), a obediência é um meio da graça".23 Desse modo, o método heterônomo arrisca-se a transformar o discipulado cristão na aceitação cega das ordens divinas expressas nas Escrituras. E, a menos que queiramos fugir do problema, ao introduzir um conceito discutível de lei natural. acabaremos por considerar a vontade divina algo externo e até mesmo alheio ao nosso verdadeiro ser. À semelhança dos esticistas cristãos de todas as épocas, os próprios autores sagrados levantam a questão fundamental: "O que Deus exige de nós?". No entanto, a resposta  básica das Escrituras diverge muito daquela apontada pela ética heterônoma. Em vez da aceitação externa, o que Deus de fato deseja é "um espírito estável" ou um "coração  puro". Esse não é apenas um tema óbvio do NT. O enfoque na devoção interior também  prevalece no AT. Os profetas repetidas vezes alertaram que a atitude desejada por Deus estava num nível mais profundo que o dos vários sacrifícios estipulados na Lei. Assim,  por meio de Oséias, Deus declarou: "Desejo misericórdia, e não sacrifícios; conhecimento de Deus em vez de holocaustos" (Os 6.6). Todavia, a afirmação clássica dessa distinção vem de Miquéias: "Com que eu poderia comparecer diante do SENHOR  e curvar-me perante o Deus exaltado? Deveria oferecer holocaustos de bezerros de um ano?" (Mq 6.6). A conclusão do profeta é surpreendente: "Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o SENHOR exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus" (v. 8). A dificuldade do enfoque na mera observância de mandamentos externos ou até mesmo no cuidadoso apelo a princípios morais universais é que esse método pode facilmente  passar por cima da atitude sincera, que é a única coisa que agrada a Deus. Como reconhecemos anteriormente, preceitos e princípios têm seu lugar na reflexão éticocristã. Mas temos a coragem de nunca permitir que eles nos desviem a atenção do relacionamento transformado que Deus realmente deseja para nós, o que, por sua vez, é a fonte da verdadeira obediência.

32

Por essa razão, em sua prece de contrição depois do adultério com Bate-Seba e da cumplicidade no assassinato do marido dela, Davi vai além da transgressão a mandamentos explícitos, enfocando o coração. "Sei que desejas a verdade no íntimo" (SI 51.6), conclui. "Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável" (v. 10) . . A súplica de Davi indica a dificuldade básica criada pela abordagem heterônoma à vida ética. Enfocando a palavra escrita de modo tão definitivo, esse método ético facilmente resulta numa pneumatologia truncada, pois corre o risco de entender  equivocadamente a função do Espírito Santo que habita em nós ou de ignorá-lo por  inteiro. A ética heterônoma ou esvazia o Espírito vivificante, transformando-o num depósito de leis, ou vincula o Espírito unicamente à nossa capacidade de discernir as implicações de princípios universais em cada situação.  Autonomia: revelação presente no interior do agente moral. Se o problema com a abordagem heterônoma é a perda do Espírito por meio da ênfase na natureza objetiva da Palavra, talvez a melhor solução seja atribuir uma posição central ao Espírito em nosso método ético. Mas como? Uma sugestão comum é vincular o Espírito Santo ao espírito regenerado do indivíduo. Os cristãos que defendem essa segunda alternativa estão de fato expressando afinidade com uma abordagem mais ampla em ética, a que os historiadores muitas vezes conferem o rótulo potencialmente enganoso de "autonomia". 25 No âmago da proposta autônoma, está a exaltação do agente moral individual e a rejeição a todas as reivindicações de uma autoridade moral externa ao eu. A orientação moral é interna e surge por meio da operação de algum princípio presente no indivíduo. Ao contrário do que à primeira vista poderíamos supor, os autonomistas não são necessariamente antinomistas, tampouco defendem a anarquia. Esses eticistas estão convencidos de que o agente moral individual pode ter acesso direto à verdade moral independentemente da imposição de determinado conjunto de princípios e leis de origem externa. Apesar de tudo, defendem com vigor a idéia de que o indivíduo  permanece sujeito à verdade moral. O exemplo clássico de uma ética autônoma assim entendida é a proposta de lmmanuel Kant.27 De acordo com o filósofo alemão, a ética está enraizada na boa vontade do agente moral, a pessoa que pratica seu dever por sua própria conta.

33

Como observamos no capítulo 1, para Kant a vontade determina o que se deve fazer em qualquer situação, mediante o apelo ao imperativo categórico. Podemos classificar a ética de Kant como autônoma no sentido de que o agente moral não pode apelar para nenhum critério supostamente exterior na determinação do que é certo ou do que é errado nas ações morais. Ao contrário, é a luz interior da razão que conduz a vontade a determinar a lei universal. Por isso, depois de expor como seu terceiro princípio prático "a vontade de todos os seres racionais como uma vontade que cria a lei universal", Kant acrescenta: Por esse princípio são repudiadas todas as máximas que não estão de acordo com a decretação da lei universal da própria vontade. A vontade não está, portanto, simplesmente sujeita à lei, mas está sujeita de tal forma que deve ser considerada também  foutor da lei  por si mesma e, precisamente  por causa disso, primeiro sujeito da lei (da qual ela pode considerar-se autora). 28

A exaltação da razão caracteriza a ética de Kant como basicamente uma ética autônoma geral ou "secular". Conseqüentemente, diferenças mais profundas separam sua proposta da dos cristãos que se preocupam em seguir os ditames do Espírito. Ao mesmo tempo, as tentativas filosóficas de criar uma ética autônoma oferece um contexto em que  podemos entender a proposta daqueles cristãos, incluindo-se muitos evangélicos que se utilizam do princípio de que o Espírito habita o interior dos que crêem. Os proponentes da variedade teológica da abordagem autônoma argumentam que os cristãos são os beneficiários do Espírito de Deus. Isso não significa apenas que a lei de Deus está escrita no coração humano, mas também, mais importante, que o Espírito que habita em nós é o mediador direto entre a revelação divina e aquele que crê. Como conseqüência dessa presença interior do Espírito, sustentam eles, a vida ética flui naturalmente de nosso ser interior, que é o lugar do Espírito. A presença interior do Espírito renova-nos e santifica nossa consciência moral, dando-nos um senso intuitivo do que é certo e bom. A conseqüência para a determinação da ação ética decorre muito facilmente: em vez de  preocupar-nos com mandamentos externos, devemos escutar a voz do Espírito dentro de nós e seguir as sugestões dessa voz que fala ao nosso espírito e por meio dele.

34

De fato, à medida que o Espírito interior transforma o espírito humano, o cristão individual descobre como agir e o que desejar, a fim de agradar a Deus. Nesse sentido,  podemos corretamente caracterizar a ética de muitos cristãos como "autônoma" ou talvez "individualista". O teólogo neo-ortodoxo do século XX Emil Brunner apresenta uma interessante interpretação da abordagem autônoma ou individualista. Brunner concorda com a tradição heterônoma segundo a qual a vida ética envolve obediência ao comando divino. De fato, a obediência está no âmago da ética. Nas palavras dele, "estamos diante de um Comando que deve ser levado extremamente a sério".32 Embora concordando até esse ponto com os heteronomistas, Brunner rompe com o que considera mero legalismo de seus opositores: Tudo o que se pode definir segundo um princípio [ ... ] é legalista. Isso significa que é possível mediante o uso desse princípio - predeterminar "o certo" descendo aos mínimos detalhes de conduta. [ ... ] O espírito legalista corrompe o verdadeiro conceito de Bem a partir das próprias raízes. [ ... ] Não há Bem a não ser no comportamento obediente, a não ser na vontade obediente. Essa obediência, porém, é prestada não à lei ou a um princípio conhecido de antemão, mas apenas à vontade livre e soberana de Deus. O Bem consiste em sempre fazer o que Deus quer a qualquer  momento.

 Nesse ponto, Brunner desfralda a bandeira de sua autonomia. Segundo o teólogo neoortodoxo, as exortações nas Escrituras servem de avisos de que "todos os que crêem  podem de fato conhecer a vontade de Deus para si mesmos, por meio da fé em Cristo".34 Na verdade, em vez de confirmar a abordagem heterônoma à ética, Brunner  afirma que o uso da exortação pelos apóstolos realmente "afasta qualquer heteronomia legalista". Declara ele:  Nem mesmo um apóstolo pode dizer o que você deve fazer. O próprio Deus é o único que pode dizer-lhe isso. Não deve haver intermediário algum entre nós e a Vontade divina. Deus quer tratar  conosco "pessoalmente", e não por meio de algum intermediário.

Para Brunner, a chave da vida ética está no Espírito que habita em nós. A vida de obediência emerge à medida que em cada situação o cristão obedece ao comando de Deus.

35

O agente desse encontro com o imperativo divino é o Espírito dentro de nós. Embora o encontro livre e soberano com Deus possa provavelmente ocorrer por meio da leitura da Bíblia, não são as ordens ou os princípios bíblicos em si que são cruciais, e sim o Espírito a se defrontar com o cristão que no fim vem a ser o comando divino. Talvez a expressão de autonomia cristã mais amplamente conhecida seja a ética situacional popularizada por Joseph Fletcher na década de 60, esboçada no capítulo 5. Essa perspectiva sugere que, em vez de basear-se em um conjunto de leis ou princípios universais para determinar de antemão o que é certo fazer, em qualquer situação o cristão deve determinar qual a atitude mais caracterizada pelo amor. Embora reconhecendo um único princípio moral (o amor), a ética situacional é um método autônomo porque não admite que nenhum conceito preconcebido diga o que significa amar em algum contexto específico. A "lei do amor" não pode ser definida por critérios externos, tampouco se pode determinar a natureza do amor apelando-se para qualquer   princípio universal. As exortações bíblicas podem ser úteis como normas práticas, mas não podem impor-se como normas prescritivas. Essencialmente, o situacionista argumenta que, na tentativa de determinar o procedimento correto, o agente moral atenta exclusivamente para a voz interna do Espírito, que fala em cada situação. Embora a heteronomia talvez seja a teoria mais difundida entre os eticistas evangélicos, o método autônomo tem seus seguidores na Igreja. Os cristãos costumam dizer que foram "levados" a fazer determinada coisa, ou justificam seu comportamento ao afirmar  que determinado procedimento simplesmente "lhes pareceu certo". Justificativas desse tipo não diferem categoricamente do verso esclarecedor de uma canção premiada da década de 70: "Não pode ser errado se a gente sente que é tão certo". O apelo à sensação interior de acerto silencia os protestos, pois como argumentar contra a convicção de alguém de que determinada ação estava "certa"? Para sermos justos com os autonomistas cristãos, todavia, precisamos acrescentar que eles não estão sugerindo que os cristãos baseiam sua conduta em meros desejos humanos. Ao contrário, o "sentimento" exaltado como o tribunal de apelação apropriado é o que eles entendem ser a pressão interior que vem do Espírito que neles habita ou, em outras palavras, a consciência moral santificada do cristão redimido.

36

Vista dessa perspectiva, a abordagem autônoma ou individualista parece ter grande  potencial, dando-nos a sensação de que podemos confiar nos conselhos que ouvimos dentro de nós, acreditando que eles provêm do Espírito que habita em nós ou de nosso espírito purificado de acordo com a imagem divina. Está aqui, porém, o calcanhar-deaquiles dessa abordagem. A autonomia não leva em conta o mau impulso que continua  presente no indivíduo regenerado. Como observamos no capítulo 3, Paulo falava da vida ética cristã como uma luta, uma guerra do Espírito contra a carne (Gl 5.17). Por isso, nem todas as ações praticadas pelo cristão "cheio do Espírito" são corretas, e até mesmo suas boas ações são em regra contaminadas por motivos confusos. Parte do problema reside na nebulosidade de nossa visão moral. Enquanto não chega o fim escatológico, até mesmo o cristão mais santificado vê e conhece apenas "em parte" (lCo 13.12). Em conseqüência, não ousamos simplesmente presumir que somos capazes de discernir com clareza a voz do Espírito, sem falar em agir decididamente de acordo com ela, ou que nossa consciência moral santificada será sempre vitoriosa. Tampouco podemos determinar a "ação certa" em qualquer situação apenas pela tentativa de praticar "a coisa mais caracterizada pelo amor". É mais correto dizer que devemos receber orientações acerca de parâmetros que circunscrevem a atitude marcada pelo amor. Para viver como devemos, portanto,  precisamos de orientação constante, especialmente da Bíblia (2Tm 3.14-17). Resumindo, os autonomistas incorrem no perigo oposto ao de seus oponentes. Enquanto a abordagem heterônoma confunde o Espírito com a Palavra, a alternativa autônoma separa com excessiva facilidade o Espírito da Palavra, supondo que a voz do Espírito  possa ser ouvida independentemente dos parâmetros expostos nas Escrituras. Em conseqüência disso, o autonomista rejeita a objetividade da revelação tal como expressa na Bíblia, em nome do Espírito dentro de nós.  Palavra e Espírito: o método teônomo.  Nossa caracterização dos

heterôno mistas como  promotores da fusão do Espírito com a Palavra e dos autonomistas como os que abandonam a Palavra para seguir o Espírito sugere que o método ético apropriado situase em algum ponto entre essas duas alternativas. A abordagem correta reúne a Palavra e o Espírito que atua dentro de nós. Tomando emprestada a terminologia de Tillich,  poderíamos chamar a isso "método teônomo". 36

37

 Na base da alternativa teônoma, encontra-se o tema fundamental esboçado no capítulo 6. Ao fazer a avaliação da ética natural, observamos que ser humano significa ser  moralmente condicionado. Sugerimos então que nosso senso de condicionamento moral aponta para uma realidade mais profunda, isto é, para o impacto da vontade divina sobre nossa existência. Existe ainda outra implicação do reconhecimento de que nossa experiência como agentes morais mostra que somos criaturas de Deus: nosso senso de condicionamento moral lembra-nos de que estamos continuamente diante do Senhor. Vivemos cada momento na presença de Deus. Viver perante Deus significa que o Deus onisciente é sempre sabedor de como reagimos ao condicionamento moral que nos pressiona a cada momento. Significa também que em todos os momentos somos responsáveis perante um Deus santo que tem preferências e, portanto, nos desafia a viver de acordo com o plano divino para nossa existência. Em resumo, como enfatizaram os reformadores, ser humano significa existir  constantemente num relacionamento especial com Deus, que talvez queiramos negar, mas do qual jamais podemos fugir. A suposição fundamental de que vivemos num relacionamento constante e inescapável com um Deus santo caracteriza a alternativa teônoma como abertamente teocêntrica e relacional. Como já dissemos, a abordagem antropocêntrica da tradição filosófica começa pela pessoa humana, muitas vezes com alguma dotação específica (como razão ou vontade), que os seres humanos possuem naturalmente. A tarefa ética, por sua vez, deve usar essa dotação de modo que alcance o que o filósofo entende como o objetivo da existência humana (e.g., a contemplação da verdade eterna). A abordagem teônoma, ao contrário, começa com seres-humanos-emrelacionamento. Ela nos vê acima de tudo como pessoas que continuamente vivem perante o Criador e com quem ele escolheu fazer uma aliança. Em nosso relacionamento moral com Deus, somos também chamados a cultivar relacionamentos apropriados uns com os outros e até mesmo com a criação. Por isso a vida ética é sempre vida-em-relacionamento. E o objetivo da reflexão ética é utilizar os propósitos de Deus para nossos relacionamentos tais como revelados nas Escrituras - especialmente nossa postura perante Deus como  parceiros de sua aliança-, de modo que possamos discernir as implicações de nosso serem-relacionamento para viver no contexto em que nos encontramos.

38

A consciência do caráter relacional da vida ética indica uma deficiência crucial que as abordagens heterônoma e autônoma muitas vezes compartilham. Os proponentes dos dois métodos facilmente supõem que a ética é primeiramente uma tarefa individual e que a vida ética é a busca que empreendemos em primeiro lugar como indivíduos independentes. De acordo com essa tendência, os proponentes de ambas as perspectivas não raro vêem a revelação divina endereçada a cristãos individuais. Essa é obviamente a orientação do método ético autônomo, com seu enfoque na pessoa individual habitada  pelo Espírito. Todavia, é também o caso dos heteronomistas que simplesmente assumem que a Bíblia foi escrita para orientação de indivíduos, e não de comunidades idealizadas por Deus. Mas se a vida ética, em última análise, é vida-em-relacionamento, então a orientação para o indivíduo isolado simplesmente não se justifica.38 A orientação relacional da ética teônoma, própria da aliança, também tem importantes implicações para nossa postura quanto aos imperativos das Escrituras. A abordagem teônoma sugere que podemos entender a Lei de forma apropriada apenas dentro do contexto relacional em que a vida ética ocorre. Deus não nos deu a Lei para que com ela  possamos produzir a vida ética. De fato, ainda que pudéssemos viver em perfeita conformidade com a Lei (o que não podemos), nossa vida não corresponderia à intenção de Deus em relação a nós (v. Mt 19.16-26). Visto que o intuito de Deus é que desenvolvamos relações pessoa-a-pessoa que reflitam a própria relacionalidade divina, a verdadeira obediência não se caracteriza pela observância externa a um conjunto de leis, e sim por uma devoção interior (v., eg., Mc 7.1-23). De fato, a Lei em si mesma simplesmente não tem poder para criar o relacionamento consagrado que Deus quer que desfrutemos. As Escrituras ensinam claramente que a tarefa de criar a vida ética recai exclusivamente sobre a presença do Espírito dentro de nós. O Espírito divino, que é o Espírito de Jesus, torna possível o relacionamento correto com Deus, com o próximo e com toda a criação. Paulo resume essa perspectiva bíblica quando afirma:

39

Porque, aquilo que a Lei fora incapaz de fazer por estar enfraquecida pela carne, Deus o fez, enviando seu próprio Filho, à semelhança do homem pecador, como oferta pelo pecado. E assim condenou o pecado na carne, a fim de que as justas exigências da Lei fossem plenamente satisfeitas em nós, que não vivemos segundo a carne, mas segundo o Espírito (Rm 8.3,4; v. Gl 5.16-25).

Se o propósito da Lei não é produzir pessoas éticas, seu intento deve ser outro. Primeiramente, os vários imperativos bíblicos cumprem uma função um tanto negativa. As proibições e injunções das Escrituras servem para indicar os parâmetros dentro dos quais os relacionamentos pretendidos por Deus podem prosperar. Esses imperativos,  portanto, funcionam em perfeita harmonia com o Espírito. Quando procuramos viver  dentro da esfera indicada pela Lei, o Espírito dentro de nós cria um relacionamento que honra a Deus. O relacionamento entre marido e mulher é um exemplo perfeito. A lei bíblica do casamento estipula que marido e mulher mantenham a fidelidade sexual. Nos Dez Mandamentos, lemos: "Não adulterarás" (Êx 20.14), lei que nosso Senhor reforçou (Mt 5.27,28) e os autores do NT reafirmaram (1Co 6.18; Hb 13.4). Será que a fidelidade sexual é tudo o que se requer para um casamento do agrado de Deus? Claro que não! A verdadeira intenção de Deus é que o homem e a mulher desenvolvam um relacionamento de amor santo. Isso significa que, na qualidade de marido, devo amar  minha mulher "assim como Cristo amou a igreja e entregou-se por ela" (Ef 5 .25). E como a lei que proíbe o adultério se relaciona com a intenção divina de que eu seja um marido amoroso? Devemos admitir que o sétimo mandamento não tem poder de criar a espécie de relacionamento matrimonial desejado por Deus. O fato de eu me conformar servilmente a essa lei, isto é, de eu evitar cometer adultério, por si só não faz de mim um marido amoroso nem significa que meu casamento seja exemplar. Na verdade, tomando todos os cuidados, posso continuar sexualmente fiel à minha mulher e, contudo, ser um marido mesquinho, falso e desprezível. E, a despeito de todas as aparências indicarem o contrário, meu casamento pode ser realmente deplorável.

40

Tomada por si só, a lei do casamento não pode produzir um relacionamento matrimonial que honre a Deus. O crescimento que me torna um marido cristão verdadeiramente amoroso depende da presença ativa do Espírito em meu coração e em meu casamento. Somente o Espírito pode realizar a transformação que me liberta para amar minha mulher como Deus deseja. E somente o Espírito pode criar dentro de nosso relacionamento o tipo de comunidade que cumpre a intenção de Deus.  No entanto, será que isso significa que posso simplesmente descartar o mandamento  bíblico? De modo algum! O mandamento negativo - a proibição do adultério estabelece o limite dentro do qual se desenvolve essa espécie de relacionamento desejado por Deus. Apenas dentro do contexto da obediência à lei do adultério meu relacionamento com minha mulher poderá prosperar. Conseqüentemente, se eu transgredir esse limite (cometendo adultério), anulo a esfera dentro da qual pode existir  um casamento do agrado de Deus. Essa ação exclui-me dessa esfera, na qual, pelo poder  do Espírito, pode se concretizar o relacionamento amoroso que Deus deseja que eu tenha com minha mulher. Portanto, embora o Espírito que habita em mim me conduza além das prescrições da lei do casamento, esse Espírito transformador jamais me levaria a transgredir o sétimo mandamento. A união entre Espírito e Palavra indica que qualquer impulso que eu  possa sentir para cometer adultério, independentemente do que eu considere minhas verdadeiras motivações, não é uma sugestão do Espírito dentro de mim; é o impulso da natureza pecaminosa ainda não erradicada. Vimos que a ética teônoma enfoca basicamente relacionamentos. Assim, essa abordagem é coerente com nossa conclusão anterior de que o objetivo da revelação divina é o de levar-nos a um relacionamento com o Deus vivo e, conseqüentemente, com todos os seres humanos e com toda a criação. Vimos também que o método teônomo nos leva a entender a Lei quanto ao seu papel de indicar os limites nos quais o Espírito busca estabelecer relacionamentos agradáveis a Deus.

41

Em vez de buscar o padrão do viver ético exclusivamente nos mandamentos bíblicos,  precisamos inserir esses mandamentos no contexto do ensinamento bíblico acerca do Deus perante o qual vivemos e de nossa vocação para viver diante dele. Agora, faz-se necessário analisar outra implicação desse conceito. Direcionando nossa atenção para o Deus em cuja presença vivemos, a abordagem teônoma leva-nos diretamente à esfera da teologia. Conseqüentemente, a ética torna-se "teologia em ação", e a teologia - "toda a discussão sobre Deus" -, o recurso intelectual fundamental do viver ético. Isso significa que, como muitos cristãos já concluíram, há um parentesco íntimo entre a teologia cristã e o viver cristão. A doutrina tem uma função especificamente moral. Como Robin Gill com razão afirma sobre a disciplina da ética: ''As crenças cristãs [ ... ] formam os parâmetros da disciplina, que lhe conferem um grau de unidade - uma unidade de atitude geral mais que de conteúdo específico". 45 A vida ética nasce à medida que praticamos nossas convicções teológicas fundamentais diante dos fatos da vida, de modo que possamos desfrutar relacionamentos plenos do Espírito, que reflitam o amor característico do Deus trino e uno. Esses compromissos,  por sua vez, devem ser totalmente cristãos. Isto é, devem ser orientados pelas Escrituras - pela perspectiva bíblica de Deus e da criação no plano divino. Ao mesmo tempo, esses compromissos não são fins em si mesmos. Ao contrário, como corretamente observa Philip Edgcumbe Hughes, "o fim da teologia é a prática. A doutrina é para a ação, e não simplesmente para os ouvidos e a aprendizagem; por isso, nas Escrituras ela sempre é apresentada como tendo conseqüências éticas".46 Nossos compromissos doutrinais formam a "rede de crenças" por meio da qual o Espírito dá forma à nossa vida-emrelacionamento. À medida que o Espírito desempenha em nós essa tarefa, passamos a ser caracterizados pela verdadeira integridade cristã que mencionamos no capítulo anterior. Isso nos leva de volta à discussão da revelação e da ética cristã. A abordagem teônoma abre caminho para a integração do Espírito ativo com a Palavra escrita. Em vez de seguir o legalismo morto da heteronomia ou o contextualismo vazio, solto e informe da autonomia, a ética realmente teônoma vê a Palavra e o Espírito como a voz unificada de Deus falando nas situações do dia-a-dia. Nas páginas da Bíblia, o Espírito leva-nos a ver, da perspectiva bíblica, o mundo em relacionamento com Deus.

42

E, por meio da Palavra, o Espírito vivo faz-nos entender o que significa viver como  povo comprometido com Deus no mundo contemporâneo. Falando por meio das páginas das Escrituras, o Espírito define os contornos de nossa identidade como cristãos. Na qualidade de veículo pelo qual o Espírito nos fala, a Bíblia é a fonte primária de nosso aprendizado sobre o Deus da aliança e, portanto, sobre nós mesmos como parceiros - ou povo - de Deus nesse relacionamento. Com esse intuito, a Bíblia registra os atos de Deus na história da aliança, mostrando sua fidelidade a despeito de nossas falhas, uma narrativa que culmina na vinda de Jesus ao mundo e no derramamento do Espírito. Por meio dessa narrativa e dos ensinamentos que os autores sagrados dela extraem, o Espírito nos concede uma identidade especial. Como  participantes da comunidade da aliança, somos imbuídos do Espírito de Jesus, que nos transforma à imagem de Cristo - um povo que o Espírito convoca a viver de acordo com as crenças, idéias, valores e caráter de nosso Senhor, revelados na vida que ele viveu entre nós. Embora sem usar o termo específico, Harmon Smith resume muito bem a natureza da ética teônoma: O que o evangelho oferece não é um padrão racional que se autojustifica, e sim uma comunidade de lealdade. A ética cristã tem relação com o etos cristão, com um estilo de vida que reflete o caráter de um novo povo, moldado conforme o viver atual. É uma comunidade ética porque é a história da jornada de um povo; é uma ética religiosa porque é a história da jornada de um povo e seu Deus. OS FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA ÉTICA CRISTÃ

Do princípio ao fim da Bíblia, a vida ética está enraizada num contexto teológico.50 Os autores sagrados não abordam a ética como disciplina filosófica nem tratam as discussões éticas como uma preocupação humana universal. Para eles, a ética não é um tópico secundário da antropologia. Ao contrário, como já dissemos, os autores das Escrituras entendem a ética como vida sob e perante Deus. Conseqüentemente, para eles as convicções religiosas e a moralidade estão entrelaçadas, e a intenção de conhecer o Deus verdadeiro e a conduta pessoal correta formam uma única túnica inconsútil.

43

A ética emerge quando o povo de Deus procura entender as implicações da concepção  bíblica da vida sob Deus para a existência no momento concreto. A ética cristã é fundamentalmente a vida de integridade - teologia em ação quando procuramos praticar  em nossos relacionamentos as implicações dos compromissos teológicos cristãos derivados da narrativa do Deus bíblico, culminando na história de Jesus Cristo. Esse  panorama bíblico nos mostra quem é Deus e quem somos como criaturas dele, e aponta  para onde Deus está conduzindo toda a criação. Portanto, nosso objetivo no que resta deste capítulo é analisar esses temas básicos do compromisso cristão, observando sua relevância como fundamento teológico da ética. 53 O Deus perante o qual vivemos . O tema central da narrativa bíblica é o Deus que fez a aliança conosco. Fundamental para o entendimento bíblico é a condição de Deus como Criador. Da mesma forma que a Bíblia começa com uma retumbante afirmação: "No  princípio Deus criou os céus e a terra" (Gn 1,1, o Credo Apostólico começa com as  palavras "Creio em Deus Pai Todo-poderoso, Criador dos céus e da terra". O termo "Criador" delineia o relacionamento fundamental entre Deus e o mundo. Confessar  Deus como Criador é reconhecer que tudo no Universo deve a existência e o ser ao Deus da Bíblia, e dele deriva a existência e o ser: "Pois nele vivemos, nos movemos e existimos" (At 17.28). Essa confissão tem implicações importantes para a ética cristã. A declaração "Deus é Criador" é a resposta suprema à questão da ética de valor. Como observamos no primeiro capítulo, a ética filosófica preocupa-se com o que os homens devem valorizar e o que forma a base para juízos válidos de valor. As respostas dos filósofos em geral indicam o caráter fundamentalmente antropocêntrico da abordagem filosófica e apontam como tribunal de última instância a pessoa humana e os conceitos humanos de viver bem. Os seres humanos valorizam tudo o que na visão deles contribui  para esse tipo de vida. Reconhecer Deus como Criador, porém, é elevar a discussão ao nível teocêntrico e oferecer uma fundamentação teológica para o valor. A ética cristã aborda questões de valor partindo do relato bíblico do Valorizador divino. Todos os valores são  basicamente determinados unicamente pelo Deus Criador da narrativa bíblica.

44

Como aquele que realmente confere valor, Deus é o padrão dos valores, e ele nos convida a atribuir valor segundo os seus próprios critérios de avaliação. Esse entendimento tem uma aplicação direta ao nosso modo de compreender o valor do ser humano. Contrariando o método antropocêntrico encontrado na ética natural ou filosófica, bem como em certas propostas teológicas que apelam para nossa criação à imagem de Deus como a fonte de nossos valores não podemos ver a pessoa humana por  si só, mas apenas em relação a Deus. Em conseqüência, somos levados a negar a idéia do ser humano dotado de valores intrínsecos. A base de nossos valores não está em nós mesmos ou em algo que possuímos. Ao contrário, o fato de termos sido criados por  Deus indica que nossos valores são derivados - nascem unicamente de nosso relacionamento com o Valorizador divino, que nos atribui valor. Assim, não podemos estabelecer o valor de nenhuma vida humana, mas devemos valorizar uns aos outros e a nós mesmos, como Deus o faz. A percepção de que "possuímos" um valor derivado deve alimentar-nos a humildade.  Ninguém pode vangloriar-se do próprio valor, tampouco apelar para algum valor que afirme possuir como base para fazer exigências a Deus ou aos outros. Ao mesmo tempo, o fato de Deus nos valorizar deve alimentar em nós um verdadeiro senso de dignidade. Em vez de atentar para os outros a fim de determinar nosso valor, podemos erguer bem alto a cabeça e declarar sem medo: "Eu tenho valor, porque Deus me valoriza". Da mesma forma, a consciência de que cada um de nós é alguém a quem Deus atribui valor  deve levar-nos a tratar os outros com a dignidade que Deus estende a todos nós. Uma das questões cruciais que envolvem o debate contemporâneo sobre o aborto é saber se o feto tem valor. Esse debate, porém, levanta uma questão mais profunda: "De quem é a avaliação mais importante em relação ao feto: da mulher grávida, do pai ou da sociedade?". Apresentada nesses termos, a discussão subseqüente muitas vezes recorre a frases de efeito como: "Todos os filhos são filhos desejados". O conceito bíblico de valor sugere que a questão deve ser abordada de uma perspectiva diferente. Mais importante que a opinião da mãe, do pai ou da sociedade, é a avaliação do feto feita por Deus:

45

"O que Deus diz sobre quem se está desenvolvendo no seio materno?". Em essência, os cristãos ousam falar da questão do aborto apenas dessa perspectiva. 58 A narrativa do Deus Criador declara também que toda a criação, incluindo os seres humanos, em última análise pertence apenas a Deus. Escreve o salmista: "Do SENHOR é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem; pois foi ele quem fundou-a sobre os mares e formou-a sobre as águas" (S124.1 ,2). Ciente disso, a ética cristã vê a vida em seu conjunto total como administração. Nosso chamado não deve permitir que nos vejamos como donos, e sim como administradores, sujeitos a Deus, de tudo o que ele nos confiou. Ser administrador significa administrar nossa vida pessoal, incluindo tudo o que temos e somos - o ser físico, a acuidade intelectual, as habilidades e até mesmo o tempo de vida que Deus nos confia - para a glória do Criador (v., e.g., Mc 12.30). Às vezes, o Senhor serve-se de experiências para nos lembrar da necessidade de sempre estarmos conscientes de que somos administradores de nossa vida. O dia 6 de janeiro de 1988 marcava o início da volta para casa após uma viagem a Portugal e Espanha durante o período das festas natalinas. Após as despedidas, em minha oração, na qual eu  pedia o contínuo bem-estar de nossos amigos, incluí a costumeira invocação da  proteção divina para nossa viagem. Nas montanhas do sul da Espanha, a rodovia que seguíamos tornou-se uma trilha estreita, sinuosa e muito mal pavimentada. As condições adversas da pista pioravam com a chuva fina. De repente, surgiu uma curva que o carro simplesmente se recusou a fazer. Sem poder acreditar, vi nosso automóvel  precipitar-se barranco abaixo rumo a um destino incerto. A roda traseira esquerda suportou todo o impacto inicial da queda, mas o impulso fez o carro continuar  tombando. Batemos no chão mais uma vez, agora com a parte dianteira do lado direito do teto, antes de parar sobre as quatro rodas numa várzea lamacenta, encharcada pela chuva, uns quatro metros abaixo da rodovia. Estávamos vivos! Ninguém se ferira, e havíamos parado sobre os quatro pneus.

46

O acidente ocorreu um dia antes de eu completar 38 anos. Mais tarde, refletindo sobre o ocorrido, foi como se o Senhor estivesse me dizendo: "Qual a sua expectativa de vida uns 76 anos? Você e sua família poderiam ter morrido no meio do percurso. Mas eu  protegi vocês. Agora, aqui está a segunda metade da sua vida. O que você vai fazer com ela?". A administração estende-se também aos nossos relacionamentos pessoais. Marido e mulher não são donos um do outro, os pais não são donos dos filhos, e os empregadores não são donos dos empregados. Ao contrário, nesses e em todos os outros relacionamentos devemos atuar como administradores dignos de dar glória a Deus. De modo semelhante, como administradores levamos a sério nossa presença na sociedade. Sabendo que a residência numa comunidade local, a cidadania em determinada nação e até mesmo a participação na "aldeia global" envolvem responsabilidades, trabalhamos com os outros para promover as estruturas sociais que honram o Deus da Bíblia. Deus também nos convida a viver como administradores no seio do mundo que nos cerca. Segundo a narrativa bíblica, o Universo de Deus é "bom" (Gn 1.31). Como criação de Deus, o Universo manifesta a glória divina (Rm 1.19,20) e cumpre seu  propósito de glorificar Deus (Sl19.1; 148; 150.6).59 O autor do hino afirma essa convicção teológica de modo poético: "Toda a natureza canta, e ao meu redor ecoa a música das esferas". 60 Conseqüentemente, não é a função principal da "natureza" servir de recurso para uso e consumo humano ou apenas como pano de fundo para o drama da história humana." mas ela existe para a própria alegria de Deus (Sl 104.31). Por essa razão, devemos abordar o mundo criado com um senso apropriado de maravilha e apreciação, abertos às verdades espirituais retratadas pelas criaturas de Deus, seguindo o exemplo da literatura sapiencial do AT e das parábolas de Jesus. Embora seja fundamental para a narrativa bíblica, o reconhecimento de que "Deus é o Criador" não nos leva ao âmago do modo cristão de entender Deus. Conforme observado no capítulo 6, a doutrina da Trindade é a contribuição teológica central da fé cristã e conseqüentemente a convicção fundamental para a ética cristã. 62 Confessamos que o único Deus são as pessoas da Trindade num eterno relacionamento de amor  mútuo, e, por isso mesmo, Deus é amor (v., e.g., 1Jo 4.16).63

47

A criação, por sua vez, existe por causa do amor divino, pois é produto do extravasamento do amor mútuo do Pai e do Filho, isto é, a pessoa do Espírito Santo. 64 Em última análise, o objetivo da criação do Universo é levar a criação a partilhar do eterno amor dentro do coração do Deus da Trindade e evocar uma resposta amorosa das criaturas de Deus, especialmente dos seres humanos. Essa intenção divina define como nossa tarefa ética fundamental a de retribuir adequadamente ao amor de Deus, amandonos uns aos outros segundo o modelo divino. A doutrina da Trindade também proporciona o fundamento teológico para o método do Deus bíblico no mundo. Toda a narrativa das Escrituras apresenta Deus atuando em relação à criação com o amor inquestionável que revela o caráter divino. A criação  prova o amor de Deus de muitas formas, especialmente por meio do cuidado de Deus  para com todas as criaturas (v., e.g., Gn 9.8-17; Jo 4.11; Mt 6.16,30). O glorioso amor  de Deus é visível de modo especial no foco da narrativa bíblica: "Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito" (Jo 3.16). Como indica o texto do quarto evangelho, embora Deus tenha feito uma aliança com toda a criação, os seres humanos são seus parceiros especiais. Somente nós fomos escolhidos para ser a imago Dei, termo que, ao contrário do que ocorre na tradição dominante da filosofia e teologia do Ocidente, não se refere primeiramente à nossa racionalidade, e sim à vocação de espelharmos o caráter de Deus. Como portadores da imagem de Deus, devemos refletir o caráter de Deus uns para os outros e para toda a criação, alinhando-nos com a causa divina no mundo. Por isso, continuamente  perguntamos: "Quais são as intenções de Deus? Qual a melhor forma de sermos instrumentos na promoção da vontade divina na situação presente?”. Viver como portadores da imagem de Deus significa expressar a preocupação amorosa  por toda a criação. Acima de tudo, porém, essa incumbência inclui o esforço para desenvolver relacionamentos amorosos com os semelhantes, de modo que em nossas atitudes e ações para com todas as pessoas reflitamos o amor de Deus. Examinaremos com mais cuidado essa dimensão central da ética cristã no próximo capítulo. O desejo de espelhar o amor de Deus exige o envolvimento cristão em questões sociais, o que inclui a busca da justiça em suas múltiplas formas.

48

Estamos atentos a questões de justiça simplesmente porque compartilhamos a amorosa  preocupação de Deus com toda a criação e assim desejamos ser o veículo por meio do qual ele expressa esse amor a todos. Nosso desejo de sermos veículos do amor de Deus conduz-nos a tentativas de transformar estruturas sociais que atuam contra os propósitos amorosos de Deus. Para levar esse propósito a efeito, tornamo-nos defensores de Deus na luta contra o mal e abraçamos a causa dos fracos, dos marginalizados e dos oprimidos, exatamente como Jesus nos mostrou pelo seu exemplo. Essa discussão tem uma grave conseqüência sobre nosso modo de abordar os direitos humanos. De modo específico, alerta-nos sobre o abismo, muitas vezes ignorado, que existe entre a visão cristã teocêntrica dos direitos humanos e o fundamento em geral antropocêntrico apresentado pela teoria do contrato social, que dominou a tradição do Iluminismo. Alguns eticistas sugerem que, na sua origem, o conceito dos direitos humanos emergiu de uma base teológica. 68 Seja esse o caso ou não, a tradição iluminista da linguagem dos direitos baseia-se na suposição de que o indivíduo autônomo dotado de certos direitos naturais é a pedra fundamental da sociedade. Por um ato de vontade, indivíduos livres, independentes e autônomos estabelecem o que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), seguindo John Locke (1632-1704), chamou de um "contrato social", com o propósito de preservar a pessoa e a propriedade de cada um. 69 Embora a participação no contrato social implique a renúncia dos direitos naturais, o indivíduo adquire como cidadão um conjunto de direitos civis. Segundo os intérpretes modernos dessa tradição, a posse de direitos significa que o eu tem uma reivindicação contra os outros. Visto que os outros têm certas obrigações para com o eu, o eu pode exigir o seu cumprimento. Em contraste com essa tradição, a ética cristã, seguindo o modelo social da Trindade, diz respeito apenas a pessoas-em-relacionamento. Com isso, o consenso bíblico procura  juntar o eu e a comunidade na qual ele está inserido. Assim, em certo sentido, ela põe as relações comunitárias no mesmo nível ontológico do eu. Conseqüentemente, uma ética verdadeiramente cristã não pode seguir o forte viés para o individualismo encontrado nos arquitetos da tradição política ocidental, que vêem os preceitos da lei da natureza envolvidos com direitos individuais, mais do que com as responsabilidades do indivíduo na sociedade.

49

Os cristãos simplesmente não podem contentar-se com a discussão da linguagem dos direitos de indivíduos autônomos isolados, mas devem contrabalançar o apelo a qualquer direito inerente presumido com igual apelo às responsabilidades ligadas à inserção relacional do eu. Paul Ramsey já observava em 1950: Os direitos humanos não podem ser plenamente analisados como se pertencessem ao indivíduo, separadamente da sociedade. Eles não exigem que o homem transforme as condições de sua relutante participação em preocupações da sociedade. [ ... ] Os direitos não são inerentes ao indivíduo isolado, "natural". Pertencem ao indivíduo na medida em que há certos poderes que ele  pode exercer a fim de obter o máximo bem-estar geral. 74

O paradigma para relacionamentos verdadeiramente cristãos só pode ser Jesus Cristo. Ele aceitou abandonar todas as prerrogativas que sua excelsa posição lhe conferia para viver e morrer por nós e com isso glorificar o Pai celestial. O "método cristão" envolve copiar em todos os nossos relacionamentos essa mesma mentalidade (2Co 8.9; Fp 2.5). Para citar Ramsey mais uma vez: "O relacionamento básico de uma pessoa com as várias comunidades das quais ela participa é de serviço, e não de fazer exigências contra elas"." Por essa razão, em vez de nascer de direitos inerentes ou de quaisquer outros que o indivíduo possua, as obrigações éticas emergem do caráter da comunidade de Cristo da qual somos membros. O ser humano como criatura perante Deus. Conforme a discussão anterior indica, não  podemos falar do Deus trino e uno como nosso Criador sem falar também do ser  humano como criatura desse Deus. Já examinamos várias das implicações desse compromisso cristão. Além de declarar que somos portadores da imagem divina, a antropologia cristã ensina que Deus nos criou como uma unidade. Conseqüentemente, o desígnio de Deus para nós é holístico. Isso significa que a intenção de Deus para cada pessoa se estende à totalidade do ser. Do início ao fim, a narrativa bíblica supõe a unidade da pessoa humana. Depois de formá-lo com o elemento natural da terra, Deus soprou em Adão o fôlego da vida, e ele se tornou um ser vivo (Gn 2.7). A unidade pessoal fundamental que encontramos na narrativa da criação é confirmada por nossa futura ressurreição.

50

 Naquele grande dia escatológico, seremos transformados em nossa totalidade segundo o modelo do Cristo ressuscitado (Rm 8.11,23). Uma vez que somos seres completos, os  propósitos e a preocupação de Deus não se limitam a nenhum aspecto de nossa existência, como a "alma imortal" excluindo o corpo físico. Ao contrário, cada um de nós é o recipiente do amor de Deus e é responsável perante ele na totalidade de nossa existência corporal.  Nossa criação como uma unidade também significa que na intenção divina a humanidade forma um conjunto. Os propósitos de Deus são para todos os seres humanos, e para todos eles juntos. Paulo, por exemplo, refere-se várias vezes ao impulso unificador da reconciliação de Deus com a humanidade em Cristo. Ele declara que a obra da reconciliação supera barreiras raciais, socioeconômicas e de gênero (Ef  2.15; Gl 3.28). De fato, assim como nossa solidariedade em Adão nos leva à morte, também Deus quer que todos nós participemos da vida por meio de Jesus Cristo (Rm 5.12-21; lCo 15.22). De modo semelhante, o objetivo de Deus para nós é social. Em vez de uma esfera de indivíduos isolados, cada um ocupando seu cubículo particular, a Bíblia descreve nossa morada eterna como uma cidade, a nova Jerusalém, o que simboliza a comunidade no  plano mais alto - um povo redimido que habita numa criação renovada e desfruta o Deus trino e uno (Ap 2l.1-3; 22.1-5).78 No âmbito da Igreja, o glorioso propósito já é uma realidade parcial. O povo redimido de Deus forma um só corpo (ICo 12.12-26), uma realidade social constituída por indivíduos que o Espírito Santo une num todo singular, simbolizado sempre que comemos o pão na celebração da ceia do Senhor (1Co 10.17). A natureza comunitária da intenção divina indica que a vida ética abrange nossa existência fundamental de pessoas-em-relacionamento. Há, naturalmente, uma dimensão intensamente individual na doutrina ética das Escrituras. Vivemos como indivíduos perante um Deus santo e somos indivíduos responsáveis para com esse Deus. Mas a ética bíblica não se dirige ao indivíduo isolado. Ao contrário, sabendo que vivemos constantemente em contextos sociais, só podemos falar em termos de pessoasem-relacionamento. Os autores sagrados convocam-nos a viver como povo de Deus em todos os nossos relacionamentos, e, como resultado disso, a ética cristã nunca é uma ética meramente "pessoal", mas sempre também "social".

51

Além de nos forçar a ver a vida social como a experiência de viver em relacionamentos, a consciência fundamental de que somos uma unidade criada deve levar-nos a buscar  respostas holísticas para problemas éticos. Em vez de enfocar apenas um aspecto da existência humana, devemos sempre ver uns aos outros como os seres unitários que somos. As ciências humanas estão cada vez mais conscientes dessa necessidade. Por  exemplo, a maneira mais antiga de entender a assistência médica tende a ver o paciente como análogo a uma máquina composta de "partes" que devem ser "consertadas" quando quebram ou não funcionam bem. A assistência médica contemporânea, ao contrário, está mais propensa a reconhecer que as doenças são mais que meras disfunções do corpo. Cada vez mais, a pessoa humana é vista como uma unidade que engloba o físico, o psicológico e até mesmo o espiritual. Uma vez que isso reflete a antropologia bíblica, os cristãos podem aplaudir esse novo estado de coisas (v., e.g., Tg 5.14,15).  Nossas respostas a problemas éticos também devem ser holísticas, no sentido de que são endereçadas não ao indivíduo isolado, mas aos seres humanos em seu contexto social, levando em consideração a dinâmica de grupo que atua nas várias situações da vida em sociedade. Da mesma forma, a ética cristã é holística, no sentido de que nos leva além do enfoque míope de nós mesmos e dos participantes de nosso círculo imediato, para atingir uma perspectiva global capaz de gerar preocupação por todas as pessoas, sem exceções e sem preconceitos. A perspectiva cristã deve levar-nos a ver todas as pessoas como valiosas aos olhos de Deus e participantes potenciais da eterna comunidade divina e então fazer-nos calibrar nossas ações e atitudes de acordo com essa consciência. O holismo cristão também abrange a criação inteira, quando erguemos os olhos para considerar a ligação mais ampla que temos com a Terra que nos nutre e até mesmo com todo o Universo em que Deus nos colocou. A antropologia cristã passa da "boa notícia" de que somos obra da mão de Deus para a "má notícia". Os seres humanos são criaturas decaídas, pecadoras. 82 Em última análise, o pecado é uma falha - nossa falha, que nos impede de viver de acordo com o desígnio estabelecido pelo próprio Deus. Essa falha está na própria essência de quem somos, de modo que no fundo de nosso ser estamos afastados de Deus, dos outros, da criação e até de nós mesmos.

52

 Nossa criação como uma unidade implica uma interpretação unitária do pecado. Se fomos criados como pessoas unitárias, então nenhuma "parte" de nosso ser, como o corpo, pode ser vista como a fonte do pecado. Em vez disso, o indivíduo como um todo é pecador. De modo semelhante, a unidade da humanidade significa que o pecado não pode ser  relegado exclusivamente ao indivíduo. O pecado também tem um aspecto conjunto ou social. Não pecamos apenas como indivíduos; pecamos também como grupos e contra grupos. Os profetas do AT refletiram essa realidade quando convocaram os ricos de Israel a agir com justiça em relação aos pobres, e os privilegiados a defender a causa dos menos afortunados. Não só pecamos conjuntamente, mas o pecado também é transmitido de forma conjunta. Pelo processo de socialização, ensinamos os outros a  pecar, incluindo nossos filhos. Nosso envolvimento em estruturas sociais transmite o  pecado no seio da sociedade. De acordo com esse entendimento, os profetas sabiam da importância de confessar o pecado conjunto. Por exemplo, sua visão da santidade de Deus levou Isaías não apenas a declarar: "Sou um homem de lábios impuros", mas também a acrescentar em seguida: "... e vivo no meio de um povo de lábios impuros" (Is 6.5; v. tb, Dn 9.4-11). Tão forte é a dimensão social do pecado que o NT menciona um reino do mal. Os autores sagrados usam a palavra "escravidão" para caracterizar nosso estado. Somos cativos de um poder externo e mau. A presença difusa do pecado contamina todos os nossos atos. Mesmo nos momentos mais consagrados ou em nossas ações mais nobres,  podemos facilmente descobrir - se formos honestos com nós mesmos - a presença de motivações censuráveis e egoístas. Quando eu estudava no seminário, meu professor de História da Igreja um dia relatou à classe um incidente que ilustra a presença difusa do pecado, mesmo na vida dos cristãos. Aquele homem espiritual participou de um encontro de evangélicos. Numa das sessões, o líder o escolheu para orar. O professor fez uma oração sincera, eloqüente, vinda do fundo do coração. Assim que se sentou, porém, seu primeiro pensamento foi de vanglória: "Puxa! Como me saí bem!".

53

 Nosso reconhecimento da presença difusa do pecado leva-nos a rejeitar o "absolutismo contextual", segundo o qual, nas palavras de um de seus proponentes, "em toda situação ética, por mais extrema que seja, há um procedimento que é moralmente certo e isento de pecado". 84 Ele também nos leva a perceber que todas as respostas humanas a graves dilemas éticos em última instância só podem apresentar soluções parciais. Por essa razão, devemos abordar todos os problemas éticos com uma forte dose daquilo que Reinhold Niebuhr denomina "realismo cristão". 85 Por mais que tentemos, nunca conseguimos a solução final para nenhum problema. De fato, podemos descobrir, para nossa tristeza, que "soluções finais" muitas vezes geram novos problemas. Essa percepção deveria ser um aviso de que não somos a resposta para os problemas do mundo. A solução não está simplesmente na expansão da Igreja no mundo, por mais importante que isso seja. Nossa função não é  ser  a resposta, mas um sinal que aponta  para a única resposta definitiva, a saber, a graciosa provisão de Deus em Cristo. Desse modo, a doutrina cristã do pecado conduz ao reconhecimento de que necessitamos da graça divina e de que a vida ética emerge como resultado da fidelidade de Deus à aliança, a despeito de nossas falhas. O centro da fé cristã. O ensinamento básico das Escrituras leva-nos ao âmago da fé cristã. Contrastando com os filósofos gregos, preocupados em definir o viver bem e delinear princípios éticos por meio da reflexão racional, os autores sagrados começam com um relato sobre um Deus que interfere na história humana e assim cria padrões de ética moral. Essa narrativa enfoca uma vida histórica específica, a de Jesus de Nazaré, que os cristãos reconhecem como a gloriosa provisão de Deus para a situação humana. Baseados nessa convicção, os eticistas cristãos de todos os tempos têm declarado que o foco da vida ética é Jesus e, em última análise, a ética cristã é Jesus Cristo. R. E. O. White resume toda a tradição, ao concluir: Esta é a única contribuição do cristianismo para a ética: a identificação do ideal moral com uma  pessoa histórica; a tradução da teoria ética em termos concretos de uma vida humana real; a expressão da obrigação moral na linguagem da lealdade pessoal; a ligação da aspiração moral mais alta com os motivos mais poderosos - admiração, devoção, gratidão e amor centrados numa  pessoa. Nessa junção da única esperança de salvação eterna com a expressão mais alta do ideal moral numa pessoa histórica, está o poder único do evangelho cristão.

54

Entretanto, em que sentido exatamente Jesus é o centro da ética cristã? Os cristãos têm respondido a essa questão referindo-se à dupla revelação de nosso Senhor como Deus: sua essência divina e seu plano para a existência humana. Ou, para utilizar a grande confissão cristológica da Igreja, Jesus é ao mesmo tempo divino e humano. Em conseqüência, podemos falar de vida ética como "cristopráxis", para tomar emprestada a expressão de Edmund Arens. Dizer que Jesus é divino é reconhecer que ele é a revelação de Deus, pois nessa pessoa histórica vemos como Deus é. 89 Acima de tudo, Jesus nos revela o princípio divino da vida, que nasce do próprio coração de Deus, ou seja, que o fundamento do verdadeiro viver é o amor. Fazendo isso, Jesus revelou o método de Deus no mundo - um estilo que difere radicalmente do método do mundo em si. Segundo Jesus, Deus não implementa o  programa divino por coerção, e sim pelo poder do amor que se oferece em sacrifício. O método de Deus envolve vulnerabilidade, sofrimento e até morte. Todavia, o amor que se imola não é sentimentalismo. Ao contrário, envolve determinação e coragem a favor  do próximo. Declarando que Jesus é verdadeiramente humano, reconhecemos que ele é a revelação do que devemos ser. Acima de tudo, nosso Senhor demonstra que a verdadeira natureza humana envolve amar a Deus e viver em favor dos outros a fim de que Deus possa ser  glorificado. Uma vez que Jesus revela sua verdadeira humanidade, a vida ética consiste em imitar Cristo. Nisso está a verdade do apelo que Charles Sheldon faz aos cristãos  para que, em cada situação, se perguntem: "O que Jesus faria?". Imitar Cristo, porém, vai além de meros fatos. Não é possível nem desejável tentar  determinar como Jesus agiria em cada contexto. A vida de imitação envolve ser  motivado pelos ideais, objetivos e propósitos que motivaram Jesus. Implica viver  reconhecendo a soberania de Deus e em favor dos outros, seguindo o padrão da própria vida de Jesus. Seu enfoque, como o exemplo de Cristo indica, deve ser a humilde sujeição para a glória de Deus. Por isso, em cada situação desejamos que o caráter e os ideais de Jesus sejam manifestados em nossa vida.

55

Uma vez que Jesus é a revelação de Deus, imitar Cristo é ao mesmo tempo imitar Deus. Conseqüentemente, quando vivemos em conformidade com Jesus, tornamo-nos a imago  Dei, pois desse modo refletimos o caráter do Deus que é amor. Tendo em vista que o foco da ética cristã é uma vida histórica, o ideal ético não pode reduzir-se a um conjunto de leis, princípios ou axiomas. Como escreve Paul Lehmann: "A ética cristã [ ... ] volta-se para a revelação, e não para a moralidade" .91 A vida ética constitui-se de um relacionamento. Emerge quando nos tornamos verdadeiros discípulos de Jesus e com isso honramos aquele que ele chamou "Pai". Exercemos a ética bíblica quando nossa devoção àquele que nos amou nos leva a refletir em nossa vida o ideal ético que provamos pessoalmente e que caracteriza a vida do eterno Deus. O enfoque cristológico não circunscreve a ética cristã meramente no passado ou mesmo no presente; também confere à vida ética uma perspectiva escatológica incontestável. Desde os profetas do AT até o vidente de Patmos, os autores das Escrituras apelam para a visão do futuro de Deus em seu chamado a um comportamento ético no presente. A ética bíblica está voltada para algo que se situa além do presente, isto é, o propósito final de Deus, a nova criação revelada por Cristo. A orientação escatológica é evidente na extensa explanação de Paulo sobre a futura ressurreição. Depois de anunciar veementemente a boa notícia de que um dia seremos transformados em corpos espirituais imortais, semelhantes ao de Cristo, o apóstolo conclui com um retumbante "portanto": "Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil" (ICo 15.58). A idéia de Paulo é óbvia: uma vez que Deus fará isso, vocês devem fazer aquilo! A participação na ressurreição não é, todavia, uma simples esperança para nossa existência física. Também seremos igualmente transformados à semelhança de Cristo no aspecto moral. João afirmou-o de modo sucinto: "Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é" (1Jo 3.2). Em seguida, João passa da esperança futura para a presente: "Todo aquele que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, assim como ele é puro" (v. 3).

56

Portanto, do ponto de vista dos autores sagrados, nossa verdadeira identidade reside no futuro de Deus, e não em nosso passado ou em nosso presente, como alguma natureza essencial que nós, como seres humanos, já possuímos. Somos os santos que um dia seremos glorificados, como Paulo declara: "Deus nos ressuscitou com Cristo e com ele nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus" (Ef2.6). Se isso é o que somos, impõe-se o imperativo ético, o qual na realidade está intimamente ligado a um indicativo." Sejam/tornem-se quem vocês são! Vivam no presente em perfeita conformidade com Cristo, o qual um dia vocês desfrutarão, porque vocês são hoje, de fato, os santos glorificados que serão um dia. Esse enfoque escatológico da ética cristã levou Paul Lehmann a exclamar: "O cristão não vive de acordo com seu passado 'adâmico' nem de acordo com seu passado cristão, mas de acordo com seu futuro, do qual seu presente é uma inebriante prelibação. A dimensão do imperativo bíblico leva-nos à verdade escriturística de que a providência de Deus para nossa situação vai além da revelação do que significa viver eticamente. Essa providência também cria em nós o que Deus deseja. Por isso, a narrativa bíblica apresenta Jesus como aquele que nos reconcilia com Deus, nos liberta do pecado e sobre nós derrama seu Espírito. Como resultado da obra de Cristo a nosso favor, desfrutamos uma nova identidade: somos filhos de Deus." Nosso novo  status ou identidade constitui o ponto inicial da vida ética. Essa vida envolve viver segundo a identidade que o Pai tão liberalmente nos confere no Filho e assim nos torna exatamente as pessoas que Deus declarou que somos em Cristo. Desse modo, a ética bíblica decorre da vida transformada que Deus cria em nós. Davi reconhece esse fato quando suplica: "Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável" (Sl 51.10). Paulo reitera o mesmo ponto: "Por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito de vida me libertou da lei do pecado e da morte" (Rm 8.2). Tem boas razões então Donald Bloesch para concluir: “A ética nessa perspectiva teológica já não é submissão à Lei, e sim uma resposta à graça divina”. 98 Fundamentado nisso, Helmut Thielicke estabelece uma distinção apropriada entre a ética cristã e a ética filosófica: "Na ética filosófica, as ações são determinadas pela 'tarefa' a ser executada. Na ética evangélica, elas são determinadas pelo 'dom' já conferido.

57

Como esses textos indicam, os autores sagrados apontam a identidade daquele que renova o coração humano. O autor da vida nova, escatológica, é o Espírito Santo. Esse "Espírito escatológico"101 é ninguém menos que o Espírito do Senhor Jesus; pois o objetivo de sua obra transformadora é levar-nos à maturidade plena 102 caracterizada simplesmente pela "medida da plenitude de Cristo" (Ef 4.13). O viver ético, portanto, decorre da nova vida que nos é dada pelo Espírito Santo por  meio de nosso relacionamento com Jesus Cristo. Por isso, em vez da razão controlando a vontade, como propõem os filósofos gregos com sua elevada fé na razão humana, a ética cristã valoriza a vida dirigida pelo Espírito. Fala de pessoas cheias do Espírito de Deus, isto é, guiadas e controladas por esse Espírito. Conseqüentemente, como exclama Thielicke, "a ética teológica ou é escatologia ou não é nada". 103 O vínculo com o Espírito Santo é o que confere à ética bíblica a capacidade de aplicação contínua ao longo da História. Ele permite que essa ética permaneça uma tradição viva a enfrentar os desafios da vida, apesar dos contextos mutáveis em que vivemos. A vida ética não enfoca a obediência rotineira a um conjunto de axiomas,  princípios ou leis estabelecidos em alguma época distante e que, portanto, talvez nem sirvam para orientar a vida prática de hoje. Em vez disso, a ética cristã visualiza uma vida orientada por uma pessoa viva, o Espírito Santo, que por meio das Escrituras fala à comunidade de fé de todas as gerações. Em todas as épocas, a vida ética emerge à medida que os fiéis procuram seguir o comando do Espírito, que os orienta a responder  aos desafios diante deles. Quando escutamos a voz do Espírito, que fala por meio das Escrituras, e nos apropriamos do poder divino por seu intermédio, recebemos a graça de que necessitamos para viver como o povo de Deus no contexto contemporâneo. Fundamentada no Deus trino e uno e enfocada no Cristo vivo  presente entre o povo de Deus por meio do Espírito Santo, a ética cristã decorre do objetivo de Deus para a criação que caracteriza o apogeu da narrativa bíblica. Como já observado, o objetivo é nada menos que o estabelecimento de uma comunidade no  plano mais elevado, isto é, um povo redimido no seio de uma criação renovada e que desfruta da comunhão com o Deus trino e uno.  A direção da vida ética.

58

O objetivo escatológico do programa divino no mundo leva-nos ao tema bíblico do Reino de Deus, que os autores das Escrituras apresentam como esperança futura e realidade presente.104 O Reino refere-se, em última análise, à consumação escatológica da História na comunidade eterna, em que a vontade de Deus é plenamente realizada em toda a criação. Todavia, mesmo no presente o poder do futuro permanece sempre ativo. Em conseqüência, o Reino está presente quando a vontade - o desígnio, o objetivo, o  propósito - de Deus se realiza em situações concretas da vida. Onde quer que surja uma comunidade em nosso mundo decaído, Deus vem para reinar. Acima de tudo, porém, os  propósitos de Deus se cumprem quando entregamos nossa vida a Cristo, e assim o Espírito nos põe em comunhão com Deus, com os outros e com a criação divina. O conceito bíblico de comunidade confere à ética cristã sua direção específica. A vida ética implica viver cada momento avidamente, antecipando e diligentemente  promovendo a comunhão reconciliada que Deus quer para nós e para toda a criação. Essa vida emerge à medida que permitimos que a intenção de Deus molde nosso estilo de vida aqui e agora. Ser o povo de Deus no presente envolve "encarnar" o princípio divino de vida no âmbito de nossos relacionamentos. Com esse fim, continuamente  perguntamos: "Qual a melhor forma de fomentar o objetivo de Deus para a criação nesta circunstância? Como seria o presente se ele refletisse o propósito de Deus, isto é, a criação de uma verdadeira comunidade? O que precisa acontecer para que a situação atual se conforme com o ideal divino?". A visão escatológica dos propósitos de Deus para a criação nos proporciona o contexto  para entender a Igreja como comunidade ética. A Igreja funciona dessa maneira como formadora de identidade moral. Como já observamos, não construímos nossa identidade  pessoal (ou personalidade) como indivíduos isolados, mas por meio da participação em comunidades de referência. Ser cristão envolve a participação numa comunidade em  particular, a comunhão daqueles que buscam sua identidade fundamental na narrativa  bíblica da providência de Deus em Jesus. A vida ética, por sua vez, decorre dessa identidade pessoal específica, juntamente com uma visão única que por seu intermédio o Espírito Santo confere a nós, membros da comunidade dos que crêem.

59

A Igreja também funciona como comunidade ética, uma vez que ela se torna o veículo  por meio do qual aprendemos a viver segundo o modelo divino de vida tal como revelado por Jesus. 106 Talvez os fatos que mais contribuem para nossa formação girem em torno de nossa convivência como adoradores. 107 Quando nos reunimos para a celebração de atos simbólicos no culto (incluindo-se o batismo e a ceia do Senhor), bem como em reuniões de oração e leitura bíblica, lembramo-nos de quem realmente somos. Ao mesmo tempo, por meio desses atos convidamos o Espírito Santo a moldar-nos para nos transformar naquele tipo especial de pessoa que Deus já nos constituiu por meio de Cristo, e pedimos ao mesmo Espírito que nos guie e nos dê forças para a tarefa de viver  como esse tipo de pessoa no contexto contemporâneo. 108 Por meio do cumprimento de sua incumbência de edificar, a Igreja igualmente serve de veículo pelo qual aprendemos a viver. Essa incumbência inclui as múltiplas maneiras de instruirmos uns aos outros nos caminhos do Senhor. Abrange também o que podemos chamar "disciplina da igreja". Em situações extremas, essa disciplina pode tomar a forma de excomunhão de um membro imoral impenitente (1Co 5.1-5). É mais comum,  porém, que envolva simplesmente o ato de caminharmos juntos como o povo da aliança. A cada passo dessa jornada, encorajamos - e até exortamos - uns aos outros, considerando-nos mutuamente responsáveis como companheiros de peregrinação a caminho da gloriosa comunhão que compartilharemos na eterna comunidade de Deus. Essa referência ao nosso objetivo final sugere outra dimensão da concepção cristã de Igreja. Devemos ser desde agora a comunidade escatológica de Cristo. De fato, essa é a direção para a qual aponta toda a ética cristã - e não qualquer outro ideal decorrente da natureza humana.109 A intenção de Deus em nossa convivência como discípulos de Jesus é criar no presente, na medida do possível, a futura plenitude do Reino de Deus, formando uma comunidade reunida em torno do Senhor, que pelo seu Espírito vive em nosso meio. Dentro da comunidade escatológica reunida por ele, o Espírito inaugura o  pacífico Reino de Deus, que é o futuro de toda a criação. O compromisso fundamental de permitir que o Espírito nos transforme no povo escatológico de Deus cria o perfil de nossa vida em conjunto e, por isso, o ideal ético. A firme convicção de que Deus atuou, atua e atuará para realizar a intenção divina deve levar-nos a viver de tal maneira que apressemos a consumação do programa de Deus.

60

Para apressar o "dia de Deus", conforme a expressão de Pedro (2Pe 3.12), temos não apenas de viver uma vida santa (v. 11), mas principalmente encarnar em todos os nossos relacionamentos o caráter de Deus, que é amor. Esse ideal inclui formar uma verdadeira comunidade em nossa vida conjunta. Como conhecedores do gracioso perdão de Deus, que desfrutam a reconciliação efetuada por  Cristo, somos levados a perdoar uns aos outros (v., e.g., Cl 3.13) e a nos reconciliarmos mutuamente. De modo semelhante, como quem foi tocado por Cristo, buscamos ser um  povo cujos relacionamentos estão imbuídos do poder de cura de nosso Senhor. Desse modo, a Igreja ergue-se como uma flagrante contradição com a alienação e a mesquinhez predominantes no mundo. O ideal da Igreja como contradição ética neste mundo conduz a uma terceira dimensão de nossa tarefa. O chamado cristão não termina nos limites da Igreja, mas inclui também uma missão ética para o mundo. Fundamental para nossa incumbência de ser o  povo de Deus no mundo é a tarefa de proclamar a intenção de Deus para a criação em geral e para a humanidade em particular e de exortar a sociedade humana que nos cerca a corresponder de modo apropriado à reivindicação de soberania por parte de Cristo.  Nossa presença como comunidade de fé reunida no contexto mais amplo constitui a realização parcial dessa tarefa. Vinculada à função de exortar, temos a postura crítica, sempre implícita e muitas vezes expressa em palavras, em relação a todas as dimensões da interação social humana que não sirvam ou contrariem ao objetivo de Deus de estabelecer uma verdadeira comunidade. Mas não nos limitamos a mostrar as deficiências ou a denunciar a presença do mal na sociedade. Ao contrário, procuramos ser o que Robert Webber e Rodney Clapp chamam "comunidade diacrítica", um povo que oferece um modelo alternativo à medida que, na vida comunitária, acenamos para a comunidade futura que virá como dádiva escatológica de Deus. Agindo assim, a Igreja torna-se um "sacramento" no mundo, ou seja, aquilo a que Philip LeMasters se refere como uma" 'subcultura' da 'sacramentalidade' que persegue e encarna as implicações do evangelho para a interação humana".112 Mas nossa missão no mundo exige também um passo adicional.

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF