FTSA - Teologia Sistemática I - Introdução e Teontologia - Unid 1 - 16

September 1, 2017 | Author: David Godoy | Category: Divinity (Academic Discipline), Faith, Experiment, Revelation, God
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FTSA - Teologia Sistemática I - Introdução e Teontologia...

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Teologia Sistemática I

(Introdução e Teontologia)

Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida

Outubro/ 2015 Professor/Autor: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida Coordenadoria de Ensino a Distância: Gedeon J. Lidório Jr Projeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. Teixeira Revisão: Éder Wilton Gustavo Felix Calado Impressão:

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200

SUMÁRIO UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO GERAL.....................................................................05 1. Teologia Sistemática ou Dogmática Cristã 2- Para que serve a Teologia? UNIDADE 2 – EXPERIÊNCIA, FÉ E TEOLOGIA....................................................15 1- A Teologia e seu objeto 2- A experiência e a Teologia UNIDADE 3 – REVELAÇÃO, INSPIRAÇÃO E ILUMINAÇÃO............................27 1- Revelação 2- Inspiração 3- Iluminação UNIDADE 4 – DÚVIDA, REFLEXÃO, CRÍTICA E AUTOCRÍTICA...................39 1- A dúvida aplicada à busca pelo conhecimento 2- A reflexão crítica aplicada à busca pelo conhecimento 3- A autocrítica aplicada à busca pelo conhecimento UNIDADE 5 – CAMINHOS DA TEOLOGIA CRISTÃ............................................51 1- Teologia Patrística 2- Teologia Medieval 3- Teologia Moderna UNIDADE 6 – O PARADIGMA MODERNO 1: ILUMINISMO............................63 1- Teoria do paradigma 2- O Iluminismo UNIDADE 7 – O PARADIGMA MODERNO 2: CRISE TEOLÓGICA.................75 1- A crise na teologia revelada 2- O questionamento da pós-modernidade 3- Efeitos sobre a Teologia Sistemática UNIDADE 8 – TEOLOGIA BÍBLICA.........................................................................85 1- Definição e metodologia 2- Fundamentos e conhecimento prévio UNIDADE 9 – O CONHECIMENTO DE DEUS......................................................97 1- Transcndência e existência 2- Conhecimento natural 3- Conhecimento Revelado

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UNIDADE 10 – DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO - PATRIARCAS..............107 1- Deus como Elohim 2- Deus como EL UNIDADE 11 – DEUS NO ANTIGO TESTAMERNTO - TRADIÇÃO MOSAICA.....................................................................................................................119 1- Deus como Yahweh (Javé) 2- Deus da aliança e da Lei UNIDADE 12 – DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO - LIGA TRIBAL E MONARQUIA..............................................................................................................131 1- Deus no período da liga tribal. 2- Deus no período da monarquia UNIDADE 13 – DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO - EXÍLIO E PÓS-EXÍLIO..143 1- Deus como Elohim 2- Deus como EL UNIDADE 14 – DEUS NO NOVO TESTAMENTO...............................................157 1- Deus como Elohim 2- Deus como EL UNIDADE 15 – A TRINDADE..................................................................................169 1- Deus como Elohim 2- Deus como EL UNIDADE 16 – OS ATRIBUTOS DE DEUS...........................................................183 1- Deus como Elohim 2- Deus como EL

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Introdução e Teontologia

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 1 INTRODUÇÃO GERAL

Introdução A Teologia é uma tarefa que pertence a todos os que creem. Ela é uma expressão natural da fé e deve ser permeada pela alegria de quem descobre e percorre o caminho do conhecimento. Seja pela organização e estruturação formal do conhecimento, seja pela simples prática dos ensinos doutrinários bíblicos, a finalidade do estudo é a própria vida, seu crescimento e maturidade, rumo à plenitude da dignidade humana, vivida em comunidade e em sociedade, na promoção da justiça e do bem.

Objetivos da unidade 1. Criar um ambiente preparatório para o estudo da teologia, em particular, da teologia conhecida como Sistemática ou Dogmática; 2. Estimular a postura de abertura, curiosidade e disposição bem humorada para o estudo desse ramo da teologia.

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Algo que ficou marcado em minha formação como estudante de teologia foi a abertura de uma disciplina de Teologia de Missão, ministrada pelo professor Charles van Engen, quando ele propôs que fazer teologia deveria ser algo divertido. Aquela abordagem fez toda a diferença para a forma como passei a encarar a tarefa de estudar, refletir, propor e dialogar sobre teologia. É impressionante a aproximação que muitas pessoas que conheço, na igreja e na academia, fazem do discurso teológico. Muitos incorporam uma postura intransigente, de donos da verdade, de representantes da fala final de Deus sobre a terra, de defensores da sã doutrina e guardiões da Palavra. Essa postura, no mínimo, carece de um olhar atento ao passado. Agindo assim, a igreja cristã promoveu as Cruzadas, a Inquisição, o apoio ao nazismo e tantas outras ações de menor repercussão que levaram pessoas a morte, tortura, castigo físico, vergonha pública, perseguição, traumas, etc. Talvez, ao observarmos a nossa própria postura, não nos reconheçamos nesse processo, mas somos, muitas vezes patrocinadores de inquisições sem fogueiras, parafraseando o título do livro de João Dias de Araújo1. Toda vez que assumimos uma postura de intolerância, no sentido de não estarmos abertos a, ao menos, ouvir e dialogar, ainda que venhamos a discordar, caminhamos para esses extremos. O pior é que a maioria daqueles que assumem essa postura possuem pouco conhecimento, ou estudo pessoal aprofundado, sobre a maioria dos temas e assuntos em pauta. Há ainda a outra via, que não é movida pelo desconhecimento, mas sim pelo interesse no controle e poder sobre alguma circunstância, ambiente, grupo, espaço ou pelo medo de perder esse controle. A ideia da diversão, no entanto, não está em oposição à reverência. Alguém poderia pensar que teologia é coisa séria, porque estaríamos falando das coisas de Deus. Logo vêm, então, a nossa mente textos bíblicos que atestariam a necessidade de reverência e de um tratamento sisudo sobre os assuntos divinos. Mais que isso, todo o peso da tradição a que estamos acostumados na igreja grita em nossos ouvidos nos movendo no sentido oposto caso tentemos usar uma abordagem 1 ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem fogueiras. A história sombria da Igreja Presbiteriana do Brasil. 3 ed. São Paulo: Fonte, 2010.

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mais solta. Minha esperança é que, ao longo das disciplinas de teologia sistemática, essa percepção possa ser revertida em busca de um bem maior ou de um estudo mais produtivo e enriquecedor. Sem entrarmos em qualquer discussão ou aprofundamento maior no momento, o que quero propor, é que entendamos a perspectiva da diversão como, por exemplo, a mesma postura que uma criança assume ao receber um brinquedo novo. Sua curiosidade, atenção, interesse são profundos e sérios, em seu universo, mas a finalidade é o prazer, a boa sensação de estar descobrindo algo que lhe encanta e preenche a alma. O convite que faço, então, é para que mergulhemos nesse universo com interesse e curiosidade, abertos ao conhecimento, dispostos a ouvir e dialogar, e dispostos a nos divertir nessa empreitada cheia de mistérios.

1. Teologia Sistemática ou Dogmática Cristã Essa disciplina, e as outras que seguirão tratam da Teologia Sistemática. Ela é apenas uma das áreas de conhecimento da Teologia, que, como campo do saber, é dividida em áreas por razões pedagógicas e de tratamento de seus conteúdos como qualquer outra ciência. Na FTSA, além da Sistemática, temos as áreas de Bíblia, Análise da Realidade e Teologia Prática. Cada uma dessas áreas possui disciplinas específicas sendo a Sistemática responsável por condensar a elaboração das principais doutrinas cristãs. A adjetivação “sistemática” se refere à tentativa de organizar em sistemas as ideias e os conceitos doutrinários da fé cristã. Carl Braaten explica: A dogmática é uma das disciplinas tradicionais da teologia cristã. Sua tarefa especial é a interpretação crítica das doutrinas da fé da Igreja à luz de nosso conhecimento a respeito das origens do cristianismo e do desafio representado pela situação contemporânea [...] Nos meios pietistas, a teologia dogmática era vista com grande suspeita, como uma espécie de carcaça intelectualista de uma ortodoxia morta, oposta à fé calorosa e pessoal do verdadeiro cristianismo bíblico. Não é de admirar que o termo “dogmática” tenha sido amplamente substituído por “teologia sistemática” ou “teologia construtiva” [...] Os teólogos dogmáticos não são filósofos da religião autônomos que criam seu próprio sistema de ideias. São, ao contrário,

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intérpretes da corrente viva das tradições de fé da Igreja expressas em dogmas e doutrinas. Os teólogos dogmáticos trabalham dentro do contexto da igreja em prol de sua missão no mundo [...] A transição da palavra “dogmática” para termos mais neutros foi acelerada por uma constante secularização da teologia e sua transformação em estudo científico da religião (1990, p. 29).

Podemos pensar também que, de certa forma, as expressões “sistemática” e “dogmática” estão assim relacionadas entre si: a primeira é entendida como o caminho metodológico de organização do pensamento dos conteúdos da segunda. Embora o conceito inicial de dogma na história, nas palavras de Braaten, “evoca um ensinamento coercitivo de uma Igreja autoritária, uma estática e estéril afirmação da verdade congelada nos manuais da dogmática eclesiástica” (1990, p. 63), hoje ele possui uma perspectiva diferente para a teologia: Os protestantes muitas vezes perceberam, equivocadamente, apenas a conotação de autoritarismo eclesiástico na noção de dogma. De qualquer modo, o Concílio Vaticano II e os principais teólogos católicos romanos hoje ensinam que o dogma é um testemunho da revelação, um sinal da recepção da revelação por parte da Igreja, revelação essa cuja verdade é constante, mas cuja formulação está sujeita a desenvolvimento posterior. O que é permanente é a verdade, porém a expressão da verdade é historicamente condicionada e aberta a mudanças. Por isso, uma afirmação dogmática aponta para além de si mesma, para o mistério da autocomunicação de Deus em Jesus Cristo. O dogma precisa fazer uso de conceitos finitos para referirse ao que é inerentemente infinito e incompreensível. O que importa é que o conteúdo e o sentido do dogma precisam ser distinguidos das formas de expressão linguísticas e históricas que a dogmática utiliza em determinado tempo, mas não devem ser delas separados (BRAATEN, 1990, p. 64).

Em outras palavras, a ideia do dogma defendida aqui não é a de uma afirmação que os experts, sacerdotes, líderes ou teólogos “descobriram” estudando a revelação divina e que os membros das igrejas, os crentes em geral, devem cumprir e seguir sem qualquer argumentação. O dogma, mesmo sendo o entendimento da revelação

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divina, principalmente expresso nas Escrituras Sagradas, é visto como sendo o resultado de uma formulação finita e contextual que contém, de forma imprecisa, a revelação. Por isso, ele deve sempre ser visitado, ao longo do tempo, e avaliado para a sua confirmação ou reformulação diante do novo momento contextual que se apresente. Ao estudarmos a história da igreja, dos seus concílios e de sua teologia, percebemos que isso sempre ocorreu. Compreensões das doutrinas, mesmo no tempo bíblico, já foram alvo de discussão e reformulação. Apenas como exemplo, posso citar os casos do Concílio de Jerusalém (Atos 15) e do ensino de Apolo (Atos 18:24-19:7). Isso sem considerar toda a teologia do Antigo Testamento que foi reelaborada no Novo. A Teologia Sistemática ou Dogmática, portanto, é a responsável por organizar o estudo dos dogmas da Igreja. Ao invés de pensar-se em dogmas, que podem ter uma conotação mais pesada para o efeito do estudo e reflexão, preferiu-se pensar em doutrinas. A expressão doutrina representa o conceito de um corpo de ensino, que inclui tanto o ato quanto o conteúdo. Nixon associa o entendimento dessa expressão aos termos leqah no hebraico (Deuteronômio 32:2) e didaskalia (Mateus 15:9) e didaché (1 Coríntios 12:28) no grego. Para ele, a doutrina é o ensino de algo revelado e também a instrução aos participantes do povo de Deus, com especial atenção aos novos convertidos (1995, p. 446). Por razões pedagógicas, a Sistemática clássica tem construído o seu ensino em torno de sete grandes doutrinas: Deus, criação (mais concentrada no ser humano), Cristo, salvação, Espírito Santo, igreja, últimas coisas. Normalmente, está incluída na Sistemática uma introdução à teologia, que trata do seu objeto, métodos e história, que recebe o nome técnico de prolegômenos. Já as sete grandes doutrinas recebem, respectivamente, os seguintes nomes técnicos: 1. Teontologia ou Teologia Própria (teo = Deus + onto = ser ou existência); 2. Antropologia Teológica (antropo = ser humano, mas trata da criação como um todo); 3. Cristologia (cristo = ungido, se referindo ao Messias judaico que veio a ser Jesus);

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4. Soteriologia (soter = salvação ou salvador), 5. Pneumatologia (pneuma = vento, que acompanha a ideia hebraica de ruach, aplicada ao Espírito divino); 6. Eclesiologia (eklesia = assembleia, que transliterada forma a expressão igreja); 7. Escatologia (eschata ou eschaton = últimas coisas, referentes ao fim da história humana); Há quem defenda a ideia de que a Missão deveria compor uma oitava área da Sistemática. Outros já pensam que a missiologia deveria ser o fundamento ou pano de fundo para o estudo das sete grandes áreas. Enfim, é claro que existem outras doutrinas no seio da igreja e que fazem parte da vida cristã, mas até aqui, tem-se concordado com a elaboração sistematizada apenas destas, tentando-se incluir outros assuntos à medida que elas são estudadas. É de fundamental importância ter em mente que essas doutrinas, embora didaticamente separadas, não são conceitos estanques e independentes. Ao contrário, cada uma das doutrinas está intrinsecamente associada a outra, o que torna o seu estudo uma composição de ideias na tentativa de compreensão da revelação divina.

2- Para que serve a Teologia? Esta pergunta não se aplica somente à Teologia Sistemática, mas à Teologia em geral. O texto da carta do apóstolo Paulo a Timóteo pode nos indicar algum caminho de resposta: • 2 Timóteo 2:15 – “Procure apresentar-se a Deus aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar, que maneja corretamente a palavra da verdade”. • 2 Timóteo 3:16,17 – “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra”. Em sua orientação ao jovem pastor Timóteo, o experiente missionário e teólogo Paulo, indica a maneira ideal como ele deve se

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dispor ao ministério. Tomando o texto original em grego, teríamos a seguinte alternativa de tradução: “Faça todo o esforço necessário para estar disponível, diante de Deus, como alguém que foi aprovado em todos os testes, semelhante a um trabalhador hábil, que ninguém pode falar nada de mal do seu ofício, porque ele manuseia com precisão a palavra da verdade (as Escrituras)”. O que vemos no conselho de Paulo, e que não deveria ser exclusivo para os pastores, líderes e teólogos, e sim a todo cristão, é que é necessário um esforço constante para adquirir a habilidade de ler, entender e interpretar a principal fonte de conhecimento cristão que é a bíblia. Essa habilidade e conhecimento deve ser tal que, diante dos vários testes e confrontos diários, as pessoas percebam a nossa consistência e domínio dos assuntos. No outro texto, Paulo indica algumas aplicações práticas dessa habilidade e conhecimento das Escrituras. As doutrinas ali presentes servem para preparar os crentes (homens e mulheres de Deus) para a vida, de forma a serem totalmente capacitados e estarem plenamente prontos e fazerem coisas boas (boas-obras). Nesse sentido, as doutrinas, por serem inspiração divina, são de utilidade valiosa (ōfelimos) tanto para formar a base do ensino e aprendizado (didaskalia) como para, por meio dessa base, sermos capazes de refutar (elenchos) aquilo que é contrário a esse ensino. Além disso, as Escrituras têm um poder transformador da realidade, essa é a ideia por trás da expressão traduzida pela palavra “correção” (epanorthōsis). A correção aqui é propositiva, visando melhorar o contexto que nos cerca. Estrategicamente, esse processo pressupõe um ensino paulatino e construtivo (paideia), desde cedo na vida cristã, trazendo como principal conceito a ser transmitido a justiça, em seu sentido mais amplo, como proposto por Jesus no Sermão do Monte: “Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas”(Mateus 6:33). Para que não pensemos que essa é uma concepção nova, surgida da experiência da igreja, já no Antigo Testamento, vemos aquilo que passou a ser conhecido como Shemá2, a principal confissão de fé do povo de Israel. O texto de Deuteronômio 6:1-9 representa uma 2 Shemá ou shama é a primeira palavra hebraica da perícope que compreende os versículos 4 a 9 do livro de Deuteronômio. Sua tradução é “ouve” ou “ouça”.

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convocação geral ao povo de Israel para um envolvimento no ensino e incorporação da teologia à vida: Esta é a lei, isto é, os decretos e as ordenanças, que o Senhor, o seu Deus ordenou que eu lhes ensinasse, para que vocês os cumpram na terra para a qual estão indo para dela tomar posse. Desse modo vocês, seus filhos e seus netos temerão ao Senhor, o seu Deus, e obedecerão a todos os seus decretos e mandamentos, que eu lhes ordeno, todos os dias da sua vida, para que tenham vida longa. Ouça e obedeça, ó Israel! Assim tudo lhe irá bem e você será muito numeroso numa terra onde manam leite e mel, como lhe prometeu o Senhor, o Deus dos seus antepassados. Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças. Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração. Ensineas com persistência a seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar. Amarre-as como um sinal nos braços e prenda-as na testa. Escreva-as nos batentes das portas de sua casa e em seus portões.

Para melhor entendermos esse texto é necessário ler os capítulos anteriores do livro de Deuteronômio. O contexto apresentado é o do discurso de despedida de Moisés do povo, quando este, após a peregrinação de quarenta anos no deserto, está prestes a entrar na terra prometida. Ele lembra toda a história passada e conclui com a repetição da base da aliança do povo com Deus, que era a obediência à Lei. Embora alguém possa pensar que ele estaria limitando a Lei aos Dez Mandamentos, fica claro, nos primeiros versículos do capítulo 6, que está em consideração a sua totalidade: “decretos e ordenanças”. A Lei se constituiu na principal fonte teológica para o Antigo Testamento. Ela sintetizava as principais doutrinas, elaboradas na forma de ordenanças, compreendendo a amplitude da vida humana com leis religiosas, sociais, econômicas, políticas, de saúde, higiene, ecologia, etc., que poderiam ser conjugadas em pelo menos dois grande princípios, justiça e paz. A tradução, infelizmente, omitiu a palavra justiça que aparece no original hebraico no primeiro versículo (mishpat). Vale lembrar também, que é

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desse texto que Jesus apresenta uma das sínteses de toda a Lei3: “Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento” (Mateus 22:37). Os primeiros versículos trazem em sua intenção original, traduzindo diretamente do hebraico, a ideia de que a Lei, entendida pela composição sinonímica dos termos mandamento (mitsvah), ordenança (choq), e justiça (mishpat), é para ser ensinada, aprendida, treinada (lamad) e posta em prática (asah) na terra que eles estariam começando a habitar. O objetivo desse aprendizado e prática seria o sucesso do projeto de existência daquela nação, representado pelas expressões “prolongamento dos dias” (yarikhun yameika), “ir bem e ser feliz” (yatav) e “ser muito grande, numeroso” (ravah meod). A prosperidade daquele povo estava, portanto, intrinsecamente associada ao aprendizado, perpetuação e prática da Lei, sendo perpassada pelas gerações, expresso explicitamente pelos termos, filhos e netos. É com base nessa introdução que deve ser entendido o Shemá. Aquilo que ficou tão conhecido como uma declaração de amor a Deus acontece, concretamente, por meio da obediência à Lei, cumprindo seus mandamentos. Isso é o que representa amar a Deus. Aliás, Jesus se apropria do mesmo conceito hebraico ao afirmar: “Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama. Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me revelarei a ele” (João 14:21). Amar não é declarar o que se sente com meras palavras sem que elas possuam uma prova concreta desse amor. Amar é demonstrar o amor que se diz sentir pela obediência aos mandamentos. Essa é a lógica que o mesmo apóstolo João escreve em uma de suas cartas: “Se alguém tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em necessidade, não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em verdade” (1 João 3:17,18) e “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 João 4:20). Mas, o amor a Deus, sendo expresso pela obediência à Lei, deve ser ensinado e aprendido no dia a dia da vida. Esse processo A outra parte da síntese da Lei que Jesus apresenta está em Levítico 19:18: “Não procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor”.

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pedagógico, que perpassa as gerações, não é para estar restrito ao ambiente acadêmico. Fazer teologia, falar de Deus e de suas doutrinas, é algo que deve ser natural e passado de pai para filho: “Converse sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar”. A ainda que se adicionar atitudes mais intencionais como os registros visíveis para todos os que estiverem ao redor, uma forma de testemunho público, que também serve de memória e fonte de consulta: “Amarre-as como um sinal nos braços e prenda-as na testa. Escreva-as nos batentes das portas de sua casa e em seus portões”. Principalmente, no entanto, a teologia tem que estar no centro da nossa vontade, disposição e raciocínio, representado pelo coração: “Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração”.

Conclusão A Teologia é uma atividade humana que deve ser encarada de maneira natural e responsável, ainda que possa ser desenvolvida e motivada pelo prazer da descoberta. Seu alvo final é a vida, como um todo. A busca pelo entendimento da revelação, do projeto de Deus para o ser humano, pode se dar de maneira estruturada, sistematizada ou não, mas precisa ter a consciência de que é uma tarefa de todos os que creem, incluindo as pessoas e as instituições que compõem esse ambiente.

Referências BRAATEN, Carl E. Locus 1: Prolegômenos à dogmática crista. In: BRAATEN, Carl E. e JENSON, Robert W. (ed.). Dogmática Cristã. Vol.1. São Leopoldo: Sinodal, 1990. NIXON, R. E. Doutrina. In: DOUGLAS, J. D. (ed.). O novo dicionário da bíblia. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995.

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 2 EXPERIÊNCIA, FÉ E TEOLOGIA

Introdução A fé é o fenômeno que nos insere na busca pelo conhecimento. Como um discurso ou uma simples fala, a Teologia se descortina como expressão natural daqueles que experimentam a relação com Deus. No nascedouro da experiência surge a fé, que se faz prática na vida, e também a jornada da investigação racional, de tentativa de explicação da própria fé. Contando com a experiência, mas principalmente com a Palavra revelada, buscamos formular os ensinos que nos guiam pela vida, em concordância com a comunidade da fé.

Objetivos 1. Refletir sobre o fenômeno da fé e sua relação com a tarefa teológica; 2. Estabelecer a prioridade da Palavra como objeto principal da Teologia, considerando o valor da experiência como gerador e mantenedor da fé.

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A Teologia, no caso da cultura brasileira, pode ser comparada ao futebol ou à medicina. Ela é um daqueles campos que todo mundo conhece um pouco e, possivelmente, tem alguma opinião formada ou algum palpite para dar. No caso do futebol, por ser algo tão arraigado e com excesso de informação e exploração por parte das mídias, normalmente, sabemos quais são as razões dos sucessos e fracassos de um time, qual deve ser o melhor esquema de jogo, a melhor escalação, etc. Com a medicina acontece algo parecido. Em um passado não muito distante, nos acostumamos aos tratamentos e remédios caseiros, por isso, não nos constrangemos em receitar e indicar caminhos para a resolução de problemas de doenças e enfermidades. Em dias mais recentes, pela falta de rigor na fiscalização na prescrição e venda de medicamentos, também nos tornamos capazes de indicar aos outros aqueles remédios que funcionaram em nosso tratamento pessoal. Em ambos os casos os discursos e apropriações do conhecimento se dão sem nenhum estudo, pesquisa ou formação específica. Quando há algum estudo, via de regra, é superficial, inconsistente e sem qualquer orientação. No caso do futebol, podemos afirmar que as consequências dessa participação opinativa generalizada não causam danos às pessoas. Já no caso da medicina popular, as consequências podem vir a ser nocivas e catastróficas. O que ocorre com a Teologia é que a religiosidade é um fenômeno humano que inclui todas as pessoas. Até mesmo os ateus têm opinião sobre assuntos teológicos. No Brasil, mais ainda, por se tratar de um país colonizado sob a custódia da Igreja Romana, que institui o catolicismo como religião oficial durante a conquista portuguesa. É a partir dessa primeira perspectiva que iremos abordar o tema da Teologia, sua definição mais simples, suas fontes e sua expressão na vida das pessoas.

1- A Teologia e seu objeto Acredito que a maioria das pessoas, quando perguntadas, definiriam Teologia como o estudo de Deus. O impasse, no entanto, nessa definição, é que aquilo que seria o objeto do nosso estudo é, por definição, inalcançável. O que estou afirmando, com base no entendimento do que vem a ser qualquer tipo de ciência, é que ela pressupõe um objeto de estudo com o qual se estabelece uma relação de aproximação e, por assim dizer, de manipulação desse objeto.

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Quer dizer, em algumas ciências esse pressuposto é mais perceptível que em outras. Por exemplo, as ciências biológicas têm como objeto de estudo os seres vivos, sejam eles, as plantas, os animais ou os seres humanos. Elas constroem o seu conhecimento observando, analisando, propondo e testando suas teorias e práticas usando os próprios organismos vivos. As ciências exatas, ainda que tenham um forte componente teórico, possuem, como objeto de estudo, as relações, descritas em forma de equações e leis, que são estabelecidas no mundo material humano. A Matemática e a Física, por exemplo, embora mais teóricas, encontram na Engenharia a sua aplicação e aproximação mais palpável desse objeto que é o universo material. Ali é possível realizar testes e experimentos que comprovem teorias. As chamadas ciências humanas, também bastante teóricas e complexas, partem do fenômeno humano, como objeto, ao tentar estudá-lo em suas ações, comportamentos, relações, conhecimento, raciocínio, emoções, etc. Mesmo não sendo consideradas exatas, seu objeto de estudo, os seres humanos, ainda continua acessível e manipulável no sentido da observação e testes do conhecimento. A Teologia, no entanto, tendo, em tese, como objeto o ser de Deus não poderia ser considerada uma ciência por causa da falta de acesso ao seu objeto. Elaborando um pouco mais essa afirmação, o que ocorre é que Deus, em nossa própria definição, é algo que está além do alcance humano. Se o ser humano é material, finito e temporal, Deus é imaterial, infinito e eterno. Aqui recorremos aos conceitos de físico e metafísico, imanente e transcendente. O ser humano faz parte do mundo físico, das coisas criadas, esse em que vivemos, tocamos, sentimos, percebemos e podemos acessar como objetos de estudo. Deus, por outro lado, é metafísico, está além do físico, ou seja, inacessível a nós, que pertencemos e estamos limitados ao mundo físico. O ser humano é imanente, pertence a esse mundo e se faz representar pelas coisas dele. Deus é transcendente, pertence a uma realidade que não se faz representar pelas coisas desse mundo, ou pelo menos, apenas por aproximações produzidas pelo ser humano para o seu próprio entendimento. Ora, se a Teologia não é o estudo de Deus, tendo-o como objeto propriamente dito, o que é, então? Permanecendo ainda com o termo

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Teologia, composto por teo e logia ou logos, podemos pensar que é o discurso, fala ou palavra (logos) sobre Deus. Obviamente, portanto, a Teologia é uma tarefa humana. Somos nós quem falamos de Deus, sobre Deus ou a partir da perspectiva divina. Mas com base em que objeto fazemos isso? Qual é o objeto da Teologia? Consideremos, a princípio, a argumentação de Clodovis Boff, que gira em torno da fé. Boff define a fé como elemento central da teologia. No entanto, aquilo que ele apresenta como fé é um conceito bastante elaborado e complexo. Para ele, “o que desperta a teologia é a fé e o espírito crente. Mas antes de qualquer determinação particular (visão, experiência, prática), a fé, em sua raiz mais profunda, é irrupção do ‘ser novo’, da ‘vida nova’” (1999, p.28). Além disso, “podemos destacar na fé três componentes principais: a experiência, a inteligência e a prática. Assim, a fé tem algo de afetivo, de cognitivo e de normativo” (1999, p. 29). Tendo a fé essas três dimensões, abrangendo a integralidade da vida humana, para Boff, ela se torna “simultaneamente princípio, objeto e objetivo da teologia” (1999, p. 30). Mas, em que sentido o objeto da Teologia é a fé? Boff procura esclarecer:

A teologia é a fé mesma que se vertebra, a partir de dentro, em discurso racional. É o desdobramento teórico da fé. É o seu desabrochamento intelectual. Teologia é fides in statu scientae (a fé em estado de ciência). É o pathos que toma a forma do logos, a experiência que se faz razão. É a sabedoria no modo do saber. A teologia não acrescenta materialmente um pingo de luz à fé. Desenvolve apenas seu conteúdo material. Desdobra suas virtualidades latentes. É a ratio estendendo o intellectus: a razão explanando a intuição. Portanto, a fé é como a enteléquia da teologia, isto é, sua forma dinâmica interna. É o seu conatus, sua alma viva e inquieta. [...] Como se vê, a teologia como discurso se distingue do discurso da fé, tal a confissão. Dá-se entre as duas certa ruptura — uma ruptura no nível da forma, especificamente da linguagem. A teologia é mutável, diversificada, enquanto a fé tem um caráter absoluto, definitivo (1999, p. 31).

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A elaboração do conceito de fé, para Boff, recebe um alto grau de consideração levando-a, sem que seja explicitamente mencionado, ao nível da experiência mística. O crer em Deus envolve a integralidade da vida humana e, por causa da união mística do imanente com o transcendente, possui aspectos que estão além da investigação científica racional. Isso significa dizer que apenas alguns aspectos da fé tornamse objeto da Teologia, enquanto tarefa investigativa humana. Outros aspectos da fé, como o da crença, inserida no âmbito da experiência mística, não podem constituir-se em objeto, tornando-se inexplicáveis e inexauríveis. Por causa desse encaminhamento, Boff acaba tendo que recorrer a um desdobramento do objeto da Teologia, separando-o em objeto formal e material: 1. O objeto material define a coisa de que uma ciência trata. É como se alguém fizesse um “corte vertical” na espessura mesma do ente e delimitasse nele uma região, para dela em seguida se ocupar. Trata-se do “quê” de um saber (objetum quod). Sinônimos de “objeto material” são: matéria-prima, temática, assunto, questão. 2. O objeto formal indica o aspecto segundo o qual se trata o ente escolhido. É como se fizéssemos agora um “corte horizontal” no objeto material, a fim de captar-lhe um nível ou camada. Aqui temos não o “quê”, mas sim o “como” de um saber. Sinônimos de “objeto formal” são: aspecto, dimensão, faceta, lado, nível, razão específica (1999, p. 41).

Explorando ainda mais essa ideia, Boff define o objeto material como sendo o próprio “Deus e tudo o que se refere a ele, isto é, o mundo universo: a criação, a salvação e tudo o mais” (1999, p. 43). Já o objeto formal “é ‘Deus enquanto revelado’. Ora, o Deus revelado é o Deus bíblico, o Deus do Evangelho, o Deus salvador [...] Por outras palavras, trata-se sempre de Deus enquanto visto ‘à luz da fé’. Essa última diz a perspectiva própria da teologia” (1999, p. 44). Concluindo, Boff afirma: Portanto, a teologicidade de um discurso não consiste no seu objeto material, mas sim no seu objeto formal. É esse que

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determina se um discurso é ou não é teológico. Ser teólogo é assumir uma ótica particular. É ver tudo à luz de Deus. Em outras palavras: é ver em tudo o Divino. Deus e sua ação. Pode-se assim dizer que o teólogo usa os óculos da fé. Numa outra figura, fazer teologia é Cristo nos pegar pela mão e nos levar pelo mundo, fazendo-nos ver as cosias como ele as vê (1999, p. 45).

Ainda que a Teologia, como dito anteriormente, tenha que lidar com a tensão constante entre o imanente e o transcendente, o acessível e o não acessível, ao estabelecer como teológico o caminho que se dá pela experiência subjetiva da fé, expressa por Boff como sendo Cristo nos conduzindo pelo mundo, encontramos, novamente, um impasse com a falta de um objeto mais palpável e aberto à investigação coletiva. Na tentativa de vencer esse impasse, Boff indica uma alternativa mais concreta: Importa darmo-nos conta que, embora a fé constitua um só ato sintético, rico de múltiplas determinações, das quais destacamos três: a fé-experiência, a fé-palavra e a fé prática, é precisamente através da segunda dimensão, a da fé-palavra, que se nos transmite o conteúdo noético essencial da fé e, portanto, o princípio inteligível da teologia [...] Por isso, devemos dizer que, ultimamente, a fonte determinante da teologia é a Palavra de Deus, como prefere a tradição protestante, ou a Revelação, como costuma dizer a tradição católica (1999, pp. 110-111).

É nesse ponto que quero concentrar a nossa atenção. Mesmo sendo a fé composta por elementos que fogem ao inteligível, tangível e investigável, é na concretização da revelação divina, por meio de sua Palavra, que encontramos a fonte principal para o estudo teológico. Certamente, esse ponto crucial para a tradição protestante reformada, pode não ter a mesma consideração e tratamento por parte da tradição católica ou mesmo de alguns ramos mais recentes do evangelicalismo. Assim, é a Palavra de Deus, mais especificamente as Escrituras ou a Bíblia, que acaba por se constituir no principal objeto da Teologia. Tentando esclarecer um pouco mais essa afirmação e presente argumentação, consideremos a discussão em torno da fé-experiência e o seu uso na Teologia.

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2- A experiência e a Teologia São raríssimos os casos de pessoas que tenham chegado à fé por meio da investigação científica do texto bíblico ou de outras literaturas, feita individualmente, de modo independente. A grande maioria das pessoas passam a crer ou, na linguagem popular, se convertem, por meio de uma experiência de fé. Ainda que para se chegar a essa experiência tenha havido algum tipo de argumentação lógica, via pregações, conversas, folhetos, mensagens, etc., ela possuía uma abordagem mais existencial e emotiva do que científica, no rigor do termo. Mais que isso, a partir do momento em que se instaura a fé, por meio de uma experiência, que podemos chamar de mística, imediatamente já estaremos elaborando uma teologia, no sentido de produzimos falas e discursos sobre Deus. Todas as pessoas, então, são teólogas, porque falam algo sobre Deus. Mas, que tipo de teologia é essa? Essa teologia é o resultado da tentativa de entendimento e explicação da experiência, a si mesmas e às outras pessoas. Ela é baseada na experiência, quer seja do primeiro evento, quer seja de eventos subsequentes que se dão, principalmente, na participação em momentos de culto, louvor, oração, etc. De imediato, essa experiência deve, ou deveria, tornar-se concreta na vida da pessoa, assumindo uma forma prática na transformação do caráter, nas ações, comportamentos e relacionamentos. Talvez, apenas após algum tempo experimentando e praticando a fé, surja o interesse por uma investigação mais profunda, que inclua o estudo de cunho científico sobre essa fé. Em suma, vemos aqui o tripé da fé proposta no tópico anterior: experiência, prática e inteligência. Com base nessa breve argumentação, poderíamos até pensar em três teologias ou três discursos teológicos. O primeiro discurso é aquele que procura falar e tentar explicar a experiência da fé. O segundo, é o discurso feito não necessariamente com palavras, mas com ações, tornando prático aquilo que se diz crer. O terceiro é o resultado do uso do raciocínio e lógica buscando construir um fundamento amplo e coletivo. Olhando para as três teologias, o que deveríamos perceber é que os discursos crescem em complexidade do primeiro para o terceiro tipo. Em outras palavras, ao tentarmos construir um discurso, quando

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partimos da experiência, dificilmente teremos uma plataforma de diálogo comum, uma vez que a experiência é subjetiva, ou seja, pertence ao sujeito, ao indivíduo que passa por ela. Estamos lidando aqui com a esfera do testemunho, que possui sua importância e utilidade para a fé, mas que contribui pouco para a elaboração doutrinária. Estamos adentrando também em um terreno delicado no que diz respeito às tradições e denominações cristãs. As tradições pentecostais e suas derivações dão um tratamento diferente à experiência comparadas às tradições mais antigas, históricas ou reformadas. O surgimento do pentecostalismo se dá fortemente centrado na experiência mística, produzindo um discurso teológico mais fluido no que se refere à construção das estruturas doutrinárias. Já as tradições reformadas, centralizam o seu discurso mais na argumentação lógica baseada no estudo das Escrituras, com o auxílio do método científico, tendo supremacia sobre qualquer experiência. Exploremos um pouco mais essa diferenciação. Por exemplo, suponhamos que alguém diga que viu, ouviu ou sentiu algo, da parte de Deus, e que aquilo tem um desdobramento ou consequência para os outros ao seu redor. Se esse fato ocorre em um ambiente pentecostal, uma vez que a experiência é tida como fundamental para o discurso teológico, a tendência é que as pessoas deem crédito, sem a necessidade de discussões racionais elaboradas, e acatem o que foi dito. No entanto, qualquer nova experiência tende a ser avaliada tendo como referência outras experiências passadas já que também existe um discurso teológico anterior, embora, não necessariamente estruturado, escrito, ou doutrinariamente sistematizado. Juan Sepúlveda, um teólogo pentecostal chileno, esclarece um pouco essa perspectiva a partir do seu próprio contexto, mas que se aplica igualmente ao caso brasileiro: Em síntese, no pentecostalismo chileno a centralidade da experiência sobre a doutrina será muito mais marcante do que no pentecostalismo de origem americana. É exatamente essa centralidade da experiência religiosa que abriu um campo extremamente propício para a inserção da experiência pentecostal na cultura popular chilena. À medida que a oferta é de um encontro intenso com Deus, comunicada

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mais com a linguagem do corpo e dos sentimentos do que com a razão, o pentecostalismo abre um novo espaço para que os setores populares se expressem religiosamente. [...] Considerando o que já foi dito, não surpreende que, entre as pessoas que atuam no âmbito da teologia acadêmica ou outros observadores das chamadas igrejas históricas, seja um lugar-comum a afirmação de que o pentecostalismo chileno “não tem teologia” [...] Todavia, essa objeção parece apontar para algo mais profundo. O pentecostalismo, como expressão religiosa, tem seu fundamento mais na experiência (subjetiva) de Deus do que na revelação (objetiva) divina. [...] Naturalmente, uma teologia que parte da experiência terá uma linguagem e uma metodologia próprias, diferentes da clássica teologia conceptual [...] Como a experiência não pode ser reduzida a conceitos, uma teologia que nasce da experiência deve, necessariamente, ser uma teologia narrativa, como o é, em grande dose, a teologia bíblica. A partir dessa perspectiva se pode afirmar, com toda certeza, que o pentecostalismo chileno tem sua teologia. Essa teologia, porém, tem de ser buscada nos testemunhos (1996, pp. 66-68).

O que ocorre com a teologia, tomando como referência o caso do pentecostalismo, é que tendo a experiência mística como principal conteúdo, o estudo e a formulação doutrinária ficam limitados. Ainda que alguém argumente que as experiências possuam fundamento bíblico, o que é observado e analisado não é o texto bíblico em si, mas sim as próprias experiências, para efeitos de produção teológica. As experiências chegam a um grau de relevância tal que podem vir a influenciar a exegese e hermenêutica das Escrituras, fazendo com que o resultado da leitura possa acabar sendo forçadamente adaptado às experiências. Outra objeção que podemos levantar é a dificuldade de estabelecermos parâmetros que possam verificar, ou não, a validade das experiências. Como podemos afirmar se uma experiência testemunhada é aceitável para a construção teológica? Uma opção seria a verificação da validade por meio de outra experiência, semelhante àquilo que o apóstolo Paulo propõe em 1 Coríntios 14:26-27. Outra opção seria a validação por parte de um líder mais experiente, que

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assumiria essa responsabilidade. No entanto, o que vemos é que a validação acaba sendo uma questão coletiva de concordância sobre alguma experiência e não uma avaliação lógica e referendada por algo que esteja além da experiência, como por exemplo a Palavra. Assim funciona a fé. Ela é sempre uma questão coletiva. Qualquer expressão individual da fé só faz sentido dentro de um grupo ou comunidade. Caso a expressão de fé seja algo totalmente individual, ela será tratada como loucura ou excentricidade. O problema, no entanto, é que a coletividade que atesta a contribuição da experiência para a teologia não é ampla o suficiente para representar todas as tradições cristãs. As experiências que ocorrem em um grupo específico não conseguem ser transmitidas como fundamentação teológica para outros grupos. Novamente, fica faltando algo que esteja além da experiência e seja válido e aceito por todos para a construção das doutrinas. É exatamente nesse ponto de tensão que queremos inserir o estudo da teologia. Sem desvalorizar a importância da experiência, porém, reconhecendo a sua limitação intrínseca como plataforma inicial para a reflexão e discussão, propomos estudar a teologia a partir das Escrituras, explorando o aspecto da fé inteligência, racional, cognitiva. Ao invés de validarmos as Escrituras com base nas nossas experiências, propomos o processo inverso, ou seja, avaliarmos as nossas experiências com base no texto bíblico. Mas muito além disso, a teologia que queremos construir é a da busca pelos ensinos (doutrinas) revelados por Deus em sua Palavra. São essas doutrinas que deverão ser a referência para a nossa vida, transformando a teologia em prática, e referendando a nossa experiência com a realidade divina.

Conclusão A fé é algo profundo e complexo na vida humana. Pode-se dizer que ela é anterior a própria teologia. No entanto, a experiência de fé é um mistério que apenas nos insere em um outro universo que é o do conhecimento do objeto último da mesma. Na experiência de fé somos alcançados por Deus, mas após esse evento desvenda-se um

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caminho de busca pelo conhecimento desse mesmo Deus. Uma vez que temos a Palavra revelada como algo concreto, é ela que se constituirá no principal objeto de nossa busca pelo conhecimento de Deus, acima mesmo da experiência mística. É na Palavra que encontramos o fundamento comum e de concordância entre todos aqueles que tiveram a experiência fé.

Referências BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1999. SEPÚLVEDA, Juan. Características teológicas de um pentecostalismo autóctone: o caso chileno. In: GUTIÉRREZ, Benjamin; CAMPOS, Leonildo S. Na força do Espírito. São Paulo: Pendão Real, 1996.

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Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 3 REVELAÇÃO, INSPIRAÇÃO E ILUMINAÇÃO

Introdução A maneira como entendemos a bíblia, um fenômeno divino-humano, que pressupõe um processo histórico pelo qual Deus se mostra ao ser humano, determina a nossa aproximação ao estudo teológico. Esse fenômeno, cercado pelo mistério divino, inclui a participação humana, mas principalmente a inter-relação entre a ação sobrenatural de Deus e a compreensão humana, em meio às suas limitações e contextos, registrada na experiência dos autores bíblicos.

Objetivos 1. Conhecer os conceitos de revelação, inspiração e iluminação aplicados ao fenômeno literário da bíblia; 2. Utilizar os conceitos de revelação, inspiração e iluminação na abordagem de construção do conhecimento teológico.

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O desafio que se insere nesse momento, considerando a tarefa teológica de estudo e estruturação das doutrinas cristãs, tendo como seu objeto fundamental a Palavra de Deus, é o de estabelecermos alguns caminhos de aproximação desse fenômeno literário. Antes de qualquer coisa, a Palavra de Deus, conforme estamos considerando, é o que se faz representar pela Bíblia Sagrada. Por sua vez, a bíblia é um livro ou uma coletânea de livros, por isso, um fenômeno literário. Como tal, exige uma aproximação específica que considere a sua formação, ou seja, escrita, edição, cópia, canonização, etc. Embora a Teologia Sistemática não aborde o assunto da formação da bíblia, alguns estudiosos procuram, a título de introdução, comentar sobre esse percurso, uma vez que constitui o principal objeto de estudo e fonte das doutrinas. Minha intenção, portanto, não é esgotar o assunto, nem tampouco tecer comentários detalhados sobre a formação da bíblia, na particularidade de cada livro, falando sobre datação, autoria, estilo, objetivo, variações, etc., e sim estabelecer um pano de fundo que nos auxilie na consideração de alguns pressupostos que podem interferir na opção metodológica que faremos na construção das propostas doutrinárias. A maneira como nos aproximamos da bíblia determina a maneira como fazemos teologia. O que está por trás dessa afirmação, às vezes de forma inconsciente, é como consideramos o fato de a bíblia ser a Palavra de Deus. No passado, alguns teólogos sugeriram a seguinte reflexão sobre a relação entre a bíblia e a Palavra de Deus: seria a bíblia a Palavra de Deus ou conteria a bíblia a Palavra de Deus? A diferença entre as duas opções está na perspectiva que podemos ter sobre o fenômeno literário. A primeira opção, que considera a bíblia como idêntica à Palavra de Deus, é defendida por aqueles que entendem que a Palavra de Deus está em cada letra do texto, na forma editorial que acabou chegando até nós, considerando que todo o processo histórico, desde a tradição oral, passando pela escrita, até a seleção do cânon, faz parte de um mesmo e grande milagre de revelação divina. A segunda opção entende que a Palavra de Deus não está na particularidade de cada letra e sim na mensagem que o texto carrega, sendo a percepção da revelação apreendida pelo exercício da exegese e da hermenêutica, e atestada pela comunidade de fé. Os que defendem a primeira opção

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também tendem a defender aquilo que se convencionou chamar de inerrância e infalibilidade do texto, baseado em sua literalidade. Os que defendem a segunda opção tendem a falar sobre inerrância e infalibilidade não do texto, mas da mensagem divina, encontrada na análise do texto e sua interpretação. Em torno dessa discussão, estamos, na realidade, considerando alguns conceitos, de forma implícita, que dizem respeito ao fenômeno literário da bíblia. Esses conceitos são: revelação, inspiração e iluminação. O motivo para tratarmos desses conceitos nessa disciplina se dá por duas razões principais. A primeira, já mencionada, é por causa da consideração da bíblia como o objeto principal de estudo da Teologia. A segunda razão é que a metodologia que usaremos para a construção das doutrinas não será, prioritariamente, a sistematização argumentativa clássica e sim a teologia bíblica, que será melhor detalhada mais à frente na disciplina.

1- Revelação Revelar significa tirar o véu de sobre algo, descobrir, trazer à luz aquilo que estava oculto. Deus é aquele que está oculto ao ser humano em sua condição de criador, por isso, argumenta Wolfhart Pannenberg, Conhecimento humano de Deus, porém, pode ser conhecimento verdadeiro, correspondente à realidade de Deus, somente sob a condição de ter sua origem na própria divindade. Deus somente pode ser conhecido quando ele próprio se dá a conhecer. A sublimidade da realidade de Deus torna-se inatingível para o homem se ela não se dá a conhecer por si mesma [...] Se o conhecimento humano de Deus fosse concebido de tal modo que o ser humano arrancasse, por suas próprias forças, da divindade o mistério da sua natureza, ter-se ia realizado de antemão um equívoco em relação à divindade do referido deus. Um conhecimento nesses termos em todo caso não seria conhecimento de Deus, porque seu próprio conceito estaria em contradição com a idéia de Deus. Por isso conhecimento de Deus jamais é possível a não ser por meio de revelação (2009, p. 263).

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Para conhecermos a Deus, então, ele tem que se fazer conhecido. A isso chamamos revelação. Mas como Deus se revela? A Teologia clássica tem proposto três vias para a revelação divina: a natureza ou as coisas criadas, as Escrituras ou a sua Palavra, e Jesus Cristo ou a sua encarnação. Quanto à revelação que há na natureza, sobre Deus, Paul Tillich oferece a seguinte explicação: Embora nada se tornasse portador da revelação por suas qualidades extraordinárias, estas qualidades determinam a direção na qual uma coisa ou evento exprime nossa preocupação última e nossa relação com o mistério do ser. Não há diferença entre uma pedra e uma pessoa em sua potencialidade de se tornar portadores de revelação, entrando em uma constelação revelatória. Mas há uma grande diferença entre elas com respeito ao significado e verdade das revelações midiatizadas através delas. Uma pedra representa um número bastante limitado de qualidades que são capazes de apontar para o fundamento do ser e sentido. Uma pessoa representa as qualidades centrais e, por implicação todas as qualidades que podem apontar ao mistério da existência. Há, contudo, qualidades em uma pedra para as quais a pessoa não é explicitamente representante (o poder de suportar, resistir, etc.). Tais qualidades podem tornar uma pedra um elemento auxiliar na revelação através de uma pessoa, por exemplo, a metáfora “rocha das idades” aplicada a Deus (1987, pp. 104-105).

Como qualquer via revelatória, ela é limitada na caracterização do ser divino, sendo insuficiente para abarcá-lo, mesmo considerando que o próprio ser humano faz parte dessa via. Por isso, ficamos na carência de outros meios para o conhecimento de Deus, pelo menos naquilo que ele deseja mostrar. A via mais cabal, então, é a sua encarnação, ou seja, mesmo na limitação da forma humana, esvaziada da própria divindade, é na pessoa de Jesus que ocorre o ápice da revelação. Jesus é Deus falando e vivendo entre os humanos, comunicando de maneira plena aquilo que quer revelar. A teologia reformada afirma que a revelação divina cessou em Jesus Cristo. Tillich esclarece que: O cristianismo reivindica estar baseado na revelação em Jesus, o Cristo, como sendo revelação final. Esta reivindicação

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estabelece a igreja cristã. E, onde esta reivindicação estiver ausente, o cristianismo deixou de existir [...] O cristianismo muitas vezes afirmou, e certamente deveria afirmar sempre, que há uma revelação contínua na história da igreja. Neste sentido, a revelação final não é última. Só se última significa a última revelação genuína, revelação final pode ser interpretada como a última revelação. Não pode haver revelação na história da igreja, cujo ponto de referência não seja Jesus como o Cristo. Se outro ponto de referência for buscado e aceito, a igreja cristã terá deixado seu fundamento. Mas revelação final significa mais do que última revelação genuína. Significa a revelação decisiva, plena, inexcedível, aquela que é o critério de todas as outras. Esta é a reivindicação cristã. E esta é a base da teologia cristã (1987, p. 116).

Antes de prosseguirmos, julgo apropriado tecer um comentário sobre o conceito de revelação que estamos desenvolvendo. O que a teologia reformada defende é que a revelação de Deus aos seres humanos, naquilo que concerne à história da salvação ou mesmo à comunicação de quem ele é, esgotou-se em Jesus Cristo. Dessa forma, não há mais nada a ser revelado, nada que venha a ser uma novidade, quer seja sobre Deus quer seja sobre o ser humano e sua salvação. No entanto, o uso da expressão revelação continua sendo usado no cotidiano da igreja. Alguém pode dizer, Deus me revelou tal coisa ou Deus está nos revelando aquela outra coisa como igreja. Nesses casos, o que ocorre é o uso da expressão aplicada a uma situação contextual específica e que se torna um desvendar de algo até então desconhecido. Não se considera, no entanto, que haja a possibilidade de que esse tipo de revelação venha a trazer algo novo, adicional, àquilo que já ocorreu no passado e que teve o seu ápice em Jesus. Trata-se de algo particular, pessoal ou coletivo, mas que não altera a revelação divina para a humanidade. Retomando o raciocínio anterior, constatamos que apenas alguns privilegiados tiveram a possibilidade de ver o Deus encarnado, ou seja, o acesso a essa via revelatória foi encerrado na morte de Jesus. O que ocorre, entretanto, é que outro caminho de revelação já estava disponível na história humana. Esse caminho permanece até hoje na humanidade, que é a Palavra de Deus. Aliás, é pela Palavra

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que conhecemos, indiretamente, a revelação final, que é Jesus. É pelo registro nas Escrituras que tomamos conhecimento da encarnação, somando esse conteúdo à principal via que temos acesso na atualidade. Até aqui o que fizemos foi apenas destrinchar um pouco o conceito de revelação. O que ainda não elaboramos, contudo, foi o entendimento de como, de modo prático, se deu a revelação por meio das Escrituras. É importante explorarmos um pouco esse assunto, porque ele será determinante para as possibilidades de entendimento de alguns recursos que nos auxiliam na construção da teologia bíblica das doutrinas. Recorremos, então, a uma tentativa de explicação de Wilfrid Harrington: É claro que, se devemos ser fiéis aos dados da Bíblia, não devemos compreender a “revelação” apenas no sentido de afirmações de verdade abstrata, puramente especulativa; devemos compreendêla no sentido que inclina todo o campo da automanifestação de Deus, devemos abarcar tanto ações como palavras — pois Deus não é essência abstrata, mas uma pessoa viva. E o mediador ou intérprete dessa revelação não é apenas o “profeta” que “recebeu” uma visão ou oráculo, e, em seguida, o transmitiu a outros; ele é, antes de tudo, um homem que teve um encontro com Deus, um homem que chegou a conhecer o Salvador e Criador, que experimentou o amor criador e salvífico de Deus. Restringir a revelação estritamente à assim chamada “profecia” acarretaria o risco de negligenciar todo o contexto existencial da ação, da história e da intervenção pessoal que cerca a Palavra falada de Deus como Palavra viva e vivida. Fracassar em reconhecer a revelação nos eventos da história sagrada como na iluminação concedida aos profetas significaria um perigoso empobrecimento da extrema riqueza daquele encontro que Deus oferece aos homens na Bíblia (1985, p. 36).

Destaco, a seguir, algumas ideias interessantes na argumentação de Harrington. Para ele, a revelação não é um processo de apresentação de “afirmações de verdade abstrata”. Deus não se automanifestou ditando conceitos, proposições, ou fazendo construções verbais, na forma de frases abstratas e genéricas, pela fala ou escrita de seus

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intermediários, aqui identificados como “profetas”4. Antes, revelouse por meio de situações concretas da vida desses “profetas”, em suas experiências pessoais, ações e palavras, inseridas em situações históricas e existenciais concretas. Deus não se revelou, ditando aquilo que deveria ser escrito, ipsis litteris, pelos autores do texto sagrado. O processo que ocorreu foi a transmissão das experiências com Deus, primeiro na forma oral e depois na forma escrita, narradas por aqueles que as vivenciaram, a partir de seus próprios contextos, limitados em seus conhecimentos históricos e científicos. É por causa disso que para tomarmos conhecimento amplo da revelação necessitamos estudar a história, a geografia, a arqueologia, as línguas originais, os fenômenos literários, etc. de tudo o que circunscreve a vida daqueles que transmitiram suas experiências a nós.

2- Inspiração Aprofundando um pouco mais o estudo da revelação, desenvolveremos o conceito de inspiração, que está diretamente atrelado ao conceito de revelação. Podemos dizer que a revelação se deu por meio da inspiração divina dada aos “profetas”. É estranho notar, contudo, que a expressão “inspirada por Deus” (theopneustos) aparece apenas uma vez na bíblia e que, curiosamente, foi ela que mais marcou a maneira como costumamos defender o processo de registro escrito da Palavra de Deus: “Toda a Escritura é inspirada por Deus [...]” (2 Timóteo 3:16). Complementando esta ideia, temos o texto da carta de Pedro que trata da profecia em geral, mas que, por conseguinte, tem sido aplicado à inspiração na produção das Escrituras: “Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1:20-21). O texto de Pedro está em consonância com a compreensão veterotestamentária da “inspiração” profética, por isso, não recorre a uma nova expressão 4 O uso do termo profeta entre aspas é para caracterizar aqueles que serviram como intermediários da Palavra divina na formação do texto. O termo não está restringindo essa ação à conhecida função do profeta, oficial ou independente, assim identificado nas Escrituras. Todos os que participaram na formação do texto sagrado são, assim, considerados “profetas”.

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(theopneustos), e sim a uma fórmula mais antiga (pheromenoi) que é a de ser “impelido”, “guiado”, “conduzido”, “movido” a falar (elalesan), pelo Espírito de Deus (pneumatos agiou), ou seja, significando ser inspirado. Mesmo havendo uma distância entre a fala e a escrita profética, os dois atos são considerados equivalentes, no sentido de reproduzirem a Palavra de Deus, uma vez que, em certo sentido, a escrita é o registro da fala. Olhando para as Escrituras, no entanto, não temos apenas o registro das falas proféticas, propriamente ditas, dos profetas de ofício. O que temos é o registro das muitas falas, por meio de narrativas de experiências históricas do povo de Deus, dos vários outros profetas no sentido amplo. Assim como a nação de Israel era simbolicamente um reino de sacerdotes, também acabou se constituindo um reino de profetas ao transmitirem a Palavra de Deus. Mas o desafio que temos é o de definir o que entendemos por inspiração ou por alguém ser impelido pelo Espírito na representação do registro da Palavra de Deus. Especificamente no caso dos profetas de ofício, podemos vir a entender que esse processo se dava por meio de uma experiência de êxtase, visão ou audição, de uma manifestação divina, ou o que chamamos de teofania. Um exemplo clássico é o de Moisés, considerado o primeiro grande profeta do povo de Israel (Êxodo 3:1-4:17; 33:711). Outros exemplos são os de Samuel, (1 Samuel 3:1-4), Isaías (Isaías 6:1-13) e Ezequiel (Ezequiel 1:1ss). A maioria, no entanto, tem a sua contribuição profética associada à fórmula “veio a palavra de Javé (Senhor), dizendo”, sem qualquer descrição ou explicação de como se dava esse processo. Tirando os possíveis casos de teofanias, imaginamos que se tratava de uma convicção pessoal e íntima, que levava o profeta a se manifestar como recipiente de uma mensagem divina. Na maioria dos casos não aparece qualquer alusão à manifestação do Espírito de Deus, porém, esse entendimento parece ter sido construído, no passado, e estar implícito na compreensão teológica da tradição do Antigo Testamento. O texto de Números 11:16-30 aponta para essa construção, da associação do Espírito de Deus como promotor da fala profética. Algo semelhante é narrado em 1 Samuel 10:9-13, quando trata da autenticação da escolha de Saul como rei de Israel. Em suma, o que se entendia é que aqueles que falavam em nome de Deus, eram conduzidos intimamente pelo próprio Deus e o povo

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aceitava suas palavras, quer seja pelo comportamento coerente ao conteúdo das mensagens, quer seja pelo critério estabelecido na Lei, registrado em Deuteronômio 13:1-5, de não falar algo contraditório à própria Lei. Mas como mencionei anteriormente, não estamos tratando exclusivamente do caso clássico da profecia, e sim do entendimento da inspiração como fonte de produção das Escrituras como Palavra de Deus. Não foram os profetas de ofício quem escreveram a maioria dos textos e sim outros autores dos quais não temos informações precisas. Mas o povo, por meio da vivência e registro de suas experiências, passou a considerar alguns textos como sagrados e como expressões válidas do ensino de Deus para a vida. Aqueles que transmitiram pela tradição oral, e depois escreveram, são considerados, portanto, profetas, porque falam a Palavra de Deus, impelidos pelo mesmo Espírito que esteve com os profetas clássicos. Não me parece que haja aqui a exigência de qualquer manifestação sobrenatural ou teofania. O processo indica ser complexo, mas ainda assim dirigido por Deus. Harrington apresenta a seguinte argumentação: Devemos estar conscientes de que a maior parte dos livros do Antigo Testamento é obra de muitas mãos, obra que se desenvolveu através de um longo período, talvez séculos. Todos aqueles que colaboraram na produção de cada livro, quer tenham escrito a substância dele quer tenham simplesmente acrescentado alguns detalhes, foram inspirados. A maioria deles não tinha consciência de estar sendo movidos por Deus; daqui em diante, nós também consideraremos apena o lado humano da Bíblia e a consideraremos como um empreendimento coletivo, a obra de todo um povo que depositou na Bíblia, através dos séculos, os tesouros de sua tradição. Ela é a literatura de um povo, entrelaçada na história desse povo (1985, p. 13).

Algumas pessoas podem pensar no processo de inspiração como algo quase similar ao da psicografia ou de uma possessão especial, mas o que Harrington propõe é que o registro se deu de forma inconsciente, por parte dos autores, de que estavam escrevendo a Palavra de Deus. A inspiração aqui é entendida como uma condução silenciosa do Espírito de Deus, ao longo de séculos, por meio de autores e editores, em meio aos contextos, histórias e desafios da vida do povo de Israel na relação com seu Deus.

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3- Iluminação Outro conceito atrelado à revelação é o de iluminação. Na verdade, todas são expressões que tentam dar conta da complexidade da revelação divina. Rapidamente, digamos que a revelação divina se dá por meio da inspiração de pessoas para produzirem e registrarem a sua Palavra à humanidade, mas ela não termina aí, pois, Deus também nos auxilia no entendimento da sua mensagem. A esse entendimento, tido também como sendo patrocinado por seu Espírito, chamamos iluminação. A iluminação também pode ser entendida como a inspiração para o entendimento, fechando o circuito da revelação. Alguns textos bíblicos elaboram essa ideia: João 16:12-15; Romanos 16:25-27; Efésios 1:17-18; 1 Coríntios 2:6-16. Mas assim como a inspiração não está sendo considerada como algo imediato, dado como um pacote pronto, por um processo de êxtase, o mesmo ocorre com a iluminação. O entendimento da Palavra, mesmo tendo o auxílio do Espírito, exige esforço e aplicação no estudo e conhecimento, usando as nossas faculdades mentais. A iluminação para o entendimento não ocorre sem o conhecimento, por exemplo, das Escrituras como um todo. Aliás, esse alerta está presente na própria bíblia. O profeta Oséias, por exemplo, chama a atenção do povo de Israel dizendo “Meu povo foi destruído por falta de conhecimento. Uma vez que vocês rejeitaram o conhecimento, eu também os rejeito como meus sacerdotes; uma vez que vocês ignoraram a lei do seu Deus, eu também ignorarei seus filhos” (Oséias 4:6), e convida: “Conheçamos o Senhor; esforcemo-nos por conhecêlo” (Oséias 6:3). Aqui vemos a necessidade de conhecimento para a vida e de esforço para que ele seja alcançado. Jesus, debatendo com os teólogos de sua época, afirma: “Vocês estão enganados porque não conhecem as Escrituras nem o poder de Deus!” (Mateus 22:29). Lucas, ao elogiar os crentes de Beréia, por sua postura no tratamento daquilo que era ensinado, indica um caminho para todos: “Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses, pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as Escrituras, para

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ver se tudo era assim mesmo” (Atos 17:11). O apóstolo Paulo é aquele que mais deu ênfase no uso da mente e da razão na busca do que ele chama de “pleno conhecimento” (epignosis) dos mistérios de Deus. Falando dos judeus, aqueles que foram responsáveis pela maior parte da escrita e transmissão da revelação presente no Antigo Testamento, ele critica a possibilidade de haver uma alta consideração por Deus, mas sem o necessário entendimento: “Pois posso testemunhar que eles têm zelo por Deus, mas o seu zelo não se baseia no conhecimento” (Romanos 10:2). Até mesmo em atos que podemos considerar menos racionais, como a oração e o louvor, ele nos adverte: “Então, que farei? Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento [noi = mente]; cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento” (1 Coríntios 14:15). Sua argumentação mais longa procura elaborar como se dá esse processo de iluminação para o conhecimento da revelação divina que ocorre em uma íntima relação entre o ser humano e sua mente, e o Espírito de Deus e sua mente, formando em nós o que ele chama de mente de Cristo (1 Coríntios 2:6-16). Esse é o desafio que está diante de nós.

Conclusão É muito importante refletirmos sobre a maneira como compreendemos a revelação divina. Se por um lado a revelação é algo dado, apresentada de forma extática e estática, não haverá espaço para a construções e discussões, muito embora tenhamos que reconhecer que na história cristã não tenhamos chegado a um entendimento único e universal sobre o seu conteúdo. Se por outro lado, a revelação se dá em meio a participação humana, tanto na sua produção, quanto interpretação, nos vemos diante da grande tarefa de apresentá-la com uso de nossos recursos mentais, ao que denominamos como Teologia.

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Referências HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia: a revelação, a promessa, a realização. São Paulo: Paulinas, 1985. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática. Volume 1. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2009. TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 2 ed. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo: Sinodal, 1987.

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 4 DÚVIDA, REFLEXÃO, CRÍTICA E AUTOCRÍTICA

Introdução A investigação teológica é uma atividade que pode ser potencializada quando encarada como uma busca curiosa pelo conhecimento daquele que é o objeto último da nossa fé: Deus. A dúvida sincera, que busca conhecê-lo, ou ainda, conhecer a nós mesmos e a realidade que atesta a nossa experiência de existência, funciona como uma mola propulsora, nos levando à reflexão produtiva, além de nos permitir a constante avaliação dos caminhos que percorremos.

Objetivos 1. Propor o mecanismo da dúvida como propulsor da investigação teológica; 2. Estimular a reflexão, a crítica e a autocrítica na construção do pensamento teológico.

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A curiosidade e a pergunta são marcas do ser humano desde muito cedo. Antes de conseguir falar, ainda engatinhando, as crianças, movidas por um cérebro ávido pela descoberta do mundo, se aventuram a testar e provar tudo o que está a seu redor. Logo depois surgem os porquês e os questionamentos que, muitas vezes, testam a paciência dos adultos. Grande parte dessa curiosidade que impulsiona o conhecimento vai sendo deixada para trás à medida que crescemos, provavelmente freada pelos limites e censuras impostas pelos ambientes, estruturas e instituições que passam a governar a vida e as relações humanas. Os ambientes teológicos, principalmente os eclesiásticos, são, em sua maioria, cerceadores da dúvida. Os questionamentos são, de modo geral, vistos como afrontas aos dogmas e à fé. É claro que existem aí elementos de controle do discurso religioso e de manutenção do poder, não explícitos, exercidos por parte da liderança, nessa ação de restrição. Alguns chegam a aplicar o subterfúgio do uso impróprio de textos bíblicos como autenticadores dos mecanismos de tolhimento da dúvida (ex. Romanos 4:19-20; 14:23; Hebreus 6:11-12; Tiago 1:6-8). Estes textos procuram contrastar a atitude de fé, no sentido da crença e confiança, com a atitude de falta de fé, ou seja, da falta de confiança. Os textos, no entanto, não estão tratando da dúvida como expressão natural da curiosidade e propulsora da busca pelo conhecimento. Ainda assim, esta dúvida é tratada como falta de fé, pelo menos na teologia expressa por algumas instituições e grupos e, por isso, passa a ser repelida. Podemos afirmar que o fazer teológico necessita da dúvida para realizar a sua tarefa. Sendo a Teologia uma ciência investigativa e de constante construção, considerando o fato de ser, sobretudo, humana e finita, mas que busca a compreensão daquilo que é infinito, é na curiosidade que ela se desenvolve. Às vezes, a dúvida, não necessariamente, conduz a descoberta de algo novo. Ela pode apenas confirmar o que já se sabe diante de alguma nova situação ou contexto, ou ainda expressar aquilo que já se conhece de maneira mais adequada àquele contexto.

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1- A dúvida aplicada à busca pelo conhecimento Minha intenção agora é explorar um pouco mais a ideia de que é na dúvida curiosa que podemos encontrar um fator motivador para a investigação teológica. Reforço a ideia de que este tipo de dúvida é diferente da falta de fé. Pelo contrário, é porque cremos em Deus que tentamos, curiosamente, compreendê-lo. Vale a pena trazer à mente que a fé é vivenciada diante de um paradoxo constante, como elaborado no evangelho de Marcos: “Se podes?, disse Jesus. Tudo é possível àquele que crê. Imediatamente o pai do menino exclamou: Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade!” (Marcos 9:2324). Na língua original as expressões creio (pisteuo) e incredulidade (apistia) possuem a mesma raiz, oriunda da expressão fé (pistis). Por isso, uma possibilidade de tradução seria: “tenho fé, mas ajuda-me na minha falta de fé”. De modo semelhante, o apóstolo Paulo também aborda esse paradoxo da fé usando a experiência de Abraão. Em Romanos 4, ele elabora o tema da fé e da justificação, ou salvação, e diz que Abraão “contra toda esperança, em esperança creu” (v. 18). Ao explicar o paradoxo na experiência de Abraão, Paulo usa como referência o texto de Gênesis 17:17: “Abraão prostrou-se com o rosto em terra; riu-se e disse a si mesmo: Poderá um homem de cem anos de idade gerar um filho? Poderá Sara dar à luz aos noventa anos?”. A expressão rir-se (tsachaq), em hebraico, carrega a ideia de divertir-se, brincar, zombar, ou seja, caracterizando, no relato, um riso de dúvida. Comprovando a tese de que o autor de Gênesis está construindo a noção bíblica do paradoxo da fé, logo no capítulo 18, ele a expande usando quase que a mesma construção de frases anterior: “Onde está Sara, sua mulher?”, perguntaram. “Ali na tenda”, respondeu ele. Então disse o Senhor: “Voltarei a você na primavera, e Sara, sua mulher, terá um filho”. Sara escutava à entrada da tenda, atrás dele. Abraão e Sara já eram velhos, de idade bem avançada, e Sara já tinha passado da idade de ter filhos. Por isso riu consigo mesma, quando pensou: “Depois de já estar velha e meu senhor já idoso, ainda terei esse prazer?” Mas o Senhor disse a Abraão: “Por que Sara riu e disse: ‘Poderei

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realmente dar à luz, agora que sou idosa?’ Existe alguma coisa impossível para o Senhor? Na primavera voltarei a você, e Sara terá um filho”. Sara teve medo, e por isso mentiu: “Eu não ri”. Mas ele disse: “Não negue, você riu” (Gênesis 18:9-15).

Paulo, entretanto, opta por não aprofundar a discussão sobre a presença da dúvida proposta pelo autor de Gênesis e prefere destacar apenas o papel da fé ou da esperança que vence a desesperança. Ainda assim, olhando para as nossas próprias experiências de fé, sabemos que vivemos o dilema de crer que não existe “coisa impossível para o Senhor”, mas devido às circunstâncias e à desesperança, lutamos internamente afirmando a nossa confiança, olhando para o passado, e caminhando na reafirmação dessa fé. Se as coisas são realmente assim, não está em jogo aqui a fé em Deus e sim a busca pelo conhecimento gerada por uma dúvida curiosa que quer entender. Mais uma vez, recorro ao personagem Abraão para reforçar esse raciocínio. Curiosamente, o texto que quero usar como referência para a próxima argumentação encontra-se no mesmo capítulo 18 do livro de Gênesis, dos versículos 16 a 33. O relato da história apresentada possui uma construção bem interessante, parecendo querer ressaltar a importância da dúvida curiosa na construção da elaboração do pensamento teológico. O cenário amplo é a história da destruição de Sodoma e Gomorra. A partir desse ponto, usarei a tradução livre do texto e aplicarei paráfrases na tentativa de uma interpretação que atenda ao raciocínio sobre o tema. Toda a história narrada nesse episódio é introduzida por uma pergunta retórica de Deus: “Deixarei encoberto de Abraão o que pretendo fazer, considerando que ele é quem terá como responsabilidade levar adiante o meu plano de abençoar toda a humanidade?” (v. 17-19). Antecipando a motivação do diálogo seguinte, e parte da conclusão aplicativa do texto, o que esta pergunta traz como mensagem indicativa é que Deus, intencionalmente, se revela àqueles que são o seu povo, dada a responsabilidade que eles têm em fazê-lo conhecido no mundo. A expressão deixar encoberto tem relação direta com o conceito de revelação, que seria remover aquilo que cobre algo. Deus, portanto, quer deixar-se conhecer a Abraão, e a nós, seu povo, para que possamos comunicá-lo aos outros povos que não o conhecem. O que ocorre, contudo, é que essa revelação não é passiva e estática. Ela é construída na relação e no diálogo, permeada pela investigação

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e dúvida. Isso é o que observamos na sequência do texto de Gênesis 18. Abraão faz, então, uma pergunta a Deus: “Por acaso, em seu juízo, o Senhor condena o justo com o injusto, indistintamente?” (v. 23). Perceba que a pergunta carrega uma dúvida teológica importante, que trata do juízo e da misericórdia divina. Perceba também que a dúvida possui um grau de elaboração e reflexão mais profundo, demonstrado nos versos seguintes. A forma como o texto é construído traz algumas nuances interessantes com o colorido típico da literatura hebraica. O texto não explicita, mas podemos considerar que a dúvida de Abraão carrega elementos do seu contexto pessoal, da mesma maneira como ocorre conosco. Nossa jornada teológica é sempre influenciada pelo contexto e desafios que nos cercam. No caso de Abraão, ele estava preocupado com seu quase filho, o seu sobrinho Ló, que morava em Sodoma com a família. Assim, aprofundando sua dúvida teológica sobre o juízo e misericórdia, ele arrisca o uso de uma metodologia de hipótese estatística. Não nos importa a precisão dos números, mas apenas por conjectura, há quem indique que a população da cidade girava em torno de 600 a 1200 pessoas5, portanto, arredondemos para 1000. Tentando medir a misericórdia de Deus, Abraão sugere a proporção de 5% de justos na cidade querendo saber se seria suficiente para fazer com que o peso do amor se sobressaísse ao peso da ira sobre os injustos (v. 22). Mais que isso, ele também se antecipa e apresenta sua preconcepção teológica: “Deus jamais trata o justo como o injusto. Ele jamais os julga igualmente (v. 25)”. A resposta de Deus está em consonância com a teoria de Abraão (v. 26), mas o problema que se apresenta, no entanto, é que Abraão necessita de confirmação e maior conhecimento dessa doutrina, quando aplicada a situações concretas da vida. Ele quer verificar como se dá a teoria na prática. A maneira como o diálogo entre Abraão e Deus é apresentado é bastante interessante. Depois dessa pergunta introdutória, que alguns poderiam pensar que seria suficiente para sanar a dúvida, Abraão apresenta ainda mais cinco perguntas (v. 28-32), de mesmo teor, variando apenas na proporção estatística entre justos e injustos que porventura poderiam habitar a cidade, chegando ao limite de 1%. http://www.biblearchaeology.org/post/2008/04/The-Discovery-of-the-Sin-Cities-of-Sodom-andGomorrah.aspx.

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Agora, quero sugerir um caminho de interpretação sobre a razão do texto ser apresentado a nós dessa maneira. Deus havia decidido julgar aquelas cidades: “as acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas e o seu pecado é tão grave que descerei para ver se o que eles têm feito corresponde ao que tenho ouvido. Se não, eu saberei” (v. 20-21). A história, então, parece ser construída em torno da preocupação de Abraão com seu sobrinho, tido por ele como justo. Sabendo que o pecado de Sodoma era grande e notório, Abraão tinha a expectativa de que não haveria chance de que a cidade escapasse da ira e condenação de Deus. Ao mesmo tempo, sua teologia considerava a possibilidade da aplicação da misericórdia e amor divinos. Sua dúvida, no entanto, sabendo que muitas catástrofes também atingem pessoas justas, era se Deus livraria Ló e sua família da possível condenação. Podemos questionar, por que, ao iniciar a sua argumentação teológica, Abraão não foi direto ao ponto e perguntou a Deus se ele livraria Ló, mesmo diante da supremacia do pecado? Por que foram necessárias seis perguntas? E mais, por que Abraão não terminou a sua série de perguntas com a proporção de quatro justos, o total de membros da família de Ló, considerando o próprio, a esposa e as duas filhas? A interpretação que sugiro é que o autor do texto quer nos ensinar exatamente a validade e importância da dúvida teológica. Se a nossa relação com Deus for estabelecida com base no medo e receio de aproximação, ela terá pouca intimidade e, portanto, pouca possibilidade de construção de um conhecimento mais profundo. Poderíamos assumir um posicionamento bastante comum, diante desse tipo de situação, que é o da rigidez teológica e afirmar: Deus é soberano, é justo, é juiz, não suporta o pecado e sabe o que é melhor para o ser humano. Partindo desse posicionamento, de certa forma, correto em todas as suas considerações, não haveria por que questionar a Deus sobre a sua soberana decisão de condenar as cidades de Sodoma e Gomorra, destruindo-as completamente. Mesmo se houve “justos” ali, poderíamos ainda apelar para uma conclusão semelhante à do salmista: “Todos se desviaram, igualmente se corromperam; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer” (Salmo 14:3; Romanos 3:10-18). No entanto, quando o nosso discurso teológico entra em conflito direto com a nossa vida particular, quando ele

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aperta os nossos calos pessoais, a nossa mente e coração passam por um processo de questionamento e dúvida natural, que pode e deve ser explorado no ambiente da fé e da relação com Deus. A dúvida de Abraão, conforme registrado no texto, mostra a nossa fragilidade, crise, receio e pressupostos teológicos. É muito claro o drama que ele enfrenta ao apresentar a sua dúvida. Ao mesmo tempo que ele é corajoso, porque a situação afeta a sua vida, paradoxalmente, ele tem medo por causa da compreensão de que Deus poderia vir a se chatear com a dúvida, como se aquele questionamento pudesse demonstrar falta de fé de sua parte. Ao introduzir as perguntas, ele se desculpa antecipadamente: “Sei que já fui muito ousado a ponto de falar ao Senhor, eu que não passo de pó e cinza” (v. 27); “Não te ires, Senhor, mas permite-me falar” (v. 30); “Agora que já fui tão ousado falando ao Senhor, pergunto” (v. 31); “Não te ires, Senhor, mas permite-me falar só mais uma vez” (v. 32). Embora da parte de Abraão haja receio, da parte de Deus todas as seis respostas são simples, diretas, sem alteração de humor, não demonstrando qualquer irritação pela dúvida e questionamento apresentados: “Se encontrar... não destruirei”; “Por amor... não destruirei”. A narrativa nos ensina que a dúvida teológica é lícita e própria, ela produz conhecimento e aprofundamento da relação com Deus. Abraão parece concluir que não apenas pode se aproximar de Deus com suas dúvidas e curiosidades, como também que o amor e a misericórdia de Deus são maiores que sua ira, afinal, ele é amor. Abraão não precisou chegar a quantidade de quatro, ainda que tenha sido necessário um longo processo de elaboração teológica. Em determinado momento, sua reflexão e o conhecimento obtido foram suficientes para saber que Deus pouparia a família de seu sobrinho. Sua dúvida, que motivou a investigação teológica, havia sido sanada.

2- A reflexão crítica aplicada à busca pelo conhecimento Se a dúvida curiosa é a mola propulsora da investigação teológica, a reflexão é o seu caminho. Imagino que a origem do termo reflexão venha primeiramente da Física, do fenômeno que ocorre com a luz ao se propagar no meio de origem após incidir sobre uma superfície. Explicando melhor, pensemos em um espelho. Quando estamos diante

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de um espelho, o nosso corpo, ou a luz emitida por ele, se propaga pelo ar, atinge a superfície do espelho e retorna para nós. Os nossos olhos, então, conseguem captar essa luz refletida fazendo com que possamos nos enxergar. Esse é um processo contínuo. Enquanto houver luz e estivermos diante do espelho haverá reflexão. Aplicando esse conceito da Física, de forma metafórica ao pensamento humano, a reflexão seria o processo de idas e vindas de uma ideia em nossa mente. Por conseguinte, a reflexão crítica é aquela que consegue emitir opiniões e atribuir valores àquilo que é pensado. Um dicionário informal define assim a reflexão crítica: Reflexão crítica é uma tomada de consciência; examinar ou analisar fundamentos e razões de alguma coisa. Refletir criticamente é a atitude de investigar e para isso é necessário conhecer aquilo que é investigado, sem nenhum tipo de preconceitos e pré-conceitos. Refletir criticamente também é posicionar-se a partir de um conjunto de informações conquistadas com a pesquisa. Alguns termos usados quando se fala em reflexão crítica é não julgar o livro pela capa; não julgar o fato ou objeto sem antes conhecer criteriosamente suas intenções, origem, autores, etc. Reflexão crítica é uma reflexão abrangente, questionadora e autônoma, é fazer com que um indivíduo vá além do que ele lê ou ouve, buscando diferentes perspectivas para analisar um mesmo fato. É o fato de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitálos sem antes havê-los investigado e compreendido como um todo (http://www.significados.com.br/reflexao-critica/).

Ressalto alguns pontos interessantes dessa definição: conhecer o que é investigado sem pré-conceito; posicionar-se a partir de um conjunto de informações conquistadas com a pesquisa; ser abrangente, questionadora e autônoma; ir além do que lê ou ouve; buscar diferentes perspectivas; não aceitar como óbvias e evidentes a existência cotidiana. A maioria dos discursos teológicos que conheço, vindos dos crentes comuns e também de alguns líderes e pastores, segue o

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percurso inverso do proposto pela reflexão crítica. Há muito discurso pronto, pré-concebido, sem a devida pesquisa e de segunda mão. Há muito pouco conhecimento e sobra de preguiça. Poucos são os que conhecem a fundo a própria bíblia, a principal fonte de revelação. Muitos são os que ignoram as línguas originais, as formas literárias, a história, a geografia, os contextos, mas têm a petulância de encerrarem discursos sem refletirem minimamente. A narrativa da experiência de Abraão é um exemplo de intencionalidade investigativa, porém, o apóstolo Paulo nos oferece um encaminhamento ainda mais interessante. A bíblia nos informa sobre o currículo de Paulo, de sua formação no judaísmo como alguém culto e como um teólogo bem preparado: “Fui instruído rigorosamente por Gamaliel na lei de nossos antepassados, sendo tão zeloso por Deus quanto qualquer de vocês hoje” (Atos 22:3); “fariseu, filho de fariseus” (Atos 23:6); “No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados” (Gálatas 1:14). Todo o seu conhecimento da Lei e do judaísmo, no entanto, teve que ser revisto à luz do encontro com o Cristo ressurreto no caminho para Damasco. Para isso, ele passou três anos nas regiões da Arábia (Gálatas 1: 17-18) e calcula-se que ainda mais uns dez anos6 no anonimato antes de iniciar seu ministério missionário. O resultado foi a produção de muitos textos e a primeira sistematização da teologia cristã. Por isso, quero tomar o seu livro mais teológico e denso, que é a carta aos Romanos, para basear a minha defesa sobre a importância da reflexão no estudo da teologia. Certamente Paulo também teve formação e conhecimento da cultura e filosofia grega, e ele parece usar a argumentação lógica e retórica na construção do texto de Romanos. No fundo, seu encaminhamento pode ser considerado didático e nos auxilia a prestar atenção no uso da reflexão. Paulo faz impressionantes setenta e quatro perguntas em sua carta7. Parece que ele tem a intenção de externar a dinâmica do seu próprio raciocínio, ou talvez antecipar os nossos Este período é estimado com base nas datas oferecidas pelo estudo de Werner Kümmel (1982, p. 326). 7 Romanos 2:3, 4, 21-23; 3:1, 3, 6, 7, 8, 9, 31; 4:1, 3, 9, 10; 6:1, 2, 3, 15, 16, 21; 7:1, 7, 13, 24; 8:24, 31, 32, 33, 34, 35, 9:14, 19, 20, 21, 22-24, 30, 32; 10:6, 7, 8, 14, 15, 18, 19; 11:1, 2, 4, 7, 11, 15, 34, 35; 13:3; 14:10. 6

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possíveis questionamentos, ou, pelo menos, estimular a nossa reflexão. Esse método serve como exemplo daquilo que deveríamos fazer natural e constantemente diante do estudo e conhecimento de Deus, que são as perguntas e a busca por mais aprofundamento.

3- A autocrítica conhecimento

aplicada

à

busca

pelo

Considero que a maior virtude de um teólogo, e por que não dizer do crente, seja a humildade. Aquele que acha que sabe, tende à soberba. Pior, aquele que pensa que sabe algo sobre Deus corre o risco de querer ser ou agir como ele. Como diz Paulo: Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos! Quem conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Quem primeiro lhe deu, para que ele o recompense? Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém (Romanos 11:33-36).

Paulo, que talvez tenha sido o maior teólogo bíblico, afirma que os juízos e os caminhos de Deus são impossíveis de serem explorados ou investigados (insondáveis e inescrutáveis). Outra emblemática narrativa bíblica é a do livro de Jó em que ele e seus amigos procuram entender e formular teologias sobre o que teria acontecido na sua vida. Depois do longo desenrolar de argumentações, de todo tipo, Deus, simplesmente, apresenta uma série de perguntas a Jó, que ficam sem resposta (Jó 38-41), das quais destaco apenas as que estão na introdução do trecho apontado: “Então o Senhor respondeu a Jó do meio da tempestade. Disse ele: Quem é esse que obscurece o meu conselho com palavras sem conhecimento? Prepare-se como simples homem; vou fazer-lhe perguntas, e você me responderá. Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Responda-me, se é que você sabe tanto” (Jó 38:1-4). Também o livro de Provérbios indica o caminho da sabedoria dizendo: “Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio entendimento [...] Não seja sábio aos seus próprios olhos; tema ao Senhor e evite o mal”

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(Provérbios 3:5,7). E, é claro, lembramos a célebre expressão “Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede graça aos humildes” (Tiago 4:6). O reconhecimento da nossa incapacidade de compreensão e entendimento nos propõe um caminho de humildade e de busca constante. Igualmente, essa postura deveria trazer aos palcos onde ocorrem os diálogos e discussões teológicas o respeito pelo outro e a abertura para ouvir, sabendo que todos estão na mesma condição e busca. Por isso é necessário que façamos uma autocrítica sobre o nosso nível de conhecimento, estudo e maturidade. A grande maioria dos cristãos possuem pouco conhecimento. Isso se deve em parte à falência da chamada Escola Bíblica ou Escola Dominical que durante muito tempo serviu como formação para os membros das igrejas desde a infância. Outro motivo, é a atual e forte ênfase na experiência, mística ou sensorial, em detrimento do raciocínio e da aplicação das doutrinas na vida prática. A concentração da vida religiosa nas atividades do culto reforça ainda mais esse quadro. Os momentos litúrgicos que priorizam as experiências sensoriais têm recebido mais destaque do que os momentos de ensino. Mesmo as mensagens têm tido um caráter mais apelativo às questões existenciais do que um foco na construção do conhecimento das doutrinas cristãs. As outras atividades, como as reuniões familiares, de grupos ou células, têm priorizado mais a comunhão e o reforço das mensagens dos cultos do que proposto algum currículo educacional às pessoas. O resultado disso é a falta de conhecimento generalizada e a superficialidade na fé. Precisamos ser honestos nesse processo de autocrítica e admitir que a maior parte do conhecimento teológico não se dá pela via da investigação e estudo profundo. Ela se dá pela repetição daquilo que se ouve em sermões, palestras, estudos, conferências, letras de cânticos, testemunhos e experiências de outros. Para reverter essa situação, é preciso humildade, dedicação, esforço e abertura para trilhar esse caminho desafiador de tentar conhecer a Deus.

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Referências KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. SIGNIFICADOS. “Reflexão crítica”. Disponível em: http://www. significados.com.br/reflexao-critica/). Acessado em 01 de agosto 2015.

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 5 CAMINHOS DA TEOLOGIA CRISTÃ

Introdução A teologia como elaboração de conhecimentos e de doutrinas da igreja não é algo pronto ou estático. Ao longo da história, podemos perceber as nuances e diferentes perspectivas, assumidas na construção do saber teológico, que foram influenciadas pelos contextos históricos enfrentados pela igreja. Resumidamente, os caminhos históricos podem ser representados pela Teologia Patrística, Medieval e Moderna.

Objetivos 1. Conhecer os diferentes caminhos históricos da Teologia Cristã; 2. Perceber a influência dos caminhos teológicos históricos na teologia atual.

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A busca pelo conhecimento de Deus e a consequente produção da teologia como discurso humano é uma jornada de todos os crentes, vista tanto a partir de uma perspectiva individual quanto comunitária. Até aqui desenvolvemos algumas ideias gerais sobre a razão de ser desse discurso e a importância da fé, que surge na experiência, mas que tem na Palavra de Deus o seu principal objeto de estudo. Esta Palavra revelada por inspiração divina e compreendida pela ação iluminadora do Espírito de Deus, nos incita à investigação movida pela dúvida curiosa de quem procura conhecer o seu objeto de fé último. Assim nasce a teologia, como uma expressão de reação àquilo que se conheceu e que intenciona ser compartilhada entre os que creem e comunicado aos que ainda não conhecem. No entanto, dado o volume de estudo e necessidade de uso de ferramentas de auxílio, bem como a preocupação da igreja institucionalizada na preparação de sua liderança, a teologia passou a ser estruturada de diversas formas ao longo da história. Outras motivações também contribuíram para a progressão da teologia que foi recebendo diferentes contornos e tratamentos de acordo com elas. Apenas como exercício de análise e investigação, na tentativa de entender as nossas origens e herança, apresentarei um panorama histórico e conceitual e, posteriormente, indicarei alguns pressupostos importantes para a tarefa teológica. Há que se considerar que a teologia nasce com os escritores bíblicos. Podemos até falar de teologias que surgem no Antigo Testamento e as que surgem na formação do Novo. Tendo a base do Antigo Testamento, que constitui a teologia do povo de Israel, e do Novo Testamento, que promove o aproveitamento da teologia do Antigo com uma releitura sob a ótica do cumprimento da promessa messiânica em Jesus Cristo de Nazaré, coube à igreja comunicar essa mensagem, em um primeiro momento, aos judeus e depois expandi-la aos outros povos. A comunicação aos judeus inicia-se sob a liderança dos apóstolos, a partir de Jerusalém, alcançando os que por ali passam e, timidamente, alcançando algumas regiões circunvizinhas utilizando a plataforma das sinagogas. Esse caminho é entendido como natural, uma vez que a intenção missionária de propagação da mensagem sobre Jesus encontrava uma ponte imediata com a teologia daquele povo na figura

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do Messias. É isso que observamos em alguns discursos registrados no livro de Atos com a explícita explicação do apóstolo Paulo: • Discurso de Pedro à multidão em Jerusalém: “Portanto, que todo Israel fique certo disto: Este Jesus, a quem vocês crucificaram, Deus o fez Senhor e Cristo” (Atos 2:36). • Discurso de Pedro no Sinédrio: “Este Jesus é a pedra que vocês, construtores, rejeitaram, e que se tornou a pedra angular” (Atos 4:11). • Discurso de Estevão no Sinédrio: “Qual dos profetas os seus antepassados não perseguiram? Eles mataram aqueles que prediziam a vinda do Justo, de quem agora vocês se tornaram traidores e assassinos” (Atos 7:52). • Paulo ensinando nas sinagogas: “Logo começou a pregar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus” (Atos 9:20); “De Perge prosseguiram até Antioquia da Pisídia. No sábado, entraram na sinagoga e se assentaram [...] Então Paulo e Barnabé lhes responderam corajosamente: ‘Era necessário anunciar primeiro a vocês a palavra de Deus; uma vez que a rejeitam e não se julgam dignos da vida eterna, agora nos voltamos para os gentios’” (Atos 13:14, 46). Como a mensagem sobre Jesus, entendido como o Messias de Israel, era algo ignorado pelos gentios, por não terem conhecimento da teologia e tradição do povo judeu, uma nova teologia passou a ser construída a partir da ideia de sua divindade e abrangência cósmica. Já nos escritos paulinos e joaninos, vemos essa construção teológica que será fundamental para o novo ambiente e contexto em que se desenvolverá a teologia cristã. Esse será o nosso foco, investigar aquilo que ocorreu na produção teológica da igreja logo após a passagem da primeira geração de cristãos composta dos discípulos, testemunhas oculares do ministério de Jesus, e, principalmente dos apóstolos. Os textos bíblicos são tidos como revelação e Palavra de Deus, mas cabe agora um olhar sobre a interpretação desses textos e sobre as argumentações elaboradas pela igreja em sua progressão histórica. Ao caminharmos pela história da teologia da igreja é fundamental que tenhamos a capacidade de tentar nos abstrair daquilo que conhecemos hoje e nos imaginar naqueles momentos e contextos em que foram formuladas as primeiras estruturas de pensamento. Isso

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porque nosso objetivo não é produzir julgamentos ou emitir opiniões conclusivas. Esse exercício tem como objetivo nos ajudar a perceber como os tempos e contextos são determinantes na produção da teologia e, assim, termos a possibilidade de fazer a devida autocrítica do nosso discurso e mantermos uma atitude humildade e abertura para o novo.

1- Teologia Patrística A patrística é considerada como o período dos “pais da igreja” ou “pais apostólicos”, que ocorreu na transmissão de liderança dos apóstolos de Jesus para a geração seguinte: O termo pais apostólicos é tradicionalmente usado para designar a coleção dos primeiros escritos cristãos existentes à parte do Novo Testamento. Estes documentos são a fonte primária de estudo do cristianismo primitivo, especialmente do período pós-apostólico (c. 70-135 d.C.). Eles provêm significantes e geralmente incomparáveis olhares e perspectivas sobre a vida dos cristãos e do movimento cristão durante um estágio transitório crítico em sua história. Esse era um tempo, por exemplo, quando os problemas não podiam mais ser solucionados procurando-se uma resposta autoritária de um apóstolo. Como consequência, a igreja teve que começar a lidar com as questões de fontes de autoridade e de tradição autoritária em um tempo em que novos desafios e pressões, tanto internas quanto externas, estavam confrontando os novos movimentos religiosos em crescentes condições de força (HOLMES, 1989, p. 1).

Holmes está se referindo, especificamente, a alguns escritos quando delimita o período de tempo até meados do segundo século (Clemente, Inácio, Policarpo, Barnabé, Hermas, Diogneto, Papias e Didaquê). Porém, de maneira geral, consideramos o período da patrística como durando até o início da Idade Média, no quinto ou sexto século. David Bosch faz um resumo das principais características da Teologia Patrística cuja a mais relevante talvez seja a grande influência da cultura greco-romana e da filosofia como via de expressão: Conceitos originalmente típicos do culto ao imperador, da área

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castrense, das religiões gregas de mistério, do teatro e da filosofia platônica tornaram-se, gradualmente, comuns no culto e na doutrina cristã [...] Os muitos paralelos entre religiões pagãs e o cristianismo constituíam, num sentido real, uma grande ajuda à igreja em sua missão e defesa da fé. A mensagem sobre Deus em forma humana, sacrifícios salvíficos, a vitória da ressurreição e a nova vida não era totalmente estranha aos ouvintes. Foi fácil ver no cristianismo a consumação de outras religiões [...] Pode-se observar melhor, porém, o enorme impacto da filosofia grega sobre o incipiente movimento cristão na sempre crescente tendência de definir a fé e sistematizar a doutrina. O Deus do Antigo Testamento e do cristianismo primitivo passou a ser identificado com a idéia geral de Deus da metafísica grega; apresenta-se Deus como o Ser Supremo, a substância, o princípio, o que move sem ser movido. A ontologia de Deus (o ser de Deus) tornou-se mais importante que a história (as ações de Deus) (2002, pp. 241-243).

Os primeiros concílios da igreja, que estabeleceram os credos, são uma grande representação do tipo de teologia que era elaborada, cujo conteúdo e linguagem demonstram a forte influência da filosofia. Por exemplo, o Credo Niceno-Constantinopolitano, formulado no ano 381, surgiu como consequência da discussão em torno da divindade de Cristo que traz, como parte de sua formulação, a expressão “verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, consubstancial com o Pai”. Mais que isso, conforme defende Bosch, É aos gregos que devemos a disciplina intelectual da teologia e as formulações clássicas da fé. Na Bíblia e na literatura cristã primitiva, qualquer forma de sistematização está praticamente ausente. O teólogo alexandrino Orígenes (cerca de 185 a cerca de 254 d.C.) pode ser apontado como o primeiro “teólogo sistemático” e a primeira pessoa em que se manifestou, de forma clara, o paradigma teológico oriental (2002, p. 256).

Essa estruturação advinda da cultura grega, no entanto, estabeleceu um distanciamento da teologia do Antigo Testamento, considerando-o como alegórico. Aliás, a alegoria “passou a ser o princípio hermenêutico dominante da igreja helenística” (BOSCH,

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2002, p. 246). Outra influência helênica, que recebeu certa resistência, porém, sem conseguir sucesso no impedimento de sua penetração na teologia da época, foi o gnosticismo: O traço mais característico do gnosticismo era um dualismo ontológico irreversível [...] Esse dualismo ontológico onipresente manifestava-se em pares infinitos de opostos: o temporal e o eterno, o físico e o espiritual, o terreno e o celestial, o aqui e o além, a “carne aqui embaixo” e o “espírito lá em cima”, etc. A salvação só poderia significar libertação dos grilhões deste mundo material hostil, e as pessoas salvas podiam tratar as realidades materiais com indiferença, se não com desprezo. Alguns desses elementos gnósticos se arraigaram tão profundamente na igreja que continuam vivos e robustos até hoje (BOSCH, 2002, p. 249).

Essa observação de Bosch acerca da influência do pensamento gnóstico na teologia da igreja, ainda nos dias de hoje, talvez não seja percebida pela maioria dos crentes por falta de conhecimento sobre a história da teologia. Esse tipo de dualismo, não característico da teologia bíblica, principalmente no Antigo Testamento, mas comentado e combatido no Novo Testamento, realmente, permanece em muitos discursos da atualidade trazendo consigo os seus efeitos. Enfim, para Júlio Zabatiero, a teologia patrística é também uma teologia habitual, porque havia se tornado um “habitus de vida e estudo, concebida como conhecimento de Deus e construída por meio das disciplinas da oração, do estudo e da participação litúrgica” (2005, p. 20). Era muito importante para os pais da igreja que a teologia redundasse em uma ética e comportamento moral elevados em uma sociedade considerada decadente. Mais que um discurso, esperava-se que a teologia fosse capaz de promover não apenas a transformação do caráter, mas a sua manifestação concreta em uma vida exemplar.

2- Teologia Medieval Zabatiero caracteriza como científica a teologia que predominou durante a Idade Média, entre o tempo da Patrística e da Reforma Protestante. Para ele, “a teologia constituía o arcabouço ordenador

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de todo o conhecimento humano, bem como o das nascentes universidades na Europa” (2005, p. 20). Paul Tillich explica em mais detalhes essa fase: A atitude teológica, determinante de toda a Idade Média, foi o escolasticismo. Trata-se da explicação metodológica da doutrina cristã [...] O escolasticismo foi deformado na última fase da Idade Média; mas a intenção verdadeira do escolasticismo era a interpretação teológica de todos os problemas da vida [...] Havia apenas um limite: a educação escolástica era dada apenas à pequena classe alta. Todos os livros escolásticos eram escritos em Latim, acessível apenas aos educados. Naturalmente, as massas não sabiam ler nem escrever. Como levar ao povo a mensagem discutida nesses sistemas escolásticos? De duas maneiras: pela participação nos ofícios religiosos, nas liturgias, pinturas, por meio da música e pelo recebimento de outras impressões sensoriais que não requerem grande atividade intelectual, mas comunicam o sentimento numinoso e certa orientação moral. Não significa, porém, que essas coisas objetivas fossem realmente experiências pessoais. O misticismo é que fez isso na Idade Média: introduziu a experiência pessoal na vida religiosa (2000, p. 146-147).

Esse distanciamento entre os que pensam, estudam e propõem o discurso teológico e os que vivenciam, na prática religiosa, aquilo que foi proposto, ainda persiste até os dias de hoje na igreja cristã. O que está em jogo aqui é uma questão de atribuir, ou reconhecer autoridade, àqueles que elaboram a teologia. Na Idade Média, a autoridade era entendida como alguma coisa natural a que os cristãos deveriam se submeter. A autoridade primeira era, obviamente, a divina, mas ela acabou sendo intermediada pelos autores bíblicos, pelos apóstolos e, por que não dizer, pelos teólogos oficiais, até certa medida. Ora, a contribuição desses primeiros teólogos, que compuseram a Patrística, além das práticas assumidas pela comunidade, passaram a compor aquilo que se denominou de tradição da igreja e que, por si só ocupava um lugar autoritativo na teologia. Compunha a tradição, portanto, os escritos dos pais da igreja, os dogmas e credos dos concílios e, certamente, a bíblia. Na verdade, essa questão que envolve o lugar da

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autoridade e da tradição na formulação da teologia, na maneira como foi elaborada durante a Idade Média, também permanece até hoje em nosso ambiente eclesiástico. Para entender um pouco melhor a importância dessa discussão, vejamos a argumentação de Tillich que, considerando o longo período que abarcou a Idade Média, em linhas gerais, oferece três fases no entendimento da relação entre a autoridade e a racionalização do pensamento teológico. A primeira fase foi aquela em que A Idade Média enfrentou essa situação, primeiramente, no domínio das decisões práticas, representado na lei canônica. Essa lei era a base da vida medieval; o dogma era uma das leis canônicas e vinha daí a sua autoridade dentro da igreja. Necessidades práticas, então, criaram uma classe de pessoas devotadas a harmonizar o significado das leis canônicas existentes. O método empregado era dialético, conhecido como o método “do sim e do não”. A razão era o instrumento desse trabalho. Ela combinava e harmonizava as sentenças dos pais e dos concílios, primeiramente na prática e logo em seguida no que se refere às declarações teológicas. A razão coletava, harmonizava e comentava as sentenças dos pais. Era a sua função principal (2000, p. 148).

Nessa fase, o peso da tradição era muito grande não havendo liberdade para a elaboração de novos conceitos ou perspectivas teológicas. A função da teologia era afirmar e reforçar a tradição, ainda que pudessem haver discrepâncias entre as ideias propostas no passado pelos pais da igreja e pelos concílios. Já a segunda fase, não difere muito da primeira a não ser pelo método, que não era mais simplesmente o “sim e não”, mas a tentativa de interpretação da tradição pela dialética aristotélica. O próximo passo foi dado, menos especulativamente e com mais cautela, por pensadores que levavam a sério Aristóteles, na sua elaboração teolólgica, como demonstra, especialmente, Tomás de Aquino. Achavam que a razão era adequada para interpretar a autoridade. Na verdade, a razão jamais se opõe à autoridade; a tradição viva pode ser interpretada em termos racionais. A razão não precisa ser destruída para interpretar o significado da tradição viva (TILLICH, 2000, p. 149).

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Se a segunda fase parecia indicar um progresso na produção teológica, introduzindo o raciocínio lógico, mesmo que limitado pela tradição, a fase seguinte consistiu-se em um fechamento e cerceamento dessa já reduzida liberdade produtiva. O último passo foi a separação entre razão e autoridade. Duns Escoto e Guilherme de Ockham, o nominalista, entendiam que a razão não prestava para interpretar a autoridade nem a tradição viva, nem mesmo expressá-las. O nominalismo posterior diria isto, claramente. Entretanto, se a razão não pode interpretar a tradição, a tradição se transforma em autoridade de modo bem diferente; passa a ser a autoridade mandatória a exigir submissão, mesmo se não for entendida. É o que chamamos de “positivismo”. A tradição é dada positivamente: está aí e a vemos; aceitamo-la e nos submetemos a ela do modo como nos é dada pela igreja. A razão não tem capacidade de mostrar o sentido da tradição; só pode mostrar as diferentes possibilidades derivadas das decisões da igreja e da tradição viva. A razão pode chegar a probabilidades e a possibilidades, mas nunca a realidades. Não pode dizer como as deveriam ser. Isso depende da vontade de Deus. A vontade de Deus é irracional e dada. É dada na natureza. Precisamos, pois, de certo empirismo para descobrir como são as leis naturais. Não estamos no centro da natureza. Relacionamo-nos com as ordens da igreja, com a lei canônica, de modo que é a essas decisões que nos submetemos positivamente; devemos aceitá-las como leis positivas, pois não as podemos entender em termos racionais (TILLICH, 2000, p. 149).

Esse fenômeno de fechamento conservador sempre esteve presente na história da igreja. Ele é gerado no centro do poder e justificado como sendo a representação da vontade de Deus, adornado pelo discurso do zelo pelas coisas divinas. Sempre é acompanhado pela disseminação e imposição do temor, às vezes de forma sutil, mas muitas vezes com o uso de ameaças e de força. Mas a negação da racionalidade na busca pelo conhecimento de Deus é também a negação do ser humano, pois a razão lhe é intrínseca. A consequência, portanto, sempre virá na forma reação e confronto, o que ocorreu na história da igreja com o movimento da Reforma Protestante.

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3- Teologia Moderna A Idade Moderna inicia-se no final do século XV e início do século XVI, tendo como principais eventos causadores de mudança no contexto ocidental a conquista do Império Bizantino pelos árabes, conhecida como a queda de Constantinopla; a redescoberta da filosofia grega, com o resultado daquilo que se passou a chamar de Iluminismo; o consequente humanismo, centrado na capacidade do uso da razão; e as transformações causadas pela Reforma Protestante e os movimentos nacionalistas. É fundamental em todo esse processo o papel das escolas e universidades como incubadoras de novas estruturas de pensamento e reflexão, tanto para a teologia como para o surgimento das ciências. Importante recordar que durante a Idade Média a teologia era quem ditava o rumo do conhecimento. As universidades haviam sido fundadas em sua maioria pela própria igreja e permaneciam sob o seu controle, porém, aqueles que ali estudavam não eram necessariamente clérigos. Sendo um lugar de reflexão e busca pelo saber, foi inevitável que ali surgissem exatamente aqueles que iriam colocar em cheque a posição da igreja e da teologia como controladoras do conhecimento. A reviravolta que ocorreu na Idade Moderna levou a teologia a um lugar diametralmente oposto ao que ocupava anteriormente. Zabatiero assim apresenta esse novo momento: Este paradigma se caracteriza por subordinação da teologia aos imperativos do mundo acadêmico devido à perda de prestígio e poder das Igrejas no campo universitário, e do saber em geral. Esta subordinação foi transformando, cada vez mais, a teologia em uma “ciência”, ou melhor, em um sistema disciplinar de conhecimento, dividido em áreas do saber teológico ou em disciplinas particulares (2005, pp. 20-21).

Essa é atual situação da teologia como ciência. Zabatiero menciona que estamos diante de um paradigma e dada a necessidade de entendermos mais a fundo como funciona a teologia nesse paradigma moderno, abordaremos o assunto em mais detalhes na próxima unidade.

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Referências BOSH, David J. Missão transformadora. São Leopoldo: Sinodal, 2002. HOLMES, Michael M. (ed.). The apostolic fathers. 2 ed. Grand Rapids, MI: Baker, 1989. TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. 2 ed. São Paulo: ASTE, 2000. ZABATIERO, Júlio. Fundamentos da teologia prática. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.

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Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 6 O PARADIGMA MODERNO 1: ILUMINISMO

Introdução A Teologia como ciência também é influenciada pelo fenômeno paradigmático. Conhecer esse fenômeno e, principalmente, o paradigma moderno que é responsável pela principal via de formulação e entendimento do discurso teológico, torna-se crucial para a tentativa de atualizarmos o nosso discurso aos tempos atuais, visando a proposta de uma alternativa de caminho para a teologia.

Objetivos 1. Entender o fenômeno do paradigma e seu funcionamento na formulação do conhecimento; 2. Conhecer o paradigma moderno e sua influência na Teologia.

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Há grande relevância no entendimento do paradigma moderno para a nossa abordagem introdutória ao estudo da teologia. Mais que isso, é fundamental compreendermos o conceito de paradigma, desde uma perspectiva mais ampla, e como ele afeta o nosso conhecimento. Ao fazermos isso, adentramos no ambiente do que chamamos na filosofia de epistemologia. Provavelmente, a grande maioria das pessoas jamais parou para refletir sobre o fato de que sua forma de pensar é condicionada por um paradigma que é transmitido pela cultura e pelo sistema educacional estabelecido por ela. Conscientes ou não, somos “ensinados” a pensar de uma determinada forma. Não que ela seja única em nossos raciocínios, mas, pelo menos, se torna predominante em nosso ambiente cultural. Isso significa que quando raciocinamos, seguimos caminhos de pensamentos condicionados pelo ambiente e pelo grupo que formam o nosso contexto de vida. Sem nos aprofundarmos muito no assunto, mas à guisa de exemplificação, apresento um breve esquema, elaborado por David Hesselgrave (1978, p. 209), que procura explicar as diferenças entre os processos cognitivos de três culturas:

Essas figuras não representam algo exato e categórico, mas são indícios de como se processa o pensamento humano, de maneira predominante, em cada cultura. Devemos lembrar que o ser humano é essencialmente o mesmo em qualquer lugar, no entanto, a cultura exerce forte influência na maneira como as pessoas percebem a realidade e a processam. Uma pessoa pode aprender ou até mesmo pensar por outros caminhos diferentes da sua cultura, mas sua tendência será seguir, na maior parte do tempo, os moldes dela. Assim, o que essa figura quer exemplificar é que cada cultura tem um

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caminho predominante ou prioritário para o processo cognitivo pelo qual as pessoas tendem a pensar. O esquema aponta três tipos de aproximações do entendimento da realidade: conceitual, relacional e psíquica ou intuitiva. Essas três aproximações poderiam ser representadas por três tipificações humanas: o cientista, o artista e o místico. Todos temos um pouco de cada tipo, mas, por exemplo, no processo cognitivo ocidental, em que estamos inseridos, a predominância é de que, diante da realidade, nossa tendência é criar uma teoria, uma abstração ou um conceito, que parta do particular para o geral, para posteriormente experimentar esse conceito na relação concreta com o objeto e depois, se possível, desenvolver qualquer sentimento ou apreensão psíquica da realidade observada. Resumindo, o modo ocidental primeiro teoriza, depois experimenta e depois sente. Os outros dois modelos, chinês e indiano, são próximos, no sentido de que antes da teoria vem a experiência. No modelo chinês primeiro ocorre a tentativa de se absorver algo imediato da experiência concreta com aquilo que se observa para depois desenvolver algum conceito e ter alguma apreensão psíquica ou mística. Já o processo indiano seria desenvolvido primeiro com a tentativa de extrapolar a realidade observada, indo além da concretude da experiência, na busca do algo mais e além, que possa existir, por meio de uma experiência mística. Depois, viria a experiência direta com a realidade para mais adiante formular-se algum conceito que a abarcaria e a explicaria racionalmente. Vale notar que aquilo que estamos denominando de experiência concreta é algo similar ao que se passa com o artista ou com alguém que observa uma obra de arte. É claro que isso se aplica a qualquer outra coisa existente em nossa realidade e está diretamente relacionada à questão dos sentidos humanos, que inclui a visão, audição, tato, olfato e sabor, e gera algum sentimento, às vezes, difícil de ser descrito além da imediata sensação. É necessário certo esforço de nossa parte para entender essa proposta de Hesselgrave, ou melhor, para tentar compreender como se dão os processos de conhecimento e pensamento humanos. Contudo, a falta de interesse nas questões epistemológicas, provavelmente, nos deixará estagnados na construção do discurso teológico diante da

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necessidade de diálogo com ambientes distintos dos nossos ou que possuam um paradigma diferente. Apenas adiantado o desafio que está diante da teologia na atualidade, e insistindo na importância em conhecermos o paradigma moderno, vivemos em contextos, principalmente os urbanos, em que o paradigma pós-moderno tem questionado o processo cognitivo até então predominante no ocidente. Há muitos que já não seguem o esquema proposto acima mesmo vivendo em contextos ocidentais. A influência de outras culturas, incluindo a indiana e chinesa, é bem recebida pela pós-modernidade e altera a nossa percepção da realidade. Daí, ressalto a relevância de nos aprofundarmos na discussão sobre a função do paradigma na construção do pensamento. O conceito de paradigma que quero tratar aqui é o referente à filosofia da ciência e, particularmente, aplicado à teologia. Para tanto, utilizarei o estudo feito por David Bosch (2002) que usa como referencial os escritos de Thomas Khun, um historiador da ciência. Bosch foca sua investigação na Teologia da Missão, mas ela se aplica em grande parte à teologia como um todo.

1- Teoria do paradigma Há muitas definições para paradigma, mas a ideia que quero explorar é a que o entende como um conjunto de crenças, valores, técnicas, procedimentos e tradições de pesquisa compartilhadas por um grupo ou comunidade. O paradigma, então, é entendido também como o corpo de estruturas de referência, modelos de interpretação e caminhos para o conhecimento. Para Thomas Khun, observando a história humana, a ciência não cresce cumulativamente, mas sim por meio de “revoluções” ou saltos em que ocorre uma nova percepção da realidade. Um paradigma não é “criado” ou propositalmente elaborado; ele surge, cresce e amadurece inserido em uma rede composta por diversos fatores sociais e científicos. Alguns indivíduos começam a perceber a realidade de modo qualitativamente diferente de seus antecessores e coetâneos que estão realizando “ciência normal”. O pequeno grupo de pioneiros sente que o modelo científico existente está repleto

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de anomalias e se mostra incapaz de resolver problemas emergentes. Principiam, então, a procurar um novo modelo ou estrutura teórica, ou (termo favorito de Khun) um novo “paradigma”, que está, por assim dizer, apenas esperando para substituir o velho (BOSCH, 2002, p. 230).

Quando um novo paradigma surge, ele não é aceito imediatamente por todos como algo óbvio, pois, a mudança de paradigma não é mera questão de dar um passo racional. Na linguagem de Khun, a mudança de paradigma acontece em um lampejo de intuição. Ele chega a usar linguagem religiosa afirmando que abandonar um paradigma em função de outro é como uma conversão, como escamas caindo dos olhos. Isso explica por que defensores da velha ordem e paladinos da nova, frequentemente, contendem sem chegar a consenso algum. Protagonistas do velho paradigma, sobretudo, tendem a se imunizar contra os argumentos do novo. Elas resistem a seus desafios com reações profundamente emocionais, porque esses questionamentos ameaçam destruir sua própria percepção e experiência da realidade, na verdade, seu mundo todo. Nas palavras de Einstein, “é mais fácil romper átomos do que preconceitos” (Bosch, 2002, p. 231).

Isso significa dizer, então, que sempre há conflito entre os defensores do velho e do novo paradigma, embora vivam no mesmo mundo e contexto. As reações emocionais, que deporiam contra a argumentação científica racional que, em tese, sustenta qualquer paradigma, aparecem por causa da sensação de insegurança em perceber que o sistema que fundamenta as estruturas daquela comunidade está sendo ameaçado por uma nova ordem. Curiosamente, o velho paradigma raras vezes desaparece por completo. Via de regra, acabamos por encontrar grupos que insistem em perpetuar o seu paradigma como se não houvesse outro. Podemos fazer uma análise dos caminhos históricos da teologia com base na teoria do paradigma de Khun. Na unidade anterior indicamos apenas três fases históricas por uma questão de simplificação e proximidade do tempo contemporâneo, contudo, Bosch 6202, P. 227-223) indica seis grandes paradigmas na história do cristianismo, conforme sugerido por Hans Küng:

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1. 2. 3. 4. 5. 6.

O paradigma apocalíptico do cristianismo primitivo. O paradigma helenístico do período da patrística. O paradigma católico romano medieval. O paradigma protestante (da Reforma). O paradigma moderno do iluminismo. O paradigma ecumênico emergente.

Com base nesses seis paradigmas, Bosch analisa o processo de mudanças e permanências, mostrando sua complexidade: Também, em um outro sentido, o “velho” paradigma raras vezes desaparece completamente. Em seu diagrama de mudanças de paradigma na teologia, Küng indica que o paradigma helenístico do período patrístico ainda vive em partes das igrejas ortodoxas, o paradigma católico romano medieval, no tradicionalismo católico romano contemporâneo, o paradigma da Reforma protestante, no confessionalismo protestante do século 20, e o paradigma iluminista, na teologia liberal. Brauer [Jerald, cf. Küng] nos lembra que, em quase todas as denominações hodiernas, encontramos, lado a lado, crentes fundamentalistas, conservadores, moderados, liberais e radicais. A questão torna-se ainda mais complexa pelo fato de que as pessoas, frequentemente, estão comprometidas com mais de um paradigma ao mesmo tempo (2002, p. 232-233).

Pensando na igreja, talvez essa coexistência de paradigmas em um mesmo grupo seja devido ao desinteresse pelo estudo e busca pelo conhecimento, por parte da maioria dos crentes, e pela priorização da experiência mística desassociada da racionalização da fé. Talvez seja até o indício da influência, não consciente, do paradigma da pósmodernidade. No entanto, para o nosso propósito, que é o estudo da teologia, quero destacar a importância do paradigma moderno por causa de sua predominância na maneira como a teologia está estruturada, formal e informalmente, na igreja cristã nos dias de hoje. Ao olharmos para o paradigma moderno devemos manter em mente que, embora dominante, ele não é o único que permeia as mentes e práticas dos crentes. Como vimos, há outros paradigmas que se fazem presentes e influentes.

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2- O Iluminismo Para entender o paradigma moderno precisamos olhar para o processo histórico que o gerou. O período de transição entre a Idade Média e Moderna foi marcado por uma série de eventos e expressões culturais, filosóficas e políticas que culminou com o surgimento de um novo paradigma. Esses movimentos e períodos receberam diversas designações e nomenclaturas, normalmente feitas depois do ocorrido ou ao tentar remeter-se às mudanças causadas por eles no mundo ocidental. Renascimento, humanismo e iluminismo são os termos mais recorrentes ao nos referirmos ao início da era moderna. Justo González comenta sobre esse período: Poucos termos na história são usados com maior ambiguidade que os de “Renascimento” e “humanismo”. O próprio título “Renascimento”, aplicado a uma época histórica, implica em um juízo negativo da época que lhe precedeu. Neste sentido o termo foi usado pelos que o cunharam. Para eles a Idade Média era somente isso: um período intermediário entre as glórias da antiguidade e as dos tempos modernos [...] Mas apesar de tudo isto ainda podemos, particularmente na Itália, dar o nome de “Renascimento” a este período. Muitos dos principais intelectuais da época viam no passado imediato, e às vezes no presente, uma época de decadência com respeito à antiguidade clássica, e por causa disto se empenhavam em provocar um renascer desta antiguidade, em voltar às suas fontes, e em imitar sua linguagem e estilo. É a isto que nos referimos aqui quando falamos “Renascimento” (1995, p. 135-136).

A menção sobre o resgate da antiguidade está diretamente relacionada ao conteúdo da filosofia e cultura greco-romana em seu auge, ou seja, que ocorreu até o século V d.C. A essa capacidade humana criativa e, de certa forma, autônoma em relação ao controle da igreja, deu-se a designação de humanismo. Para González, a principal característica do humanismo foi o estudo cuidadoso da literatura clássica e a admiração pelo tipo de ser humano capaz de produzir arte (1995, p. 136). Em tempos mais tardios, o humanismo veio a representar a confiança na capacidade humana, seu intelecto e

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razão, em conduzir-se a um estado de plenitude em todos os sentidos. Essa independência tinha como principal referência antagônica o controle da igreja e religião sobre o conhecimento conforme ocorria anteriormente na chamada Idade Média. A perspectiva humanista se tornou, assim, a precursora do desenvolvimento das ciências baseadas na observação, experimentação e proposição racional de explicação da realidade, dando origem ao período do iluminismo. Também o iluminismo possui definição fluida sobre o que foi e como se desenvolveu. Tomarei alguns comentários de Alister McGrath sobre o assunto para delimitar os contornos relevantes ao que nos interessa na presente argumentação. Para ele, a identificação do iluminismo com o racionalismo radical é um exagero, embora, em determinado período, entre 1720 e 1780, defendia-se a ideia de que ele seria “o livre e construtivo uso da razão com vistas a derrubar mitos antigos que eram vistos como atreladores de indivíduos e sociedades ao passado” (1994, p.78). A nomenclatura Idade da Razão, para McGrath, não deve ser tratada como sinônimo do iluminismo, ainda que “uma ênfase na habilidade da razão humana em penetrar os mistérios do mundo é acertadamente entendida como uma característica definidora do iluminismo” (1994, p. 78). O que o autor quer evitar é a percepção que alguém possa vir a ter de que antes na história não se usava a razão ou de que o iluminismo tenha ficado limitado ao tipo de racionalismo defendido por alguns autores, como René Descartes, que propunha que “o mundo externo pode ser conhecido pela razão, e apenas por ela” (1994, p. 79). Ainda no século XVIII, Imannuel Kant questionou essa perspectiva em seu livro A crítica da razão pura, propondo o que chamou de “mente ativa” no processo de conhecimento, que se daria por meio da experiência, ou seja, da observação e contato com as coisas do mundo, sem a exclusividade do uso da razão para conhecê-las. O mais importante a ser destacado sobre o iluminismo é a mudança de paradigma na epistemologia. O método científico iniciado a partir dali influenciou também a maneira de se fazer teologia. Descartes, Kant, Francis Bacon, John Locke, David Hume, Isaac Newton e tantos outros filósofos, matemáticos e físicos estabeleceram uma nova forma de compreensão do mundo que, para a maioria de nós, é tida como a única, por termos sido formados na cultura ocidental e mais ainda pela

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maneira como recebemos o evangelho. É claro que estamos tratando de um longo período de tempo na história ocidental e de muitas mudanças na produção do conhecimento. No que se refere à teologia, também temos fases distintas, mas meu objetivo é, de modo resumido, apresentar alguns efeitos do iluminismo e as principais consequências práticas na estruturação do pensamento teológico. Na análise de Stanley Grenz, No Iluminismo, a ênfase primeira sobre as causas finais (o telos, ou o propósito dos objetos) deu lugar à visão matemática e quantificadora da empresa científica da qual foi pioneiro Galileu, cerca de um século antes. O novo estudo dos fenômenos naturais ressaltava a aplicação de técnicas matemáticas para a produção de resultados quantificáveis [...]. O ponto alto dessa revolução na ciência foi o trabalho de Isaac Newton (1642-1727). O universo de Newton era uma máquina grande e organizada. Seus movimentos podiam ser conhecidos porque seguiam certas leis observáveis [...]. O objetivo de Newton ao procurar descrever o universo não era simplesmente acadêmico. Ele cria que, ao mapear os ritmos regulares do universo, a ciência aumentava nossa percepção da grandeza de Deus (1997, p. 105-106).

Se no paradigma medieval a explicação do mundo e da realidade era uma questão dogmática e transmitida pela tradição dos pais da igreja, a partir do discurso teológico, sem questionamentos, no iluminismo, o ser humano é livre e autônomo para investigar, com o uso da razão, esse mesmo mundo, descobrindo as leis que governam essa grande máquina. O conceito de matemática aqui não se refere a uma questão numérica e sim filosófica. A matemática é a ciência da lógica, daquilo que é exato, que é rigorosamente demonstrado e que ficou conhecido como método cartesiano, ou seja, proposto por Descartes. Em tese, seria difícil incluirmos a teologia nesse paradigma uma vez que seu objeto primário, que é Deus, não está diluído no mundo nem tampouco acessível por meio das coisas naturais. Entretanto, como vimos, a tese de Newton era a de que ao conhecermos o mundo também conheceríamos a Deus, por via indireta, por aquilo

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que concerne ao que foi revelado na natureza. Em parte, o que ocorreu foi uma divisão no campo da teologia entre os que propunham uma teologia natural, alcançada pela investigação científica do universo, incluindo o ser humano, e uma teologia revelada, que pressupunha alguma intervenção sobrenatural em sua investigação. Os defensores da teologia natural, ou religião natural, deram origem ao que se chamou de deísmo e “desfizeram-se de vários dogmas que a tradição da igreja havia atribuído à revelação divina, pois consideravam-nos inadequados como parâmetros da verdade religiosa” (Grenz, 1997, p. 112). Mais tarde, como sustenta Leslie Newbigin, também originou a teologia liberal: Estamos familiarizados com o tipo de teologia liberal tão característica do final do século dezenove, início do vinte, em que os limites daquilo em que é possível acreditar-se foram firmemente fixados nos axiomas do Iluminismo [...] Isso requereu a reconstrução da história bíblica nas linhas da ciência histórica moderna. Ela requereu a eliminação do milagre [...] integridade intelectual requeria que a Bíblia fosse entendida nos termos daquilo que era possível para uma pessoa moderna acreditar (1986, p. 44).

Conclusão O iluminismo representou a mudança de paradigma na construção do conhecimento humano, antes determinado por um caminho de simples explicação de uma tradição recebida, de forma dogmática. O novo paradigma, defendido pelo iluminismo propunha que o conhecimento da realidade poderia se dar pelo uso da razão humana, em sua livre investigação, tendo como pressuposto que o mundo consistia em uma máquina cujas leis haveriam descobertas e expostas em forma objetiva e proposicional.

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Referências Bibliográficas BOSH, David J. Missão transformadora. São Leopoldo: Sinodal, 2002. GONZÁLEZ, Justo L. E até os confins da terra: uma história ilustrada do cristianismo. A era dos sonhos frustrados. v. 5. São Paulo: Vida Nova, 1995. GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 1997. HESSELGRAVE, David J. Communicating Christ cross-culturally. Grand Rapids-MI: Academic Books/Zondervan, 1978. McGRATH, Alister E. Christian theology: an introduction. Oxford, GB; Cambridge, EUA: Blackwell, 1994. NEWBIGIN, Lesslie. Foolishness to the Greeks. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1986.

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Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 7 O PARADIGMA MODERNO 2: CRISE TEOLÓGICA

Introdução A influência do paradigma moderno como principal via de formulação e entendimento do discurso teológico estabeleceu, como consequência, um estado de crise na Teologia. Esta crise tornou-se ainda mais perceptível quando o paradigma moderno passou a ser questionado pela pósmodernidade. Entendendo que o conhecimento humano não é final, nem muito menos os seus paradigmas, a Teologia tem a chance de transformar a crise em oportunidade de revisão paradigmática e de proposta de novos caminhos dialógicos com a realidade contemporânea.

Objetivos 1. Refletir sobre a crise causada pelo paradigma moderno na Teologia; 2. Entender como se dá o questionamento da pósmodernidade e quais as consequências e oportunidades para a Teologia.

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Continuando o raciocínio iniciado na unidade anterior sobre o paradigma moderno, gostaria de refletir sobre a crise que sua adoção gerou no campo teológico. Mais adiante, incluiremos na discussão como a pós-modernidade, e seu novo paradigma, questionou a modernidade e, com ela, a estrutura de pensamento teológico moderno que predomina na igreja contemporânea. A intenção aqui não é defender qualquer paradigma, ao contrário, o que questiono é a incapacidade de os paradigmas humanos conseguirem dar conta da realidade, das questões ontológicas, da existência, e de Deus. Novamente, apelo para uma postura de abstração do paradigma moderno que tende a tolher a nossa reflexão levandonos, via de regra, a pensarmos na presente argumentação em função das categorias de certo e errado, verdadeiro e falso, exato e inexato, preciso e impreciso, e assim por diante.

1- A crise na teologia revelada Deixando de lado o ramo da teologia natural e olhando para o ramo da teologia revelada que tentou conciliar o fenômeno sobrenatural de Deus, sua revelação e interação com o ser humano, dentro dos moldes do paradigma moderno, o que observamos é que passaram a surgir várias crises na produção do conhecimento, e que perduram até hoje. Tanto Leslie Newbigin quanto Stanley Grenz identificam que uma das crises ocorreu no surgimento de dicotomias que acabaram sendo mal elaboradas pelo discurso teológico. Newbigin fala da dicotomia entre o que consideramos o mundo público e privado e da dicotomia entre fatos e valores: “O mundo público é um mundo de fatos que são os mesmos para todo mundo, quaisquer que sejam os seus valores; o mundo privado é um mundo de valores onde todos são livres para escolher seus próprios valores e, portanto, executar os cursos de ações que correspondam a eles” (1986, p. 37). Sem nos aprofundarmos na discussão, pense apenas na dificuldade em elaborar teologicamente essas dicotomias. Seria, realmente, a questão dos valores algo restrito somente à vida privada? Ou deveríamos pensar que devem haver valores que valham para todos as pessoas indistintamente no âmbito privado ou público? Será que as ações privadas, baseadas nos valores

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que escolhemos, não afetam a vida coletiva e pública? Afinal, qualquer ação privada ocorre dentro de uma mesma sociedade. Pergunto, ser cristão seria uma questão puramente privada sem qualquer interferência na vida pública? Outra dicotomia é apontada por Grenz como sendo a que se dá entre os conceitos de corpo e alma: De modo específico, as idéias de Descartes e de Newton eram o sustentáculo de uma dicotomia entre o corpo e a alma que provocaram uma ruptura total entre a alma humana e o restante da criação. Não era fácil para os modernos posteriores conceberem a atuação divina nesse mundo dualístico. A dificuldade em entender o modo por que a alma e o corpo poderiam interagir resultou na caracterização da mente como um epifenômeno, um subproduto do cérebro; consequentemente, eliminou-se o conceito de alma humana sob a alegação de que se tratava de um “espírito dentro da máquina” desprovido de substância (1997, pp. 20-21).

Algumas linhas teológicas ainda mantêm essa dicotomia entre o material e o imaterial, representada pelo corpo e alma, ou corpo e espírito, ou ainda de forma mais complexa, entre corpo, alma e espírito, criando priorizações e rupturas na vida prática cotidiana. Fora isso, a questão da valorização daquilo que é imaterial como sendo superior ao material também gerou um distanciamento das pessoas do resto da criação. Muitas são as correntes teológicas que não se envolvem com as questões sociais, políticas, econômicas, ecológicas, etc., muito embora habitemos esse mundo material e complexo, criado por Deus para ser nossa habitação. Essa dicotomia é antiga, oriunda do neoplatonismo e gnosticismo, mas tem seus efeitos negativos ao tentarmos incluí-la no paradigma moderno de construção da teologia. Entretanto, o que quero ressaltar, ainda, como crise mais importante, é a existência de uma certa esquizofrenia na produção do conhecimento teológico moderno. Procurando adequar-se ao paradigma moderno, a teologia tentou, sem sucesso, conciliar sua fé dogmática com a metodologia cartesiana. A teologia cristã afirma a crença em um Deus que está acima e além do mundo humano, mas tenta submeter a sua revelação totalmente aos processos cognitivos

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humanos. Ela afirma que Deus é capaz de tudo, de realizar coisas impossíveis aos humanos e além de seus pensamentos, mas enquadramos o nosso discurso sobre Deus em sistemas e estruturas delimitadas e previsíveis. Na maior parte do cotidiano, agimos segundo uma compreensão “objetivista” do mundo, do conhecimento e da verdade. Na realidade, aceitamos esse “bom senso” do mundo como evidente em si mesmo. Supomos que o mundo é objetivamente real, que ele manifesta uma ordem inerente a si mesmo e independente da atividade humana. A maioria de nós supõe que a mente humana seja capaz de refletir, de modo mais ou menos correto, essa realidade externa e não-humana; muitos de nós supomos também que a língua, como produto da mente humana, seja um meio adequado para comunicar a nós mesmos, e a outras pessoas, o que pensamos a respeito do mundo. Ao fazer essas suposições “objetivistas”, agimos segundo o que se designa como teoria da correspondência da verdade. De acordo com essa teoria, as afirmações ou são verdadeiras ou são falsas e nós somos capazes de determinar se são falsas ou verdadeiras comparando-as com o mundo (Grenz, 1997, p. 69-70).

O que Grenz está chamando à nossa atenção, é que desde o momento em que consideramos o mundo como um objeto, que pode ser investigado por nossas faculdades mentais e pode ser explicado por leis e proposições verbais, resultantes da expressão linguística humana, passamos a conceber a realidade como algo que está circunscrito à nossa noção do que é certo e errado ou nossa representação da verdade. Muitos terão dificuldade de entender o que estou afirmando pela falta de capacidade de abstração ou pela incapacidade de pensar fora do paradigma moderno. Infelizmente, a maior parte da teologia produzida até hoje, e multiplicada na vivência eclesiástica, está apoiada em discursos teológicos sistematizados, fechados, prontos e afirmadores do que é certo e errado, verdadeiro e falso. Ainda que estes discursos partam do pressuposto de que são fiéis expositores da revelação de Deus, dada em sua Palavra, eles acabam por se constituir em algo maior e mais poderoso do que a Palavra em si, pois, qualquer que questione o discurso oficial e dominante

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será considerado rebelde, herege ou infiel. Se a posse e domínio do discurso sistematizado, aos moldes do paradigma moderno, é algo tão óbvio e claro, como podemos explicar a enorme quantidade de discursos diferentes, e até antagônicos, representados pela infinidade de correntes denominacionais. Quem tem o discurso correto? Quem pode colocar-se acimas dos outros e afirmar qual o discurso correto? Antes que surjam as primeiras reações, agitações e desconfortos, dizendo, “mas isso é relativismo” ou “então, não existe certo e errado ou verdadeiro e falso”, advirto que essas reações são naturais em quem raciocina a partir do paradigma moderno e não consegue perceber que a realidade está além dele. Aliás, a realidade, e Deus, está além de qualquer paradigma humano na história. A nossa dificuldade consiste em tentar conhecê-lo, apesar e além dos paradigmas.

2- O questionamento da pós-modernidade Sem querer estabelecer datas para o início da pós-modernidade, Stanley Grenz indica os escritos de Friedrich Nietzsche como determinantes para o surgimento do novo paradigma da pós-modernidade: A modernidade tem sido atacada pelo menos desde que Friedrich Nietzsche desferiu o primeiro golpe contra ela no fim do século XIX; contudo, o ataque frontal em grande escala só começou na década de 70. O impulso intelectual imediato para o desmantelamento do projeto iluminista veio com o surgimento do desconstrucionismo como teoria literária, influenciando um novo movimento na filosofia (1997, p. 21).

Explicando um pouco melhor como a teoria literária teve a capacidade de questionar o paradigma moderno, Grenz argumenta: Segundo os estruturalistas, a linguagem é uma construção social e as pessoas desenvolvem documentos literários —textos— na tentativa de prover estruturas de significado que as ajudarão a dar sentido ao vazio da sua experiência. Os estruturalistas argumentam que a literatura equipa-nos com categorias que nos auxiliam a organizar e a compreender nossa experiência da realidade. Além do mais, todas as sociedades e culturas possuem uma estrutura comum e invariável.

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Os desconstrucionistas (ou pós-estruturalistas) rejeitam este último princípio do estruturalismo. O significado não é inerente ao texto em si, dizem eles, emerge apenas à medida que o intérprete dialoga com o texto. Uma vez que o significado de um texto depende da perspectiva de quem dialoga com ele, são muitos os seus significados, como são muitos também os leitores (ou leituras). Os filósofos pós-modernos aplicaram as teorias do desconstrucionismo literário ao mundo como um todo. Assim como um texto terá uma leitura diferente conforme o leitor, dizem eles, da mesma maneira a realidade será “lida” diferentemente por todo ser dotado de conhecimento com que ela se depare. Isso significa que o mundo não tem apenas um significado, ele não tem nenhum centro transcendente para a realidade como um todo (1997, p. 22).

O que a teoria literária introduziu na discussão filosófica foi a dúvida sobre o discurso. Se na modernidade partia-se do pressuposto de que a realidade poderia ser descrita na forma de leis ou proposições exatas, na pós-modernidade o que se questiona é a capacidade deste discurso proposicional representar e explicar a realidade. No paradigma pós-moderno estas pretensas leis gerais, produzidas pela modernidade, são consideradas discursos resultantes de um contexto específico, tendo a realidade interpretada neste contexto e limitada a ele. Um exemplo que nos ajuda a entender a força deste argumento foi o que ocorreu com a física newtoniana. De posse do modelo mecanicista, os cientistas modernos ocuparam-se da tarefa de desvendar os mistérios do universo. Com base nesse modelo, que parecia oferecer uma visão incontestável do mundo, a empresa científica comemorava uma descoberta após a outra. Em decorrência disso, a ciência impunha um respeito quase universal na sociedade moderna; os indivíduos modernos olhavam para os cientistas em busca de respostas para a vida e de orientação rumo ao aperfeiçoamento da condição humana. Em meio ao maior de seus trunfos tecnológicos, contudo, determinados aspectos fundamentais da cosmovisão científica

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moderna foram abalados de dentro para fora. O desafio interno mais devastador veio da física, a disciplina que lhe proporcionara seu mais sólido fundamento. As descobertas em princípios do século XX puseram em dúvida a suposição moderna de que o universo apresentava uma ordem interna consistente, facilmente compreensível e imaginável pela mente humana (Grenz, 1997, p. 83).

Durante séculos, a humanidade aceitou como correta as formulações do sistema mecanicista de Newton, tendo vivido sob suas bases construído boa parte da tecnologia moderna em função delas. A partir do século XX, as novas descobertas da física quântica mostraram que aquilo que era tido como verdade e exato, na realidade, não eram. Paralelamente ao desenvolvimento da teoria quântica, houve uma outra série de descobertas a que nos referimos sob o título genérico de “teoria da relatividade”. Foi graças a sua “teoria especial da relatividade” que Einstein solapou a noção aparentemente racional de que o espaço e o tempo são absolutos [...]. A exemplo da teoria da relatividade, a física quântica revela alguns dados surpreendentes sobre o universo que minam as bases do modelo mecanicista moderno e da moderna suposição acerca da certeza científica. Por exemplo, não existem modelos racionais capazes de nos ajudar a reconciliar a natureza dupla da matéria e da energia —refiro-me ao fato de que, às vezes, elas se comportam como ondas outras vezes como partículas, dependendo do modo como as examinamos. Semelhantemente, a imagem familiar de um elétron orbitando em torno de um núcleo atômico como um planeta em torno do sol, mostrou-se totalmente inadequada para caracterizar o que realmente ocorre no nível subatômico. A física, em tal ambiente, não é tão mecânica e precisa [...] O universo não consiste em partículas individuais dotadas de essências específicas em seu interior, dizem os novos físicos; as partículas elementares são, na verdade, muito mais dependentes em seu contexto —em seu relacionamento umas com as outras— do que é capaz de prever o modelo mecanicista (Grenz, 1997, pp. 84-85).

Mesmo para aqueles que têm dificuldade em entender essa

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terminologia ou que não estejam familiarizados com os conteúdos da física, a importância do que está sendo apresentado por Grenz está no questionamento do paradigma moderno. Aquilo que se tinha como certo e capaz de explicar a realidade, durante muito tempo, e sobre o qual as pessoas depositavam sua confiança, foi desconstruído. Vale ressaltar que não houve uma ação proposital e intencional para se derrubar a física newtoniana e o paradigma moderno. O que ocorreu foi que novas descobertas, por si sós, mostraram que havia um equívoco no pressuposto filosófico do empreendimento científico. Esse abalo foi o suficiente para se questionar todas as outras ciências e as suas prerrogativas de habilidade em produzir o conhecimento da realidade. As ciências exatas perceberam o impacto de modo mais forte do que as ciências humanas, já que os discursos destas últimas já carregam em si as ambiguidades e complexidades do fenômeno humano e, portanto, são mais perceptivelmente adaptáveis ao paradigma pós-moderno. Assim, a conclusão de Grenz sobre o impacto da pós-modernidade sobre a teologia é a de que é necessário fazermos uma conjugação entre os paradigmas, tomando aquilo que cada um traz de contribuição para a fé cristã. Por isso, ele adverte: Conforme observamos anteriormente, a modernidade erguese sobre a suposição de que o saber é certo, objetivo e bom. O pós-modernismo rejeita essa suposição. Infelizmente, os evangélicos aceitam, com muita frequência e de modo acrítico, a visão moderna do saber, apesar de que a crítica pós-moderna, em determinados pontos, seja mais conforme os pontos de vista teológicos do cristianismo [...]. Conforme já pudemos ver, a epistemologia moderna foi edificada sobre o encontro do eu cartesiano com o universo de Newton como objeto externo. Todavia, diferentemente do ideal moderno do observador desapaixonado, afirmamos a realidade da descoberta pós-moderna, segundo a qual nenhum observador pode ficar de fora do processo histórico. Tampouco podemos ter acesso a um saber universal e culturalmente neutro na qualidade de especialistas não-condicionados. Pelo contrário, somos participantes de nosso contexto histórico e cultural, e todos os nossos esforços intelectuais estão, inevitavelmente, condicionados por essa participação (1997, pp. 240-241).

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O que isso significa, é que a produção teológica desenvolvida sob o paradigma moderno carrega o problema intrínseco de arrogarse dona do discurso correto, absoluto e final sobre Deus. A maior representação desse problema aparece, precisamente, na Teologia Sistemática, com seus discursos fechados e inquestionáveis, variáveis, é claro, na diversidade de denominações e correntes.

3- Efeitos sobre a Teologia Sistemática A Teologia Sistemática ou Dogmática que conhecemos, aprendemos, repetimos e ensinamos, em sua grande maioria, é filha da modernidade. O método de investigação utilizado na sua formulação pressupõe a possibilidade de explicar a Deus e conhecê-lo por meio de sistemas e proposições finais. A própria subdivisão em disciplinas é característica da especialização com vistas a utilização do método empirista e objetivo moderno que procura dar conta das variáveis que circundam o fenômeno a ser observado. Isso ocorre para todos os grandes temas e talvez seja mais perceptível em alguns mais do que em outros. Tomemos, por exemplo, o caso do tema da salvação. Citando apenas dois sistemas clássicos, que não se coadunam, vemos a dificuldade que o paradigma nos causa. Isso é o que ocorre quando estudamos as propostas calvinista e arminiana. Mesmo sem nos aprofundarmos no assunto, mas usando-o como referência para esta discussão, temos no calvinismo a concepção de que não há participação humana na decisão que leva as pessoas ao acesso à salvação. Aqui, a soberania divina se sobrepõe à liberdade de escolha humana. Já no arminianismo, é exatamente a escolha humana que proporciona o acesso à salvação ofertada por Deus. Ora, por estarmos inseridos no paradigma moderno, não tivemos a capacidade de perceber os condicionamentos históricos e culturais que vieram embutidos em suas propostas. Simplesmente, recebemos, aceitamos e nos adaptamos, mesmo quando alguma dúvida interior surgia e nos alertava de que nem tudo se encaixava no sistema ao tentarmos explicar a realidade. Assumimos que a realidade era possível de ser expressa e representada por meio de proposições e, por isso, passamos a resumir a propagação do evangelho em uma

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fórmula, composta destas proposições, que deveria ser aceita pelas pessoas, conforme sistematicamente apresentadas. De igual modo proliferaram as expressões apologéticas, de defesa dos sistemas cristãos, em contraposição a qualquer outro sistema religioso. Até mesmo dentro do cristianismo foram estabelecendo-se bastiões da apologética, para apontar os hereges ou deturpadores do discurso correto sobre Deus. Por falta de alternativas melhores e por uma natural resistência ao paradigma pós-moderno, os discursos teológicos modernos foram afastando-se das gerações contemporâneas ao ponto de não conseguirem sequer aproximar-se de algumas pessoas para serem ouvidos. Daí a necessidade de repensarmos a Teologia Sistemática como tal e buscarmos caminhos que possibilitem o conhecimento e a transmissão das doutrinas cristãs em um novo contexto. Minha proposta, portanto, pensando em toda a discussão desenvolvida até aqui, é que ao invés de estabelecermos o método sistemático como caminho de conhecimento e explicação dos ensinos bíblicos, busquemos uma abordagem mais próxima ao texto bíblico, tomando-o como revelação, mas respeitando suas características e limites. Mesmo que ainda utilizemos a divisão de temas da sistemática, em suas sete grandes áreas, o que proponho é uma aventura investigativa a partir da chamada teologia bíblica. A diferença entre os métodos da teologia sistemática e da teologia bíblica ficará mais clara a partir da próxima unidade e ao longo de sua aplicação nesta e nas outras disciplinas correlatas.

Referências GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 1997. NEWBIGIN, Lesslie. Foolishness to the Greeks. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1986.

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 8 TEOLOGIA BÍBLICA

Introdução A Teologia Bíblica surge como uma possibilidade de abordagem alternativa à teologia clássica que permite uma construção de conhecimento mais próxima ao estilo narrativo e dialógico, semelhante à composição própria do texto bíblico. Seu percurso metodológico, no entanto, pressupõe a abstração de concepções preestabelecidas, respeito à construção sequencial e paulatina que há na bíblia, além de sensibilidade e respeito aos contextos em que a revelação ocorre.

Objetivos 1. Conhecer a Teologia Bíblica como proposta metodológica de construção do conhecimento teológico; 2. Criar um ambiente de expectativa para o uso da Teologia Bíblica na formulação dos temas sistemáticos.

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Concluindo a seção que trata da introdução à Teologia, considerando todas as discussões e temas tratados até aqui, minha intenção é indicar um caminho, de certa forma metodológico, de como construir o conhecimento teológico que atenda aos desafios contextuais contemporâneos. O caminho que indico é o da Teologia Bíblica. Embora possamos pensar que todo tipo de teologia seja bíblico, por apoiar-se em conceitos e textos das Escrituras, o que estou chamando aqui de Teologia Bíblica é algo específico e que será explicado em mais detalhes adiante. Antes, porém, gostaria de comentar sobre outro tipo de aproximação da produção de conhecimento teológico que tem alguma associação com a Teologia Bíblica. Trata-se da chamada Teologia Narrativa. Tanto a Teologia Bíblica quanto a Narrativa são recentes na história da Teologia. Aliás, ambas ainda são pouco conhecidas e difundidas na maioria dos ambientes acadêmicos, que permanecem fortemente atrelados aos programas e currículos fundamentados no paradigma moderno. Há muito pouca fonte bibliográfica em língua portuguesa sobre essas perspectivas, além do pouco desenvolvimento das ciências literárias na aplicação desta abordagem aos processos exegéticos e hermenêuticos no meio evangélico em geral. A ideia de se construir o discurso teológico a partir da narrativa está na simples observação de que o nosso principal objeto de estudo, que são as Escrituras, não são compêndios de Teologia Sistemática. A bíblia não nos oferece a revelação divina em forma de sistemas teológicos prontos ou de pacotes doutrinários fechados. Pelo contrário, as Escrituras são um depositório de histórias de experiências de um povo com o seu Deus. Estas histórias consistem em narrativas de pessoas e grupos que exprimem a sua experiência de fé em meio aos desafios concretos do seu contexto e de suas crises pessoais. Sendo narrativas, elas possuem dinâmica, cadência e estilo literário próprios, que afetam a maneira como interpretamos as suas mensagens. Não parece haver a preocupação dos autores bíblicos em sistematizar o ensino, na grande maioria das narrativas. Talvez apenas dois momentos sejam os que mais se pareçam com uma tentativa de oferecer um sistema, o dos sacerdotes levitas e o do apóstolo Paulo. Os sacerdotes procuraram organizar a religião em seu sistema sacrificial e de controle legal. Já o

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apóstolo Paulo, em algumas seções de suas cartas, procurou organizar algumas doutrinas de maneira lógica e de acordo com a argumentação grega. No entanto, mesmo estas expressões não se comparam com as estruturas sistematizadoras modernas uma vez que elas também trazem consigo as narrativas próprias de seus contextos. Não nos aprofundaremos no tema da Teologia Narrativa já que sua metodologia pressupõe um maior domínio das ciências linguísticas, além de outras propostas como a da leitura popular do texto bíblico. O que nos importa chamar à atenção, ao mencionarmos esta perspectiva, é o que nos adverte Charles Van Engen: Nossa tese é que a teologia narrativa vista desde uma perspectiva evangélica oferece um caminho criativo e frutífero de integrar as afirmações da Bíblia sobre a missão de Deus com nosso entendimento da teologia de missão e seus múltiplos, dinamicamente integrados horizontes de texto, comunidade e contexto [...] Também deve se levar a sério a estrutura narrativa de grande parte da Bíblia, um fato que tem sido reconhecido ao longo da história da igreja. Recentemente tem havido uma crescente conscientização que as narrativas bíblicas contêm tanto história quanto teologia, e são reunidas por um formato de “estória”. A base histórica para as estórias é crucial, mas a interpretação daquela estória no texto é o verdadeiro objeto de interpretação [...] A teologia narrativa é uma tentativa de construir pontes entre os vários horizontes na Escritura e da Escritura para os nossos dias (1996, pp. 45-46).

Com base nesse pressuposto, e dada a sua proximidade com a Teologia Narrativa, é que quero inserir a discussão e proposta da Teologia Bíblica como caminho para a construção do conhecimento das doutrinas cristãs, o que ficará mais claro à medida que o assunto for sendo explorado.

1- Definição e metodologia Timóteo Carriker, na introdução do seu livro Missão Integral (1992), procura definir o que seria a Teologia Bíblica. Ali, ele apresenta uma importante diferenciação entre a adjetivação e a metodologia no que se refere à construção teológica:

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No sentido geral e mais abrangente, toda teologia cristã, quer seja sistemática ou dogmática, quer contemporânea ou prática, enfim, qualquer pensamento cristão a respeito de Deus tem o dever de ser bíblico, isto é, ter seu embasamento em princípios bíblicos. Do ponto de vista semântico, talvez este seja o sentido mais correto. Mesmo assim, dentro do currículo teológico, especialmente nos últimos cinquenta anos, o termo vem adquirindo um sentido mais específico e técnico. Desde então, se refere a um método específico de estudar a Bíblia, prestando atenção aos temas e aos vários leitmotivs no seu contexto cultural e histórico que se desdobram através das Escrituras. Neste sentido, a teologia bíblica não é “bíblica” apenas por procurar sua base em princípios bíblicos, mas também por seguir a sequência bíblica, através da qual estes temas são apresentados e desenvolvidos (1992, p. 9-10).

Para Carriker, apenas usar textos bíblicos não faz com que a teologia seja bíblica. Nesse sentido, ele adverte: Já indicamos que o método hermenêutico que trata a Bíblia como uma “mina”, procurando textos de prova para apoiar sua predeterminada perspectiva, não serve. Tanto o método dedutivo quanto o indutivo pode cair nesse perigo. O melhor seria reparar a estrutura básica da mensagem bíblica no seu desdobramento mais amplo, a fim de discernir as nuanças do texto em relação à tarefa do povo no mundo. Desta forma, não buscamos na Bíblia referências que legitimam a nossa perspectiva e atuação missionárias já existentes e os nossos programas eclesiásticos. Pelo contrário, queremos ouvir o julgamento de Deus quanto a missão do seu povo (1992, p. 9).

A diferença entre usar os textos bíblicos aleatoriamente, ou com perspectivas predeterminadas, e usá-los conforme são apresentados em seus contextos, está na aproximação metodológica. A Teologia Bíblica pressupõe o seguinte processo: • Atenção aos temas de estudo e aos outros temas recorrentes ou condutores (leitmotivs); • Seguimento da sequência bíblica em que os temas são apresentados e desenvolvidos;

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• Interpretação e construção dos conceitos a partir do contexto cultural e histórico em que são apresentados. Explicando um pouco mais cada componente do processo, o primeiro trata de como delimitar o assunto que queremos investigar. Ao escolhermos um tema, para o qual queremos construir uma teologia bíblica, precisamos estar atentos para a sua relevância e abrangência conforme apresentado nas Escrituras. Nem todos os temas que nos interessam ser estudados estão expostos explícita ou implicitamente na bíblia. Há outros temas que estão inseridos em temáticas maiores ou elaborados em conjunção com outros. Por isso, a definição de um tema deve considerar possíveis subtemas ou, sob outro ponto de vista, um tema escolhido pode vir a tornar-se um subtema após uma investigação mais aprofundada, levando o estudo a ter um espectro maior do que o imaginado inicialmente. Por exemplo, digamos que alguém queira desenvolver a teologia bíblica da mulher. Dadas as limitações da abordagem do tema na bíblia, considerando uma produção literária majoritária de cunho cultural machista dos livros, teríamos certa dificuldade em fundamentar um estudo profundo. Nesse caso, o tema da mulher deverá estar inserido em um tema maior, que é o do ser humano, incluindo a criação, a questão de gênero, além da questão das relações humanas. O mesmo raciocínio poderíamos aplicar com respeito aos temas da criança, do jovem e do idoso. Por questões históricas, haverá também assuntos que não estarão compreendidos no escopo bíblico e que deverão ser investigados a partir de princípios e temas maiores. Estou me referindo aqui a temas mais contemporâneos, como ecologia, genética e o mundo virtual da computação e internet. Estes temas nos desafiam a pensar em sustentabilidade, responsabilidade humana, clonagem, manipulação genética, transgênicos, comunhão virtual, etc. Certamente, há princípios bíblicos e temas que servem como referência para esses assuntos, mas eles não são imediatos e merecem uma atenção especial em sua apreciação. Ainda sobre os temas, Carriker nos alerta acerca da importância de sempre levar em consideração os leitmotivs bíblicos. Muito embora tenhamos a intenção de buscar a compreensão bíblica acerca de um tema, temos que manter em mente que existem os chamados

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temas condutores ou recorrentes que permeiam todos os outros. A importância em se conhecer esses leitmotivs é que será com base neles que os outros temas irão ser construídos ou referenciados. Me refiro aqui a alguns temas bíblicos condutores como amor, justiça, esperança, fé, reino de Deus (soberania, reinado, poder, etc.), aliança, comunhão, salvação, missão, entre outros. O segundo componente do processo metodológico da Teologia Bíblica, conforme indicado por Carriker, é o respeito à sequência bíblica na construção do tema. Muitas pessoas têm dificuldade em entender o que isso significa ou em aplicar essa dinâmica na construção do conhecimento. Por já possuirmos uma noção antecipada da bíblia e termos a teologia cristã fundamentada, principalmente, nos textos do Novo Testamento, quando nos remetemos aos textos iniciais das Escrituras, temos a tendência de lermos e interpretá-los a partir do prévio conhecimento daquilo que está mais adiante. Muitos são os que não conseguem abstrair-se do que sabem e, assim, não conseguem contentar-se com aquilo que aparece aos poucos na sequência de apresentação bíblica do tema, que tende a uma compreensão paulatina e acumulativa. É fundamental para a Teologia Bíblica percorrermos esse caminho histórico na apresentação da revelação divina. Isso porque as limitações de cada fase e contexto histórico trazem consigo aspectos importantes que serão interpretados, revisitados, revistos, renovados ou até mesmo substituídos à medida que novas circunstâncias modificam a situação de vida do povo responsável pela intermediação da mensagem bíblica. Essa dinâmica de construção também serve como sustentação para a contínua tarefa hermenêutica que somos obrigados, como igreja, a fazer ao longo da história humana. Para esclarecer um pouco mais esse componente metodológico, utilizemos um exemplo de como isso se aplica e quais as nuances nele envolvidas. Tomemos o caso da Missiologia. Novamente usamos a proposta de Carriker. Ao tentarmos estudar o tema da Missão, a partir da Teologia Bíblica, e iniciando o estudo pelo livro de Gênesis, nos deparamos com os primeiros textos que tratam da criação. A princípio, poderíamos pensar que não há nada ali que trate da Missão, no entanto, definindo-a como a reponsabilidade que o povo de Deus tem sobre sua ação no mundo, aqueles primeiros textos nos indicam

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algumas compreensões, que podemos obter por inferência, e que serão aprofundadas na sequência bíblica da revelação, até ao ponto da indicação da Igreja de Cristo como o principal agente dessa Missão. Não são nos primeiros textos de Gênesis que encontramos a importância, o papel e a responsabilidade da Igreja. Contudo, as informações que ali aparecem, restritas àquele período histórico, contribuem para o entendimento da Missão, como um todo, incluindo aquilo que a Igreja deve considerar como sua responsabilidade. Especificamente, o relato da criação apresentado no livro de Gênesis constrói o tema da Missão da seguinte forma: Primeiro, reconhecemos que o Deus da Bíblia não é uma divindade de especulação filosófica, mas o Deus vivo que age na história deste mundo. As Escrituras começam contando sobre as atividades de Deus no mundo [...] Os relatos da criação revelam inequivocamente que Iahweh tem absoluto controle sobre Sua criação [...] Consequência direta da soberania de Deus é a idéia de que seu propósito será levado à cabo. O Deus Criador e Soberano guia a história para que toda a Sua criação tenha seu cumprimento, sim, sua própria salvação em Cristo (Efésios 1:10; Colossenses 1:20) (Carriker, 1992, p. 27-28).

É claro que não está presente no texto de Gênesis o ápice do plano divino, no que concerne à salvação da criação, por meio da encarnação, ministério e morte de Cristo. A menção que Carriker faz sobre esse assunto, e que aparecerá bem mais tardiamente nas Escrituras, é apenas para reforçar a ideia de que Deus leva à cabo o seu plano iniciado em Gênesis. O que o autor está argumentando é que limitando a nossa observação aos textos da criação de Gênesis, podemos ter conhecimento de que Deus é o principal interventor na história humana, desde a formação cuidadosa da natureza, do especial tratamento dispensado na formação do ser humano, até ao trato com eles após a Queda, preparando um plano de restauração para os efeitos dela. Ora, como construção inicial, e que já serve como parte do nosso conhecimento sobre Deus e sua Missão, podemos concluir que se Deus se preocupa com toda a criação, com esse nível de atenção e cuidado, a Igreja, como sua representante, não pode estar aquém desta mesma

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atitude, ou seja, também deve devotar a mesma atenção e cuidado. A revelação divina sobre a Missão, obviamente, não está limitada ao relato da criação no livro de Gênesis, portanto, seguindo a sequência bíblica, temos que ir mais adiante para conseguirmos construir este conceito, até percorrermos todos os textos das Escrituras. Cada texto, em cada contexto, nos trará novas informações que nos ajudarão a compreender a teologia bíblica desse tema. Ao mencionarmos o contexto, nos aproximamos do terceiro componente do processo metodológico da Teologia Bíblica. A questão contextual e histórica é inerente à sequência bíblica. Ao percorrermos as Escrituras, respeitando a sequência bíblica, estamos nos movendo ao longo da história do Antigo Oriente, do qual o povo de Israel faz parte. É fundamental para a tarefa de leitura e interpretação dos textos bíblicos prestarmos atenção às particularidades, características e limitações de cada contexto. Isso inclui aspectos linguísticos, literários, culturais, geográficos, sociológicos, etc. que influenciam o próprio texto, além da mensagem que o autor quer transmitir. Por exemplo, não podemos supor que um texto que trate de um tema relativo à família esteja partindo dos mesmos pressupostos que temos hoje em função da família urbana ocidental. Em quase todas as Escrituras, podemos perceber que a estrutura familiar era, naturalmente, composta por um homem, suas mulheres e concubinas, todos os filhos gerados nessas relações, além de parentes próximos como sobrinhos, tios, avós, sogros e até escravos. Este é um padrão ainda encontrado em sociedades tribais africanas, que remonta a tempos imemoriais da história humana, formando o sistema de clãs. Isso é apenas um exemplo, mas se considerarmos outros aspectos culturais, sociais, etc., notaremos que o desafio para construirmos a Teologia Bíblica é bastante grande, exigindo de nós um conhecimento que não pode se conformar com a superficialidade.

2- Fundamentos e conhecimento prévio A importância da Teologia Bíblica também reside no fato de que ao adotá-la estamos procurando nos aproximar e nos identificar um pouco mais com o processo de revelação. Não me parece válido ajeitarmos, de antemão, as Escrituras às nossas experiências ou preferências eclesiásticas

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e denominacionais, ou ainda, não é próprio fazermos teologia a partir de um único verso ou perspectiva. Precisamos da compreensão de cada tema em toda a Bíblia. Por conseguinte, devemos ter a coragem e humildade de nos calar sobre aquilo que a Bíblia se cala. Indiretamente, estamos lidando aqui com alguns pressupostos da teologia reformada, em que afirmamos que as Escrituras são responsáveis por explicar as próprias Escrituras, sem invenções, ainda que com o apoio de todo tipo de conhecimento humano, que não o teológico apenas. Aliás, o uso de ferramentas no auxílio da compreensão dos textos bíblicos é uma prerrogativa para essa tarefa. Há quem pense que o conhecimento surja de uma experiência miraculosa, de uma hora para outra, como que caindo do céu. Outros preferem imaginar que o entendimento de um assunto, mesmo que inserido em toda a complexidade das Escrituras, será revelado por meio de uma experiência mística, obtendo assim a compreensão necessária. Talvez por preguiça mental, falta de tempo, incapacidade intelectiva, deficiência na formação educacional, ou outras razões, há quem prefira advogar esse tipo de abordagem como sendo até superior e mais santa do que o estudo regular, aplicado e com o uso do raciocínio lógico. Lamentavelmente, existem ainda os que preferem pensar que o uso das ciências humanas mancha e interfere na aproximação da revelação divina, pelas mesmas razões já levantadas, reforçando uma dicotomia na construção do conhecimento. O conhecimento é uma dádiva divina inerente à constituição do ser humano, não havendo separação entre sagrado e profano. A descoberta da realidade, sua descrição e tentativa de explicação, pelo uso das faculdades mentais, faz parte do fenômeno humano. À medida que investigamos a natureza e a existência, estamos tendo acesso à criação divina e ao conhecimento da realidade, independente do objeto de estudo ser as Escrituras. Nesse sentido, devemos estar confortáveis com o uso de todas as ciências como recurso de auxílio na compreensão da revelação presente na bíblia. De maneira mais prática, o que estou defendendo é a necessidade de aprofundarmos os nossos estudos em algumas áreas, interdisciplinares à Teologia, propriamente dita, que irão formar uma base fundamental para a melhor compreensão da mensagem transmitida nos textos bíblicos. Antes, porém, temos que considerar que

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o conhecimento prévio da bíblia, como um todo, é uma condição sine qua non para nos aventurarmos na Teologia Bíblica. O que quero dizer com essa afirmação é que penso ser quase impossível desenvolvermos o estudo particular de qualquer tema bíblico sem a percepção do todo. Como defendido por Carriker, temos que estar atentos aos leitmotivs, e eles só são apreendidos com o conhecimento prévio do todo da bíblia. Em outras palavras, para alguém estudar algum tema bíblico, defendo ser fundamental uma leitura prévia, de antemão, de toda a bíblia. Essa leitura pode ser devocional, investigativa, indutiva, etc., no entanto, atenta ou não, ela deverá ser capaz de nos proporcionar uma perspectiva ampla dos leitmotivs, além de permitir uma percepção das redes de relações e conexões entre os personagens e as histórias que conduzem a grande narrativa da revelação. É impressionante o desconhecimento bíblico dos crentes em geral. Mais impressionante ainda é nos depararmos com o desconhecimento daqueles que intencionam estudar, formalmente, Teologia. Não é minha intenção discutir aqui as razões que nos conduziram a esse cenário, mas é no mínimo curioso pensar que alguém queira estudar Teologia sem um conhecimento, mesmo que superficial, de toda a bíblia. Afinal, como já elaboramos anteriormente, a bíblia é o nosso principal objeto de estudo e um curso de Teologia não se propõe a ensinar essa aproximação básica, que deve ocorrer na igreja, no desenvolvimento da fé e da experiência pessoal com Deus. Tanto é assim, que o ingresso no curso de Teologia pressupõe a realização de um exame de conhecimentos bíblicos prévios. Infelizmente, a carência de ensino e formação na igreja leva muitos a buscarem um curso superior em Teologia para supri-la, o que não é o caso e nem objetivo dele. Portanto, ao nos propormos percorrer o caminho da Teologia Bíblica, necessitamos de um conhecimento prévio que, caso não exista, deve ser buscado de maneira emergencial. Fora esse conhecimento prévio de toda a bíblia, necessitamos do apoio de outros recursos fundamentais para compreendermos os textos em seus contextos. Me refiro aqui aos seguintes recursos: a. História de Israel e do Antigo Oriente Próximo, incluindo as

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informações de história comparada e arqueologia; b. Geografia das regiões e dos tempos bíblicos, incluindo as informações de clima, recursos naturais, etnias, migrações, etc.; c. Sociologia dos povos nos tempos bíblicos, incluindo os tipos de organização social, disputas políticas e sociais, instituições, etc.; d. Ferramental literário, incluindo as introduções aos testamentos e seus respectivos livros, no que se refere às discussões sobre temática, datação, autoria, público alvo, tradição teológica, etc.; e. Ferramental linguístico, incluindo o conhecimento das línguas originais e recursos hermenêuticos. O acesso a esses recursos se dá por meio da leitura e estudo de uma vasta produção bibliográfica, que deve ser desenvolvido paralela e concomitantemente. A aplicação do conhecimento bíblico e desses recursos fundamentais na produção da Teologia Bíblica ficará mais claro à medida que estudarmos os temas propostos pelas disciplinas sistemáticas.

Referências VAN ENGEN, Charles. Mission on the way: issues in mission theology. Grand Rapids, MI: Baker, 1996. CARRIKER, C. Timóteo. Missão integral. Uma teologia bíblica. São Paulo: SEPAL, 1992.

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Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 9 O CONHECIMENTO DE DEUS

Introdução Iniciando o estudo propriamente dito das áreas clássicas da Teologia Sistemática, esta unidade introduz o tema da Teontologia. Como estímulo para a busca do conhecimento de Deus, podemos tomar o tema da transcendência e da existência, em geral, como um fenômeno presente na experiência humana. Com base neste fenômeno, podemos seguir dois caminhos na construção do conhecimento de Deus. O primeiro é o que se dá por meio da investigação do mundo que nos cerca, ou seja, da natureza, incluindo o próprio ser humano. O segundo, que é a principal via de estudo cristão, é o que dá por meio do estudo da revelação divina.

Objetivos da unidade 1) Criar um ambiente preparatório para o estudo da Teontologia; 2) Refletir sobre os possíveis caminhos de conhecimento de Deus.

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Essa unidade inicia o tema da Teontologia ou da Teologia Própria, que em sua designação quer indicar o estudo da pessoa de Deus, ou de maneira mais abrangente, da existência como um todo. A expressão teontologia, portanto, une três termos gregos com a intenção de apontar para a ideia de se promover o discurso/estudo (logos) sobre Deus (theos) e a existência (onto). A pergunta sobre Deus parece surgir daquilo que o autor de Eclesiastes sugere no capítulo 3, versículo 11: “Ele fez tudo apropriado a seu tempo. Também pôs no coração do homem o anseio pela eternidade; mesmo assim este não consegue compreender inteiramente o que Deus fez”. A observação do sábio de Eclesiastes é de que existe um anseio pela transcendência, intrínseco ao ser humano, e que, ao mesmo tempo, ele não é totalmente suprido. Este fenômeno humano também é observado pela antropologia. Todas as expressões culturais humanas de que se tem conhecimento na história apresentam suas construções religiosas e elaboração de divindades. Mesmo antes do desenvolvimento da religiosidade hebraica e cristã, conforme registrado na Bíblia, já existia uma variedade de religiões produzidas pelos diversos povos espalhados pela terra. A pergunta sobre a existência incide sobre o ser humano, também como um fenômeno geral, com maior ou menor profundidade dependendo do momento histórico que queiramos observar. Algumas respostas para a existência apresentam direta relação com a religião e o ser divino. No entanto, pelo menos para o mundo ocidental, a maior contribuição para o assunto foi desenvolvida pela filosofia grega. Mais tarde, a modernidade também se ocupou em investigar o tema.

1- Transcendência e existência É com base na busca pela transcendência que quero fazer as primeiras incursões no campo da Teontologia. Entendemos a transcendência como aquilo que está além da realidade humana sensível, ou seja, além daquilo do que é experimentado por nossos sentidos mais imediatos. Esta realidade sensível também é chamada de imanência. Sem querer reforçar qualquer tipo de possível dicotomia, uma vez que tanto a imanência quanto a transcendência fazem parte

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da realidade humana, olhamos para transcendência como aquilo que extrapola os sentidos ou aquilo que existe no âmbito da possibilidade. Duas compreensões básicas, pelo menos, compõem o fenômeno da transcendência. A primeira tem a ver com o pensamento humano. O pensamento, embora seja gerado em um cérebro imanente, tem a capacidade de imaginar, elaborar e criar coisas que estão além do próprio ser humano. Sonhos, planos, projetos e outras expressões resultantes do pensamento encontram-se na esfera da transcendência por estarem além da realidade imediata. Aqui encontramos um elo direto e motivador da percepção da existência humana. Como diria Descartes, “penso, logo existo” (cogito, ergo sum). O pensamento cria um universo na interioridade humana gerador das perguntas básicas da existência: Quem ou o que sou? De onde vim? Para onde vou? Estas perguntas surgem naturalmente com o objetivo de encontrar a razão, a explicação, a motivação para a vida. Este aspecto da transcendência necessita de respostas, mesmo que penúltimas, dentro de um ambiente de constante busca, que engloba todos os seres humanos em todos os tempos e em todos os lugares. A segunda forma básica de transcendência é a ideia de divindade. Neste caso, a divindade é algo que está, por definição, além do ser humano e possui existência própria. A ontologia, contudo, pode ser vista desde a perspectiva humana, o que sugere que a divindade surge como explicação para a origem causal da existência humana. A discussão que este fenômeno enseja para as ciências humanas é a de que, neste sentido, a divindade poderia ser considerada uma criação humana. Em parte, aquilo que também foi observado pelo autor de Eclesiastes, contribui para esta percepção, que é o fato de o ser humano não conseguir “compreender inteiramente” a Deus. Ao tentar aventurar-se na elaboração racional da transcendência, o ser humano depara-se com a limitação da sua imanência. Por ser a transcendência algo que está além, ela acaba por tornar-se algo inesgotável e, assim, passível da crítica de ser uma construção humana para satisfazer este anseio. Ambas as formas de transcendência, no entanto, necessitam relacionar-se com a imanência humana, caso contrário, perdem a sua significância. Isto quer dizer que a transcendência só tem razão de ser em função da realidade imanente do ser humano. Assim, o

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transcendente precisa tocar ou relacionar-se com o imanente. Diante disto, resta-nos a argumentação da via alternativa, ou seja, a de que é a transcendência, em sua existência autônoma, que vai de encontro à imanência. Este é o pressuposto judaico-cristão. O anseio pela transcendência encontra-se implantado no coração humano, contudo, é a própria transcendência que toma a iniciativa de preencher este anseio de interação. Resgatamos aqui o conceito de revelação, fundamental para a Teontologia cristã. É com base nele que faremos, mais adiante, nossa investigação do tema a partir das Escrituras.

2- Conhecimento natural Há pelo menos dois textos bíblicos que sugerem um tipo de revelação que possibilita o conhecimento de Deus a toda a humanidade. O primeiro texto encontra-se no livro de Salmos: Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos. Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite. Sem discurso nem palavras, não se ouve a sua voz. Mas a sua voz ressoa por toda a terra, e as suas palavras, até os confins do mundo. Nos céus ele armou uma tenda para o sol, que é como um noivo que sai de seu aposento, e se lança em sua carreira com a alegria de um herói. Sai de uma extremidade dos céus e faz o seu trajeto até a outra; nada escapa ao seu calor (Salmo 19:1-6).

O segundo é apresentado pelo apóstolo Paulo em sua carta aos romanos:

Portanto, a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça, pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis; porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações insensatos se obscureceram (Romanos 1:18-21).

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Ambos os textos afirmam que a natureza é uma fonte de conhecimento de Deus. Embora o Salmo pareça restringir os elementos naturais aos astros celestes, o que nos salta aos olhos é a quantidade de expressões que podemos associar ao exercício do fazer teológico. São elas: declarar ou relatar (saphar), proclamar ou anunciar (nagad), falar ou borbulhar palavras (nava omer), revelar ou fazer conhecido (chavah), palavra (omer) e discurso (dabar). Já o texto de Romanos traz as seguintes expressões: conhecer (gnostos), manifestar (faneros), entender ou ver claramente (noieo), compreender ou perceber (kahtorao), pensamentos (dialoguismos). A questão imediata que surge, então, é como, ao observarmos a natureza, temos a capacidade de conhecer a Deus, conforme indicam os textos? Mais ainda, sendo a natureza uma revelação comum a toda humanidade, ela independeria da religião e da fé como fonte para o conhecimento de Deus. Aliás, é por esta razão que o apóstolo Paulo considera todos os seres humanos indesculpáveis. Este assunto introduz uma discussão bastante complexa na Teologia que permeia o pensamento cristão desde a Patrística. Wolfhart Pannenberg (2009) oferece uma investigação abrangente sobre esta discussão chegando ao ponto de diferenciar o que seria o conhecimento natural e a teologia natural. Pannenberg explica que o conceito de teologia natural é anterior ao cristianismo, tendo surgido na Grécia: Panáicio designou como “teologia natural” a doutrina filosófica sobre Deus diferenciada da “teologia mítica” dos poetas por um lado, e, por outro, da “teologia política” dos cultos instituídos com autoridade estatal e sustentado pelos estados. O sentido da expressão está ligado à pergunta levantada pela sofística acerca da expressão “de natureza”, isso é, pelo verdadeiro de si mesmo, em contraposição ao verdadeiro, cuja validade se deve exclusivamente a proposições (thesis) humanas, seja por costume e origem, seja por determinação política (2009, pp. 118-119).

A teologia cristã elaborada pela igreja primitiva, tendo se desenvolvido no ambiente greco-romano, teria se apropriado desta perspectiva da teologia natural e usado daquela estrutura filosófica para construir o seu discurso. Ao longo da história a teologia natural foi mudando de concepção e em determinado momento entendeu-se

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que ela se diferenciava da teologia revelada em suas fontes primárias. Principalmente na modernidade, a teologia natural representava o esforço humano racional no conhecimento de Deus, tendo como objeto a natureza e o próprio ser humano, enquanto a teologia revelada ocupava-se das Escrituras. Pannenberg resume esse percurso: A função das “demonstrações antropológicas da existência de Deus” consiste, em contrapartida, na comprovação de que a idéia de Deus é elemento constituinte e essencial de uma autocompreensão adequada do ser humano, seja com vistas à razão humana seja sob inclusão de outras realizações básicas da existência humana. Do grupo das demonstrações da existência de Deus que argumentam expressamente de modo antropológico, já faz parte a comprovação de Agostinho de que a consciência conhecedora depende da luz da verdade, que não procede dela mesma. Também faz parte a comprovação de uma idéia de Deus inata à consciência humana, no saber do infinito, que procede a toda idéia de coisas finitas e se encontra em sua base, na terceira meditação de Descartes. Além disso, pertencem a esse grupo a demonstração moral da existência de Deus de Kant na Crítica da Razão Prática, bem como o vera-si-mesmo da autoconsciência como estar-fundamentado no absoluto, como é apresentado nas posteriores doutrinas de Fichte, como liberdade, que existe por meio do ser absoluto. Além, disso, também se deve incluir aí a comprovação por parte de Schleiermacher de um sentimento de absoluta dependência como base da autoconsciência humana e a tese de Kierkegaard de uma referência constitutiva da autoconsciência ao infinito e eterno. A série justamente destas tentativas pode ser continuada até o presente [...] Nenhum desses argumentos antropológicos é capaz de demonstrar a existência de Deus em sentido rigoroso. Na maioria dos casos também não se tem essa pretensão, mas se afirma apenas uma relação do ser humano com uma realidade que transcende o ser humano e a realidade, no mais inescrutável, de modo que se garante ao nome de Deus da tradição religiosa um apoio na realidade da experiência do homem em si mesmo. Além disso, não pode tratar-se de uma verdadeira demonstração da existência de Deus, porque deveria

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ser demonstrada a existência de Deus não somente em relação ao ser humano, mas também e, sobretudo, em relação à realidade do mundo. Nisso se fundamenta a importância permanente das demonstrações do tipo cosmológico e o interesse nelas ainda no pensamento presente (2009, pp. 141-142).

Aquilo que determinaria, portanto, o conhecimento natural de Deus pode ser considerado como a consciência ou autoconsciência humana de sua própria existência, que teria origem causal em algo anterior, Deus, seja pelo princípio temporal ou pelo princípio do movimento da máquina da criação. Novamente, o tema da transcendência é lembrado, porém, trazendo a necessidade de relação com a imanência do cosmos.

3- Conhecimento revelado A Teologia não lida diretamente com o conhecimento natural como principal fonte de conhecimento de Deus, embora use-o constantemente com aporte. A ontologia é possível porque existem conceitos que são menos universais do que o ser, e mais universais do que qualquer conceito ôntico. Isto é, são mais universais do que qualquer conceito que designa um reino de seres. Esses conceitos foram chamados “princípios”, “categorias” ou “noções últimas”. A mente humana trabalhou durante milhares de anos em sua descoberta, elaboração e organização. Mas não chegou a nenhum consenso, embora certos conceitos reapareçam em quase toda ontologia. A teologia sistemática não pode, nem deveria entrar na discussão ontológica como tal. Contudo, ela pode e deve considerar estes conceitos centrais do ponto de vista de seu significado teológico. Tal consideração, exigida em cada parte do sistema teológico, pode influenciar indiretamente a análise ontológica. Mas a arena da discussão ontológica não é a arena teológica, embora o teólogo deva estar familiarizado com ela (Tillich, 1987, p. 142).

A arena da Teologia é a fé e a revelação divina. O conhecimento é menos uma busca, e mais um encontro. Ele se dá pelo estudo da

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revelação, que inclui a parte natural, mas se concentra muito mais na revelação especial das Escrituras e de Jesus. É isto que a neo-ortodoxia de Karl Barth defende, de acordo com McGrath: “Barth declarou que a teologia cristã não era de maneira alguma dependente da filosofia humana, mas era autônoma e autossustentável. Deus foi perfeitamente capaz de revelar-se sem qualquer auxílio humano” (1994, p. 125). De certa forma, alguns assuntos estudados anteriormente concorrem para a presente discussão sobre o conhecimento revelado de Deus. Tanto a discussão sobre revelação, inspiração e iluminação, quanto sobre a Teologia Bíblica podem nos auxiliar aqui. No entanto, gostaria de explorar alguns outros aspectos referentes à Bíblia como fonte principal do conhecimento revelado. Como já dito, dependemos da iluminação divina para o entendimento das Escrituras, mas isso não significa ausência de esforço racional, estudo organizado e dedicação. Embora revelado, o conhecimento não está pronto; ele precisa ser adquirido, construído. Assim, a Teologia Bíblica indica um meio, um caminho, uma maneira de tentarmos chegar a esse conhecimento. Olhando, então, para a revelação feita por meio das Escrituras, o que temos em mãos é um livro (biblos) ou uma coletânea de livros (biblia). Cada um destes livros veio a fazer parte desta coletânea por ter sido considerado sagrado pela comunidade da fé, que foi formada primeiro pelo povo de Israel e depois pela igreja. Para os cristãos, a bíblia é composta por dois grandes grupos de livros, o Antigo e o Novo Testamento ou a Antiga e a Nova Aliança. Já o povo judeu considera como sagrados apenas os livros da chamada Bíblia Hebraica, que coincide com o Antigo Testamento da bíblica cristã. O Novo Testamento é a compreensão da Nova Aliança, que substitui a Antiga, instituída entre Deus e o povo de Israel, renovada com base na pessoa de Jesus Cristo, o Messias judeu. Como o judaísmo não reconhece Jesus de Nazaré como o Messias prometido, eles permanecem apenas com os livros do Antigo Testamento. Os livros que compõem o Antigo Testamento foram sendo escritos, editados, copiados e usados pelo povo de Israel, ao longo de sua história. A seleção dos livros considerados sagrados, ou aqueles que representavam a Palavra de Deus revelada, ocorreu dentro desse

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longo processo e feita pela própria comunidade. Aquilo que hoje chamamos cânon, ou seja, o grupo dos livros sagrados que formam a bíblia ocorreu em duas etapas distintas. A primeira referente aos textos do Antigo Testamento e a segunda referente ao Novo. O cânon do Antigo Testamento foi adotado pela igreja cristã como sendo o mesmo da Bíblia Hebraica, que havia sido determinado apenas por volta do ano 100 d.C. no chamado Concílio de Jâmnia. Antes, porém, por volta do ano 200 a.C. havia sido elaborada uma versão grega da Bíblia Hebraica, chamada Septuaginta, que continha outros livros além daqueles estabelecidos em Jâmnia. Foi a Septuaginta que os autores dos livros do Novo Testamento usaram para citar os textos sagrados em seus próprios escritos. A Igreja Cristã também foi determinando o seu cânon paulatinamente até que no Concílio de Hipona, em 393 d.C., quando foi estabelecido este grupo de livros que temos hoje. Sobre a questão da canonicidade, Wilfird Harrington explica: Canonicidade significa que um livro inspirado, destinado à Igreja, foi recebido como tal por ela. Embora todos os livros canônicos sejam inspirados e nenhum livro inspirado exista fora do cânon, contudo, as noções de canonicidade e inspiração não são as mesmas. Os livros são inspirados porque Deus é o seu autor; eles são canônicos porque a Igreja os reconheceu e admitiu como inspirados, pois, só a Igreja, por meio da revelação, pode reconhecer o fato sobrenatural da inspiração. O reconhecimento pela Igreja não acrescenta nada à inspiração de um livro, mas reveste o livro de uma autoridade absoluta do ponto de vista da fé e, ao mesmo tempo, é o sinal e garantia da inspiração (1985, p. 51).

A complexidade do assunto nos remete mais uma vez ao elemento da fé. Tanto a revelação, como a inspiração e, por conseguinte, o reconhecimento de ambos os fenômenos nos textos escritos, realizado pelo povo de Deus, são questões de fé. Partimos da fé, porém, uma fé que nos conduz à investigação e ao uso das faculdades intelectivas com o objetivo de investigar a revelação divina em busca do conhecimento de Deus e da nossa própria humanidade.

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Referências HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a bíblia: a revelação, a promessa, a realização. São Paulo: Paulinas, 1985. McGRATH, Alister E. Christian theology: an introduction. Oxford, GB; Cambridge, EUA: Blackwell, 1994. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática. Vol. 1. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2009. TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 2 ed. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo: Sinodal, 1987.

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 10 DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO - PATRIARCAS

Introdução Considerando a via de conhecimento revelado, que se dá pelo estudo das Escrituras, esta unidade inicia a investigação dos textos do Antigo Testamento, apoiada na proposta metodológica da Teologia Bíblica. Esta primeira seção trata do período histórico da tradição patriarcal procurando perceber como o foi construído o conhecimento sobre Deus, principalmente no livro de Gênesis.

Objetivos da unidade 1) Compreender as primeiras formulações sobre Deus oriundas do período patriarcal bíblico; 2) Ambientar-se com a metodologia de estudo da Teologia Bíblica.

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Efetivamente, iniciamos o estudo sobre Deus usando a metodologia da Teologia Bíblica, que se dará conforme indicado anteriormente. Apenas para lembrar e reforçar a metodologia que usaremos, temos diante desta tarefa os seguintes elementos: a. Atenção aos temas de estudo e aos outros temas recorrentes ou condutores (leitmotivs); b. Seguimento da sequência bíblica em que os temas são apresentados e desenvolvidos; c. Interpretação e construção dos conceitos a partir do contexto cultural e histórico em que são apresentados. Antecipo, desde já, que alguns terão mais dificuldade que outros em entender a aplicação da metodologia e também as conclusões a que chegaremos. Normalmente, esta dificuldade surge por causa da falta de abstração dos conhecimentos que já possuímos. Ao iniciarmos o estudo respeitando a sequência bíblica, devemos nos limitar aos textos e seus referidos contextos evitando inserir os conceitos que já obtínhamos, por outras fontes, oriundos da nossa caminhada cristã. Outro motivo causador de dificuldade no desenvolvimento do estudo é a falta de conhecimento prévio do próprio texto bíblico e de conteúdos da história, sociologia, geografia, etc. Visando organizar nossa investigação, resumirei nossa análise a alguns tempos ou momentos significativos na história do povo de Israel, divididos conforme as grandes mudanças na organização social e no contexto de vida, que geraram textos característicos e referentes aos mesmos. De maneira geral, podemos dividir a história de Israel nos seguintes momentos: a. Patriarcas (Gênesis); b. Tradição Mosaica (Pentateuco, com ênfase no Êxodo); c. Liga Tribal ou Anfictionia (Josué, Juízes); d. Monarquia (Reis e Profetas correlatos); e. Exílio e Pós-exílio (Esdras, Neemias e Profetas correlatos)

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Introdução e Teontologia

Os livros poéticos e de sabedoria, também conhecidos como Escritos, poderão ser usados, à medida que se fizerem necessários, sendo inseridos nos diversos momentos históricos.

1- Deus como Elohim “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1:1). É com este interessante verso que se inicia toda a revelação bíblica. Pensando na questão teontológica, que investiga a transcendência, representada pelos temas de Deus e da existência, parece que obtemos, de imediato, uma informação contundente. Neste breve texto encontramos a afirmação de que a existência tem início em Deus. É ele quem cria o mundo imanente. Como consequência, ele é anterior à existência, como a conhecemos desde uma perspectiva humana, ou, é a própria existência. Igualmente, também concluímos que Deus é o Criador. Como dito, estas são informações contundentes e que, de certa forma, estabelecem um tipo de clima para tudo o que virá depois. Quando digo tudo, estou me referindo não apenas ao livro de Gênesis, mas à toda a revelação bíblica. É a partir destas primeiras e significativas informações que se desenvolverá todo o drama humano e sua busca por compreensão de Deus e de si mesmo. Embora possa parecer simples e imediato, o que acabamos de elaborar é algo muito mais complexo e delicado. Ao lermos o verso inicial do livro de Gênesis nós o fizemos usando a tradução em português de um texto hebraico muito antigo. O que o texto original diz, na realidade, é que no princípio de tudo, quem cria as coisas é elohim (~yhil{a?). O texto de Gênesis, no entanto, apresenta dois relatos da criação. O primeiro é o que está compreendido entre os versos 1:1 a 2:3, e o segundo entre 2:4 a 3:24. Há uma significativa diferença entre estes dois relatos no que se refere a identificação de Deus. O primeiro relato, como já vimos, indica elohim como responsável pela criação; o segundo indica Yahweh elohim (~yhil{a? hAhy) como o criador. Algumas versões de bíblias em português trazem a expressão Yahweh traduzida como “SENHOR”, com todas as letras maiúsculas, diferenciando-a da expressão “Senhor” que é a tradução da palavra hebraica adonai. Este detalhe nos insere no problema literário da composição e edição do texto bíblico. Alguns estudiosos

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são unânimes em afirmar que o entendimento de Deus como Yahweh (Javé) é uma elaboração posterior ao tempo dos patriarcas, surgida apenas no período da tradição mosaica, que irá dar origem à fé monoteísta javista adotada pelos israelitas: Todas as narrativas patriarcais foram escritas do ponto de vista de uma teologia javística por homens que adoravam Iahweh. Quer mencionassem seu nome ou não, eles não tinham a menor dúvida de que o Deus dos patriarcas era realmente Iahweh, Deus de Israel, a quem os patriarcas, consciente ou inconscientemente, adoravam. Entretanto, não podemos atribuir a fé de Israel posterior aos patriarcas. Embora possa parecer teologicamente legítimo agir desse modo, não é historicamente preciso afirmar que o Deus dos patriarcas era Iahweh. O Javismo começou com Moisés, como a Bíblia afirma explicitamente (Ex 6:2ss), e como toda a evidência o confirma (Bright, 1978, p. 124).

O que nos interessa, então, é fazermos uma tentativa de filtrar esta influência editorial que incide sobre a informação do tempo patriarcal e nos aventurarmos a construir o entendimento sobre Deus a partir apenas da realidade histórica daqueles que deram origem ao povo de Israel e iniciaram toda a jornada de fé e de revelação. Mais à frente nos dedicaremos ao estudo de Deus como Yahweh. Retomando, portanto, a discussão sobre elohim, ao usarmos a palavra Deus, em português, carregamos em nossa mente um conjunto de significados teológicos que possuímos de antemão e que interfere na interpretação do texto. O que precisamos, no entanto, é nos abstrair do conceito “Deus” que carregamos e tentarmos investigar o que significava ou significa elohim, pois é a ele que são atribuídas as características divinas de pré-existência e criador de todas as coisas. Esta palavra está na forma plural e embora signifique mais frequentemente “Deus” ela pode ser usada no sentido plural. Assim, ela pode se referir a outros deuses (Ex. 20:3; Js 24:16), deuses estrangeiros (Jr 5:7), deuses das nações (Is 36:18), etc. Às vezes, ela parece significar seres com qualidades divinas ou autoridade — tanto angelical quanto humana (Sl 8:5; 82:1, 6; 138:1).

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Introdução e Teontologia

O uso na forma plural com sentido singular não é particularidade de Israel. Formas similares ocorrem em textos pré-israelitas, babilônicos e canaanitas em que um adorador deseja exaltar um deus em particular sobre os outros. Esta forma tem sido chamada de “plural de majestade” ou de “plural intenso” porque implica que a totalidade da divindade está concentrada em um deus. ’Elohim’ sendo o termo mais comum para Deus no AT carrega, assim, esta ideia. Alguns também têm pensado que o uso frequente de ’Elohim enfatiza que Deus não é intrinsecamente monístico, mas inclui nele mesmo pluralidade de poderes, atributos e pessoalidade (Wright, 1982, pp. 505-506).

A intenção aqui não é abordar a expressão elohim tanto como um nome e sim como uma ideia. Nesse sentido, ela se aproxima da palavra deus, em português, que também é usada para qualquer tipo de divindade, não sendo exclusiva da tradição judaico-cristã. Quer dizer, ainda que usemos a palavra “deus” para nos referirmos ao Deus cristão, ela também é usada para se referir a outras divindades como Alá, Ogum, Shiva, Zeus, etc.

2- Deus como El A ideia que elohim traduz é a de divindade, um ser transcendente dotado de poder, cuja compreensão pertence, em geral, a todas as culturas daquela região. Mas o termo elohim possui sua raiz na palavra el que é assim explicada por Christopher Wright: A palavra ’el também era usada como substantivo próprio para se referir ao supremo deus do panteão canaanita, como é conhecido dos textos ugaríticos (séc. 14 a.C.) que o exalta como “pai dos homens” e “deus dos deuses”. O nome é comumente composto com outros títulos descritivos nas narrativas patriarcais do AT (meados do segundo milênio a.C.). É claro que a tradição do AT tratou todos estes nomes como o único Deus, o Deus de Israel (“’El, o Deus de Israel”, como Ele é na realidade chamado em Gn 33:20). Mas provavelmente, nomes distintos de possíveis divindades distintas, ou nomes associados com distintos centros de adoração de uma divindade, se tornaram identificados com Yahweh, o nome pessoal do Deus

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de Israel. Entretanto, grande incerteza deve permear qualquer tentativa de delinear os estágios históricos desta assimilação, e esta tarefa é improdutiva. Embora o AT certamente testemunhe em exaustão o ambiente politeísta de Israel — e o politeísmo de seus próprios ancestrais (Js 24:14ss) — desde a perspectiva da revelação, ela testemunha principalmente as várias revelações do único Deus vivo aos patriarcas contra o pano de fundo cultural daquele tempo (1982, p. 505).

O que é curioso notar é que a construção da tradição patriarcal utiliza uma forma de denominação para Deus que varia ao longo das narrativas. Tomemos o caso do patriarca Abraão, que é o principal personagem que dá origem a toda a história do povo de Israel.

(Mapa adaptado de Galbiati e Aletti, 1991, p. 65)

A história de Abraão começa perto da cidade sumérica de Ur [...] Em Ur, ou talvez melhor nos arredores de Ur, acampado à maneira dos seminômades, vivia o clã de Taré, pai de Abraão. Após a queda da III dinastia de Ur (c. 1955 aC) a região foi agitada ao longo de mais de um século por frequentes perturbações políticas, com eventuais choques armados e pilhagens.

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Talvez tenha sido este o motivo que influiu na decisão de Taré [Terá] em abandonar Ur, dirigindo-se com todo o rebanho rumo ao norte, seguindo o curso do Eufrates, cobrindo um percurso de mais de mil quilômetros. A meta da viagem era Harã (Harran), uma cidade que tinha em comum com Ur o culto da deusa Lua (Sin) e nos documentos de Mári (séc. XVIII) aparece numa área de população amorréia, os semitas do oeste, da qual tiveram origem também os arameus (Galbiati e Aletti, 1991, p. 63).

Abraão é descrito como sendo um integrante do povo semita amorita que habita Ur, uma cidade da Baixa Mesopotâmia. Ele, assim como sua família, era seminômade, e esta característica cultural é mantida quando ele se separa do clã de seu pai e inicia suas peregrinações na terra de Canaã, ao sul de Harã (Gênesis 12:4). Ao lermos as narrativas da história de Abraão notamos que ao longo do seu circuito de peregrinações ele estabeleceu diversos locais como santuários: Sua fundação era de acordo com as regras de escolha de um lugar de culto. Eles são estabelecidos onde um elemento natural manifesta a presença do Deus dos patriarcas — perto de uma árvore, uma colina, uma fonte, mas principalmente onde Deus se manifestou em uma teofania. Esses santuários localizam-se ao longo da rota dos patriarcas (De Vaux, 2003, p. 327).

Percebe-se uma estreita relação entre esses locais e as expressões religiosas de Abraão. Em alguns destes lugares são descritas a ocorrência de teofanias, aparições de Deus, ou de outros eventos significativos. Nesse primeiro momento da história podemos olhar para esta experiência como sendo bem incipiente e fortemente influenciada pela cultura semítica e cananeia: a. Gênesis 12:7 – Siquém (carvalho de Moré) – aparição e altar; b. Gênesis 12:8 (13:3) – Entre Betel e Ai – altar e invocação; c. Gênesis 13:18 – Hebrom (carvalhais de Manre) – altar; d. Gênesis 16:13 – Entre Cades e Berede (Beer-Laai-Roi) – invocação e poço; e. Gênesis 21:32 – Berseba (tamargueiras) – invocação f. Gênesis 22:2 – Moriá (monte) – holocausto

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As narrativas não nos oferecem detalhes sobre os altares, sobre as árvores, o poço ou o monte. Nem tampouco são descritas as formas litúrgicas de invocação. O que temos é uma estranha variedade de lugares e coisas que não formam uma unidade coerente com a identificação de Deus. Mais que isso, vemos uma variedade no uso de expressões ou nomes de Deus. Vale aqui a releitura da definição do termo el, descrita acima, para entender melhor algumas dessas variantes. a. El Elyom (Gênesis 14:18-22) – alto, superior, exaltado; b. El Shaddai (Gênesis 17:1) – autossuficiente, senhor, deus da chuva, deus da montanha; c. El Olam (Gênesis 21:33) – eterno; d. El Roi (Gênesis 16:13) – que vê; e. El Bethel (Gênesis 31:13) – da cidade de Betel (casa de Deus);

Há quem entenda que estas variantes estão apenas sugerindo percepções dos atributos de um mesmo e único Deus. Por outro lado, podemos pensar que a história dos patriarcas são compilações tardias, em forma de texto, daquilo que foi transmitido pela tradição oral. John Bright explica, Embora seja impossível descrever a religião dos patriarcas em seus pormenores, em virtude das falhas de nosso conhecimento neste campo, ela era claramente do tipo comum da religião da época. Em relação a quaisquer experiências religiosas pessoais que os patriarcas possam ter tido, não podemos naturalmente acrescentar nada ao que a Bíblia nos diz. Que os antepassados de Israel tenham sido antes pagãos é não só uma certeza a priori, mas também a própria Bíblia o afirma (Js 24:2, 14) (1978, p. 128).

Talvez o que os textos das narrativas de Gênesis queiram revelar, por meio dos autores e editores, é que o conhecimento de Deus ocorreu por um processo naturalmente humano, em meio às complexidades da vida e conforme contextos específicos. Mesmo que seu início tenha ocorrido por caminhos estranhos para nós hoje, como o paganismo e politeísmo, o que se vê na história de Abraão e de seus descendentes imediatos, Isaque e Jacó, é uma experiência curiosa, que no futuro

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conduzirá a uma compreensão diferente e mais elaborada, dando origem à fé javista. Por isso, Bright conclui, A religião patriarcal era assim uma religião de clã, na qual o clã era realmente a família do Deus patrono. Embora possamos supor que dentro do clã o Deus patrono fosse adorado acima de todos os outros deuses, quando não com exclusão de todos eles, seria errado chamar a este tipo de religião de monoteísmo. Também não sabemos se a religião dos patriarcas era uma religião sem imagens. A religião de Labão com certeza não o era (Gn 31:17-35). Entretanto, ela não se parecia nem com as religiões politeístas oficiais da Mesopotâmia nem com o culto da fertilidade de Canaã, de cujas orgias não há nenhum vestígio na narrativa do Gênesis (1978, p. 130).

Georg Fohrer concorda com Bright dizendo, Então, nossa primeira conclusão é de que no período antigo de Israel cada clã (e provavelmente também cada tribo) cultuava o seu deus particular. Esse é o mais antigo estágio que se pode discernir. Há uma multiplicidade de religiões de clã (e religiões tribais), de modo que a tradição está correta em sustentar que os pais cultuavam outros deuses (Gn 35:1-7; Js 24:2,1-15). Tudo aquilo que restou, naturalmente, são referências a quatro deles [Abraão, Isaque, Jacó e Moisés?]. Nesses casos, pelo menos o relacionamento pessoal entre a divindade e o fundador do culto, que provavelmente era também o fundado ou líder do clã, representa um importante papel. Por intermédio do fundador do culto, todo o grupo e sua posteridade se tornavam adoradores da divindade relacionada com seu ancestral (2012, pp. 46-47).

O que podemos compreender, então, é que a construção da ideia de Deus, a partir da história dos patriarcas, iniciada com o uso da expressão elohim e as variações de el, apresenta uma estreita relação com a experiência do líder do clã que é transmitida a gerações futuras. Deus, então, se torna o Deus de Abraão, depois o Deus de Isaque e depois o Deus de Jacó. Continuidades e descontinuidades à parte entre estas três representações, foram elas que conduziram a linha mestre para o entendimento de Deus na história de Israel. Observando, portanto, como Deus era entendido pelos patriarcas,

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além das características de poder, de criador e de superioridade, acima das outras divindades, temos, entre algumas possíveis constatações, o seguinte resumo elaborado por Fohrer: O deus do clã não é um deus do céu, nem está associado com um santuário local. Ele é um deus que protege os nômades errantes em suas viagens. Os nômades sentem-se dependentes da direção da divindade, porque movem-se entre forças que são estranhas e, frequentemente, hostis. Eles procuram a sua proteção, porque o seu deus conhece os caminhos e os perigos, e os guiará com segurança. Ele dá origem ao crescimento dos rebanhos, toma providências para que os proprietários dos territórios habitados sejam benevolentes durante a transumância anual ou dá ao fraco nômade a astúcia que o salvará diante do poderoso. Finalmente, ele o ajudará a ganhar a sua própria terra e fará com que a sua posteridade seja numerosa. A melhor expressão de todo esse complexo de idéias é a expressão idiomática que diz que a divindade está ou estará “com” a pessoa em questão (2012, p. 48).

Conclusão A tentativa de se construir o conhecimento sobre Deus, por meio de sua revelação bíblica, tomando como princípio metodológico a Teologia Bíblica, deveria nos remeter a uma postura de humildade e compreensão do fenômeno humano. Nossa busca pela transcendência e explicação da existência produziu várias representações religiosas desde os primórdios da humanidade. A experiência dos patriarcas, neste sentido, nos insere neste universo, apresentando um tipo de religiosidade e compreensão da divindade diretamente atrelado ao contexto e realidade daqueles habitantes do Antigo Oriente Próximo, com todas as suas limitações. Pensando, por exemplo, em uma aplicação imediata deste entendimento, podemos citar as ações missionárias da igreja quando em contato com outras realidades religiosas, quer seja em meio aos

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povos não alcançados quer seja em um contexto plurirreligioso como os grandes centros urbanos. Deus como aquele que quer revelar-se e relacionar-se com o ser humano parece bem mais condescendente com as tentativas humanas de contato transcendente do que aquilo que representa a maioria de nossas ações e posturas atuais por parte da igreja evangélica. O nosso pretenso exclusivismo teológico acaba tornando-se uma barreira para o diálogo e compreensão do fenômeno humano de anseio por Deus. Nossas rápidas condenações e fechamentos sistemáticos parecem divergir da paciência e tratamento divino para com o ser humano.

Referência BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978. DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2003. FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2012. GALBIATI, Enrico Rodolfo; ALETTI, Aldo. Atlas histórico da Bíblia e do Antigo Oriente. Petrópolis: Vozes, 1991. WRIGHT, Christopher J. H. God, names of. In: BROMILEY, Geoffrey W. (ed.) The international standard bible encyclopedia. Vol. 2. E-J. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.

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Anotações

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Introdução e Teontologia

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 11 DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO – TRADIÇÃO MOSAICA

Introdução Continuando a sequência bíblica, na busca de entender a construção do conhecimento de Deus elaborada pelo povo de Israel, passamos para a próxima fase histórica representada pela tradição mosaica. Esta importante fase é a que inicia a construção da fé monoteísta no Deus Javé, que será a marca distintiva e principal elemento catalizador da coesão social deste povo.

Objetivos 1) Compreender as formulações teológicas sobre Deus oriundas da tradição mosaica; 2) Promover a composição dos conhecimentos obtidos no estudo da sequência bíblica (patriarcas e tradição mosaica) para obtenção de uma ideia ampla sobre Deus.

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Seguindo a sequência bíblica, após termos mergulhado no período dos patriarcas, nos deparamos agora com um novo momento histórico do povo de Deus, que inaugura uma radical transição contextual, religiosa e teológica. Se durante o período patriarcal temos uma perspectiva de vida percebida desde a realidade e desafios de um contexto seminômade, durante o longo período de desenvolvimento da tradição mosaica encontramos uma variedade de situações e contextos, que se contrastam e se complementam, como num estado transicional para algo mais permanente. Os relatos bíblicos narram as dificuldades enfrentadas pelo clã de Jacó na luta pela sobrevivência em um período de escassez de alimentos em Canaã. A saída encontrada para esta situação foi o refúgio no Egito, um poderoso império que possuía condições de abrigar os estrangeiros. Werner Schmidt sintetiza esta experiência: Quando o AT fala de uma razão para a migração ao Egito, aponta simplesmente para o instinto de preservação. Que a ameaça de fome forçava a migração (Gn 12:10; 26:1; 41:57; 42:1ss; cg. Rt 1:1,6) é confirmado pelo relato de um funcionário de fronteiras egípcio mais ou menos contemporâneo da saída de Israel: os guardas deixavam passar os nômades que queriam entrar em território egípcio, “a fim de manter com vida a eles e seus rebanhos pelo beneplácito do faraó”1 (2004, p. 68).

Schmidt continua seu argumento comentando sobre a deterioração da situação de vida desse povo no Egito, após a permanência que durou alguns séculos, e a causa da saída de seus descendentes de lá. Durante sua permanência na região do Delta, os antepassados de Israel tiveram que prestar trabalhos forçados — como aconteceu mais tarde com estrangeiros que trabalharam nas obras de Salomão (1 Rs 9:15, 19 e outras). Contudo, o AT não entende essa obrigação aparentemente habitual de realizar trabalhos forçados (politicamente) como prestação de serviços ao Estado egípcio, mas (teologicamente) como maquinação dos egípcios para “oprimir” Israel e, assim, impedir a multiplicação do povo e, por conseguinte, a realização da promessa (Ex 1:10s) (2004, p. 68). 1

Schmidt faz referência aqui a fontes arqueológicas egípcias.

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Os textos introdutórios desta história não apresentam detalhes deste longo período. Não sabemos o que ocorreu durante aquele tempo, apenas que o povo sofreu uma transição na forma como era tratado pelo governo egípcio até o ponto de se considerar que viviam sob uma situação de opressão social, econômica e política. O personagem central desta história é Moisés. Foi em torno dele que se construiu uma nova compreensão sobre Deus que passou para todo o grupo de pessoas que veio a se constituir, no futuro, o povo de Israel.

1- Deus como Yahweh (Javé) O texto central que conduz a revelação bíblica rumo a essa nascente tradição é o de Êxodo 3:1-4:17. Ali, vemos Moisés diante de uma teofania que procura associar a tradição patriarcal a um novo conhecimento sobre Deus: Disse ainda: “Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó”. Então Moisés cobriu o rosto, pois teve medo de olhar para Deus [...] Moisés perguntou: “Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus dos seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é o nome dele?’ Que lhes direi?” Disse Deus a Moisés: “Eu Sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês”. Disse também Deus a Moisés: “Diga aos israelitas: O Senhor, o Deus dos seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó, enviou-me a vocês. Esse é o meu nome para sempre, nome pelo qual serei lembrado de geração em geração” (Êxodo 3:6, 13-15).

O que torna este texto interessante é exatamente a tentativa em associar a experiência de Moisés com a experiência religiosa do povo, cuja referência é a tradição de seus antepassados. A narrativa descreve que Moisés estaria diante de uma divindade desconhecida. A primeira tentativa de identificação é a afirmação de que esta divindade era “o Deus de seu pai” ou o Deus dos patriarcas. Curiosamente, a pergunta de Moisés confirma o seu desconhecimento e, também, do próprio povo. Nem Moisés nem o povo sabiam o “nome” de Deus, mesmo tendo a designação como Deus de Abraão, Deus de Isaque e

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Deus de Jacó, conforme procura explicar o próprio texto mais adiante: “Disse Deus ainda a Moisés: ‘Eu sou o SENHOR. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como o Deus Todo-poderoso, mas pelo meu nome, o SENHOR, não me revelei a eles’” (Êxodo 6:2-3). Alguns estudiosos argumentam que o nome Yahweh é anterior ao tempo de Moisés, por isso, Christopher Wright argumenta que não se trata aqui de não se saber o nome no sentido de uma simples nominação, mas no sentido de caracterização: Uma exegese mais cuidadosa de Ex 6:3, entretanto, mostra que esta passagem diz respeito ao caráter e conteúdo dos respectivos nomes ’El Shaddai e Yahweh, não simplesmente conhecimento dos nomes propriamente. Poderia ser, assim, traduzido: “Eu apareci a Abraão ... no caráter de ’El Shaddai, mas como o caráter do meu nome Yahweh eu não me fiz conhecido” [...] O que era novo no chamado de Moisés e no Êxodo não era a revelação do nome em si mas uma nova experiência de seu significado, associado com a fidelidade de Deus à sua promessa de aliança e atos redentores em favor de seu povo (1982, p. 507).

Por outro lado, Schmidt, que concorda com o argumento de Wright, sugere um ambiente e pressuposto politeísta para a narrativa: Por mais significativo que seja o frequente “Eu sou Javé” no AT, esta forma de falar como tal provém do politeísmo. A divindade se apresenta pelo nome, para que o interlocutor saiba quem ele tem diante de si (compare com Gn 17:1; Ex 6:2 P com Gn 45:3). No Antigo Oriente, a divindade geralmente usa o nome que a define e distingue de outras. Só o nome da divindade permite que se possa falar dela e com ela; pois somente pelo fato de ela ter um nome e agir como pessoa denominada, os mitos podem falar sobre os deuses e seus feitos (2004, p.98).

É claro que tanto o contexto de Moisés quanto o do povo é formado pela cultura egípcia, sabidamente politeísta. Quanto à situação religiosa dos descendentes dos patriarcas, não é de se supor que não tivessem sofrido a influência dessa cultura e adotado suas religiões e crenças, talvez até mesmo de forma sincrética com a fé patriarcal. Daí a interrogação de Moisés carregar uma dupla

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significância. Vale recordar também o conhecido caso da confecção e adoração ao Bezerro de Ouro, realizada pelo povo, após a saída do Egito (Êxodo 32). Sendo, portanto, este Deus que se apresenta a Moisés um desconhecido, no sentido de sua caracterização ou no sentido de diferenciação em meio às outras divindades, a sua nominação se torna um evento fundamental para toda a história que será desenvolvida adiante. Nosso foco se volta, então, para o significado e impacto que a autodenominação de Deus como Yahweh tem para a construção da teologia nesta tradição. Recorremos, então, à explicação de John Mackenzie sobre o termo Yahweh: O Deus de Israel é chamado por seu nome pessoal, mais do que por todos os outros títulos juntos; o nome não somente identificava a pessoa, mas revelava seu caráter. Este nome é agora pronunciado Iahweh pelos estudiosos; a verdadeira pronúncia do nome perdeu-se durante o Judaísmo, quando um medo supersticioso do nome evitava seu enunciado. Em seu lugar, era lido Adonai, “Senhor”; a combinação na escrita das consoantes IHWH e as vogais de Adonai, a-o-a, criaram o híbrido Jeová. O significado do nome, etimologicamente, é muito controvertido. A LXX traduziu-o por “Aquele que é”, e a Vulg. “Eu sou quem sou”. Há acordo geral em que o nome deriva da forma arcaica do verbo ser, hawah; outras etimologias propostas são demasiadamente numerosas para serem citadas. W. F. Albright interpretou o nome como derivado da forma causativa e propões que ele seja somente a primeira palavra do nome completo yahweh asher-yihweh, “Ele traz ao ser tudo o que vem do ser”. O nome, portanto, o designaria como criador, e esta etimologia é considerada como a mais provável por muitos estudiosos (1983, p. 231).

Wright procura expandir um pouco a discussão em torno da etimologia da expressão Yahweh propondo uma interpretação ainda mais entrelaçada à toda a história que será desenvolvida no Êxodo: Em Ex 3:14ss Deus declara que Seu nome é ’ehyeh ’aser ’ehyeh. O verbo ’ehyeh é qal imperfeito e está obviamente ligado ao tetragrama [YHWH], como os versículos 14ss tornam claro. Dos dois possíveis sentidos, “Eu sou quem/o que sou” e “Eu

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serei quem/o que serei”, o último é preferível mas não porque a ideia de Deus como um ser auto-existente, único e transcendente seja “estranha ao pensamento hebraico”, como frequentemente tem sido dito (cf. Is 40-55, que descreve Yahweh em linguagem exaltada que implica todas essas coisas). Antes, é preferível porque o verbo hayâ tem um sentido mais dinâmico de ser — não pura existência, mas vir a ser, acontecer, ser presente — e porque o contexto histórico e teológico deste primeiros capítulos do Êxodo mostra que Deus está se revelando a Moisés, e subsequentemente a todo o povo, não a natureza interior de Seu ser, mas Sua ativa e redentora intenção em seu favor. Ele “será” para eles “o que” Seus feitos mostrarão que Ele “virá a ser”. É especialmente esclarecido que Ele será “com” eles. No contexto do chamado de Moisés e da revelação da significância do nome divino, a promessa “Eu serei com você/sua boca” ocorre três vezes (Ex 3:12; 4:12, 15). A presença de Deus é então cumprida na aliança, cujo prefácio vital é Deus proclamando a si mesmo um Deus redentor (20:2) e perdoador (34:6). “É a garantia da presença do Deus Salvador com o seu povo da aliança que é incorporado ao nome Yahweh” (1982, p. 507).

Para Wright, a apresentação do nome de Yahweh como “Eu serei quem serei” tem uma significância mais associada à construção literária e teológica em torno de toda a história de libertação do Egito e aliança sinaítica do que um propósito de nominação em si. A construção teológica, então, passa a receber um tipo de formulação de lembrança da ação divina com perspectiva de ação futura: “Eu sou Yahweh, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão. Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20:2-3). Esta formulação será constantemente revisitada ao logo das Escrituras, reforçando a identificação de Deus como Yahweh. No entanto, não podemos nos esquecer de que a construção do conhecimento sobre Deus não se inicia com Yahweh e sim com elohim e el, ou seja, nesta nova proposta encontramos a indicação de associação de ideias afirmando que Yahweh é o mesmo Deus dos patriarcas, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Schmidt nos auxilia na compreensão deste processo:

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De acordo com o testemunho de Gênesis, o relacionamento entre Deus e os pais — que viviam em famílias ou clãs — era direto; por outro lado, de acordo com o livro de Êxodo, há a necessidade de um mediador entre Javé e o grupo: Moisés é “enviado” ao povo (Êx 3:10ss). Mesmo assim, existe uma profunda característica comum: também àqueles que saem do Egito e peregrinam pelo deserto é dada a condução divina experimentada pelos patriarcas. E mais: de certa maneira a tradição patriarcal parece transferir sua índole para a tradição do êxodo: esta conhece o mesmo Deus do futuro, que anuncia salvação, que anda à frente no caminho, que cuida de seus protegidos em situações aflitivas, até conduzi-los à terra prometida. A promessa de descendência e posse de terra, feita aos pais, se renova na promessa divina a Moisés e no prenúncio do êxodo (2004, p. 66).

Schmidt aponta para continuidades e descontinuidades na construção do conhecimento de Deus quando do encontro das duas tradições. É curioso o destaque que ele faz de que Yahweh introduz uma noção de distanciamento entre Deus e o povo com inserção da figura de um mediador. Por outro lado, Deus permanece sendo aquele que caminha com seu povo, conduzindo-os, em segurança, mesmo em meio a dificuldades, a lugares de descanso. Outra característica fundamental de Yahweh é sua expressa demanda por exclusividade. Em meio a um passado e presente contexto cultural politeísta, mesmo considerando as experiências anteriores e certa licenciosidade, Deus agora expressa-se como única opção para o povo de Israel dada a sua superioridade e unicidade. Cada vez mais isto se constitui um fator evidente na relação entre Deus e seu povo, dadas as situações de embate e comparações com as realidades dos povos vizinhos, que como Yahweh ele é Senhor dos senhores e Deus dos deuses. A primeira referência aparece na simbólica disputa com os deuses, mágicos e sacerdotes egípcios, além da figura divinizada do faraó, e a segunda com os próprios deuses de seus antepassados. Daí, as primeiras exigências feitas para o novo momento de entendimento de Deus na relação com o povo se dar no resumo dos quatro primeiros mandamentos do decálogo, levando-nos aos primórdios do monoteísmo israelita:

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Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e guardam os meus mandamentos. Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão (Êxodo 20:3-7).

A representatividade de Moisés é outro elemento que salta aos olhos e que também será perpetuado até o tempo de Jesus. Moisés, ou a tradição mosaica, será sinônimo de uma religiosidade atrelada ao código legal que contém aspectos litúrgicos e éticos reunidos em vários compêndios de épocas e edições distintas, mas com uma perspectiva relativamente comum.

2- Deus da aliança e da Lei Alguns autores defendem a ideia de que a tradição mosaica apresenta, no fundo, duas grandes tradições, a da libertação do Egito e a da aliança no monte Sinai, também denominado Horebe. Elas aparecem editorialmente conectadas por meio da aparição de Deus a Moisés, enquanto pastoreia as ovelhas de seu sogro, evento já explorado anteriormente, quando temos a revelação da caracterização de Deus com Yahweh, e, posteriormente após a saída do Egito, quando ocorre a aliança entre Deus e todo o povo (Êxodo 19). Sobre este fato, Schmidt faz a seguinte análise: Após a aparição de Deus a Moisés (Êx 3; 6), a revelação de Javé no Sinai fundamenta o relacionamento entre Deus e o povo. Assim, a descrição da revelação no Sinai ocupa o espaço mais amplo do Pentateuco, mas surpreendentemente ela raras vezes é mencionada fora dessa obra historiográfica, sendo bem secundária em comparação com a confissão da libertação do Egito (2004, p. 79).

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O que Schmidt está chamando a atenção é de que a aliança entre Deus e o povo, que instaura a relação de obediência aos mandamentos presentes nos códigos legais, ocupa a maior parte dos textos do livro de Êxodo, e do Pentateuco em geral, comparada com o grande ato de libertação do Egito. No entanto, ao longo das Escrituras, o evento de libertação será, comparativamente, mais revisitado do que evento do Sinai, ainda que a Lei, como conteúdo e preceito seja fundamental para a fé javista. Ainda assim, é importante destacar esta intrínseca relação construída entre a fé em Yahweh, o único Deus de Israel, e a aliança estabelecida, intermediada pela Lei, como forma de demonstração desta fé. No primeiro momento, o da libertação, entendemos que Deus vê a opressão, se importa com ela e age no sentido de impedi-la. Este ato ocorre como algo unilateral da parte de Deus, dado o desconhecimento do povo de quem ele era e da ausência de uma relação entre eles. A informação seguinte é a de que Deus, como já revelado anteriormente, seguindo a tradição patriarcal, é aquele que caminha com o povo e o conduz em segurança a um lugar melhor. No segundo momento, no Sinai, encontramos parâmetros mais concretos desta nova relação que passa a ser construída como uma aliança, um pacto, um casamento. Embora a edição dos textos reúna diversos relatos e tradições que parecem carecer de uma organização temporal ou temática mais ordenada, o resultado que temos é o de que a aliança se baseia em duas premissas básicas, uma por parte de Deus e outra por parte do povo (Êxodo 23:20-33; 34:10-17). Deus assume a responsabilidade de cuidado do povo garantindo a posse da terra para a qual ele os conduziria, além de prosperidade. A posse, no entanto, se daria pela conquista dos povos que habitavam Canaã após batalhas vitoriosas. A responsabilidade do povo na aliança consistia na prática da fé exclusiva em Yahweh, demonstrada pela ausência de cultos e imagens de outros deuses em sua cultura religiosa, mas, principalmente, na obediência às leis apresentadas por Moisés. É fundamental percebermos que a questão religiosa, embora apresentada na forma radical de extirpação violenta de qualquer outra prática, não consiste no tema central da responsabilidade do povo na aliança. O foco principal é o cumprimento da Lei. Isto é demonstrado tanto pelo volume de texto dedicado aos códigos legais, quanto pela

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simples lógica de que a questão de extirpação de outras religiões não garantiria por si só a fé em Yahweh, nem mesmo a prática de novos rituais litúrgicos. O que realmente demonstra a fé javista é a vivência em sociedade que demonstre o caráter de Yahweh expresso em sua Lei, que não apenas contrasta com a opressão do Egito como também com os sistemas dos outros povos. No conteúdo das Leis é que encontramos qual o projeto de vida proposto por Deus ao seu povo. Vemos ali que mesmo a prosperidade não surge do nada ou cai do céu. Ela é produzida nas relações equilibradas que promovem a justiça e a paz na terra. Neste sentido, os Dez Mandamentos são um resumo introdutório deste princípio por trás da Lei. Os quatro primeiros mandamentos são de cunho religioso, mas os outros seis são referentes às relações entre as pessoas. Ali encontramos, na forma de negativas, ações práticas de relacionamento social que promovem um ambiente de justiça e paz: “não matarás; não adulterarás; não furtarás; não darás falso testemunho contra o teu próximo; não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20:13-17). Depois do Decálogo encontramos mais leis, que fazem parte da aliança, entre os capítulos 21 e 24. Nos outros livros do Pentateuco vemos a ampliação detalhada dos códigos legais consolidando a tradição mosaica. Enfim, em tese, o descumprimento de qualquer dos mandamentos representa o descumprimento de toda a Lei, não havendo distinção entre leis religiosas e civis.

Conclusão Como indicado por Mackenzie, Yahweh nos remete à ideia de criador e ainda que o foco central do texto não seja a discussão das questões da transcendência e existência não podemos ignorar que há nesta denominação, formada a partir do verbo ser, um interessante aspecto revelador. Yahweh não é um nome genérico como Elohim ou ainda alguma variante de El. Também não é um nome que insira um

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fator limitante à divindade; ao contrário, ele não apenas nos remete à importante busca pela transcendência e explicação da existência, como aponta para uma relação de intervenção cuidados e construção de um relacionamento futuro, oferecendo a possibilidade de sentido e propósito ao ser humano. Encontramos em Yahweh a ideia de exclusividade na expressão da fé, por meio de uma aliança, que tem como consequência a demonstração do caráter de Deus que busca a promoção do ser humano em uma vivência de justiça e de paz sobre a terra.

Referência MACKENZIE, John L. Dicionário bíblico. 6 ed. São Paulo: Paulus, 1983. SCHMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004. WRIGHT, Christopher J. H. God, names of. In: BROMILEY, Geoffrey W. (ed.) The international standard bible encyclopedia. Vol. 2. E-J. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.

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Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 12 DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO – LIGA TRIBAL E MONARQUIA

Introdução Estes períodos históricos apresentam uma significante mudança contextual para o povo de Israel que é a sua sedentarização na terra de Canaã sob dois tipos distintos de organização política. A primeira e interessante forma de organização se dá com a liga tribal e a segunda com a instauração da monarquia. Cada momento traz os seus desafios próprios e contribuições para o entendimento de Deus.

Objetivos 1) Compreender as formulações teológicas sobre Deus oriundas dos períodos da liga tribal e monárquico; 2) Promover a composição dos conhecimentos obtidos no estudo da sequência bíblica (patriarcas, tradição mosaica, liga tribal e monarquia) para obtenção de uma ideia ampla sobre Deus.

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Os períodos históricos dos patriarcas e da instauração da tradição mosaica representam grandes fundamentos teológicos para o conhecimento de Deus. Nos períodos subsequentes temos a impressão de que este conhecimento é colocado em prática na vivência do povo de Israel. Melhor, o conhecimento é expandido como forma de entender a profundidade da pessoa de Deus e de sua ação à medida que novas realidades contextuais se apresentam. De maneira mais resumida, apresentarei dois momentos que complementam a sequência bíblica do Antigo Testamento. Comparativamente, estes momentos representam um volume maior de textos e embora sirvam como base para a revelação divina sobre o conhecimento de Deus, diferente dos outros dois momentos anteriores, não ocorrem neles grandes discussões doutrinárias acerca da pessoa de Deus. O que observamos é mais a interação do conhecimento de Deus com a vida humana, levando-nos ao conhecimento de outras doutrinas que possuem relação direta e funcionam como desdobramento deste conhecimento inicial. Na realidade, a revelação bíblica não apresenta as divisões doutrinárias a que nos acostumamos a lidar. É em meio à revelação da pessoa de Deus que descobrimos os temas da criação, do pecado, da salvação, de Cristo, do Espírito, da Igreja, das últimas coisas e tantas outras. Tudo permeado pelos grandes temas do amor, justiça, bondade, esperança, paz, etc.

1- Deus no período da liga tribal Esse período histórico é compreendido pelo tempo em que se dá a efetiva conquista de Canaã e o assentamento do povo naquele território. Os principais textos são os livros de Josué e Juízes cuja intenção é cobrir o período aproximado entre 1250 a 1050 a.C. Considera-se que é durante este tempo que Israel definitivamente toma forma como um povo cuja identidade se constrói atrelada a fé em Javé (Yahweh). Como qualquer fenômeno humano, esta formação não se dá de forma simples nem imediata. Pelo contrário, todos os elementos históricos e contextuais demonstram o curioso processo pelo qual passou a nação de Israel até fazer a transição para um estado soberano sob o sistema monárquico.

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A conquista do território, interpretada por alguns como como uma Guerra Santa, é sugerida por Werner Schmidt como tendo sido uma ocupação longa cujas guerras não representam um esforço único de conquista, mas a descrição dos constantes embates que ocorriam entre os povos pelo domínio da terra. Ele também chama a atenção para a formação do povo por meio de vários movimentos e grupos que vieram a compor a nação de Israel. A unidade “Israel” nasceu somente na Palestina. Por isso, a despeito da descrição do livro de Josué, a Palestina dificilmente foi conquistada numa única expedição militar sob o comando de Josué. Provavelmente os diversos grupo e tribos se estabeleceram somente de forma isolada, gradual e sucessiva na região montanhosa; eles vieram de diferentes direções e no decurso de um longo período. Seu domínio também não abrangia toda a Palestina, nem mesmo formava um território coeso. O litoral, as planícies e várias cidades-estado permaneceram ainda por longo tempo nas mãos dos cananeus. A população nativa, naquela época, não tinha uma organização política homogênea; o território se dividia em múltiplas entidades políticas singulares (2004, pp. 167-168).

Outro aspecto fundamental neste processo foi a sedentarização, ou seja, a mudança no modo de organização social daqueles grupos. A transição definitiva de um modo de vida (semi) nômade para o camponês aboliu um antagonismo entre os antepassados de Israel e os cananeus, facilitando, assim, o relacionamento. No decorrer do tempo, diluíram-se também as limitações geográficas entre o Israel das montanhas e as cidades-estado cananéias, de modo a surgirem estreitos contatos com a cultura urbana (cf. Js 9; 16:10) (Schmidt, 2004, p. 169).

A fixação destes grupos teve como elemento característico e diferencial a formação de uma liga entre as diversas tribos que ocuparam o território. John Bright chama a atenção para o importante fato de que o elo ideológico para a manutenção da Liga Tribal foi a religião, ou seja, a fé javista: Inicialmente, encontramos Israel na Palestina como uma confederação ou liga sagrada de doze tribos (muitas vezes

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chamadas de anfictionia). Foi dentro da estrutura desta liga que as tradições sagradas de Israel e suas instituições se desenvolveram e receberam sua forma normativa. Assim, poderia parecer um método descrever primeiro a natureza da organização tribal primitiva de Israel, antes de nos ocuparmos de sua religião, que se pode ver refletida nas suas tradições e instituições normativas. Contudo, de certo modo, isto seria inverter a ordem das coisas. Embora seja verdade que conhecemos a religião de Israel primitivo somente através das tradições da liga tribal, de modo nenhum esta religião foi um mero adjunto da liga ou uma excrecência em sua vida. A confederação tribal não criou sua religião de uma maneira secundária. Pelo contrário, a religião era parte constitutiva da federação. A liga das tribos era uma constituição sagrada, que se baseava na religião e nela se expressava. Se não fosse a natureza característica de sua religião e da aliança que lhe deu origem, Israel não teria nenhum elemento que o separasse de organizações similares do mundo antigo (1978, pp. 184-185).

Bright insiste que, embora a Liga não fosse uma monarquia, ela significava um reinado: “A aliança significava a aceitação da soberania de Iahweh por Israel, e foi justamente aqui que começou a noção do domínio de Deus sobre o povo, o Reino de Deus, tão central no pensamento de ambos os Testamentos” (1978, p. 197). Alguns autores se referenciam a esta fase histórica como uma teocracia, o governo de Deus, em que, como explica Bright, A obrigação religiosa era baseada num favor antecipado de Iahweh; por isso, a aliança não dava a Israel nenhum direito de colocar Iahweh em qualquer dívida para o futuro. A aliança deveria ser mantida somente enquanto as cláusulas da soberania divina fossem observadas. Ela exigia obediência para ser mantida, bem como a renovação contínua de uma livre escolha moral por parte de cada geração. As cláusulas da aliança, primariamente, eram que Israel aceitasse o domínio do seu Deus-Rei, não tivesse qualquer contato com nenhum outro deus-rei e obedecesse à sua lei em todos os seus atos com outros súditos do seu domínio (isto é, irmãos de aliança) (1978, pp. 198-199).

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As tribos unificadas pela fé em Javé tinham autonomia e liderança própria, conforme o sistema de clã. Mas por causa do parentesco, sanguíneo ou histórico, atrelado ao passado e à tradição mosaica-sinaítica, que também significava um parentesco religioso, elas estabeleceram uma inovadora cooperativa de ajuda em situações de dificuldade. Mais especificamente, estas situações eram ameaças concretas de povos circunvizinhos que resultavam em guerras. Sem um exército e liderança fixa que representasse essa união das tribos, elas se reuniam sob o comando de um representante de todos, capacitado pelo carisma de Javé. Esses líderes foram chamados de juízes. A figura e a ação do juiz eram entendidas como a intervenção de Javé no cuidado de seu povo. Parece iniciar-se neste período a ideia de um Deus associado à guerra, como também acontecia em outras culturas. Deus se torna o líder, condutor e principal responsável pelos sucessos ou fracassos dos exércitos da Liga, passando a receber a designação de “Senhor dos Exércitos (Yahweh saba)” (1 Samuel 1:3). Esta ideia será reforçada no período monárquico. Cabe ainda citar aqui um dado relevante sobre o javismo, ainda não comentado, que é a sua forma de culto. Conforme registrado no Pentateuco, o culto a Javé ficou associado ao Tabernáculo e às festas cíclicas. O culto do Tabernáculo é primeiramente entendido como uma típica expressão da realidade cultural do tempo do deserto, antes do assentamento em Canaã. Mais especificamente, tratava-se de um culto em uma tenda, semelhante às tendas em que as pessoas habitavam, porém, dedicada ao serviço religioso. Schmidt explica em mais detalhes o que representava a tenda: A “tenda da reunião, do encontro” era, como já revela o nome, o local de culto de quem morava em tendas. De fato, ela é atestada de forma inequívoca apenas no período do deserto; e santuários de tendas semelhantes eram usados também por outras tribos nômades. Segundo a tradição antiga, a tenda se encontrava fora do acampamento, já que era um espaço sagrado, separado da área residencial normal (Êx 33:7-11; Nm 11:16s., 24ss.; 12:4s., 10; Dt 31:14s.). De acordo com concepções mais recentes, a tenda tornou-se o centro, em torno do qual se ordenava o acampamento. Já cedo a tenda parece ter desaparecido; as

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informações posteriores sobre sua estadia em Silo (Js 18:1; 1 Sm 2:22 e outras) ou Gibeom (1 Cr 16:39 e outras) são menos dignas de confiança [...] No santuário ambulante cada um podia consultar Deus (Êx 33:7), não somente o sacerdote. Ele era, ao que parece, simultaneamente lugar do oráculo e local da aparição de Deus. Este encontro era entendido como acontecimento: ele “não” mora permanentemente na tenda, como as divindades dos santuários da terra do cultivo, mas ele vem à tenda quando se o procura (2004, pp 193-194).

O que se entende por esse tipo de religiosidade é que Javé era um Deus acessível, próximo, assim como no tempo dos patriarcas, e que que habitava com seu povo. A construção religiosa e teológica em torno da descrição de um Tabernáculo mais elaborado e restrito aos ofícios dos sacerdotes é entendida como sendo uma edição posterior da tradição literária sacerdotal do chamado Segundo Templo (Bright, 1978, p. 214). A intenção teológica deste grupo era remeter a importância da figura e ofício sacerdotal ao início do javismo. No entanto, alguns autores concordam ao entender o início do javismo como uma representação de Deus menos complexa e mais próxima do povo. Nesta mesma direção, Bright defende que já no tempo do assentamento, após o período do deserto, quando não se tem muita referência sobre a importância e lugar da tenda, mais relevante do que qualquer liturgia relacionada a ela, o que mais representava o culto a Javé eram as festas. O culto de Israel primitivo não se centralizava num sistema sacrificial, mas em certas grandes festas anuais. O Livro da Aliança, relaciona três (Ex 23:14-17; 34:18-24), nas quais o orador deveria apresentar-se diante de Iahweh: a festa dos ázimos, a festa da ceifa e das primícias e a festa da colheita. Todas estas festas eram mais antigas do que Israel e, salvo a festa da Páscoa, eram todas de origem agrícola. Israel recebeu-as de fora. E que não nos cause estranheza este seu modo de proceder. Devemos notar que Israel logo deu uma significação nova a tais festas, atribuindo-lhes um conteúdo histórico. Elas deixaram de ser meras festas da natureza, tornando-se ocasiões em que se celebravam os feitos poderosos de Iahweh em favor de seu povo (1978, p. 218).

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Este dado sobre as festas é bastante interessante se pensarmos que ele revela uma identidade de Deus que amplia ainda mais a ideia de proximidade. A festa é um evento que nos remete imediatamente à comunhão, à alegria, à celebração da vida e do cuidado diário de Deus. Nela os grandes atores são os membros das famílias e não os sacerdotes. Celebra-se com cânticos, refeições e inclusividade. Rapidamente, podemos associar esta ideia à maneira como Jesus teria descrito sua missão, desde a perspectiva escatológica do Reino de Deus, comparando-a com uma grande festa (Mateus 22:1:14).

2- Deus no período da monarquia O ambiente contextual que tornou o momento propício à mudança do sistema de organização política do povo de Israel, de uma confederação de tribos para uma monarquia, foi a incapacidade da liga tribal em lidar com as constantes investidas militares do povo filisteu. Os filisteus habitavam a planície costeira do leste e queriam controlar a rota comercial para o oeste passando pelo território montanhoso israelita. As narrativas bíblicas indicam que Saul, da tribo de Benjamin, demonstrou a habilidade carismática e militar necessária para, como líder, ser capaz de enfrentar a ameaça filisteia. Ainda que o modelo de liderança até então utilizado fosse a dos juízes, dada a vacância do cargo com a velhice de Samuel e a ausência de outros, os anciãos das tribos viram em Saul esta figura, no entanto, parecem ter iniciado de maneira gradual um processo de construção da figura de um rei. Como em qualquer sociedade, essa transição se deu com apoios e resistências. Mesmo os relatos bíblicos deixam transparecer essa dualidade de perspectiva. Sob um ponto de vista, a instauração da monarquia era entendida como rejeição do reinado de Javé (1 Sm 8). Sob outro ponto de vista via-se no rei um líder com o carisma de Javé, capacitado como os juízes, para liderar o povo em suas batalhas (1 Sm 10:1-13). É exatamente em torno de Saul que se constrói esta tentativa transicional entre o juiz e o rei sem, contudo, trata-lo com todas as estruturas monárquicas. Uma fonte (1 Sm 8:5,20) denuncia a monarquia como uma imitação das nações pagãs. E assim foi: uma instituição de certo

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modo estranha a Israel, apesar de comum em outros lugares, e portanto sugerida a Israel por seus vizinhos. Mas a Monarquia de Israel era única. Certamente, não era moldada no sistema de cidade-estado feudal, como Canaã e na Filistéia. Apesar de ter assimilado características de Edom, Moab e Amon, ela permaneceu um fenômeno caracteristicamente israelita, no começo mudando o menos possível a antiga ordem [...] Mas, é interessante que a fonte que fala da unção de Saul (1 Sm 9:1s até 10:16; 13:4b-15) não faça referência a ele como rei (melek), e sim como “líder” ou “comandante” (nagîd). Isso pode significar que Samuel e os anciãos da tribo nunca pretenderam elevar Saul à dignidade de rei no sentido convencional, desejando simplesmente que ele servisse como líder militar. Porém, quaisquer que tenham sido suas intenções, podemos estar certos de que, no começo, o povo pensava em Saul como rei, e logo começou a dirigir-se a ele como tal (o título era comum entre os vizinhos de Israel, e é regularmente aplicado a Saul em qualquer outra parte das fontes) (Bright, 1978, pp. 245-246).

É com Davi, no entanto, que a transição para a monarquia se concretiza. Algumas circunstâncias contribuíram para isso. Primeiro a carreira independente de Davi que o levou a conquistar o título de rei de Judá, sua tribo de origem, com o apoio dos filisteus. Depois a personalidade desequilibrada de Saul, que descuidou de suas obrigações como líder das tribos na defesa do território contra os filisteus para empreender uma perseguição pessoal a Davi. Quando Saul é derrotado e morto pelos filisteus, seu filho Is-bosete, que estava exilado, não obteve apoio suficiente para sucedê-lo (2 Sm 2:8-11). Assim, as outras tribos viram em Davi o líder capaz de assumir o comando da nação, desta vez, contudo, com as prerrogativas de rei. As Escrituras descrevem o herói Davi como um personagem carismático, mas muito humano e sensível. É nas entrelinhas, entretanto, que vemos a sua habilidade em construir em torno de si um governo e estrutura que possibilitaram instaurar finalmente a monarquia em Israel, ainda que em breve tempo ela sucumbisse, dividindo-se em dois reinos, devido às diferenças irreconciliáveis que sempre rondaram os dois grupos que representavam o seu reino —

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o grupo original do sul, representado por Judá, e as outras tribos do norte anexadas após a morte de Saul. Pode ser considerado um grande mérito de Davi ter conseguido resgatar a fé em Javé como elo ideológico para manter as tribos unidas sob o seu governo. Estrategicamente, Davi escolhe uma cidade neutra para estabelecer a sede do reino, que ficava localizada na fronteira entre o território do sul e do norte. Em Jerusalém, que pertencia ao jebuseus, ele constrói o seu palácio e reúne os dois principais elementos religiosos, que estavam esquecidos pelo povo: a arca e a tenda. Com essa ação ele gerou uma associação, comum em outros povos, que foi a tendência à divinização da figura do rei. Bright explica: Todavia, isto significava que a instituição da realeza, originalmente estranha a Israel e aceita de má vontade por muitos, tinha conseguido um lugar na teologia javista. A realeza, em Israel como em qualquer outra parte, era uma instituição sagrada, isto é, não secular: tinha bases teológicas e litúrgicas. Uma noção oficial de realeza era reafirmada regularmente durante o culto, no qual, em ocasiões festivas — provavelmente, em especial na grande festa outonal do ano novo — o rei desempenhava um papel importante [...] Alguns estudiosos afirmam que, adotando a instituição da realeza, Israel também adotou uma teoria pagã da realeza e um padrão ritual, para expressá-la de modo supostamente comum a todos os seus vizinhos [...] O rei de Israel era chamado o “filho de Iahweh”, mas apenas num sentido adotivo (cf. Sl 2:7); ele era o substituto de Iahweh, reinando por escolha e sob permissão divinas, com a tarefa de promover justiça sob pena de punição (Sl 72:1-4, 12-14; 89:30-32). Ele estava sujeito à censura dos profetas de Iahweh, censura que frequentemente recebia (1978, pp. 296-298).

A monarquia e todo o aparato necessário para mantê-la (1 Samuel 8:10-17), a partir deste momento, passou a representar um conflito ideológico. A cultura tribal, que significava maior autonomia dos clãs na busca de seus próprios interesses e maior proximidade entre as pessoas e Deus, contrastava com a nova cultura monárquica, que fazia do rei o representante de Deus e, portanto, exigia a manutenção de toda a corte e sua estrutura. Neste período, Deus passa a ser associado e representado, popularmente, pela figura do principal líder do povo,

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o rei. Este tipo de concepção, de certa forma, ainda está presente na teologia cristã, porém, atrelada a outros tipos de liderança. Também, como mencionado anteriormente, dado o ambiente de constante conflito entre os povos na Palestina, reforçou-se o conceito de Deus como o “Senhor dos Exércitos” (Yahweh saba) e “Deus das hostes” (elohim marakhot) (1 Samuel 17:45). O reino unido, sul e norte — Judá e Israel —, durou apenas o tempo de dois soberanos, Davi e seu filho Salomão. As narrativas bíblicas contam a história paralela dos dois reinos irmãos, contrastando as ações dos reis e da liderança e suas relações com Deus. Conforme destacado por Bright, surge no cenário teológico a importante figura do profeta como aquele que representa a voz de Deus na observação da fidelidade a Javé e regulação dos atos da liderança de acordo com os princípios da aliança e da Lei. Geralmente, estes profetas agiam de forma independente dos chamados profetas profissionais, mantidos pela corte, movidos por uma convicção de vocação para transmitir a palavra de Javé à liderança e ao povo. Estes profetas diferenciavam-se dos sacerdotes e dos falsos profetas e, por isso, eram perseguidos e mortos. A mensagem profética trouxe consigo uma interessante perspectiva no conhecimento de Deus. Os profetas demonstravam que Javé não estava alheio à situação do povo. Mesmo com os desmandos dos reis, os pretensos representantes de Deus, os profetas traziam a consciência do juízo divino, apresentando os caminhos de condenação e arrependimento para a liderança e nação. Profetas como Amós, Miquéias e Isaías, por exemplo, são muito específicos na condenação da injustiça social e na necessidade de proteção dos marginalizados (Amós 2:6-8; Miquéias 2:1-2; Isaías 1: 16:17). Deus, portanto, é aquele que vendo a injustiça faz ouvir a sua voz, independente das estruturas do poder e da religião, apontando a possibilidade de um caminho de paz por meio da mudança de atitude e acolhimento de seus mandamentos. Ele também é aquele que condena a maldade, mesmo que isso represente, dependendo da ótica, a rejeição de seu povo. No fundo, ele leva à cabo o acordo da aliança, que prevê o castigo da retirada de sua proteção especial no caso de insistente desobediência. É este fato que nos conduz ao próximo momento histórico do povo de Israel, o castigo do exílio babilônico.

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Referência BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978. SCHMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004.

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Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia Unidade - 13 DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO – EXÍLIO E PÓSEXÍLIO

Introdução O conhecimento de Deus produzido ao longo do período do exílio babilônico e após o retorno do povo judeu à Palestina, trouxe muitas mudanças à teologia das tradições anteriores. O advento do judaísmo, principalmente, representou um fechamento doutrinário em torno da identidade étnica da parcela do povo que havia retornado. Além disto, a influência da cultura babilônica e persa fez-se sentir na produção de textos proféticos e de cunho apocalíptico.

Objetivos 1) Compreender as formulações teológicas sobre Deus oriundas dos períodos exílico e pós-exílico; 2) Promover a composição dos conhecimentos obtidos no estudo da sequência bíblica (patriarcas, tradição mosaica, liga tribal, monarquia, exílio e pós-exílio) para obtenção de uma ideia ampla sobre Deus.

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Esta última fase na busca pelo conhecimento de Deus, conforme apresentado no Antigo Testamento, compreende algumas significativas mudanças. A experiência do exílio na Babilônia e a posterior tentativa de restruturação da nação de Israel, embora tenha ocorrido em um tempo comparativamente curto na história, contribui com muitas novas perspectivas para a teologia daquele povo. A partir de determinado momento, os escritores bíblicos passaram a concentrar sua atenção apenas no reino de Judá. Isto porque o reino do norte havia sofrido sua queda durante a conquista de seu território pela Assíria entre os anos 733 e 722 a.C. (2 Rs 15:27; 17). A história do povo de Deus, portanto, passou a ser apenas a história deste pequeno povo, representado pelo remanescente das tribos de Judá e Benjamim, com a denominação simplificada de Judá, dado o relevante passado sob a dinastia da casa de Davi. Foi esta pequena nação que levou adiante a fé javista e que acabou sendo conquistada pelo império babilônico sob a liderança de Nabucodonosor em 587 a.C. Este complexo processo histórico contou com o exílio de apenas uma parte da população de Judá, constituída pelos líderes e aristocracia erudita, num total de aproximadamente dezesseis mil pessoas, com base na contagem do profeta Jeremias, que considerava apenas os homens (Jeremias 52:28-30). Foi este contingente e seus descendentes que conservaram a fé javista e ficaram responsáveis por iniciar a reconstrução da nação após a permissão concedida pelo imperador persa Ciro para que realizassem esta tarefa a partir de 539 a.C. Os livros bíblicos que contam esta história, na realidade, intercambiam as narrativas dos períodos que antecederam o exílio, já que ele ocorreu em etapas. O profeta Jeremias foi aquele que concentrou sua mensagem exatamente nesta transição. Os profetas Ezequiel, Ageu e Isaías (Deutero ou Segundo Isaías — cap. 40-55) lidam com este período, assim como as narrativas históricas de Esdras, Neemias e a obra de releitura histórica dos cronistas (1 e 2 Crônicas). É nesta época também que surge a literatura apocalíptica encontrada em alguns trechos de livros, que têm como principal representante o livro de Daniel.

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Introdução e Teontologia

1- Javé, juiz e senhor do mundo A queda dos dois reinos que compunham o povo de Israel representou um grande desafio para a teologia javista. Como interpretar tamanha calamidade abatendo-se sobre o povo que vivia sob a aliança do Deus único, Javé? Como explicar a destruição completa da nação e a tomada de todo o território que havia sido prometido como posse eterna às gerações futuras deste povo? Olhando desde uma perspectiva mais ampla, no sentido mundial da época, Israel nunca foi um grande império. Ele sempre representou um pequeno reino situado no meio da rota comercial entre os grandes impérios que surgiram na história, ao norte e ao sul da Palestina. Hoje, talvez tenhamos a ideia de que Israel e sua religião representavam algo importante no cenário mundial, no entanto, esta percepção está mais relacionada aos efeitos do cristianismo e judaísmo na atualidade do que em sua significância para a época. A relevância da fé javista se restringia apenas à experiência contextual de Israel, que diante da nova configuração imposta pelo exílio necessitou fazer uma releitura da relação de Javé com Israel. John Bright explica: Embora o teste tenha sido severo, a religião de Israel fez-lhe frente vitoriosamente, mostrando uma admirável tenacidade e vitalidade. Uma solução para o problema — que, essencialmente, desse uma adequada explicação teológica do desastre nacional e do fato de manter-se viva a chama de esperança para o futuro — já tinha, de fato, sido dada anteriormente pelos próprios profetas que viveram a tragédia, particularmente Jeremias e Ezequiel [...] Anunciando-a incessantemente como um justo julgamento de Iahweh devido ao pecado da nação, estes profetas deram à tragédia uma explicação coerente, permitindo que ela fosse encarada não como uma contradição, mas como uma justificação da religião histórica de Israel (1978, p. 471).

Ainda, segundo Bright, a mensagem do Segundo Isaías trouxe uma contribuição teológica inovadora para a interpretação do exílio: Foi ele, realmente quem deu ao monoteísmo sempre implícito na religião de Israel sua expressão mais clara e mais consistente. Ele pintou Iahweh como um Deus de incomparável poder:

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criador de todas as coisas sem auxílio ou intermediário, senhor das hostes celestes e das forças da natureza, nenhum poder terrestre lhe poderia resistir e nenhuma semelhança poderia representá-lo (c. 40:12-26). Ele também satirizou com ironia selvagem os deuses pagãos (c. 44:9-20), chamando-lhes pedaços de madeira e de metal (cc. 40:19ss; 46:5-7), que nada podiam fazer na história porque nada eram (c. 42:21-24). Iahweh é o primeiro e último, o único Deus, ao lado do qual nenhum outro existe (cc. 44:6; 45:18, 22; 46:9) (1978, p. 481).

Javé ganhou, assim, dimensões para além dos limites de Israel, estabelecendo uma compreensão de inter-relação com as outras nações: Proclamando esta teologia, o profeta podia assegurar a seu povo que Iahweh tinha o controle absoluto da história [...] O Segundo Isaías teve mesmo a coragem de chamar Ciro de instrumento inconsciente da vontade de Iahweh, instrumento que Iahweh tinha suscitado e iria usar para o restabelecimento de Sião (cc. 44:24 a 45:7; 41:25ss; 46:8-11). Com isso, o profeta deu uma resposta ao desafio da história do mundo, resumindo toda a marcha do império com base na religião histórica de Israel: todas as coisas se realizam dentro da vontade e pelo poder de Iahweh, que é o único Deus. E ele convocou Israel a confiar neste Deus onipotente e redentor (cc. 40:27-31; 51:1-16) (Bright, 1978, p. 481).

O que Bright sugere é que a experiência do exílio transformou o entendimento de Deus, que estava restrito ao ambiente e relação com o povo de Israel, em alguém que tinha o controle e ação mundial, sobre todas as nações, sobre seus líderes e seus desígnios. Esta nova percepção criou uma esperança momentânea para aquele contexto, principalmente para os que vislumbravam a restauração da nação de Israel-Judá. Contudo, alguns problemas surgiram na tentativa de reconstrução da nação, a partir da cidade de Jerusalém, transformando esta esperança em desespero. Contando com a permissão e o apoio do imperador Ciro, uma pequena parcela dos exilados retornou à terra natal encontrando um cenário devastador com a cidade destruída e seus habitantes passando necessidades. O projeto inicial era começar a restauração da nação com a construção do Templo, por causa da sua

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significância para a cultura e fé do povo, numa tentativa de criar um foco ideológico e de estímulo. Estima-se, porém, que os judeus levaram vinte três anos para conseguirem construir o templo, e o ambiente em que ocorreu sua inauguração é assim descrito por Bright: O novo templo estava longe de ser o santuário nacional do povo israelita no sentido em que tinha sido o de Salomão. Israel não era mais uma nação e, portanto, não mais possuía instituições nacionais. O templo, construído sob o patrocínio da coroa persa, incluía sacrifícios e orações para o rei no seu culto (Ed 6:10). Além disso, como aconteceu durante todo o período da monarquia dividida, muitas pessoas de descendência israelita, na Samaria e em outras partes, não lhe eram fiéis. Entretanto, ele oferecia um local de reunião e dava aos “remanescentes de Israel” uma identidade, como a comunidade de culto do templo de Jerusalém. A experiência da restauração havia sido salva. Tinha sobrevivido à sua primeira crise. E iria continuar. Entretanto, sabemo-lo muito bem, as esperanças anunciadas por Ageu e Zacarias não se concretizaram. O trono de Davi não foi restabelecido, e a época da promessa não teve a sua aurora (1978, p. 504).

Considero que os dois principais efeitos deste cenário para a compreensão de Deus que passou a ser elaborada pelo povo de Israel foram o surgimento do judaísmo, como uma proposta religiosa específica, e do apocalipsismo, como um movimento religioso e literário. São estes dois efeitos que serão estudados a seguir.

2- O judaísmo Se durante o exílio desenvolveu-se uma compreensão mais ampliada de Deus, que o levava para limites além do povo de Israel, o judaísmo representou o retorno à perspectiva reducionista e exclusivista. Historicamente, o que se chama de judaísmo foi o resultado de uma série de atitudes e práticas, acompanhada de elaborações teológicas, que apontava para uma separação e consequente identificação dos que se consideravam os verdadeiros representantes do povo de Deus. O cenário enfrentado por aqueles que retornaram do exílio e tentaram reconstruir a nação e a fé javista em seu território natal foi caótico.

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A comunidade tinha de lutar por sua identidade como “Israel”, contra os povos de Samaria e outros residentes na terra cuja pureza religiosa era duvidosa. Um mar de povos pagãos ou semipagãos a circundava, de todos os lados. Tinha-se de se traçar uma nítida linha divisória para que a pequenina comunidade simplesmente não se dissolvesse no seu ambiente, perdendo seu caráter distintivo, como já estava em perigo de perder sua língua distintiva. Foi este perigo que levou Neemias e Esdras a tomar suas enérgicas medidas separatistas [...] (Bright, 1978, p. 604).

O risco de perder a identidade, que estava diretamente associada à questão religiosa da fé em Javé, além da esperança de ver se cumprir a promessa do reino dravídico eterno, trouxe como consequências práticas o separatismo, o exclusivismo, o orgulho étnico e uma proposta de pretensa pureza religiosa ou, usando a terminologia teológica, de santidade. Todo este entendimento, que se fez acompanhar por um corpo de doutrinas, trouxe um olhar negativo em relação aos outros povos e suas expressões religiosas. A nota da separação é dominante na literatura do judaísmo. Dominava a mentalidade de que os judeus deviam evitar tanto quanto possível qualquer contato com os gentios e de modo algum se tornarem semelhantes a eles (por exemplo, Jr. V. Ep. 5); sobretudo os pais não deviam permitir que seus filhos ou filhas se casassem com nenhum deles (Tb 4:12ss), porque tal procedimento era o mesmo que fornicação (Jub 30:7-10). Havia, muito compreensivelmente, um forte sentimento de que os judeus deviam manter-se unidos, se desejavam mesmo vencer as maquinações de seus inimigos (cf. Ester). Competindo com sua aversão pelos inimigos, estava o desprezo que os judeus nutriam pelos israelitas que desprezavam a lei e apostatavam. Estes são os “maus”, os “ímpios”, os “zombadores”, com os quais não se deve ter nenhuma relação (Sl 1), são os “sem-lei”, que se comprometem com os caminhos dos ímpios (1Mc 1-11) [...] Além desta separação dos estrangeiros, sente-se na comunidade judaica um enorme orgulho. Os judeus eram profundamente cônscios de sua posição peculiar e se vangloriavam dela [...] Orgulhavam-se de possuir a lei (Sl 147:19ss; Tb 4:19), orgulhavam-se da posição privilegiada de povo de Deus (Eclo

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17:17), orgulhavam-se de falar a língua usada por Deus na criação (Jub 12:25ss), cuja Cidade Santa era o Centro da Terra (Jub 8:19; 1En c. 26) (Bright, 1978, pp. 606-607).

Para Bright, este fenômeno ocorreu inserido em uma tensão, por que ao mesmo tempo em que se expressava por uma via separatista, também pretendia a conversão dos outros povos à fé javista. Esta conversão, no entanto, não previa em sua abordagem missionária ações muito além de uma provável conquista por meio do surgimento de alguma simpatia que as pessoas poderiam vir a ter pelas práticas judaicas, percebidas nas comunidades ou nas sinagogas espalhadas pelas nações do mundo antigo, ou pela simples atração ao centro da religião que estava em Jerusalém. Foi no período do exílio que se desenvolveram algumas características marcantes da religiosidade do povo que foram incorporadas ao judaísmo, trazendo novas compreensões e percepções sobre Deus. Duas características estão bastante inter-relacionadas que são o uso da sinagoga como lugar de culto e a guarda do sábado. Durante o período anterior ao exílio, o culto estava centralizado no templo de Jerusalém e na prática das festas anuais. O sábado não era visto como um dia de culto comunitário e sim de descanso, ou ainda como o dia separado para as celebrações principais durante as festas. Quando o povo foi dispersado, no processo de conquista e exílio babilônico, tendo o templo sido destruído e estando eles impossibilitados de retornarem à sua terra, eles passaram a reunir-se, principalmente no sábado, para manter viva as suas tradições e fé. Os deportados foram mais seriamente atingidos pela impossibilidade de continuar a adorar Iahweh num templo como em Jerusalém [...] Então, desenvolveram outras formas em substituição. A escola religiosa, que, mais tarde, se transformou na sinagoga, substituiu o Templo; ali o povo reunia-se para uma forma simples de adoração que compreendia oração, hinos e uma preleção. A última, sob influência da escola deuteronomística1, consistia primariamente de interpretação histórica. Supõe-se, com frequência, que o culto da sinagoga 1 Considera-se a reforma promovida pelo rei Josias, ocorrida por volta do ano 622 a.C., como o início do movimento deuteronomista (Gottwald, 1988, p. 141).

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já estava inteiramente desenvolvido no período deuteronômico, mas não se pode oferecer uma prova definitiva para tal suposição. De qualquer maneira, a classe dos mestres da lei, neste contexto, ficou em evidência. Ela existia, pelo menos, desde o fim do período pré-exílico, possivelmente como consequência da reforma deuteronômica. Tinha a tarefa de interpretar a lei e aplica-la aos vários casos particulares que eram levantados no dia-a-dia. O povo reunia-se para a adoração do Shabbath2, que, assim, adquiriu nova importância. Sua observância tornou-se o substituto mais importante do culto; guardar o santo Shabbath tornou-se uma obrigação religiosa decisiva (Fohrer, 2012, pp. 404-405).

A compreensão de Deus como alguém que exige a prática de um culto regular semanal — no sábado para o judaísmo ou no domingo após a adaptação cristã da mesma prática — tem origem neste movimento. O que estou destacando aqui não é a validade da prática do culto semanal e sim a ideia que perpassa a mente de muitos na vivência da fé de que isto é uma obrigação religiosa requerida por Deus. O uso do espaço da sinagoga, por outro lado, mesmo não tendo sido instituído oficialmente por nenhuma tradição bíblica, tornouse um elemento muito interessante ao absorver o culto a Deus que estava restrito ao templo. De certa forma, ela resgatou a ideia de um Deus presente aonde o povo se reúne e não apenas limitado ao templo. Outra questão interessante foi a divisão de responsabilidades entre os mestres e os sacerdotes. Quer dizer, os sacerdotes estavam com sua função adormecida pela falta do templo, o que permitiu o desenvolvimento da atividade de estudo e ensino das coisas de Deus, para benefício da fé javista. Os fariseus e escribas, do tempo de Jesus, são herdeiros deste processo, claro que já influenciados pela expressão exclusivista e sectária assumida pelo judaísmo. Por último, vale ressaltar ainda outra característica desenvolvida pelo judaísmo que foi o conceito de pureza religiosa ou santidade, assim explicado por Fohrer: No exílio, deu-se também ao código legal contido em Lv 17-26 a sua forma final. Ele é chamado de Código de Santidade com base na fórmula freqüentemente repetida: “Vós sereis santos, pois 2

Shabbath é a transliteração da palavra hebraica traduzida para o Português como Sábado.

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eu, Iahweh vosso Deus, sou santo” (com pouca variação). Ele contém primariamente normais cultuais e éticas [...] O Código de Santidade colocava diante do povo a exigência de que eles deviam ser santos no sentido da pureza cultual e ética [...] Desta maneira, durante o exílio, as exigências da lei converteram-se no princípio diretor da conduta humana para uma parte de Israel; o cumprimento dessas exigências foi elevado à condição de modo exemplar de vida. Depois dos inícios no movimento de reforma deutreonômica, agora podemos falar de uma abordagem legal da vida e de uma religião legalística (2012, pp. 407-409).

Como consequência desta perspectiva teológica, foi transmitida a ideia de que Deus não apenas fazia-se representar por padrões éticos humanos, muitas vezes discutíveis e grandemente influenciados por questões culturais contextuais, como exigia que o povo se expressasse por comportamentos sociais, externos e rígidos, e pautados na interpretação das leis de santidade. Da mesma forma, fortaleceu-se a ideia de um Deus circunscrito às práticas litúrgicas cultuais, que exigia o cumprimento estrito das mesmas como forma de ser agradado.

3- O apocalipsismo e outras influências da cultura babilônica Concluindo este período histórico, da construção do conhecimento de Deus no tempo exílico e pós-exílico e, consequentemente, no Antigo Testamento, apresento um conteúdo que merece atenção e, certamente, um aprofundamento maior sobre aquilo que será apresentado. Sugiro a leitura das fontes bibliográficas já indicadas nesta unidade, além de outras que possam complementar os temas discutidos. Este período histórico tornou-se muito prolífero na produção de conteúdo escatológico, ou seja, de assuntos que falam do futuro ou do fim dos tempos. Alguns autores distinguem fases entre os escritos escatológicos e os apocalítpticos. É certo que há grande aproximação entre estes dois fenômenos literários, havendo até quem não os diferencie. Para os objetivos que pretendemos alcançar aqui, que é o de procurar observar como os textos bíblicos deste período contribuíram para a formação do conhecimento sobre Deus, não me

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preocuparei em entrar em detalhes literários ou de diferenciação dos movimentos. O que farei é tratar da contribuição dos mesmos na construção do pensamento, mais especificamente, preocupado em mostrar a influência que a cultura babilônica exerceu sobre os autores e teólogos daquele tempo. O apocalipsismo, como movimento religioso, e a apocalíptica, como sua expressão literária, estão presentes em alguns textos do Antigo Testamento do período exílico e pós-exílico. Norman Gottwald explica o apocalispsismo: O termo “apocalipse”, do grego para “revelação”, “descoberta”, “tirar o véu”, é usado convencionalmente para um tipo de literatura revelatória, do qual existe grande número de exemplos judaicos, cristãos, gnósticos, greco-romanos e persas, a partir do período de 200 a.C-300d.C. O único apocalipse bem desenvolvido, a ser aceito na Bíblia Hebraica foi o livro de Daniel, se bem que vários textos proféticos bíblicos manifestem suficientes sinais antecipados do gênero para nos oferecer um sentido de como a apocalíptica surgiu nos círculos judaicos (1988, p. 539-540).

Os outros textos bíblicos que apresentam sinais da influência apocalíptica, segundo Gottwald, são Isaías 24-27; 56-66; Zacarias 1-8; 9-14 e Ezequiel (1988, p. 544), e o que caracteriza este tipo de literatura é a ideia de uma revelação, transmitida por uma visão, audição, ou ambas. Em todos os casos, um mediador de além-túmulo, normalmente concebido como ser angélico, comunica ou explica a revelação ou serve de guia nas viagens visionárias. O destinatário humano da revelação é geralmente identificado como figura venerável do passado. Nos apocalipses judaicos, pseudônimos favoritos são tirados do período primordial (Henoc, Abraão) e especialmente da época do exílio e início da restauração (Baruc, Daniel, Esdras). O que é revelado num apocalipse? O conteúdo da revelação estende-se ao longo de um eixo, seja “temporal”, seja “espacial”. A revelação temporal desvenda crise eminente de perseguição e cataclismos do outro mundo, que conduzirão rapidamente ao

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final da ordem do mundo atual em julgamento e em salvação. Este fim pode envolver transformação do mundo, porém sempre abrange salvação pessoal para o crente fiel em alguma forma de vida após a morte, frequentemente ressurreição corporal [...] A revelação espacial apresenta o recebedor humano da revelação à “geografia e demografia do céu e do inferno”, habitualmente no veículo de uma viagem dirigida através de regiões cósmicas, onde se enfrentam seres angélicos e demoníacos, e o trono de Deus é aproximado (Gottwald, 1988, pp. 540-541).

Entende-se que o movimento apocalíptico, principalmente no judaísmo, surgiu em círculos proféticos que haviam se desencantado com o contexto em que viviam, além de perderem a esperança futura na mudança do contexto histórico em que viviam. A esperança destes escritores é lançada para um futuro sem contato com a realidade concreta, em relação ao tempo e ao espaço, associada à destruição do mundo corrente e restauração em um novo mundo separado apenas para os justos e perseverantes. O impacto desta corrente teológica para a compreensão de Deus é que se perde a perspectiva da ação divina na história concreta, e mesmo da participação humana. Ocorre a transferência da ação divina, intermediada por um exército formado por seres espirituais, que são os anjos3, para a esfera celeste. As lutas não são mais humanas e sim espirituais e celestiais, entre anjos e demônios, com suas consequências para a humanidade. Esta percepção teológica tornou-se uma novidade para todas as tradições teológicas anteriores do Antigo Testamento. Entende-se que ela tenha ocorrido por influência do caráter mitológico “cananeu-fenício e mesopotâmico” da cultura com a qual o povo teve contato durante o exílio, conforme indica Fohrer (2012, p. 413). É exatamente neste período, quando surge a interpretação do mundo a partir da angelologia, que se constrói também a figura de Satanás ou Satã, assim explicada por Fohrer: No começo do período pós-exílico encontramos as primeiras A palavra anjo é a tradução do termo hebraico malakh e do grego aggelos, que significa, em ambas as línguas, mensageiro ou representante enviado. O significado original dos termos não tem qualquer conotação referente a seres espirituais, sendo traduzidos, ao longo do texto bíblico em português, tanto como mensageiro quanto como anjo. 3

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menções de Satã, mas como parte do mundo de Iahweh, um membro da corte celestial (Zc 3:1ss; Jó 1:6ss; 2:1ss) [...] Ele é frequentemente interpretado como uma espécie de promotor público segundo o modelo das cortes reais do Oriente Médio, apontando perante Iahweh a perversidade dos homens; o nome “Satã” é interpretado como um título ou função, “adversário”. É, porém, mais exato entender o termo como referência à sua conduta: ele é chamado de Satã (“inimigo”, “oponente”), porque é o ser celestial hostil ao homem. No relato, porém, do Cronista que diz como Davi é induzido a fazer o censo, “Satã” tornouse um nome próprio (1 Cr 21:1, sem o artigo); a figura assim designada assume a função anteriormente atribuída a Iahweh (cf. 2 Sm 24:1). O incitamento para o mal estava também relacionado com essa figura. Assim, colocou-se a estrutura para a introdução de um autor e representante do mal na fé do javismo. O período posterior desenvolveu mais essa noção, mas sem cair no dualismo, visto que Satã era considerado um anjo decaído expulso do céu ou um espírito do mal criado por Iahweh. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se aí um conceito de espíritos do mal, possivelmente incorporando aquilo que fora originalmente um espírito do mal ou de mentira emanado de Iahweh (cf. 1 Sm 16:14; 1 Rs 22:22). A antiga demonologia também sofreu considerável desenvolvimento. Anteriormente, só de infortúnios externos os demônios tinham sido acusados; agora, apareciam também sob a forma de tentadores que incitavam os homens ao mal moral, ao pecado. Pouco a pouco, todos esses desenvolvimentos levaram à noção de uma esfera organizada do mal, hostil à soberania de Iahweh, dentro da qual seres do mal operam como anjos de Satã para afastar os homens do domínio de Deus (2012, p. 485-486).

Todo este conteúdo passou a influenciar o conhecimento que se tinha de Deus. Deus, de certa forma, distanciou-se do ser humano, além de ter alguém que podia se opor a ele. Mesmo entendendo-se que a figura de Satanás, até então desconhecida na teologia das outras tradições, teria sido construída como uma criatura divina, ou seja, submetida a Deus, o desdobramento da compreensão que se teve foi de um ser que passou a medir forças com Deus, além de exercer

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forte influência sobre os seres humanos, podendo até mesmo ser responsabilizado por influenciar atos e decisões. Foi esta forte influência teológica do judaísmo, da apocalíptica e da angelologia pós-exílica que compôs o contexto histórico encontrado por Jesus e pelos autores do Novo Testamento, que tiveram a tarefa de interpretar a pessoa de Deus e comunicar o conhecimento que passaram a adquirir diante da pessoa de Jesus, o Deus encarnado.

Referências BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978. FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2012. GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia hebraica. São Paulo: Paulinas, 1988.

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Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia UNIDADE - 14 DEUS NO NOVO TESTAMENTO

Introdução Após a investigação do conhecimento de Deus desenvolvido pelos autores do Antigo Testamento, chegamos aos textos produzidos pela igreja cristã que formam o Novo Testamento. Esta produção teológica introduz uma reinterpretação de toda a herança das tradições anteriores à luz do evento Jesus Cristo. A grande importância desta abordagem para o conhecimento de Deus se dá exatamente pela unicidade de Cisto como a via de melhor representação da revelação divina aos seres humanos

Objetivos 1) Compreender as formulações teológicas sobre Deus construídas pelos autores do Novo Testamento; 2) Promover a reflexão crítica entre as produções teológicas do Antigo e Novo Testamentos na busca de uma compreensão ampla de Deus.

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O Novo Testamento insere uma grande transição no conhecimento bíblico sobre Deus. Podemos afirmar que todo o conteúdo do Antigo Testamento é posto em cheque diante da revelação encarnada de Deus em Jesus de Nazaré. Isto não significou negar tudo o que havia sido construído, mas, certamente, reinterpretar ou, pelo menos, entender melhor aquilo que havia sido transmitido por meio da experiência do povo de Israel. O autor de Hebreus inicia o seu livro com a seguinte máxima: Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo. O Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, ele se assentou à direita da Majestade nas alturas, tornando-se tão superior aos anjos quanto o nome que herdou é superior ao deles (Hebreus 1:1-4).

A argumentação do autor é a de que Deus havia se revelado exaustivamente no passado, por meio de intermediários, mas que naquele tempo ele havia utilizado um meio mais direto e próximo de sua real intenção. Jesus é, portanto, apresentado como o filho herdeiro, participante da criação e o reflexo do brilho da glória de Deus, seu Pai. Continuando sua apresentação, ele diz que Jesus é a “expressão exata” (character tes hypostaseos) do ser de Deus. A ideia que o autor parece construir com os termos gregos é a do processo de impressão, usando um símbolo ou letra esculpida em alto relevo, que é transmitida para alguma superfície. A impressão (character) é, assim, a imagem representativa daquele símbolo. No caso de Jesus, o autor diz que ele é a impressão, ou expressão, da substância (hypostasis) de Deus. Substância aqui transmite a ideia de essência, aquilo que se encontra lá no fundo, o fundamento de algo. O que Hebreus indica é que Jesus deve ser entendido como aquele que melhor consegue transmitir quem Deus é em sua essência. Esta é uma afirmação bastante forte, que nos leva a reinterpretar tudo o que foi revelado anteriormente no Antigo Testamento; não no sentido de anular seus conteúdos, mas de

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poder melhor entendê-los, filtrando os efeitos e influências históricas contextuais dos autores do passado. É importante destacar que o ambiente teológico deste período é constituído pelo domínio do judaísmo, como principal manifestação religiosa, e pela forte influência do movimento apocalíptico e suas concepções de mundo. Devemos, portanto, ter esta consciência ao lermos os textos do Novo Testamento por causa dos conflitos que surgem como pano de fundo na construção das narrativas. Muitos diálogos e discussões são provocados exatamente como forma de inserir uma nova compreensão de Deus corrigindo os exageros produzidos neste ambiente. Ainda usando a aproximação metodológica da Teologia Bíblica, podemos dizer que o caso do Novo Testamento se constitui em um processo mais simples por causa do pequeno espaço de tempo em que foi composto, além da menor variação de contexto em que ocorreram as construções literárias. De maneira resumida e simplificada, podemos abordar o compêndio neotestamentário em três grandes grupos — evangelhos sinóticos, escritos paulinos e escritos joaninos — deixando de lado outros livros por não apresentarem grandes adições teológicas ao que estes grupos trazem. Esta divisão não se preocupa com a sequência de datação de composição dos livros e sim com a observação da proposta de abordagem teológica dos autores, já que estamos considerando para todos um contexto histórico muito próximo.

1- Deus nos evangelhos sinóticos A grande relevância das narrativas dos evangelhos sinóticos — Mateus, Marcos e Lucas — está na tentativa de apresentar o ministério concreto de Jesus no meio do povo que habitava a região da Palestina, em especial o povo judeu, considerado o povo de Deus. Esta abordagem é ligeiramente diferente, por exemplo, da que foi feita pelo apóstolo Paulo, que tentou construir um corpo doutrinário em torno da pessoa de Cristo, fazendo uma ponte com a teologia do Antigo Testamento. João, que conviveu com Jesus, mas também foi bastante sensível ao contexto greco-romano, aplicou uma abordagem mista, que tanto procurou descrever o ministério prático de Jesus quanto elaborou algumas construções doutrinárias.

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Olhando, então, para as narrativas dos evangelhos, podemos destacar alguns elementos que apontam para nuances que nos fazem repensar as percepções construídas pelas tradições do Antigo Testamento. Já na introdução do Evangelho de Mateus, encontramos a curiosa história dos magos que teriam vindo das regiões orientais, possivelmente da Mesopotâmia, que interpretaram um evento astronômico — uma estrela no Oriente — como sinal do nascimento do Messias judaico (Mateus 2:1-12). O termo mago era aplicado, nas culturas babilônica, medo e persa, a homens sábios que exerciam ofícios de mestre, sacerdote, médico, astrólogo, vidente, intérprete de sonhos, mágico, encantador, etc. São a estes magos, considerados pagãos, que Mateus concede a honra de primeiro perceberem o cumprimento da promessa messiânica e de prestarem o primeiro ato de adoração ao Deus encarnado. Para Mateus, não foram os judeus, receptáculos e mantenedores da fé em Javé, que entenderam que o Messias havia chegado e sim os estrangeiros pagãos. O que podemos concluir com isso? Há aqui alguma relação com aquilo que aprendemos com a experiência dos patriarcas, de que Deus se revela em meio à diversidade cultural dos povos? Outra história interessante é a de João Batista. Ele segue a linhagem profética dos profetas autênticos, independentes dos círculos profissionais e religiosos, mostrando a igual independência de Deus destes sistemas. A pregação de João retoma a profecia do DeuteroIsaías (Mateus 3:3; Isaías 40:3), que diante da experiência do exílio do povo, fala de um Deus igualmente exilado. Uma maneira de interpretar este texto é entender que Mateus está indicando que uma das razões dos estrangeiros terem sido os primeiros a perceberem a presença do Messias é porque Deus se encontrava exilado. Deus é descrito como a aquele que “clama no deserto” e o profeta é a sua “voz”, seu intermediário. A princípio, não faz sentido Deus estar clamando no deserto, afinal não há ninguém ali para escutá-lo. A expectativa seria a de que ele deveria ser encontrado no templo de Jerusalém ou, pelo menos, nas sinagogas. Esta expressão, então, nos leva a pensar que Deus se apresenta ao povo como alguém exilado ou auto-exilado. O motivo deste exílio parece ser explicado ao longo do livro de Mateus, onde o autor mostra como a religião oficial, representada pelo grupo dos

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fariseus, escribas, saduceus e sacerdotes, e também pela estrutura do Templo, havia se tornado uma falsa representante da fé em Deus. Estes que pretendiam ser os responsáveis pelo conhecimento de Deus na terra foram exatamente os que não conseguiram reconhecer em Jesus o seu Messias, e entender e acatar sua mensagem, por isso também esta pesada estrutura rejeitou, perseguiu e matou o Deus encarnado. A revelação de um Deus que se afasta daqueles que, em tese, são o seu povo e representantes, necessitando usar os profetas que estão na periferia teológica, certamente não agrada os líderes da religião tida como oficial. Não é apenas neste emblemático discurso de João Batista que Deus se revela como descontente com os crentes da época. A opção de Jesus em estabelecer o seu ministério longe de Jerusalém e do Templo, na Galiléia dos gentios, cercado de gente considerada impura, também indica uma face de Deus esquecida pela religião judaica (Mateus 4:2324). O Antigo Testamento já havia construído a imagem de Deus como aquele que se preocupa com os marginalizados e oprimidos, como vimos no ministério e discurso dos profetas durante o período monárquico. No entanto, a imagem transmitida pela religiosidade judaica era a de associação das misérias humanas ao pecado de falta de santidade (Marcos 7:1-23). É curioso, então, notar que Lucas constrói o cenário do início do ministério de Jesus em torno da rejeição que ele teve em sua própria terra natal ao assumir o discurso do profeta Isaías como referência paradigmática: Ele foi a Nazaré, onde havia sido criado, e no dia de sábado entrou na sinagoga, como era seu costume. E levantou-se para ler. Foilhe entregue o livro do profeta Isaías. Abriu-o e encontrou o lugar onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor”. Então ele fechou o livro, devolveu-o ao assistente e assentou-se. Na sinagoga todos tinham os olhos fitos nele; e ele começou a dizerlhes: “Hoje se cumpriu a Escritura que vocês acabaram de ouvir”.

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Todos falavam bem dele, e estavam admirados com as palavras de graça que saíam de seus lábios. Mas perguntavam: “Não é este o filho de José?”. Jesus lhes disse: “É claro que vocês me citarão este provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo!’ Faze aqui em tua terra o que ouvimos que fizeste em Cafarnaum”. Continuou ele: “Digo-lhes a verdade: Nenhum profeta é aceito em sua terra. Assegurolhes que havia muitas viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu foi fechado por três anos e meio, e houve uma grande fome em toda a terra. Contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, senão a uma viúva de Sarepta, na região de Sidom. Também havia muitos leprosos em Israel no tempo de Eliseu, o profeta; todavia, nenhum deles foi purificado: somente Naamã, o sírio”. Todos os que estavam na sinagoga ficaram furiosos quando ouviram isso. Levantaram-se, expulsaram-no da cidade e o levaram até ao topo da colina sobre a qual fora construída a cidade, a fim de atirá-lo precipício abaixo (Lucas 4:16-29).

A narrativa de Lucas é construída como um resumo de tudo o que aconteceu com Jesus em seu ministério. Jesus apresenta ao seu povo um Deus que se importa com os pobres, presos, cegos e oprimidos para trazer a sua graça. É na figura das viúvas e leprosos, desprezados pela sociedade, que ele indica ser esta a condição simbólica de todos, mas apenas alguns conseguem perceber este fato ao ponto de serem alcançados por Deus. Com este discurso e prática, desde o passado já revelado na experiência de Israel, Deus é rejeitado pelo seu próprio povo ao ponto de chegarem a mata-lo. Ao longo de seu ministério Jesus revela um Deus que caminha no meio do povo, próximo da ideia do Tabernáculo do deserto. Ele mostra um Deus sensível e disposto ao diálogo com qualquer pessoa, principalmente os que se percebem aprisionados pela mazela humana e na condição de carência de misericórdia. Por isso, ele está próximo dos pecadores, ao contrário do que pressupunha os religiosos da época. O grande e único Javé, revelado pela tradição da Lei mosaica, não é legalista; ele é antes um Deus que se preocupa com os princípios por trás das leis, que, prioritariamente, significa a sempre a expressão maior do amor (Mateus 22:34-40).

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Ainda, considerando o conhecimento da tradição monárquica, o reinado de Deus se dá, na maioria das vezes por meio da inversão dos valores dos reinos humanos (Mateus 18:1-5; 20:20-28). O Reino de Deus, tão proclamado por Jesus, possui uma ética típica, para a qual se exige a mesma atitude de obediência (Mateus 7:24-28), e pode ser apreendida em seu resumo didático do Sermão do Monte (Mateus 5-7). O Reino de Deus, e o seu rei, são para os humildes e não para os soberbos e arrogantes. A entrada no Reino, ou seja, o acesso a Deus, se dá pelo arrependimento, o reconhecimento da insuficiência humana, e conversão ou mudança na caminhada da vida (Mateus 21:28-32). Deus, em Jesus, é paradoxalmente apresentado como um Deus frágil, que sente, sofre chora e morre (Mateus 9:36; Lucas 5:13; 7:13; 18:15; 22:44; 23:46). Não apenas isto, mas a sua proximidade se torna semelhante a de um pai amoroso, sempre disposto a cuidar, a estreitar a relação e a receber com um abraço os que o procuram sinceramente (Mateus 5:43-45; 6:9ss; 7:11; Lucas 15:11-32).

2- Deus nos escritos paulinos Todo o ministério de Paulo foi fundamentado na sua convicção do chamado apostólico que ocorreu em sua viagem entre Jerusalém e Damasco (Atos 9:1-30). A aparição de Jesus, em uma visão especial (1 Co 15:8-9), que o enviara para pregar o evangelho aos gentios (Romanos 11:13), determinou a reinterpretação da teologia judaica, na qual havia se formado desde jovem como um fariseu. O tipo de formação que ele teve também influenciou a maneira como desenvolveu a sua teologia. Certamente, ele é o autor bíblico mais erudito na estruturação e apresentação de seu pensamento, ainda que ele o tenha difundido na forma de cartas pastorais às igrejas pelas quais se sentia responsável. Como mencionado, o evento da aparição de Jesus como o Cristo ressurreto foi o elemento fundante de sua produção teológica. No entanto, o resultado da reinterpretação de sua fé judaica para a nova fé cristã resultou em uma complexa associação aproveitando elementos de todas as tradições do Antigo Testamento. Tendo Jesus Cristo como o centro deste intrincado processo de elaboração teológica, Paulo reforça um encadeamento de conceitos na

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tentativa de trazer coesão ao conhecimento de Deus. Isto sem contar a necessária tradução das ideias judaico-cristãs para o mundo grecoromano da igreja gentílica. Considero a introdução da carta de Paulo aos Efésios um excelente resumo de seu pensamento sobre Deus: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo. Porque Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença. Em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos por meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da sua vontade, para o louvor da sua gloriosa graça, a qual nos deu gratuitamente no Amado. Nele temos a redenção por meio de seu sangue, o perdão dos pecados, de acordo com as riquezas da graça de Deus, a qual ele derramou sobre nós com toda a sabedoria e entendimento. E nos revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos. Nele fomos também escolhidos, tendo sido predestinados conforme o plano daquele que faz todas as coisas segundo o propósito da sua vontade, a fim de que nós, os que primeiro esperamos em Cristo, sejamos para o louvor da sua glória. Nele, quando vocês ouviram e creram na palavra da verdade, o evangelho que os salvou, vocês foram selados com o Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança até a redenção daqueles que pertencem a Deus, para o louvor da sua glória (Efésios 1:3-14).

Sendo Jesus Cristo o centro do pensamento paulino, Deus assume, principalmente a figura de Pai. Em todas as introduções de suas cartas ele se refere a Deus como o Pai de Jesus. No entanto, a paternidade de Jesus é transmitida a todos os que se fazem irmãos de Cristo, por adoção, ou seja, pela fé naquele que é o próprio Deus encarnado. O Deus criador é, portanto, o Pai gerador de toda a raça humana em seu projeto original. Esta ideia faz de Deus não um criador distante, mas um Pai próximo e extremamente interessado no ser humano. Sua criação

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perfeita, irrepreensível, é abalada pela quebra da relação introduzida pela busca humana de independência, consistindo na via do pecado. Neste ponto, encontramos outro elemento de destaque no pensamento paulino que é a metáfora jurídica aplicada a Deus. Ao mesmo tempo que Deus é Pai, ele se torna um Juiz implacável. Este paradoxo de ideias é traduzido nos conceitos de justiça, juízo e justificação. Talvez aqui encontremos algumas pistas da formação farisaica de Paulo. A importância da Lei e de seu cumprimento teve que ser reinterpretado à luz do Cristo ressurreto. É nesta arena que também se insere a soteriologia de Paulo. O tema da salvação é desenvolvido a partir da perspectiva da ressurreição. Como foi possível a ressurreição de Jesus Cristo? Paulo transpõe a ideia de cumprimento cabal da Lei pela obediência perfeita e submissão amorosa de Jesus à vontade do Pai. Ele também percebe que a inevitável incapacidade de cumprimento da Lei por parte dos seres humanos, por causa do pecado, que levaria à condenação, só poderia ser resolvida se Deus tomasse uma atitude graciosa. Olhando para Cristo, ele vê essa reversão da Lei pela Graça. Deus age com graça em relação aos seres humanos quando eles se submetem a Jesus, assim como Jesus se submeteu a ele, em amor. Esta submissão é ao mesmo tempo uma mortificação, ou seja, uma negação da vida em pecado que só pode ser resolvida com a morte. Por isso, o exemplo de Cristo em sua voluntária mortificação humana na cruz torna-se uma grande referência para Paulo. Mas para completar a sua alta construção da pessoa divina, ele insere a ideia de que é o próprio Deus quem ajuda os seres humanos neste difícil caminho de obediência e mortificação, dispensando o seu Espírito ajudador. Resumidamente, a pessoa de Deus para Paulo é o início e o fim de tudo: criador, redentor e consumador da vida humana (Romanos 11:36).

3- Deus nos escritos joaninos A crítica literária, como ramo da teologia, se debruça em detalhes sobre as questões de autoria, datação e propósito dos livros bíblicos (cf. Kümmel, 1982; Bruce, 1994). Acompanhar as discussões técnicas que são apresentadas pelos autores é bastante interessante, mas requer, ao final, a escolha de alguma linha de raciocínio. Assumimos, portanto,

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a hipótese de um mesmo autor para o Evangelho e para as três cartas presentes no Novo Testamento, com as seguintes características: “A forma linguística de Jo também faz pensar em um autor de língua grega num ambiente semita. Além disso, o universo conceptual mostra relação com os grupos gnósticos próximos do judaísmo. Portanto, a suposição de que teve origem na Síria é, provavelmente, a melhor conjectura” (Kümmel, 1982, p. 315). João, então, é um judeu escrevendo para uma comunidade mista, sob a influência das culturas judaica e grega, “visando confirmar e fortalecer a fé dos cristãos”, entendendo que “a fé em Jesus é a realização do judaísmo, bem como da verdadeira religião dos gentios” (Kümmel, 1982, p. 292). Nesse ambiente, ele imediatamente associa o Deus judaico, por intermédio de Jesus, o Messias, ao princípio divino grego presente na ideia de Logos. O termo logos era familiar em algumas escolas filosóficas gregas, onde ele denotava o princípio da razão ou ordem imanente no universo, o princípio que impõe forma no mundo material e constitui a alma racional no homem. Não está no uso filosófico grego, entretanto, aquilo que deveria ser visto no pano de fundo de pensamento e linguagem de João. Ainda, por causa daquele uso, logos constituiu uma palavra-ponte pela qual pessoas vindas do pensamento grego, como Justino Mártir no segundo século, encontraram seu caminho para o cristianismo joanino. O verdadeiro pano de fundo do pensamento e linguagem de João é encontrado não na filosofia grega, mas na revelação hebraica. A “palavra de Deus” no Antigo Testamento denota Deus em ação, especialmente na criação, revelação e libertação (Bruce, 1994, p. 29).

Em uma alusão direta ao texto da criação de Gênesis, João apresenta o Deus judaico como criador do universo, por meio da sua palavra, no caso, apropriando-se do conceito grego logos, e tendo esta “palavra”, ou logos, tornada humana na pessoa de Jesus. Ao afirmar isto, ele aponta para Jesus como sendo a expressão revelada de Deus para, a partir daí, apresentar o seu ministério, exemplo e ensino. Um pouco diferente da abordagem dos evangelhos sinóticos em que Jesus

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é descrito em um contexto mais concreto e próximo da realidade cultural e histórica judaica, João apoia-se em algumas metáforas que o tornam conceitualmente mais amplo e com características cósmicas. Assim, Jesus é a “luz do mundo” (João 1:4; 8:12), a “água da vida” (João 4:13-14) e o “pão da vida” (João 6:35), revelando um Deus que sacia as necessidades básicas da vida não apenas no sentido material, mas, principalmente, no sentido ontológico. A existência para João é fortemente marcada pelo tema da eternidade, ou seja, da vida e morte eterna realizada com base na relação que se estabelece com Deus. Talvez, o traço mais marcante da face de Deus nos escritos joaninos seja o amor (1 Jo 4:8). João apresenta um Deus apaixonado pelo ser humano (João 3:16) e radicalmente comprometido em amálo até a última consequência, que é a morte (João 15:13). Por isso, a morte de Cristo não é uma questão jurídica de satisfação de um Deus irado com o pecador e sim um ato radical de amor na busca de salvar o ser humano. Mais que isso, o amor, passa a ser o referencial, o padrão de comportamento e o indicador principal da presença e ação de Deus no meio do seu povo (1 Jo 4:7-21).

Conclusão O que podemos concluir com esta rápida abordagem do conhecimento de Deus no Novo Testamento, é que muitas ideias desenvolvidas no Antigo Testamento parecem ser limitadoras da pessoa de Deus. É com a encarnação de Deus em Jesus que temos a oportunidade de reinterpretar aquilo que foi transmitido na literatura veterotestamentária e entender que não se trata de uma revelação pura e simples de Deus sobre a sua própria pessoa, se não também uma revelação de Deus sobre a pessoa humana, com seus limites e capacidades de viverem e expressarem a sua percepção da vida na relação com ele.

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Referências BRUCE, F. F. The gospel of John. Grand Rapids: Eerdmans, 1994. KÜMMEL, Werner G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.

Anotações

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia UNIDADE - 15 A TRINDADE

Introdução Esta unidade trata de um dos temas mais complexos da teologia cristã que é a Trindade. A longa discussão histórica do tema não esgotou o assunto mas introduziu-o como dogma na vida da igreja sem que evitasse compreensões diversas e práticas que demonstram a dificuldade de apreensão do conceito. Na tentativa de se manter o foco na construção de uma teologia bíblica, alguns textos são apresentados para justificar o estudo desta temática

Objetivos 1) Apresentar a discussão histórica do tema da Trindade; 2) Promover a reflexão livre do tema em função das formulações teológicas históricas e dos textos bíblicos que apontam para esta forma de caracterização da divindade.

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Após o estudo do conhecimento de Deus construído pela abordagem da Teologia Bíblica, analisando os textos do Antigo e Novo Testamentos, nosso foco se voltará para a discussão de dois temas que pertencem à Teontologia e que permeiam o discurso teológico da igreja desde o tempo da patrística. O primeiro tema será o da Trindade, tratado nesta unidade, e o segundo será o dos atributos de Deus, a ser tratado na próxima. A ideia de Deus como uma unidade composta por três pessoas, que passou a ser designada como Trindade, é um dos conceitos mais complicados da Teontologia. Isto porque, como veremos, não se trata de uma doutrina claramente exposta e desenvolvida nas Escrituras. A maior parte do raciocínio é de origem filosófica, seguindo o tipo de construção característica do contexto em que viveram os pais da igreja, que foram os primeiros a elaborarem esta ideia. Minha intenção, portanto, será apresentar uma resumida análise bíblica do assunto para que possamos refletir sobre a propriedade e aplicação deste conceito para a teologia atual. A seguir, apresentarei um rápido apanhado histórico dos fatores geradores da discussão em torno do tema, trazendo os resultados que permanecem influenciando a teologia até os dias de hoje.

1- Discussão bíblica O tratamento de Deus na teologia do Antigo Testamento é claramente um apelo ao monoteísmo radical. Deus é único, sem comparação, nominado como Javé, e além dele não existem outros deuses. A radicalidade desta percepção coloca Deus como a origem de tudo, inclusive do mal (Isaías 45:7), mesmo não havendo uma elaboração mais profunda desse conceito, à parte da prática de atos que descumprem os mandamentos divinos. Como visto, é apenas após o período exílico que se desenvolve o conceito do mal como sendo representado por Satã, tido como uma das criaturas divinas angelicais. Mesmo as mais promissoras construções da figura do Messias não davam conta de conceber o compartilhamento da divindade por este ser, tratado como filho ou servo, além do status de uma criatura especial, capacitada por Javé para agir no cumprimento de seus

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desígnios. Ao pensarmos no Espírito, ele havia sido apresentado como a ação perceptível de Deus, o vento (ruach), que move e transforma a realidade do mundo criado, das pessoas e das coisas. Outras formas de pessoalidade ou de caracterização de alguma representatividade de Deus foram elaboradas em função dos temas da Palavra e da Sabedoria. Aquilo que se desenvolveu como a Palavra, que mais tarde foi aproveitado para compor o pensamento de João, associando-a ao Logos, recebe um tratamento inicial como a força motriz realizadora da intenção divina. Logo no relato da criação vemos esta ideia por trás do uso repetitivo da expressão “disse Deus” e o consequente resultado de seu cumprimento. Mais adiante na história do povo de Israel, o profeta Isaías apresenta o seguinte entendimento: Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para ele sem regarem a terra e fazerem-na brotar e florescer, para ela produzir semente para o semeador e pão para o que come, assim também ocorre com a palavra que sai da minha boca: Ela não voltará para mim vazia, mas fará o que desejo e atingirá o propósito para o qual a enviei (Isaías 55:10-11).

Com o profeta vemos uma construção metafórica que dá a impressão de certa autonomia da Palavra, no sentido de diferenciar-se de Deus, que a envia, ao mesmo tempo que a associa ao ser divino de maneira bem próxima ao que é feito com o Espírito. Contudo, o texto mais perceptível sobre este tipo de consideração sobre a Palavra está no Salmo 119, que lida com várias expressões e ideias semelhantes ao tratar da Lei, mandamentos, etc: “A tua palavra, Senhor, para sempre está firmada nos céus” (Salmos 119:89). Com a Sabedoria acontece algo similar. O livro de Provérbios constrói uma imagem personificada da Sabedoria: A sabedoria clama em voz alta nas ruas, ergue a voz nas praças públicas; nas esquinas das ruas barulhentas ela clama, nas portas da cidade faz o seu discurso: Até quando vocês, inexperientes, irão contentar-se com a sua inexperiência? Vocês, zombadores, até quando terão prazer na zombaria? E vocês, tolos, até quando desprezarão o

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conhecimento? Se acatarem a minha repreensão, eu lhes darei um espírito de sabedoria e lhes revelarei os meus pensamentos (Provérbios 1:20-23).

Também no livro de Jó, a Sabedoria aparece ao lado de Deus, metaforicamente personificada (Jó 28:12-28). Mas o que entendemos disto é que tanto a Palavra quanto a Sabedoria são expressões da revelação de Deus baseadas em referências didáticas aproximando-o da realidade humana. Não há a intenção nos textos de alimentar qualquer ideia que ultrapasse a percepção da fé monoteísta em Javé. Este inclusive é o mesmo tratamento que é dado ao Espírito e que será elaborado de forma diferente no Novo Testamento, possibilitando alguma alusão à ideia de Trindade. É precisamente o Novo Testamento que enseja as primeiras elaborações que provocarão a elucubração dos teólogos da patrística. Ainda que os autores bíblicos não tenham construído uma doutrina da Trindade, o evento histórico de Jesus, como Messias e Filho de Deus, provocou o tratamento que recebeu dos primeiros cristãos, considerando-o como parte da divindade. De maneira mais clara, é na fórmula do batismo e da bênção apostólica que encontramos a junção das três principais representações de Deus: a - Fórmula de batismo: “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo [...]” (Mateus 28:19); b - Fórmula de bênção: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vocês” (2 Coríntios 13:14). Pai, Filho e Espírito Santo aparecem destacados e participantes de atos significativos da vida da igreja. Aqui encontramos aquilo que Robert Jenson indicou como sendo o nome de Deus. Sua tese é de que assim como no Antigo Testamento Javé era o nome de Deus, a partir do Novo, o nome de Deus passa a ser Pai-Filho-Espírito Santo: O nome trinitário não caiu do céu. Os crentes o formularam para o Deus com que nos encontramos envolvidos. “Pai” era a maneira peculiar em que Jesus se dirigia à transcendência

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particular diante de quem vivia. Ele se qualificou como Filho exatamente por este modo de dirigir-se a Deus, e na memória da Igreja nos primórdios a sua aclamação como Filho foi o início da fé. “Espírito” foi o termo fornecido por toda a teologia bíblica para o resultado de tal encontro entre este Deus e um ser humano especial seu. O envolvimento nesta estrutura do próprio evento de Jesus — a oração dirigida ao “Pai” com o “Filho” no poder de e para o “Espírito” — é o conhecimento de Deus que a fé possui. Assim, “Pai, Filho e Espírito Santo” também foram juntados simplesmente para nomear o Deus apreendido no mesmo, e aparentemente isso aconteceu antes de qualquer análise de sua conveniência (1990, p. 110).

O livro de João ainda apresenta a inter-relação entre esta tríade Pai-Filho-Espírito Santo de maneira misteriosa. Nos capítulos 14, 16 e 17, João constrói um diálogo entre Jesus e seus discípulos em forma de despedida. Jesus diz que está de partida, rumo ao Pai, mas que, ao mesmo tempo, não abandonará os seus discípulos ao deixar com eles um representante (parakletos) (João 14:16). Este representante, entendido como uma forma de procurador na cultura grega, é identificado como sendo o Espírito Santo, que seria enviado pelo Pai (João 14:26). A condição para o envio do Espírito é a ida de Jesus para junto do Pai, para que o próprio Cristo possa, então, enviá-lo (João 16:7). Por último, encontramos uma construção ainda mais misteriosa que é a afirmação de unidade entre Jesus e o Pai, e a possível inclusão dos crentes nesta unidade (João 17:21). Enfim, as indicações de uma possível doutrina da Trindade nos textos bíblicos parece ser algo fora de cogitação; o que deveria nos levar a uma atitude mais tranquila ao tratarmos do tema, sem que ele tenha o peso dogmático que adquiriu na história da igreja.

2- Discussão histórica A ideia de um Deus formado por três pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo — foi o resultado de um longo processo histórico causado, primeiramente, pela necessidade de afirmação da condição especial de Jesus Cristo para a fé da igreja nascente. Naquele ambiente

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de religiosidade judaica, rigidamente monoteísta em sua afirmação do Deus de Javé, Jesus Cristo já constituía um entrave para além da discussão messiânica. Os testemunhos de sua morte e ressurreição alçavam-no a esta condição divinizadora. Mas é no ambiente greco-romano que a teologia cristã irá procurar defender sua nova compreensão de Deus. A condição de Jesus na afirmação de Filho de Deus, fazendo de Javé o seu Pai, insere a natural reflexão sobre sua divindade. Em que sentido Jesus seria filho de Deus? Seria ele um filho, na condição humana; uma criatura, como qualquer outro ser humano? Seria ele uma geração especial, uma criatura especial ou um ser humano de outro tipo? Ou seria ele um deus por ter sido gerado por Deus? A fé cristã foi construída e defendida com base na convicção da divindade de Jesus, que havia comissionado os seus discípulos a levarem a mensagem do Reino de Deus e da salvação por ele ofertada a todo o mundo. Foi neste impulso que o encontro dos discípulos com outras crenças e cosmovisões tornou necessária a defesa argumentativa do Deus cristão. O paradigma da época conduziu o pensamento teológico pela argumentação filosófica para caminhos de difícil compreensão. A tentativa de conciliar o ser divino como Pai e Filho, além do Espírito, fez surgir algumas hipóteses sobre as quais a igreja e seus pensadores se debruçaram ardorosamente. Não há como deixar passar despercebido as motivações de controle político e de poder que ocorreram nesta história. No entanto, vamos nos concentrar na produção teológica surgida nos primeiros séculos da igreja cristã. Algumas propostas teológicas sugeriram resolver o problema divino. O docetismo — do grego dokeo, que significa aparência — propunha que Jesus era totalmente divino e que sua existência histórica se deu por meio de simples aparência humana. Esta opção teológica era certamente influenciada pelo gnosticismo que considerava a esfera material como ruim. Desta maneira, sendo Jesus um ser divino, ele não poderia ter assumido a forma humana considerada ruim, ou seja, negava-se, portanto, a encarnação de Deus e possibilitava-se uma imediata compreensão da unidade divina, uma vez que Jesus seria considerado uma teofania.

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Quase como uma construção oposta ao docetismo, o adocionismo foi uma corrente que defendia que Jesus era totalmente humano, mas que teria sido adotado por Deus para cumprir a vocação messiânica e salvífica. Esta adoção considerava um controle especial de Deus sobre Jesus por meio do seu Espírito, que o impelia a realizar os sinais e prodígios. O evento que inaugura este processo é tido como o batismo no rio Jordão quando o Espírito desce em forma de pomba sobre Jesus (Marcos 1:10). No fundo, esta opção negava a divindade de Jesus e mantinha o ser de Deus conforme entendido no Antigo Testamento, apenas na expressão de Javé. Outra corrente de pensamento propôs o que se chamou de modalismo, que defendia a unicidade de Deus manifesta em três modos, em três épocas distintas. Simplificando, no modalismo, Deus assumiu o modo de ser do Pai, conforme expresso no Antigo Testamento, o modo do Filho, durante a vida terrena de Jesus Cristo, e o modo do Espírito Santo, desde o princípio da igreja até os dias de hoje. Ainda houve, entre outras, a proposta do triteísmo. A ideia da Trindade foi resolvida pela simples afirmação de três deuses independentes que compartilhavam da mesma substância divina. Eles seriam iguais em poder e autonomia, mas concordantes em seu propósito. Ao lermos a história da igreja, em especial o que ocorreu nos primeiros concílios ecumênicos oficiais da igreja4, podemos acompanhar um pouco da discussão em torno da definição do ser de Deus, que incluiu a rejeição destas correntes apresentadas acima. A chamada fórmula do credo niceno-constantinopolitano, iniciada no concílio de Niceia e concluída no concílio de Constantinopla, foi a que se estabeleceu ao longo da história e é considerada até os dias de hoje como válida para se referir à doutrina da Trindade: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos Deus de Deus, Luz da luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, da mesma substância do Pai”. A afirmação do credo apenas estabelece a maneira como se decidiu crer sem, contudo, explicar bíblica ou teologicamente a força 4 Os cinco primeiros concílios ecumênicos da igreja cristã, sempre referenciados às cidades onde ocorreram, foram Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431), Calcedônia (441) e Constantinopla (553). Os documentos finais, resultado das discussões teológicas realizadas pelos bispos e teólogos da igreja, eram promulgados na forma de dogmas e credos a serem aceitos por toda a igreja.

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do argumento. Fica claro a intenção de divinizar a pessoa de Jesus Cristo, na categoria de Filho, mas diferenciando-o dos outros seres humanos. Por isso, Jesus é gerado e não feito. Ele é gerado pelo Pai, mas não como as outras criaturas. A questão da geração, no entanto, não resolve o problema da sua existência prévia, eterna, no ser do Pai. Outra afirmação que tenta indicar a divindade de Jesus Cristo é a que se faz com o uso da expressão “mesma substância” (homoouosios). Nas discussões teológicas, esta expressão está em antagonismo com a expressão “substância similar” (homoiousious). Jesus é gerado a partir da mesma “substância” divina e, portanto, possui a mesma substância do Pai, o que faz dele igualmente Deus. O problema é que a estruturação da ideia foi feita com base em uma argumentação filosófica grega e com uma expressão sem parâmetros bíblicos, no caso, substância. Finalmente, há o famoso e decisivo “homoousios com o Pai”. A história da palavra homoousios passou por posições diferentes. Foi usada teologicamente pela primeira vez pelos gnósticos, para designar o surgimento mítico de suas diversas entidades divinas. Orígenes usou a palavra, porém raras vezes, para dizer que o Filho tinha todas as mesmas características essenciais do Pai, mas num nível ontológico diferente. Não sabemos como nem por que essa veio a ser a palavra importante em Nicéia. Talvez ela tenha sido introduzida exatamente por Ário tê-la usado no sentido negativo, simplesmente para contradizê-lo. Ário tinha dito: “O Filho (...) não é homoousios com [o Pai]” para rejeitar o trinitarismo do tipo ocidental ou qualquer noção de Pai e Filho serem dois pela divisão de uma única substância. Os bispos, pelo que parece, não tiveram nenhum significado particular em mente quando usaram homoousios. Os conselheiros ocidentais de Constantino em Nicéia, que pensavam em latim, sem dúvida consideraram homoousios como simples tradução da expressão “de uma única substância”, de Tertuliano, e não tiveram mais nenhum problema. Para aqueles que pensavam em grego, o assunto não era tão simples (Jenson, 1990, p. 145).

Havia nas discussões teológicas uma disputa entre os

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representantes da ala oriental da igreja, de língua grega, e da ala ocidental, de língua latina. Até o rompimento destas duas alas em 1054, que deu origem a duas igrejas cristãs distintas, a disputa permaneceu ocorrendo na tentativa de conciliar o entendimento sobre as principais doutrinas da igreja. É importante ressaltar que a nossa perspectiva teológica é herdeira da igreja ocidental, cuja sede se encontrava em Roma, a capital do império. Robert Jenson explica que na tentativa de esclarecimento do uso de homoiousious a ala oriental sugeriu outra formulação, elaborada pelos capadócios, em um concílio próprio: “um ser (ousia) de Deus em três hipóstases (hypostaseis)” (1990, p. 149). Jenson analisa em mais profundidade a questão: Com isso, providenciou-se para o Oriente uma terminologia trinitária equivalente, em termos de extensão, à expressão “uma substância (substantia) em três pessoas (personae)” do Ocidente. Mas é vital que se compreenda que as duas terminologias não são equivalentes quanto à sua intenção. Se uma proposição de uma delas for colocada simplesmente na outra, seu significado não é necessariamente preservado. O fato de se deixar de observar isso tem sido e é a causa de muita confusão. “Substância” e “pessoa” jamais foram intercambiáveis. Assim sendo, sua distinção não evocou nenhuma nova percepção. Elas também não continham qualquer história de controvérsia trinitária. Tanto ousia quanto hypostasis entraram na teologia procedentes da tradição filosófica. Nela foram usadas quase intercambiavelmente para designar o que é — conforme apreensão helênica, aquilo que é possessão de algum complexo específico de características permanentes. Por conseguinte, são usadas também para designar o “ser” assim possuído, isto é, tanto este complexo de características quanto a estabilidade ao longo do tempo que a possessão mesma confere. Entre os significados de ousia e hypostasis havia, no entanto, pequenas nuanças e diferenças. Ousia costumava ser usado para designar a realidade que as coisas reais têm e assim evocar, por exemplo, a humanidade que Sócrates possui, mas não tanto as marcas pelas quais ele, como ser humano, difere de outros seres, enquanto, hypostasis tinha conotações mais fortes de distinção

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e identificação. Quando o uso trinitário separou os termos, a divisão foi feita de acordo com essas nuanças. Hypostasis significou agora simplesmente aquilo que pode ser identificado, enquanto ousia significou o que tal coisa identificável é. Isso fez hypostasis cair necessariamente para o nível do indivíduo e localizou ousia no nível do ser que qualquer tipo de indivíduos têm em comum — exceto que hypostasis trazia consigo um ar de dignidade metafísica que faltava nas expressões anteriores que designavam o indivíduo (1990, p. 150).

O que esta interessante formulação oriental não conseguiu superar foi a questão das pessoas individuais que formam a Trindade. Isto porque ela não é capaz de evitar inequivocamente as tendências ao modalismo e ao triteísmo. Aliás, podemos dizer que muitas das expressões de fé da igreja atual, por falta de entendimento da doutrina da Trindade, seguem exatamente estas percepções. Muitas pessoas pensam em Deus como propõe o modalismo, tratando Deus e Jesus mais como expressões históricas ou celestiais, e o Espírito como sua atual e palpável representação. Outras pensam nos moldes do trietísmo, como se as três pessoas divinas fossem independentes, com ações e vontades próprias, chegando a lidar com cada uma delas de forma diferente, inclusive com desdobramentos litúrgicos. Procurando superar as inerentes dificuldades das formulações filosóficas antigas, surgiram as propostas, mais recentes, de Karl Barth e Karl Rhaner. Devemos admitir que ambas são bastante complexas em sua argumentação, mas consideram uma maior relevância da revelação bíblica, quando comparadas com a antiga priorização da construção filosófica. O conceito de revelação é fundamental para toda a teologia de Barth, mas não como algo imediato obtido na literalidade das Escrituras. Por isto mesmo, Wolfhart Pannenberg destaca uma importante declaração de Barth: “[...] Karl Barth chegou a dizer que na Escritura existiam ‘indícios explícitos’ para a Trindade, mas que nós ‘não devemos encontrar a doutrina da Trindade claramente expressa no Antigo ou no Novo Testamento’” (2009, p. 412). Usando ainda a apresentação de Pannenberg do pensamento de Karl Barth encontramos o seguinte:

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De fato, porém, a Kirchlichte Dogmatik desenvolveu a idéia do Deus trinitário não a partir dos fatos da revelação histórica de Deus como Pai, Filho e Espírito, mas a partir do conceito formal da revelação como auto-revelação, que, segundo Barth, encerra um sujeito da revelação, um objeto da mesma e a própria revelação como momentos que, simultaneamente, são um em conjunto. Esse modelo de Trindade da revelação pode ser reconhecido sem dificuldade como estruturalmente idêntico com o do Absoluto consciente de si mesmo, especialmente se o fato de que Deus é manifesto em sua revelação deve ser entendido em primeiro lugar como um ser auto-revelado. O sujeito revelador é apenas um único, neste caso. Barth pode até mesmo compreender a doutrina da Trindade como apresentação da “subjetividade” de Deus em sua revelação. Nessas circunstâncias não podia haver espaço para uma pluralidade de pessoas no Deus uno; no máximo, para diferentes “modos de ser” de uma subjetividade de Deus (2009, p. 403).

A ideia principal de Barth está na concepção de Deus como sujeito consciente de si mesmo e que se mostra ao ser humano pela via da autorevelação. Para Pannenberg, Karl Rahner irá assumir esta a ideia de Barth e acentuá-la com a tese das expressões imanente e econômica da Trindade. A Trindade imanente é a que se refere à essência de Deus e a econômica a que se refere à sua revelação na história da salvação humana. O ponto de partida da tese de Rhaner consistiu na constatação de que Jesus Cristo é o Filho de Deus em pessoa, que, portanto, a encarnação é atribuída ao Filho não somente por meio de uma apropriação exterior, em contraste com as outras duas pessoas da Trindade. O ser humano Jesus Cristo é “símbolo real” do Logos divino. Sua história “é a existência do Logos como nossa salvação junto a nós, que revela o próprio Logos”. A encarnação, porém, deve ser vista no contexto da ação histórica-salvífica do Deus trinitário como um “caso” especial do envolvimento de uma pessoa trinitária com a realidade do mundo. O “caso” da união hipostática do Logos divino com o ser humano Jesus, na verdade, é único, sem paralelo. Não obstante, ele se encontra no contexto de um agir do próprio Deus trinitário na história do

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mundo, que abarca toda a economia salvífica [...] Não obstante, também o Pai está relacionado à história da economia salvífica por meio do Filho e do Espírito. Em sua deidade, por meio da criação do mundo bem como por meio do envio de Filho e Espírito para agirem nele, ele até mesmo se tornou dependente do curso de sua história. Isso resulta da dependência recíproca das pessoas trinitárias na realização da transferência e da restituição do reino em conexão com a entrada econômico-salvífica do Filho e do Espírito no mundo e sua história (2009, p. 444-445).

Se pudéssemos resumir o que parece que estes teólogos estão dizendo, diríamos que Deus é único e que a ideia da Trindade se refere ao ser de Deus, não necessariamente como três pessoas, mas como uma expressão complexa, percebida na revelação que ele faz de si mesmo na história humana. Ou ainda, podemos pensar, como Jenson, que propõe a superação da intemporalidade da doutrina trinitária observando-a desde uma perspectiva escatológica: Enquanto a teologia estivesse presa ao axioma da intemporalidade, a eternidade de Jesus só poderia ser concebida como uma realidade que sempre existiu em Deus. Assim se postulou o “Logos asarkos”, o “Verbo [ainda] não encanado”, o doublé metafísico de Jesus, que sempre estava em Deus e então se tornou aquele que nos foi enviado na carne. Descreveu-se a relação do Logos com o Pai como relação Pai-Filho, e com razão, já que é a relação de Jesus com seu Pai que deve ser interpretada. Mas o gerar e o ser-gerado deste Pai e Filho tinham que ser intemporais; assim essa “processão” não podia, de fato, ser o mesmo que a relação temporal de Jesus com seu Pai, isto é, que a “missão” [...] Ao invés de interpretar a divindade de Cristo como uma entidade separada que sempre era — e de proceder de maneira análoga com o Espírito —, deveríamos interpretá-la como um resultado final, e, assim, como eterna, assim, como o enquadramento em volta de todos os princípios e fins. A vida histórica de Jesus foi um envio do Pai; a relação filial entre esse homem e a transcendência a quem ele se voltava temporalmente ocorreu; e esse homem ressuscitou dos mortos, de maneira que sua missão deve triunfar, de maneira que sua relação filial com seu Pai é incontestável. Assim, a obediência

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de Jesus ao Pai, e o amor deles para conosco que nisso ocorre, provarão ser um evento insuperável, isto é, são um evento de Deus, uma “processão” de Deus. A oração aramaica ou hebraica de Jesus e sua apreensão profética da palavra de Deus serão a auto-expresão final do Pai, pela qual ele estabelece a sua identidade para nós e para si próprio. E o Espírito que é a espiração desse futuro soprará todas as coisas diante de si para dento de uma nova vida (1990, p. 171).

Ainda que não tenhamos tratado em detalhe o aspecto do Espírito Santo na Trindade, que também teve sua abordagem específica na patrística, a intenção principal aqui foi explorar um pouco esta temática, visando conhecê-la, mas com o intuito de superar restrições dogmáticas que não contribuem necessariamente para a fé prática. Considero que aquilo que temos como revelação é a expressão de um Deus único, mas neste processo revelatório ele se mostra de maneiras diferentes, sem abrir mão de sua unicidade e propósito para o ser humano. A limitação, portanto, está em nós, receptores da revelação e em nossa incapacidade de conceber totalmente o ser de Deus.

Referências JENSON, Robert W. O Deus triúno. In: BRAATEN, Carl E. e JENSON, Robert W. (ed.). Dogmática Cristã. Vol.1 e 2. São Leopoldo: Sinodal, 1990. PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática. Volume 1. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2009.

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I - Introdução e Teontologia UNIDADE - 16 OS ATRIBUTOS DE DEUS

Introdução Os atributos são uma forma de nos referirmos a Deus por meio de características que imaginamos ou interpretamos nas Escrituras. Dada a infinitude do ser de Deus, poderíamos considerar, por associação imediata, uma infinidade de possíveis atributos divinos. Pela natural impossibilidade da tarefa, serão abordados apenas alguns atributos, desde os mais comuns utilizados na vivência da igreja, até a indicação de caminhos para a consideração de uma abordagem concentrada na revelação dos atributos segundo as Escrituras.

Objetivos 1) Refletir sobre a diferença entre a atribuição especulativa e a revelada de atributos a pessoa de Deus; 2) Conceber caminhos de entendimentos para o conhecimento de Deus intermediado pelos atributos na forma como são revelados.

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Concluindo a disciplina e, especificamente, a seção que tratou da Teontologia, voltamos a nossa atenção para algumas perguntas elementares na busca pelo conhecimento de Deus: Como podemos descrever Deus? Quem ele é? Como ele é? Como respostas, até aqui apresentamos a construção do conhecimento de Deus pela via da discussão filosófica e da Teologia Bíblica. Contudo, parece que a nossa aproximação existencial ou experiencial de Deus se dá mais em relação àquilo que construímos em nossa mente, em função da imagem que fazemos dele. Parte desta imagem é obtida pela reflexão conceitual filosófica, parte pela revelação bíblica e parte pela própria cultura e compartilhamento da experiência humana. O tema dos atributos trata desta via de descrição de Deus e das maneiras que usamos para nos referir a ele em função de suas características e qualidades. Valem aqui os alertas dos teólogos para que não nos deixemos levar totalmente pela nossa imaginação criativa, mas que atentemos para a revelação bíblica, com todas as limitações que isto incorre para a caracterização de Deus. Lembremos também que o caminho que estamos trilhando é o da finitude humana tentando sondar a infinitude divina. A existência de Deus e sua essência são realidades que independem de nossa atribuição de descrições. Emil Brunner (2004, pp. 322-323), por exemplo, destaca alguns caminhos que utilizamos para conferir atributos a Deus que são oriundos da teologia natural: a - Via da negação: abstração daquilo que é humano rumo a uma ideia de absoluto de superação em uma esfera mística. Na tentativa de perceber quem Deus é propõe-se o caminho do exercício de autoesvaziamento da realidade humana; b - Via da eminência: processo de ascensão gradual daquilo que é humano, em busca da superação de seus limites, atribuindo à divindade as características de um tipo de super-humano; c - Via da causalidade: baseada no conceito de que todo efeito pressupõe uma causa, observa-se a natureza e as realidades humanas e sugere-se a potencialidade divina como causadora dos fenômenos. Também aqui, o que buscamos não é o resultado simples de uma teologia natural e sim a aplicação de nossa racionalidade tentando

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entender a teologia revelada. Devemos lembrar que a revelação se dá por meio das expressões culturais e contextuais humanas ao longo da história. Ela também se dá pelo uso da narrativa literária. Assim sendo, a base para a construção do conhecimento de Deus parte do próprio ser humano. O conhecimento de Deus é descrito a partir da realidade humana e, por isso, os atributos, assim como outras referências a Deus, são construídos por antromorfismos, que significa o uso de formatos (morphe) humanos (antropos), para que possamos obter alguma compreensão do mistério divino. De certa forma, já tratamos, indiretamente, de muitos atributos divinos ao estudarmos o conhecimento obtido nos textos do Antigo e Novo Testamentos. No entanto, nosso objetivo agora é voltarmos a atenção para atributos específicos que são gerados tanto pela especulação filosófica quanto pela avaliação da teologia revelada.

1- Onipotência, onipresença e onisciência É curioso notar como estes atributos são quase que de imediato repetidos, ensinados e defendidos pela grande maioria dos crentes. Entretanto, gostaria de apresentar uma abordagem bastante interessante desenvolvida por Brunner sobre estes atributos. Começando com o tema da onipotência, Brunner (2004, pp. 327-336) discorre sobre o processo de construção do conceito que levou ao tipo de entendimento que a maioria de nós tem hoje. A onipotência é entendida como uma ideia absoluta de poder, porém, pela via especulativa, eminente e filosófica. A princípio, o que se entende é que por estarmos tratando de Deus, deveríamos conceber que em sua condição divina ele tem poder absoluto. Sendo esta uma via especulativa, ela também possibilita a formulação de problemáticas sem solução: É proveniente da idéia de omnipotentia que todas aquelas questões teóricas, curiosas, imaginárias se levantem, que estão incluídas nesta idéia de que “Deus tudo pode fazer”, e “o que Ele não pode fazer” — um processo de questionamento que caracteristicamente começa com Agostinho, e em Tomás de Aquino leva a extensas dissertações sobre questões tais como “se Deus poderia fazer o passado não ter existido” ou se Ele “pode

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fazer com que não faça”, ou “se Deus poderia fazer aquilo que Ele faz ainda melhor”, que finalmente terminou naqueles problemas absurdos no sofismo que Erasmo trata com mordaz zombaria. Uma vez mais isto não é acidental. Surge inevitavelmente da idéia de omnipotentia, que seria impossível para um sistema de pensamento genuinamente bíblico (2004, p. 328).

O que Brunner está defendendo é que o atributo da onipotência não segue aquilo que a bíblia revela sobre Deus. Para ele, a afirmação do Deus Todo-poderoso está associada diretamente à sua criação, ou seja, é um poder exercitado sobre alguma coisa. Neste sentido, Deus pode operar milagres, preservar, manter ou suspender o curso da natureza, e até mesmo destruí-la. No entanto, a revelação bíblica apresenta um Deus que se autolimita por criar algo que não é ele mesmo, em relativa independência. Assim, o Deus Todo-poderoso cria para si uma limitação, “a fim de que a criatura possa ter espaço ao Seu lado, em quem e para quem Ele pode revelar e compartilhar a Si mesmo” (2004, p. 331). A liberdade humana torna-se uma demonstração da limitação da onipotência divina. Portanto, as perguntas especulativas não fazem sentido se forem elaboradas fora daquilo que é revelado. O ser de Deus é aquele que é revelado, em que a sua vontade ou desejo não estão no campo da especulação, mas demonstradas nas suas ações. Quando imaginamos o seu ilimitado poder, para fazer coisas impossíveis aos humanos, temos que submeter esta ideia à limitação da sua revelação. Os milagres, por exemplo, não são exemplos de poder absoluto e sim de aplicações do seu poder ao propósito de glorificação de si mesmo, com vistas ao cumprimento de seu plano salvífico para a humanidade. Ainda, talvez possamos comprovar a autolimitação divina de sua imaginada onipotência no exemplo de Cristo, conforme indicado pelo apóstolo Paulo na carta aos Filipenses: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens” (Filipenses 2:5-7). O Deus Todo-poderoso foi o mesmo que resolveu esvaziar-se de sua divindade na encarnação de Cristo e, ainda mais, sofrer todas as limitações humanas ao ponto de morrer

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numa cruz. Daí, ficamos com o paradoxo de Paulo: “Mas ele me disse: ‘Minha graça é suficiente para você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza’” (2 Coríntios 12:9). O tratamento que Brunner dá aos atributos da onipresença e onisciência seguem uma lógica semelhante. Em termos absolutos a ideia de onipresença significa que Deus está em todo lugar. Se usarmos a categoria da metafísica isto poderia nos levar a uma compreensão panteísta, como se Deus estivesse diluído em tudo e em todos. Mas sabemos que esta ideia não é bíblica. Podemos pensar, portanto, a partir da realidade antropomórfica, em lugares onde Deus está. Na via especulativa e eminente, Deus está em todos os lugares por causa do conceito absoluto de sua ilimitada divindade. Mais uma vez, contudo, Brunner argumenta que esta também não é a perspectiva revelada. Antes de olharmos para algumas indicações bíblicas sobre a presença de Deus, vale considerar que a questão espacial, ou seja, do lugar onde Deus está é uma referência apenas a partir da criação. O aqui e lá não fazem sentido para a transcendência divina que não pertence ao mundo criado. Podemos ir além, ao pensarmos também que o estar, para a o ser humano, não envolve apenas o espaço, mas também o tempo. Vivemos numa dimensão espaço-tempo. Deus, no entanto, anterior à criação, e consequentemente eterno, transcende esta limitação dimensional. A afirmação de que ele está em todo lugar ou em algum lugar, seja em que tempo for, é imprópria. Mas deixando de lado esta conjectura, voltemos nossa atenção para o que a bíblia nos revela. Assim como Deus ao conceder liberdade às suas criaturas limita o seu poder, ele também dá “a este espaço, e às criaturas que contém, o caráter de realidade, e de — limitada — independência. Aquilo que cria uma sensação de distância é real para nós, mas não para Deus; porque Ele aponta-a, ela é verdadeira, e porque é ele quem faz assim, para Deus ela não existe” (Brunner, 2004, p. 339). As Escrituras constroem a ideia de um Deus que se limita em sua presença, respeitando a liberdade humana. Desta forma, [...] Deus não está presente em todos da mesma maneira. Além desta presença extensiva de Deus há uma que é intensiva e qualitativa. É apenas em função do background desta diferenciação qualitativa da Presença que a linguagem bíblica

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sobre a Onipresença é corretamente compreendida. Há uma “distância” e uma “proximidade” de Deus. Alguém pode estar “próximo” de Deus, e alguém pode estar “longe” dEle. Portanto, Deus pode “se aproximar” e pode “se afastar”, e nós podemos “nos aproximar” e “afastarmo-nos” dele (Brunner, 2004, p. 340).

A mesma concepção de presença atribuída ao espaço se aplica em relação ao tempo, por isso, encontramos o conceito de “vinda” de Deus. Deus é aquele que vem, que desce, que se faz presente no meio do seu povo. É com base nisto que a escatologia cristã é construída. Afirmamos que Jesus está conosco, porém, aguardamos a sua volta. Sobre a onisciência Brunner procura, novamente, explicar o entendimento revelado em contraste ao especulativo absolutista. Ele diz: O fato de que Deus conhece a respeito de sua criatura não é a mesma verdade como dizer que ele as cria. Ele as conhece como uma realidade criada, que está em oposição a Ele. Ele conhece, sobretudo, a respeito da livre atividade desta criatura para a qual conferiu liberdade para decidir por si mesma. Mas o conhecimento divino não está limitado ao Tempo e ao Espaço, à percepção e inferência, como o nosso está. Tudo permanece em eterna presença perante os olhos de Deus — e ainda como conhecimento de algo que não é Ele mesmo. A atividade da criatura que ocorre em liberdade é encerrada dentro deste conhecimento. A partir da previsão de Deus os homens induziram a falsa conclusão de que a criatura não tem liberdade. Agostinho já provou que esta foi uma conclusão errada. Nós, certamente, só podemos conhecer de antemão na proporção em que algo não acontece em liberdade; pois o Tempo e o Espaço limitam o nosso conhecimento. Só podemos conhecer o futuro na medida em que está contido no presente, como necessariamente decorre daquilo que agora é. A liberdade do Outro é a linha limite do nosso conhecimento. Para Deus esta limitação não existe. Seu conhecimento do futuro não é um conhecimento baseado em algo que já existe no presente, mas é um conhecimento que situa-se além das limitações temporais (2004, pp. 344-345).

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A dificuldade em entendermos este tipo de argumentação é inerente à nossa limitação humana, como criaturas encerradas na dimensão espaçotempo. O que Brunner defende é que “Deus conhece aquilo que acontece em liberdade no futuro como algo que acontece em liberdade” (2004, p. 345), ou seja, desde a percepção humana do presente, o que vemos é que Deus nos dá a liberdade de decisão, que naquele momento presente ele decide não saber, por causa da liberdade atribuída ao ser humano, mas esta mesma decisão se torna conhecida antecipadamente por Deus caso ele a observe desde o futuro, após o acontecido. O que lemos na revelação bíblica é que o conhecimento de Deus não está associado ao controle do ser humano como se este fosse uma máquina programável ou como se estivesse preso a um sistema determinista. O conhecimento de Deus é associado ao respeito e ao cuidado, expressões do seu amor. É assim que devemos entender alguns textos que tratam da presciência divina (Salmo 139; Jeremias 29:11; Atos 15:18; etc.).

2- Eternidade e Imutabilidade Os atributos da eternidade e imutabilidade estão diretamente relacionados à observação temporal. Na filosofia antiga a eternidade foi entendida como algo que não é afetado pelo tempo. A concepção platônica aplicava esta definição para tratar do mundo das ideias, não necessariamente aplicada ao ser de Deus. Por exemplo, a argumentação de que dois mais dois é igual a quatro seria uma ideia imutável, eterna. Se usarmos este mesmo argumento para Deus, ele deveria ser considerado eterno e imutável, desde a concepção especulativa. Certamente a eternidade, tanto significando a ausência do tempo quanto um tempo que se inicia e não termina, é facilmente aplicável a Deus, ainda que devamos considerar o seu envolvimento radical com o tempo humano ao encarnar-se e limitar-se em seu distanciamento da eternidade. No entanto, a questão da imutabilidade já não recebe este mesmo tratamento nas Escrituras. Podemos dizer que existe um pensamento dialético ou paradoxal sobre a imutabilidade de Deus na revelação bíblica. Um aspecto da imutabilidade estaria relacionado à percepção da passividade de Deus

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e outro aspecto estaria relacionado à estabilidade de seu caráter. Em ambos os aspectos, o que nos interessa é a aplicação dos mesmos ao tipo de relação que Deus estabelece com o ser humano. Brunner argumenta:

Por isso, o Deus Santo e Vivo não é — num certo sentido — imutável. Se for verdadeiro que realmente existe um tal fato como Misericórdia e a Ira de Deus, então Deus, também, é “afetado” pelo que acontece às Suas criaturas. Ele não é como aquela divindade do platonismo que é indiferente, e, portanto, estático, por tudo que acontece sobre a terra, mas segue o Seu caminho no céu sem olhar em volta, sem levar em consideração o que está acontecendo na terra. Deus “olha em volta” — Ele se interessa com o que acontece aos homens e com as mulheres — Ele está interessado a respeito da mudança, sobre a terra. Ele altera seus sentimentos de acordo com as mudanças nos homens. Deus “reage” às ações dos homens, e no que Ele “reage”, Ele muda. Deus diz: “Eu não serei a causa da minha face cair sobre vós” [Jr 3:12]. Ele “oculta sua face” [Is 64:7], Ele retira — e novamente: Ele se aproxima, ele se revela, Ele “faz a sua face brilhar sobre eles” [Nm 6:25]. A mais vigorosa expressão na Bíblia para este fato de que Deus “muda” é aquela que diz que “O Senhor se arrependeu disso” [Am 7:3,6; Jr 42:10; 1 Sm 15:11] (2004, pp. 353-354).

Esta argumentação mostra um Deus simpático, sensível ao ser humano e à relação construída com ele. Por esta face mutável é que compreendemos outros atributos como a misericórdia, graça, amor, etc. Por outro lado, na carência por uma estabilidade divina em comparação à instabilidade humana, Deus também se mostra imutável em seu caráter e propósito. A fé carece deste atributo para criar esperança na caminhada. Por isso, Deus se mostra também como a Rocha Eterna (Isaías 26:4), inabalável, em quem podemos confiar. Seu amor também é imutável (Romanos 8:38-39). Principalmente, lemos repetidas vezes sobre a fidelidade de Deus, que dura para sempre (Salmo117).

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Conclusão Ao terminarmos esta curta investigação sobre o conhecimento de Deus e a significação de nossa existência, gostaria que a impressão final que ficássemos é a de que este é um processo inacabado, cheio de desafios, mas prazeroso, pois é próprio Deus o maior interessado em se fazer conhecer e proporcionar maturidade e plenitude para a nossa vida e jornada de fé.

Referência BRUNNER, Emil. A doutrina cristã de Deus. Dogmática: Vol. 1. São Paulo: Novo Século, 2004.

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Anotações

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