Foucault, Michel. a Vida Dos Homens Infames

November 3, 2018 | Author: marcusoestmann | Category: Power (Social And Political), Discourse, Time, Saint, Michel Foucault
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FOUCAULT, Michel. Michel. A vida dos homens homens infames. In : O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. pp. 89-128. 1

 A  VIDA DOS HOMENS INFAMES INFAMES

Isto não é uma obra de história. O acervo que aqui encontraremos não obedeceu à regra mais importante que o meu gosto, o meu prazer, uma emoção, o riso, a surpresa, um certo assombro ou outro sentimento qualquer, cuja intensidade talvez me fosse difícil justificar, agora que é passado o primeiro momento de descoberta. É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desditas e aventuras sem número, recolhidas recolhidas numa mão -cheia de palavras.   Vidas breves, achadas [90] a esmo em livros e documentos. Exempla, ma mass  —  ao contrário daqueles que os sábios recolhiam no decurso das suas leituras  — , são exemplos exemplos que têm menos de li ções a serem meditadas, meditadas, do que de breves efeitos cuj a força se desvanece quase imediatamente. Agradar-me-ia designá-los com o termo de ― novelas‖ , pela dupla referência que ele comporta: ao desembaraço da narrativa e à realidade dos acontecimentos relatados; pois é tal a coesão das coisas ditas, nestes textos, que ficamos sem saber saber se a i ntensidade que os percorre percorre vem mais do fulgor das palavras ou da violência violência dos factos de que eles estão re pletos. Vidas Vidas si ngulares, ngulares, não sei por que acasos tornad as estranhos poemas, eis o que pretendi recolher numa espécie de herbário.  A ideia veio-me um dia, quero crê-lo, em que me encontrava na Bibliothèque Natio-nale a l er um registo de i nternamento nternamento r edigido edigido mal começava o século XVIII. Parece-me, Parece-me, até, que a idei a me surgiu na sequência da l eitura das duas notícias seguintes. Mathurin Milan, internada no hospício de Charenton em 31 de Agosto de 1707: ― a sua loucura foi sempre o esconder-se da família, levar uma  vida obscura no campo, ser processado, [91] emprestar a usura e a fundo perdido, passear o seu pobre espírito por caminhos esconsos e crer-se capaz dos maiores cometimentos.‖   Jean Antoine Touzard, internado nos paços de Bicêtre em 21 de Abril de 1701: ― Frade apóstata, sedicioso, capaz dos maiores crimes, sodomita, ateu at é mais mais não poder ser; um verdadeiro monstro de a bominação bominação sufocar do que deixar deixar li vre.‖ que mais val ia sufocar Embaraçar-me-ia dizer o que foi que experimentei ao certo, quando li estes fragmentos e muitos outros semelhantes. Sem dúvida que uma daquelas impressões das quais se diz que são ― físicas ‖ , como se fosse possível existirem outras. E confesso confesso que tai s ― novelas‖ , ao assomarem de súbito por entre dois séculos e meio de silêncio, percutiram em mim mais fibras do que aquilo a que vulgarmente chamamos literatura, sem que ainda hoje eu possa dizer se mais me emocionaram a 1

"La vie des hommes infâmes", in Les Cahiers du Chemin, n.° 29, 15 janvier 1977, pp. 12-29.

beleza daquele estilo clássico, talhado em algumas frases em volta de personagens decerto miseráveis, ou os excessos, a mescla de sombria obstinação e perfídia daquelas vidas de que pressentimos, sob a [92] pedra polida das palavras, o descalabro e a sanha. Há muito tempo, para um livro, servi-me de semelhantes documentos. Se o fiz então, foi sem dúvida por causa da vibração que ainda hoje sinto quando me acontece encont encont rar aquelas vidas í nfimas transformadas transformadas em cinzas nas poucas frases que as prostraram. O meu sonho era restituir-lhes a intensidade mediante uma análise. À falta do necessário talento, ruminei pois longamente a simples análise; tomei os textos na sua secura; indaguei qual teria sido a sua razão de ser, a que instituições ou a que prática política se referiam; intentei saber porque é que, numa sociedade como a nossa, se tinha de súbito tornado tão importante que fossem ― sufocados ‖ (como se sufoca um grit o, um fogo, um animal) um monge escandaloso ou um usur ário fantasista e inconsequente; procurei procurei a r azão pela qual se ti nha posto tanto zelo em impedir os pobres de espírito de se passearem por caminhos caminhos esconsos. Mas as intensidades originais que me tinham motivado continuavam a ficar de fora. E uma vez que havia o risco de não passarem à ordem das razões, porque o meu discurso discu rso era incapaz de as comportar comportar como deveria ser, não seria melhor deixá-l as na forma mesma que mas tinha dado a sentir? [93]Daí a ideia desta recolha, feita um pouco ao sabor do momento. Recolha que se foi compondo sem pressas e sem um fim claramente clar amente defini do. Durante muito tempo alimentei alimentei a ideia de a apresentar segundo uma ordem sistemática, sistemática, com alguns rudimentos de explicação e de maneira a poder dar mostras de um mínimo de significado histórico. histórico. Renunciei a isso, por razões a que voltarei em breve; resolvi-me muito simplesmente a reunir um certo número de textos, pela intensidade que me pareciam possuir; acompanhei-os acompanhei-os de al guns preliminares; preliminares; e distribuí-os de maneira a preservar  —  o menos mal possível, em minha opinião  —  o efeito de cada um. A minha incompetência votou--me ao lirismo frugal da citação. Este livro não será pois do agrado dos historiadores, menos ainda que os outros. outr os. Livro Livro de humor e puramente subjectivo? Diria antes  —  mas isso talvez acabe por dar no mesmo  —  que é um livro de convenção e de jogo, o livro de uma maniazinha que se dotou de um sistema. Creio bem que o poema do usurário fantasista ou o do monge sodomita me serviram, de ponta a ponta, de modelo. Foi para reencontrar algo como aquelas existências-clarão, como aqueles poemas-vida, que impuz a mim mesmo um certo número de regras simples: [94] realmente existentes;  que se tratasse de personagens realmente  que essas existências tenham sido ao mesmo tempo obscuras e desafortunadas;  que fossem contadas em algumas páginas, ou melhor algumas frases, tão breves quanto possível; simples anedotas estranhas ou patéti cas, mas que  que tai s relatos não fossem simples de uma maneira ou de outra (porque eram queixas, denúncias, ordens ou relatórios) tenham realmente feito parte da história minúscula daquelas

existências, da sua i nfelicidade, nfelicidade, da sua raiva ou da sua duvidosa loucura; loucura;  e que do choque dessas palavras e dessas vidas ainda nos venha um certo efeito no qual se misturam beleza e assombro. Mas acerca destas regras, que podem parecer parecer arbitrárias, é necessário necessário qu e me ex plique um pouco mais. * * * Pretendi que se tr atasse atasse sempre de exis tências reais; que se l hes pudesse pudesse dar um lugar e uma data; que, por detrás destes nomes nomes que já não dizem nada, por detrás destas pal avras breves e que bem podem na [95] maior parte das vezes ter sido falsas, fal sas, enganadoras, injustas, exorbitantes, tenha havido homens que viveram e morreram, com os seus sofrimentos, as suas malfeitorias, os seus ciúmes, as suas vociferações. Bani pois tudo o que pudesse ser i maginação maginação ou literatura, porquanto nenhum dos negros heróis que estas possam ter inventado se me afigurou tão intenso como aqueles remendões, aqueles soldados desertores, aquelas vendedeiras de roupa, aqueles tabeliões, aqueles monges vagabundos, todos eles danados, escandalo sos ou dignos de l ástima; e isto em virtude do si mples facto de sabermos que existiram. Do mesmo modo, excluí todos os textos que pudessem constituir memórias, recordações, quadros descritivos, todos os que relatavam a realidade mas mantendo face a ela a distância do ol har, da memória, da curiosidade ou do divertimento. divertimento. Fiz questão que estes textos mantivessem sempre sempre uma relação, ou antes, o maior número possível de d e relações, com a realidade: não apenas qu e se lhe referissem, referi ssem, mas que nela operassem; que fossem uma peça da dramaturgia do real, que constituíssem o instrumento de uma vingança, a arma de um ódio, um episódio de uma batalha, a gesticulação do desespero ou do ciúme, uma súplica ou uma ordem. Não procurei reunir textos que fossem, mais do que out ros, fiéis à [96] realidade, que merecessem merecessem ser conservados pelo seu valor r epresentativo, epresentativo, mas sim t extos que desempenharam desempenharam um papel nesse real de qu e falam, e que, em compensação, compensação, se encon tram, seja qual for a sua inexactidão, a sua ênfase ou a sua hipocrisia, atravessados por ele: fragmentos de discurso que consigo levam fragmentos de uma realidade da qual fazem parte. Não é uma recolha de retratos que aqui iremos ler: são armadilhas, armas, gritos, gestos, atitudes, astúcias, intrigas, de que as palavras foram os instrumentos. instrumentos. Vida s reais foram ―representadas ‖ nestas poucas frases; não quero com isto dizer que elas aí foram retratadas, mas que, de facto, a sua liberdade, a sua desgraça, por vezes a sua morte, em todo o caso o seu destino aí foram, pelo menos em parte, decididos. Estes discursos realmente atravessaram vidas; tais existências foram efectivamente postas em risco e deitadas a perder nestas palavras. Pretendi também que estas personagens fossem elas mesmas obscuras; que nada as tivesse predisposto a uma qualquer notoriedade; que não tenham sido dotadas de nenhuma das grandezas como tal estabelecidas e reconhecidas reconhecidas  —  as do nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do génio; que pertencessem àqueles milhões de existências que estão destinadas a não deixar [97] rasto; que, nas suas infelicidades, nas suas paixões, naqueles amores e naqueles ódios, houvesse algo de cinzento e de ordinário ordinário aos a os olhos daquilo que habitualmente temos por digno de ser relatado; que, contudo, tenham sido atravessados por um certo ardor, que tenham

sido animados por uma violência, uma energia, um excesso na malvadez, na vilania, na baixeza, na obsti nação ou no infortúnio, infortúni o, tais que lhes proporcionassem, pr oporcionassem, aos olhos daqueles que os rodeavam, e à medida da sua própria mediocridade, uma espécie de medonha ou lamentável grandeza. Tinha-me posto à procura destas espécies de partículas dotadas de uma energia tanto maior quanto elas próprias forem mais pequenas e difíceis de discernir. Para que algo delas chegasse até nós, foi porém necessário que um feixe de luz, ao menos por um instante, as viesse ilumi nar. Luz essa que lhes vem do exterior.  Aquilo que as arranca à noite em que elas poderiam, e talvez devessem sempre, ter ficado, é o encontro com o poder: sem este choque, é indubitável que nenhuma palavra teria ficado para lembrar o seu fugidio trajecto. O poder que vigiou aquelas  vidas,  vidas, que as perseguiu, que, ainda que por um só instante, prestou atenção às suas quei xas e ao seu leve burburi nho e que as marcou marcou com um golpe das [98] suas garra s, foi também o poder que suscitou as poucas palavras que delas nos restam: quer porque se lhe tenham querido dirigir para denunciar, apresentar queixa, solicitar, supli car, quer porque ele tenha pretendid o inter vir e que com algumas palavra s tenha julgado e decidido. Todas aquelas vidas, que estavam destinadas a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, não puderam deixar traços  —  breves, incisivos, enigmáticos muitas vezes  —  senão em virtude do seu contacto momentâneo com o poder. De maneira que é sem dúvida para sempre impossível rea vê-las em si mesmas, tal como como seriam ― em estado livre ‖ ; já não se pode recuperá-las a não ser fixadas nas declamações, nas parcialidades tácticas, nas mentiras imperiosas que supõem os jogos de poder e as relações com ele. Dir-me-ão: ora aí está o senhor, sempre com a mesma incapacidade de transpor os limit es, de passar para o outro lado, escutar e fazer ouvir a linguagem que  vem de fora ou de baixo; sempre a mesma escol ha, do lado do poder, do q ue ele diz ou faz dizer. Estas vidas, porque não ir escutá-las lá onde falam por si próprias?  —  Mas, antes de mais, daquilo que elas foram na sua violência ou na sua infelicidade singular, será que nos ficaria o que quer que fosse, se, se, a dado [99] momento, momento, não tivessem cruzado cr uzado o poder e provocado provocado as suas forças? Afinal, não será um dos traços fundamentais fundamentais da nossa sociedade o facto de o destino tomar aqui a forma da relação com o poder, da luta com ou contra ele? O ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra a sua energia, encontra-se efectivamente efectivamente onde elas se confrontam com o poder, se batem com ele, tentam utilizar-lhe as forças ou escapar-lhe às armadilhas. Nas palavras breves e estridentes que vão e que vêm entre o poder e as existências mais inessenciais, é sem dúvida aí que estas últimas encontram o único momento que alguma vez lhes foi concedido; é o que lhes dá, para atravessarem o tempo, o pouco de fulgor, o breve clarão que as traz até nós. Pretendi, em suma, juntar alguns rudimentos de uma lenda dos homens obscuros, a partir dos discursos que na infelicidade ou na ira trocaram com o poder. ― Lenda ‖ , porque nela se dá, como em todas as lendas, um certo equívoco entre o ficcional e o real. Produz -se nela por por razões inversas, porém. O lendári o, seja qual for o seu núcleo de realidade, não passa afinal da soma do que dele se diz. É indiferente indiferente à existência ou à inexistência inexistência daquele cuja glória glória transmite. Se existiu, existiu, a lenda recobre-o de tantos prodígios, embeleza-o com tantas [100] impossibilidades,

que tudo se passa, ou quase, como se nunca ele tivesse vivido. E se é puramente imaginário, a lenda dá conta de tantos relatos insistentes a seu respeito que ele adquire adquir e a espessura histórica de alguém que teria existido. Nos textos que s erão lidos mais à frente, a existência destes homens e destas mulheres reconduz -se exactamente exactamente ao que dela foi dito; daquilo que eles foram ou daquilo que fizeram nada subsiste, salvo em algumas algu mas frases. É a raridade, e não a prolixid ade, que aqui faz com que r eal e ficção se equivalham. Nada tendo sido na história, não tendo desempenhado nenhum papel apreciável nos acontecimentos ou entre as pessoas importantes, não tendo deixado à sua r oda qualquer traço que possa ser referi do, não têm e nunca mais terão exi stência a não ser ao abrigo abrigo precário dest as palavras. E, graças aos textos que deles falam, chegam até nós sem serem portadores de mais indícios de realidade do que se viessem da Lenda Dourada  ou de um romance de aventuras. Esta existência puramente verbal que desses infelizes infelizes ou desses celerados faz seres quase ficcionais, devem-na eles ao seu desaparecimento quase exaustivo e àquela sorte ou má-sorte que fez com que sobrevivessem, no acaso de documentos reencontrados, algumas raras rara s palavras que falam deles ou que eles próprios [101] pronunciaram. Negra lenda, mas sobretudo seca lenda, reduzida ao que foi dito um dia e que improváveis encontros conservaram até nós.  Aí reside um outro traço desta lenda negra. El a não se transmitiu como como aquela que é dourada por alguma necessidade profunda, segundo trajectos contínuos. contínuos. É, por natureza, sem tradição; rupturas, apagamento, esquecimentos, cruzamentos, reaparecimentos, só por aí é que ela pode chegar até nós. Desde o início que a transporta o acaso. Foi necessário, antes de mais, um jogo de circunstâncias que, contra tudo o que seria de esperar, atraíram sobre o mais obscuro indivíduo, sobre a sua vida medíocre, sobre defeitos afinal bastante ordinários, o olhar do poder e o estrépito da sua cólera: eventualidade que fez com que a vigilância dos responsáveis responsáveis ou das instituições, sem dúvida destinada a suprimir toda a desordem, captasse isto em vez de aquil o, o monge escan escan daloso, a mulher espancada, o bêbado bêbado in veterado e furioso, o mercador dado a contendas, e não tantos outros a seu lado, cujo espalhafato espalhafat o não era menor. E depois foi preciso que, no meio de tantos documentos perdidos e di spersos, tenha tenha sido justamente justamente um determinado e não outro qu alquer alquer a ter chegado até nós, a ter sido reencontrado e lido. [102] De maneira que, entre aquelas pessoas sem importância e nós, que a não temos mais do que elas, não há nenhuma relação necessária. Nada tornava provável que surgissem da sombra, aquel as mais do que que quaisquer outras, com a sua vida e as suas vici ssitudes. Podemos Pod emos divertir-nos, diverti r-nos, se assim o quisermos, a ver ver nisso uma vinga nça: a sorte que permite que aquelas pessoas absolutamente absolutamente destituídas de glória surjam surjam do meio de tantos mor mor tos, que gesti culem ainda, que continuem a manifestar manifestar a sua ira, a sua aflição ou a sua sua invencível mania de di vagar, vagar, talvez compense a má fortuna que sobre elas atraiu, mau grado a sua modéstia e o seu anonimato, o clarão do poder.  Vidas que são como se não tivessem exis tido, vidas que não sobrevivem senão senão do choque com um poder que mais não quis que aniquilá-las, ou pelo menos apagá-l as, vidas que a nós não tornam a não ser pelo efeito de múltiplos acasos, tais são as i nfâmias de que eu quis juntar aqui alguns restos. Existe uma falsa infâmia, infâmia, aquela de que desfrutam homens de pavor ou de escândalo como o foram Gilles de

Rais, Guilleri ou C artouche, artouche, Sade e Lacenaire. Aparentemente Aparentemente infames, por causa das abomináveis recordações que deixaram, das malfeitorias que se lhes atribuem, do respeitoso horror que inspiraram, [103] são de facto homens da lenda gloriosa, mesmo que as raz ões desse renome sejam inversas das que faz em, ou ou deveriam fazer, a grandez a humana. A infâmia infâmia del es não é mais do que uma modalida modalidade de da universal  fama. Mas o monge apóstata, mas os pobres espíritos extraviados por caminhos desconhecidos, esses são infames a todo o rigor; já não existem senão por via das poucas palavras terríveis que estavam destinadas destinadas a t orná -los indignos, para sempre, sempre, na memória dos homens. E quis o acaso que fossem estas palavras, estas palavras somente, a subsistir. O seu presente retorno ao real faz-se da mesmíssima forma segundo a qual tinham sido expulsos do mundo. É inútil procurar-lhes um outro rosto, ou suspeitar neles uma outra grandeza; já não são senão aquilo pelo qual se quis ajoujá-los: nem mais nem menos. Tal é a infâmia estrita, aquela que, não sendo temperada, nem de escândalo ambíguo, nem de uma surda admiração, não é compatível com nenhuma espécie de glória. * * * Perante a grande colectânea da infâmia, que lhe reuniria os traços de um pouco por toda a parte e de todos os tempos, bem me [104] dou conta que a presente recolha é mesquinha, pobre, um pouco monótona. Trata-se de documentos que datam, todos, mais ou menos da mesma centena de anos, 1660-1760, e que provêm da mesma fonte: arquivos de reclusão, da polícia, das petições ao rei e das lettres de  [105] trata, com isto, de um prim eiro volume e que a Vida  cachet 2 . Suponhamos que se [105] achet, as informações contidas no texto são suficientes para que pouco N. T.: acerca do que eram as lettres de c achet, haja a acrescen a crescentar-l tar-lhes hes de modo a que o leitor não iniciado em estudos históricos possa compr eender eender o uso que Michel Foucault delas faz como material da sua análise das relações entre o poder e o discurso. Tratava-se, no essencial, de documentos emitidos em nome do rei, mas não necessariamente, nem na sua maioria, por sua própria iniciativa, e que tinham como função sujeitar a medidas de segurança tais como a prisão ou o internamento todo o indivíduo cujos comportamentos eram, no discurso desses mesmos documentos, tipificados de "indesejáveis". Instrumento de Estado posto ao alcance dos súbditos, não se fizeram estes rogados sempre que a eventual vulnerabilidade vulnerabilid ade de um vizinho ou de um familiar desavindo desav indo dava azo a que sobre ele se pudesse exercer um despotismo de monarca. Embora Foucault não se ocupe senão daqueles que, ―sem nome‖, tão só ficaram ―infames‖ porque deles se ocuparam as lettres de cachet, contam-se entre as suas vítimas algumas personagen p ersonagenss que outras razões ra zões tornaram célebres: Sad Sadee foi uma delas, mas também Voltaire, que não se coibiu de fazer uso, à sua conta, desse mesmíssimo instrumento de poder. Como o próprio Foucault indica algures no texto, a lettre de cachet foi uma instituição confinada a determinado período per íodo da história de França, nada havendo, portanto, que em rigor possa ser considerado seu equivalente em qualquer outra época ou lugar. Não é pois lícito traduzi-la, nomeadamente por ―carta de prego ‖ que, em Portugal, era uma missiva selada, com carácter de segredo de estado, que o rei ou um alto dignitário enviavam  —  a um chefe militar ou a um diplomata, por exemplo — rodeada de especiais medidas de segurança, de modo a que só o destinatário pudesse ter acesso ao respectivo conteúdo e que, normalmente, transmitia ordens ou instruções de conteúdo muito preciso, em circunstâncias de particular relevo ou urgência. Por vezes, mas nem sempre, podia tratar-se de uma ordem de prisão. Enquanto sistema de d e relações relações de poder, e contemporâneas das lettres de cachet, o que mais se lhes assemelhará na história portuguesa por tuguesa serão as redes de denunciantes do Santo Ofício, sem as quais tod a a máquina inquisitorial seria impensável, mas trata-se de um possível paralelo que não cabe aqui desenvolver. Este não é o único texto em que Michel Foucault se debruçou sobre as lettres de cachet, tendo-lhe tendo-lhe inclusivamente inclusivamente dedicado um estudo, em colaboração com Arlette Farge: Le désordre des familles. Lettres de cachet des archives de la  Bastille, Paris, Gallimard-Julliard, 1982. Com efeito, a referência às lettres de cachet remonta, na obra de Foucault, e tanto quanto nos foi dado verificar, pelo menos a Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Plon, 1961. Na versão brasileira deste livro – História da loucura, Rio de Janeiro, Perspectiva, 1978, 1987, 1989,  – lettres de cachet aparece traduzido por ―cartas régias‖, inadequadamente, cm nossa opinião, pelas razões atrás expostas. Por norma, os tradutores da obra foucauldiana optam por não verter o termo para expressões que efectivamente lhe não 2

dos homens infames  poderá alargar-se a outros tempos e a outros lugares. [106]

Escolhi este período e este tipo de textos por causa de uma velha familiaridade. Porém, se o gosto que tenho neles desde há anos ainda não se desmentiu e se a eles volto ainda hoje, é porque aí suspeito um começo; [107] de qualquer modo, um acontecimento importante em que se cruzaram mecanismos políticos e efeitos de discurso. Estes textos dos séculos XVII e XVIII (sobretudo quando comparados com o que será, posteriormente, a banalidade administrativa e policial) possuem um fulgor, reve-[108]lam na subtileza de uma frase um esplendor, uma violência que desmente, pelo menos aos nossos olhos, a pequenez do assunto ou a mesquinhez bem vergonhosa das intenções. As vidas mais deploráveis aí são descritas com as imprecações ou a ênfase que parecem convir aos mais trágicos. Efeito cómico, sem dúvida; há algo de irrisório em convocar todo o poder das palavras e, através delas, a soberania do céu e da terra, a propósito de desordens insignificantes ou de infortúnios tão comuns: ―  Vergado ao peso da mais excessiva dor, Duchesne, empregado comerci al, ousa com humilde e respeitosa confiança l ançar-se aos pés de   Vossa Majestade para implorar a sua justiça contra a mais ruim de todas as mulheres... mulheres ... Que esperança não ali mentará o desventurado que, em último extremo, hoje hoje recorre a Vossa Majestade após ter esgotado todas as vias de boas pala   vras, de advertências e de considerações, para fazer voltar aos seus deveres uma mulher desprovid a de qualquer sentiment o de religião, de d e honra, de probi probidade dade e até de humanidade? Tal é, Sire, o estado do i nfeliz que ousa fazer ressoar a sua lamentosa   voz aos ouvidos de Vossa Majestade‖ . Ou ainda, daquela ama abandonada que reclama a prisão do seu marido em nome dos quatro filhos ―que talvez mais nada corresponderiam nas diferentes línguas. É o caso da tradução americana de Histoire de la folie, por Richard Howard: Madness and Civilization, New York, Random House, 1965, cujo capítulo ― The Great Confinement ‖ ( ―Le p or um dos maiores especialistas especialis tas americanos em ―Le grand renfermement‖, no original francês) é reproduzido por Foucault, Paul Rabinow, na colectânea de textos por si organizada  – The Foucault Reader, New York, Pantheon c achet, ao referir explicitamente este Books, 1984 (V. pp. 124-140). Também John Rajchman não traduz lettres de cachet, mesmo ―La vie des hommes infames‖ num dos seus artigos críticos sobre o filósofo francês: ―Foucault, or the Ends of Modernism‖, in Octoher, n.° 24, MIT MIT Press, Pr ess, 1983, pp. 37-62. 37 -62. Identicamente procede o espanhol Ramon Maiz que, numa recolha de estudos de diversos autores acerca do pensamento foucauldiano por si editada  –   AAVV: Discurso, Poder, Sujeto. Leituras sobre Michel Foucault, Universidad Universidadee de Santiago de d e Compostela, 1986 – inclui  – ―El poder y la norma‖, pp. 211-216 –  um texto inédito que o próprio Foucault compôs para essa publicação  – ― no qual lettres de cachet permanece na sua língua de origem. Dos restantes textos onde ocorre o termo, e de que conhecemos traduções em diferentes línguas, saliente-se um de que existe versão portuguesa: ―Enfermement, psychiatrie, prison‖, Dialogue avec David Cooper, Jean-Pierre Faye, Marie-Odile Faye, Marine Zecca et Michel Foucault, in Change, n.° 22/23 – ― o ctobre 1977, pp. 76-110. Encontramo-lo, em português,  – ―La folie encerclée ‖, octobre em: Manuel Maria Carrilho, organização, introdução e notas, Dissidência e nova filosofia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1979, sob o título ―Dissidência, enclausuramento, psiquiatria, prisão‖, a pp. 99-120. ―Confinement, Confinement, Psychiatry, Prison‖ é o título da versão em inglês, que se inclui em Lawrence D. Kritzman, edição e introdução:  Michel  Foucault. Politics, Philosophy, Culture  –   – Interviews and Other Writings 1977-1984, New York & London, 1990 (V. pp. 178--210); lettres de cachet, tal como na versão portuguesa do texto, não é traduzido; em nota de pé de página, assinala-se: ―originally a royal letter that could denoun ce, arrest, and confine someone‖, o que é exacto, salvo para o facto de não se tratar exactamente de uma ―carta régia ‖, a não ser na medida em que a sua legitimidade invocava a autoridade autoridad e real. Na tradução castelhana de Miguel Morey: Mor ey: Michel Foucault. Un diálogo diálogo sobre el poder y otras  conversaciones, Madrid, Alianza Editorial, 1985, um dos subtítulos em que se encontra dividido este debate  –  ―Encierro, psiquatría, prisión‖ (V. pp. 87-127) – apresenta-se como ―Cartas de Encarcelamien Encarcel amiento to ‖, mas assinala, entre parêntesis, ―Lettres de Cachet ‖, que é o que adequadamente se mantém nas versões inglesa e portuguesa referidas, sendo esta última a única que conhecemos cujo tradutor teve o escrúpulo de anotar, em pé de página, aquilo que uma lettre de cachet  c achet efectivamente constituía: ―ordem de prisão com o selo real ‖.

tenham a esperar de seu pai [109] que um exemplo terrível dos efeitos do desregramento. desregramento. A Justiça de Vossa S enhoria enhoria poupar-l hes-á tão aviltante instrução, a mim, à minha família, o opróbio e a infâmia, e deixará fora de estado de causar qualqu er dano à sociedade um mau mau cidadão que não pode senão trazer- lhe prejuízo‖ . Riremos talvez; mas é preciso não o esquecer: a esta retórica que não é grandiloquente senão em virtude da pequenez das coisas às quais se aplica, o poder responde em termos que de modo nenhum nos parecem mais comedidos; com a diferença, porém, porém, que nas pal avras que são suas perpassa o clarão das suas decisões; e a solenidade delas pode tomar autoridade, senão da importância daquilo que punem, ao menos do rigor do castigo que impõem. Se se prende uma qualq uer leitora da sina, é por que ― há poucos crimes que ela não tenha cometido e nenhum de que não seja capaz. Além de que não há menos caridade do que justiça em livrar incessantemente o público de tão perigosa mulher, que o rouba, o intruja e o escandaliza impunemente desde há tantos anos ‖ . Ou a propósito de um jovem estroina, mau filho e devasso: ― É um monstro de libertinagem e de impiedade... Dado a todos os vícios: velhaco, indócil, impetuoso, violento, capaz de atentar contra a vida de seu próprio pai com propósito deliberado... [110] sempre em sociedade com mulheres da mais baixa prostituição. Tudo quanto se lhe representa das suas velhacarias e dos seus desregramentos não provoca nenhum sentimento em seu coração; coraçã o; a tal não responde a nã o ser com um sorri sorriso so de celerado que dá a conhe cer o seu endurecimento e que leva a pensar se não será incurável ‖ . À menor extravagância, extravagância, já se está no domínio do abominável, ou pelo menos no discurso da invecti va e da execração. Esta s mulheres de maus costumes e estes fedelhos danados não desmerecem de Nero ou de Rodoguna. Na época clássi ca, o discu discurso rso do poder e o discurso que a ele se dirige engendram monstros. monstros. Porquê um tão empático empático teatro do quotidiano?   A tomada do poder sobre o ordinário da vida, tinha-a o cristianismo organizado, organiz ado, em grande parte, à volta volta da confissão: obrigação de faz er passar pelo fio da linguagem o minúsculo mundo de todos os dias, os pecadilhos, as faltas, mesmo que imperceptí veis, até aos turvos jogos do pensamento, das intenções e dos desejos; ritual de confidência no qual aquele que fala é ao mesmo tempo aquele de qu em se fala; apagamento da coisa dita pelo seu próprio enunciado, enunciado, mas i gualmente anulação da própria confidência que deve permanecer secret a, e não deixar atrás atrás de si nenhum traço a não ser o arrependi-[111]mento arrependi-[111]mento e as obras de penitência. O Oci dente cristão inventou essa espantosa coacção, que impôs a toda a gente, de tudo dizer para tudo apagar, de formular até as mais ínfimas faltas num murmúrio ininterrupto, encarniçado, exaustivo, ao qual nada deveria escapar, mas que nem por um só instante deveria sobreviver a si próprio. Para centenas de milhões de homens e durante séculos, o mal teve que se confessar na primeira pessoa, num cochicho obrigatório obrigatório e fugidio. Ora, a partir de um momento que podemos situar em finais do século XVII, este mecanismo passou a ser enquadrado e excedido por um outro cujo funcionamento era muito diferente. Agenciamento administrativo e não já religioso; mecanismo de r egisto e não já de per dão. O objectivo visado era, porém, o mesmo. Em parte, pelo menos: discursificação do quotidiano, revista do universo ínfimo das

irregularidades e das desordens sem importância. Mas a confissão já aí não desempenha o papel eminente que o cristianismo lhe tinha reservado. Para este esquadrinhamento, esquadrinhamento, utilizam-se, e sistematicamente, sistematicamente, procedimentos antigos mas até aí localizados: a denúncia, a queixa, o inquérito, o relatório, a delação, o interrogatório. interrog atório. E tudo o que assim se diz é registado registad o por escrito, acumulado, acumul ado, constitui constit ui dossiers e [112] arquivos. A voz única, instantânea e sem rast o da confissão penitencial, que suprimia o mal suprimindo-se a ela própria, é doravante retransmitida retr ansmitida por múltiplas vozes que se depositam numa enorme enorme massa document al e que constituem a ssim, pelo tempo fora, como que que a memória sempre crescente de todos os males do mundo. O mal minúsculo da miséria e da falta venial já não é remetido ao céu pelo segredar segredar qu ase inaudível da confissão; acumula-se acumula-se na terra sob a forma de traços escritos. É um tipo completamente diferente de relações que se estabelece entre o poder, o discurso e o quotidiano, uma maneira completamente diferente diferent e de gerir este último e de o formular formular.. Nasce, para a vida ordinária, uma nova encenação. Os seus primeiros instrumentos, arcaicos mas já complexos, são nossos conhecidos: as petições, as lettres de cachet  ou as ordens reais, os diversos enclausuramentos, os relatórios relatórios e as resoluções policiais. Não repetirei estas coisas já sabidas, mas tão só algu ns aspectos susceptíveis susceptíveis de dar conta da estranha estranha vivacidade e de uma espécie de beleza que revestem por vezes as desenvoltas imagens onde pobres homens homens adoptaram, perante nós, que os divisamos de tão longe, o rosto da infâmia. A lettre de cachet, cachet, o internamento, a omnipresença da polícia, tudo [113] isto não faz habitualmente evocar outra coisa que não o despotismo de um monarca absoluto. Mas é forçoso ver que tal ― arbitrariedade ‖ constituía uma espécie de serviço público. As ― ordens do rei ‖ não se abatiam de improviso, das alturas, como sinai s da cólera do monarca, a não ser nos casos mais raros. A maior parte das vezes, elas eram solicitadas contra alguém pelos seus próximos, o pai e a mãe, um dos parentes, a su a família, os filhos ou filhas, os vizi nhos, o pároco por vezes, ou algum notável; eram assediados, como se de um grande crime merecedor da cólera do soberano se tratasse, por qualquer obscura questão de família: esposos injuriados ou agredidos, fortuna delapidada, conflitos de interesses, jovens desobedientes,  vigarices ou bebedeiras, e todos os pequenos desvios da conduta. A lettre de cachet qu e se entregava entrega va como a vontade expressa e pessoal do rei , de fazer encerrar um dos seus súbditos súbdi tos fora das vias da justiça regul ar, não era senão a resposta a um pedido vindo de baixo. Todavia, não era concedida de pleno direito a quem a pedia; devia ser precedida de um inquérito destinado a ajuizar do bem fundado da solicitação; devia estabelecer se sim ou ou não tal abuso ou tal embriaguez, embriaguez, tal violência violência ou tal liberti nagem eram merecedores de internamento, [114] em que condições e por quanto tempo: tarefa da polícia, que, para este fim, recolhia testemunhos, delacções, e todo aquele equívoco murmúrio que turva o ambiente em volta de cada um. O sistema lettre de cachet- enclausuramento e nclausuramento não passou de um breve episódio: não mais de um século e localizado em França somente. Nem por isso é menos importante na história história d os mecanismos mecanismos de poder. O que ele assegura não é a irru pção espontânea do arbítrio real no elemento mais quotidiano da vida, mas antes a sua distribuição segundo circuitos complexos e todo um jogo de pedidos e réplicas.

  Abuso do absolutismo? Talvez; mas não no sentido de o monarca abusar pura e simplesmente simplesmente do seu próprio poder, e sim no sentido de cada um poder fazer uso por si, para os seus próprios fins e contra os outros, da enormidade do poder absoluto: uma espécie de disponibilização dos mecanismo da soberania, uma possibilidade, dada a quem for suficient emente habilidoso para os captar, de lhes desviar os efeitos efeitos em proveito provei to próprio. próprio. Daí um certo certo número de consequências: a soberania política  vem inserir-se inser ir-se ao nível mais elementar do corpo social social ; de sujeito a sujeito  – trata-se, por vezes, dos mais humildes  – , entre os membros de uma mesma família, em relações de [115] [115] viz inhança, de interesse, de profissão, de rivalidade, de amor e de ódio, é possível fazer valer, além das tradicionais armas da autoridade e da obediência, obediênci a, os recursos de um poder político que tem a forma forma do absolutismo; cada um, se souber j ogar o jogo, pode tornar -se face ao outro um monarca monarca terrível e sem lei: homo homini rex;  uma cadeia política inteira vem entrecruzar-se com a trama do quotidiano. Mas este poder, há ainda que apropriá-lo, canalizá-lo, captá-lo e inflecti-lo na direcção pretendida, ao menos por um instante; para fazer uso dele em proveito próprio, é preciso seduzi-lo; torna-se, ao mesmo tempo, objecto de cobiça e objecto de sedução; desej ável pois, e isto na exa cta medida em que é absolutamente temível. A intervenção de um poder político sem limites nas relações quotidianas torna-se assim não apenas aceitável e familiar, mas t ambém profundamente profundamente desejada, sem deixar de se transformar, por esse mesmo facto, no tema de um medo generalizado. Nada há de surpreendente nesta tendência tendência que, pouco a pouco, abriu as relações de pertença ou de dependência dependência tradicionalmente tradicionalmente ligadas à família família a controles administrativos e políticos. Nem é de surpreender que o desmesurado poder do rei, ao funcionar assim no meio das paixões, das raivas, das misérias e das vile-[116]zas, tenha podido podi do tornar tornar-se, -se, a despeito ou em virtude virtude da sua própria utili dade, objecto de execreção. Aqueles que faziam uso das lettres de cachet, cachet, e o rei que as concedia, foram apanhados na armadilha da sua cumplicidade: os primeiros perderam cada vez mais o seu poder tradicional, em proveito de um poder administrativo; quanto ao segundo, ao imiscuir-se todos os dias em tantos ódios e intrigas, tornou-se tornou-se odioso. Como dizia o duque duque de Chauli eu, creio eu, nas  Mémoires de deux jeunes mariés, ao cortar a cabeça ao rei, a Revolução francesa decapitou todos os pais de família. De tudo i sto, gostaria gostaria de reter de momento o segui nte: com este dispositivo cachet, do internamento, da polícia, vai das petições, das lettres de cachet, vai nascer uma infinidade de discursos que atravessam em todos os sentid os o quotidiano quotidiano e se encarregam, mas de um modo completamente diferente da confissão, d o mal minúsculo das vidas sem importância. Nas teias do poder, ao longo de circuitos bastante complexos, vêm perder-se as disputas entre vizinhos, as querelas entre pais e filhos, os desentendimentos domésticos, os excessos do vinho e do sexo, as brigas públicas e não poucas paixões secretas. Houve nisto como que um imenso e omnipresente apelo à discursificação de todas [117] aquelas agitações e de cada um daqueles pequenos sofrimentos. Começa a erguer-se um murmúrio imparável: aquele mediante o qual as variações individuais individuais da conduta, as vergonhas e os segredos são oferecidos pelo discurso à acção do poder. O insignificante deixa de pertencer ao silêncio, ao rumor passageiro ou à confidência fugaz. Todas aquelas coisas que constituem constit uem o ordi ordinário, nário, o pormenor pormenor insigni ficante, a obscuridade, os dias sem glória,

a vida comum, podem e devem ser ditas,  –  mais, escritas. Tornam-se descritíveis e transcritíveis, transcritíveis, na própria medida em que são atravessadas pelos m ecanismos ecanismos de um poder político. Durante muito tempo, não mereceram ser ditos sem escárnio senão os feitos dos grandes; o sangue, o nas cimento e a façanha, façanha, e só el es, davam direit o à história. E se alguma vez acontecia aos mais humildes serem guindados a uma espécie de glória, era por qualquer facto extraordinário,  – o fulgor da santidade ou a desmedida de um delito. Que na ordem quotidiana pudesse haver qualquer coisa como um segredo a desvendar, que a insignificância pudesse ser, de certa maneira, importante, tal permaneceu excluído até que viesse pousar, nessas turbulências minúsculas, o alvo olhar do poder. [118] Nascimento, pois, de uma imensa possibilidade de discurso. É aí que, pelo menos em parte, tem a sua origem origem um u m certo saber do quotidiano e, com ele, uma grelha de inteligibilidade que o Ocidente se encarregou de assentar sobre os nossos gestos, sobre as nossas maneiras de ser e de agir. Mas para tanto foi necessária a presença ao mesmo tempo real e virtual do monarca; foi preciso imaginá-lo suficientemente próximo de todas aquelas misérias, suficientemente atento à menor daquelas desordens, para que fosse tomada a iniciativa de o solicitar; foi preciso que ele próprio surgisse dotado de uma uma espécie de ubiquidade física. Na sua forma primeira, este discurso sobre o quotidiano encontrava-se inteiramente voltado para o rei; dirigia -se a ele; tinha de se insinuar insinuar nos grandes ritos cerimoniais do poder; devia adoptar-lhe a forma e revestir os respectivos signos. O banal não podia ser dito, escrito, descrito, observado, esquadrinhado esquadrinhado e qualificado, a não ser no i nterior de uma relação de poder dominada pela figura do rei,  –  pelo seu poder efectivo e pelo fantasma fantasma do seu poderio. Daí a forma singul ar deste discurso: exigia uma linguagem decorativa, imprecatória imprecatória ou suplicante. Cada uma destas hi storietas de todos os dias devia ser dita com a ênfase dos raros acontecimentos que são dig-[119]nos de concitar a atenção dos monarcas; uma retórica grandiosa devia envolver estas questões de l ana-caprina. ana-caprina. Nunca a tristonha administração policial, policial, nem os arquivos da medicina ou da psiquiatria, voltarão posteriormente a encontrar semelhantes efeitos de linguagem. Umas vezes, um sumptuoso edifício verbal para contar uma  vileza  vilez a obscura ou uma pequena intriga; outras vezes, meia -dúzia de frases breves que fulminam um desgraçado e o devolvem à noite que é a sua; ou ainda o longo relato dos infortúnios contados ao tom da súplica ou do auto-rebaixamento: o discurso político da banalidade não podia ser senão solene. Mas também também se produz nestes textos um outro efeito de desproporção. Era frequente acontecer que os pedidos de internamento fossem feitos por pessoas de muito baixa condição, pouco ou nada alfabetizadas; elas próprias, com os seus parcos conheci mentos, ou, em seu lugar, um escriba mais ou menos hábil, compunha como podiam as fórmulas e os torneados que julgavam exigíveis sempre que se dirigissem ao rei ou aos grandes, e misturavam-nos com as palavras desastradas e  violentas, as rudezas de expressão com as quais sem dúvida dúvida pensavam conferir mais força e verdade às suas súplicas; deste modo, em frases solenes e descabida s, ao lado de [120] termos anfigúricos, avultam expressões rudes, desajeitadas, malsoantes; com a linguagem obrigatória e ritual entrelaçam-se as exasperações, as cóleras, as fúrias, as paixões, os rancores, as revoltas. Uma vibração e um ardor selvagens

desaprumam as regras deste discurso empolado e abrem caminho com as suas próprias maneiras de dizer. Assim fala a mulher de Nicolas Bienfait: ― toma a liberdade de representar muito humildemente humildemente a Vossa Senhoria que o dito Nicolas Bienfait, cocheiro de aluguer, é um homem muito desabrido que a mata com pancada, e que vende vende tudo tendo já feito morrer as suas duas mulheres de que a pri meira matou-lhe o filho no corpo, a segunda depois de lhe t er comido e vendido, com os seus maus-tratos a fez morrer à míngua, a ponto de querer estrangulá-la na véspera da morte... morte... A terceira, qu er-lhe comer comer o coração no churrasco para não falar em muitos outros assass ínios que fez; Senhor meu, lanço-me aos pés de Vossa Grandeza Grandeza para implorar a Vossa Misericórdia. Espero da vossa bondade que me façais justiça, pois estando a minha vida em risco a todo o momento, não deixarei de pedir ao Senhor pela conservaç ão da vossa saúde...‖ . Os documentos que aqui reuni são homogéneos; homogéneos; e muit o se arriscam a parecer monó-[121]tonos. Todos porém funcionam à base da desproporção. Desproporção entre as coisas r elatadas e a maneira maneira de as dizer; desproporção desproporção entre aqueles que se queixam e suplicam e os que sobre eles detêm todo o poder; desproporção entre a ordem minúscula dos problemas levantados e o gigantismo do poder a que se lança mão; desproporção desproporção entre a linguagem da cerimónia e do poder e a das exalt ações ou das impotências. São textos que elevam o olhar para Racine, ou Bossuet, ou Crébillon; mas trazem consigo toda uma turbulência popular, toda uma miséria e toda uma violênci a, toda uma ― baixeza‖ como se dizia, que nenhuma literatura dessa época teria podido acolher. Fazem com que os maltrapilhos, os desgraçados ou os simples medíocres se dêem a ver num estranho teatro em que adquirem portes, ressonâncias de voz, grandiloquências, em que se ataviam com as roupagens de que necessitam necessitam se quer em que se lhes preste atenção no palco do poder. Fazem às v ezes lembrar um pobre grupo de saltimbancos melhor ou pior arreados de ouropéis que já  viram dias de fausto, prontos para actuar perante um público de ricos que troçará deles. S alvo que é a sua sua própria vida que representam, representam, e diant e de poderosos poderosos que dela podem decidir. Persona-[122] gens de Céline a quererem fazer-se ouvir em Versalhes. Versal hes.  Virá o dia em que toda esta desproporção se irá ver suprimida. O poder que se exercerá a nível da vida quotidiana já não será o de um monarca próximo e distante, todo-po-deroso e volúvel, fonte de toda a justiça e objecto de seja que sedução for, simult aneamente princí pio político e força mágica; mágica; será constit uído por uma rede fina, diferenciada, contínua, onde se dissemi nam as diversas institui ções da justiça, justiça , da política, da medicina, da psiquiatria. E o discurso que se irá formar então já não terá uma teatralidade artificial e inepta; desenvolver-se-á numa linguagem que terá a presunção da observação e da neutralidade. O banal será analisado de acordo com a grelha eficaz mas cinz enta enta da administração, do jor nalismo nalismo e da ci ência; sob condição de ir procur ar os seus esplendores um pouco mais longe, na literatura. Nos séculos XVII e XVIII, encontramo-nos ainda nas toscas e bárbaras eras em que tais mediações não existem; o corpo dos miseráveis defronta-se quase directamente com o do rei, a agitação deles com as suas cerimónias; também já não há linguagem comum, comum, mas um choque entre os gritos e os rituais, entre as desordens qu e se querem dizer diz er e o rigor rig or das formas formas que é preciso seguir . Daí, Daí, para nós que olhamos de [123] longe este primeiro afloramento do quotidiano no código do político, as estranhas

fulgurações, qualquer coisa de pungente e de intenso, que haverá de perder-se homens, ―p rocessos ‖ , posteri ormente, ormente, quando se fizer em, daqu elas coisas e daquel es homens, actualidades de jornal, casos. * * * Momento importante, aquele em que uma sociedade atribuiu palavras, maneiris-mos e grandes frases, rituais de linguagem, à massa anónima do povo para que possa falar de si mesmo  –  falar publicamente e sob a tripla condição de esse discurso ser dirigido e posto a circular no interior de um dispositivo de poder bem definido, de fazer aparecer aparecer o fundo até então qu ase imperceptível imperceptível das existências e de, a partir dessa guerra ínfima das paixões e dos interesses, dar ao poder a possibilidade de uma intervenção soberana. O ouvido de Dionísio era uma maquinazinha bem elementar quando comparada com esta. Como o poder seria sem dúvida agradável e fácil de desmantelar, se se limitasse a vigiar, espiar, surpreender, proibir e punir; mas incita, suscita, produz; não é apenas olho e ouvido; faz agir e falar. [124]Esta maqui naria foi sem dúvida importante para a constituiçã o de novos novos saberes. Também não é alheia a todo um novo regime da literatura. Não quero com cachet tenha estado na origem de formas literárias inéditas, mas isto dizer que a lettre de cachet  sim que, na viragem dos séculos XVI I e XVIII, as relações entre o discur so, o poder, a vida vid a quotidiana quotidiana e a verdade se estabelecera m de um modo novo, no qual qual a liter atura se encontrava também ela comprometida.  A fábula, no verdadeiro sentido da palavra, é o que merece ser dito. Durante muito tempo, na sociedade ocidental, a vida de todos os dias só pôde ter acesso ao discurso quando atravessada e transfigurada pelo fabuloso; era preciso q ue ela fosse retirada retirad a para fora de si si própria pelo heroísmo, a façanha, as aventura s, a providência e a graça, eventualmen te a perversi dade; era preciso que fosse marcada por um toque de impossível. Só então se tornava dizível. Aquilo que a punha fora de alcance permitia-lhe funcionar como lição e exemplo. Quanto mais a narrativa fugisse ao   vulgar, mais força tinha para fascinar ou persuadir. Nesse jogo do ―fa ―f a buloso-exemplar ‖ , a indiferença face ao verdadeiro e ao falso era pois fundamental. E se acontecesse alguém tomar a iniciativa de dizer por mor dela mesma a mediocridade do [125] real, mais não era que para provocar um efeito cómico: o simples facto de se falar disso fazia rir. Desde o século XVII, o Ocidente viu nascer toda uma ―f ábula á bula ‖ da vida obscura de onde o fabuloso se achou proscrito. O impossível ou o irrisório deixaram de ser a condição sob a qual se poderia contar o ordinário. Nasce uma arte da lilinguagem nguagem cuja tarefa já não é cantar o improvável , mas pôr em evidência o que não é evidente  –  o que não pode ou não deve ser evidente: dizer os graus últimos, e os mais ténues, do real. A partir do momento em que se instala um dispositivo para forçar a dizer o ―ínfimo ’, aquilo que não se diz , que não merece glória nenhuma, o ― infame ‖ portanto, toma forma um novo imperativo que vai constituir o que se poderia chamar a ética i manente manente ao di scurso scurso literário do Ocidente: as suas funções funções cerimoniais cerimoni ais vão esbater -se pouco a pouco; já não terá por tarefa manifestar de modo sensível a excessiva exuberância da força, da gr aça, do heroísmo, do poder; mas sim

ir à procura daquil o que é mais mais difícil de notar, o mais mais oculto, ocult o, o que dá mais trabalho a dizer e a mostrar, enfim o mais interdito e o mais escandaloso. Uma espécie de injunção de d e desentranhar a parte mais nocturna e mais quotidia na da exist existência ência (com risco de lá des-[126]cobrir por vezes as figuras solenes do destino) vai traçar aquela que é a direcção para que pende a literatura desde o século XVII, desde que é literatura litera tura no sentido moderno do termo. Mais Mais do que qu e uma forma específica, mai s do que uma relação essencial com a forma, é este constrangimento, eu ia dizer esta moral, aquilo que a caracteriza e que até nós transportou o seu imenso movimento: dever de dizer os mais comuns dos segredos. A literatura não resume por si só esta grande política, esta grande ética discursiva; também não se lhe reconduz inteiramente; mas é aí que ela tem o seu lugar e as suas condições de existência. Daí a sua du pla relação com a verdade e o poder. Enquanto que o fabuloso só pode funcionar no terreno indeciso entre verdadeiro e falso, a literatura, no que lhe toca, instaura-se numa decisão de não-verdade: dá-se explicitamente como artifício, comprometendo-se porém a produzir efeitos de verdade como tal reconhecíveis; a importância que, na época clássica, se concedeu ao natural e à imitação é uma das primeiras maneiras de formular e ste funcionamento ― em verdade ‖ da literatura. A ficção subst ituiu desde essa altura o fabuloso, o romance lilibertou bertou -se do romanesco e não se desenvolverá a não ser na medida em que dele se for [127] liber tando cada vez mais completamente. completamente. A literatura literatura faz ass assim im parte daquele grande sistema de coacção por meio do qual o Ocidente obrigou o quotidiano a pôr -se em discur discur so; todavia, ela ocupa aí um lugar especial: obstinada a procurar o quotidiano por debaixo dele próprio, a ultrapassar limites, a levantar brutal ou insidiosamente segredos, a deslocar regras e códigos, a fazer dizer o inconfessável, ela terá tendência a pôr-se fora da lei, ou pelo menos a tomar a seu cargo o escândalo, a transgressão ou a revolta. Mais do que qualquer outra forma de linguagem, é a ela que continua a ser o pior,, o mais secreto, o mais discurso da ― infâmia ‖ : cabe-lhe dizer o mais i ndizível  – o pior intol erável, o vergonhoso. O fascínio que, desde há anos, uma sobre a outra exercem psicanálise psicanáli se e literatura, é, neste ponto, significa tivo. Que não se esqueça, porém, que que esta posição singular da literatura não é senão o efeito de um certo dispositivo de poder que atravessa, no Ocidente, a economia dos discursos e as estratégias do  verdadeiro. Dizia, ao começar, que est es textos, gostaria eu que fossem lid os como como outras tantas ― novelas‖ . Era ir longe demais, sem dúvida; nunca nenhum chegará à menor das narrativas de Tchekhov, de Maupassant ou de James. Nem ―q uase u ase ‖ nem ― sub-literatura ‖ , [128] não há neles nem sequer um esboço de género; há-o na desordem, no som e na fúria, no labor que o poder poder põe nas vidas, e no discu rso que aí tem origem. É uma destas histórias a que conta  Manon Lescaut.

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