FLUSSER. O chão que pisamos
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O CHÃO QUE PISAMOS
Pós-História Vinte instantâneos e um modo de usar
Vilém Flusser
Livraria Duas Cidades
Não é preciso de ouvido atento para descobrir-se que os passos pelos quais avançamos rumo ao futuro soam ocos. Mas é preciso concentrar o ouvido se se quer descobrir de que tipo de vacuidade se trata que ressoa no nosso progresso. Há vários tipos de vacuidade, e a nossa deve ser comparada com outras, se a meta for compreendê-la. O incomparável é incompreensível. Se afirmarmos ser nossa situação incomparável, desistiremos do esforço para captá-la. A comparação que se impõe é com a vacuidade barroca. Há numerosos traços na atualidade que evocam o barroco. Somos marcados pelo mesmo racionalismo sombrio (logicismo, informática, cibernética), e pelo mesmo irracionalismo mágico e fanático (mass media, ideologias fantasiosas). Mas há diferença decisiva. A humanidade barroca avançava sobre palco. Todos os seus gestos, até os mais sinceros, eram marcados de teatralidade. A vacuidade que ressoava nos seus passos era a do vazio debaixo do palco. O homem barroco representava. Por exemplo representava a fé, ao fazer guerras religiosas. A vacuidade barroca era consequência de perda de fé medieval, da fé em dogmas. A nossa vacuidade é diferente. Nada representamos. O nosso mundo não é o palco. Não somos atores, e se agimos, não é para representar um 9
drama, mas para despistar a atenção da plateia e a nossa própria dos assuntos que interessam realmente. Agimos, como criminosos que querem apagar a pista dos seus passos passados. Disfarçamos. O nosso progresso é farsa. A vacuidade debaixo dos nossos pés não é barroca. O que nós perdemos não é a fé nos dogmas: perdemos a fé em nós mesmos. Somos tão contra-reformistas quanto o foi o barroco, queremos pôr panos quentes sobre a revolução recente, mas o somos por motivos outros. Embora pois comparável com a barroca, em certos aspectos a nossa situação é de fato incomparável com qualquer outra. É que evento incomparável, inaudito, jamais visto, ocorreu recentemente e esvaziou o chão que pisamos. Auschwitz. Outros eventos posteriores, Hiroshima, os Gulags, não passam de variações desse primeiro. Por isto toda tentativa para captar a atualidade desemboca na pergunta: como era possível Auschwitz? Como viver depois disto? Tal pergunta diz respeito, não apenas aos que são responsáveis, direta ou indiretamente pelo evento, nem apenas aos que por ele ficaram atingidos direta ou indiretamente: diz respeito a todos os participantes da nossa cultura. Porque o que é tão incomparável, inaudito, jamais visto, e portanto incompreensível em Auschwitz, é que lá a cultura ocidental revelou uma das virtualidades nela inerentes. Auschwitz é realização característca da nossa cultura. Não é apenas produto de determinada ideologia ocidental, nem de determinadas técnicas industriais "avançadas". Brota diretamente do fundo da cultura, dos seus conceitos e dos seus valores. A possibilidade de se realizarem Auschwitzs está implícita na nossa cultura desde o seu início: o "projeto" ocidental a abrigava, embora enquanto possibilidade remota. Está no programa inicial do Ocidente, o qual vai realizando todas as suas 10
virtualidades, na medida em que a história vai-se desenrolando. Por isto a pergunta diante da qual Auschwitz nos coloca não é: como foi que isto aconteceu? Pouco adianta "explicar" Auschwitz. A pergunta fundamental é: como era possível isto? Porque o que está em questão não é o campo de extermínio, mas o Ocidente. Dai a outra pergunta: como viver em cultura destarte desmascarada? Tudo o que aconteceu depois, ressoa com tal pergunta, com tal vacuidade. Todos os eventos econômicos, sociais, políticos, técnicos, científicos, artísticos, filosóficos são corroídos por tal pergunta indigesta. A distância que nos separa do evento não mitiga o abismo, escava-o ainda mais. Porque a distância vai dissolvendo a aura de horror que encobre o evento, e vai abrindo a visão da cena. Vai revelando que lá todas as nossas categorias, todos os nossos “modelos”, sofreram naufrágio irreparável. Auschwitz foi evento revolucionário, no sentido de ter derrubado a nossa cultura. Na medida em que procuramos encobrir tal revolução por viagens à Lua ou por manipulações genéticas, somos contra-revolucionários: estamos invertendo o curso da história para encobrir o passado. O inaudito em Auschwitz não é o assassinato em massa, não é o crime. É a reificação derradeira de pessoas em objetos informes, em cinza. A tendência ocidental rumo à objetivação foi finalmente realizada, e o foi em forma de aparelho. Os SS eram funcionários de um aparelho de extermínio, e suas vítimas funcionaram em função do seu próprio aniquilamento. O programa do campo de extermínio, uma vez posto em funcionamento, se foi desenvolvendo de maneira automática, autónoma de decisões dos programadores iniciais, até se, como efetivamente o fez, contribuiu para a derrota dos programadores. Os SS e os judeus funcionavam uns em função dos outros em engrenagem. Os modelos de tal funcionamento provinham 11
dos valores mais elevados do Ocidente: os SS se comportavam em "heróis", os judeus em "mártires". Trata-se de aparelho que funciona em situação de limite: objetiva até além da morte. O que acaba de ser dito é intolerável. Não podemos aceitá-lo, e mobilizamos argumentos contra. Bons argumentos. Os SS se comportavam como criminosos: recolhíamos dentes de ouro dos cadáveres. Os judeus se comportavam como vítimas: levantaram-se no ghetto de Varsóvia. Tais argumentos são verdadeiros, mas não atingem o núcleo, o "eidos", do fenómeno: não o captam. Embora tenha havido comportamento "normal" (roubo, assassinato, revolta, heroísmo), havia também comportamento "a-normal": funcionamento em situação de limite. E é isto o que conta. Pela primeira vez na história da humanidade pôs-se a funcionar um aparelho, o qual, programado com as técnicas mais avançadas disponíveis, realizou a objetivação do homem, com a colaboração funcional dos homens. Os horrores prévios cometidos pela sociedade ocidental contra as demais sociedades e contra si própria (e são legiões) eram crimes. Eram infrações dos modelos de comportamento ocidental: anticristãos, anti-humanos, irracionais. De modo que é possível condená-los e continuar sendo ocidental, até se o horror for tão colossal como o foi a escravidão dos africanos. Mas não é possível condenar-se Auschwitz e continuar-se aderindo conscientemente ao Ocidente. Auschwitz não é infração de modelos de comportamento ocidental, é, pelo contrário, resultado da aplicação de tais modelos. A nossa cultura deixou cair sua máscara mistificadora em Auschwitz, e mostrou seu verdadeiro rosto. Rosto de monstro objetivador do homem. A nossa cultura mostrou que deve ser rejeitada in toto, se admitirmos que o propósito de toda cultura é 12
permitir convivência de homens que se reconhecem mutuamente enquanto sujeitos. No entanto: não é possível rejeitar-se a própria cultura. É ela o chão que pisamos. Quem procura rejeitar sua própria cultura (como o fez Nietzsche ao rejeitar o judeu-cristianismo), cai vítima de loucura. Quem rejeita os modelos da sua cultura, torna-se incapaz a captar o mundo no qual vive. Os modelos culturais são armadilhas para captar o mundo. Quem procura substituir os próprios modelos por outros (por exemplo gritando "hare Krishna"), verificará que tais modelos exóticos foram captados pelos modelos a serem substituídos. Não há saída: somos condenados a servirmo-nos dos nossos modelos, e a servirmos a tais modelos, mesmo depois de desmascarados, se quisermos continuar vivendo. A única alternativa seria o suicídio. Isto é: devemos continuar nossas atividades económicas, políticas, científicas, artísticas, filosóficas, a despeito de Auschwitz. Devemos continuar progredindo a despeita de tudo.
Por isto há os que recomendam que se procure esquecer o acontecido, que se recalque o evento. Sustentam que já foi falado e escrito demais sobre o assunto e que já é tempo de "superá-lo". Mas tal estratégia da avestruz se revela nefasta. Porque seu resultado é que Auschwitz se desloca da Polônia dos anos quarenta para a sociedade pós-industrial do futuro. O que caracteriza o campo de extermínio é precisamente de não se tratar de evento "superável", mas da primeira realização de uma virtualidade inerente no projeto ocidental, e que se repetirá sob outras formas, se não for totalmente conscientizada. A vantagem (se o termo for apropriado), que Auschwitz nos oferece é a de nos fornecer um exemplo concreto da tendência ocidental rumo ao aparelho. Pela primeira vez na nossa história é possível vivenciarmos concretamente 13
a utopia inerente na nossa cultura. Pela primeira vez na nossa história podemos vivenciar que a utopia, em não importa que forma, para a qual tendemos é o campo de extermínio. Em toda parte podemos observar, desde já, o aparecimento de variações sobre o tema "Auschwitz". Em toda parte os aparelhos brotam, quais cogumelos depois de chuva nazista, do chão que se tornou podre. Por certo: tais aparelhos novos não se assemelham, externamente, aos campos de extermínio nazista. Outros são seus rótulos, e outras as ideologias que pretensamente os inspiram. Até os aparelhos que visam admitidamente o extermínio, como os Gulags, os da futura guerra nuclear, ou os que funcionaram em Vietnam, proclamam que são diferentes de Auschwitz. Outros se dizem "amigos do homem", como os aparelhos científicos, técnicos e administrativos. Mas tais rótulos e tais ideologias são enganadores e servem apenas para encobrir a essência dos aparelhos. São, todos, tal qual Auschwitz, caixas pretas que funcionam com engrenagens complexas para realizarem um programa. Funcionam, todos , segundo inércia que lhes é inerente, e tal funcionamento escapa, a partir de um dado momento, ao controle dos seus programadores iniciais. Em última análise tais aparelhos funcionam, todos, no sentido de aniquilarem seus funcionários, inclusive seus programadores. Necessariamente, porque objetivam, des-humanizam o homem. A cultura ocidental, como um todo, se revela destarte como projeto que visa transformar-se em aparelho. O que caracteriza o Ocidente é sua capacidade para a transcendência objetivante. Tal transcendência permite transformar todo fenómeno, inclusive o humano, em objeto de conhecimento e de manipulação. O espaço de tal transcendência se abriu graças ao judeu-cristianismo, e 14
resultou, no decorrer da nossa história, em ciência, em técnica, e, ultimamente, em Auschwitz. A objetivação derradeira dos judeus em forma de cinza é a derradeira vitória do espírito do Ocidente. É ela a técnica social levada ao extremo. Por certo: a transformação de homens em cinza é técnica social primitiva, incipiente, e vai-se refinando. Será seguida de objetivações menos brutais, como o é a robotização da sociedade. Mas não importa que forma tomará: será sempre manipulação objetivante do homem. Embora os aparelhos do futuro imediato não sejam necessariamente fornos de incineração, serão todos, e não apenas os nucleares, aparelhos para o aniquilamento do homem. O programa da cultura ocidental contém várias virtualidades, não apenas aparelhos. Numerosas virtualidades ainda não foram realizadas. Em tal sentido a "história do Ocidente" ainda não acabou, o jogo ocidental continua. Mas todas as virtualidades, não realizadas ainda, estão infectadas pelos aparelhos. Por isto se tornou atualmente impossível engajarmo-nos no "progresso da cultura". Seria engajarmo-nos no nosso próprio aniquilamento. Perdemos a fé na nossa cultura, no chão que pisamos. Isto é: perdemos a fé em nós mesmos. É esta a vibração oca que acompanha os nossos passos rumo ao futuro. O que nos resta é analisarmos o evento Auschwitz em todos os detalhes, para descobrirmos o projeto fundamental que lá se realizou pela primeira vez, para podermos nutrir a esperança de nos projetarmos fora do projeto. Fora da história do Ocidente. Tal o clima "pós-histórico" no qual somos condenados a viver doravante.
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