Filosofia Clínica - Caderno A

November 25, 2018 | Author: tonsanta | Category: Immanuel Kant, Existentialism, Thought, Logic, Empiricism
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Filosofia Clínica - Instituto Packter 

Caderno A  Especialização  Especializ ação em Filosofia Clínica

 Instituto Packter  Cel. Lucas de Oliveira, 1937  conjuntos 301 / 302 / 303 / 304   Porto Alegre - RS  fone (fax) 051 330 66 34  www.filosofiaclinica.com.br 

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ADVERTÊNCIA  Estes escritos são destinados aos filósofos diplomados em escolas reconhecidas  pelo Ministério da Educação que cursam Filosofia Clínica no Instituto Packter.  São colagens, ilustrações e fragmentos de textos que têm o objetivo de auxiliar  nossas aulas práticas.  Não documentam, apenas complementam a Filosofia Clínica. Os escr escrit itos os aqui aqui cont contid idos os faze fazem m parte parte de cente centenas nas de hora horas/ s/aul aula, a, ma mais is exposições em vídeo, pré-estágio, estágio, prática clínica em aula.  Por isso o nome de Caderno: de A até R, num total de 18. Fora desse contexto, não nos responsabilizamos pelo uso destes ensinamentos, o que condenamos sob o ponto de vista ético.  Lúcio Packter 

#1 Os escritos que seguem foram retirados da tese de graduação e pós-graduação, antee proj ant projet etoo de douto doutora rado do,, in inti titu tula lada da “Fil “Filos osofi ofiaa Clín Clínic ica: a: Uma Uma Intr Introd oduç ução ão à  Psicoterapia Filosófica”, de Lúcio Packter.

#2 “A Filosofia Clínica é assim definida: a) O uso do conhecimento filosófico à psicoterapia.  A atividade filosófica aplicada à terapia do indivíduo. b) teoriass filosó filosófic ficas as empreg empregada adass às possib possibil ilida idades des do ser  c) "As teoria humano enquanto se realiza por si mesmo.”  Filosofia fia Clínic Clínicaa apres apresent entaa senti sentido do soment somentee  [Limites da Definição]  “A Filoso

quando relacionada à pessoa dentro de um exercício de psicoterapia. A explanação dos valores, a construção e a modificação das arquiteturas do saber, resultado de uma tarefa causal, tudo aqui está a um serviço. "O saber, como aquisição da produção humana ou em sua origem divina, é   projetado no objetivo: a pesquisa como influxo terapêutico.” 

#3  [Psicoterapia  [Psicoterapia Filosófica]  Filosófica]  “A psicoterapia tem uma concepção anômala na

versão filosófico clínica: a vivência da circunstância relacional objetivando remeter às  pessoas envolvidas diferentes opções às questões por elas propostas; isso, com base nos   proce procedim dimento entoss filosó filosófic ficos os clínic clínicos. os. Especi Especific ficame amente nte,, o filóso filósofo fo situa situa-se -se entre entre as amizades de quem partilha uma trajetória de vida tendo-se nisso a busca de opções às

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ADVERTÊNCIA  Estes escritos são destinados aos filósofos diplomados em escolas reconhecidas  pelo Ministério da Educação que cursam Filosofia Clínica no Instituto Packter.  São colagens, ilustrações e fragmentos de textos que têm o objetivo de auxiliar  nossas aulas práticas.  Não documentam, apenas complementam a Filosofia Clínica. Os escr escrit itos os aqui aqui cont contid idos os faze fazem m parte parte de cente centenas nas de hora horas/ s/aul aula, a, ma mais is exposições em vídeo, pré-estágio, estágio, prática clínica em aula.  Por isso o nome de Caderno: de A até R, num total de 18. Fora desse contexto, não nos responsabilizamos pelo uso destes ensinamentos, o que condenamos sob o ponto de vista ético.  Lúcio Packter 

#1 Os escritos que seguem foram retirados da tese de graduação e pós-graduação, antee proj ant projet etoo de douto doutora rado do,, in inti titu tula lada da “Fil “Filos osofi ofiaa Clín Clínic ica: a: Uma Uma Intr Introd oduç ução ão à  Psicoterapia Filosófica”, de Lúcio Packter.

#2 “A Filosofia Clínica é assim definida: a) O uso do conhecimento filosófico à psicoterapia.  A atividade filosófica aplicada à terapia do indivíduo. b) teoriass filosó filosófic ficas as empreg empregada adass às possib possibil ilida idades des do ser  c) "As teoria humano enquanto se realiza por si mesmo.”  Filosofia fia Clínic Clínicaa apres apresent entaa senti sentido do soment somentee  [Limites da Definição]  “A Filoso

quando relacionada à pessoa dentro de um exercício de psicoterapia. A explanação dos valores, a construção e a modificação das arquiteturas do saber, resultado de uma tarefa causal, tudo aqui está a um serviço. "O saber, como aquisição da produção humana ou em sua origem divina, é   projetado no objetivo: a pesquisa como influxo terapêutico.” 

#3  [Psicoterapia  [Psicoterapia Filosófica]  Filosófica]  “A psicoterapia tem uma concepção anômala na

versão filosófico clínica: a vivência da circunstância relacional objetivando remeter às  pessoas envolvidas diferentes opções às questões por elas propostas; isso, com base nos   proce procedim dimento entoss filosó filosófic ficos os clínic clínicos. os. Especi Especific ficame amente nte,, o filóso filósofo fo situa situa-se -se entre entre as amizades de quem partilha uma trajetória de vida tendo-se nisso a busca de opções às

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  problemáticas: nesse contexto, a psicoterapia praticada pela filosofia despreocupa-se  primordialmente, como opção, com as curas médicas do estudo e da terapêutica das doenças mentais, embora possa existir coincidência. Todavia, localiza-se mais no âmbito da área educacional, enquanto filosofia.” 

#4  filóso sofo fo clíni clínico co é inic inicia ialm lment entee o   [Identi [Identidade dade do filósofo filósofo clínico]  clínico]  “O filó

estudante de filosofia disposto a compartilhar um caminho incerto com outras pessoas, a atuar filosoficamente em cada endereço desse caminho tal, pois é em cada endereço que sua identidade se modela. Partilhando um período da existência de outro ser, sob a responsabilidade que o nomeou filósofo, sua identidade reside em sua posição dentro da situação vivenciada.” 

#5  [Características do filósofo clínico] “Basicamente podemos caracterizar o

 filósofo clínico em sua atividade e através dela: amig igoo a usar usar seus seus conh conhec ecim imen ento toss filo filosó sófi fico coss à serv serviç içoo da a) Um am  psicoterapia. Um partilhante emprestando as teorias filosóficas a pessoas em b) suas especificidades. c) "Um pesquisador das filosofias terapêuticas.” 

#6  Filoso sofi fiaa Clín Clínic icaa é indi indicad cadaa a part partir ir das das psic psicol olog ogia ias, s,  [Indicações]  “   A Filo

designada a lidar com questões metapsicológicas. Uma ilustração estaria em Sócrates, um dos pais da Filos Filosofi ofiaa Clínic Clínica, a, ao admini administr strar ar a maiêut maiêutica ica como como recurs recursoo de conhecimento interno. Ocorre também a indicação deste trabalho simultaneamente a tratamentos médico médicoss mentai mentaiss por acompa acompanhar nhar os desdob desdobram rament entos os existe existenci nciais ais da pessoa pessoa:: as  psicoses, por exemplo, podem ser incluídas em seu campo de atividades.  Mas, insistentemente, seu foco tende a iluminar as questões fundamentais que há muito seguem o indivíduo: éticas, axiológicas, antropológicas, científicas, artísticas e, no somatório, essencialmente filosóficas.” 

#7  “Os mo modo doss com com os quai quaiss o filó filóso sofo fo   [Sobre [Sobre o procedim procedimento ento clínico clínico]  ]  “Os

estrutura o trabalho relacionam-se às vertentes de reflexão que segue. Por citar, questões éticas ou axiológicas justamente lecionam um parecer diferente diante da mesma questão quando um examinador existencialista e um outro, cético nominalista, opinam e atuam.” 

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#8   [Propriedade do local de atendimento]  “A limitação imposta pelo

consultório logo é derrubada quando a vivência em Filosofia Clínica demonstra que muitos lugares são sujeitos a bons espaços de trabalho.   Ao ter como partilhante um estudante com graves dificuldades de relacionamento na escola, por exemplo, o filósofo provavelmente deixará o consultório e pesquisará o local onde julga encontrar algumas respostas.   Nesse e em outros casos seria desaconselhável limitar o trabalho filosófico clínico a um laboratório fechado, o consultório. De fato, a maior parte do trabalho em Filosofia Clínica parece ser realizada longe do ambiente original.” 

#9   [Relação entre o filósofo clínico e a pessoa (partilhante) que o  procura] “...basicamente, o filósofo permite livre cursar à manifestação, ao conteúdo

que o partilhante traz e que surge sempre mais, ao ser em seus exercícios de coisa, e tudo isso oscilando conforme um discurso prático.  No intuito de dividir uma realidade que se lhes apresenta, nada se sabe sobre algum retorno do filósofo junto aos seus partilhantes e nem se esses o farão por outros meios. Os partilhantes podem efetuar várias transmutações: em um grau adiantado dos trabalhos às vezes é difícil divisar quem é o filósofo e quem são os partilhantes.  Assim, sendo também um processo de identificação, e considerando que observamos sempre a partir de um ponto de vista que determina as possibilidades do que podemos conhecer, segundo Karl Popper, torna-se notório que durante tal processo associativo haja um câmbio de concepções, problemas e pontos de vista entre o filósofo e os  partilhantes. Quanto a isso, existe uma surpresa inicial quando os partilhantes se descobrem alienados aos elos escravagistas governados por conceitos rígidos da conduta clássica da saúde aos quais seguem as ciências médicas. Livres de tais categorias classificatórias, surge outro posicionamento, de uma forma tal que as pessoas envolvidas aqui podem pesquisar, sob a orientação filosófica, perspectivas de diferentes morais.  Exemplificando, a relação filósofo-partilhante é uma relação essencialmente de amizade. Cabe ao filósofo ter os cuidados de somente aceitar como partilhante alguém que em sua existência ocuparia de certo modo um tal lugar, reservado à amizade.   Para tanto, existe a entrevista inicial, uma vez que o filósofo não pode determinar tal aceite a priori, na acepção dada por Kant, na segunda parte da Crítica da Razão Pura, na Lógica Transcendental, quando mostra que a intuição traz apenas o modo como somos afetados pelo objeto; já o entendimento é a nossa capacidade de   pensar esse objeto da intuição sensível. “O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela reunião se tem conhecimento”, afirma Kant.  Assim, a empatia torna-se determinante.” 

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 [Sobre o processo clínico] “A prática da Filosofia Clínica demonstra uma

contínua modificação subjetiva vinda em dados sutis da semiose. O indivíduo percebese movido em sua situação estrutural, sente e previne, mas como não acontece à mente o entendimento do que exatamente transcorre, o mesmo ocorrendo com o filósofo, e também não adivinha um objeto referencial contra o qual poderia impor resistências, e ele mesmo somente tem notícias em si de um fluir dialeticamente pouco averiguável e a trespassar célere, esse fluir, omisso de suas faculdades, contra toda a revolução latente, estreitando-se e solucionando-se para representar o mudar; omisso, no sentido de descuidado, por ser um processo em grande parte inconsciente; contra a revolução latente porque mesmo ignorando a mudança que se realiza, há uma resistência natural ao mudar. Afinal, a estrutura a ser removida é a antítese à nova estrutura, síntese. Qualitativamente, no íntimo, o indivíduo reconhecerá a operatória, ainda que socialmente não; então, algo se desdobra nessa estrutura tornando-a, de um modo irremediável, tardia. Cria-se o emergencial que se impulsiona por urgência, e que em qualidades eféticas surge, rompe, desponta unicamente para o contíguo desaparecimento. Tudo isso é metamorfose, toda a sorte até então é indiferente. O desenvolver incerto, duvidoso em seu redemoinho que se bate contra e em defesa da própria construção, enquanto o ser segue conhecendo seus acidentes de beleza malvada: a malvadez deve ser entendida, nessa expressão, desde um enfoque estético; o mau (perverso) ocorre porque o agente da beleza não consegue sabê-la por  estar associado à luta das mudanças; quem a vislumbra de fora, dissociado, pode concebê-la sob a estética.   Há um momento onde o processo de Filosofia Clínica se torna mais compreensível, quando o partilhante cresce de onde partiu, promove-se senhor em algum grau de sua causa escrava, porem não seria logo de início que o colocaríamos diante da confutação aristotélica, não ainda. A fragilidade da mudança não cartesiana requer silêncio; mudar, deslocar, sair de um lugar para outro significa alterar o equilíbrio inicial no sentido de alcançar algum outro e, daí, a instabilidade (o frágil).  Em quietude atenta o filósofo vislumbra uma delicada estrutura de translados; quieto, admira e se cativa com a ternura, a brutalidade, o feitio de um conceito que não lhe é dado a conhecer além de vê-lo simplesmente metamorfosear a suas vistas. O partilhante exerce uma epistemologia mais tranqüila sobre si mesmo, altera  programas emocionais, e seguramente existenciais, o que ocorre durante o processo   filosófico clínico mediante a vivência e o exercício da filosofia; a indagação racional sobre o mundo e o homem com o propósito de construir explicações tão  próximas quanto se conseguir de algum critério tido como a verdade. O partilhante romperá as pressões sociais que o sufocavam e aprenderá a olhar diferente o que  por hábito lhe era igual.” 

#11 Fundamentação Teórica da Filosofia Clínica  Nossas raízes vão ao período grego em que pipocaram os pré-socráticos, uma leva de pensadores ocupados em analisar mais ou menos tudo o que lhes surgia. A

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intenção de explicar o mundo por um punhado de conhecimentos que hoje, somados, não ultrapassariam a inteligência de uma calculadora portátil, não fazia deles arrogantes, mas sim homens sensatos que davam a melhor resposta diante do que sabiam. A exigência à época era essa.   É muito curioso que agora enquanto digito este comentário diretamente em uma tela colorida de cristal líquido, nossos melhores filósofos não têm respostas mais  precisas àquelas que tantas vezes chegaram a nós pela boa vontade de gente comum apreciadora de prosa miúda.  Entre a mistura de opiniões para todos os gostos, um homem, Protágoras veio  pôr ordem à diversidade de opiniões. Protágoras não se debruçou exatamente sobre as teorias, mas sobre quem as erguia. Constatou que a teoria é apenas um modo de ser no mundo da criatura humana, constatou que todas as formas de relação que estabeleço com qualquer coisa mostram quem sou, que sou eu a medida exata de tudo quanto  pretender mensurar sob qualquer significado: ético, epistemológico, emocional...  É daí que inicia a Filosofia Clínica; retomamos Protágoras em Schopenhauer, atualizado. O filósofo clínico, a pessoa que busca seus serviços, cada um em si mesmo, a resultante da relação entre ambos, essa é a medida das coisas.  Longe de qualquer relativismo, a urgência disso é que enfim a responsabilidade retorna à pessoa, viva ou morra assim, queira ou não, e por todos os parâmetros consideráveis.   Muito bem, a continuar desse princípio, uni-se o logicismo formal ao empirismo inglês e à analítica da linguagem. E para tanto usa-se o trabalho matemático do pesquisador russo Georg Cantor. Vamos devagar agora na exposição.   A análise matemática de Cantor abrevia explanações que nos levariam a discussões duvidosas e distantes; em Filosofia Clínica ela serve de síntese a questões  práticas que precisamos entender em teoria. Tudo em clínica é a resultante da qualidade da Interseção entre o filósofo e a  pessoa. Isso é facilmente representado assim:

 Havendo interseção importa o caráter da mesma!  Basicamente, há quatro tipos de qualidade de interseção: a . Interseção Positiva: aquela que é subjetivamente boa, no sentido de bemestar, entre ambos.

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+ b. Interseção Negativa: aquela que é subjetivamente ruim, no sentido de malestar, a ambos.

c. Interseção Confusa: As pessoas envolvidas não sabem determinar   propriamente o que estão vivenciando.

~ d. Interseção Indefinida: aquela que oscila com freqüência suficiente a tal modo que não se pode entendê-la como nenhuma das anteriores.

i  Tudo o mais está na dependência direta à interseção. Você pode dominar perfeitamente os submodos, os tópicos da Estrutura de  Pensamento da pessoa, Autogenia e ainda mais - e tudo isso de nada servirá se a qualidade de interseção for ruim à atividade clínica. Quando me referir à boa qualidade de interseção estarei me referindo à empatia, sintonia, harmonia, amizade, interesse mútuo em proveito de uma causa, basicamente. É suficiente saber que toda a interseção deste mundo sem direcionamento clínico também conduz a muito pouco. O logicismo formal é o início imediato de nossa clínica. Como nada sei a respeito da pessoa que me procura, sem contar os pré-juízos (ufa!), preciso estabelecer critérios a esse conhecimento.

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  Primeiro, não quero conhecer a pessoa a ponto de responder as questões últimas como o escopo da existência, dicotomias como vida e morte, inferências cosmológicas ou teocêntricas, nada disso. Isso até pode ocorrer, mas o objetivo aqui é  muito outro: o objetivo da clínica filosófica é, tanto quanto possível, reconhecer e entender as interseções (choques) entre os tópicos da Estrutura de Pensamento, e em seguida utilizar os submodos para tentar trabalhar essas interseções tópicas. Trabalhar no sentido de resolver, aplacar, abrandar, dissolver, absorver, expurgar etc ??!  A priori, não sei.  A resposta vai depender do que for obtido da pesquisa que o filósofo clínico e a  pessoa conseguirem em seu trabalho mútuo.  Na Matemática Simbólica, última parte da Filosofia Clínica, esse objetivo é  ampliado (veremos isso em outro lugar). Como usamos o logicismo formal em clínica?   Nós recolhemos todos os dados disponíveis da pessoa em quatro ou cinco consultas. Esta colheita segue os critérios: a. Considera-se somente os dados literais. b. Não são permitidos saltos temporais e saltos lógicos. c. O filósofo se limita a “agendamentos mínimos”.  A explicação é simples: o filósofo quer apenas documentar a história da pessoa contada por ela mesma ; ele reserva sua participação, nesta parte inicial, a um “agendamento mínimo” no qual apenas solicita à pessoa a continuação de sua narrativa. Não são permitidos saltos temporais nem lógicos pela simples razão de se ter  um relato compreendido, inteiro, tão completo e ordenado quanto for isso possível.  Se o filósofo conseguir tal feito, a primeira seqüência de seu trabalho pode ser  considerada satisfatória.   Em seguida, ele usará processos divisórios com o objetivo de pesquisar  demoradamente segmentos relevantes do histórico. Como o filósofo saberá quais os segmentos relevantes, se a mensuração inicial  que fez se baseou em um logicismo formal cujo conteúdo pode ser exatamente falso?  Bem, primeiro a exatidão do conteúdo: a. De um modo geral, forma e conteúdo têm estreita relação estabelecida de modo consensual. Assim, quando uma pessoa disser “água”, ela provavelmente não estará dizendo pedra, flor ou madeira. Ainda assim, há critérios como contexto (que aparecem nos exames categoriais) que nos dão uma garantia inicial considerável. b. Como o filósofo clínico está interessado na Estrutura de Pensamento, o somatório de forma e conteúdo entre outros, torna-se mais breve e igualmente mais  fundo o início pela forma (o molde que sustenta o corpo, o conteúdo); do contrário, diante de qualquer informação o filósofo sairia à cata epistemológica do termo  principiando um processo penoso e quase que certamente interminável. c. No princípio, logo às primeiras consultas, uma descrição da forma da questão parece bastar ao filósofo. Parece bastar. d. Não há como pesquisar o conteúdo sem antes termos a forma. Exemplo: como pesquisar o conceito de flor sem que antes a pessoa profira, direta ou indiretamente, o termo flor? Na verdade, pode, mas a comunicação feita por  nomenclatura irá por terra.

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 Agora, como saber os termos relevantes nessa abordagem inicial?  Simples: a. Partes aparentemente contraditórias. b. Segmentos frágeis do ponto de vista narrativo. c. Saltos temporais. d. Indicações problemáticas a partir do Assunto Imediato ou dos exames categoriais.  Evidentemente que a pesquisa pode colocar esses quatro itens por terra logo em seguida quando associarmos o empirismo inglês e a analítica da linguagem ao trabalho.  Bem, associamos o empirismo e a analítica da linguagem ao processo divisório que fazemos logo imediatamente após a colheita do histórico por várias razões: a. Para saber a correspondência entre forma e conteúdo (termo e conceito). Ou seja, quando a pessoa me diz “água pura” quero entender o que se passa conceitualmente à malha intelectiva dela: a pessoa viu rolar água puras de cachoeira, sentiu a língua tocar um cubo de gelo, lembrou de um poema sobre água pura ? b. Quero, talvez, conforme o caso, outras informações: associações fundas entre os conceitos, vivências, o uso específico e contextual do conceito, dados epistemológicos, éticos, emocionais etc etc etc... O positivismo lógico de Karl Popper e os pré-juízos de Gadamer entram aqui  como uma funda advertência ao filósofo, no sentido do limite de nosso conhecimento, suas limitações, as noções agarradas umas às outras, cracas, que servem ao que vem depois. Um duro golpe a velhas ambições filosóficas de ter o mundo à palma da mão.  Acredito que somente isso bastaria a uma excelente clínica.  Mas a filosofia é exigente com seus filósofos.  E, assim, coloquei uma segunda grande parte que denominei Esteticidade.  Ela engloba coisas como o gosto, a intuição, a arte, mecanismos instantâneos da malha intelectiva, intencionalidade e dados extraordinários. Aqui consideramos a  fundo os aspectos da Somaticidade.  Por último, a Matemática Simbólica. O marco final e vital de toda a Filosofia Clínica.  A fundamentação teórica sobre a Esteticidade e a Matemática Simbólica virá encartada nos próximos Cadernos.

#12 Métodos da Filosofia Clínica Há métodos, e não um método.

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  Na colheita das categorias aristotélico-Kantianas, cujo objetivo é localizar  existencialmente a pessoa (questões imediatas e remotas, situações atuais e em cada momento de vida, histórico, sensações, temporalidade e relações com os objetos importantes), o filósofo usa de historicidade, fenomenologia, empirismo e analítica da linguagem, essencialmente. Paulo Rodrigues e Nereu Haag, filósofos clínicos, lembram ainda um uso reiterado de noções cartesianas.  É correto.  Acho que incrustados aos métodos mencionados, há muito de Bacon, muito de cientificismo e de indução, há experimentalismo também, entre alguns outros.  Minha intenção aqui não é defender o uso ou minha escolha deste ou daquele método, estou apenas apontando quais utilizei na estruturação do logicismo formal em Filosofia Clínica. Em tal caso, preciso admitir que a fundamentação de meu trabalho levou-me a esses métodos e nunca o contrário, até encontrar certas agruras que essa teimosia me causou. Apesar de pequenos embates entre fundamentação e método, no início de meu trabalho, cito os que viveram ao confronto. Conforme já afirmei aos meus alunos, descartei - não sem dor - tudo o que não teve aplicação prática. Como ilustração, consideremos o uso modificado que realizei a propósito da metodologia mencionada:  Historicidade: a. Interpretação de fatos, conceitos, eventos na vida pessoal e suas implicações atuais e futuras (profilaxia) correlatas. Fenomenologia; distante de Husserl, mas devida ao mestre: a. Investigação do que aparece. b. Divisões sucessivas em busca do dado de intencionalidade (John Searle).  Empírico e Analítico de Linguagem: a. Pesquisar as relações entre conceito e termo. b. Ater-se à experiência.  Na Esteticidade e na Matemática Simbólica outros métodos uniram-se a esses, conforme estudaremos nos próximos Cadernos.

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Bibliografia O que é básico consta no currículo acadêmico, nos quatro anos do curso de  graduação em filosofia que as faculdades lecionam. Como os alunos de São Paulo e Salvador têm pedido, segue agora uma  pequena biblioteca de grande valor. Confira...  Sobre Protágoras e seus afins temos The Sophists, de Harold Barrett; e também Great Sophists in Periclean Athens, de J. DeRomilly. Socrates, de E. A. Taylor, é   providencial. De Platão, A República e os Diálogos. Depois, os escritos de lógica de  Aristóteles. Para quem gostar e entender e quiser maiores profundidades, os três volumes de Principia Mathematica de Bertrand Russell e de Alfred North Whitehead. Como complemento, o trabalho de J.W. Dauben chamado Georg Cantor: His  Mathematics and Philosophy at the Infinite, e o livro de Robert L. Vaughan chamado  Set Theory.  Schopenhauer com The World as Will and Representation fica por conta da boa vontade de cada um.  John Locke e George Berkeley podem ser diretamente estudados em David    Hume: A Treatise of Human Nature e Philosophical Essays Concerning Human Understanding.  Em seguida, Crítica da Razão Pura, de Kant, e desta vez sem timidez. Chega um dia na vida em que Kant precisa ser lido e pronto.  Então há uma série de boas pesquisas filosóficas, já na área da analítica da linguagem. O ensaio de Isaiah Berlin chamado Essays on J.L.Austin é maravilhoso. Vale a  pena e vale o descanso. Há também um trabalho inicial de John Wisdom, Logical  Constructions, para ser lido no inverno. É claro que o Tractatus e Philosophical   Investigations do nosso mestre Wittgenstein nem preciso falar porque é simplesmente obrigatório; leitura de cabeceira. E se você quiser emendar The Analysis of Mind e The Analysis of Matter de Bertrand Russell, vá firme! Uma síntese importante entre os primeiros trabalhos de Saussure e Roman  Jakobson pode ser apreciada através dos textos de Claude Levi-Strauss; depois, Roland   Barthes. Nesse mesmo caminho, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e Michel Foucault.  Entre os norte americanos quero destacar um importante trabalho de Leonard   Bloomfield, de 1933: Language. Além disso há o escrito publicado em 1957 de Noam Chomsky chamado Syntactic Structures.  Há ainda pequenos escritos de apoio como Interpretation Theory: discourse and the surplus of meaning, de Paul Ricoeur; Minds, Brains and Science, de John   Searle; On Photography, de Susan Sontag; Sobre Espelhos, de Umberto Eco; qualquer coisa de Aldous Huxley; Verdade e Método, de Hans Gadamer; Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn; A Derrota do Pensamento, de A. Finkielkraut ; um pequeno e delicioso livro do antropólogo Edward T. Hall, publicado em 1959, chamado The Silent Language; o mastodôntico A Montanha Mágica, de Thomas Mann;  Para continuar, quero sugerir algumas leituras básicas.

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 Introduction to Logical Theory, de Peter Frederick Strawson (que alguns anos depois pesquisou fortemente o dilema corpo-mente, e as relações entre sujeito e  predicado); How to Do Things with Words, de John Langshaw Austin; The Concept of   Mind e também Dilemmas, de Gilbert Ryle. Esses escritos servem de base para uma melhor compreensão da explicação que agora segue sobre a pesquisa do termo e do conceito. Meu trabalho, neste ponto, foi muito beneficiado por esses filósofos Os últimos filmes de Woody Allen, Ingmar Bergman, Fellini (Amarccord), ajudam. Pat Metheny , Keith Jarrett e Egberto Gismonti, na música. Rodin, como aperitivo à Bienal que estudaremos à Esteticidade. Paul Klee, Escher, Canalletto, em desenho e pintura. O teatro de Gerald Thomas, se possível. E, claro, Internet para todos.  É o suficiente para que você passe com segurança da primeira à segunda parte da Filosofia Clínica; do logicismo formal aliado ao empirismo e à analítica da linguagem, primeira parte, à Esteticidade aliada à Somaticidade, segunda parte. Além disso, sugiro que você siga anotando as obras e os autores que são citados em cada um de nossos Cadernos.

#14  Quanto à ordenação de conteúdos para a formação do filósofo clínico,  podemos aventar o que segue: a. O mundo como representação. b. Aspectos da lógica formal. c. “do empirismo. d. “da analítica de linguagem. e. Estudo das categorias.  f. “da EP.  g. “dos submodos. h. Esteticidade. i. Somaticidade.  j. Aspectos médico-psiquiátricos. k. Pré-estágio e estágio clínico. l. Matemática Simbólica.

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 Exames Categoriais - Aspectos Gerais   Explorando as cinco categorias (Assunto, Circunstância, Lugar, Tempo e  Relação), o filósofo forma um conceito bem estruturado do mundo da outra pessoa: uma representação para si mesmo da representação do outro.

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  Muito bem, como o clínico trabalhará com tais estruturações informais do intelecto? Qual a ordenação inicial, a classificação? Usamos uma derivação do modelo metafísico aristotélico do ser apresentado nas categorias e então os predicamentos conseqüentes em sua lógica formal. A aplicação em clínica exigiu modificações fundas que acabaram por transformar a  forma do entendimento do grande mestre estagirita. ”Packter — Bom, a importância clínica das citações dos fragmentos de  Protágoras é notória. Primeiro, o filósofo sabe muito pouco à respeito da pessoa que  procura por seus serviços, pois ela traz uma vivência da qual nada sei.  Mas o que sabemos então? Ora, temos um amontoado de pré-juízos (Gadamer) mais ou menos ordenados: (a) Esta é uma pessoa; (b) Ela está aqui com algum propósito; (c) Tem a pele rosada; (d) Veste-se e se expressa de um modo simples... E assim por diante.   Estes pré-juízos (Gadamer) são o princípio da clínica, tanto para o filósofo quanto para a pessoa. Também por isso podem ser muitas vezes o fim...afinal, quem  pode saber até o ponto em que não são os pré-juízos um impedimento à interseção?!  Ponha muita atenção em uma coisa: a priori o filósofo conhece um mínimo sobre a pessoa e esse mínimo é apenas um modo de iniciar a terapia.  A pessoa que está diante de você e que você pela primeira vez tem um contato,  pode ter uma vida pobre emocionalmente e riquíssima do ponto de vista ético, ou uma vida vazia de espiritualidade e repleta até o bordo de um entendimento mecanicista sobre as coisas; pode ainda ter uma vida espiritualmente mecanicista ou qualquer  outra coisa.  Sabe a quantas somam as possibilidades?   Pelo que imagino, não são menores que todos os grãos de areia da praia levados ao cubo!  É fundamental você entender que as pessoas são realmente diferentes, de uma vez por todas. Isso não tem nada a ver com o discurso hipócrita que apregoa as diferenças para depois tratar todo o mundo como igual.

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Ouça bem: mesmo as pessoas mais iguais são profundamente diferentes entre si  mesmas.  Então é muito indicado que em resposta às perguntas que iniciam a clínica se use o ‘não sei; vamos trabalhar e procurar saber, precisamos averiguar, estamos   pesquisando, por enquanto é cedo para afirmar isso, não temos dados mais conclusivos sobre o que se passa etc e tal’.   Há quem goste de responder com sabedoria ao que não conhece usando obscurantismos hermenêuticos de grandes profundidades de insânia e atrevimento.  Acho que casos assim são mais indicados a médicos, policiais ou bombeiros. Um  filósofo que tenha intimidade com gente como Hegel sabe do que estou falando...   Pois então, a lição aqui é que sabemos pouco de início e se não tivermos cuidados e critérios corremos o perigo de, à medida que a clínica avança, sabermos menos ainda.   Não tenho o menor interesse no ranger de dentes entre escolas racionalistas e empiristas, céticas ou analíticas, a não ser que tenha uma implicação o que às vezes pode acontecer. Quanto a isso, já que o movimento clínico é de relação entre o sujeito e o objeto (filósofo & pessoa: pessoa & filósofo), preocupo-me com a qualidade desta relação, que chamo de interseção (Cantor) como determinante de todo o processo em Filosofia Clínica.  Não sei se é o filósofo, a pessoa, o ambiente que os cerca, a história de um ou de outro ou da sociedade quem determinará a clínica, mas sei com certeza que a resultante disso liga-se diretamente à qualidade de relação entre ambos: a interseção (Cantor).  Em alguns casos, será essencial o atuar do filósofo, a tal ponto que se dirá ser ele o elemento de equação em clínica. Outras vezes não. Preste toda a atenção no uso que dou aos ensinamentos do empirismo inglês após os fragmentos de Protágoras e Schopenhauer. O que quero dizer com isso?  É simples: amamente dez crianças de um modo igual, dê a elas dez mil  experiências iguais - sob qualquer enfoque que você possa imaginar - cuide ainda  para que tenham exatamente as mesmas experiências durante muitos anos...e mesmo assim, caso tal coisa seja possível, cada uma dessas crianças terá uma leitura singular  do mundo! Ou seja, cada um de nós vivencia à sua maneira o barro e o ar deste mundo, o que é lindo ou feio a um pode ser feio ou mais lindo ainda a outro. Igual, bem igualzinho, isso eu sei que não será de jeito nenhum, fora algum caso aqui e ali  que servem exatamente para confirmar o que estou afirmando.  Por que é assim?   Por muitas razões, algumas determinantes e outras apenas insignificantes: do clima à comida, cada pessoa em cada circunstância encontrará coisas que lhe serão importantes ou não. O filósofo pesquisará junto à pessoa, se quiser entender mais sobre isso.   Diante do contexto no centro da Europa, após imediatamente a duas   guerras que deitaram chão afora valores, termos, dados epistemológicos etc construídos por centenas de anos, gente morta em restos de prédios históricos e outros horrores, bem... algumas pessoas lidaram com isso enlouquecendo, outras construíram

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teorias mais ou menos explicativas como o existencialismo, outras usaram da música, da ecologia, da política, da psicanálise do corpo ou dos movimentos da alma...enfim. Como catalogar a plasticidade desta criatura humana?   Se você, por vivências que teve até aqui, explica o mundo por um movimento de transmigração das almas, por algum epifenômeno da corporeidade (Comte), se vive conforme alguma teoria hedonista, marxista, filatélica...por maluca e confusa que ela possa me parecer, acho que foi a sua maneira de entender e viver  neste mundão de meu Deus...!No meu modo de entender as coisas, serei eu o mais maluco de todos se quiser pretender ter a verdade das coisas por você. O mais que tenho é a minha verdade das coisas, a minha verdade para eu mesmo, e acho ainda que muitas vezes nem isso é possível.   Mas esse discurso bonitinho, tão agradável¸ hein?, em clínica nem sempre se reitera. Às vezes o filósofo se assenhora da verdade e a empresta ou determina à pessoa que, de acordo com suas disponibilidades internas, fará uma aquisição não raro fundamental ao seu modo de ser no mundo. Outras vezes o filósofo é quem estará em tal situação.  Note bem uma coisa: cada vez mais enquanto aprofundamos os nossos estudos, você vai sendo convidado, mais e mais, a viver de fato e de direito a filosofia...de um modo que apenas vagamente lembra o discurso acadêmico, ou o faz-de-conta onde o  professor finge que ensina e o aluno finge que aprende.  Acompanhe algumas razões disso.  Nós estudamos no Caderno A que a partir das experiências a pessoa vai  elaborando idéias (conceitos, imagens ou verbos mentais). Ao sentir o aroma que se desprende dos cabelos de minha mulher (um dado sensorial) eu o arquivo em meu organismo em forma de conceito. Este conceito passa a interagir com outros e outros e outros. Deste modo, formo idéias complexas!   Hume, Locke, Berkeley, Bertrand Russell são os estudiosos que consideramos.  Locke, Kant e depois Wittgenstein vão longe em suas explanações. Eles nos contam e nos advertem sobre os limites da razão (na acepção Kantiana), das lonjuras com que as idéias (em Locke) podem ir em correlações entre si mesmas que nada garantem além de graves perigos existenciais, a ponto de causar no organismo movimentos existenciais, violentos como angústias, depressões e ansiedades arrebatadoras (como mencionam Hume e Berkeley). Por fim, ainda, Wittgenstein, que nos previne das complexidades dos jogos de linguagem que têm a infeliz capacidade de nos enredar em terríveis dilemas. Como isso se traduz em clínica, na prática? Um exemplo é o da pessoa que acredita que pode encontrar a paz e a  felicidade através de um modelo religioso ou ético ou social, e que quanto mais se embrenha e enraíza em suas considerações e vivências mais se torna o oposto do que tinha como meta ou destino por alcançar. Uma razão para isso é que a pessoa pode ter abandonado o chão seguro das vivências mais próximas ao sensorial e talvez tenha se aventurado em direção às   Idéias Complexas (Locke) mais longínquas, em derivações de derivações de  pensamentos, em raciocínios contraditórios entre si mesmos e tão avessos à realidade empírica quanto são distantes as estrelas da terra onde tocam nossos pés. Sem dúvida, um caminho infeliz para o qual muitas vezes não existe retorno.

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Outras vezes, e agora me atrevo a dizer que são muitas e até a maioria dos casos, acontece que a pessoa aprendeu a se guiar por parâmetros que estão corretos, ordenados e bem estruturados sob o ponto de vista do logicismo formal.  Por exemplo: a moça tem um modelo de retidão moral e existencial que segue com prazer e que lhe dá uma boa vida (!). Até que encontra um rapaz por quem se apaixona e que afronta sua concepção tão bem estruturada. Ela entra em conflitos,  pois ama o rapaz e quer viver com ele, mas é casada, tem filhos, e tal possibilidade se choca contra as idéias complexas que lhe posicionam existencialmente na vida. Por  sua lógica formal interna ela acredita que pode ser feliz seguindo seu modelo moral  contra o amor que chegou à revelia em sua vida, mas nada se resolve assim no caso dela. A moça começa então a viver um inferno pessoal que a confunde, uma vez que  para ela nada mais está fazendo sentido. Ou seja: às vezes ordenamos os conceitos de modo correto do ponto de vista logicista formal aristotélico Kantiano em nossas vidas...

O homem ético é feliz na maturidade Eu sou um homem ético e estou na maturidade Portanto eu sou um homem feliz.

 Note que logicamente está correto, só que isso pode se chocar duramente contra a realidade do dia-a-dia, quando não é nada certo que um homem ético será feliz na maturidade. Só que a pessoa que se estruturou assim pode ter baseado, involuntariamente, de modo cabal, toda a própria vida neste processo. Ela pode tê-lo como um dogma de fé, sua prova de humanidade diante da vida. Ora, imagine você o que acontece quando isso não se verifica do modo como era profetizado nela por ela mesma...! O choque pode assumir uma importância tal que impeça a pessoa do exercício de sua existência, o que talvez cause de acidentes psicóticos, a episódios suicidas ou sabe-se lá o que mais.   Em outras ocasiões pode haver uma bagunça conceitual tal na malha intelectiva da pessoa que ela simplesmente não tem como manifestar de modo coerente ao filósofo o que se passa com ela.  E ainda há muitas outras causas para o fato de nem sempre se poder começar  de um Assunto Imediato claramente definível. Não se preocupe com isso. Esta e questões mais urgentes serão consideradas com demora quando for oportuno ao nosso estudo.  Primeiro, o filósofo pedirá à pessoa para que ela reporte do modo como julgar  mais adequado (veremos isso mais tarde nos dados de Semiose) um relato superficial,  panorâmico de sua existência até aqui.   Pelo que venho acompanhando os filósofos clínicos em formação em meu  Instituto, noto que inicialmente há dificuldades naturais que quero explicar aqui, ao menos as principais. Como compendiar os dados colhidos entre as cinco categorias?  Bem, de início a colheita e distribuição dos termos que a pessoa expressa são sempre apreendidos no sentido literal! Isso é fundamental! Quando a pessoa dizer: “eu amo esta gatinha” - isso será arquivado inicialmente pelo filósofo como “eu amo esta gatinha”, e não, nunca mesmo, “eu

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 gosto, tenho carinho, eu me afino etc”, simplesmente porque não foi isso o que a  pessoa expressou, ainda que por “amor” ela quisesse na verdade dizer “carinho”.  Durante todo o logicismo formal, a primeira parte da Filosofia Clínica, essa norma será freqüente (na Esteticidade e na Matemática Simbólica teremos opções, como a Epistemologia, para ir além do formalismo). Compendiar, ordenar clinicamente os dados é algo fácil e simples de ser feito, mas especialmente dá ao filósofo uma compreensão íntima do modo de estar no mundo da pessoa; sempre condicionado à qualidade das interseções. 0..1..2...3..4..5...6..7..8..9..10..11...12..13...14....15...16...17...18...19...20....21.  Assunto Imediato e Último Circunstância  Lugar  Tempo  Relação  Pois bem, ao considerar o que apurou das categorias de um jovem de 21 anos, com atenção ao quinto ano, e depois dando atenção ao décimo sexto ano, o filósofo conhecerá a situação existencial, como o rapaz vivenciava a si mesmo, sua época, os costume, sua sociedade; enfim, quando as cinco categorias são unificadas temos uma localização existencial da pessoa! O filósofo constatará que essas condições se modificaram em muitas coisas importantes do quinto ano em relação ao décimo sexto, e que outras tantas  permaneceram como que congeladas.  Notará que os fatores responsáveis por isso vão ao infinito: vivências amorosas, sofrimentos, dados teóricos, mudança de cidade, novos hábitos, interferências educacionais ou políticas, aproximação de religiões, quebra de vínculos de amizade, novos elos de carinho etc... Os termos que me correm para o que o filósofo experiência diante do trabalho que realizou até aqui... entendimento, sabedoria das variações existenciais da pessoa (que muitas vezes ele desconhece por ser assim que elas se mostram...), harmonia, coerência, segurança das contingências da atividade clínica.   Acho que se você está lendo isso e ainda não vivenciou o que está sendo detalhado, bem, neste caso, não acredito que minhas palavras encontrem receptividade em você que encontram em um filósofo clínico experiente. Mas, de qualquer modo, servirão para quando você estiver trabalhando.  Nesta parte dos trabalhos clínicos, ao ter bem avançados os exames categoriais, o filósofo então continua aperfeiçoando sua atividade através agora da elaboração da  Estrutura de Pensamento da pessoa.

#16  O que é a Estrutura de Pensamento? É o modo como a pessoa está existencialmente no ambiente.  Note que a pessoa é anterior à Estrutura de Pensamento, pois é somente através dela que tal Estrutura tem possibilidade de existir.

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Quando o filósofo clínico considerar o outro ser que o procura, ele terá diante de si mesmo a pessoa ou Estrutura de Pensamento?  Se você quer saber o que eu acho basta reler as linhas acima.   Agora, já percebi que não há aqui, como em quase tudo o mais, um dado consensual: alguns filósofos certamente considerarão a pessoa como sendo apenas uma Estrutura de Pensamento, outros saberão distanciar uma da outra; sem contar  aqueles que entenderão tudo, Pessoa & EP, como um todo. Em suma, entenda como quiser.  Elaborar a Estrutura de Pensamento da pessoa exige cuidados e critérios que  passo a explicar a seguir.  Bem, você sabe que a pessoa pode estar em um mau dia, daqueles em que tudo  parece dar errado, e eu pergunto então se ao fazer todos os exames categoriais e em seguida, com base neles, elaboramos a Estrutura de Pensamento da pessoa, será que não teremos em resposta apenas a Estrutura de Pensamento que a pessoa tem naquele dia, e apenas naquele dia? O que você acha? Como já estudamos em aula, a Estrutura da pessoa não é algo fixo e imóvel  como a estrutura de ferro e concreto de uma casa.   Na pessoa, a Estrutura é móvel, plástica, poética como as cores de um caleidoscópio; a cada instante vão se processando milhares de modificações à malha intelectiva da pessoa! Neste momento exato enquanto você acompanha este escrito essas e outras milhares de interseções ocorrem em você: algumas amistosas, suaves, calmas e outras nem tanto. Acompanhar a todas é algo que não se pode conceber  clinicamente.   Ao filósofo importa pesquisar o que de importante está acontecendo nessas milhares de interseções.  Às vezes é o somatório delas o que é urgente a considerar, ou algumas em relação a outras, ou ainda uma confusão ou simplesmente nada há que pareça ter  valor clínico...!  E então, o que fazer? Considere primeiro a plasticidade deste processo.  É evidente que quem nos procura para a clínica vem se enfrentando em uma situação qualquer que é necessariamente circunstancial e que, de um jeito ou de outro qualquer, tem sua vida útil. Estou falando da questão a ser trabalhada em clínica.   Mas isso, por si somente ainda é pouco para uma resposta mais ampla; a resposta de fato, é que o filósofo precisa ir tão próximo quanto possível daquilo que é  urgente, emergencial, fundamental e determinante na vivência da pessoa - e aí, via interseção, trabalhar no que é realmente essencial.  Por que fazer uma clínica para coisas que não terão conseqüências maiores na vida da pessoa?  Procure ser íntimo das questões fundamentais. Você logo vai constatar que elas se apresentam com evidência na Estrutura de  Pensamento da pessoa de maneiras desde simples até complexas. Por exemplo: a. Choques diretos entre tópicos estruturais. b. Choques indiretos. c. Associações caóticas entre tópicos. d. Problemas na própria Estrutura e não na interseção entre os tópicos. e. Problemas na interseção entre Estruturas e não entre os tópicos.  f. Ausência de tópicos que são existencialmente exigidos em uma circunstância.

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casos!

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 g. Vivência contraproducente de tópicos em situações críticas.  ... e podemos estender esta lista ainda por dezenas de páginas, tantos são os

Também há reflexões pertinentes mais além dessas.   Por exemplo: dois filósofos que tenham interseção clínica com a mesma   pessoa, em momentos distintos, com o objetivo de comparação da Estrutura de  Pensamento que ambos elaboraram, vão obter a mesma Estrutura de Pensamento?  É evidente que não!   Eles constatarão uma semelhança íntima e poderão verificar que o que consideram determinante na malha intelectiva da pessoa de fato encontra eco em seus trabalhos.  Essa aparente estranha coincidência nada tem de estranha... Filósofo Clínico A em interseção com a pessoa Z  Filósofo Clínico B em interseção com a pessoa Z   Se os critérios clínicos que normatizam essas interseções são os mesmos para A e B, é natural que haja correspondência e semelhança quanto aos que é mensurado.  Isso indica método, organização e sistematização de nossa clínica.   Por que então algumas vezes temos resultados tão distantes quanto a interpretação final que cada filósofo presta quanto a uma mesma Estrutura de  Pensamento?  Por questões epistemológicas (como cada filósofo conhece e se dá a conhecer), éticas, axiológicas etc. Nos próximos Cadernos isso ficará notório. Estudaremos também um tópico estrutural chamado Princípios de Verdade que explana essa questão.   Por agora, fique com a consideração de que embora a linguagem seja a mesma, o uso que cada filósofo faz dela é toda a diferença entre as coisas, e que cada um vivencia as coisas à sua maneira.   Mais ainda: muitas vezes pode se estabelecer uma interseção difícil, qualitativamente péssima, entre o filósofo e a pessoa que assim impede a atividade clínica. Por que não? Por acaso prometi alguma mágica a você que promova curas miraculosas?   Pode estar certo de que mais de uma vez você não conseguirá estabelecer  interseção amistosa junto à pessoa e então não haverá clínica, simplesmente porque as coisas às vezes são assim mesmo.   Acho oportuno também pedir a você que procure encontrar um equilíbrio existencial que não se alvoroce diante de qualquer chuvinha mais forte. É importante estar sereno diante da interseção clínica, ter paz para trabalhar e para coletar  ordenadamente, com método, os dados categoriais que mais tarde darão forma à  Estrutura de Pensamento Você encontrará quase de tudo, de pessoas que trabalharão com você por   poucas consultas, gente que irá sumir logo após o primeiro encontro e gente que ficará até bem depois do uso dos submodos; com você estarão pessoas com quem haverá identificação aprazível, caminhadas existenciais belas, pródigas ou nenhuma caminhada.  Sabe você o que leva uma pessoa a procurar terapia?  Ela pode estar indo contra a vontade, ou à procura de amor, ou querendo se conhecer porque acredita que isso é realmente possível, pode apenas ter tempo,

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dinheiro e uma vida que lhe é fútil e quer ocupar todo esse imenso nada enchendo de tédio a vida do terapeuta; há gente que tem uma questão bem definida e sabe exatamente o motivo de estar em clínica, mesmo que mais tarde tenha a surpresa de descobrir que não era nada daquilo...; portanto, procure estudar bem a criatura que está em interseção com você, antes de sair pregando enormes e prováveis bobagens. Curioso é que há terapeuta que precisa de muito estudo para dizer essas mesmas bobagens...  Acho divertido verificar como há postulados sérios, ameaças veladas, silêncios  fundos e grandes perigos que se anunciam em tantas escolas terapêuticas quando se trata da terapia da pessoa. Estou falando em termos gerais e não universais, ok?  Acho muito simples e me agrada muito o trabalho em Filosofia Clínica.  Basta ter os cuidados éticos e saber empregar os procedimentos preconizados que toda a atividade se torna linda, fácil e agradável. Agora, é evidente que isso é  assim para mim. Não posso afirmar que meus alunos terão a mesma experiência que tive e tenho.  Somente consigo entender a terapia desta maneira.  As perguntas que um aprendiz em Filosofia Clínica comumente faz, pelo que tenho notado, se respondem na maioria dos casos com o próprio trabalho clínico: quanto tempo dura a terapia; como lidar quando a pessoa parece que vai explodir; o que fazer em casos inesperados; quando e como terminar os trabalhos em clínica; quanto cobrar; quanto tempo pode ter uma consulta; como lidar com os familiares da  pessoa; o que dizer quando não se pode falar o que se pensa; o que anotar como relevante e como irrelevante; quais os efeitos próximos e distantes de um erro grave em clínica; até onde ir existencialmente com a pessoa; ser amigo e profissional junto à  pessoa ou ser somente profissional ; quais os limites da relação filósofo & pessoa; quem deve ou pode dirigir o processo; como delimitar os objetivos; como funciona a relação interdisciplinar (o atendimento simultâneo filosófico e psiquiátrico); até onde se pode ou se deve interferir na vida da pessoa; quando se sabe que a terapia está tendo resultados efetivos; como confrontar pessoas e fatos; quando procurar  assessoria jurídica; quais os fatores aleatórios que podem agravar ou condicionar um tratamento clínico; o trato com pessoas encarceradas, doentes terminais, com crianças e com pessoa idosas; a interseção junto à casais; a interseção junto à famílias; o que  fazer diante de interseções ruins, dolorosas, aflitivas etc; um tratado em oito volumes ainda não responderia a metade dessas questões, simplesmente porque elas necessitam da prática! A maioria se resolve facilmente na prática clínica. Vamos então adiante.  Nós já sabemos quais as condições para que um filósofo exerça a clínica; estou me referindo aos aspectos legais da questão e não ao alcance existencial - que vai  muito além. O filósofo, segundo a constituição brasileira, não tem habilitação legal para tratar algumas questões psiquiátricas que preconizam internamento, interdição dos direitos de liberdade social da pessoa, intervenções medicamentosas, e muitos dos  processos descritos no DSM - IV.  Exatamente por isso é que os exames categoriais e a posterior montagem da  Estrutura de Pensamento são mais uma vez essenciais!  Ao ter precisadas as cinco categorias, duvido que um filósofo clínico atento deixe passar em esquecimento àquelas questões. Duvido sim. Quando sistematizei a

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Filosofia Clínica tive todos os cuidados que me ocorreram nesse sentido. Ocupei-me muito com meus estudos para que meus alunos tivessem a segurança que no início eu não tive.   Então, deixe-me listar aqui, tendo em consideração somente o pouco que estudamos nestes dois primeiros Cadernos A e B, onde provavelmente você identificará as questões médicas psiquiátricas com as quais o filósofo não pode lidar legalmente (sob pena de incorrer em exercício ilegal de profissão e falsidade ideológica):  — Exame físico (apresentação geral da pessoa). Modo de gesticular; roupas; meios de expressão. Tudo isso durante a colheita da categoria Assunto Imediato.  — Histórico. Na categoria Circunstância, quando você e a pessoa estiverem elaborando ordenadamente o histórico, aparecerão sinais característicos do que em  psiquiatria se denomina psicose, desvios esquizóides etc. Lembre aqui que teremos um Caderno especial contendo informações que nos ajudarão a detectar tais variações.   — Ao apurar os dados da categoria Lugar, que é como a pessoa está sensorialmente em cada endereço existencial, os referenciais do corpo que indicam situações de risco como esquizofrenias precoces logo se farão anunciar.   — Na categoria Tempo, confusões temporais, contradições e elaborações desestruturadas logo se prenunciam.  — Por último, na categoria Relação tudo se torna ainda mais evidente.   Ao ter como a pessoa se relaciona consigo mesma e com quem está em interseção com ela, praticamente o filósofo tem à disposição os dados que a medicina exige para sua tipologia - algo tão estranho a nós filósofos.  Esteja tranqüilo quanto a isso.  Dificilmente lhe escapará ao entendimento alguém que tenha uma Estrutura de  Pensamento organizada de modo “doentio”, segundo os critérios médicos, é evidente...  Mais adiante estudaremos também outras maneiras de averiguação.  Alguns alunos já me perguntaram se é possível a um filósofo clínico trabalhar  sem fazer os exames categoriais e a Estrutura de Pensamento.  Legalmente, acho difícil, uma vez que ele não saberá com que tipo de pessoa estará lidando.  Já clinicamente considero isso um atentado ético à pessoa! Usar os submodos sem ter primeiro a Estrutura da pessoa é contraproducente, é  um erro grosseiro que pode lesar a pessoa. Sou intransigente nesta questão; meus alunos sabem que repito e repito a importância dos exames categoriais. Com a finalidade de exemplificar tornando mais acessíveis os termos, utilizo um texto selecionado de Capitães da Areia, de Jorge Amado.  Jorge Amado conta dos menores abandonados de sua terra , a Bahia, a viver  em um antigo armazém. A narrativa realista relata a vida de um bando comandado   pelo bondoso e corajoso Pedro Bala; a dificuldade diária para conseguir comida e dinheiro. A interpretação de Jorge Amado (a medida de todas as coisas) é que as diferenças sociais injustas remetem à marginalização e à criminalidade. Mostra a incompreensão que as classes dominantes têm quando consideram os meninos abandonados à sorte que só possuem a rua como lar.. “Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram a Barandão numa casa da cidade alta. As calças tinham

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ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Assim mesmo estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes todos a poderiam tomar por um menino, um dos Capitães da Areia.  No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer:  — Tu tá gozada... Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.  — Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer. O assombro dele não teve limites:  — Tu quer dizer... Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.  — ...que vai andar com a gente pela rua batendo coisas...  — Isso mesmo - sua voz estava cheia de resolução.  — Tu endoidou...  — Não sei por quê.  — Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa para homem.  — Como coisa que vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.  — Mas a gente veste calça, não é saia...  — Eu também - mostrou as calças. De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou:  — Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?  — É igual.  — Te metem no orfanato. Tu nem sabe o que é...  — Tem nada não. Eu agora vou com vocês. Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. Mas ela  bem sabia que ele estava preocupado. Por isso ainda disse:  — Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...  — Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não agüenta um empurrão...  — Posso fazer outras coisas. Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem que tivesse medo dos resultados.”

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Exames Categoriais - Aspectos Específicos

 A primeira categoria denomina-se Assunto, o objeto de que se trata.  Posso afirmar que o Assunto refere-se ao envolvimento ativo da menina Dora no trabalho do grupo de meninos liderados por Pedro Bala. Esse é o Assunto Imediato, o que é próximo, evidente, sintomático. O Assunto Último o que se relaciona às questões existenciais de Dora de um modo mais abrangente, desde seu histórico até a condição de ser-aí (dasein), é sempre resultante de pesquisa que o clínico faz junto à pessoa, e deve ser determinado pela  pessoa, ainda que o clínico tenha suas opiniões a respeito.  Então o Assunto Último no caso de Dora poderia ser a busca de aceitação por   parte do grupo; aproximação e demanda de amor em relação à Pedro Bala; sentir-se útil; desejo de exercitar sua vivência social; engajar-se em seu ambiente harmoniosamente ou ainda várias opções.  A categoria Assunto nos informa rapidamente a questão e o jogo comunicativo em curso.

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  Jogo comunicativo é apenas uma ampliação dos “jogos lingüisticos” de Wittgenstein. Segundo o filósofo, nós vamos muito além da denominação em linguagem, nós empregamos de inumeráveis formas os sinais, as proposições . “Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes exemplos e outros: Comandar e agir segundo comandos. Descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas. Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho). Relatar um acontecimento... É interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espécies de palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da linguagem.”

 Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein explana o que de fato nos interessa quando compara os jogos: “Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora passe para os jogos de cartas... Se passarmos aos jogos de bola, muita coisa comum se conserva, mas muita se perde. São todos recreativos? Compare o xadrez com o jogo da amarelinha. Ou há em todos um ganhar e um perder, ou uma concorrência entre jogadores? Pense nas paciências. Nos jogos de bola há um ganhar e um perder; mas se uma criança atira a bola na parede e a apanha outra vez, este traço desapareceu. Veja papéis que desempenham a habilidade e a sorte... E tal é o resultado desta consideração: vemos uma rede complicada de semelhanças, que se envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanças de conjunto e de pormenor.  Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão “semelhanças de Família”... E digo: os “jogos” formam uma família.”

  Para Wittgenstein a linguagem é uma soma de jogos de linguagem e o significado de uma palavra está em seu uso.  No nosso caso, quando Dora diz à Pedro Bala: “Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.” Dora usa um jogo de linguagem dela e dos meninos de rua. Pelo que houver de semelhante com o meu jogo de linguagem (os elementos do conjunto dela que também tiverem representação no meu conjunto) estabeleceremos a interseção. As nossas “semelhanças de família” nos permitem aumentar a área de interseção do jogo comunicativo em curso. O jogo comunicativo envolve tudo o que os sentidos e o intelecto estabelecem dentro da interseção. Vai muito além do verbo; envolve intuição, comunicação nãoverbal etc. Como lidamos com isso em clínica inicialmente?   Isso é feito, de início, com os exames categoriais, aristotélicos e kantianos, adaptados à clínica Quando digo adaptados, quero dizer que os direcionei às necessidades clínicas conforme a pesquisa me ensinava.  Assunto é a primeira categoria. O filósofo procura saber o que faz a pessoa procurar por seus serviços: o que a trouxe a ele, o que a move em direção à terapia (veio por desejo próprio ou de modo coercitivo, veio, enfim, por quais caminhos?).

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  A pessoa que vem até nós traz um Assunto Imediato a ser tratado: um casamento que está em ruínas, um amor magoado, um abandono, uma situação existencial incômoda, inadequações sociais que para ela são importantes, medos, conflitos etc. Bom, neste primeiro contato, você cuidará de colher todas as circunstâncias relacionadas ao Assunto Imediato, poderá mesmo fazer chover   perguntas sobre a pessoa.  De minha prática em clínica, quero informar a você que com muita freqüência o Assunto Imediato é algo que nos é apresentado meio solto no ar, envolto em confusões, dúvidas e incoerências; quase sempre é apenas a resultante que incomoda de algo maior.  Assim, a sensação de abandono, de medo ou solidão, de aflições, conflitos ou seja lá o que for, quase sempre isso é como a febre...assim como pode ser por si  somente, pode ser a resultante de arranjos orgânicos crônicos e até irremediáveis. O Assunto Imediato é somente um referencial de começo. Pode conter toda a resposta que se procura e pode ter muito pouco a ver com tal resposta. O Assunto Último, então, é o que verdadeiramente deve ocupar as ocupações de nossa filosofia aplicada à clínica, embora ambos, Assunto Imediato e Assunto Último  possam calmamente coincidir. Por que não? Por analogia, se você vai a um médico com dores abdominais é  contraproducente que lhe dê algum analgésico e antitérmico dando o caso por  completo. De modo algum ele fará isso! Pode esta colocando a vida da pessoa em  perigo.  Da mesma forma, o filósofo clínico pesquisará as variáveis associadas para ter  um parecer.  Em clínica, no entanto, encontramos peculiaridades que quero mencionar.  Por exemplo, muitas vezes não teremos objetividade em caracterizar o Assunto  Imediato ou não saberemos exatamente qual o Assunto Último. Isso pode acontecer.  Nem por isso há impedimento ao nosso trabalho, pois pode estar aí a própria questão a ser trabalhada, ou pode estar implícito no processo que seja esta a condição para a atividade clínica.  Bem, seguindo então.  Mesmo que não haja um Assunto Imediato, o que é raro, em seguida o filósofo deve continuar o estudo que localizará existencialmente a pessoa. Vocês ouviram bem o que eu disse: um estudo que localizará existencialmente a  pessoa.

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Outra característica do aprendiz é entender o que quer entender, e não o que a  pessoa está tentando transmitir!  Não é uma regra, evidente.  É fundamental que o filósofo compreenda esta urgência! Constata-se uma tendência inicial forte ao que é parecido a uma mutilação existencial da pessoa por parte do clínico, o que é lamentável, lamentável, lamentável. O que é bom é que em pouco tempo de prática clínica isso se desfaz. Vamos então às considerações de dificuldades típicas logo ao início do trabalho em clínica.  Acompanhe:

 . Esqueço de minha vida.  . Algo se abre em minha alma.  . E fico triste.  . Eu choro muito.  A pessoa chega trazendo algo (Assunto Imediato) que em nada pode ter relação com o que de fato será trabalhado (Assunto Último). Esse algo vem solto, com saltos temporais, lógicos, sem contexto profundo.   Dependendo da intensidade, emoção, coerência, seqüência, situação, interseção, momento, eloqüência com que isso é colocado, é tranqüilo que o aprendiz  afoito se deixará levar no redemoinho do qual depois dificilmente sairá.  É perfeitamente natural que o iniciante ache difícil acreditar que as queixas chorosas da pessoa, muitas vezes realmente penosas, possam ter um nada a ver com o que se trabalhará em clínica a seguir.

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 A segunda categoria é a Circunstância, o somatório de singularidades que acompanham uma situação.

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 Aqui levanta-se as variáveis pertinentes, próximas e longínquas, tudo o que o clínico julga necessário para situar a pessoa dentro de um quadro mais nítido, como se de linhas gerais chegassem a uma representação mais minuciosa e precisa.  No caso de Dora, quais são essas variáveis?  A situação das crianças de rua em Salvador, o modo de interação social, a relação que se estabelece entre os menores de rua, o histórico pessoal da menina, as  possibilidades que a sociedade lhe oferece, os costumes do povo, as condições de vida e tantas outras. Quando consideramos um peixinho em um aquário, examinamos desde sua coloração até o próprio vidro das paredes (mas cada clínico indicará o que para ele é importante dentro de seu modo de mensurar e representar o mundo). O resultado desta leitura interpretativa significará interseção maior ou menor. Uma leitura incompleta, confusa ou alheia completamente à leitura realizada pela pessoa pode deixar o pesquisador sem pontos de interseção; é fundamental que as invenções e descobertas sejam compartilhadas.  Atenção a alguns critérios fundamentais!  É fundamental que essa narrativa comece a partir do nascimento da pessoa ou de sua recordação ou notícia mais distante, no que se refere à própria vida.  Em geral, pergunto sobre onde nasceu, o que faziam seus pais, como era a época ou a localidade. No instante em que a pessoa entende, à maneira dela, que estou interessado em sua história e aí começa por contá-la, passo imediatamente a fazer o que chamo de Agendamento Mínimo: faço indagações como ‘e então, o que houve?; e a partir daí?; como segue sua história a partir deste momento?; continue, por favor; e como segue isso?; continuando o seu relato; qual a seqüência disso?; dando seguimento; e assim; e então; e depois; e continuando isso; e logo em seguida; me conte um pouco mais; quero entender melhor isso; me conte mais a respeito; siga contando; estou seguindo com você, continue; daquele momento em diante; etc etc’.

 Sabe qual é o motivo com tais termos? Quero que a pessoa me conte a história dela, por ela mesma, de modo ordenado (princípio, meio e fim), sistematizado (onde o subseqüente tenha vinculação direta ao antecedente), sem saltos temporais (0,1,2,3,4,...5,...45 anos) e com mínimo de interferência do filósofo.   É um eufemismo falar em Agendamento Mínimo após pedir à pessoa um histórico assim sistematizado...!

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  Se, por exemplo, deixasse à pessoa que ela me desse qualquer tipo de manifestação desde o princípio, teria um histórico (se e quando houvesse) repleto de saltos, omissões, enredamentos confusos que provavelmente me colocariam à margem de minha terapêutica.  No entanto, há vezes em que a pessoa me chega em tal estado existencial que não tenho melhor escolha a não ser deixar que se expresse conforme a confissão e o tumulto que a habita. Mais tarde estudaremos na Esteticidade como isso é processado em clínica.  Por agora, importa o fato de que ao me contar sua versão existencial por si  mesma seguindo uma orientação cronológica, a pessoa tem a chance de colocar seu  Assunto Imediato em um contexto do qual certamente é parte, tem a oportunidade de  fazer uma interpretação ordenada e sistemática de sua própria vida, e fornece ao  filósofo a possibilidade de entender, via interseção, mais completamente a pessoa que com ele trabalha. O filósofo precisará de talvez duas ou três consultas, é comum, para que isso se  processe: o exame da categoria Circunstância.  Acredito que você encontra desde gente monossilábica até a mais verborrágica.  A prática clínica ensinará a você como lidar com tais pessoas. Cabe perguntar se ao pedir à pessoa para me relatar sua história ordenadamente, sem saltos temporais, não estou fazendo a priori uma intervenção clínica.  A minha resposta a isso é afirmativa.  Até onde estudei a respeito em minha vida, desconheço um modo clínico de ser  que desdenhe da interseção. Aliás, acho isso impossível. O que pretendo aqui não é uma espécie de redução em Husserl, mas sim um   Agendamento Mínimo que me dê referenciais mais ou menos seguros de modo a iniciar a minha atividade clínica.  Na verdade, no instante em que a pessoa pensa em me procurar para realizar  um trabalho em Filosofia Clínica, já há implícito, um agendamento; o segundo ocorre quando temos contato: o ambiente do consultório em suas disposições, meu modo de vestir e de ser como sou, o clima, a época, enfim...desde muito cedo, a clínica inicia com milhões de agendamentos aos quais não quero aumentar de outros milhões.  Então, de tudo o que aprendi em minha vida desde as psicologias e a psicanálise, acredito que os exames categoriais são um ótimo começo clínico. Observe que o que a pessoa relatar é uma interpretação dela sobre o que vivenciou - e isso é de fato muito diferente do que deve ter mesmo acontecido. Isso  pode ter uma importância decisiva ou nenhuma importância, mas até aqui o que pode o filósofo afirmar?  Normalmente também há pequenos saltos inevitáveis: a pessoa pula dos dez   para os dezoito anos, depois fala ordenadamente, ano a ano, até os vinte e cinco, quando então há mais um salto até os trinta etc.  Minha sugestão é que você permita ao menos este tipo de salto temporal, mas em hipótese alguma permita algo como um ‘efeito pipoca’: 1,2,4,6, depois 2 de novo, aí 20, e então 15,14,13 e direto para os 40 etc...  Pense comigo uma coisa: que tal se eu lhe contasse, logo no seu primeiro contato com a história da humanidade, mais ou menos, que neste século tivemos duas  grandes guerras; em seguida lhe dou dezenas de dados e situações avulsas, aleatórias, desses dois embates, depois vou ao Renascimento e ao movimento romântico nas artes,

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não sem antes contar de quando os homens desceram das árvores e depois criaram a agricultura; a tudo isso, trato de, volta e meia, divagar sobre as religiões animistas, e encerro com um marxismo eclético e confuso que serve como desculpa às ansiedades que me habitam etc etc. Dou saltos temporais (e de raciocínios) que tornam minha história tão compreensível quanto compreende uma criança de três anos que se meta a estudar a matemática de Georg Cantor. Que tal?  Por mais pobre e lacônica que seja a história da pessoa, o filósofo deve ajudála a contar de um modo que seja compreensível a ambos.  Através disso, o filósofo fará um estudo sobre algumas possibilidades iniciais em clínica, saberá se a pessoa precisa procurar um psiquiatra, um neurologista, um clínico geral, conhecerá seu passado médico, social, pessoal etc. Terá alguns  parâmetros que lhe darão uma base mais segura para iniciar a clínica.  Pois bem, mas o que fazer com os saltos temporais inevitáveis.  Por exemplo: a pessoa pode não se recordar de coisa alguma na fase que vai  dos vinte aos vinte e cinco anos.  Em tal caso, a primeira recomendação é entender que isso não é um vácuo; é  algo que está ali por uma razão qualquer. A pessoa pode ter esquecido um fato como sua maneira íntima de lidar com algo que lhe é insuportável lembrar. Ou seja, é esse o modo como ela resolveu, bem ou mal, o que a afligia! Um filósofo desavisado pode achar por bem trabalhar isso, sem os demais exames categoriais e a montagem da  Estrutura de Pensamento da pessoa, e, fazendo isso, provocar danos de fato até muito, muito graves mesmo. Havendo muitos saltos no histórico da pessoa, o clínico pode usar a Divisão (não como submodo, mas como instrumento de coletar os exames categoriais).  Assim, dos 25 aos 30 anos, promove-se novamente um histórico nos mesmos moldes que fizemos até aqui: Agendamentos Mínimos e evitando os saltos temporais.   Se a pessoa apresentar movimentos de aversão, nesta parte, pare imediatamente, e se dê por satisfeito, em caráter provisório, com o material colhido.  Anote o que houve e siga adiante. Mais tarde, na Esteticidade, você aprenderá melhor  a lidar com isso. Quero que você anote também o quanto é comum a pessoa se sentir  subjetivamente bem, confortada, após a apuração destas duas primeiras categorias por   parte do filósofo; e, além disso, observe com atenção a abundância de dados que começam a surgir de uma consulta para a seguinte. A pessoa traz mais e mais material, afirma que se lembrou de coisas que nem imaginava terem lhe acontecido etc. Isso é bem comum. Mas se a quantidade de novos dados for de fato enorme,   proceda ordenadamente e novamente cuidando os saltos temporais: “muito bem, conte-me a partir daqui” - você pode dizer e retomar então sistematicamente o  processo. Observe que este início da Filosofia Clínica via logicismo formal, em minha opinião, é árido quando comparado à plasticidade e riqueza que encontraremos em seguida na Esteticidade.  Há obviamente aqui um excesso de cuidados.  Acho que é assim que precisa ser, especialmente porque a filosofia acadêmica   parece ensinar à larga a fazer metafísicas que são deliciosas enquanto poesia  filosófica, mas podem ocasionar seqüelas graves se aplicadas à clínica sem critérios e sem um trabalho prévio prático e experimental.

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  Em algum tempo próximo, os filósofos clínicos terão uma prática clínica considerável o suficiente para que possam iniciar o exercício da Filosofia Clínica diretamente pela Esteticidade, pela Somaticidade e, talvez, mostrarão o caminho para essas e outras profundidades.  Mas por enquanto isso ainda não nos é possível ética e clinicamente; os riscos são maiores que os benefícios. Uma aluna de São Paulo me perguntou por que não pode o filósofo clínico, logo no início da terapia, permitir a livre expressão, em qualquer ordem temporal ou de raciocínio, por parte da pessoa, como preconizam algumas escolas analíticas. Ou seja, a pessoa chega e vai expressando o que lhe ocorre no momento conforme o que vai vivendo.  A resposta a isso é muito tranqüila. a. A pessoa pode estar trazendo Assuntos Imediatos, sucessivos, “sintomas”, temas que podem ocupar meses de terapia. b. A EP que se pesquisará em tal caso será caótica, superficial e parecerá muitas vezes absurda. Basta que o filósofo tente usar um ‘Em Direção ao Desfecho’ e logo terá a sensação de estar lidando com um marciano... c. Ainda que o material trazido pela pessoa seja recorrente (Paixão  Dominante), seja reiteradamente dito por ela como fundamental, ainda assim pode ser  uma Armadilha Conceitual ou ter uma importância muito pequena na malha intelectiva quando feita a Autogenia. Ou seja, em relação aos demais tópicos pode ter  uma importância estrutural subjetiva mínima. d. A clínica poderá ser toda realizada em torno de choques periféricos de tópicos da Estrutura que pouco afetam os choques determinantes.  ...e ainda há outras razões que podem ter conseqüências graves conforme as especificidades do caso. Por exemplo, em desordens médicas crônicas às quais o  filósofo sequer tem habilitação legal para lidar em clínica.  Bem, vamos seguir com os exames categoriais.   É bobagem achar que a pessoa começará a se recordar de coisas horríveis, traumas imensos, dores etc... isso até pode ocorrer, conforme a pessoa se estruturou. Uns consideram as tristezas da vida algo que deve ser deixado longe da luz, outros apreciam revivê-las, outros ainda nem apreciam mas sentem que devem fazê-lo e então o fazem etc etc etc. É necessário conhecer intimamente a Estrutura de Pensamento da  pessoa para saber se é necessário mexer no que está cicatrizado ou não. A priori eu não sei afirmar nada sobre isso.   Enquanto você vai tendo maior familiaridade ao modo como a pessoa se estruturou, recebe de maneira que me parece generosa as três categorias restantes.

#19  A terceira categoria, Lugar: especificamente, mensuramos como a pessoa se sente (portanto, suas sensações) e o que pensa (portanto, a representação mental, intelectiva, que criou para si mesma) a propósito do ambiente onde está inserida.

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  Para mensurar com maior propriedade, no espaço de interseção, é fundamental  recordar que o corpo é o modo de ser no mundo da pessoa; alguém distraído de sua corporeidade terá problemas na pesquisa dos movimentos inversivos.   Maurice Merleau-Ponty, em sua Fenomenologia da Percepção, realiza uma importante explanação: “Estamos habituados pela tradição cartesiana, a nos desprendermos do objeto: a atitude reflexiva  purifica simultaneamente a noção comum do corpo e da alma definindo o corpo como uma soma de  partes sem interior e a alma como um ser presente inteiramente em si mesmo sem distância. Estas definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: transparência de um objeto sem ondulações, transparência de um sujeito que só é o que pensa ser. O objeto é objeto de um lado a outro e a consciência de um lado a outro. Há dois sentidos, e somente dois, da palavra existir: existe-se como coisa ou existe-se como consciência. A experiência do corpo próprio, pelo contrário, nos revela um modo de existência ambíguo. Se tento pensá-lo como um feixe de processos na terceira pessoa - visão, motricidade, sexualidade - percebo que estas “funções” não podem estar unidas entre si e ao mundo exterior por relações de causalidade, elas são todas confusamente retomadas, e implicadas num drama único. O corpo não é pois um objeto. Pela mesma razão a consciência que tenho não é um pensamento, quer dizer que não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma idéia clara. Sua unidade é sempre implícita e confusa. Ele é sempre outra coisa além do que é, sempre sexualidade ao mesmo tempo que liberdade, enraizando na cultura, no momento em que se transforma pela cultura, nunca fechando sobre si mesmo, e nunca ultrapassando. Se se trata do corpo de outro ou de outro ou de meu  próprio corpo, não tenho meio de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, quer dizer, retomar por  minha conta o drama que o atravessa e me confundir com ele. Sou pois meu corpo, ao menos em toda a medida em que tenho uma aquisição e reciprocamente meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do corpo próprio se opõe ao movimento reflexivo que liberta o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que só nos dá o pensamento do corpo ou o corpo em idéia e não a experiência do corpo ou o corpo na realidade...O corpo próprio está no mundo como o coração no organismo: ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, ele o anima e o nutre interiormente, forma com ele um sistema... Do ponto de vista de meu corpo não vejo nunca igualmente as seis faces de um cubo, mesmo se ele for de vidro, e entretanto a palavra “cubo” tem um sentido, o próprio cubo, o cubo verdadeiro, além de suas aparências sensíveis, tem suas seis faces iguais. Na medida em que rodo em torno dele, vejo a face frontal, que era um quadrado, se deformar, depois desaparecer, enquanto os outros lados aparecem e tornam-se cada um por sua vez quadrados... E mesmo, para que meu passeio em torno do cubo motive o  julgamento “eis um cubo”, é necessário que meus deslocamentos estejam eles mesmos localizados no espaço objetivo e, longe da experiência do movimento próprio, condicionar a posição de um objeto, é ,  pelo contrário, pensando em meu próprio corpo como um objeto móvel que posso decifrar a aparência  perceptiva e construir o cubo verdadeiro... O objeto e meu corpo formariam um sistema, mas tratar-se-ía de um feixe de correlações objetivas e não de um conjunto de correspondências vividas...

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A análise reflexiva substituí a existência absoluta do objeto pelo pensamento de um objeto absoluto, e querendo ultrapassar o objeto, o pensar sem ponto de vista, ela destrói sua estrutura interna. Se há para mim um cubo de seis faces iguais e se posso reunir o objeto, não é que o constitua do interior: é porque penetro na densidade do mundo pela experiência perceptiva. O cubo com seis faces iguais é a idéia-limite pela qual exprimo a existência carnal do cubo que está aí, sob meus olhos, sob minhas mãos, em sua evidência perceptiva... A coisa e o mundo me são dados com as partes do meu corpo, não por uma “geometria natural”, mas numa conexão viva comparável ou mais certamente idêntica aquela que existe entre as partes de meu  próprio corpo. A percepção exterior e a percepção do corpo próprio variam juntas porque são as duas faces de um mesmo ato... Toda a percepção exterior é imediatamente sinônimo de uma certa percepção de meu corpo, como toda percepção de meu corpo se explicita na linguagem da percepção exterior... Reaprendemos a sentir nosso corpo, reencontramos no saber objetivo e distante do corpo este outro saber que temos dele porque ele está sempre conosco. Vai ser necessário da mesma maneira despertar a experiência do mundo tal como nos parece enquanto estamos no mundo por nosso corpo. Mas retomando contato assim com o corpo e com o mundo, somos também nós mesmos que iremos encontrar,  pois, se percebe com seu corpo, o corpo é um eu natural, é como sujeito da percepção.”

 Merleau-Ponty mostra o corpo como uma atividade expressiva que precisa ser  vivida para dar conhecimento a um sentido. Nós vivemos nas coisas e nas idéias; estamos no corpo enquanto tocamos os objetos e os habitamos. Toda a forma de expressão, de relação, tudo o que posso querer, ser ou estar, tudo o que me faz ser no mundo está vinculado ao meu corpo.  As maneiras inversivas que pesquisamos nos submodos mostram a qualidade desta relação. Quando o filósofo estiver pesquisando a categoria Lugar (formações do intelecto e sensações relacionadas ao meio onde a pessoa vive) deve considerar que o corpo da pessoa é o somatório de seus modos de existência. Então, em conformação com a interseção estabelecida, o clínico pode constatar se a pessoa se move com liberdade ou com dificuldade de expressão, se apresenta um corpo devastado por  moléstia e ocupações da mente com assuntos polutos, se há confirmação do corpo às assertivas verbais, qual a qualidade da relação com o ambiente; enfim, se é onde a alma está encarcerada (Platão) ou se é justamente o meio que nos liberta para a confortável alegria de apenas viver. Complementando Merleau-Ponty, Michel Serres escreve em “O Contrato  Natural”  :“...recente passagem do local ao global e à relação renovada que de agora em diante mantemos

com o mundo, outrora nosso senhor e, não faz muito, nosso escravo, sempre, em todo caso, nosso hospedeiro, agora nosso simbiota. Volta à natureza! Isso significa: ao contrato exclusivamente social juntar o estabelecimento de um contrato natural de simbiose e de reciprocidade onde a nossa relação com as coisas deixaria domínio e  posse pela escuta admirativa, pela reciprocidade, pela contemplação e pelo respeito, onde o conhecimento não mais suportaria a propriedade nem a ação a dominação, nem, estas os seus resultados ou condições estercorárias. Contrato de armistício na guerra objetiva, contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do hospedeiro, enquanto o parasita - nosso estatuto atual - condena à morte aquele que pilha e que habita sem tomar consciência de que no final condena-se a desaparecer... ..., o direito de simbiose se define por reciprocidade: o que a natureza dá ao homem é o que ele deve restituir a ela, transformada em sujeito de direito. ... Em que linguagem falam as coisas do mundo, para que possamos nos entender com elas por  contrato? ... A Terra, na verdade, nos fala em termos de forças, de ligações e de interações, o que basta  para fazer um contrato. Cada um dos parceiros em simbiose deve, de direito, a vida ao outro, sob pena de morte. Tudo isso permaneceria como letra morta senão se inventasse um novo homem político.”

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Pesquisa em aula: 1. Considere inversamente seu corpo. Considere descritivo o que tem vivenciado enquanto corpo, enquanto bodymind. 2. Existe em minha representação bom e mau, bem e mal, certo e errado?  Em nossas aulas praticaremos com toda a freqüência os procedimentos médicos de Moshe Feldenkrais. O intuito é aprimorar a leitura não-verbal que já fazemos informalmente e desenvolver de modo agradável o exercício de nossa condição de  primatas, tão esquecida nos meios acadêmicos.  Lugar: é o modo sensorial de ser da pessoa em cada endereço da categoria anterior, Circunstância. Quando menciono o termo sensorial estou me referindo a tudo o que a pessoa vivencia que está diretamente associado aos sentidos e as vivências proprioceptivas (que é como designa o fisiologista Shenington a certas percepções internas). Cuide que se você perguntar à pessoa como ela se sentia, como via, como estava em sua própria pele, o que ouvia e degustava, o que seu estômago digeria das palavras da família, e tantas coisas assim, bem, você estará agendando indevidamente termos e direcionando o processo de modo pouco recomendado.   Deixe à pessoa a tarefa de expressar o que vivenciou e o que deixou de vivenciar sensorialmente, por favor! Nesta parte de nossos estudos, não diga a ela o que ela vivenciou...!Deixe que a pessoa diga.  Bom, vamos especificar.  A pessoa pode contar que a fase mais maravilhosa da vida dela, por exemplo,  foi quando “aos vinte anos eu senti a qualidade inebriante da atmosfera inefável do mar em sua abrupta e sublime luminosidade acalentando o vão das brumas que,  perdidas no tempo, iam e vinham como em um indizível habitar de tons e sons cuja característica é um ser que não se dá a conhecer.”  Curioso, hein?  Mas quero muito perguntar uma coisa aqui, antes de tudo: esta pessoa pode estar mencionando abstrações enquanto vivencia dados sensoriais?  Entenderam?   Será que ela pode falar do indizível, do inebriante e do inefável enquanto intimamente vivencia um gostoso banho de mar?!   Algo que poderia certamente desnortear o filósofo clínico levando-o a crer  tratar-se de uma pessoa muito abstrata e pouco sensorial...! Que tal?  A resposta é afirmativa.  Isso porque pode existir dissociação ou outra estranha forma de relação entre o que é expresso e o que é sentido daquilo que é expresso. Da mesma maneira, em sentido inverso, alguém pode falar em ver a face de Deus sem ter qualquer registro sensorial disso por ser cego de nascença e por ter a palavra ver como um hábito para os momentos de abstração alta...

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 Basta que o filósofo use os passos da Desconstrução e tudo isso ficará tranqüilo como água de poço e claro como o sol dos pampas ao meio-dia.  Além disso, a categoria Lugar não é considerada isoladamente, o que seria um erro clínico grave.  Em conformação às demais categorias bem cedo se torna evidente ao filósofo o que de fato acontece, pode estar certo! Mas também é comum existir uma correspondência freqüente sobre tais dados; palavras, termos, expressões físicas etc que se referem diretamente aos sentidos tendem a remeter a isso mesmo, embora seja bom estar atento às exceções.  A categoria Lugar informará o quanto de sua somaticidade a pessoa viveu em cada época de sua vida e em cada situação que tenha importância pesquisar melhor.  Às vezes a pessoa pode ter aprendido a viajar longe em idéias complexas sempre que houve uma ameaça de perder o amor de alguém querido em sua vida, assim conseguiu se solucionar em sua dor de modo muito eficaz. Outras vezes vamos descobrir indivíduos que sofreram sensorialmente suas idéias complexas ; por  exemplo, a cada queda na bolsa de valores o sujeito ameaça infartar. Talvez uma outra criatura tenha aprendido a amar sensorialmente sua mulher e no entanto não consegue expressar em termos tal vivência ao filósofo, o que pode levar este a considerar a abstração onde existiu um forte dado sensorial. Enfim, vão às centenas as exemplificações. Quero muito que você saiba que isso existe!

#20 Tempo, a quarta categoria. Interessa saber qual o relacionamento entre o tempo convencionado (afixado no relógio) e o tempo subjetivo. Em seu escrito Três  Diálogos Entre Hilas e Filonous, no primeiro diálogo, Berkeley expõe: muito rápido?

“F. Um movimento real num corpo externo poderá ser ao mesmo tempo muito lento e

H. Não, não pode. F...,um corpo que percorre uma milha em uma hora está animado de um movimento três vezes mais rápido do que se percorresse uma milha durante três horas. H. Concordo convosco. F. E não será verdade que o Tempo é medido pela sucessão das idéias na nossa mente? H. Assim é. F. E não seria acaso coisa possível que as idéias se sucedessem na vossa mente duas vezes mais rápidas que na minha própria, ou na de algum espírito de outra espécie que nós? F. A uma outra pessoa, por conseguinte, pode parecer que o mesmíssimo corpo realiza o  percurso de certo espaço em metade do tempo que vos parece a vós. E para outra relação qualquer o mesmo raciocínio seria válido. Quer isso dizer: pelos vossos princípios (admitindo que os movimentos   perpecionados existem ambos no próprio objeto), é possível que um só e mesmo corpo se mova realmente ao mesmo tempo com muita rapidez e com muito vagar.”

  É fato comum constatar que para alguns a vida passa com muita pressa, enquanto a outros ela transcorre serena e parece sempre em atraso. O tempo realmente considerável é o que a pessoa tem representado em si mesma. “Tu tá gozada”, disse Pedro Bala; usou o presente do indicativo para expressar  que achava isso no momento em que falava: o presente.

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Cuidando o tempo verbal utilizado sabemos onde localizar a ação, os  fenômenos ou estados: presente (enquanto falo), pretérito (antes do que estou falando) e futuro (após falar). Também o modo verbal é importante: as formas que o verbo assume para expressar a atitude do falante em relação ao fato. “Posso fazer outras coisas”, afirma Dora de forma categórica (Modo  Indicativo). “Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?, disse Pedro Bala exprimindo algo condicionado ou hipotético (Modo Subjuntivo). O modo Imperativo refere-se a uma ordem ou súplica: “Aproxima-te de mim”.  Podemos saber também pelo verbo se uma pessoa pratica ou sofre uma ação. “A moça beijou o rapaz.” Na voz Ativa o sujeito pratica a ação. “O rapaz foi beijado pela moça. Na voz Passiva o sujeito sofre a ação. “A moça felicitou-se”. Na voz Reflexiva o sujeito pratica e sofre a ação.  Para o nosso trabalho cabe lembrar também o Infinitivo Impessoal: ‘Vamos deixar disso’; ‘Amar’; ‘O viver em paz’. A ação é manifestada de maneira indeterminada, sem definição precisa de tempo e sujeito. Quando alguém afirma: ‘eu amei muito’, a pessoa dá contas de uma elaboração mental onde as sensações e o intelecto combinaram juízos de tal ordem que ela assim concluiu.  Eu - o sujeito. amei - pretérito perfeito; indica ação consumada. Portanto, a pessoa não ama agora o que amou. muito - palavra que nos indica a alta intensidade. “Depois que a minha filha caçula casou a casa ficou vazia. E nós perdemos o ar saudável da vida”, confessa certa pessoa.  Ao usar o pretérito para comunicar o Assunto, entendo por isso o forte vínculo que essa pessoa estabelece com o passado. Em outra pessoa, o vínculo pode dar-se no   futuro: ‘Quando a minha filha casar a casa ficará vazia. E nós perderemos o ar  saudável da vida’.

 Pesquisa de aula: Vamos exercitar alguns jogos lingüísticos de utilidade em nosso trabalho clínico. 1. Traduza em direção a maior distância das sensações simples e depois em direção a menor distância o poema chamado Tempo, de Mario Quintana. “O despertador é um objeto.  Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem nós, para não parar. E todas as manhãs nos chama freneticamente como um velho paralítico a tocar a campainha atroz.

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 Nós é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de rodas.  Nós, os seus escravos. Só os poetas os amantes os bêbados  podem fugir   por instantes ao Velho...Mas que raiva impotente dá no Velho quando encontra crianças a brincar de roda e não há outro jeito senão desviar delas a sua cadeira de rodas! Porque elas, simplesmente, o ignoram...”

2. Expresse a velocidade subjetiva do tempo em relação a você (ele é veloz, lento, variável) usando somente orações com ‘discursos completos’. 3. A carta, a seguir, de A.S.Neill, grande mestre da Summerhill School, foi  remetida a Bertrand Russell, seu amigo, quando ambos tentavam manter um professor   francês em sua escola na Inglaterra, perseguido por problemas de imigração. “Caro Russell: não, é inútil responder às pessoas. Muito provavelmente o principal objetivo das repartições do governo é salvar o prestígio dos funcionários. Se mais tarde meu professor quiser continuar, posso arranjar a coisa fazendo-o investir algum dinheiro na escola de modo que continue a ensinar como EMPREGADOR de mão-de-obra. Seja como for, você já fez muito. Muito obrigado. Penso que na  próxima vez votarei nos conservadores! Recebi hoje uma carta da viúva de Norman Macmun. Ela parece estar sem dinheiro e me pede um emprego de zeladora. Não posso dar-lhe um e acho que você também não pode. Aconselhei-a a recorrer aos nossos amigos milionários em Dartington Hall. Sempre mando para lá os necessitados... mas nem por isso deixo de odiar aquela gente por causa da riqueza dela. Quando Elmhirst precisa de uma nova ala passa um cheque para Heals... Heals! E eu aqui sem saber como arranjar dinheiro para levantar  um galpão de tijolo. O pioneirismo é um fracasso completo, meu caro. Estou cansado de pôr em ordem a trapalhada que os pais fazem. Atualmente tenho um garoto de seis anos que caga nas calças seis vezes  por dia... a mamãezinha dele “curou-o” obrigando-o a comer a merda. Não conto com a gratidão de ninguém... quando, após anos de esforços, eu curar esse rapazinho, a mãe irá então mandá-lo para uma “boa” escola. Não vale a pena... indiferença oficial ou inimizade potencial, ciúme dos pais... a única alegria está nos próprios garotos. Um dia acabo com tudo isso e monto um bonito hotel nos arredores de Salisburgo. Você está vendo que eu estou um pouco chateado esta manhã. Gostaria de me encontrar  novamente com você e conversar um bocado. Hoje minha Stimmung se deve em parte à notícia de outro calote... ao todo 150 libras no ano passado. Tudo isso de pais cujos problemas eu minorei. Seu

A.S.Neill”

a. Qual o Assunto imediato? b. A partir de uma carta onde um professor escreve de seu íntimo a um amigo,  posso conjeturar sobre o Assunto Último? c. Cuidando os tempos verbais podemos saber onde Neill está focando sua atenção? d. Acordante com as vozes verbais (ativa, passiva, e reflexiva), o professor   parece propenso a atuar ou a sofrer a atuação de terceiros, segundo a representação dele? e. Podemos afirmar algo sobre a Circunstância?

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 f. A terceira categoria, Lugar, explora as sensações e as formações do intelecto a propósito de seu ambiente. O que conseguimos averiguar sobre as sensações que  Neill possui naquele momento? (Procura-se aqui as palavras ligadas diretamente aos sentidos e o que a elas se relaciona. Exemplo: “Você está vendo...”, no último  parágrafo).  E quanto aos raciocínios que expressa? O que podemos considerar disso em relação ao lugar onde está o professor?

 A quarta categoria chama-se Tempo.  A categoria Tempo também deve ser tomada associada às demais, é bem certo que sim. Ela informa como a pessoa relaciona seu código temporal interno em direção ao tempo convencionado na sociedade humana, o tempo que é marcado pelo tic-tac do nosso relógio. Você poderá constatar coisas realmente lindas sobre isso. O indivíduo dificilmente tem um tempo subjetivo linear, atômico, certinho como o compasso de um relógio! Quase nunca é assim. Em geral, há partes de sua história em que houve um grande vagar, outras em que a velocidade fez com que  pensasse que a vida duraria só alguns minutos; você poderá ainda verificar algumas confusões temporais e modificações que os próprios relatos providenciarão. Conforme cada sujeito, um período de tristezas pode ter a duração subjetiva de um século ou de apenas quinze minutos; há quem tenha relatos extensos sobre   pequenas passagens e também narrativas breves para décadas inteiras de vida. Há quem tenha estruturado a vida de modo a passar rapidamente. O tempo em clínica é  tão plástico que você perceberá o quanto é difícil afirmar que ele é igual para todos,   pois além do tempo convencionado no relógio há enormes diferenças. Note, por  exemplo, afirmações como “a vida é breve; você é ainda criança, tem muito tempo  para aprender; o tempo se esvai pelos dedos como a água; a vida é como um sopro, quando se percebe ela já passou; entre a vida e a morte sempre há muito tempo; o tempo é uma ilusão; o tempo é uma realidade; as coisas acontecem muito depressa; nossa, como as coisas passam devagar!; o mundo dá voltas muito lentamente; etc etc”.  São muitos os referenciais a respeito do tempo: os tempos verbais, a distância entre os eventos, o modo como são descritas as ações, a duração, a extensão de um  fato, as correlações simultâneas e tantos mais.

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O filósofo constatará que um indivíduo teve uma infância longa, em que a  pessoa vivenciou sensorialmente o carinho de seus amigos e adquiriu uma concepção esperançosa sobre a vida em geral que se desenvolveu e hoje é determinante em sua existência. Constatará também centenas de outras variações que lhe exibirão cada vez  mais o quanto o ser humano se constrói em si mesmo. A estruturação temporal de cada pessoa difere da convenção temporal de uma sociedade.  Alguns indivíduos têm especificado, tão exatamente como evolui a marcação em uma régua, o momento de casar, de ter filhos, de viver, de morrer... outros não associam tais compromissos ao tempo, mas usam uma espécie de escala que identifica o que aprenderam de bom em cada etapa de vida; para ainda outros, o tempo parece não ter importância alguma. Apenas vivem e isso parece bastar. Há infindáveis maneiras de mensurar e de entender e de vivenciar o tempo. Acredito que não exista uma única maneira da pessoa vivenciar a temporalidade de modo estático ao longo da vida; acho que na mesma pessoa o tempo conhece evoluções e involuções acordantes com as demais categorias. Há de fato uma mobilidade contínua.

#21  A quinta categoria é denominada Relação: o comportar-se de determinada maneira em referência a alguma coisa, segundo Aristóteles. Para efeito de nosso estudo, a relação é a qualidade estabelecida quando da interseção.  A relação é uma especialização dos jogos comunicativos. Em sua relação com os meninos de rua, Dora mantinha uma atitude maternal, a não ser quanto a Pedro  Bala, por quem sentia um amor de outra natureza.  Em conformação com o Lugar, Tempo e Circunstância, a Relação é sempre específica e individual. Se Dora acabasse em um orfanato e fosse adotada por uma  família abastada, todo o jogo comunicativo usado por ela sofreria modificações porque a forma de relacionamento possível seria então diversa.

Como de resto, e um tanto mais aqui, é ‘a medida de todas as coisas’ do  pesquisador que afirmará, através da interseção, o modo como se comporta a pessoa em relação ao que se quer considerar. Um filósofo especialista em K. Kautsky fará com toda a certeza uma leitura diferente a de um colega seu que tenha uma formação estruturalista em Lacan, por exemplo. A leitura mostrará a representação do mundo.  Dora terá talvez uma relação: de dependência, tribal, de mútuo apoio, de poder etc...  Agora então quero ir mais fundo.

Filosofia Clínica – Instituto Packter 

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 Aprendemos, em resumo, que ao viver cada pessoa cria um modo íntimo de se relacionar com as coisas, o que inclui a relação com ela mesma.  A isso chamamos representação (Schopenhauer). Conforme a representação que desenvolveu, que pode também ser chamada de o modo de ser da pessoa no mundo, ela mensura e vivencia o que se lhe apresenta nas contingências e no devir da existência.  Eu devo colher um bom material sobre como a pessoa se desenvolveu, quais as diretrizes, quais as nuanças que lhe guiaram ou foram por ela guiadas, quais os   fatores determinantes em sua vida (emoção, pré-juízos, dados axiológicos etc) e também quais os pouco determinantes (emoção, pré-juízos, dados axiológicos etc) e qual a maneira de relação entre eles.  E como isso se processa, a priori, nós sabemos um mínimo.  É aqui então que vamos desenvolver nossa filosofia. Vamos adiante.  Em seguida, o filósofo precisa se situar em relação a pessoa, e ambos em uma amplidão ainda maior. Estou falando de contextos históricos, geográficos, temporais, circunstanciais, relacionais, de modo que a interseção (Cantor) se estabeleça com coerência e firmeza. Quando falo em interseção (Cantor) refiro-me à maneira como é e se desenvolve a relação entre as pessoas em questão: filósofo e pessoa.   Portanto, é evidente que tal qualidade orientará grande parte do trabalho clínico e que ela varia caso a caso. Imagino, por exemplo, que a qualidade da relação (interseção) que você tem com a sua mulher é diferente da que tem com a sua filha e da que tem com o seu bichinho de estimação, elas são diferentes e ocupam e determinam circunstâncias diferentes em você.  E então a última categoria: Relação.  A Relação identifica a qualidade de interseção entre o sujeito e o objeto, é bem simples.  Sujeito, a princípio, é a pessoa que nos procura e Objeto é tudo o que entra em relação com ela durante a pesquisa clínica. Além disso, podemos acrescentar que a  pessoa pode estar se relacionando consigo mesma, sendo então Sujeito e Objeto a um só tempo, como quando ela nos reporta a sensação de prazer que sente ao estar  sozinha e podendo se banhar em águas de cachoeira. Também a pessoa é Objeto se,  por exemplo, tomada em relação ao Sujeito que é filósofo clínico, vice-versa.  Na prática é algo facilmente identificável.  A pessoa, ao comentar sobre o marido ou a mulher, expõe uma relação SujeitoObjeto, cuja interseção será visitada pelo filósofo que a atende.  São muitas as maneiras de se identificar o Objeto: é aquele com quem o Sujeito se relaciona, o citado, o que entra em interseção, aquele a quem o Sujeito se refere etc.  Em casos rotineiros, assim se passa. Quando for confusa a identidade do Objeto, talvez seja oportuno saber porque isso ocorre. Talvez a pessoa esteja confusa quanto ao que vivencia, talvez o Objeto de relação seja apenas um coadjuvante ao Objeto que de fato importa e que não aparece.  Por exemplo: posso falar contra o casamento enquanto instituição, mas tenho em meu íntimo que isso é apenas uma resposta à péssima relação que venho mantendo com a minha esposa.

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