Uma versão resumida e ilustrada do livro "As Máscaras do Ateísmo"...
Contato com o autor:
[email protected]
CIP Brasil. Catalogação na Fonte. Câmara Brasileira do Livro, SP Freitas, André de Sousa. Filosofia, ciência e argumentação ateísta. 1ª Edição. São Paulo, 2011.
1. Filosofia e Teoria da Religião. 2. Apologética Cristã. 3. Ateísmo. I. Título. CDD210
Índice para catálogo sistemático: 1. Filosofia e Teoria da Religião 210
Última revisão: 21 de Julho de 2013.
Este livro é uma versão resumida e ilustrada da obra “As Máscaras do Ateísmo”, com 334 páginas do mesmo autor.
Todos os direitos reservados ao autor. Reproduções da obra poderão ser feitas, desde que citada a fonte (autor, ano, editora e local) e não destinadas a uso comercial. O uso comercial sem autorização expressa por escrito do autor, sujeitará o infrator nos termos da lei n. 6.895 de 17/12/1980, à penalidade prevista nos artigos 184 e 186 do código penal. Registrado na Fundação Biblioteca Nacional em 3 de Março de 2003, sob o número 370.829, livro 686, folha 489. “AS MÁSCARAS DO ATEÍSMO” - 2006SP_1258.
Sumário INTRODUÇÃO.........................................................................................................6 A MÁSCARA DA ERUDIÇÃO..................................................................................8 David Hume e o empirismo do séc. XVIII...............................................................................9 Friedrich Nietzsche e o Radicalismo do Séc. XIX................................................................13 Bertrand Russell e a Filosofia Analítica................................................................................18 Jean-Paul Sartre e o Existencialismo do Séc. XX................................................................22 Richard Dawkins e a nocividade da fé..................................................................................25 Tendências atuais.................................................................................................................28
AS MÁSCARAS DE CIÊNCIA................................................................................30 De Galileu a Einstein: a física contraria a fé?.......................................................................30 A Evolução das Espécies.....................................................................................................31 A Psicologia e a Fé...............................................................................................................37 A Cultura Cristã e as Ciências Sociais.................................................................................41 Confrontando a Fé com a História........................................................................................47
CONCLUSÃO........................................................................................................53
INTRODUÇÃO Ateísmo é a crença na inexistência de Deus. Os defensores dessa visão gostam de usar palavras sofisticadas e se valer de ideias filosóficas, fazendo com que as pessoas que estão tomando contato com essas ideias pela primeira vez fiquem com a impressão de que não podem combater tais pensamentos. Nesse primeiro contato, muitas pessoas religiosas sentem um duro golpe em suas convicções e somente depois de se refazerem é que começam a pensar em formas de defender sua crença na existência de Deus. As máscaras do ateísmo são os disfarces usados pelos ateus, disfarces esses que fazem com que seus argumentos se pareçam algo muito profundo e abrangente, que para serem compreendidos seja necessário conhecer muito de ciência e filosofia, quando na verdade não é bem assim, pois como veremos, em todas áreas da ciência e em várias formulações filosóficas, o ateísmo parte de um único e injustificável pressuposto: a incredulidade quanto ao sobrenatural. O pensamento ateu existe desde os tempos mais remotos. A formalização de seus argumentos, porém, pode ser estudado a partir dos pensadores gregos. O filósofo grego Epicuro (341270 a.C.) questiona, por exemplo, a origem dos males, já que Deus tem poder e desejo em eliminálos. Aristófanes (447385 a.C.) também aludiu a problemas na concepção do divino, quando alegou que mesmo nos seios dos deuses havia injustiça, já que o próprio Zeus, segundo a mitologia, teria destronado seu próprio pai. Com a difusão do cristianismo, a filosofia se amoldou aos princípios cristãos, e somente na renascença o ateísmo voltou a ter força no pensamento erudito. Na ciência, o desenvolvimento da mecânica e das leis físicas através das quais o movimento dos corpos podiam ser previstos, surgiu a ideia de que assim como no funcionamento dos sistemas celestes (planetas, estrelas e corpos celestes em geral em relação a seus movimentos), todo e qualquer movimento, até mesmo os movimentos produzidos pelo corpo humano, também seriam preditos por leis. Dessa forma, não existiria vontade, livrearbítrio ou sobrenatural, pois tudo seria explicado a partir das leis da física. Nesse ínterim, a filosofia materialista usurpou o status de regra de fé dos filósofos e cientistas: não existe sobrenatural, tudo o que há está na natureza (naturalismo), e todas as respostas estão na ciência (cientismo). O ateísmo dessa época considerava ser impossível acreditar no sobrenatural, ou seja, o povo só acreditava em Deus porque não conhecia ciência e filosofia de forma suficiente para saber que tal crença era absurda. O filósofo David Hume (17111776) argumentou contra a crença em milagres, alegando ser impossível para a mente humana aceitar o sobrenatural. Com o passar do tempo, surgiu a teoria da evolução das espécies, o que na
Uma máscara: a ocultação da face como símbolo da manipulação ideológica.
Busto de Epicuro.
5
opinião dos ateus fez diminuir ainda mais a possibilidade de se acreditar em Deus, particularmente na Bíblia. Nessa época, o determinismo (crença de que todo o futuro está previamente determinado e pode ser previsto pelas leis físicas) atingiu seu ponto máximo. Alguns filósofos como Nietzsche chegaram a dizer que a vontade era algo que não existia, era uma mera invenção humana que foi construída para culpar as pessoas e lhes condenar, mantendoas assim dominadas pelos sacerdotes de diversas religiões. O desenvolvimento das ciências sociais, da psicologia e da arqueologia também forneceram combustível para o ateísmo. Teorias sobre o surgimento das religiões foram construídas, bem como teorias sobre a criação da Bíblia, todas elas partindo do pressuposto da inexistência de Deus. Psicologistas escreveram sobre a religião como fruto da psique humana. A moral também não deixou de ser citada e justificada num cenário ateísta, e para isso filósofos existencialistas lançaram mão de sua erudição para mostrar que a ética não é um benefício produzido pela religião. Aliás, os mais recentes ataques contra as religiões seguem no sentido de dizer que as religiões destroem a ética, por perpetuarem erros do passado ao impor suas doutrinas e tradições formadas em épocas remotas. Se no início os ateus alegavam ser impossível para uma mente aberta acreditar em Deus, agora alegam que apesar de ser possível acreditar em Deus, essa crença é nociva, é responsável por muitos retrocessos e males na história da humanidade. Apesar disso, cada vez mais a ciência avança e o espaço para a crença ateísta se encolhe. A arqueologia moderna, apesar da insistência de alguns ateus em interpretarem as evidências de forma a contrariar o testemunho bíblico, expõe cada vez mais que a Bíblia é um livro verdadeiro em suas narrações, e lançando fora interpretações forçadas da Bíblia, não há qualquer evidência científica que a contrarie, o que faz com que ela seja cada vez mais acreditada nos mais altos círculos intelectuais. Ultimamente, evidências que sugerem a ação divina, como a impossibilidade da formação da matéria viva a partir da matéria morta, como algum testemunho de milagre ou como o surpreendente fato de o quanto nosso planeta é propício a vida, é contrariado pelos ateus com o uso da estatística, quando são obrigados a admitir o fato a partir de uma probabilidade ínfima, como alguém ganhar na loteria todas as vezes desde que existe loteria por pura sorte. Em breve, tais justificativas não poderão mais ser aceitas, e o ateísmo será desmascarado. Sem máscaras, ele não deixará de existir, mas mostrará sua verdadeira face, a face da contrariedade a Deus, do anticristianismo.
Nietzsche: o filósofo da morte de Deus.
Fóssil de um dinossauro. Descobertas científicas nem sempre se amoldam a crenças religiosas estabelecidas.
6
A MÁSCARA DA ERUDIÇÃO Nessa parte, conheceremos os pensamentos de alguns filósofos que os levaram a afirmar que Deus não existe. Como veremos, esses pensamentos são sempre falhos, seria sempre possível criar um raciocínio alternativo admitindo a existência de Deus. Filósofos: como construtores do pensamento erudito, podem influenciar toda uma sociedade.
7
DAVID HUME E O EMPIRISMO DO SÉC. XVIII David Hume (17111776) nasceu em Edimburgo, na Escócia. Foi filósofo e historiador, e é considerado um dos mais importantes nomes do iluminismo. Seu pai faleceu quando ele ainda era criança. Frequentou a universidade dedicando se à carreira jurídica, mas a abandonou entregandose a filosofia. Estudou, como autodidata na França, onde lançou o livro “Tratado da natureza humana”. Seu livro não foi apreciado na época, embora tenha sido considerado posteriormente como obra de significado excepcional para a filosofia. Foramlhe recusadas cadeiras nas universidades de Edimburgo e Glasgow, pela sua concepção ateísta da realidade. Hume trabalhou como psiquiatra e como secretário, teve fama de literário e historiador. Seu trabalho teve grande prestígio quando Immanuel Kant (17241804) afirmou que este o despertou do sono dogmático. Ensaio sobre o Entendimento Humano Esse livro foi lançado por Hume no ano de 1748, e nele Hume mostra seu pensamento sobre a origem das ideias. Ele acredita que as ideias se originam das impressões, que são os contatos diretos com os objetos ou sentimentos. Olhando para um objeto, por exemplo, uma xícara de chá, você capta suas impressões: sua forma, cores, desenhos, tamanho etc. Quando você não está mais olhando para aquele objeto, ainda assim você pode se lembrar dele. Assim são as ideias, elas nascem das impressões, mas continuam existindo em nossa mente independentemente dos objetos. Dessa forma, nossa mente pode criar objetos imaginários, apenas usando as ideias. Você pode nunca ter visto uma montanha de ouro, mas pode imaginar uma. Por isso a ideia de um ser majestoso e infinito, chamado Deus existiu: porque os homens usaram o poder de suas mentes em criarem seres imaginários. 8
David Hume: cérebre por seu empirismo e ceticismo filosófico.
Entre as muitas formas de conexão entre ideias, Hume destaca a associação por causaefeito: o efeito faz lembrar da causa. Ele acredita que quando dizemos que um efeito procede de uma causa, por exemplo, queimaduras procedem do contato da pele com o fogo, essa crença se baseia somente na experiência. Para ele, nada justifica a crença de que da próxima vez que alguém encostar no fogo se queimará de novo. Sabemos disso só porque até hoje isso sempre aconteceu dessa mesma forma. Da mesma forma, sabemos que se soltarmos uma pedra ao ar livre, ela cairá, porque todas as vezes que alguém a solta, ela sempre cai. Mas nem todos os efeitos são assim tão certos. Pense no caso de tomar um remédio: nem sempre aquele remédio faz a pessoa melhorar imediatamente, algumas vezes a pessoa melhora, outras não. Assim, as pessoas acreditam mais nos remédios que funcionaram mais vezes, e duvidam dos remédios que funcionaram poucas vezes. Se um remédio nunca funcionou, certamente ele não será mais usado. Até aqui, todos estamos de pleno acordo, mas observe o que ele pretende dizer, usando esse mesmo raciocínio, em relação a fé: milagres não existem, pois assim como o remédio que nunca funciona, nunca vemos nenhum milagre acontecer. Portanto, conclui ele, é impossível a mente humana aceitar um milagre, assim como é impossível a mente humana pensar que uma pedra possa ser solta no ar e não cair. É claro que esse raciocínio é muito fraco: por que temos que duvidar de algo que jamais aconteceu? Quem jamais viu neve deve duvidar que ela existe? Quem jamais viu o mar deve duvidar que ele existe? E devemos duvidar que o centro da Terra é quente só porque até hoje ninguém foi até lá? Essa conclusão de Hume é tão absurda que hoje não é aceita nem mesmo pelos ateus. Hume fala também nesse livro sobre vontade e livrearbítrio. Segundo ele, para se acreditar no livrearbítrio, é necessário acreditar também que alguns efeitos sejam independentes das causas, pois se tudo tiver uma causa definida, ninguém pode dizer que decidiu livremente. Mas por outro lado, ele alega que o livrearbítrio precisa supor que os efeitos dependam das causas, porque sem isso, como alguém poderia ser punido por algo que fez, se os efeitos de uma decisão errada não são decorrentes dessa escolha? Hoje em dia esse argumento não vale nada. Entendemos que a vontade própria e o livre arbítrio são perfeitamente possíveis, e isso não contraria o fato de que decisões implicam em consequências que podem ser positivas ou negativas. O pensamento dele está tão ultrapassado que chega parecer absurdo hoje acreditar que um filósofo pensou realmente
Vista parcial da atual cidade de Edimburgo, onde David Hume nasceu.
Por a mão no fogo causa queimaduras? Só acreditamos nisso por causa de nossas experiências cotidianas. Hume alega que nada pode provar que numa próxima experiência isso novamente ocorrerá.
9
dessa maneira. Mas ele usa esse raciocínio para defender que o homem não tem, na verdade, um livrearbítrio, e dessa forma, Deus está envolvido nas culpas humanas, pois se o ser humano não é perfeito, foi porque seu criador o fez imperfeito. Essa ideia de culpar Deus pelos erros do ser humano é tão inválida que, mesmo se fosse verdade, não poderíamos nos queixar, pois o próprio Deus desceu da sua glória e pagou o resgate do ser humano levando consigo toda culpa e punição, dando ao homem a oportunidade de salvação de graça. Na verdade, parece que nem ele tinha tanta convicção sobre esse argumento contra o livrearbítrio, tanto é que na continuação do livro ele volta a falar sobre milagres, deixando o assunto sobre livrearbítrio e causaefeito de lado. Agora ele começa a atacar os testemunhos de milagres, e seus argumentos são na verdade fortes, mas falsos. Ele diz que os milagres só existem onde não há ninguém que seja crítico, pois onde há alguém que questione os fatos, os milagres incrivelmente desaparecem. Escreve ainda que os maiores milagres da história ficaram testificados em livros sagrados, sendo que ninguém dos nossos dias presenciou tais coisas para confirmálos. Para ele, quanto mais leigo é um povo, mais eles acreditam em milagres, e quanto mais estudado é um povo, menos se acredita em milagres. Isso sinalizaria que milagres sejam apenas ilusões sobre coisas que não puderam ser explicadas corretamente. Hume afirma que é mais fácil acreditar que determinada história de milagre seja mentira do que acreditar no milagre, pois milagre nunca se vê, e mentiras vemos todos os dias. Como ele já havia dito, é impossível para a mente humana acreditar num milagre, mas ele tem um problema aqui: há quem acredite em milagres. E agora? Sua resposta é: acreditar num milagre é um milagre! É claro que ele afirma isso quase zombando de quem crê no sobrenatural, mas por mais incrível que pareça, essa conclusão é a própria prova de que sua teoria está errada. Evidentemente, Hume entende que um milagre é uma ação sobrenatural, mas alegar que é impossível a mente humana aceitar um milagre é mostrar que não entende a extensão de um milagre: se o ser divino pode intervir no curso da natureza, pode também intervir na mente humana, tornandoa apta a aceitar a fé. Há uma consideração importantíssima sobre sua conclusão de que quanto mais ignorante o povo, mais se crê em milagres. O filósofo Gilbert Chesterton (18741936) falou sobre isso, mostrando que quem considera ignorante um povo 10
“A multiplicação dos peixes”, de Rafael Sanzio de Urbino. Para Hume, os milagres só são acreditados por pessoas ingênuas.
que crê em milagres é porque já decidiu que crer em milagres implica em ignorância. Quem considera ajuizado um povo que não crê em milagres, é porque já decidiu que duvidar de milagres é racional. Mas essas decisões são realmente sábias? Muitas pessoas, especialmente ateus, afirmam que a crença no sobrenatural parte de um dogma, enquanto que quem duvida do sobrenatural assim pensa porque é um livre pensador. Chesterton observou que o que acontece é o contrário: o intelectual que não crê em milagre, não crê porque tem um dogma a sustentar, o dogma do materialismo; enquanto isso o leigo que crê no sobrenatural, crê porque viveu uma experiência pessoal assusta dora ou maravilhosa, portanto, crê porque pode interpretar suas experiên cias de forma independente de quaisquer doutrinas preestabelecidas, ou seja, ele sim, é um livre pensador.
“Dr. House”: o seriado traz a figura caricata de um intelectual cético, cuja incredulidade é supostamente justificada por sua saliente inteligência.
R E S U M O Filósofo: David Hume (1711-1776) Argumentação ateísta: a) Se existe livre-arbítrio, então a sequência de causas e efeitos fica
quebrada, já que a livre decisão humana não parte de uma causa (pois assim não seria livre), mas nesse caso, o homem não pode ser culpado por seus atos. Mas se a sequência de causas e efeitos for válida, então Deus é culpado pelos pecados humanos, pois estes não são mais que consequências de sua obra. b) Milagres não podem ser aceitos pela mente humana, pois contraria o testemunho dos sentidos, mas havendo quem os testifique, é mais plausível pensar que tal pessoa esteja enganada ou esteja tentando enganar, o que não contraria os sentidos. Por isso, milagres só são acreditados por pessoas ignorantes.
Refutação: Hume erra ao pensar que uma vez quebrada a sequência de causas e efeitos, ela fica
totalmente inválida. O homem escolhe livremente, mas suas escolhas desencadeiam consequências que podem ser julgadas. Assim, inocentar o homem e culpar a Deus pelos pecados é um erro grosseiro. Mas apesar de não ser o culpado pelos pecados humanos, o próprio Deus quitou a dívida do homem pagando o preço dos seus pecados na cruz. Quanto aos milagres, se há um Deus que pode fazer um milagre na natureza, também o pode na mente humana, fazendo-a aceitar o milagre. Milagres sempre foram aceitos mesmo por pessoas de elevado nível de conhecimento, e a história dá forte testemunho disso (Galileu, Newton, Pascal, Pasteur, Kierkegaard etc).
11
FRIEDRICH NIETZSCHE E O RADICALISMO DO SÉC. XIX Friedrich W. Nietzsche (18441900), filósofo alemão nascido em Rocken, é considerado um dos mais importantes filósofos de todos os tempos. Filho de protestantes, doutrina a qual fora educado em toda a infância, perdeu o pai e o irmão aos cinco anos de idade, e mudouse para Naumburg, a morar com a mãe, a irmã, duas tias e a avó. Em 1858, conseguiu uma bolsa de estudos na escola de Pforta. Sob a influência dos professores, começou a afastarse do cristianismo; e estudou muito o latim e os clássicos gregos. Saindo de Pforta, foi a Bonn, onde estudou filosofia e teologia. Nietzsche viveu um período de entrega às orgias e aos vícios, ao cigarro e à bebida, mas depois as deixou, julgando serem prejudiciais à percepção e ao pensamento. Foi músico amador e amigo do compositor alemão Richard Wagner (1813 1883), a quem mais tarde criticou. Suas principais obras são: “O princípio da tragédia” (1872), “Assim falou Zaratustra” (188385), “Genealogia da moral” (1887), “O Anticristo” (1888), “O crepúsculo dos ídolos” (1889), entre outras. Nietzsche sofreu frustrações amorosas, e o fim de sua vida foi trágico: vitimado pela loucura, dizia ser o sucessor do ‘deus morto’ e escrevia cartas assinando como ‘o crucificado’. Ao fim da vida, a obra de Nietzsche começa a ganhar notoriedade, e após sua morte, influencia os formadores dos regimes totalitaristas europeus posteriores, como o nazismo. Crepúsculo dos Ídolos Nesse livro, lançado em 1889, Nietzsche afirma que o ser humano vive em decadência. Para ele, a humanidade começou a contrariar seus instintos de vida e poder desde os pensadores gregos. A própria criação da moral resume essa decadência. Ele pensa que no lugar de controlar os instintos como vingança, ambição, desejo e poder, o ser humano deveria cultiválos, pois quando em nome da moral esses desejos são retraídos, o homem passa a cultivar o tédio pela vida. Nietzsche alega que as religiões mostram Deus como inimigo da vida, pois ele sempre está ordenando a moral e o controle dos instintos. Ele menciona o sermão em que Jesus ensina a cortar a mão e arrancar o olho caso estes venham a ser motivo de escândalo a seu possuidor. Contrário a esse ensino, ele desabafa: não devemos admirar os dentistas que arrancam 12
Nietzsche: em seu obituário escreveu-se: “Um notável Anticristo”.
os dentes para eles não doerem mais, mas devemos admirar os dentistas que recuperam os dentes sem precisar arrancálos. Igual a Hume, Nietzsche não acredita no livrearbítrio, ele diz que vontade própria não existe: nossas decisões e atitudes não passam de um equilíbrio entre efeitos físicos, químicos e biológicos em nosso organismo. Sendo assim, ninguém pode ser responsabilizado pelo que faz, pois só é possível agir de forma inevitável. Sua opinião sobre a religião é a de que elas são formas de adestramento humano, ou seja, formas de tornar as pessoas adestradas. Ele explica que um animal selvagem é forte, instintivo e vigoroso, mas o animal adestrado é enfraquecido e vive de forma doentia. Da mesma forma, o ser humano religioso é doentio e enfraquecido, ensinado a conformarse com o que tem e renunciar sua própria vida. Se as religiões são meios de enfraquecer os homens, o cristianismo para Nietzsche é a forma mais extrema de se atingir esse objetivo: no judaísmo, pelo menos eles se identificavam como uma nação, e por essa identificação lutavam e mostravam bravura, seu Deus era muitas vezes tido como um capitão a frente de exércitos. No cristianismo, não há luta física, não há um país ou uma bandeira territorial a ser defendida, a luta do indivíduo é contra ele mesmo, contra seus instintos de força e beleza, seu próprio Deus não representa força ou vigor, é um Deus bondoso e humilde, que se entrega a morte sem sequer reclamar. Nietzsche afirma que o valor de uma coisa reside no que se paga por ela, e nem tanto no quando se pode adquirir com ela. Ele fala isso tendo em mente a liberdade que a fé religiosa restringe e oferece ao ser humano. A religião restringe os apetites instintivos, mas oferece a liberdade da vida, enquanto isso, Nietzsche se queixa do quanto se paga por essa liberdade (o abandono dos instintos selvagens). Mas quanto tempo uma sociedade sobreviveria se permitisse tudo o que seus indivíduos desejassem? Roubos, vinganças, violações de todas as naturezas, domínio do mais forte entre outras arbitrariedades seriam certamente dominantes. A filosofia de Nietzsche deu muita força aos regimes fascistas e nazistas, que levaram o mundo a testificar um de seus piores capítulos nas grandes guerras.
Um animal selvagem expressa força e vitalidade. Para Nietzsche, um cristão é uma “doentia besta humana”.
Foto do regime nazista: apesar de amplamente negado, a filosofia de Nietzsche contribuiu com a formação desse regime bárbaro.
O Anticristo Este livro é uma moção de repúdio de Nietzsche ao cristianismo. Aqui ele diz tudo o que pensa sobre a fé cristã, expressando que para ele essa crença foi a pior coisa que aconteceu na história da humanidade, em suas palavras, o cristianismo é a imortal vergonha da humanidade. Ele começa o livro dizendo que felicidade é ter poder. O bem, para ele, é conquistar o poder, enquanto que o mal é a fraqueza, é a perda de poder. Como já dito, ele acredita que o cristianismo é uma forma de adestramento do ser humano. Enquanto Cristo pregava a compaixão, ele acredita que a compaixão 13
enfraquece o ser humano, pois ele deixa de dominar quando se compadece. A compaixão do próprio Deus pelo ser humano assusta Nietzsche: para ele, a cruz significa a inversão de valores, pois o próprio Deus sendo todo poderoso, mostra compaixão e se deixa enfraquecer e morrer pelo homem, um espetáculo de fraqueza e perda de poder. Ele diz que a ideia de um Deus bondoso e fraco surgiu da experiência de servidão dos judeus. Eles teriam invertido o significado de bem e mal para se manter em vantagem. Evidentemente, essa concepção é equivocada, pois o cristianismo não foi uma adequação do judaísmo (os judeus recusaram o próprio Cristo), e outra: os judeus também recusaram a servidão, não se conformaram a ela, pois ainda no primeiro século da era cristã, eles se insurgiram contra o império dominante numa fracassada revolta. Nietzsche diz que prefere o budismo como religião, pois nele não há combate ao pecado, e sim combate ao 14
Acima: estátua do Buda em Hong Kong. Abaixo: concentração de monges budistas na Tailândia. A substituição de orações por regimes e do combate ao pecado pelo combate ao sofrimento fez Nietzsche considerar essa religião mais realista.
sofrimento; não há orações, mas sim regimes. Assim, o budismo aceita muito mais o corpo, compreende suas necessidades e prega uma virtude que se direciona aos valores humanos. Ele faz essa comparação para dizer que, lendo os evangelhos, entendeu que Jesus ensinou uma forma budista de filosofia de vida, mas como foi mal interpretado, mudaram sua mensagem original e criaram a religião cristã. Para ele, se tirar os acréscimos que a igreja colocou nos evangelhos, o que sobra é o tipo psicológico de Jesus: um estilo de vida sem reações. Como ele chegou nessa conclusão? Removendo dos evangelhos o que decidiu remover, e acrescentando o que desejou acrescentar. Assim, não só os evangelhos mas qualquer livro pode se tornar um ensinamento budista. Na sequência, ele procura justificar como o suposto evangelho budista de Jesus se tornou o evangelho que conhecemos. Para ele, os discípulos não entenderam nada quando Jesus morreu. Se ele era filho de Deus, porque não sobreviveu ou não reagiu e venceu seus algozes? Logo encontraram uma justificativa: morreu pelos pecados. Nietzsche alega que foi Paulo quem criou tais conceitos, ele o chama de disangelista (ao contrário de evangelista, que significa portador da boa nova, disangelista significa portador da má nova), afirmando que é necessário usar luvas para ler o Novo Testamento, já que ali existe muita sujeira! Seu ponto seguinte é alegar que a religião cristã envenenou o mundo com sua contrariedade ao conhecimento. O filosófico pensamento grego e romano sucumbiu, e a teologia cristã reinou por muitos anos. Nesse tempo, pessoas foram mortas e verdades foram escondidas. Nietzsche sugere que o próprio texto bíblico mostra a má intenção dos sacerdotes em relação ao conhecimento: na história do Éden, por exemplo, o homem foi expulso do paraíso por se alimentar do conhecimento, e mesmo com todas as armas divinas contra a ciência (trabalho desgastante, maldição, dores de parto, doenças e morte), o conhecimento começou a prosperar e para parálo, o próprio Deus decide afogar a espécie humana, poupando apenas um religioso fiel com sua família. É evidente que a árvore do conhecimento do bem e do mal apresentada na Bíblia não representa o conhecimento científico, e a razão pela qual o dilúvio aconteceu não foi a prosperidade da ciência, mas a prosperidade do mal. Nietzsche sabia disso, mas com a intenção de difamar a fé, ele ignora essa compreensão e tenta surpreender os ingênuos com sua equivocada interpretação. É bastante surpreendente a conclusão que Nietzsche chega em relação a reforma protestante. Ele louva a igreja romana quando ela vivia sua maior corrupção, o que não é surpresa, já que ele define o bem como o uso do poder e o mal como renúncia ao poder. Para ele, essa igreja vivia um momento de vida e beleza, quando não estavam preocupados em
Acima: o Apóstolo Paulo, por Rembrandt. Para Nietzsche, o culpado em deturpar o ensinamento budístico de Jesus.
Abaixo: Lutero, o alemão reformador da fé: 'os alemães serão os culpados se o cristianismo não desaparecer da Terra', disse Nietzsche.
15
negar a própria vida, mas em rechear de ouro suas suntuosas catedrais, dominar os povos e conquistar riquezas. Lutero desferiu um golpe contra a secularização da igreja, e Nietzsche lamenta esse golpe. Afirma que se o cristianismo não for abolido do mundo, a culpa é dos alemães, pois Lutero era alemão e a Alemanha foi o principal berço da reforma. Nietzsche conclui seu livro promulgando uma lei contra o cristianismo. Ele escreveu: “Com isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção imaginável; busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção [...] Denomino o cristianismo a grande maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é suficientemente venenoso, secreto, subterrâneo ou baixo – chamolhe a imortal vergonha da humanidade...” As leis dele são: I) Renunciar a própria vida é vício; II) Colaborar na obra de Deus é crime; III) O lugar onde Jesus viveu deve ser transformado no lugar mais horrível e indesejado da Terra; IV) Castidade é um pecado contra o espírito santo da vida; V) Padres e pastores devem morrer de fome; VI) História sagrada será maldita, Deus será nome de xingamento; VII) O resto nasce a partir daqui. No final, ele assina essa lei como “Nietzsche, o Anticristo”. Nietzsche fica indignado com a fé cristã. Ele não compreende como as pessoas aceitam que o próprio Deus, que deveria ser o mais forte e intocável, seja sofredor e prove da morte. Por causa dessa indignação ele enunciou que “Deus morreu”. Ele prega o homem que valoriza sua própria vida, que remove os obstáculos de seu caminho e atinge seus objetivos. Contrário a Jesus, esse Superhomem despreza a compaixão e o considerar os outros superiores a si mesmo; ele domina e compete com outros para ser sempre o melhor. Por isso, Nietzsche escreveu: “Deus morreu, agora nós queremos que viva o super homem”. Existem muitas contradições nessas ideias. A primeira delas, é a de que ao mesmo tempo que ele louva o uso do poder, ele condena a religião por adestrar as pessoas e mantêlas dominadas pelos sacerdotes. Ora, se o uso do poder é louvável, então por que não aplaudir os sacerdotes quando eles supostamente dominam? A segunda grande contradição é a sua condenação da igreja cristã sobre a destruição das culturas e ciências gregas e romanas. A dominação da igreja romana, que não era algo verdadeiramente cristão, é condenada por impedir a ciência e a diversidade cultural, mas essa mesma dominação é vista como positiva quando ele critica a reforma protestante. Afinal, Nietzsche elogia o uso do poder, mas condena o uso do poder quando esse uso é realizado pelos seus adversários ideológicos. Flagrantemente parcial e contraditório.
“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? (…) Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!” Nietzsche. A anunciação nietzschiana da morte de Deus não é uma simples declaração de descrença, mas a constatação de que os valores religiosos deixaram de vigorar como norma de conduta na sociedade.
R E S U M O Filósofo: Friedrich Nietzsche (1844-1900) Argumentação ateísta: a) Deus é inimigo da vida, pois prega a autorrenúncia. A religião domestica os
homens, os tornando fracos e malogrados. b) Divindade cristã é o colapso da divindade judaica. c) Doutrinas cristãs refletem a lógica do ódio disseminada por Paulo, pelas quais culturas gregas, romanas e islâmicas foram destruídas.
Refutação: a) Nietzsche identifica o bem como o uso do poder, mas lamenta o uso do poder dos que 16
dominaram em nome de uma religião. Só a autorrenúncia pode frear os instintos nocivos do ser humano. b) Os judeus jamais se adaptaram a servidão e sempre recusaram a fé em Jesus. c) A adulteração do evangelho por Paulo é inventiva, e a destruição de culturas se deu pelo anseio de dominação, e não pela prática do evangelho como Cristo propôs.
BERTRAND RUSSELL E A FILOSOFIA ANALÍTICA Bertrand Arthur William Russell (18721970), matemático e filósofo britânico, foi um dos mais importantes popularizadores da filosofia no século XX. Recebeu o prêmio Nobel da Literatura em 1950, pelos seus ideais humanitários e pela sua contribuição à liberdade do pensamento. Russell pertenceu a uma família aristocrática inglesa; seus pais morreram quando ele ainda era criança. Estudou filosofia na Universidade de Cambridge, tornouse membro do Trinity College em 1908, mas perdeu a cátedra por recusarse alistar à primeira guerra mundial. Em 1939, foi lecionar nos Estados Unidos, na Universidade da Califórnia. Foi nomeado professor no City College, em Nova Iorque, mas teve sua nomeação anulada por ser considerado moralmente impróprio. Foi um militante pacifista, mediou o conflito dos mísseis de Cuba a fim de evitar um ataque militar; organizou com Albert Einstein o movimento Pugwash, com o objetivo de combater a proliferação de armas nucleares. Elaborou a tese da fundamentação logicista da matemática, onde assegura que todas as verdades matemáticas podem ser deduzidas de umas poucas verdades lógicas; concebeu ainda a teoria das descrições definidas, e formulou algumas teses de teoria do conhecimento. Russell escreveu várias obras, entre as quais se destaca “The principles of Mathematics”, de 1903; os três volumes em coautoria com Whitehead, publicados entre 1910 e 1913, intitulados “Principia Mathematica”. Mas a obra que Russell desbancase em defender sua moral em detrimento da moral religiosa (especificamente a moral cristã) é o ensaio escrito a partir de uma palestra dada em 1927 sob o título “Why I am not a Christian” (“Porque eu não sou cristão”). E esse é o livro que vamos analisar.
Bertrand Russell: o nobre e sábio galês que não compreendeu a essência da fé.
Porque não sou Cristão Nesse livro, Russell escreve as razões sobre sua escolha em rejeitar a doutrina cristã, e ele fará isso baseado em dois fundamentos, que ele acredita ser os dois fatores que determinam a identidade de um cristão: acreditar em Deus e na imortalidade da alma, e atribuir alguma supremacia a pessoa de Jesus de Nazaré, considerandoo pelo menos o mais sábio dentre os homens. Sobre a existência de Deus, ele trata de mostrar inconsistências nas provas clássicas da existência de Deus, que são: o argumento da Primeira Causa, o argumento da Lei Natural, o argumento da Prova Teológica e o argumento da Moral. Quanto ao argumento da Primeira Causa, ele questiona se o próprio Deus é efeito de alguma causa. Como se alega que Deus não precisa ter uma causa, então a suposição inicial de que todas as coisas tem uma causa está errada, e assim o argumento é inválido. Já em relação ao argumento da Lei Natural, Russell pergunta: “Por que Deus lançou essas leis, e não outras?” Se respondermos que as leis da natureza foram essas porque são elas que tornam o mundo possível, então nem Deus poderia se livrar dessa regra, ou seja, não é onipotente. Já se dissermos que Deus criou essas leis porque assim o quis, então há um rompimento na sequência de leis naturais, o que invalidaria o argumento envolvendo Deus e as leis naturais. Mas esse rompimento é necessário e não invalida o argumento: o argumento não diz que a existência de Deus implica nessas ou naquelas leis, mas que Deus criou leis que fazem o universo
São Tomás de Aquino: um dos formuladores das provas da existência de Deus, as quais Russell contra argumenta.
17
funcionar. Refutando a prova Teológica da existência de Deus, Russell afirma que o mundo está longe de ser o resultado da obra de um ser infinitamente sábio, poderoso e bondoso. Para isso, ele cita regimes totalitários e grupos de terrorismo envolvidos em ações de intolerância social. Não é, porém, uma ideia cristã pensar que Deus pretenda tornar este mundo um paraíso perfeito. Sobre os argumentos da Moral, desfere fortes críticas. Um argumento concebido por Kant põe Deus como um padrão de bem. Pode ser verdadeiro, mas não tem qualquer valor como prova da existência de Deus, pois não há como verificarmos essa suposição. Agora ele tratará de mostrar o que pensa de Jesus, mostrando que ele não era tão sábio. A primeira coisa que Russell aponta é o ensinamento de Jesus que leva a entender que o fim do mundo ocorreria nos dias daquela geração, o que não aconteceu. Jesus disse aos discípulos, quando proferia profecias sobre o final dos tempos, que tudo aquilo aconteceria ainda antes que os seus seguidores percorressem todas as cidades da judeia. Evidentemente, se trata de uma interpretação particular e equivocada, pois Cristo ainda não voltou, mas até hoje as aldeias de Israel não foram totalmente alcançadas com seu evangelho. Russell alega que Cristo usava de ameaças quando censurava os fariseus, tipo de atitude que outros sábios não usariam. Fala também do fato de Jesus ter amaldiçoado a figueira e permitido que os espíritos imundos entrassem na manada de porcos, atestando assim sua indiferença com a natureza. Mas o conteúdo e a essência dos ensinamentos de Cristo não são mencionados, de modo que as acusações indicadas não passam de argumentação irrisória. Com todas essas considerações, Russell afirma que as religiões são dotadas de crueldade. Ele diz que nas épocas de maior apego a fé, maiores horrores foram cometidos. Mas ele não se preocupa em ressaltar que, nessas épocas e na prática desses horrores, os próprios ensinamentos bíblicos foram esquecidos. A Religião Contribuiu para a Civilização? Um outro ensaio de Russell, que leva o nome deste título, também trata de sua descrença em Deus. Ele indica que a religião não trouxe muita contribuição para a civilização, aliás, as únicas contribuições que ele reconhece são a fixação do calendário e a predição de eclipses pelos sacerdotes egípcios. Russell se vale de interpretações duvidosas da Bíblia para argumentar: ele diz que é impossível olhar 18
Vista do mura das lamentações, em Jerusalém: mesmo sendo o berço do cristianismo, a judeia não é um território predominantemente cristão.
Com o objetivo de desmoralizar a fé, Russell apela: 'somente sendo tão cruel quanto o Deus em que se crê para afirmar que o sofrimento de crianças doentes seja consequência de sua imoralidade'. Evidentemente, essa crítica não cabe a crença cristã.
para o sofrimento em um hospital infantil e concluir que aquelas crianças sofrem por serem pecadoras, mas essa é uma atitude equivocada dentro da religião cristã: Cristo manifestava misericórdia aos necessitados, não lhes apontava culpas. Diz Russell ter duas principais razões contra a religião. Uma delas é intelectual, e é a de que não há razão alguma para se supor que determinada religião seja verdadeira. A outra é moral, e se resume no fato de que as religiões nasceram em uma época em que os homens eram mais cruéis, e a prática dessas religiões fazem perpetuar muitas ações desumanas. Quanto a primeira razão, apenas fica manifesto sua falta de imaginação: a existência de algo independe de nossas suposições. Em relação à perpetuação de ações desumanas, essa crítica não vale para a fé cristã, cuja essência é o amor ao próximo. Ele afirma ainda que a religião coíbe alguns impulsos que servem para amenizar o egoísmo. Estes impulsos são: a família, o patriotismo e o sexo. Sobre a família, é uma fantasia pensar que a Igreja cristã coíbe sua instituição. O patriotismo não é contrariado pelo evangelho, mas colocado em segundo plano. Mesmo assim, a patriação celestial é um impulso ainda mais importante em atenuar o egoísmo das pessoas. Já sobre o sexo, o padrão cristão é o da restrição ao matrimônio, e é muito questionável se a prática sexual faz diminuir o egoísmo de alguém. O matrimônio cumpre esse papel, mas o ato sexual em si pode ser realizado num puro surto egoísta de satisfação carnal. Russell também apela para a ciência para justificar algumas de suas suposições. O apelo que faz, entretanto, é flagrantemente errôneo: ele diz que não existe livrearbítrio, pois a ciência pode prever o desenvolvimento de qualquer sistema a partir de leis físicas bem estabelecidas. O problema que ele não menciona é que as leis estabelecidas não explicam como é possível agirmos por decisão própria. Mesmo sendo um matemático logicista muito importante, Russell reconheceu que é impossível provar a inexistência de Deus. Ele ficou tão incomodado com essa impossibilidade que tratou, astutamente, de dizer que quem tem que provar qualquer coisa são os religiosos, e não os ateus. Dizia ele: suponha que exista um bule chinês celestial em órbita do Sol, mas a uma grande distância da Terra. Por ser pequeno esse bule, os telescópios não podem encontrálo. Assim, ele poderia tentar fazer alguém acreditar que esse bule realmente existe, mas as pessoas não acreditariam sem uma prova disso. Da mesma forma, se Deus existe, são os religiosos quem devem provar sua existência, não sendo obrigação dos ateus provarem sua inexistência. Isso está certo, mas não é intenção de um religioso provar a existência de Deus. O religioso diz, em conformidade com sua convicção: é necessário ter fé. Voltando a questão original deste tópico, se a religião contribuiu com a
Madre Tereza de Calcutá. Impossível associar sua imagem com egoísmo, mas de uma forma curiosa e não bem argumentada, Russell considera que os ensinamentos da Igreja estão fundamentados no ódio e egoísmo.
Se alguém alegar que existe um bule de chá no espaço, em órbita do Sol, terá de prová-lo, caso contrário, jamais será acreditado. O ônus da prova é de quem afirma, não de quem contesta. Com esse argumento, Russell questiona se os ateus precisam argumentar contra a existência de Deus, ou se são os religiosos que precisam comprová-la.
19
civilização, temos de dizer, ao menos em nome da fé cristã, que muitas foram as contribuições. Só para exemplificar, em vilas e vilarejos, bem como em grandes cidades, em seus subúrbios e periferias, a quantidade de pessoas, especialmente jovens, que mudaram de vida saindo da marginalidade para uma vida devota, de trabalho e compromisso familiar, é indescritível. Mas são realizações silenciosas, que não trazem uma bandeira estampada, que não é homenageada em festas populares nem lembrada nos grandes círculos intelectuais.
R E S U M O Filósofo: Bertrand Russell (1872-1970) Argumentação ateísta: a) Russell questiona as provas clássicas da existência de Deus, e afirma que
Jesus não foi tão sábio quanto outros, por ameaçar seus oponentes com o inferno e ensinar que seu advento seria nos dias daquela geração, além de ser indiferente com a natureza. b) Aponta duas objeções contra a fé: a objeção intelectual, de que não há razão para se acreditar em Deus, e a objeção moral, de que a religião perpetua a crueldade herdada da época em que foi criada. c) Alega que a tarefa de provar a existência de Deus é dos teístas, não sendo responsabilidade dos ateus argumentar sobre sua inexistência.
Refutação: a) A existência de Deus não depende das provas clássicas, elas não são mais do que
tentativas de racionalização da fé; ainda assim, Russell tropeça em sua refutação da prova da lei natural. Suas críticas a Jesus são irrisórias, a base moral que ele usa para sustentá-las são frutos da ampla difusão dos valores evangélicos ao longo de séculos. b) A objeção intelectual não tem fundamento, seria esse o caso se o ser humano não demonstrasse necessidades espirituais, e a objeção moral não se aplica a fé cristã, que prega o amor. c) Assim como o astrônomo não precisa provar a existência da galáxia de Andrômeda para seus céticos, o religioso não precisa provar a existência de Deus.
Imagens de outdoors criados pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, que foram publicados em Porto Alegre (RS) em 2011.
20
JEAN-PAUL SARTRE E O EXISTENCIALISMO DO SÉC. XX JeanPaul Sartre (19051980), filósofo francês nascido em Paris, é considerado o maior intelectual do Existencialismo. Devido ao falecimento do pai dois anos após seu nascimento, foi morar com o avô paterno, protestante. Graduouse em 1929 pela École Normale Supériure e passou a viver com Simone de Beauvoir. Após o curso de filosofia, prestou o serviço militar como meteorologista. Teve grande influência do pensamento existencialista de Soren Kierkgaard (18131855). Foi prisioneiro dos alemães entre 194041, e após ser solto por razões médicas, fundou o grupo “Socialismo e Liberdade” a fim de atuar junto à resistência contra os alemães. Apesar de ter exaltado a liberdade em suas primeiras obras, após a guerra Sartre volta sua atenção para as questões da responsabilidade civil. Embora fosse um admirador do marxismo, decepcionouse com as ações de guerra da União Soviética. Foi contemplado ao prêmio Nobel de Literatura por sua obra “As Palavras” (1964), mas recusouo. Ficou cego em seus últimos anos, e faleceu em 1980 devido a um tumor pulmonar. As principais obras de Sartre são: “A Imaginação” (1936), “A Náusea” (1938), “O Muro” (1939), “O Imaginário: Psicologia fenomenológica da Imaginação” (1940), todas dominadas pelo seu pensamento de liberdade, onde propunha a descrição dos fenômenos sem qualquer ideia preestabelecida. Na fase de guerra publicou o “O Ser e o Nada” (1943), considerada a obra fundamental da teoria existencialista, e a peça teatral “As moscas” (1943), uma crítica camuflada ao regime totalitarista alemão. Anos mais tarde ele se direciona à produção de obras de teatro, dentre as quais destacamse: “Entre quatro paredes” (1945); “Mortos sem sepultura” (1946); “A prostituta respeitosa” (1947), “O diabo e o bom Deus” (1951) entre outras. Em todas essas peças Sartre busca expor a inclinação má do ser humano em relação a seu próximo. Em 1946 publica “O existencialismo é um humanismo”, procurando esclarecer críticas feitas às ideias do existencialismo expostas em “O Ser e o Nada”. Em “O fantasma de Stálin” (1956), critica ao marxismo; filosofia ao qual não rejeita, mas salienta seus problemas. Sartre foi editor, junto a outros intelectuais, do jornal “Tempos modernos” de 1945 a 1955.
Jean-Paul Sartre: se Deus existe ou não, não há qualquer diferença.
21
O Existencialismo é um Humanismo Existencialismo é uma doutrina que afirma que o ser humano não tem uma essência primordial, ou seja, não existem valores ou padrões preestabelecidos para sua conduta, todos os valores, sejam eles de ordem moral ou social foram criados posteriormente pelo próprio ser humano. Assim, o homem primeiro existe, depois constrói sua identidade humana. Essa construção envolve todos os indivíduos, num processo chamado subjetividade: as decisões humanas fazem estabelecer seus valores. Quando alguém se casa, está escolhendo o modelo do matrimônio como ideal para si, e mesmo sem pensar nisso, o escolhe também para toda humanidade. Logo, toda decisão que alguém toma envolve a humanidade na construção de seus valores, de modo que não existe um padrão a ser seguido, não há uma orientação prévia de quais serão as escolhas bem sucedidas, de modo que o ser humano se flagra abandonado em suas decisões. Percebendo essa condição de abandono, pois não há um sobrenatural que o possa direcionar para o bem ou para o mal, o homem vive sua angústia, a angústia de quem precisa decidir mas não dispõe sequer de um sinal sobre qual decisão tomar, e mesmo não decidindo está escolhendo não decidir, o que é já uma decisão. Desse raciocínio, Sartre diz que o homem é condenado a ser livre. É fácil ver que essa concepção é materialista em sua própria construção. Quando Sartre diz que não existe um padrão estabelecido ao ser humano, está testificando o fundamento ateu de sua doutrina. Para a doutrina cristã, o ser humano foi criado com propósitos definidos pela soberania divina, e os padrões centrais de conduta determinados ao ser humano estão fixados na consciência de cada indivíduo. Uma crítica muito forte que a doutrina existencialista recebia (principalmente por pessoas que viveram os horrores das guerras), era a de que pelas suas suposições não se podia condenar quem quer que seja por suas ações, já que não existiam padrões preestabelecidos. Em relação a isso, Sartre escreveu que as ações poderiam ser julgadas quando fossem consideradas de máfé, ou seja, quando por essas ações se privava a liberdade de alguém. Com um discurso técnico e extenso, ele tenta justificar essa ideia sem deixar transparecer que está se contradizendo, mas na verdade, quando diz que ações que privam a liberdade são ações más, está escolhendo a liberdade como padrão preestabelecido, o que vai contra sua própria tese. Seu entendimento sobre as decisões humanas o fazem acreditar que mesmo provando a existência de Deus nada mudaria, ou seja, o homem continuaria abandonado em suas escolhas, pois até mesmo se um anjo lhe falasse, seria ele quem teria de decidir que a voz foi de um anjo e não de um demônio, ou 22
Acima, um presídio; abaixo, tanques de guerra. O que torna um ato aceitável ou condenável? O certo e errado, para Sartre, é uma construção humana, construção essa não guiada ou justificada por qualquer padrão preestabelecido. O homem está, portanto, “condenado a ser livre”.
se aquela voz não foi de seu próprio inconsciente. Tentando mostrar que a doutrina cristã não dá respostas, ele fala de algo que lhe aconteceu: um jovem o procurou para pedir um conselho. O jovem queria uma opinião para decidir se deixava a mãe solitária em casa e se alistava na guerra afim de vingar a morte de seu irmão, ou se deixava de lado o desejo de vingança e ficava com a mãe já velha em casa acolhendoa. Diante dessa circunstância, sua resposta ao jovem foi: “Invente, você é livre”. Ou seja, qualquer decisão seria correta, desde que tomada em concordância com sua vontade. Nesse ponto, Sartre faz uma infeliz afirmação: nem a doutrina cristã teria uma resposta para esse jovem. Certamente ele deixou de considerar muita coisa para dizer isso, basta lembrar que Cristo ensinou o amor ao próximo, não havendo espaço para vingança na conduta cristã. Uma ilustração poderá deixar mais claro o equívoco aqui flagrado: dois homens seguiam por certo caminho. Um deles chamavase Existencialista, e o outro, Cristão. A certo ponto, o caminho fez uma bifurcação: cada um decidiu ir por um lado, embora ambos seguissem ao mesmo destino: procuravam a residência da senhora Liberdade. Existencialista seguiu pelo caminho chamado
“O nascimento do novo homem” de Salvador Dali (1943): uma crítica à guerra e à promessa de transformação social. A doutrina existencialista leva a responsabilidade das barbaridades ao próprio homem, já que ele é o único responsável por escolher o que é bom ou não para si. Mas os valores de natureza moral seriam mesmo criados pelo ser humano ou seriam absolutos, dado que todos seres humanos concordam com os mais fundamentais deles, como o direito a liberdade?
23
‘ateísmo’, e Cristão seguiu pelo caminho chamado ‘fé’. Perderamse de vista. Após longa caminhada, tanto para um quanto para o outro, finalmente Existencialista vislumbra o final de seu caminho: uma mansão antiga com inscrições ao alto: “Liberdade”. Alegrase, mas ao entrar, sua alegria transformase em angústia, pois se vê desamparado, quando observa que no interior daquela residência não há ninguém, e tudo está abandonado às traças. Angustiado, sai pelos fundos da casa e vê a chegada do caminho chamado ‘fé’, também dando na mesma residência. Rise consigo mesmo e diz: “Meu amigo Cristão não terá vantagem alguma em ter escolhido o caminho da fé, pois ambos remetem a esse mesmo lugar; logo aqui ele chegará também. A única vantagem minha é que o caminho do ateísmo era mais espaçoso que o caminho da fé”. Passase o tempo e nada de Cristão chegar. Somente depois de muito esperar, é que Existencialista indignado volta tomando o caminho da fé esperando encontrarse com o amigo ainda em viagem. A certa altura do caminho, ele percebe que seu amigo já está longe, pois somente no caminho da fé havia mensageiros do Rei anunciando que a mansão da liberdade havia se mudado, transferindose do reino da terra para o reino dos céus, e por isso os viajantes tomavam um atalho chamado Cruz, apontado pelos mensageiros, para irem à nova mansão da Liberdade. Não sei se Existencialista chegou ao atalho da cruz em tempo, pois as portas da mansão da Liberdade iriam se fechar a meianoite; mas se não chegou, perdeu toda a viagem.
Liberdade: um padrão absoluto que rege as ações na construção dos valores humanos.
Balança: símbolo de justiça. A ausência de padrões preestabelecidos ao ser humano faz da justiça uma livre criação humana. Mas há um padrão pelo qual nossas ações são avaliadas, que indica quais atitudes são consideradas corretas e incorretas. Esse padrão é universal, independe de cultura ou época, e é através dele que o senso comum de justiça se estabelece. A própria existência desse padrão explicita a invalidade da visão materialista do mundo.
R E S U M O Filósofo: Jean-Paul Sartre (1905-1980) Argumentação ateísta: a) A existência humana precede sua essência (valores de certo e errado). Nenhuma moral religiosa pode dar ao homem respostas absolutas. b) É indiferente Deus existir, pois mesmo nesse caso, o homem tem de lidar com suas próprias escolhas.
Refutação: a) Embora considere que não existam valores fundamentais preestabelecidos, Sartre precisa
eleger a liberdade como valor absoluto (sem admitir) para consolidar sua defesa ao existencialismo quanto a acusação de anarquismo. A moral cristã é enfática em defender o amor ao próximo como compromisso social, e esse compromisso dá respostas. b) A existência de Deus muda tudo no cenário existencialista, pois então existem valores preestabelecidos ao ser humano.
24
RICHARD DAWKINS E A NOCIVIDADE DA FÉ Clinton Richard Dawkins (1941 ), zoólogo e etnólogo queniano, conhecido como “Rottweiler de Darwin”, dado o rigor com que defende o darwinismo; é um dos maiores divulgadores do ateísmo na atualidade. Através de palestras, participação em programas de TV, livros e documentários, ele tem disseminado suas ideias contrárias à fé em todo o mundo. As principais obras dele são: “O gene egoísta” (1976), “O Rio que saía do Éden” (1995), “A escalada do monte improvável” (1997), “Desvendando o arcoíris” (1998), “O capelão do diabo” (2003) e “Deus, um delírio” (2006). O mais conhecido de seus documentários intitula se “Raiz de todos os males?” (“The Root of All Evil?”), feito para a televisão inglesa, onde enfatiza a inutilidade das religiões, garantindo que o mundo seria melhor sem as mesmas. O documentário de cerca de noventa minutos, dividido em dois episódios, foi exibido pela primeira vez em 2006, e temos a seguir uma análise de vários dos seus argumentos. Raiz de todos os Males No documentário, Dawkins tenta estabelecer uma relação entre religião e ódio. Ele mostra imagens de um atentado suicida e afirma que aquilo não é o problema de uma religião específica, mas de todas as religiões, inclusive a cristã. Seguindo as ideias de Bertrand Russell, ele fala da escassez de milagres entre pessoas de maior nível intelectual. Visitando um santuário mariano na França, ele sugere que os milagres ali testificados não são examinados rigorosamente, e se fossem, se constataria que não são milagres. Depois disso, ele conversa com judeus, muçulmanos e cristãos, salientando as questões de intolerância religiosa entre os judeus e muçulmanos, e a contrariedade com a ciência da evolução por parte de pastores protestantes. Com isso, ele conclui que as religiões atrapalham o desenvolvimento social e científico. Dawkins identifica a fé como um vírus ideológico. Baseado em seu conhecimento em biologia, ele diz que o padrão de propagação das ideias religiosas é o mesmo padrão de propagação dos vírus, além disso, o vírus geralmente prejudica quem o contrai; da mesma forma, a fé além de não trazer benefícios a seu possuidor, ainda o prejudica. Toda crítica que Dawkins faz contra a religião sempre é baseada em erros que as pessoas religiosas cometem, por exemplo, como dizer que a ciência está errada ou como matar pessoas de outras religiões por não concordar com elas. Em relação ao cristianismo, esses atos errôneos não fazem parte dos ensinamentos, embora sejam muitas vezes praticados; mas nesses casos, errados estão quem os cometem, e não a doutrina religiosa em si.
Richard Dawkins: um dos maiores proselitistas ateu da atualidade.
Vírus Influenza: seu padrão de propagação é semelhante, para Dawkins, ao da difusão de ideias religiosas.
25
Deus, um Delírio Tratase de um livro muito popular de Dawkins, onde ele mostra toda sua ideia ateísta. Seu argumento é: quem criou Deus? Embora saiba que essa pergunta é descabida, ele a faz propositalmente, com a intenção de não abrir mão do naturalismo (pensamento que considera que tudo o que existe deva estar na natureza), e levar seus leitores a raciocinarem com ele sempre do ponto de vista materialista. Alguns experimentos que procuram mostrar que a fé é inútil e que a doutrina religiosa é nocivas são mencionados. Um deles é o experimento das preces. Nesse experimento, um grupo de pessoas internadas num hospital teve seus nomes registrados e entregues a uma determinada igreja, para que seus fiéis orassem por eles. Outro grupo de pessoas internadas não teve seus nomes registrados, e portanto, não receberam as orações dos fiéis daquela igreja. A forma que os doentes se recuperaram mostrou que as orações não tiveram qualquer efeito, aliás, entre os que receberam oração, aqueles que souberam que estavam recebendo oração pioraram mais em sua saúde que aqueles que não sabiam que estavam recebendo oração. O interessante é que ninguém questionou o método aplicado, ou seja, como Deus responde quando ele sabe que alguém o quer experimentar? Existem vários exemplos disso na Bíblia, e em todos eles, Deus não se manifesta quando não há uma intenção verdadeiramente pura. Um outro experimento que chama a atenção, agora feito no sentido de dizer que a doutrina religiosa faz mal para a sociedade, é o seguinte: foi perguntado para um grupo de alunos israelitas do ensino fundamental o que eles achavam da história bíblica da conquista de Josué. A grande maioria disse que a conquista foi um ato heroico. Depois de algum tempo, os pesquisadores escreveram a mesma história de Josué trocando seu nome por um nome desconhecido, e os nomes dos países envolvidos por nomes de países diferentes. Os alunos leram a história e agora responderam que a conquista foi absurda, já que o povo habitante das terras conquistadas foi brutalmente violentado pelos invasores. Dawkins conclui que foi a fé e a lealdade com a doutrina religiosa que fez as crianças acharem a conquista de Josué algo positivo, quando na verdade teria sido um genocídio bárbaro. Novamente, é um experimento muito criativo, mas serão mesmo válidas as conclusões? O que eles não perceberam foi que a história de Josué está envolvida num contexto muito maior, e o resultado da experiência mostra a prevalência do conceito de bem e do mal em relação ao conceito de certo e errado. Em todo caso, as narrações do Antigo Testamento mostram as ações de um povo que tinha por missão a intermediação da vinda do Messias, e não a representação do Reino de Deus em sua essência. Essa 26
A conquista de Jericó: para Dawkins, um vergonhoso genocídio sustentado pela convicção religiosa.
representação é cargo da Igreja fundada por Jesus a partir de seus ensinamentos, que inclui o amor aos inimigos, o que é propriamente contrário as mortes e sofrimentos das guerras em qualquer época. Apesar de ter se tornado um bestseller, o livro de Dawkins é fraco e seus argumentos são reciclados de pensadores antigos. Na opinião de pessoas dos mais altos níveis acadêmicos, Dawkins fez um desfavor para a causa ateísta, criando um livro cheio de provocações e argumentação emotiva, ao invés de fundamentar seus argumentos de forma criteriosa. Mas seu livro não é inútil: serve para denunciar muitos absurdos cometidos em nome da fé.
R E S U M O Filósofo: Richard Dawkins (1941-
)
Argumentação ateísta: a) A religião está associada ao ódio, a fé é um processo de não pensar. b) Quem criou Deus? A interferência de Deus na natureza não pode ser conferida, o que mostra sua inexistência. c) A religião perpetua os erros do passado.
Refutação: a) Religião e ódio podem coexistir, mas não é esse o caso do discípulo de Jesus. Grandes
pensadores da história foram e são pessoas religiosas. b) Deus está além da natureza, e as interferências divinas (os milagres) não podem ser comprovadas pelos critérios da ciência porque os critérios da ciência são limitados. c) As tradições perpetuam os erros do passado, e não a verdadeira religião segundo Cristo.
Imagens de outdoors criados pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, que foram publicados em Porto Alegre (RS) em 2011.
27
TENDÊNCIAS ATUAIS Na atualidade, temos uma popularização das ideias ateístas na sociedade. Por um lado, os defensores dessas ideias tem usado meios eficazes de propagálas, e por outro, a Igreja em geral tem deixado o evangelho em segundo plano, priorizando o exibicionismo denominacional. Os principais fatores que tornam a Igreja impopular são acusações de charlatanice, corrupção moral e intolerância religiosa. A charlatanice ocorre quando testemunhos de milagres em geral (curas, providências extraordinárias) são forjados para atrair multidões. Tais crimes são possíveis, mas não fornecem uma base sólida para se desacreditar de Deus: não se condena a ciência médica por charlatões que se passam por médicos a fim de enganar alguém. A corrupção moral é a acusação mais grave contra a igreja da atualidade. Enquadrase aqui o desvio do dinheiro arrecadado para fins particulares, algo que se tornou comum em alguns segmentos evangélicos; a pedofilia, cujas acusações e condenações mancharam profundamente a imagem do catolicismo romano, entre outras acusações. Mas a mais importante e efetiva acusação contra a igreja na atualidade é a de intolerância social. O evangelho é considerado segregador, onde devotos de outras confissões religiosas são demonizados, assim como pessoas de conduta alternativa ou principalmente homossexuais. O prêmio Nobel de literatura José Saramago disse que a religião nunca foi uma forma de aproximar as pessoas, pelo contrário, ela sempre foi uma forma de separálas. De fato, não há meio mais fácil de tornar dois povos irreconciliáveis do que através da religião. Entretanto, o evangelho de Cristo não pode receber essa condenação: foi Jesus quem ensinou as pessoas a amarem seus próprios inimigos. O cristão que segrega ou age de forma intolerante está contrariando sua própria fé. Mas não é só a Igreja que recebe acusações em nossos dias. Os ateus também lançam acusações contra a Bíblia e contra o próprio Deus. Contra a Bíblia, alegam que está repleta de contradições e absurdos. Falam por exemplo de incoerências em suas narrações, mas geralmente essas incoerências provem da má interpretação que fazem de seu texto. Em Gênesis 1, por exemplo, o homem foi criado junto com sua mulher, mas em Gênesis 2, a mulher foi formada depois do homem. Evidentemente, Gênesis 2 detalha aquilo que Gênesis 1 descreve de forma sucinta. É um argumento frágil e tolo, mas quando formulado e bem articulado por um filósofo em um livro, tornase um assombroso flagrante de incoerência textual. Algumas dessas ditas incoerências se referem a detalhes de uma narração que diferem quando descritos por um ou por outro 28
Atentados terroristas nos EUA: a religião fomenta o mal?
É impossível falar de críticas à Igreja atual sem mencionar o uso das arrecadações, especialmente numa época em que o volume de escândalos envolvendo enriquecimento ilícito por parte dos líderes evangélicos tem se multiplicado.
escritor, como a descrição da compra do Campo de Sangue, com o dinheiro que Judas recebeu para trair seu Senhor: em Mateus (27.68) foram os príncipes dos sacerdotes que o compraram, mas em Atos dos Apóstolos (1.1619) foi o próprio Judas quem o comprou. Há, em casos como este, um flagrante disparate, mas esse disparate só serve para conferir maior autenticidade ao texto, pois é inevitável que um fato, quando observado por mais de uma pessoa, gere algumas divergências em sua descrição. Se não houvesse uma só discrepância entre as narrações os céticos usariam essa mesma exatidão para acusar o cânon bíblico de ser uma obra forjada. As acusações contra Deus, quando o ateu admite a existência de Deus somente para blasfemálo, consiste em culpálo pelos males do mundo. É o velho conhecido “problema do mal”: se Deus é bondoso e poderoso, deveria suprimir o mal do mundo, fazendo com que as pessoas vivessem sem sofrimentos. Tal argumento ignora que a culpa pelos sofrimentos é do próprio homem, e que de fato, o próprio Deus já providenciou uma forma de salvação. As vicissitudes da vida não são um estorvo, nem algo que torne a vida uma desventura, mas são obstáculos que dignificam aqueles que os enfrentam, cujas vitórias redundam num peso de glória indescritível. Desse ponto de vista, a existência dos sofrimentos glorifica a Deus por dar ao ser humano a possibilidade de vencer, tornandoo mais do que um mero vivente sem conquistas. O ateísmo da atualidade é difundido nas escolas, nas universidades, em publicações de cunho científico, em filmes, seriados e em diversas manifestações culturais, sempre levantando a bandeira da racionalidade. Além dessa ostentação, militantes ateus se infiltram nos meios legais com a intenção de censurar toda informação religiosa, como no abstruso caso onde o Congresso Nacional brasileiro cogitou discutir assuntos relacionados com a liberdade de expressão religiosa sem a presença dos representantes religiosos, pois tal presença, para os militantes ateístas, causaria parcialidade e prejudicaria os debates. Na verdade, eles queriam a distância dos religiosos para criarem leis que dificultassem a disseminação da fé. Este sim, era com certeza um propósito absolutamente parcial e tendencioso. O ateísmo de nossos dias é bem diferente do ateísmo no passado. Da época dos gregos até a renascença, o ateísmo se manifestava indicando que acreditar em Deus era impossível, algo contrário ao conhecimento racional. Isso se mostrou ineficiente e logo o argumento passou a ser a indiferença da crença em Deus: ter fé não muda nada. Poucos religiosos cederam a esse apelo e continuaram crendo, de modo que agora, a aposta é: a fé prejudica o mundo. Assim, aos poucos, a crença religiosa deixou de ser considerada irracional para ser considerada ofensiva, e aos poucos, o ateísmo deixará de ser uma negação da existência de Deus e passará a ser uma rejeição pessoal deliberada, onde os propósitos, vontades e planos divinos serão alvo de blasfêmias e acusações. Essa última face do ateísmo, agora sem máscaras, mostrarseá um puro sentimento anticristão.
Há contradições na Bíblia Sagrada? Milhares de páginas na web apontam um grande número de supostas contradições, mas geralmente são frutos de má interpretação dos leitores.
Cartazes e capas de revistas de divulgação ateísta. A disseminação ateísta tem ido além das salas de aulas.
Jonh Lennon: inspiração ateísta em músicas como “Imagine” e “God”, que marcaram uma geração.
29
30
AS MÁSCARAS DE CIÊNCIA Nesta parte, falaremos sobre algumas descobertas científicas que os ateus usam como base para defenderem sua descrença em Deus. Como veremos, basear na ciência uma decisão em acreditar ou não no sobrenatural não é uma escolha sábia, aliás, a própria ciência se sustenta num particular método, que é questionado, debatido e jamais definitivo. Os céticos geralmente afirmam não aceitarem nada que não seja comprovado empiricamente, e por isso não gostam da religião, que exige a crença naquilo que se não vê. Mas na verdade, quando acreditam na ciência, especialmente nalguma teoria, estão exatamente aceitando algo passivo de comprovação. O próprio desenvolvimento da ciência funciona baseado em fé: o cientista propõe uma teoria de acordo com alguns resultados experimentais que dispõe, e acredita que aquela teoria funcionará em outros casos. Enquanto a teoria não for contrariada por alguma experiência nova, ela prevalecerá. Se pensarmos na fé religiosa dessa forma, ela resiste porque até hoje nenhuma evidência científica a derrubou, como comprovaremos a seguir.
Galáxia de Andrômedra. Imagem do espaço impressiona pela grandeza.
DE GALILEU A EINSTEIN: A FÍSICA CONTRARIA A FÉ? Entre os séc. XVI e XVII houve um forte confronto entre ciência e religião. Esse confronto se deu especificamente entre os astrônomos e a direção da Igreja Católica, quando a teoria de que a Terra não era o centro do Universo surgiu com base em observações astronômicas. Nas observações, constatouse que o nosso planeta se move em torno do Sol, assim como os outros planetas do sistema solar. Para a Igreja na época, pensar que a Terra não era o centro do Universo era um absurdo, pois a descrição da criação no Gênesis é focada na Terra, além do ser humano ser a primícia da criação e assim por diante. Perder o privilégio de ser único era algo inadmissível para os religiosos. O astrônomo italiano Galileu Galilei (15641642) chegou a ser condenado a desmentir o que escreveu sobre o assunto. Mesmo sendo contrariado pela Igreja, Galileu era um cristão mais convicto do que boa parte do clero da época. Costumase afirmar que ele dizia que a Bíblia ensina como se vai para o céu, e não como vão os céus. 31
Mas o tempo se passou e hoje em dia ninguém mais contesta o fato de que a Terra gira em torno do Sol, isso sequer incomoda quem acredita na Bíblia, aliás a Bíblia não diz nada sobre a posição da Terra no espaço. Depois de Galileu, muito tempo se passou sem surgir qualquer desacordo entre conceitos cosmológicos e a Bíblia. Somente com a teoria da relatividade de Albert Einstein (18791955), aliada com a moderna física quântica, surgiram novos confrontos. O novo confronto se deu pelo desenvolvimento da teoria do Bigbang, que diz que toda matéria existente no Universo surgiu de uma grande explosão. Algumas pessoas pensaram que a crença religiosa estaria ameaçada, porque uma explicação foi dada para o surgimento de todas as coisas sem a necessidade de um criador. O físico britânico Stephen Hawking, considerado por muitos um dos maiores cientistas da atualidade, defende que não há lugar para Deus na concepção científica moderna: é possível explicar o surgimento da matéria e mesmo do espaço e do tempo a partir das leis da física, e por essas leis, tudo teve um início num único instante, nada existiu antes desse instante, pois até mesmo o tempo passou a existir dali em diante. Sendo assim, não há 'antes do bigbang', de modo que Deus não poderia estar criando o Universo. Evidentemente, a visão materialista domina essa descrição. Se pensarmos no plano espiritual, onde o tempo não é, nem precisa ser, sincronizado com o tempo no plano material, o lugar para ação de Deus permanece válido. Além do mais, quem promulgou as leis a partir das quais o Universo funciona? Os ateus diriam: o acaso, mas tal resposta é uma escolha tão dotada de fé quanto a crença em Deus. Existe um fato que nunca é mencionado pelos ateus por razões óbvias. Tratase da física quântica ter derrubado a ideia do determinismo filosófico. Isso significa que muitos filósofos ateus como Hume, Nietzsche, Russell entre outros, que acreditavam não existir livre arbítrio porque todas ações se enquadravam nas leis deterministas da natureza, inclusive nossas decisões, tiveram suas conclusões invalidadas. Agora, a ciência provou existir espaço para a livre ação, já que seu limite é bem mais restrito do que se supunha, e já reconhecemos não ser possível descrever todos movimentos de um sistema, mas apenas suas probabilidades. Existem outras discordâncias clássicas entre a Bíblia e a ciência, mas elas são todas falsas, pois interpretam a Bíblia de maneira equivocada. Vejamos: alegase que na Bíblia a Terra é plana e quadrada, mas não é verdade, pois no livro 32
O Sistema Solar: para a Igreja romana do séc. XVII, o fato de que a Terra não está no centro do Universo foi um golpe em suas crenças.
Albert Einstein, o formulador da teoria da relatividade.
de Isaías está escrito sobre o círculo da Terra. Falase também sobre a profecia de que estrelas cairão do céu, acusando ser essa uma profecia impossível de se cumprir, mas quem assim questiona fala de estrelas no sentido científico atual, o que pode não ter sido a intenção de Jesus ao proferir tal profecia. Tratase mais de uma provocação do que de um argumento ateísta. O mesmo acontece em relação a narração do Sol ter parado em seu curso na peleja de Josué. Dizem os céticos: quem se move é a Terra, como pôde o Sol ter parado? Mas para quem observa da Terra, é legítima a afirmação de que o Sol percorre ou deixa de percorrer o céu. Tirando a má interpretação dos textos bíblicos, não há na física ou na astronomia qualquer contradição em relação a fé cristã. A Terra não é o centro do Universo, e o Universo teve um início, mas quem pôs tudo a existência foi Deus, e contra essa concepção não há argumentos, apenas a decisão de se crer ou não.
A EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Manuscrito Einstein de 1914 sobre campos gravitacionais.
A teoria da evolução das espécies é sempre considerada pelos ateus como a maior evidência de que a Bíblia está errada. Isso porque o primeiro capítulo da Bíblia narra a criação dos seres vivos sem qualquer indicação de um processo de evolução. A teoria da evolução diz que as espécies de seres vivos nem sempre existiram como são. Elas se desenvolveram gradativamente até se tornarem o que são hoje, e nesse desenvolvimento foi onde as espécies se diferenciaram umas das outras. Por exemplo, o homem e o macaco são frutos do desenvolvimento de um único ancestral. Vamos expor rapidamente a história dessa teoria. A teoria da evolução surgiu com o trabalho de um biólogo chamado Jean Baptiste Lamarck (17441829). Ele dizia que as características dos animais foram desenvolvidas pelos seus hábitos. Por exemplo, as girafas tem pescoços longos porque por muitas gerações elas se esticavam para se alimentarem das folhagens mais altas das árvores. Mas logo se percebeu que essa teoria está errada: fizeram uma experiência onde se cortaram as caudas de ratos por várias gerações, mas mesmo assim eles sempre nasciam com rabos normalmente. 33
Somente em 1859 foi que Charles Darwin (18091882) publicou seu famoso livro “A Origem das Espécies”, onde ele afirma que o desenvolvimento das espécies se dá principalmente pelo processo de seleção natural, ou seja, existem pequenas variações em cada indivíduo de uma mesma espécie, como por exemplo, alguns são mais fortes, outros mais altos, outros tem pernas ou braços maiores etc., e os indivíduos que sobrevivem são aqueles que tem as melhores condições de adaptação ao ambiente onde vive. Assim, o pescoço das girafas é longo não porque elas se esticavam, mas porque entre as girafas haviam algumas de pescoço mais longo que as outras, e como estas se nutriam ou se defendiam melhor, foram as que sobreviveram com o passar de muitas gerações. Darwin morreu muito antes da descoberta do DNA (ácido desoxirribonucleico), e somente com os estudos da biologia moderna é que os mecanismos bioquímicos relacionados com a evolução são bem compreendidos. A seguir, daremos uma descrição resumida dos principais mecanismos de desenvolvimento dos seres vivos. Até alguns séculos atrás, acreditavase que animais pudessem surgir espontaneamente da matéria não viva. Por exemplo, de um monte de lixo surgiam camundongos, mosquitos e vermes. Evidentemente, esses animais não surgiam do lixo, mas se procriavam ali, ou seja, eles vinham de algum lugar e ali se reproduziam. Até se entender que animais só surgem da reprodução, ou seja, um animal só pode surgir se nascer de outro da mesma espécie, foi preciso muita pesquisa. Foi somente no século XIX que Louis Pasteur provou isso definitivamente. Hoje, existem algumas teorias que especulam sobre o surgimento dos seres vivos a partir da matéria inanimada, afinal, o ideal materialista parte do pressuposto de que tudo o que existe está na natureza e deve ser explicado pela ciência. Assim, com a existência dos seres vivos não é diferente: em algum momento ocorreu esse surgimento, e cabe à ciência explicálo. A principal teoria é a da sopa primordial. Basicamente, essa teoria diz que num ambiente aquoso primordial, com condições físicas e químicas apropriadas, uma forma primitiva de vida deve ter surgido. Na década de 50, alguns pesquisadores realizaram uma experiência mostrando ser possível o surgimento espontâneo de aminoácidos em laboratório, sendo que os aminoácidos são os componentes essenciais para a formação de seres vivos. Recentemente, um pesquisador chamado Sidney Fox ganhou a atenção do mundo quando disse ter descoberto uma forma muito primitiva de 34
Charles Darwin: principal mentor da teoria da Evolução das Espécies.
vida, que era construída apenas com matéria não viva, mas seus 'seres vivos' eram apenas proteínas que interagiam entre si num processo de auto replicação, incapazes de desenvolver qualquer tipo de autonomia, o que é típico dos seres vivos. Assim, até hoje a ciência não tem uma palavra final sobre o surgimento dos seres vivos. Se não entendemos o surgimento dos seres vivos, tudo o que sabemos é que no processo de replicação genética está o segredo para compreendermos sua evolução. O processo de evolução se dá pelo acúmulo de pequenas modificações nos genes dos animais, isso pode ser comparado a um painel gigante formado por pequeninas peças coloridas, que é modificado numa série de etapas. A cada etapa, uma peça aleatória é trocada de lugar com a peça vizinha. Depois de milhares de etapas, o painel final será bem diferente do inicial, mas se tivermos inicialmente dois painéis idênticos, após milhares de etapas, eles ficarão bem diferentes um do outro, e ambos bem diferentes do modelo inicial. É de uma forma semelhante a esta que os genes de um determinado animal vão sendo mudados gerações após gerações. Mas porque existe apenas um número determinado de espécies sobreviventes, e não infinitas espécies, já que as modificações são aleatórias? Aqui entra o processo de seleção natural que Darwin descobriu: apesar das modificações serem aleatórias, alguns tipos não podem sobreviver porque não podem se adaptar bem ao meio em que vivem. Por exemplo, um urso polar pode nascer ligeiramente modificado em sua pele, sendo esta menos protetora do frio, mas este urso certamente não sobreviveria até se tornar adulto e procriar, ou caso vivesse até procriar, sua saúde seria debilitada, tornandoos fadados a extinção. Em resumo, a seleção natural (adaptação ao habitat) funciona como um filtro que permite sobreviver apenas algumas espécies, e não qualquer tipo de ser vivo como poderia surgir das modificações aleatórias dos genes. Com o processo de evolução, as espécies podem então serem modificadas em várias formas viáveis, e quando a modificação dos genes altera o sistema reprodutor de tal forma que a espécie modificada não pode mais ter cruzamento fértil com a espécie original, considerase que aconteceu a especiação, ou seja, essa modificação fez surgir uma nova espécie. Dessa forma, é possível pensar que todas as espécies existentes surgiram de uma mesma espécie ancestral, mas esse pensamento não é, a princípio, necessário. O que o torna necessário é outro fator: a universalidade do código genético. O código genético é o sistema de interpretação usado no momento da reprodução de um ser vivo. Funciona como uma escrita. As informações do DNA dos pais são como um manual
Até o séc. XVII, acreditavase que ratos nasciam do lixo, sem a necessidade de reprodução. A ideia do surgimento de seres vivos a partir da matéria bruta (abiogênese) só foi derrubada definitivamente com os trabalhos de Louis Pasteur no séc. XIX.
Chimpanzé: seu DNA difere do DNA humano em menos de 5%.
35
de construção do novo ser vivo que está sendo gerado, e a forma como essas informações são interpretadas é a mesma em todos os animais existentes. Desse fato admirável, concluise das duas uma: ou todos animais procedem de um mesmo progenitor (de onde herdou essa forma de interpretação do código genético), ou se as espécies surgiram inicialmente já separadas, então houve uma coincidência extrema e inexplicável para que todos eles tenham o mesmo código genético. Os cientistas, evidentemente, não optaram pela notável coincidência, mas pela hipótese do ancestral comum. A evolução das espécies existe e é comprovada por milhares de evidências. Uma delas é o caso de uma ave que vive na Ásia, chamada toutinegra esverdeada. Ela vive numa região com extensão de mais de 3 mil quilômetros, mas ela sofre o processo de especiação, ou seja, se cruzarmos uma delas do extremo dessa região com outra do outro extremo, elas não se cruzam, sendo portanto de espécies diferentes, mas se cruzarmos uma delas de um extremo com uma intermediária, elas terão cruzamento fértil, e se cruzarmos essa intermediária com uma do outro extremo, elas também terão cruzamento fértil. Assim, as aves de um extremo dessa região tem algumas modificações em relação as aves das regiões intermediárias, mas não são modificações que não comprometem a reprodução entre elas, o mesmo acontece com essas mesmas aves da região intermediária com as aves do outro extremo, mas entre as aves de um extremo e do outro extremo, as modificações acumuladas são tantas que comprometem a reprodução entre elas. Criacionismo Agora vamos falar sobre o criacionismo, ou seja, a doutrina que ensina que os seres vivos foram criados por Deus. O criacionismo é uma doutrina extensa, existem muitas formas de professálo. A mais conhecida, porém, é o criacionismo fundamentalista. Nessa confissão, acreditase que o mundo foi criado em seis dias de 24 horas, e que todos animais surgiram nesse período, sendo já criados da forma como são conhecidos hoje. Esse tipo de crença é bem recente na história da igreja, na época dos reformadores, por exemplo, acreditavase na interpretação metafórica dos dias da criação. Os 36
Mapa ilustrativo da evolução das espécies.
Toutinegra: evidencia viva do processo de especiação.
“A Criação de Adão”, de
fundamentalistas tem a intenção de desacreditar a teoria da evolução com a Michelangelo. própria ciência, e alguns argumentos deles são: 1) O registro fóssil mostra o surgimento das espécies de forma simultânea num pequeno intervalo de tempo, o que contraria a tese evolucionista. 2) Os seres vivos são complexamente irredutíveis e tem complexidade especificada, ou seja, não podem ter se desenvolvido a partir de formas muito primitivas, pois eles tem partes independentes e complexas, que precisariam ter evoluído independentemente para depois se juntarem, mas antes de se juntarem, essas partes não formavam um ser vivo. São portanto, frutos de um design ou projeto inteligente. 3) O sistema solar é extremamente propício à vida, e não só o sistema solar, mas também o Cosmo, o que indica a existência de um propósito referente a vida. Quanto ao primeiro argumento, existem teorias evolutivas que o explicam, como a teoria do equilíbrio pontuado, que alega que as modificações nos genes são sutis, mas quando afetam genes críticos, produzem muitas e grandes alterações em pouco tempo. O segundo argumento leva a uma discussão Michael Behe: interminável, pois os evolucionistas dizem que por mais complexos que os proponente da ideia de Projeto Inteligente. organismos sejam, a evolução pode seguir caminhos exóticos, cujos resultados parecem inexplicáveis, alguns verificados em simulação de computador. E quanto ao terceiro argumento, não se trata de um argumento contra o evolucionismo, mas contra o ateísmo. O evolucionismo explica somente o desenvolvimento dos seres vivos, já o fato de o Universo e o sistema solar serem propícios à vida, pode intrigar um ateu, mas não necessariamente a um evolucionista. Aliás, é essa a distinção que temos de mostrar aqui: onde um religioso diverge de um ateu? Em aceitar ou não que os animais evoluem? Não! Em aceitar ou não que a vida é fruto de um projeto? Sim! O cristão crê que Deus propiciou o Universo para o surgimento e desenvolvimento da vida, independentemente de como esse desenvolvimento se dá. Acredita ainda que os seres vivos tem em si algo além de matéria, e que o ser humano tem algo de especial, pelo fato de ter sido criado conforme a imagem e semelhança de Deus, e são esses pontos que nem 37
o evolucionismo nem qualquer teoria científica pode explicar. A vida é mais que um afortunado arranjo de moléculas, e o ser humano é especial pois sobressai a todos animais. Como dizia Chesterton, se pararmos de olhar para livros sobre o homem e sobre os aminais e começarmos a olhar diretamente para o homem e para os animais, veremos que a diferença entre eles é absurda, e o fato deles serem quase idênticos em sua estrutura biológica torna essa diferença ainda mais inexplicável. O erro dos ateus não está na ciência da evolução, mas em considerar que tudo o que existe está na natureza, e que a ciência pode explicar todos os fatos. Se admitissem o sobrenatural – que é inacessível à ciência, perceberiam que compreendendo os mecanismos da natureza, fica cada vez mais clara a existência de algum propósito relacionado a vida. Acreditar nisso requer fé, mas não requer que neguemos a ciência. A grande jogada ateísta aqui consiste em fazer intensa propaganda de que a ciência é contra a fé, mas isso não passa de uma máscara a ser denunciada. O segredo da vida, isto é, a exata diferença entre um ser vivo e uma mera máquina formada por um sofisticado arranjo de moléculas, dificilmente é compreendido, mas pode ser observado na missão da vida – a perpetuação da espécie. A própria existência de uma missão, ou função de utilidade dos seres “Que o homem e os animais são iguais é, num certo sentido, um truísmo; mas que, sendo tão iguais, eles sejam tão disparatadamente desiguais, esse é o choque e o enigma” (Chesterton). Uma metrópole, símbolo das realizações humanas. Em termos de realizações, os animais estão muito aquém dos seres humanos.
38
Galáxia M 104: famosa por sua forma peculiar. As constantes físicas do Universo são minunciosamente ajustadas para propiciação à vida?
vivos, sendo elas consideradas do ponto de vista materialista ou espiritualista, é incompatível com um entendimento casual da existência: soa muito estranho e inexplicável atribuir ao acaso a produção de objetos que têm missões a cumprir!
A PSICOLOGIA E A FÉ Neste capítulo, vamos discutir sobre a argumentação psicologista do ateísmo. Basicamente, a estratégia dos ateus é a de usar a psicologia para esclarecer o surgimento da religião na história da humanidade, e explicar, dum ponto de vista materialista, o significado da crença religiosa para o indivíduo. Vamos aqui recorrer a dois pensadores de grande contribuição para o desenvolvimento da psicologia, Sigmund Freud e Carl G. Jung. O primeiro era um ateu declarado, já o segundo, apesar de não ser ateu – era um cristão protestante, tem ideias que levam a concluir que o sagrado nada mais é do que uma aspiração da psique humana, o que é uma fonte de combustível para a descrença na existência de Deus. Freud e “O Futuro de uma Ilusão” Sigmund Freud (18561939), considerado o pai da psicanálise, foi um grande incentivador do ateísmo. Sua doutrina psicanalista, na verdade, em nada versa diretamente sobre o assunto, mas ele fez analogias diretas entre essa doutrina e o comportamento religioso humano, donde se infere constantemente o testemunho ateísta da psicanálise. Uma obra de Freud que discorre diretamente sobre a associação de seus pensamentos a respeito da religião é “O Futuro de uma Ilusão”, escrito em 1927. Tratase de um ensaio, considerado dos maiores dele, ao lado de “O Mal Estar na Civilização” e “Moisés e o Monoteísmo”. Vamos empreender uma análise do conteúdo deste texto a fim de conhecermos a fundo até onde a ciência da psicanálise – há quem considere que a psicanálise não merece o título de ciência, mas essa concepção é controversa e remonta a uma profunda discussão epistemológica – influi no pensamento ateu deste importante e renomado pesquisador. “O Futuro de Uma Ilusão”, é um pequeno ensaio, mas de importância considerável, principalmente no esboço da formulação do ateísmo freudiano. A maior constatação da leitura deste livro é o fato de que a teoria da psicanálise não se defronta com a fé, são efetuadas apenas analogias entre essa ciência e o comportamento religioso, mas nenhuma inferência conclusiva direta pode ser extraída de tais considerações. O livro é composto de dez capítulos sem títulos, e o seu objetivo é dissecar o efeito da religião na civilização. Freud começa dizendo que a civilização desenvolve regras para que a criação de riquezas seja possível. Por exemplo, se não houverem regras na sociedade, uma grande parte das pessoas não se submeteriam ao trabalho. Apesar dessas regras existirem já há muito tempo, as pessoas parecem não ter fácil adaptação a elas, por exemplo, a vontade de matar, o incesto e outros desejos perversos parecem já nascer em algumas pessoas. Mas se as regras da sociedade são para seu
Sigmund Freud: psiquiatra judeuaustríaco considerado o 'pai da psicanálise'.
As leis ajudam a defender os homens dos criminosos, mas como os homens se defenderão contra as calamidades naturais, como um terremoto? Para Freud, dessa busca nasceram as religiões.
39
próprio desenvolvimento e para livrarem as pessoas de impulsos arbitrários de indivíduos neuróticos, elas são incapazes de livrar as pessoas das calamidades naturais como tempestades e terremotos, ou de problemas como as doenças e a morte. Assim, a primeira tentativa da humanidade foi a de dialogar com as forças naturais, logo, o sol, a lua, as montanhas, o mar se tornariam seres dotados de vontades, vontades essas que teriam de ser satisfeitas para que eles viessem a favorecer o ser humano. Surgiram então as divindades, com a finalidade de exorcizar os terrores naturais. Mesmo com essas divindades, a morte não pode ser vencida, logo, a função da divindade tornouse também a de compensar os homens por seus sofrimentos e morte. A sociedade teria acabado criando, dessa desesperada tentativa de lidar com os sofrimentos, regras além daquelas anteriores, regras agora que prometem tornar os deuses favoráveis ao ser humano. Dadas essas explicações imaginadas, Freud agora se propõe a criticar esse artifício chamado religião que os homens criaram. Para isso, ele inicia dizendo que as informações sobre os deuses e sobre os rituais não podem ser aprendidos naturalmente, eles tem de ser passados de geração em geração por sacerdotes, mas sendo assim, qual a garantia de que essas informações são corretas? Para essa pergunta, ele levanta as mais fúteis respostas. Diz que a garantia que os religiosos oferecem sobre suas crenças está no fato de que os seus antepassados também criam, ou que é proibido levantar essa questão. Para ele, a religião só é acreditada ou porque é considerada acima da razão ou porque as pessoas agem “como se” houvesse alguma garantia dessas ideias. Mesmo o pensamento de que a crença religiosa seja fruto de um sentimento interior, algo comunicado diretamente pelo Espírito Santo, Freud alega que seria ainda insuficiente para disseminar a fé, pois as pessoas que não receberam essa graça não teriam essa garantia para também acreditarem. Com todas essas considerações, Freud diz que as religiões nada mais são que ilusões, que propõe satisfação aos desejos e anseios enraizados no interior do ser humano, seria uma forma do ser humano fingir para si mesmo. Para ele, não é coincidência que as promessas feitas pelas religiões para seus devotos correspondam exatamente com aquilo que o ser humano busca: vida eterna, paradisíaca e isenta de sofrimentos, além do reencontro com ente queridos já falecidos; pois tudo isso teria sido inventado exatamente com esse objetivo. Nenhuma dessas afirmações tem qualquer valor para afirmar a inexistência de Deus, são apenas cogitações baseadas na incredulidade. Diante dessa incredulidade, Freud fala da necessidade de desencantar a sociedade: imagine uma sociedade onde a proibição a matar alguém seja uma regra baseada na fé religiosa. Se um dia essa sociedade perceber que Deus não existe, a regra sobre não matar será 40
“A última ceia”, de Leonardo da Vinci. Freud questiona: que garantia temos de que as ideias religiosas são verdadeiras?
Para Freud, as promessas de paraísos eternos mostram que as religiões nada mais são que ilusões humanas.
abandonada. Somente após algum período de caos, essa mesma sociedade redescobrirá a necessidade de impor uma regra sobre não matar, mas agora não como regra religiosa, e sim como regra laica de sobrevivência. Da mesma forma, a humanidade precisa abandonar as regras de conduta baseadas em princípios religiosos. Com isso, Freud foi um dos primeiros a mencionar a necessidade de extinção da fé religiosa. A comparação com o comportamento infantil também é evocado: assim como a criança que começa a desconfiar da estória de que bebês são trazidos por uma cegonha, a humanidade começa a perceber, para Freud, que as estórias de deuses e religiões são falsas. Assim, a religião é a neurose da humanidade. Segundo ele, por isso mesmo os indivíduos religiosos são geralmente poupados de outras neuroses. Sua preocupação é a de eliminar da educação infantil os valores religiosos.
Freud alega que a situação da humanidade frente as religiões é semelhante a criança que começa a desconfiar da estória de que bebês são trazidos pela cegonha.
Jung e a Análise da Psique Carl Gustav Jung (18751961), psiquiatra suíço filho de pastor protestante, dedicouse ao estudo dos meios pelos quais o inconsciente se expressa. Juntamente com Freud, desenvolveram elementos da Psicologia Analítica, e apesar da apreciação mútua inicial, ao longo do desenvolvimento de seus estudos eles divergiram em opinião. Jung não concordava, por exemplo, com a posição de Freud em prognosticar qualquer elemento de natureza religiosa como fruto de uma ilusão; em oposição a isso, confere à experiência religiosa utilidade vital, tratandoa (quase que misticamente) como um elemento cuja análise é necessária para o autoconhecimento humano. Os fatores religiosos, para ele, estão diretamente ligados ao inconsciente. Para analisarmos a avaliação que Jung faz da religião, recorreremos a uma de suas obras, escrita em 1940 e intitulada “Psicologia e Religião”. Neste trabalho, ele introduz o problema da psicologia prática e suas relações com a religião; procura evidenciar a existência de uma função religiosa no inconsciente; e por fim, discorre sobre o simbolismo religioso dos processos inconscientes. Jung se concentra em indicar uma autonomia do inconsciente de cada indivíduo. Para isso, relata sonhos que seus pacientes lhe contavam, destacando o fato de que várias informações obtidas através dos sonhos eram informações que não estavam antes na consciência de seus pacientes, ou seja, pessoas que não tinham consciência de certos assuntos apresentavam informações sobre esses mesmos assuntos (referentes a própria pessoa, como
Carl G. Jung: a religião como manifestação da psique humana.
41
emoções, desejos, medos etc) em seus sonhos, ou seja, formulações geradas com a ação do inconsciente. Logo, ele propõe que a consciência é apenas uma parte da totalidade humana, há uma outra parte – o inconsciente – que apesar de ser geralmente desconhecida, cumpre um papel importante nos processos psicológicos do ser humano. Valendose da ideia do numinoso, isto é, a percepção psicológica do sagrado, Jung consente com a antiga afirmação Homo homini lupos (“o homem é o lobo do homem”), ou seja, as ideias religiosas são produzidas no inconsciente do indivíduo e o afligem manifestandose como numinoso. Com essa afirmação, ele sentencia que as ideias religiosas não tem qualquer verdade sobrenatural, são apenas frutos da psique humana; além de inferir que essas sejam ameaçadoras ou amedrontadoras. Com essa concepção, ele deduz que uma religião nada mais é do que a institucionalização de dogmas, que objetiva proteger o homem da experiência numinosa imediata, ou seja, de algum tipo assombroso de experiência interior. Dessa forma, o católico romano, por exemplo, tem seus rituais e a confissão para intermediar sua experiência religiosa. O protestantismo, por sua vez, rompeu com tais elementos intermediários, fazendo abrirse a oportunidade de novas experiências religiosas imediatas, o que pode ser, em sua opinião, um risco, já que os rituais religiosos foram concebidos justamente para evitar tais experiências numinosas. De sua vasta experiência em análise onírica (estudo dos sonhos), Jung percebe um padrão que julga ser universal, algo como um eco proveniente do inconsciente humano, e que indica haver uma identidade maior associada a cada indivíduo, identidade essa apresentada de forma simbólica como uma quaternidade, ou seja, um conjunto fechado de quatro elementos complementares entre si. Esse símbolo, segundo ele, costuma ser representado nos sonhos como uma mandala, geralmente com o centro vazio. Conclui que a Trindade cristã é a institucionalização dessa identidade, que juntamente com um quarto elemento completaria a totalidade humana. Quanto ao quarto elemento, que ocuparia o papel central, Jung chega cogitar ser a mãe de Deus ou o demônio, mas acaba concluindo de suas pesquisas que se trata unicamente do próprio indivíduo. Assim, o centro da identidade humana, e também o centro das experiências numinosas seria o próprio ser humano. Mesmo sem afirmar explicitamente, está inferido aqui não só a inexistência do sobrenatural, mas também o pensamento de que Deus, como projeção psíquica, nada mais é do que uma manifestação inconsciente da identidade humana. Jung consente com a morte de Deus anunciada por Nietzsche, mas a interpreta de outra forma: para ele, a morte de Deus indica que nós perdemos sua referência, que abandonamos a imagem de um ser pessoal que vive no céu, mas temos agora que procurálo em outro lugar. Ele chega a dizer que a história da ressurreição de Cristo é uma manifestação dessa nova busca: o Deus ressurreto, diferente daquele antes de morrer, deve ser encontrado dentro de nós, não como alguém distinto vivendo em nós, mas como sendo nós 42
Uma mandala tibetana. Jung identificou um padrão que considera ser universal: a representação da divindade vinculada com a identidade humana.
“A ascensão de Cristo”, por Garofalo. Jung acredita que a ressurreição é o símbolo da busca pela nova divindade.
mesmos. A relação de Jung com o ateísmo é indireta; ele rejeita a ideia freudiana de considerar as religiões como meras ilusões, mas acredita que elas são manifestações da identidade humana. Jung era protestante, mas suas conclusões somam combustível para a descrença num Deus pessoal. Ele poderia ser considerado o “descobridor de Deus”; mas com toda certeza, não o é em relação ao Deus Criador da natureza. É, entretanto, dum deus interior ao homem que cria rituais e dogmas para protegêlo de si mesmo.
A CULTURA CRISTÃ E AS CIÊNCIAS SOCIAIS
Condomínio de luxo ao lado de uma favela em São Paulo: gritantes contradições em uma sociedade de cultura predominante cristã.
Uma das formas de atestar a veracidade dos pressupostos de uma religião é através da avaliação de seus efeitos nas sociedades onde essa crença se estabeleceu. O cristianismo, por exemplo, prega a igualdade e a justiça, mas se países de maioria cristã não alcançaram tais ideais, como acreditar que essa religião tenha um efeito real na sociedade? Com o objetivo de desmascarar esse argumento, vamos discutir uma obra considerada muito importante de Max Weber, chamada “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. A teoria socialista de Karl Marx, tida por alguns como uma espécie de solução definitiva para a sociedade, também será avaliada a partir de uma livre comparação com a proposta de Cristo para os dilemas humanos. Baseados no dogma materialista, muitas explicações foram dadas para o surgimento das religiões, entre elas, a chamada teoria animista. Discutiremos um pouco dessa teoria a partir do trabalho de Edward Tylor intitulado “Cultura Primitiva”. Tylor e a Cultura Primitiva Edward Burnett Tylor (18321917), antropólogo britânico, é um ilustre representante do evolucionismo cultural (vertente que atribui ao desenvolvimento cultural e religioso de um povo princípios similares ao evolucionismo darwiniano). Considerado um dos pais do conceito moderno de cultura, sua principal obra é “Cultura Primitiva”, publicada em 1871, onde ele delineia suas teorias sobre o desenvolvimento da sociedade e da religião, teorias essas que aspiram a universalidade. Vamos analisar de forma breve sua teoria, onde temos a abordagem das origens da religião sob um ponto de vista materialista. Tylor define cultura como o conjunto de todos os conhecimentos, crenças, artes, moral, lei e costumes adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade. Com isso, ele se propõe a explicar o desenvolvimento cultural das sociedades desde o meio selvagem até a civilização. Os provérbios e
“Akhenaton e Nefertiti”, baixo-relevo egípcio que faz alusão ao culto ao sol. O sol foi objeto de culto em inúmeras civilizações.
43
ditados antigos, bem como os rituais religiosos são para ele as principais fontes de conhecimento de temos hoje das culturas primitivas. O conceito mais importante em relação ao surgimento da crença no sobrenatural para Tylor é o animismo. Animismo é uma teoria que alega que o surgimento da crença no sobrenatural surgiu da personificação dos elementos naturais. Por exemplo, o sol, a lua, as montanhas, os relâmpagos entre muitos outros elementos, por impressionar o ser humano, passaram em algum momento a serem tratados como seres animados (daí o nome “animismo”), ou seja, como indivíduos dotados de personalidade. Mas a personificação da natureza não parou por aí, logo o próprio ser humano passou a ter uma dupla personalidade: sua personalidade própria e a personalidade dos sonhos, a alma. Segundo Tylor, a ideia de alma humana surgiu porque nos sonhos a pessoa pode estar em lugares diferentes de onde seu corpo realmente está, pode conversar com outras pessoas, fazer várias coisas – inclusive coisas impossíveis para seu corpo natural como voar, sem contudo ter ido, falado ou feito de fato qualquer uma dessas coisas. Logo, passouse a compreender que o ser humano não é constituído apenas por seu próprio corpo, mas também por um fantasma que vagueia e age nos sonhos. Não foi difícil para os primitivos pressupor que na morte esse fantasma ficasse vagueando e agindo em algum lugar sem mais ser interrompido, pois a pessoa morta não mais acordará. Assim teria nascido a ideia da imortalidade da alma, e mais: sendo comum o fato de que pesadelos acontecem a quem dorme com muitas preocupações ou culpas que lhe inquietem, e os bons sonhos são praxe a quem não está sobrecarregado de perturbações, mas com a mente tranquila, logo a ideia de que após a morte a alma peregrinará em eterna tranquilidade ou em eterna perturbação surgiu relacionada com as possíveis preocupações que aquela pessoa levou consigo: se suas ações em vida foram más ou boas. Dessa forma, um tênue esboço da ideia de paraíso e castigo eternos já pode ser deduzido dessa teoria. 44
“O sonho de Jacó” de Giovanni Batista Tiepolo (1726-29). Segundo a teoria animista, os sonhos deram origem a crença na alma.
Edward Tylor, principal desenvolvedor da teoria animista.
Para construir uma teoria do desenvolvimento da religião, Tylor dá uma definição mínima que envolve todas as crenças religiosas. Segundo essa definição, religião é simplesmente a crença em seres espirituais. O desenvolvimento da religião, para ele, se deu da seguinte forma: a crença em seres espirituais se deu com o animismo, onde vários elementos da natureza ganharam vida, numa espécie de espiritismo. O passo seguinte foi selecionar entre todos os elementos animados alguns que passaram a considerar mais importantes que outros, e portanto, dominadores. Essa ideia não surgiu do nada, mas da própria experiência humana, onde indivíduos passaram a dominar sobre outros. Nesse passo, surgiu o politeísmo, já que os elementos dominadores galgaram o status do que hoje entendemos por deuses. Por fim, com a experiência humana da monarquia, onde um indivíduo – o rei, domina sobre todos, o reflexo na crença sobrenatural foi imediato: há um ser espiritual dominante sobre todos, que é o verdadeiro Deus, que se eleva sobre todos deuses e os subjuga. Assim nasceu, para o animismo, o monoteísmo. Logo, o monoteísmo – a crença num único Deus, passa a ser considerado fruto da segregação social, estratificação e dominação econômica, e por essa razão vários intelectuais das ciências sociais interpretaram a religião como o fruto dum sistema que se pretende extinguir, e sem trégua passaram a rejeitar a Deus, tratandoo como versão animada da perversa dominação e segregação social, que tanta injustiça trouxe ao mundo nos mais diversos lugares e épocas. A teoria de Tylor é coerente, completa e auto consistente, mas há um único fator que a invalida completamente: ela não concorda com a realidade. Cerca de 40 anos depois da publicação da obra de Tylor, começou a ser desenvolvido um gigantesco trabalho pelo antropólogo e etnólogo britânico Wilhelm Schmidt (18681954), realizado a partir de contatos com tribos indígenas, povos aborígenes e com as mais diversas culturas consideradas primevas e isentas de contatos com colonizadores, e nessa consulta o que se verificou foi a existência da ideia de um Deus único, mesmo em culturas onde jamais se experimentou a monarquia. Com tais evidências (tratase de um trabalho de dimensão enciclopédica de 12 largos volumes recheados de evidências),
Mosaico retratando “Alexandre o Grande” encontrado nas ruínas da cidade romana de Pompeia. Assim como no período helenista, dominadores existiram em culturas primitivas, os quais inspiraram o surgimento das divindades.
A cultura indígenas norte-americana forneceu alguns exemplos da crença numa divindade soberana antes de qualquer experiência de monarquia ou similar.
45
Schmidt identifica a crença num Deus soberano nas mais diversas culturas primitivas consultadas. Ou seja, a crença num Deus único, ao que tudo indica, é a mais antiga forma de crença sobrenatural, contrariando e comprometendo toda estrutura da teoria animista de Tylor. Mas apesar das evidências que a contradizem, a teoria de Tylor forneceu combustível para uma fogueira que fez e ainda faz em cinzas a fé de milhões de pessoas mundo afora: o comunismo marxista. Marx e o Comunismo Karl H. Marx (18181883), nasceu em Trèves (sul da Prússia), filho de judeus que se converteram ao protestantismo. Estudou direito e posteriormente filosofia em Berlim. Recebeu grande influência do pensamento de Georg W. F. Hegel (17701831). Associouse com jovens hegelianos, que se intitulavam “espíritos livres”. Foi redator do jornal “Gazeta Renana”, que foi fechado pelo governo devido ao seu teor radical. Na revolução de 1848, Marx foi preso e expulso da Alemanha, quando passou a morar em Londres, em pobreza. Seu amigo Friedrich Engels (18201895), coautor de várias de suas obras, o ajudava financeiramente; e juntos, publicavam diversas literaturas onde divulgavam seus pensamentos. Sua principal obra, escrita em 1867, é “O Capital”. Marx diferenciouse dos demais filósofos principalmente pela característica militante e ativa de suas doutrinas. Disse que o trabalho dos filósofos até então, havia sido de analisar o mundo, mas agora, tratavase de transformálo. Para Marx, as religiões foram construídas com a finalidade de se manter as pessoas dominadas. Tal concepção é fruto de sua herança animista, que visualiza na crença religiosa, sobretudo nas crenças monoteístas, o reflexo da estratificação social. Entretanto, esse conceito não cabe ao Evangelho: a dominação humana, apesar das advertências episcopais sobre a sujeição servil, é condenada por Deus. Prestar serviços e ser sujeito a quem lhe comanda é advertência bíblica, mas dominar pessoas ao bel prazer é uma prática própria do ego humano. A selvageria capitalista é incompatível com o mandamento cristão de amar ao próximo como a si mesmo. Apesar disso, o uso de meios oportunistas típico do capitalismo selvagem de nossos dias tem sido adotado, de forma infeliz, em muitas igrejas. São formas de constranger pessoas a participarem das atividades da igreja, de fazerem contribuições entre outros abusos. Mostrar que o evangelho não é um meio de dominação, como acreditam muitos adeptos do marxismo, requer expor que a comercialização da fé é um vício, e que a doutrina cristã também tem seu aspecto libertário. 46
Karl Marx, o defensor da extinção das classes sociais.
Símbolo comunista com representação do proletariado: a Foice – ferramenta agrícola; e o martelo – ferramenta do operário.
Uma comparação entre as doutrinas marxista e cristã é útil para esclarecer as diferenças entre as duas abordagens: ambas visam a libertação humana; a de Marx, a libertação dos proletários da tirania dos poderosos, a de Cristo, a libertação do homem de seus próprios pecados. O inimigo para Marx é a propriedade privada, para Cristo, é Satanás, que incita no homem a disposição a vaidade. O paraíso marxista é a sociedade sem desigualdade social, sem Estado e sem coerções; o paraíso cristão é a eternidade com Deus. A solução proposta por Marx não abrange os problemas indicados por Cristo, por outro lado, a solução proposta por Cristo abarca os problemas indicados por Marx. Marx propõe a luta entre as classes para solução dos problemas humanos, Cristo propõe a autorrenúncia para esse fim. A solução proposta por Cristo é mais difícil e, de certa forma, passiva, pois lança a decisão para os próprios indivíduos e deixa os problemas sociais sujeitos a transformação interior dos indivíduos que a compõe. A proposta de solução social marxista é ativa, não fica a mercê da opção pela transformação interior de cada indivíduo, mas remete ao proletariado a incumbência de lutar e reverter a desvantagem social em igualdade. As duas doutrinas anunciam soluções para o ser humano, e cada uma delas tem um percalço. Curiosamente, elas podem se acusar mutuamente de utopismo: a transformação social procedente de uma transformação interior voluntária dos indivíduos é a utopia cristã; e a igualdade social conquistada a partir da iniciativa de pessoas não transformadas interiormente é a utopia marxista. Entretanto, a doutrina cristã não é uma proposta social, antes, uma necessidade espiritual, que se for aceita integralmente, seus benefícios se refletirão na sociedade como um todo. Assim, a considerada utopia cristã de solução para a sociedade através do Evangelho se desfigura, já que não é essa a finalidade do cristianismo, e nem mesmo essa conquista é esperada, como já dito pelo apóstolo Pedro em sua epístola: “Mas os céus e a terra que agora existem pela mesma palavra se reservam como tesouro, e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios. (…) Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça” (2 Pedro 3.7, 13).
Imagem da revolução russa, ocorrida em 1917.
Max Weber, considerado o fundador da sociologia.
Max Weber e o Espírito Capitalista Max Weber (18641920), nasceu na Alemanha e é considerado um dos fundadores da sociologia. Seu trabalho de maior importância, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, escrito entre 1904 e 1905, chegou a ser considerado por alguns como a mais importante obra produzida no século XX. Nele, Weber trata de correlacionar o desenvolvimento do capitalismo ocidental com o pensamento protestante, especialmente com o calvinismo. Não se trata de 47
um trabalho de cunho ateu, tampouco de crítica a qualquer religião, mas de uma obra monumental sobre a qual alguém pode erigir, de forma arbitrária, ideias negativas em relação a religião cristã, especialmente sobre as doutrinas protestantes, no sentido de lhas atribuir uma parcela de culpa nas muitas injustiças sociais decorrentes da selvageria típica do capitalismo contemporâneo, inclusive pela flagrante propensão de muitos líderes evangélicos atuais às benesses. Weber identifica um processo de estratificação social em seu tempo – na Alemanha do final do séc. XIX e início do séc. XX, que consiste numa segregação social entre católicos e protestantes. Os protestantes, conforme indica Weber, buscavam empregos mais voltados para as competências técnicas da indústria, do comércio e da agricultura, enquanto católicos eram mais propensos a área das ciências humanas. Weber identifica essa diferença cultural como fruto da doutrinação religiosa específica de cada segmento, e se dedica a expor seu entendimento sobre isso em seu livro. O que ele chama de “espírito do capitalismo” não é a iniciativa voltada para o lucro a qualquer custo, mas a ideia de trabalho como uma finalidade
48
Cena do filme “Tempos Modernos” (1936), estrelado por Charles Chaplin, onde é feita uma crítica a mecanização da mão de obra.
humana. O trabalhador engajado no espírito capitalista é aquele que deixa família, vida social, diversão, meditação, religião e qualquer outra coisa em segundo plano, sua vida é voltada ao trabalho e sua dedicação a trabalhar independe do resultado desse trabalho, é uma máquina de produção. O trabalhador tradicional (não dotado do espírito capitalista) vê o trabalho como um meio de ganhar a vida, ou seja, há algo em viver que é maior do que simplesmente o trabalho, este é apenas um meio para que a sua vida venha se realizar. Um exemplo mencionado pelo próprio Weber esclarece as diferenças: se o trabalhador tradicional recebe um aumento de salário, ele prefere trabalhar por menos tempo – e continuar ganhando o mesmo valor que antes, e tirar a vantagem em tempo livre para viver com a família ou aplicálo num hobby. Já o trabalhador dotado de espírito capitalista, vê no aumento de salário uma motivação extra para trabalhar ainda mais, e ocupar seu tempo totalmente envolvido em sua profissão. Weber percebe que o homem com espírito capitalista não é louvado nas Escrituras Sagradas nem nos textos dos reformadores protestantes, mas também nota que a doutrina calvinista, em maior grau que as demais doutrinas cristãs, levou os homens a aderirem esse espírito. O caminho percorrido nesse processo envolve os princípios específicos da doutrina calvinista; nessa doutrina, o homem não tem qualquer participação no processo de salvação, ou ele é eleito por Deus ou recusado. Caso seja eleito, nada pode ser feito para que essa eleição seja anulada, e caso seja recusado, nada pode ser feito para que essa recusa seja reconsiderada. Assim, o calvinista praticante tem que ter convicção de sua eleição, pois qualquer dúvida é considerado reflexo de fé imperfeita, o que seria impossível a um salvo. A figura de pecadores arrependidos recorrendo a Cristo através da Igreja em busca de salvação é substituída por homens de elevada presunção, que acreditam na inevitável condenação dos moribundos não eleitos. Nesse processo, a intermediação da Igreja foi suprimida, pois nada há que possa melhorar a condição de alguém diante de Deus, a não ser sua eleição, mas o ser eleito ou não por Deus é impassível da intervenção humana. Weber menciona a conhecida (para os leitores de sua época e local) autoconfiança puritana e sua indiferença aos miseráveis da sociedade, a quem comumente consideravam perdidos. A comparação entre esses protestantes autoconfiantes e os católicos – que dependiam de penitências e resignação para alcançar a graça divina, remete ao resultado observado em nível econômico: autoconfiantes, os
Reprodução de uma ilustração mostrando um culto puritano.
A “Torre de Magdala”, sobre o cume de um monte em Magdala, terra onde nasceu Maria Magdalena, mulher que recebeu de Cristo o perdão e socorro, ainda que pecadora e rejeitada pela sociedade.
49
calvinistas criam que a manifestação prática de sua salvação envolvia entre outras coisas sua disposição ao trabalho. A busca humana para tais pessoas reduziuse a prosperidade econômica da família; enquanto isso, para os católicos ou cristãos de outras vertentes protestantes, a busca humana não se viu tão bem resolvida e terminada numa certeza tão clara: assim como o próprio processo de salvação, a luta interior e as questões existenciais e sociais humanas continuaram a mover o entusiasmo e levou os estudantes católicos de sua época a buscarem, majoritariamente, ofícios mais relacionados com as ciências humanas. Em resumo, a autoconfiança calvinista se traduziu como frieza humana, ao passo que as incertezas espirituais e a constante mútua dependência entre as pessoas se traduziu como maior apego as causas humanas. Esse é o processo que Weber descreve correlacionando a ética protestante com o espírito calvinista. Apesar disso, ele mesmo salienta que seria equivocado dizer que o protestantismo causou ou fomentou o capitalismo. Com essa ressalva, ele deixa a percepção de tratarse da análise de um caso real, e não de um resultado necessário, isto é, a doutrina calvinista na Europa tomou parte de forma acidental na construção do sistema capitalista tal como o vemos hoje, mas isso não necessariamente aconteceria em outros casos. A ressalva indicada geralmente é ignorada quando se pretende associar a fé cristã (nesse caso, particularmente o protestantismo) com a imagem mais terrível do capitalismo mundial. Infere se que graças a essa fé (nociva, então), o mundo ganhou um sistema comercial onde reina a arbitrariedade e onde os mais poderosos tomam as iniciativas que lhes favorecem. Todas as injustiças sociais são contabilizadas, por esse raciocínio, na conta do evangelho. Mas essa associação é correta? A doutrina calvinista é realmente a causadora – de forma acidental ou não – da tragédia econômica mundial? Como o próprio Weber fez questão de indicar, nem os reformadores nem o próprio Cristo apregoou uma crença onde a frieza e a indiferença humana tomavam parte da confissão. Se homens calvinistas caíram nesse erro, caíram contrariando os preceitos da própria fé. Católicos também cometeram deslizes históricos, como condenar a pesquisa científica em vários momentos, mas nem isso implica 50
Gravura de João Calvino, reformador cristão francês do séc. XVI. Defensor da forma de protestantismo que passou a ser conhecido por calvinismo.
que a fé católica seja passiva de tais erros, da mesma forma, a crença calvinista não pode ser acusada de produzir a indiferença para com os necessitados. O erro de uma parte considerável de adeptos de uma religião faz parecer que a própria religião consinta e autorize o erro, e esse é o caso aqui flagrado. Nos dias de hoje, por exemplo, a Igreja evangélica brasileira está embriagada pelo poder. Líderes são flagrados com dinheiro ilícito, outros usam espaços caros nos meios de comunicação para propagarem suas próprias denominações, e não o evangelho de forma isenta. A forma como essa igreja entrará para a história será relatada de acordo com as iniciativas que sua liderança enceta hoje, mesmo sendo elas errôneas e havendo muitos adeptos que sabem do erro, advertem e não seguem nos mesmos passos. A associação entre o calvinismo europeu e o espírito capitalista é fruto de um processo que, se pudermos aceitar a análise de Weber, evidencia a má prática do evangelho numa época específica, o que não é qualquer novidade, pois em todas as épocas as notícias divulgadas com maior intensidade sobre a Igreja são sempre as más notícias. Suas conquistas verdadeiras em transformação de vidas ficam sempre anônimas e esquecidas, mas assim deve ser, pois aqueles que se engendram na verdadeira missão evangélica cuidam para que tudo o que foi feito pela mão direita, a mão esquerda não tomar conhecimento.
CONFRONTANDO A FÉ COM A HISTÓRIA Em termos de conhecimento humano, não há autoridade maior que as ciências que investigam a história da humanidade para atestar ou condenar a narração bíblica. E diante do vasto campo de análise das ciências da história, a arqueologia e a geologia se impõe com maior precisão em relação a esse julgamento. Junto a elas, a filologia, o estudo da linguagem e dos documentos históricos escritos, exerce também um papel fundamental para a compreensão do passado. Em presença desse poder de decidir sobre a veracidade das narrações bíblicas, muitos ateus têm lançado mão de mascarar as conclusões dessas ciências para beneficiarem suas convicções de contrariedade à fé. Argumentos arqueológicos confrontando os textos bíblicos encontramse pautados no livro intitulado “E a Bíblia não tinha razão”, dos arqueólogos israelenses Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. O livro explora os relatos bíblicos com afirmações geográficas e os confronta com os achados da arqueologia moderna. Veremos que os autores são seletivos em suas abordagens, buscando sempre salientar os fatos que corroboram suas interpretações e atenuar a importância dos fatos que as contradizem. Não pretendemos julgar ou questionar quaisquer evidências arqueológicas, apenas discutiremos as interpretações dadas a elas, que, aliás, são bastante tendenciosas.
Abaixo, código de Hamurabi: descobertas como a deste código trouxeram luz ao conhecimento de culturas antigas.
Desenterrando a Bíblia Os autores aceitam a teoria multidocumentária de Julius Wellhausen (que será detalhada mais adiante), e de acordo com essa teoria, o Antigo Testamento fora inventado no séc. VII a.C., época em que o rei Josias governava Judá. Todas as suas conclusões são coincidentes com essa hipótese. Começando pela história dos patriarcas hebreus (Abraão, Isaque, Jacó), a descrição bíblica de seus dilemas familiares, os nomes dos lugares que aparece na Bíblia, e tudo o 51
mais contido na narração é identificado como pertencente ao período de Josias. Um exemplo é o uso de camelos como transporte de cargas, que para eles, só se tornou comum depois do séc. XX a.C., ou seja, na época reivindicada aos patriarcas tal prática não existia. Outro exemplo é a menção a cidade de Gerar na história de Abraão, o que para eles mostra que tal história fora inventada por pessoas em tempos bem posteriores, já que essa cidade só existiu séculos depois. Segundo os autores, as histórias dos patriarcas foram criadas com intenções políticas: suas relações de parentescos objetivavam motivarem vínculos estratégicos entre os vários povos da palestina antiga. Mas eles não mencionam o fato de que outras evidências são abundantes a favor da veracidade das histórias bíblicas: os nomes das pessoas envolvidas nas histórias dos patriarcas bíblicos são consoantes com os nomes da época reivindicada pela Bíblia, e o mesmo acontece em relação aos costumes familiares narrados no Gênesis. Tais conclusões são provenientes do código de Nuzi, extraído de tabletes cuneiformes do povo Hurrita, datados de cerca do séc. XX a.C., que confirmam práticas legais narradas no Gênesis, expondo que tais práticas eram comuns na época patriarcal e em Nuzi, época em que as motivações políticas da época de Josias inexistiam. Os autores também fazem menção as narrativas bíblicas da Canaã patriarcal, que segundo eles, não correspondem a Canaã do Bronze Médio: muitas cidades mencionadas na Bíblia não existiam nessa remota época, mas eles não mencionam o fato de que a coalizão entre reis narrada em Gênesis 14 constituise uma notável exceção: tal texto é considerado de uma concordância excepcional pelos historiadores, as condições políticas da época, os nomes e lugares tem concordância relevante, ao ponto de mesmo os céticos lhe considerarem um caso a parte. A seletividade de informações dos autores é tamanha que eles sequem mencionam tal fato. Sobre a história do Êxodo, os autores são enfáticos: jamais existiu um êxodo, nem mesmo uma estadia de judeus no Egito. Se houvesse uma jornada de 40 anos pelo deserto, resquícios certamente seriam encontrados, mas segundo eles, nada jamais foi observado. É curioso, entretanto, que logo depois, os autores fazem referência aos chamados “povos do mar”, que invadiram Canaã no séc. XXI a.C., mas jamais deixaram vestígios de sua origem. Isso lembra algo? O fato de não haver vestígios dos judeus saindo do Egito lhes levou a negar a história do êxodo bíblico, mas eles tem de confessar que invasões já ocorreram onde vestígios também não foram encontrados; ou seja, a falta de vestígios arqueológicos não é suficiente para se negar um fato. A conquista de Canaã por Josué é desacreditada pelos autores devido ao fato de não haver evidência de destruição repentina nas cidades de Canaã 52
Vista parcial de um sítio arqueológico em Jericó.
Gravura representando a batalha entre Ramsés III e os 'povos do mar'.
daquela época. Selecionando apenas os fatos que querem mostrar, eles nada dizem sobre a descoberta de fortificações em cidades como Gerar e Hazor, além de Jericó, as três cidades que biblicamente foram destruídas. Todas as demais, foram conquistadas gradativamente, não produzindo, portanto, vestígios de destruição repentina. Somente através do arqueólogo Randall Price, que é doutor em estudos arqueológicos no Oriente Médio, temos essas informações. Nesse ponto, os autores do livro criam uma teoria curiosa sobre a origem dos judeus. Eles alegam que o povo judeu surgiu de uma revolução ocorrida há cerca de 3 mil anos antes de Cristo. Eram povos nômades, e só puderam ser identificados por não conter ossos de suínos em seus assentamentos. Mas como procuram negar que tenha existido a lei de Moisés nessa época (senão estariam admitindo que os textos bíblicos tem validade), justificam o abandono ao consumo de suínos como uma busca por identidade. Muito conveniente e pouco convincente. Sobre o período de monarquia mostrado na Bíblia, ou seja, os reinados de Saul, Davi e Salomão, os autores diminuem sua importância, chegando a dizer que tais reis não passavam de líderes tribais. Só não podem negar a existência do rei Davi porque há uma evidência científica a qual eles não podem contestar. Tratase de uma inscrição encontrada em Tel Dã, que contém uma menção a “casa de Davi”. Recentemente, entretanto, foi descoberto em Jerusalém pela arqueóloga israelense Eilat Mazar vestígios de uma casa real imensa e de importância indubitável. A descoberta não pôde ser negada, mas sua importância foi minimizada, chegando a ser tratada por alguns jornais como fruto de uma investida financiada por interesses religiosos. A falta de evidências em Jerusalém se deve em grande parte, como os próprios autores admitem, a falta de escavações. Por motivos políticos e religiosos, a escavação na Jerusalém antiga é praticamente impossível. Sobre o reinado de Salomão, o livro mostra a parcialidade e a tentativa dos ateus em desacreditar na narração bíblica. Eles discorrem sobre o fato de que o estilo arquitetônico encontrado nos sítios arqueológicos das cidades de Megido, Hazor e Gezer são peculiares e iguais. Essas cidades, segundo a Bíblia, foram construídas por Salomão, e a coincidência entre os estilos peculiares das construções e a descrição bíblica da origem dessas construções forneceu combustível para a crença de que a Bíblia estivesse correta, mas os autores alegam que a possibilidade de Salomão ser o construtor ruiu mediante as evidências: a datação dos achados levou tais construções a décadas de diferença da época atribuída ao reinado de Salomão. Décadas de diferença? A própria análise de datação, por melhor e mais acurada que possa ser, deixa uma tolerância de cerca de 4 a 5 décadas de incerteza para a data indicada. A alegação de décadas de diferença não pode ser válida, é simplesmente uma tentativa de atribuir desacordo entre o achado científico e a narração bíblica. Os autores mantém um posicionamento parcial em todo seu
Estela de Tel Dã, onde há uma menção a 'casa de Davi'.
Extrato geológico mostrando evidência de erosão. A faixa escura é um depósito de carvão, registrando um aglomerado de seres vivos fossilizados.
53
trabalho. Criam ou exageram interpretações, minimizam ou se silenciam sobre fatos que lhes causam desconforto, fazendo com que o leitor sinta estar em contato com a voz da ciência em total imparcialidade. Franca enganação, na verdade, o livro nada mais é do que a tentativa de adequar as recentes descobertas arqueológicas ao modelo multidocumentário, para o qual a Bíblia nada mais é que uma coleção de fábulas inventadas para dominar as pessoas. Existem evidências arqueológicas que sequer foram mencionados pelos autores. Um deles é a evidência do dilúvio. A própria história do dilúvio tem base em muitas culturas, não apenas na literatura judaica. Os sumerianos, povo muito antigo, deixou importantes coleções de escritos que narram entre muitas histórias, uma inundação catastrófica em que apenas uma família se salvou. O mesmo acontece em várias culturas primitivas ao redor do mundo, inclusive entre os indígenas brasileiros na lenda de Tamandaré. Além desse testemunho etnográfico, evidências propriamente arqueológicas também existem: o sedimento diluviano, descoberto pelo arqueólogo inglês Leonard Wolley em suas escavações em Ur, deixa provas incontestáveis da existência de uma inundação sem precedentes. Mas em “E a Bíblia não tinha razão” nada disso é nem aludido nem refutado, é simplesmente ignorado. Outra evidência importante que recebe o silêncio dos autores está nos Pergaminhos do Mar Morto. O achado desses pergaminhos fez diminuir a distância entre a versão atual e os mais antigos exemplares do Antigo Testamento em mais de mil anos! E os textos, datados do início da era cristã, em nada apresentam variações em relação ao cânon atualmente conhecido. A famosa acusação de que os textos bíblicos foram manipulados pela Igreja ao longo da história na era cristã perdeu, com essa descoberta, qualquer possibilidade de ser levada a sério.
54
Imagem de pedaços dos pergaminhos do mar morto. A descoberta desse material teve uma importância inestimável os estudos da Bíblia judaica.
Julius Wellhausen, construtor da teoria da composição multidocumentária do Antigo Testamento.
Wellhausen e a teoria multi-documentária O estudioso bíblico alemão Julius Wellhausen escreveu em 1878 um livro chamado “Prolegômenos à história de Israel Antiga”, em que tratou de tentar compreender como O Antigo Testamento surgiu. Seu trabalho é fruto da teoria animista de Tylor, e desencadeou a crença na não literalidade do testemunho bíblico: suas histórias são fontes de inspiração, mas não são reais, são fábulas escritas com finalidade política na época do rei Josias, no séc. VII a.C. A teoria multidocumentária consiste em atribuir à formação do cânon do Antigo Testamento um processo de combinação de lendas e textos fontes originários de povos da Canaã do séc. VII a.C. Basicamente, haveriam 4 fontes distintas que foram usadas para formar o cânon: a fonte J (“jeovita”), a fonte E (“eloísta”), a fonte P (“sacerdotal”) e a fonte D (“deuteronômica”). As duas primeiras fontes seriam as originais, provenientes de culturas distintas de povos distintos da Canaã anterior a época de Josias. O deus de um dos povo era Jeová e o deus do outro povo era Eloim. Na reforma políticoreligiosa de Josias, ele juntou a cultura religiosa dos dois povos mais importantes (Judá e Israel) na intenção de fortalecer uma coalizão contra a dominação egípcia. A fonte D foi incluída nesse passo, quando os escribas de Judá inventaram o código de leis da Torá, para manter o povo sujeito ao seu comando. A existência da fonte P foi identificada posteriormente, quando Wellhausen percebeu ser difícil explicar todos os textos a partir dessa interpretação, e essa fonte, para ele, foi incluída após o exílio, já que na confrontação dos textos préexílicos com os textos pós exílicos ele observou certas incompatibilidades com sua explicação. Mesmo citando vários exemplos entre os livros proféticos, ele reconhece casos difíceis e potencialmente contrários a sua tese. Um desses casos é a batalha de Micmás, quando Saul partiu para a guerra ignorando a ordem de Samuel de esperálo para o sacrifício. O texto faz referências a um altar a Jeová, mas estranhamente, não faz referência a um lugar específico para o sacrifício. O texto é estranho para a teoria de Wellhausen porque para ele, a invenção da lei objetivava centralizar Jerusalém como único lugar designado para adoração. Wellhausen usou um método específico para chegar a tais conclusões, o chamado método Wolfiano. Esse mesmo método já foi também aplicado a outras literaturas, como na “Ilíada” de Homero, donde se obteve como resultado uma suposta composição da Ilíada por diversas
Estátuas de Josias e Manassés, reis de Judá e Israel, na Basílica El Escorial, em Madri, na Espanha.
55
fontes originais, assim como aconteceu na análise do Antigo Testamento. Hoje, porém, ninguém mais aceita que a Ilíada seja a costura de várias fontes, já que estudos mais detalhados levaram a conferir que se trata de uma obra única. Com a Bíblia, porém, o mesmo cuidado foi deixado de lado. O método Wolfiano não é mais utilizado, por mostrar que produz resultados equivocados, mas seu resultado em relação ao Antigo Testamento, surpreendentemente, foi mantido. A chamada Alta Crítica – vertente teológica que aceita a teoria multi documentária, prefere aceitar a subtração da literalidade de várias narrações bíblicas a rever os resultados obtidos por Wellhausen quando utilizou um método que hoje ninguém mais utiliza. Além do mais, jamais foi encontrado qualquer vestígio dessas supostas fontes originais. Um verdadeiro favor para os ateus e céticos, um desfavor para a crença na Bíblia.
56
“O Pensador”, do escultor francês Auguste Rodim: se nos guiarmos pela nossa própria razão e inteligência, colocamos em xeque muitas das afirmações ditas científicas do ateísmo.
CONCLUSÃO O ateísmo é uma cosmovisão possível e racional. Limita a existência ao domínio da matéria (materialismo) e o saber ao conhecimento científico (cientismo), mas não é a única forma de racionalização da existência. As religiões são racionalizações possíveis da existência, e incluem em seus paradigmas a existência espiritual. Tudo isso, enquanto teoria, pouco representa: cada um escolhe seu caminho, e a escolha mais coerente pode ser aquela que abre mais possibilidades ou aquela mais econômica em suas suposições, o critério de escolha é livre e individual. O que muda tudo, entretanto, é o contato com o sobrenatural: uma experiência que por si elimina argumentos e derruba filosofias. A filosofia se desenvolve e em seu aprimoramento evolui também sua forma de confrontar a existência de Deus. Muitos filósofos atuais admitem a existência de Deus, e mesmo os ateus modificam, com o tempo, sua forma de confrontarem a questão ideia de Deus na humanidade. O que de início era uma negação gratuita – baseada em argumentação lógica, mostrouse frágil e incapaz de eliminar das mentes a ideia de Deus. O passo seguinte foi então sentenciar que crer em Deus é impossível, pois sabemos (como criam) que a natureza se explica por leis bem determinadas, e nada foge de seus princípios, nem mesmo o espiritual, crer no sobrenatural é inassimilável para a mente humana. Mas a mente humana assimila a ideia de Deus, mesmo insistindo filósofos como Hume que isso seja impossível. Percebendo ser impossível tapar o sol com uma peneira, a estratégia mudou: é até possível crer em Deus, mas a crença não muda a realidade, ou seja, é inútil. O argumento de inutilidade não convence e a crença prevalece, logo, tornase necessário usar uma arma ainda mais ousada: crer em Deus é nocivo! Conviver com a fé religiosa prejudica o desenvolvimento cultural e científico, perpetua falsos moralismos e faz retroagir a mente humana. Mesmo com esse argumento, a crença prospera. O próximo passo será deixar a descrença de lado e admitir a rejeição pessoal a Deus. Nesse passo, o Deus a ser rejeitado com mais austeridade será o Deus cristão, e sua 57
rejeição pessoal será a manifestação do anticristianismo. Esse estágio último do ateísmo será a exposição de sua face sem máscaras, a rejeição pessoal a Deus. A Ineficiência da Argumentação Ateísta Os argumentos ateístas não têm o poder de ameaçar a crença religiosa. Isso se dá pelo fato de que nenhum argumento toca o âmago da fé. Os argumentos que tomam a religião como objeto – a análise de como quem está de fora – é ineficiente, uma vez que há uma lacuna na argumentação lógica que protege as verdades religiosas dos argumentos céticos: as evidências podem provar a veracidade ou a falsidade de determinados elementos, mas quanto ao transcendental, nenhuma evidência o prova, e tampouco o refuta; o transcendental fica imune à análise científica e mesmo à análise filosófica. De fato, ele se estabelece como uma hipótese sempre válida, mas logicamente jamais comprovada. Quando David Hume alega que os milagres não são passivos de aceitação porque nossa própria mente impede sua assimilação, um religioso debocha de seu argumento: está tão errado que seu próprio caso é a prova em contrário. Quanto à Nietzsche, sua própria conceituação de valores é repugnante a um cristão, o que o torna simplesmente leviano. Sartre destitui a existência de Deus em troca de uma moral laica, mas necessita da liberdade como argumento e valor preestabelecido, conferindo ineficiência à sua teoria. Russell desfere críticas ao Cristo dos evangelhos, mas suas críticas fundamentam ainda mais os valores cristãos. Argumentos contra a Bíblia são superficiais e acusações de adultério do cânon não são confirmadas. Quanto às denúncias de comportamento ilícito por parte da Igreja, o fiel as reconhece, mas salienta que os infratores estão, em suas infrações, a negarem a sua própria fé. Acusações contra Deus não lhes causam impressão, pelo contrário, fortalece o testemunho das escrituras. O uso da ciência gera apenas argumentos indiretos: manietase contra determinado texto sagrado numa particular interpretação. De fato, nenhum argumento ateísta toca o interior da crença religiosa. Há um versículo de um salmo bíblico que expressa com exatidão a avaliação ateísta dos argumentos religiosos: “Por causa do seu orgulho o ímpio não investiga; todas as suas cogitações são: não há Deus” (Salmo 10.4). De fato, a máscara do ateísmo consiste exatamente em considerar a inexistência de Deus um fato: cientistas céticos insistem em apontar erros na revelação bíblica a partir da leitura fundamentalista e descontextualizada de sua mensagem; Freud evidencia um protótipo filogenético na compreensão da religiosidade humana, mas descarta gratuitamente a existência do Pai Celestial; Jung, da mesma forma, decreta à divindade uma existência ontologicamente abstrata, apesar de admitir a autonomia do inconsciente, donde se poderia igualmente atestar ali uma porta de comunicação entre o ser humano e um factual mundo espiritual. Arqueólogos dolosamente negam às narrações bíblicas historicidade, baseados apenas na escassez de evidências, o que é propriamente contrário à ciência; e finalmente, antropólogos e filólogos arremessam contra as escrituras 58
sagradas métodos e evidências já descartados para outras análises por se mostrar inapropriados . Desse modo, toda conjuntura do pensamento ateu, envolvendo toda filosofia e ciência que lhe dá suporte, não passa de um aparato inútil contra a fé, e isso parece ser bastante evidente por quem aceita a fé, aliás, as próprias escrituras testificam essa ineficiência, quando assinala que a sabedoria deste mundo é vã: “Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus; pois está escrito: Ele apanha os sábios na sua própria astúcia. E outra vez: O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que são vãos” (1 Coríntios 3. 19 20). O argumento do evangelho é o amor Como já mencionado, o pensamento ateu vem sofrendo, desde a renascença, grandes alterações. Primeiro, alegou a impossibilidade da assimilação racional da fé, depois, a impossibilidade foi substituída pela inutilidade da fé, e já que nenhum desses posicionamentos conferiu a extinção da fé, temos atualmente a mais insensata postura incrédula, que julga haver nocividade no exercício da crença religiosa. Mas todos esses argumentos são realmente ineficientes, uma vez que a fé continua a ser muito bem assimilada por pessoas dos mais diversos níveis sociais e intelectuais. Por parte dos teístas, tentativas de impor a impossibilidade da recusa à fé, bem como inutilidade e nocividade à incredulidade religiosa também já existiram, mas sempre caracterizadas por inferências ineficientes a um convencimento sobre a existência de Deus. De fato, indivíduos ateus existem, e muitas vezes de comportamento ético bastante exemplar, o que faz da alegação da nocividade social do ateísmo uma afirmação gratuita. A postura afirmativa referente ao cristianismo deve se fundamentar em seus verdadeiros alicerces: primeiro, tratandose duma fé, provas estão de antemão desqualificadas; segundo, Cristo convida os homens a viverem sob a perspectiva divina, e se há algum argumento válido na exposição da fé cristã a partir de um critério racional, deve ser o argumento baseado na avaliação dessa nova perspectiva de vida que Cristo propõe a seus fiéis. Como a súmula da vida cristã é a fé, a esperança e o amor, e sendo o amor o maior dentre os três, decorre que o argumento do evangelho é o amor. Nenhuma filosofia religiosa ou politicamente isenta, nem mesmo a mais acurada e universal apreensão ética pode substituir ou convencer de modo mais seguro e eficaz que esse poderoso argumento. A nova lei do amor (aos amigos e inimigos), a regra de ouro – fazer pelo próximo aquilo que desejamos que façam por nós – não são formulações exclusivas do cristianismo, mas correspondem aos caracteres centrais dessa doutrina. Nesse sentido, a fé cristã detém o argumento do amor, atestado e praticado pela sua própria divindade (o que causou surpresa no próprio adversário de Deus, que num de seus portavozes conferiu loucura à piedade divina, que culminou no Calvário: como pode o Todo Poderoso permitirse morrer por amor?). A prática dessa moral custa caro ao egoísmo humano, e decorre desse alto preço de renúncia pessoal toda aversão característica à fé. Avaliando profundamente, a grande máscara do ateísmo consiste na camuflagem da resignação ao apelo de Cristo, de cada um tomar sua cruz e seguirlhe. Somente esse argumento, o argumento do amor (não teorizado apenas, mas vivido), tem a eficiência de transformar pessoas antes descrentes em fervorosos adeptos da fé.
Camões escreveu que o amor é “fogo que arde sem se ver”. Para os cristãos, o argumento que o faz se render ao evangelho é o amor: Deus ama o homem, e o ensina a amar seus semelhantes. Nenhuma filosofia ou ideologia terá tamanha originalidade e utilidade ao ser humano quanto a proposta de Cristo aos seus discípulos: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.
59