Filosofia, ciência e argumentação ateísta

December 31, 2017 | Author: André Freitas | Category: Jean Paul Sartre, Atheism, Friedrich Nietzsche, Free Will, David Hume
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Uma versão resumida e ilustrada do livro "As Máscaras do Ateísmo"...

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CIP ­ Brasil. Catalogação na Fonte. Câmara Brasileira do Livro, SP Freitas, André de Sousa. Filosofia, ciência e argumentação ateísta. 1ª Edição. São Paulo, 2011.

1. Filosofia e Teoria da Religião. 2. Apologética Cristã. 3. Ateísmo. I. Título.     CDD­210

Índice para catálogo sistemático: 1. Filosofia e Teoria da Religião ­ 210

Última revisão: 21 de Julho de 2013.

Este livro é uma versão resumida e ilustrada da obra “As Máscaras do Ateísmo”, com 334 páginas do mesmo autor.

Todos os direitos reservados ao autor. Reproduções da obra poderão ser feitas, desde que citada a fonte (autor, ano, editora e local) e não destinadas a uso comercial. O uso comercial sem autorização expressa por escrito do autor, sujeitará o infrator nos termos da lei n. 6.895 de 17/12/1980, à penalidade prevista nos artigos 184 e 186 do código penal. Registrado na Fundação Biblioteca Nacional em 3 de Março de 2003, sob o número 370.829, livro 686, folha 489. “AS MÁSCARAS DO ATEÍSMO” - 2006SP_1258.

Sumário INTRODUÇÃO.........................................................................................................6 A MÁSCARA DA ERUDIÇÃO..................................................................................8 David Hume e o empirismo do séc. XVIII...............................................................................9 Friedrich Nietzsche e o Radicalismo do Séc. XIX................................................................13 Bertrand Russell e a Filosofia Analítica................................................................................18 Jean-Paul Sartre e o Existencialismo do Séc. XX................................................................22 Richard Dawkins e a nocividade da fé..................................................................................25 Tendências atuais.................................................................................................................28

AS MÁSCARAS DE CIÊNCIA................................................................................30 De Galileu a Einstein: a física contraria a fé?.......................................................................30 A Evolução das Espécies.....................................................................................................31 A Psicologia e a Fé...............................................................................................................37 A Cultura Cristã e as Ciências Sociais.................................................................................41 Confrontando a Fé com a História........................................................................................47

CONCLUSÃO........................................................................................................53

INTRODUÇÃO Ateísmo é a crença na inexistência de Deus. Os defensores dessa visão  gostam de usar palavras sofisticadas e se valer de ideias filosóficas, fazendo com  que as pessoas que estão tomando contato com essas ideias pela primeira vez  fiquem com a  impressão  de que não podem combater tais pensamentos. Nesse  primeiro   contato,   muitas   pessoas   religiosas   sentem   um   duro   golpe   em   suas  convicções e somente depois de se refazerem é que começam a pensar em formas  de defender sua crença na existência de Deus. As máscaras do ateísmo são os  disfarces   usados   pelos   ateus,   disfarces   esses   que   fazem   com   que   seus  argumentos   se   pareçam   algo   muito   profundo   e   abrangente,   que   para   serem  compreendidos seja necessário conhecer muito de ciência e filosofia, quando na  verdade não é bem assim, pois como veremos, em todas áreas da ciência e em  várias   formulações   filosóficas,   o   ateísmo   parte   de   um   único   e   injustificável  pressuposto: a incredulidade quanto ao sobrenatural. O pensamento ateu existe desde os tempos mais remotos. A formalização  de seus argumentos, porém, pode ser estudado a partir dos pensadores gregos.  O filósofo grego Epicuro  (341­270 a.C.) questiona,  por  exemplo, a origem dos  males,   já   que   Deus   tem   poder   e   desejo   em   eliminá­los.   Aristófanes   (447­385  a.C.) também aludiu a problemas na concepção do divino, quando alegou que  mesmo nos seios dos deuses havia injustiça, já que o próprio Zeus, segundo a  mitologia, teria destronado seu próprio pai. Com   a   difusão   do   cristianismo,   a   filosofia   se   amoldou   aos   princípios  cristãos, e somente na renascença o ateísmo voltou a ter força no pensamento  erudito. Na ciência, o desenvolvimento da mecânica e das leis físicas através das  quais o movimento dos corpos podiam ser previstos, surgiu a ideia de que assim  como   no   funcionamento   dos   sistemas   celestes   (planetas,   estrelas   e   corpos  celestes em geral em relação a seus movimentos), todo e qualquer movimento,  até   mesmo   os   movimentos   produzidos   pelo   corpo   humano,   também   seriam  preditos   por   leis.   Dessa   forma,   não   existiria   vontade,   livre­arbítrio   ou  sobrenatural, pois tudo seria explicado a partir das leis da física. Nesse ínterim,  a filosofia materialista usurpou o status de regra de fé dos filósofos e cientistas:  não existe sobrenatural, tudo o que há está na natureza (naturalismo), e todas  as respostas estão na ciência (cientismo). O   ateísmo   dessa   época   considerava   ser   impossível   acreditar   no  sobrenatural, ou seja, o povo só acreditava em Deus porque não conhecia ciência  e filosofia de forma suficiente para saber que tal crença era absurda. O filósofo  David Hume (1711­1776) argumentou contra a crença em milagres, alegando  ser impossível para a mente humana aceitar o sobrenatural. Com o passar do tempo, surgiu a teoria da evolução das espécies, o que na 

Uma máscara: a ocultação da face como símbolo da manipulação ideológica.

Busto de Epicuro.

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opinião dos ateus fez diminuir ainda mais a possibilidade de se acreditar em  Deus, particularmente na Bíblia. Nessa época, o determinismo (crença de que  todo   o   futuro   está   previamente   determinado   e   pode   ser   previsto   pelas   leis  físicas) atingiu seu ponto máximo. Alguns filósofos como Nietzsche chegaram a  dizer que a vontade era algo que não existia, era uma mera invenção humana  que foi construída para culpar as pessoas e lhes condenar, mantendo­as assim  dominadas pelos sacerdotes de diversas religiões. O   desenvolvimento   das   ciências   sociais,   da   psicologia   e   da   arqueologia  também forneceram combustível para o ateísmo. Teorias sobre o surgimento das  religiões foram construídas, bem como teorias sobre a criação da Bíblia, todas  elas partindo do pressuposto da inexistência de Deus. Psicologistas escreveram  sobre a religião como fruto da psique humana. A moral também não deixou de  ser citada e justificada num cenário ateísta, e para isso filósofos existencialistas  lançaram  mão  de  sua  erudição  para  mostrar  que  a  ética   não  é  um benefício  produzido   pela   religião.   Aliás,   os   mais   recentes   ataques   contra   as   religiões  seguem no sentido de dizer que as religiões destroem a ética, por perpetuarem  erros   do   passado   ao   impor   suas   doutrinas   e   tradições   formadas   em   épocas  remotas. Se  no  início  os  ateus  alegavam  ser   impossível   para   uma   mente  aberta  acreditar em Deus, agora alegam que apesar de ser possível acreditar em Deus,  essa crença é nociva, é responsável por muitos retrocessos e males na história  da humanidade. Apesar disso, cada vez mais a ciência avança e o espaço para a  crença   ateísta   se   encolhe.   A   arqueologia   moderna,   apesar   da   insistência   de  alguns   ateus   em   interpretarem   as   evidências   de   forma   a   contrariar   o  testemunho bíblico, expõe cada vez mais que a Bíblia é um livro verdadeiro em  suas   narrações,   e   lançando   fora   interpretações   forçadas   da   Bíblia,   não   há  qualquer evidência científica que a contrarie, o que faz com que ela seja cada  vez   mais   acreditada   nos   mais   altos   círculos   intelectuais.   Ultimamente,  evidências que sugerem a ação divina, como a impossibilidade da formação da  matéria viva a partir da matéria morta, como algum testemunho de milagre ou  como   o   surpreendente   fato   de   o   quanto   nosso   planeta   é   propício   a   vida,   é  contrariado pelos ateus com o uso da estatística, quando são obrigados a admitir  o fato a partir  de  uma probabilidade  ínfima, como alguém ganhar na loteria  todas   as   vezes   desde   que   existe   loteria   por   pura   sorte.   Em   breve,   tais  justificativas não poderão mais ser aceitas, e o ateísmo será desmascarado. Sem  máscaras, ele não deixará de existir, mas mostrará sua verdadeira face, a face  da contrariedade a Deus, do anticristianismo.

Nietzsche: o filósofo da morte de Deus.

Fóssil de um dinossauro. Descobertas científicas nem sempre se amoldam a crenças religiosas estabelecidas.

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A MÁSCARA DA ERUDIÇÃO Nessa   parte,   conheceremos   os   pensamentos   de   alguns   filósofos   que   os  levaram a afirmar que Deus não existe. Como veremos, esses pensamentos são  sempre falhos, seria sempre possível criar um raciocínio alternativo admitindo a  existência de Deus. Filósofos: como construtores do pensamento erudito, podem influenciar toda uma sociedade.

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DAVID HUME E O EMPIRISMO DO SÉC. XVIII David Hume (1711­1776) nasceu em Edimburgo, na Escócia. Foi filósofo e  historiador, e é considerado um dos mais importantes nomes do iluminismo. Seu  pai faleceu quando ele ainda era criança. Frequentou a universidade dedicando­ se à carreira jurídica, mas a abandonou entregando­se a filosofia. Estudou, como  autodidata na França, onde lançou o livro “Tratado da natureza humana”. Seu  livro não foi apreciado na época, embora tenha sido considerado posteriormente  como   obra   de   significado   excepcional   para   a   filosofia.   Foram­lhe   recusadas  cadeiras nas universidades de Edimburgo e Glasgow, pela sua concepção ateísta  da realidade. Hume trabalhou como psiquiatra e como secretário, teve fama de  literário  e   historiador.   Seu   trabalho  teve   grande   prestígio  quando   Immanuel  Kant (1724­1804) afirmou que este o despertou do sono dogmático. Ensaio sobre o Entendimento Humano Esse livro foi lançado por Hume no ano de 1748, e nele Hume mostra seu  pensamento   sobre   a   origem  das  ideias.   Ele  acredita   que  as   ideias   se   originam   das  impressões,   que   são   os  contatos   diretos   com   os  objetos   ou   sentimentos.  Olhando para um objeto, por  exemplo, uma xícara de chá,  você   capta   suas   impressões:  sua   forma,   cores,   desenhos,  tamanho   etc.   Quando   você  não  está   mais  olhando   para  aquele   objeto,   ainda   assim  você   pode   se   lembrar   dele.  Assim   são   as   ideias,   elas  nascem das impressões, mas  continuam   existindo   em  nossa   mente  independentemente   dos  objetos. Dessa   forma,   nossa  mente   pode   criar   objetos  imaginários,   apenas   usando  as   ideias.   Você   pode   nunca  ter   visto   uma   montanha   de  ouro,   mas   pode   imaginar  uma. Por isso a ideia de um  ser   majestoso   e   infinito,  chamado   Deus   existiu:  porque os homens usaram o  poder   de   suas   mentes   em  criarem seres imaginários. 8

David Hume: cérebre por seu empirismo e ceticismo filosófico.

Entre   as   muitas   formas   de  conexão entre ideias, Hume destaca  a   associação   por   causa­efeito:   o  efeito   faz   lembrar   da   causa.   Ele  acredita   que   quando   dizemos   que  um efeito procede de uma causa, por  exemplo, queimaduras procedem do  contato   da   pele   com   o   fogo,   essa  crença   se   baseia   somente   na  experiência. Para ele, nada justifica  a crença de que da próxima vez que  alguém   encostar   no   fogo   se  queimará de novo. Sabemos disso só  porque   até   hoje   isso   sempre  aconteceu   dessa   mesma   forma.   Da  mesma   forma,   sabemos   que   se   soltarmos   uma   pedra   ao   ar   livre,   ela   cairá,  porque todas as vezes que alguém a solta, ela sempre cai. Mas nem todos os efeitos são assim tão certos. Pense no caso de tomar um  remédio:   nem   sempre   aquele   remédio   faz   a   pessoa   melhorar   imediatamente,  algumas vezes a pessoa melhora, outras não. Assim, as pessoas acreditam mais  nos   remédios   que   funcionaram   mais   vezes,   e   duvidam   dos   remédios   que  funcionaram poucas vezes. Se um remédio nunca funcionou, certamente ele não  será mais usado. Até aqui, todos estamos de pleno acordo, mas observe o que ele  pretende  dizer,  usando esse  mesmo  raciocínio,  em  relação  a  fé:  milagres não  existem, pois assim como o remédio que nunca funciona, nunca vemos nenhum  milagre acontecer. Portanto, conclui ele, é impossível a mente humana aceitar  um milagre, assim como é impossível a mente humana pensar que uma pedra  possa ser solta no ar e não cair. É claro que esse raciocínio é muito fraco: por  que temos que duvidar de algo que jamais aconteceu? Quem jamais viu neve  deve   duvidar   que   ela   existe?   Quem   jamais   viu   o   mar   deve   duvidar   que   ele  existe? E devemos duvidar que o centro da Terra é quente só porque até hoje  ninguém foi até lá? Essa conclusão de Hume é tão absurda que hoje não é aceita  nem mesmo pelos ateus. Hume fala também nesse livro sobre vontade e livre­arbítrio. Segundo ele,  para se acreditar no livre­arbítrio, é necessário acreditar também que alguns  efeitos sejam independentes das causas, pois se tudo tiver uma causa definida,  ninguém pode dizer que decidiu livremente. Mas por outro lado, ele alega que o  livre­arbítrio  precisa   supor   que  os  efeitos   dependam   das   causas,   porque   sem  isso, como alguém poderia ser punido por algo  que  fez, se os  efeitos de uma  decisão errada  não   são   decorrentes   dessa   escolha?   Hoje   em  dia   esse   argumento   não   vale   nada.  Entendemos que a vontade própria e o livre­ arbítrio   são   perfeitamente   possíveis,   e   isso  não contraria o fato de que decisões implicam  em consequências que podem ser positivas ou  negativas.   O   pensamento   dele   está   tão  ultrapassado que chega parecer absurdo hoje  acreditar   que   um   filósofo   pensou   realmente 

Vista parcial da atual cidade de Edimburgo, onde David Hume nasceu.

Por a mão no fogo causa queimaduras? Só acreditamos nisso por causa de nossas experiências cotidianas. Hume alega que nada pode provar que numa próxima experiência isso novamente ocorrerá.

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dessa maneira. Mas ele usa esse raciocínio para defender que o homem não tem,  na verdade, um livre­arbítrio, e dessa forma, Deus está envolvido nas culpas  humanas,   pois   se   o   ser   humano   não   é   perfeito,   foi   porque   seu   criador   o   fez  imperfeito. Essa ideia de culpar Deus pelos erros do ser humano é tão inválida  que, mesmo se fosse verdade, não poderíamos nos queixar, pois o próprio Deus  desceu  da   sua  glória  e pagou o  resgate  do  ser  humano  levando  consigo  toda  culpa e punição, dando ao homem a oportunidade de salvação de graça. Na   verdade,   parece   que   nem   ele   tinha   tanta   convicção   sobre   esse  argumento contra o livre­arbítrio, tanto é que na continuação do livro ele volta a  falar sobre milagres, deixando o assunto sobre livre­arbítrio e causa­efeito de  lado. Agora ele começa a atacar os testemunhos de milagres, e seus argumentos  são na verdade fortes, mas falsos. Ele diz que os milagres só existem onde não  há  ninguém que seja  crítico,  pois onde  há  alguém  que questione os  fatos,  os  milagres incrivelmente desaparecem. Escreve ainda que os maiores milagres da  história ficaram testificados em livros sagrados, sendo que ninguém dos nossos  dias presenciou tais coisas para confirmá­los. Para ele, quanto mais leigo é um  povo,   mais   eles   acreditam   em  milagres,   e   quanto   mais  estudado é um povo,  menos se  acredita   em   milagres.   Isso  sinalizaria   que   milagres   sejam  apenas ilusões sobre coisas que  não   puderam   ser   explicadas  corretamente.   Hume   afirma  que   é   mais   fácil   acreditar   que  determinada   história   de  milagre   seja   mentira   do   que  acreditar   no   milagre,   pois  milagre nunca se vê, e mentiras  vemos todos os dias. Como ele já havia dito, é  impossível   para   a   mente  humana   acreditar   num  milagre,   mas   ele   tem   um  problema   aqui:   há   quem  acredite em milagres. E agora?  Sua   resposta   é:   acreditar   num  milagre  é  um  milagre!   É  claro  que   ele   afirma   isso   quase  zombando   de   quem   crê   no  sobrenatural,   mas   por   mais   incrível   que   pareça,   essa   conclusão   é   a   própria  prova  de que sua  teoria  está  errada.  Evidentemente,  Hume  entende que  um  milagre é uma ação sobrenatural, mas alegar que é impossível a mente humana  aceitar um milagre é mostrar que não entende a extensão de um milagre: se o  ser divino pode intervir no curso da natureza, pode também intervir na mente  humana, tornando­a apta a aceitar a fé. Há uma consideração importantíssima sobre sua conclusão de que quanto  mais ignorante o povo, mais se crê em milagres. O filósofo Gilbert Chesterton  (1874­1936) falou sobre isso, mostrando que quem considera ignorante um povo  10

“A multiplicação dos peixes”, de Rafael Sanzio de Urbino. Para Hume, os milagres só são acreditados por pessoas ingênuas.

que   crê   em   milagres   é   porque   já   decidiu   que   crer   em   milagres   implica   em  ignorância.   Quem   considera   ajuizado   um   povo   que   não   crê   em   milagres,   é  porque já decidiu que duvidar de milagres é racional. Mas essas decisões são  realmente sábias? Muitas pessoas, especialmente ateus, afirmam que a crença  no   sobrenatural   parte   de   um   dogma,   enquanto   que   quem   duvida   do  sobrenatural assim pensa porque é um livre pensador. Chesterton observou que  o que acontece é o contrário:  o intelectual que não crê em  milagre, não crê porque tem  um   dogma   a   sustentar,   o  dogma   do   materialismo;  enquanto   isso   o   leigo   que  crê   no   sobrenatural,   crê  porque   viveu   uma  experiência pessoal assusta­ dora   ou   maravilhosa,  portanto,   crê   porque   pode  interpretar   suas   experiên­ cias de forma independente  de   quaisquer   doutrinas  preestabelecidas,   ou   seja,  ele   sim,   é   um   livre  pensador.

“Dr. House”: o seriado traz a figura caricata de um intelectual cético, cuja incredulidade é supostamente justificada por sua saliente inteligência.

R E S U M O Filósofo: David Hume (1711-1776) Argumentação ateísta: a) Se existe livre-arbítrio, então a sequência de causas e efeitos fica

quebrada, já que a livre decisão humana não parte de uma causa (pois assim não seria livre), mas nesse caso, o homem não pode ser culpado por seus atos. Mas se a sequência de causas e efeitos for válida, então Deus é culpado pelos pecados humanos, pois estes não são mais que consequências de sua obra. b) Milagres não podem ser aceitos pela mente humana, pois contraria o testemunho dos sentidos, mas havendo quem os testifique, é mais plausível pensar que tal pessoa esteja enganada ou esteja tentando enganar, o que não contraria os sentidos. Por isso, milagres só são acreditados por pessoas ignorantes.

Refutação: Hume erra ao pensar que uma vez quebrada a sequência de causas e efeitos, ela fica

totalmente inválida. O homem escolhe livremente, mas suas escolhas desencadeiam consequências que podem ser julgadas. Assim, inocentar o homem e culpar a Deus pelos pecados é um erro grosseiro. Mas apesar de não ser o culpado pelos pecados humanos, o próprio Deus quitou a dívida do homem pagando o preço dos seus pecados na cruz. Quanto aos milagres, se há um Deus que pode fazer um milagre na natureza, também o pode na mente humana, fazendo-a aceitar o milagre. Milagres sempre foram aceitos mesmo por pessoas de elevado nível de conhecimento, e a história dá forte testemunho disso (Galileu, Newton, Pascal, Pasteur, Kierkegaard etc).

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FRIEDRICH NIETZSCHE E O RADICALISMO DO SÉC. XIX Friedrich W. Nietzsche (1844­1900), filósofo alemão nascido em Rocken, é  considerado   um   dos   mais   importantes   filósofos   de   todos   os   tempos.   Filho   de  protestantes, doutrina a qual fora educado em toda a infância, perdeu o pai e o  irmão aos cinco anos de idade, e mudou­se para Naumburg, a morar com a mãe,  a irmã, duas tias e a avó. Em 1858, conseguiu uma bolsa de estudos na escola de  Pforta. Sob a influência dos professores, começou a afastar­se do cristianismo; e  estudou muito o latim e os clássicos gregos. Saindo de Pforta, foi a Bonn, onde  estudou filosofia e teologia. Nietzsche viveu um período de entrega às orgias e  aos   vícios,   ao   cigarro   e   à   bebida,   mas   depois   as   deixou,   julgando   serem  prejudiciais   à   percepção   e   ao   pensamento.   Foi   músico   amador   e   amigo   do  compositor   alemão   Richard   Wagner   (1813­ 1883),   a   quem   mais   tarde   criticou.   Suas  principais obras são: “O princípio da tragédia”  (1872),   “Assim   falou   Zaratustra”   (1883­85),  “Genealogia   da   moral”   (1887),   “O   Anticristo”  (1888), “O crepúsculo dos ídolos” (1889), entre  outras. Nietzsche sofreu frustrações amorosas,  e o fim de sua vida foi trágico: vitimado pela  loucura, dizia ser o sucessor do ‘deus morto’ e  escrevia cartas assinando como ‘o crucificado’.  Ao fim da vida, a obra de Nietzsche começa a  ganhar   notoriedade,   e   após   sua   morte,  influencia   os   formadores   dos   regimes  totalitaristas   europeus   posteriores,   como   o  nazismo. Crepúsculo dos Ídolos Nesse livro, lançado em 1889, Nietzsche  afirma que o ser humano vive em decadência.  Para ele, a humanidade começou a contrariar  seus   instintos   de   vida   e   poder   desde   os  pensadores gregos. A própria criação da moral  resume   essa   decadência.   Ele   pensa   que   no  lugar de controlar os instintos como vingança,  ambição, desejo e poder, o ser humano deveria  cultivá­los,   pois   quando   em   nome   da   moral  esses desejos são retraídos, o homem passa a  cultivar o tédio pela vida. Nietzsche alega que  as   religiões   mostram   Deus   como   inimigo   da  vida, pois ele sempre está ordenando a moral  e   o   controle   dos   instintos.   Ele   menciona   o  sermão em que Jesus ensina a cortar a mão e  arrancar   o   olho   caso   estes   venham   a   ser  motivo   de   escândalo   a   seu   possuidor.  Contrário   a   esse   ensino,   ele   desabafa:   não  devemos  admirar   os  dentistas  que  arrancam  12

Nietzsche: em seu obituário escreveu-se: “Um notável Anticristo”.

os   dentes   para   eles   não   doerem  mais,   mas   devemos   admirar   os  dentistas   que   recuperam   os   dentes  sem precisar arrancá­los. Igual  a  Hume,   Nietzsche   não  acredita no livre­arbítrio, ele diz que  vontade   própria   não   existe:   nossas  decisões   e   atitudes   não   passam   de  um   equilíbrio   entre   efeitos   físicos,  químicos   e   biológicos   em   nosso  organismo.   Sendo   assim,   ninguém  pode   ser   responsabilizado   pelo   que  faz, pois só é possível agir de forma  inevitável. Sua opinião sobre a religião é  a de que elas são formas de adestramento humano, ou seja, formas de tornar as  pessoas adestradas. Ele explica que um animal selvagem  é forte, instintivo e  vigoroso, mas o animal adestrado é enfraquecido e vive de forma doentia. Da  mesma   forma,   o   ser   humano   religioso   é   doentio   e   enfraquecido,   ensinado   a  conformar­se com o que tem e renunciar sua própria vida. Se as religiões são  meios de enfraquecer os homens, o cristianismo para Nietzsche é a forma mais  extrema   de   se   atingir   esse   objetivo:   no   judaísmo,   pelo   menos   eles   se  identificavam como uma nação, e por essa identificação lutavam e mostravam  bravura, seu Deus era muitas vezes tido como um capitão a frente de exércitos.  No cristianismo, não há luta física, não há um país ou uma bandeira territorial  a ser defendida, a luta do indivíduo é contra ele mesmo, contra seus instintos de  força   e   beleza,   seu   próprio   Deus   não   representa   força   ou   vigor,   é   um   Deus  bondoso e humilde, que se entrega a morte sem sequer reclamar. Nietzsche afirma que o valor de uma coisa reside no que se paga por ela, e  nem tanto no quando se pode adquirir com ela. Ele fala isso tendo em mente a  liberdade   que   a   fé   religiosa   restringe   e   oferece   ao   ser   humano.   A   religião  restringe os apetites instintivos, mas oferece a liberdade da vida, enquanto isso,  Nietzsche   se   queixa   do   quanto   se   paga   por   essa   liberdade   (o   abandono   dos  instintos   selvagens).   Mas   quanto   tempo   uma   sociedade   sobreviveria   se  permitisse tudo o que seus indivíduos desejassem? Roubos, vinganças, violações  de   todas   as   naturezas,   domínio   do   mais   forte   entre   outras   arbitrariedades  seriam  certamente  dominantes.   A   filosofia   de   Nietzsche   deu   muita   força   aos  regimes fascistas e nazistas, que levaram o mundo a testificar um de seus piores  capítulos nas grandes guerras.

Um animal selvagem expressa força e vitalidade. Para Nietzsche, um cristão é uma “doentia besta humana”.

Foto do regime nazista: apesar de amplamente negado, a filosofia de Nietzsche contribuiu com a formação desse regime bárbaro.

O Anticristo Este livro é uma moção de repúdio de Nietzsche ao cristianismo. Aqui ele  diz tudo o que pensa sobre a fé cristã, expressando que para ele essa crença foi a  pior   coisa   que   aconteceu   na   história   da   humanidade,   em   suas   palavras,   o  cristianismo é a imortal vergonha da humanidade. Ele começa o livro dizendo que felicidade é ter poder. O bem, para ele, é  conquistar o poder, enquanto que o mal é a fraqueza, é a perda de poder. Como  já dito, ele acredita que o  cristianismo  é  uma  forma de adestramento  do ser  humano. Enquanto Cristo pregava a compaixão, ele acredita que a compaixão  13

enfraquece o ser humano, pois ele deixa de dominar quando se compadece. A  compaixão do próprio Deus pelo ser humano assusta Nietzsche: para ele, a cruz  significa a inversão de valores, pois o próprio Deus sendo todo poderoso, mostra  compaixão   e   se   deixa   enfraquecer   e   morrer   pelo   homem,   um   espetáculo   de  fraqueza   e  perda   de  poder.   Ele diz  que  a  ideia   de  um  Deus  bondoso  e  fraco  surgiu   da   experiência   de   servidão   dos  judeus.   Eles   teriam   invertido   o  significado de bem e mal para se manter  em   vantagem.   Evidentemente,   essa  concepção   é   equivocada,   pois   o  cristianismo  não  foi   uma   adequação  do  judaísmo (os judeus recusaram o próprio  Cristo),   e   outra:   os   judeus   também  recusaram   a   servidão,   não   se  conformaram   a   ela,   pois   ainda   no  primeiro   século   da   era   cristã,   eles   se  insurgiram contra o império dominante  numa fracassada revolta. Nietzsche   diz   que   prefere   o  budismo como religião, pois nele não há  combate   ao   pecado,   e   sim   combate   ao  14

Acima: estátua do Buda em Hong Kong. Abaixo: concentração de monges budistas na Tailândia. A substituição de orações por regimes e do combate ao pecado pelo combate ao sofrimento fez Nietzsche considerar essa religião mais realista.

sofrimento; não há orações, mas sim regimes. Assim,  o   budismo   aceita   muito   mais   o   corpo,   compreende  suas   necessidades   e   prega   uma   virtude   que   se  direciona   aos   valores   humanos.   Ele   faz   essa  comparação   para   dizer   que,   lendo   os   evangelhos,  entendeu que Jesus ensinou uma forma budista de  filosofia   de   vida,   mas   como   foi   mal   interpretado,  mudaram   sua   mensagem   original   e   criaram   a  religião cristã. Para ele, se tirar os acréscimos que a  igreja colocou  nos evangelhos,  o que  sobra  é o tipo  psicológico de Jesus: um estilo de vida sem reações.  Como   ele   chegou   nessa   conclusão?   Removendo   dos  evangelhos o que decidiu remover, e acrescentando o  que desejou acrescentar. Assim, não só os evangelhos  mas qualquer livro pode se tornar um ensinamento  budista. Na   sequência,   ele   procura   justificar   como   o  suposto   evangelho   budista   de   Jesus   se   tornou   o  evangelho   que   conhecemos.   Para   ele,   os   discípulos  não entenderam nada quando Jesus morreu. Se ele  era   filho   de   Deus,   porque   não   sobreviveu   ou   não  reagiu   e   venceu   seus   algozes?   Logo   encontraram  uma   justificativa:   morreu   pelos   pecados.   Nietzsche  alega que foi Paulo quem criou tais conceitos, ele o  chama de  disangelista  (ao contrário de evangelista, que significa portador da  boa   nova,  disangelista  significa   portador   da   má   nova),   afirmando   que   é  necessário   usar   luvas   para   ler   o   Novo   Testamento,   já   que   ali   existe   muita  sujeira! Seu ponto seguinte é alegar que a religião cristã envenenou o mundo com  sua   contrariedade   ao   conhecimento.   O   filosófico   pensamento   grego   e   romano  sucumbiu,   e   a   teologia   cristã   reinou   por   muitos   anos.   Nesse   tempo,   pessoas  foram mortas e verdades foram escondidas. Nietzsche sugere que o próprio texto  bíblico mostra a má intenção dos sacerdotes  em relação ao conhecimento: na  história do Éden, por exemplo, o homem foi expulso do paraíso por se alimentar  do   conhecimento,   e   mesmo   com   todas   as   armas   divinas   contra   a   ciência  (trabalho   desgastante,   maldição,   dores   de   parto,   doenças   e   morte),   o  conhecimento começou a prosperar e para pará­lo, o próprio Deus decide  afogar   a   espécie   humana,   poupando   apenas   um   religioso   fiel   com   sua  família.   É   evidente   que   a   árvore   do   conhecimento   do   bem   e   do   mal  apresentada na Bíblia não representa o conhecimento científico, e a razão  pela qual o dilúvio aconteceu não foi a prosperidade da ciência, mas a  prosperidade   do   mal.   Nietzsche   sabia   disso,   mas   com   a   intenção   de  difamar   a   fé,   ele   ignora   essa   compreensão   e   tenta   surpreender   os  ingênuos com sua equivocada interpretação. É   bastante   surpreendente   a   conclusão   que   Nietzsche   chega   em  relação a reforma protestante. Ele louva a igreja romana quando ela vivia  sua maior corrupção, o que não é surpresa, já que ele define o bem como o  uso do poder e o mal como renúncia ao poder. Para ele, essa igreja vivia  um   momento   de   vida   e   beleza,   quando   não   estavam   preocupados   em 

Acima: o Apóstolo Paulo, por Rembrandt. Para Nietzsche, o culpado em deturpar o ensinamento budístico de Jesus.

Abaixo: Lutero, o alemão reformador da fé: 'os alemães serão os culpados se o cristianismo não desaparecer da Terra', disse Nietzsche.

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negar   a   própria   vida,   mas   em   rechear   de   ouro   suas   suntuosas   catedrais,  dominar   os   povos   e   conquistar   riquezas.   Lutero   desferiu   um   golpe   contra   a  secularização   da   igreja,   e   Nietzsche   lamenta   esse   golpe.   Afirma   que   se   o  cristianismo não for abolido do mundo, a culpa é dos alemães, pois Lutero era  alemão e a Alemanha foi o principal berço da reforma. Nietzsche conclui seu livro promulgando uma lei contra  o cristianismo.  Ele   escreveu:   “Com   isto   concluo   e   pronuncio   meu   julgamento:   eu   condeno   o   cristianismo;   lanço   contra   a   Igreja   cristã   a   mais   terrível   acusação   que   um   acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção imaginável;   busca   perpetrar   a   última,   a   pior   espécie   de   corrupção   [...]   Denomino   o   cristianismo a grande maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto   de   vingança,   para   o   qual   nenhum   meio   é   suficientemente   venenoso,   secreto,   subterrâneo ou baixo – chamo­lhe a imortal vergonha da humanidade...” As leis dele são: I) Renunciar a própria vida é vício; II) Colaborar na obra  de Deus é crime; III) O lugar onde Jesus viveu deve ser transformado no lugar  mais horrível e indesejado da Terra; IV) Castidade é um pecado contra o espírito  santo da vida; V) Padres e pastores devem morrer de fome; VI) História sagrada  será maldita, Deus será nome de xingamento; VII) O resto nasce a partir daqui. No final, ele assina essa lei como “Nietzsche, o Anticristo”. Nietzsche   fica   indignado   com   a  fé  cristã.   Ele  não  compreende   como  as  pessoas aceitam que o próprio Deus, que deveria ser o mais forte e intocável,  seja sofredor e prove da morte. Por causa dessa indignação ele enunciou que  “Deus morreu”. Ele prega o homem que valoriza sua própria vida, que remove os  obstáculos   de   seu   caminho   e   atinge   seus   objetivos.   Contrário   a   Jesus,   esse  Super­homem  despreza   a  compaixão  e  o  considerar   os  outros   superiores   a  si  mesmo; ele domina e compete com outros para ser sempre o melhor. Por isso,  Nietzsche   escreveu:   “Deus   morreu,   agora   nós   queremos   que   viva   o   super­ homem”. Existem muitas contradições nessas ideias. A primeira delas, é a de que  ao   mesmo   tempo   que   ele   louva   o   uso   do   poder,   ele   condena   a   religião   por  adestrar as pessoas e mantê­las dominadas pelos sacerdotes. Ora, se o uso do  poder   é   louvável,   então   por   que   não   aplaudir   os   sacerdotes   quando   eles  supostamente dominam? A segunda grande contradição é a sua condenação da  igreja   cristã   sobre   a   destruição   das   culturas  e   ciências   gregas   e  romanas.   A  dominação   da   igreja   romana,   que   não   era   algo   verdadeiramente   cristão,   é  condenada   por   impedir   a   ciência   e   a   diversidade   cultural,   mas   essa   mesma  dominação   é   vista   como   positiva   quando   ele   critica   a   reforma   protestante.  Afinal, Nietzsche elogia o uso do poder, mas condena o uso do poder quando esse  uso   é   realizado   pelos   seus   adversários   ideológicos.   Flagrantemente   parcial   e  contraditório.

“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? (…) Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!” Nietzsche. A anunciação nietzschiana da morte de Deus não é uma simples declaração de descrença, mas a constatação de que os valores religiosos deixaram de vigorar como norma de conduta na sociedade.

R E S U M O Filósofo: Friedrich Nietzsche (1844-1900) Argumentação ateísta: a) Deus é inimigo da vida, pois prega a autorrenúncia. A religião domestica os

homens, os tornando fracos e malogrados. b) Divindade cristã é o colapso da divindade judaica. c) Doutrinas cristãs refletem a lógica do ódio disseminada por Paulo, pelas quais culturas gregas, romanas e islâmicas foram destruídas.

Refutação: a) Nietzsche identifica o bem como o uso do poder, mas lamenta o uso do poder dos que 16

dominaram em nome de uma religião. Só a autorrenúncia pode frear os instintos nocivos do ser humano. b) Os judeus jamais se adaptaram a servidão e sempre recusaram a fé em Jesus. c) A adulteração do evangelho por Paulo é inventiva, e a destruição de culturas se deu pelo anseio de dominação, e não pela prática do evangelho como Cristo propôs.

BERTRAND RUSSELL E A FILOSOFIA ANALÍTICA Bertrand   Arthur   William   Russell   (1872­1970),   matemático   e   filósofo  britânico, foi um dos mais importantes popularizadores da filosofia no século  XX.   Recebeu   o   prêmio   Nobel   da   Literatura   em   1950,   pelos   seus   ideais  humanitários   e   pela   sua   contribuição   à   liberdade   do   pensamento.   Russell  pertenceu a uma família aristocrática inglesa; seus pais morreram quando ele  ainda era criança. Estudou filosofia na Universidade de Cambridge, tornou­se  membro   do   Trinity   College   em   1908,   mas   perdeu   a   cátedra   por   recusar­se  alistar à primeira guerra mundial. Em 1939, foi lecionar nos Estados Unidos, na  Universidade da Califórnia. Foi nomeado professor no City College, em Nova  Iorque,   mas   teve   sua   nomeação   anulada   por   ser   considerado   moralmente  impróprio. Foi um militante pacifista, mediou o conflito dos mísseis de Cuba a  fim de evitar um ataque militar; organizou com Albert Einstein o movimento  Pugwash, com o objetivo de combater a proliferação de armas nucleares. Elaborou   a   tese   da   fundamentação   logicista   da   matemática,   onde  assegura   que   todas   as   verdades   matemáticas   podem   ser   deduzidas   de   umas  poucas   verdades   lógicas;   concebeu   ainda   a   teoria   das   descrições   definidas,   e  formulou   algumas   teses   de   teoria   do   conhecimento.   Russell   escreveu   várias  obras, entre as quais se destaca “The principles of Mathematics”, de 1903; os  três   volumes   em   coautoria   com   Whitehead,   publicados   entre   1910   e   1913,  intitulados “Principia Mathematica”. Mas a obra que Russell desbanca­se em  defender sua moral em detrimento da moral religiosa (especificamente a moral  cristã) é o ensaio escrito a partir de uma palestra dada em 1927 sob o título  “Why I am not a Christian” (“Porque eu não sou cristão”). E esse é o livro que  vamos analisar.

Bertrand Russell: o nobre e sábio galês que não compreendeu a essência da fé.

Porque não sou Cristão Nesse   livro,   Russell   escreve   as   razões   sobre   sua   escolha   em   rejeitar   a  doutrina cristã, e ele fará isso baseado em dois fundamentos, que ele acredita  ser os dois fatores que determinam a identidade de um cristão: acreditar em  Deus  e  na   imortalidade  da   alma,   e  atribuir  alguma   supremacia   a  pessoa   de  Jesus de Nazaré, considerando­o pelo menos o mais sábio dentre os homens. Sobre   a   existência   de   Deus,   ele   trata   de   mostrar   inconsistências   nas  provas   clássicas   da   existência   de   Deus,   que   são:   o   argumento   da   Primeira  Causa,   o   argumento   da   Lei   Natural,   o   argumento   da   Prova   Teológica   e   o  argumento da Moral. Quanto ao argumento da Primeira Causa, ele questiona se  o próprio Deus é efeito de alguma causa. Como se alega que Deus não precisa  ter uma causa, então a suposição inicial de que todas as coisas tem uma causa  está errada, e assim o argumento é inválido. Já em relação ao argumento da Lei  Natural, Russell pergunta: “Por que Deus lançou essas leis, e não outras?” Se  respondermos que as leis da natureza foram essas porque são elas que tornam o  mundo possível, então nem Deus poderia se livrar dessa regra, ou seja, não é  onipotente. Já se dissermos que Deus criou essas leis porque assim o quis, então  há um rompimento na sequência de leis naturais, o que invalidaria o argumento  envolvendo Deus e as leis naturais. Mas esse rompimento  é necessário e não  invalida o argumento: o argumento não diz que a existência de Deus implica  nessas   ou   naquelas   leis,   mas   que   Deus   criou   leis   que   fazem   o   universo 

São Tomás de Aquino: um dos formuladores das provas da existência de Deus, as quais Russell contra argumenta.

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funcionar.   Refutando   a   prova   Teológica   da   existência   de   Deus,  Russell afirma que o mundo está longe de ser o resultado da obra  de um ser infinitamente sábio, poderoso e bondoso. Para isso, ele  cita   regimes   totalitários   e   grupos   de   terrorismo   envolvidos   em  ações de intolerância social. Não é, porém, uma ideia cristã pensar  que Deus pretenda tornar este mundo um paraíso perfeito. Sobre  os   argumentos   da   Moral,   desfere   fortes   críticas.   Um   argumento  concebido por Kant põe Deus como um padrão de bem. Pode ser  verdadeiro, mas não tem qualquer valor como prova da existência  de Deus, pois não há como verificarmos essa suposição. Agora ele tratará de mostrar o que pensa de Jesus, mostrando que ele não  era tão sábio. A primeira coisa que Russell aponta é o ensinamento de Jesus que  leva a entender que o fim do mundo ocorreria nos dias daquela geração, o que  não   aconteceu.   Jesus   disse   aos   discípulos,   quando   proferia   profecias   sobre   o  final   dos   tempos,   que   tudo   aquilo   aconteceria   ainda   antes   que   os   seus  seguidores percorressem todas as cidades da judeia. Evidentemente, se trata de  uma interpretação particular e equivocada, pois Cristo ainda não voltou, mas  até   hoje   as   aldeias   de   Israel   não   foram   totalmente   alcançadas   com   seu  evangelho.   Russell   alega   que   Cristo   usava   de   ameaças   quando   censurava   os  fariseus, tipo de atitude que outros sábios não usariam. Fala também do fato de  Jesus   ter   amaldiçoado   a   figueira   e   permitido   que   os   espíritos   imundos  entrassem   na   manada   de   porcos,   atestando   assim   sua   indiferença   com   a  natureza.   Mas   o   conteúdo   e   a   essência   dos   ensinamentos   de   Cristo   não   são  mencionados, de modo que as acusações indicadas não passam de argumentação  irrisória. Com   todas   essas   considerações,   Russell   afirma   que   as   religiões   são  dotadas   de   crueldade.   Ele   diz   que   nas   épocas   de   maior   apego   a   fé,   maiores  horrores foram cometidos. Mas ele não se preocupa  em ressaltar que, nessas  épocas e na prática desses  horrores,  os  próprios ensinamentos  bíblicos foram  esquecidos. A Religião Contribuiu para a Civilização? Um   outro   ensaio   de  Russell,   que   leva   o   nome  deste título, também trata de  sua   descrença   em   Deus.   Ele  indica   que   a   religião   não  trouxe   muita   contribuição  para   a   civilização,   aliás,   as  únicas   contribuições   que   ele  reconhece   são   a   fixação   do  calendário   e   a   predição   de  eclipses   pelos   sacerdotes  egípcios.   Russell   se   vale   de  interpretações   duvidosas   da  Bíblia   para   argumentar:   ele  diz   que   é   impossível   olhar  18

Vista do mura das lamentações, em Jerusalém: mesmo sendo o berço do cristianismo, a judeia não é um território predominantemente cristão.

Com o objetivo de desmoralizar a fé, Russell apela: 'somente sendo tão cruel quanto o Deus em que se crê para afirmar que o sofrimento de crianças doentes seja consequência de sua imoralidade'. Evidentemente, essa crítica não cabe a crença cristã.

para   o   sofrimento   em   um  hospital infantil e concluir que  aquelas   crianças   sofrem   por  serem   pecadoras,   mas   essa   é  uma atitude equivocada dentro  da   religião   cristã:   Cristo  manifestava   misericórdia   aos  necessitados, não lhes apontava  culpas. Diz   Russell   ter   duas  principais   razões   contra   a  religião.   Uma   delas   é  intelectual, e é a de que não há  razão   alguma   para   se   supor  que   determinada   religião   seja  verdadeira. A outra é moral, e se resume no fato de que as religiões nasceram  em uma época em que os homens eram mais cruéis, e a prática dessas religiões  fazem perpetuar muitas ações desumanas. Quanto a primeira razão, apenas fica  manifesto  sua falta de imaginação: a existência de algo independe de nossas  suposições. Em relação à perpetuação de ações desumanas, essa crítica não vale  para  a fé cristã,  cuja  essência  é o amor ao próximo.  Ele  afirma  ainda  que a  religião   coíbe   alguns   impulsos   que   servem   para   amenizar   o   egoísmo.   Estes  impulsos são: a família, o patriotismo e o sexo. Sobre a família, é uma fantasia  pensar que a Igreja cristã coíbe sua instituição. O patriotismo não é contrariado  pelo   evangelho,   mas   colocado   em   segundo   plano.   Mesmo   assim,   a   patriação  celestial   é   um   impulso   ainda   mais   importante   em   atenuar   o   egoísmo   das  pessoas. Já sobre o sexo, o padrão cristão é o da restrição ao matrimônio, e é  muito  questionável se  a  prática sexual faz  diminuir o  egoísmo  de alguém. O  matrimônio cumpre esse papel, mas o ato sexual em si pode ser realizado num  puro surto egoísta de satisfação carnal. Russell   também   apela   para   a   ciência   para   justificar   algumas   de   suas  suposições. O apelo que faz, entretanto, é flagrantemente errôneo: ele diz que  não   existe   livre­arbítrio,   pois   a   ciência   pode   prever   o   desenvolvimento   de  qualquer sistema a partir de leis físicas bem estabelecidas. O problema que ele  não menciona é que as leis estabelecidas não explicam como é possível agirmos  por decisão própria. Mesmo   sendo   um   matemático   logicista   muito   importante,   Russell  reconheceu   que   é   impossível   provar   a   inexistência   de   Deus.   Ele   ficou   tão  incomodado   com   essa   impossibilidade   que   tratou,   astutamente,   de   dizer   que  quem tem que provar qualquer coisa são os religiosos, e não os ateus. Dizia ele:  suponha   que   exista   um   bule   chinês   celestial   em   órbita   do   Sol,   mas   a   uma  grande distância da Terra. Por ser pequeno esse bule, os telescópios não podem  encontrá­lo.   Assim,   ele   poderia   tentar   fazer   alguém   acreditar   que   esse   bule  realmente existe, mas as pessoas não acreditariam sem uma prova disso. Da  mesma   forma,   se   Deus   existe,   são   os   religiosos   quem   devem   provar   sua  existência, não sendo obrigação dos ateus provarem sua inexistência. Isso está  certo,   mas   não   é   intenção   de   um   religioso   provar   a   existência   de   Deus.   O  religioso diz, em conformidade com sua convicção: é necessário ter fé. Voltando a questão original deste tópico, se a religião contribuiu com a 

Madre Tereza de Calcutá. Impossível associar sua imagem com egoísmo, mas de uma forma curiosa e não bem argumentada, Russell considera que os ensinamentos da Igreja estão fundamentados no ódio e egoísmo.

Se alguém alegar que existe um bule de chá no espaço, em órbita do Sol, terá de prová-lo, caso contrário, jamais será acreditado. O ônus da prova é de quem afirma, não de quem contesta. Com esse argumento, Russell questiona se os ateus precisam argumentar contra a existência de Deus, ou se são os religiosos que precisam comprová-la.

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civilização, temos de dizer, ao menos em nome da fé cristã, que muitas foram as  contribuições. Só para exemplificar, em vilas e vilarejos, bem como em grandes  cidades, em seus subúrbios e periferias, a quantidade de pessoas, especialmente  jovens, que mudaram de vida saindo da marginalidade para uma vida devota,  de   trabalho   e   compromisso   familiar,   é   indescritível.   Mas   são   realizações  silenciosas, que não trazem uma bandeira estampada, que não é homenageada  em festas populares nem lembrada nos grandes círculos intelectuais.

R E S U M O Filósofo: Bertrand Russell (1872-1970) Argumentação ateísta: a) Russell questiona as provas clássicas da existência de Deus, e afirma que

Jesus não foi tão sábio quanto outros, por ameaçar seus oponentes com o inferno e ensinar que seu advento seria nos dias daquela geração, além de ser indiferente com a natureza. b) Aponta duas objeções contra a fé: a objeção intelectual, de que não há razão para se acreditar em Deus, e a objeção moral, de que a religião perpetua a crueldade herdada da época em que foi criada. c) Alega que a tarefa de provar a existência de Deus é dos teístas, não sendo responsabilidade dos ateus argumentar sobre sua inexistência.

Refutação: a) A existência de Deus não depende das provas clássicas, elas não são mais do que

tentativas de racionalização da fé; ainda assim, Russell tropeça em sua refutação da prova da lei natural. Suas críticas a Jesus são irrisórias, a base moral que ele usa para sustentá-las são frutos da ampla difusão dos valores evangélicos ao longo de séculos. b) A objeção intelectual não tem fundamento, seria esse o caso se o ser humano não demonstrasse necessidades espirituais, e a objeção moral não se aplica a fé cristã, que prega o amor. c) Assim como o astrônomo não precisa provar a existência da galáxia de Andrômeda para seus céticos, o religioso não precisa provar a existência de Deus.

Imagens de outdoors criados pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, que foram publicados em Porto Alegre (RS) em 2011.

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JEAN-PAUL SARTRE E O EXISTENCIALISMO DO SÉC. XX Jean­Paul Sartre (1905­1980),  filósofo francês  nascido em  Paris,  é  considerado   o   maior   intelectual   do  Existencialismo.   Devido   ao  falecimento   do   pai   dois   anos   após  seu nascimento, foi morar com o avô  paterno,   protestante.   Graduou­se  em   1929   pela   École   Normale  Supériure   e   passou   a   viver   com  Simone de Beauvoir. Após o curso de  filosofia,   prestou   o   serviço   militar  como   meteorologista.   Teve   grande  influência   do   pensamento  existencialista de Soren Kierkgaard  (1813­1855).   Foi   prisioneiro   dos  alemães   entre   1940­41,   e   após   ser  solto   por   razões   médicas,   fundou   o  grupo   “Socialismo   e   Liberdade”   a  fim   de   atuar   junto   à   resistência  contra   os   alemães.   Apesar   de   ter  exaltado   a   liberdade   em   suas  primeiras   obras,   após   a   guerra  Sartre   volta   sua   atenção   para   as  questões   da   responsabilidade   civil.  Embora   fosse   um   admirador   do   marxismo,   decepcionou­se   com   as   ações   de  guerra da União Soviética. Foi contemplado ao prêmio Nobel de Literatura por  sua obra “As Palavras” (1964), mas recusou­o. Ficou cego em seus últimos anos,  e faleceu em 1980 devido a um tumor pulmonar. As   principais   obras   de   Sartre   são:   “A   Imaginação”   (1936),   “A   Náusea”  (1938),   “O   Muro”   (1939),   “O   Imaginário:   Psicologia   fenomenológica   da  Imaginação” (1940), todas dominadas pelo seu pensamento de liberdade, onde  propunha   a  descrição   dos   fenômenos  sem  qualquer  ideia   preestabelecida.   Na  fase   de   guerra   publicou   o   “O   Ser   e   o   Nada”   (1943),   considerada   a   obra   fundamental da teoria existencialista, e a peça teatral “As moscas” (1943), uma  crítica   camuflada   ao   regime   totalitarista   alemão.   Anos   mais   tarde   ele   se  direciona à produção de obras de teatro, dentre as quais destacam­se: “Entre  quatro paredes” (1945); “Mortos sem sepultura” (1946); “A prostituta respeitosa”  (1947), “O diabo e o bom Deus” (1951) entre outras. Em todas essas peças Sartre  busca expor a inclinação má do ser humano em relação a seu próximo. Em 1946  publica   “O   existencialismo   é   um   humanismo”,   procurando   esclarecer   críticas  feitas   às   ideias   do   existencialismo   expostas   em   “O   Ser   e   o   Nada”.   Em   “O  fantasma de Stálin” (1956), critica ao marxismo; filosofia ao qual não rejeita,  mas salienta seus problemas. Sartre foi editor, junto a outros intelectuais, do  jornal “Tempos modernos” de 1945 a 1955.

Jean-Paul Sartre: se Deus existe ou não, não há qualquer diferença.

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O Existencialismo é um Humanismo Existencialismo é uma doutrina que afirma que o ser humano não tem  uma   essência   primordial,   ou   seja,   não   existem   valores   ou   padrões  preestabelecidos para sua conduta, todos os valores, sejam eles de ordem moral  ou   social   foram   criados   posteriormente   pelo   próprio   ser   humano.   Assim,   o  homem   primeiro   existe,   depois   constrói   sua   identidade   humana.   Essa  construção envolve todos os indivíduos, num processo chamado subjetividade: as  decisões humanas fazem estabelecer seus valores. Quando alguém se casa, está  escolhendo o modelo do matrimônio como ideal para si, e mesmo sem pensar  nisso, o escolhe também para toda humanidade. Logo, toda decisão que alguém  toma envolve a humanidade na construção de seus valores, de modo que não  existe um padrão a ser seguido, não há uma orientação prévia de quais serão as  escolhas bem sucedidas, de modo que o ser humano se flagra abandonado em  suas   decisões.   Percebendo   essa   condição   de   abandono,   pois   não   há   um  sobrenatural que o possa direcionar para o bem ou para o mal, o homem vive   sua angústia, a angústia de quem precisa decidir mas não dispõe sequer de um  sinal   sobre   qual   decisão   tomar,   e   mesmo   não   decidindo   está   escolhendo   não  decidir,   o  que  é  já  uma   decisão.  Desse  raciocínio,   Sartre  diz  que  o  homem  é  condenado   a   ser   livre.   É   fácil   ver   que  essa   concepção   é  materialista   em  sua  própria construção. Quando Sartre diz que não existe um padrão estabelecido ao  ser   humano,   está   testificando   o   fundamento   ateu   de   sua   doutrina.   Para   a  doutrina cristã, o ser humano foi criado com propósitos definidos pela soberania  divina,   e  os   padrões   centrais   de   conduta   determinados   ao  ser   humano   estão  fixados na consciência de cada indivíduo. Uma   crítica   muito   forte   que   a   doutrina   existencialista   recebia  (principalmente por pessoas que viveram os horrores das guerras), era a de que  pelas suas suposições não se podia condenar quem quer que seja por suas ações,  já   que   não   existiam   padrões   preestabelecidos.   Em   relação   a   isso,   Sartre  escreveu  que as  ações poderiam ser  julgadas quando  fossem  consideradas de  má­fé, ou seja, quando por essas ações se privava a liberdade de alguém. Com  um discurso técnico e extenso, ele  tenta   justificar   essa   ideia   sem  deixar   transparecer   que   está   se  contradizendo,   mas   na   verdade,  quando diz que ações que privam  a   liberdade   são   ações   más,   está  escolhendo   a   liberdade   como  padrão preestabelecido, o que vai  contra sua própria tese. Seu entendimento sobre as  decisões   humanas   o   fazem  acreditar que mesmo provando a  existência   de   Deus   nada  mudaria,   ou   seja,   o   homem  continuaria abandonado em suas  escolhas,   pois   até   mesmo   se   um  anjo   lhe   falasse,   seria   ele   quem  teria  de decidir que a voz foi de  um anjo e não de um demônio, ou  22

Acima, um presídio; abaixo, tanques de guerra. O que torna um ato aceitável ou condenável? O certo e errado, para Sartre, é uma construção humana, construção essa não guiada ou justificada por qualquer padrão preestabelecido. O homem está, portanto, “condenado a ser livre”.

se   aquela   voz   não   foi   de   seu   próprio   inconsciente.   Tentando   mostrar   que   a  doutrina cristã não dá respostas, ele fala de algo que lhe aconteceu: um jovem o  procurou para pedir um conselho. O jovem queria uma opinião para decidir se  deixava a mãe solitária em casa e se alistava na guerra afim de vingar a morte  de seu irmão, ou se deixava de lado o desejo de vingança e ficava com a mãe já  velha em casa acolhendo­a. Diante dessa circunstância, sua resposta ao jovem  foi: “Invente, você é livre”. Ou seja, qualquer decisão seria correta, desde que  tomada em concordância com sua vontade. Nesse ponto, Sartre faz uma infeliz  afirmação:   nem   a   doutrina   cristã   teria   uma   resposta   para   esse   jovem.  Certamente ele deixou de considerar muita coisa para dizer isso, basta lembrar  que Cristo ensinou o amor ao próximo, não havendo espaço para vingança na  conduta cristã. Uma ilustração poderá deixar mais claro o equívoco aqui flagrado: dois  homens seguiam por certo caminho. Um deles chamava­se Existencialista, e o  outro, Cristão. A certo ponto, o caminho fez uma bifurcação: cada um decidiu ir  por   um   lado,   embora   ambos   seguissem   ao   mesmo   destino:   procuravam   a  residência da senhora Liberdade. Existencialista seguiu pelo caminho chamado 

“O nascimento do novo homem” de Salvador Dali (1943): uma crítica à guerra e à promessa de transformação social. A doutrina existencialista leva a responsabilidade das barbaridades ao próprio homem, já que ele é o único responsável por escolher o que é bom ou não para si. Mas os valores de natureza moral seriam mesmo criados pelo ser humano ou seriam absolutos, dado que todos seres humanos concordam com os mais fundamentais deles, como o direito a liberdade?

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‘ateísmo’,   e   Cristão   seguiu   pelo  caminho   chamado   ‘fé’.   Perderam­se   de   vista.  Após   longa   caminhada,   tanto   para   um   quanto   para   o   outro,   finalmente  Existencialista   vislumbra   o   final   de   seu   caminho:   uma   mansão   antiga   com  inscrições   ao   alto:   “Liberdade”.   Alegra­se,   mas   ao   entrar,   sua   alegria  transforma­se   em  angústia,   pois   se   vê  desamparado,   quando   observa   que  no  interior daquela residência não há ninguém, e tudo está abandonado às traças.  Angustiado, sai pelos fundos da casa e vê a chegada do caminho chamado ‘fé’,  também dando na mesma residência. Ri­se consigo mesmo e diz: “Meu amigo  Cristão não terá vantagem alguma em ter escolhido o caminho da fé, pois ambos  remetem a esse mesmo lugar; logo aqui ele chegará também. A única vantagem  minha é que o caminho do ateísmo era mais espaçoso que o caminho da fé”.  Passa­se o tempo e nada de Cristão chegar. Somente depois de muito esperar, é  que   Existencialista   indignado   volta   tomando   o   caminho   da   fé   esperando  encontrar­se   com   o   amigo   ainda   em   viagem.   A   certa   altura   do   caminho,   ele  percebe   que   seu   amigo   já   está   longe,   pois   somente   no   caminho   da   fé   havia  mensageiros do Rei anunciando que a mansão da liberdade havia se mudado,  transferindo­se do reino da terra para o reino dos céus, e por isso os viajantes  tomavam um atalho chamado Cruz, apontado pelos mensageiros, para irem  à  nova mansão da Liberdade. Não sei se Existencialista chegou ao atalho da cruz  em tempo, pois as portas da mansão da Liberdade iriam se fechar a meia­noite;  mas se não chegou, perdeu toda a viagem.

Liberdade: um padrão absoluto que rege as ações na construção dos valores humanos.

Balança: símbolo de justiça. A ausência de padrões preestabelecidos ao ser humano faz da justiça uma livre criação humana. Mas há um padrão pelo qual nossas ações são avaliadas, que indica quais atitudes são consideradas corretas e incorretas. Esse padrão é universal, independe de cultura ou época, e é através dele que o senso comum de justiça se estabelece. A própria existência desse padrão explicita a invalidade da visão materialista do mundo.

R E S U M O Filósofo: Jean-Paul Sartre (1905-1980) Argumentação ateísta: a) A existência humana precede sua essência (valores de certo e errado). Nenhuma moral religiosa pode dar ao homem respostas absolutas. b) É indiferente Deus existir, pois mesmo nesse caso, o homem tem de lidar com suas próprias escolhas.

Refutação: a) Embora considere que não existam valores fundamentais preestabelecidos, Sartre precisa

eleger a liberdade como valor absoluto (sem admitir) para consolidar sua defesa ao existencialismo quanto a acusação de anarquismo. A moral cristã é enfática em defender o amor ao próximo como compromisso social, e esse compromisso dá respostas. b) A existência de Deus muda tudo no cenário existencialista, pois então existem valores preestabelecidos ao ser humano.

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RICHARD DAWKINS E A NOCIVIDADE DA FÉ Clinton   Richard   Dawkins   (1941­         ),  zoólogo   e   etnólogo   queniano,   conhecido   como  “Rottweiler  de   Darwin”,   dado   o  rigor  com  que  defende   o   darwinismo;   é   um   dos   maiores  divulgadores do ateísmo na atualidade. Através  de palestras, participação em programas de TV,  livros   e   documentários,   ele   tem   disseminado  suas ideias contrárias à fé em todo o mundo. As  principais   obras   dele   são:   “O   gene   egoísta”  (1976),   “O   Rio   que   saía   do   Éden”   (1995),   “A  escalada   do   monte   improvável”   (1997),  “Desvendando o arco­íris” (1998), “O capelão do  diabo”   (2003)   e   “Deus,   um   delírio”   (2006).   O  mais conhecido de seus documentários intitula­ se “Raiz de todos os males?” (“The Root of All  Evil?”),   feito   para   a   televisão   inglesa,   onde  enfatiza a inutilidade das religiões, garantindo  que  o mundo seria melhor sem as mesmas. O  documentário   de   cerca   de   noventa   minutos,  dividido   em   dois   episódios,   foi   exibido   pela  primeira   vez   em   2006,   e   temos   a   seguir   uma  análise de vários dos seus argumentos. Raiz de todos os Males No documentário, Dawkins tenta estabelecer uma relação entre religião e  ódio. Ele mostra imagens de um atentado suicida e afirma que aquilo não é o  problema   de   uma   religião   específica,   mas   de   todas   as   religiões,   inclusive   a  cristã. Seguindo as ideias de Bertrand Russell, ele fala da escassez de milagres  entre pessoas de maior nível intelectual. Visitando um santuário mariano na  França,   ele   sugere   que   os   milagres   ali   testificados   não   são   examinados  rigorosamente, e se fossem, se constataria que não são milagres. Depois disso,  ele   conversa   com   judeus,   muçulmanos   e  cristãos,   salientando   as   questões   de  intolerância religiosa entre os judeus e muçulmanos, e a contrariedade com a  ciência da evolução por parte de pastores protestantes. Com isso, ele conclui que  as religiões atrapalham o desenvolvimento social e científico. Dawkins   identifica   a   fé   como   um   vírus   ideológico.   Baseado   em   seu  conhecimento   em   biologia,   ele   diz   que   o   padrão   de   propagação   das   ideias  religiosas   é   o   mesmo   padrão   de   propagação   dos   vírus,   além   disso,   o   vírus  geralmente prejudica quem o contrai; da mesma forma, a fé além de não trazer  benefícios a seu possuidor, ainda o prejudica. Toda crítica que Dawkins faz contra a religião sempre é baseada em erros  que as pessoas religiosas cometem, por exemplo, como dizer que a ciência está  errada ou como matar pessoas de outras religiões por não concordar com elas.  Em   relação   ao   cristianismo,   esses   atos   errôneos   não   fazem   parte   dos  ensinamentos,   embora   sejam   muitas   vezes   praticados;   mas   nesses   casos,  errados estão quem os cometem, e não a doutrina religiosa em si.

Richard Dawkins: um dos maiores proselitistas ateu da atualidade.

Vírus Influenza: seu padrão de propagação é semelhante, para Dawkins, ao da difusão de ideias religiosas.

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Deus, um Delírio Trata­se de um livro muito popular de Dawkins, onde ele mostra toda sua  ideia   ateísta.   Seu   argumento   é:   quem   criou   Deus?   Embora   saiba   que   essa  pergunta é descabida, ele a faz propositalmente, com a intenção de não abrir  mão   do   naturalismo   (pensamento   que   considera   que   tudo   o   que   existe   deva  estar na natureza), e levar seus leitores a raciocinarem com ele sempre do ponto  de vista materialista. Alguns experimentos que procuram mostrar que a fé é  inútil   e   que   a   doutrina   religiosa   é   nocivas   são   mencionados.   Um   deles   é   o  experimento das preces. Nesse experimento, um grupo de pessoas internadas  num   hospital   teve   seus   nomes   registrados   e   entregues   a   uma   determinada  igreja, para que seus fiéis orassem por eles. Outro grupo de pessoas internadas  não teve seus nomes registrados, e portanto, não receberam as orações dos fiéis  daquela igreja. A forma que os doentes se recuperaram mostrou que as orações  não tiveram qualquer efeito, aliás, entre os que receberam oração, aqueles que  souberam   que   estavam   recebendo   oração   pioraram   mais   em   sua   saúde   que  aqueles que não sabiam que estavam recebendo oração. O interessante é que  ninguém questionou o método aplicado, ou seja, como Deus responde quando ele  sabe que alguém o quer experimentar?  Existem   vários   exemplos   disso   na  Bíblia,   e   em   todos   eles,   Deus   não   se  manifesta quando não há uma intenção  verdadeiramente pura. Um   outro   experimento   que  chama a atenção, agora feito no sentido  de   dizer   que   a   doutrina   religiosa   faz  mal para a sociedade, é o seguinte: foi  perguntado   para   um   grupo   de   alunos  israelitas do ensino fundamental o que  eles   achavam   da   história   bíblica   da  conquista   de   Josué.   A  grande   maioria  disse   que   a   conquista   foi   um   ato  heroico.   Depois   de   algum   tempo,   os  pesquisadores   escreveram   a   mesma  história   de   Josué   trocando   seu   nome  por um nome desconhecido, e os nomes  dos   países   envolvidos   por   nomes   de  países   diferentes.   Os   alunos   leram   a  história   e   agora   responderam   que   a  conquista   foi   absurda,   já   que   o   povo  habitante das terras conquistadas foi brutalmente violentado pelos invasores.  Dawkins conclui que foi a fé e a lealdade com a doutrina religiosa que fez as  crianças acharem a conquista de Josué algo positivo, quando na verdade teria  sido um genocídio bárbaro. Novamente, é um experimento muito criativo, mas  serão   mesmo   válidas   as   conclusões?   O   que   eles   não   perceberam   foi   que   a  história de Josué está envolvida num contexto muito maior, e o resultado da  experiência mostra a prevalência do conceito de bem e do mal em relação ao  conceito de certo e errado. Em todo caso, as narrações do Antigo Testamento  mostram as ações de um povo que tinha por missão a intermediação da vinda do  Messias,   e   não   a   representação   do   Reino   de   Deus   em   sua   essência.   Essa  26

A conquista de Jericó: para Dawkins, um vergonhoso genocídio sustentado pela convicção religiosa.

representação   é   cargo   da   Igreja   fundada   por   Jesus   a   partir   de   seus  ensinamentos, que inclui o amor aos inimigos, o que é propriamente contrário as  mortes e sofrimentos das guerras em qualquer época. Apesar de ter se tornado um best­seller, o livro de Dawkins é fraco e seus  argumentos   são reciclados   de  pensadores  antigos.   Na  opinião  de  pessoas   dos  mais altos níveis acadêmicos, Dawkins fez um desfavor para a causa ateísta,  criando   um   livro   cheio   de   provocações   e   argumentação   emotiva,   ao   invés   de  fundamentar seus argumentos de forma criteriosa. Mas seu livro não é inútil:  serve para denunciar muitos absurdos cometidos em nome da fé.

R E S U M O Filósofo: Richard Dawkins (1941-

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Argumentação ateísta: a) A religião está associada ao ódio, a fé é um processo de não pensar. b) Quem criou Deus? A interferência de Deus na natureza não pode ser conferida, o que mostra sua inexistência. c) A religião perpetua os erros do passado.

Refutação: a) Religião e ódio podem coexistir, mas não é esse o caso do discípulo de Jesus. Grandes

pensadores da história foram e são pessoas religiosas. b) Deus está além da natureza, e as interferências divinas (os milagres) não podem ser comprovadas pelos critérios da ciência porque os critérios da ciência são limitados. c) As tradições perpetuam os erros do passado, e não a verdadeira religião segundo Cristo.

Imagens de outdoors criados pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, que foram publicados em Porto Alegre (RS) em 2011.

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TENDÊNCIAS ATUAIS Na atualidade, temos uma popularização das ideias ateístas  na sociedade. Por um lado, os defensores dessas ideias tem usado  meios eficazes de propagá­las, e por outro, a Igreja em geral tem  deixado o evangelho em segundo plano, priorizando o exibicionismo  denominacional.   Os   principais   fatores   que   tornam   a   Igreja  impopular   são   acusações   de   charlatanice,   corrupção   moral   e  intolerância religiosa. A charlatanice ocorre  quando testemunhos de  milagres em  geral (curas, providências extraordinárias) são forjados para atrair  multidões. Tais crimes são possíveis, mas não fornecem uma base  sólida   para   se   desacreditar   de   Deus:   não   se   condena   a   ciência  médica por charlatões que se passam por médicos a fim de enganar  alguém. A corrupção moral é a acusação mais grave contra a igreja  da atualidade. Enquadra­se aqui o desvio do dinheiro arrecadado  para   fins   particulares,   algo   que   se   tornou   comum   em   alguns  segmentos evangélicos; a pedofilia, cujas acusações e condenações  mancharam   profundamente   a   imagem   do   catolicismo   romano,   entre   outras  acusações.   Mas   a   mais   importante   e   efetiva   acusação   contra   a   igreja   na  atualidade  é  a   de  intolerância   social.   O   evangelho  é  considerado   segregador,  onde   devotos   de   outras   confissões   religiosas   são   demonizados,   assim   como  pessoas   de   conduta   alternativa   ou   principalmente   homossexuais.   O   prêmio  Nobel de literatura José Saramago disse que a religião nunca foi uma forma de  aproximar as pessoas, pelo contrário, ela sempre foi uma forma de separá­las.  De  fato,   não  há   meio   mais   fácil   de  tornar   dois   povos   irreconciliáveis   do   que  através da  religião.  Entretanto,  o evangelho  de Cristo não  pode receber  essa  condenação:   foi   Jesus   quem   ensinou   as   pessoas   a   amarem   seus   próprios  inimigos. O cristão que segrega ou age de forma intolerante está contrariando  sua própria fé. Mas   não  é  só   a   Igreja   que  recebe   acusações   em  nossos   dias.   Os  ateus  também lançam acusações contra a Bíblia e contra o próprio Deus. Contra a  Bíblia, alegam que está repleta de contradições e absurdos. Falam por exemplo  de incoerências em suas narrações, mas  geralmente   essas   incoerências   provem  da má interpretação que fazem de seu  texto.   Em   Gênesis   1,   por   exemplo,   o  homem   foi   criado   junto   com   sua  mulher,   mas   em   Gênesis   2,   a   mulher  foi   formada   depois   do   homem.  Evidentemente,   Gênesis   2   detalha  aquilo que Gênesis 1 descreve de forma  sucinta. É um argumento frágil e tolo,  mas   quando   formulado   e   bem  articulado por um filósofo em um livro,  torna­se   um   assombroso   flagrante   de  incoerência   textual.   Algumas   dessas  ditas   incoerências   se   referem   a  detalhes de uma narração que diferem  quando descritos   por um ou por  outro  28

Atentados terroristas nos EUA: a religião fomenta o mal?

É impossível falar de críticas à Igreja atual sem mencionar o uso das arrecadações, especialmente numa época em que o volume de escândalos envolvendo enriquecimento ilícito por parte dos líderes evangélicos tem se multiplicado.

escritor, como a descrição da compra do Campo de Sangue, com o dinheiro que  Judas recebeu para trair seu Senhor: em Mateus (27.6­8) foram os príncipes dos  sacerdotes que o compraram, mas em Atos dos Apóstolos (1.16­19) foi o próprio  Judas quem o comprou. Há, em casos como este, um flagrante disparate, mas  esse   disparate   só   serve   para   conferir   maior   autenticidade   ao   texto,   pois   é  inevitável   que   um   fato,   quando   observado   por   mais   de   uma   pessoa,   gere  algumas divergências em sua descrição. Se não houvesse uma só discrepância  entre as narrações os céticos usariam essa mesma exatidão para acusar o cânon  bíblico de ser uma obra forjada. As  acusações  contra   Deus,  quando o  ateu  admite a  existência   de Deus  somente para blasfemá­lo, consiste em culpá­lo pelos males do mundo. É o velho  conhecido “problema do mal”: se Deus é bondoso e poderoso, deveria suprimir o  mal   do   mundo,   fazendo   com   que   as   pessoas   vivessem   sem   sofrimentos.   Tal  argumento ignora que a culpa pelos sofrimentos é do próprio homem, e que de  fato, o próprio Deus já providenciou uma forma de salvação. As vicissitudes da  vida não são um estorvo, nem algo que torne a vida uma desventura, mas são  obstáculos que dignificam aqueles que os enfrentam, cujas vitórias redundam  num   peso   de   glória   indescritível.   Desse   ponto   de   vista,   a   existência   dos  sofrimentos glorifica a Deus por dar ao ser humano a possibilidade de vencer,  tornando­o mais do que um mero vivente sem conquistas. O ateísmo da atualidade é difundido nas escolas, nas universidades, em  publicações de cunho científico, em filmes, seriados e em diversas manifestações  culturais,   sempre   levantando   a   bandeira   da   racionalidade.   Além   dessa  ostentação,   militantes ateus  se  infiltram nos  meios  legais  com  a  intenção  de  censurar   toda   informação   religiosa,   como  no  abstruso   caso   onde  o  Congresso  Nacional brasileiro cogitou discutir assuntos relacionados com a liberdade de  expressão   religiosa   sem   a   presença   dos   representantes   religiosos,   pois   tal  presença,   para   os  militantes  ateístas,  causaria  parcialidade  e  prejudicaria  os  debates. Na verdade, eles queriam a distância dos religiosos para criarem leis  que dificultassem a disseminação da fé. Este sim, era com certeza um propósito  absolutamente parcial e tendencioso. O ateísmo de nossos dias é bem diferente do ateísmo no passado. Da época  dos gregos até a renascença, o ateísmo se manifestava indicando que acreditar  em   Deus   era   impossível,   algo   contrário   ao   conhecimento   racional.   Isso   se  mostrou ineficiente e logo o argumento passou a ser a indiferença da crença em  Deus:   ter   fé   não   muda   nada.   Poucos   religiosos   cederam   a   esse   apelo   e  continuaram crendo, de modo que agora, a aposta  é: a fé prejudica o mundo.  Assim, aos poucos, a crença religiosa deixou de ser considerada irracional para  ser considerada ofensiva, e aos poucos, o ateísmo deixará de ser uma negação da  existência  de  Deus e  passará  a  ser  uma  rejeição  pessoal   deliberada,   onde  os  propósitos, vontades e planos divinos serão alvo de blasfêmias e acusações. Essa  última face do ateísmo, agora sem máscaras, mostrar­se­á um puro sentimento  anticristão.

Há contradições na Bíblia Sagrada? Milhares de páginas na web apontam um grande número de supostas contradições, mas geralmente são frutos de má interpretação dos leitores.

Cartazes e capas de revistas de divulgação ateísta. A disseminação ateísta tem ido além das salas de aulas.

Jonh Lennon: inspiração ateísta em músicas como “Imagine” e “God”, que marcaram uma geração.

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AS MÁSCARAS DE CIÊNCIA Nesta parte, falaremos sobre algumas  descobertas   científicas   que   os   ateus   usam  como base para defenderem sua descrença  em Deus. Como veremos, basear na ciência  uma   decisão   em   acreditar   ou   não   no  sobrenatural   não   é   uma   escolha   sábia,  aliás,   a   própria   ciência   se   sustenta   num  particular   método,   que   é   questionado,  debatido e jamais definitivo. Os   céticos   geralmente   afirmam   não  aceitarem   nada   que   não   seja   comprovado  empiricamente,   e   por   isso   não   gostam   da  religião, que exige a crença naquilo que se  não vê. Mas na verdade, quando acreditam  na   ciência,   especialmente   nalguma   teoria,  estão exatamente aceitando algo passivo de  comprovação. O próprio desenvolvimento da ciência funciona baseado em fé: o  cientista propõe uma teoria de acordo com alguns resultados experimentais que  dispõe,  e  acredita  que  aquela teoria funcionará  em outros casos.  Enquanto  a  teoria   não   for   contrariada   por   alguma   experiência   nova,   ela   prevalecerá.   Se  pensarmos   na   fé  religiosa   dessa   forma,   ela   resiste  porque   até  hoje  nenhuma  evidência científica a derrubou, como comprovaremos a seguir.

Galáxia de Andrômedra. Imagem do espaço impressiona pela grandeza.

DE GALILEU A EINSTEIN: A FÍSICA CONTRARIA A FÉ? Entre os séc. XVI e XVII houve um forte confronto entre ciência e religião.  Esse confronto se deu especificamente entre os astrônomos e a direção da Igreja  Católica, quando a teoria de que a Terra não era o centro do Universo surgiu  com   base  em   observações   astronômicas.   Nas  observações,   constatou­se   que  o  nosso   planeta   se   move   em   torno   do   Sol,   assim   como   os   outros   planetas   do  sistema solar. Para a Igreja na época, pensar que a Terra não era o centro do  Universo era um absurdo, pois a descrição da criação no Gênesis é focada na  Terra, além do ser humano ser a primícia da criação e assim por diante. Perder  o privilégio de ser único era algo inadmissível para os religiosos. O astrônomo  italiano Galileu Galilei (1564­1642) chegou a ser condenado a desmentir o que  escreveu sobre o assunto. Mesmo sendo contrariado pela Igreja, Galileu era um  cristão mais convicto do que boa parte do clero da  época. Costuma­se afirmar  que ele dizia que a Bíblia ensina como se vai para o céu, e não como vão os céus.  31

Mas o tempo se passou e hoje em dia ninguém mais contesta o fato de que a  Terra gira em torno do Sol, isso sequer incomoda quem acredita na Bíblia, aliás  a Bíblia não diz nada sobre a posição da Terra no espaço. Depois de Galileu, muito tempo se passou sem surgir qualquer desacordo  entre conceitos cosmológicos e a Bíblia. Somente com a teoria da relatividade de  Albert   Einstein   (1879­1955),  aliada   com   a   moderna   física  quântica,   surgiram   novos  confrontos.   O   novo   confronto  se   deu   pelo   desenvolvimento  da teoria do Big­bang, que diz  que toda matéria existente no  Universo   surgiu   de   uma  grande   explosão.   Algumas  pessoas   pensaram   que   a  crença   religiosa   estaria  ameaçada,   porque   uma  explicação   foi   dada   para   o  surgimento de todas as coisas  sem   a   necessidade   de   um  criador.   O   físico  britânico   Stephen  Hawking,   considerado   por   muitos  um  dos  maiores   cientistas   da   atualidade,   defende   que   não   há   lugar   para   Deus   na  concepção   científica   moderna:   é   possível   explicar   o   surgimento   da   matéria   e  mesmo do espaço e do tempo a partir das leis da física, e por essas leis, tudo  teve um início num único instante, nada existiu antes desse instante, pois até  mesmo o tempo passou a existir dali em diante. Sendo assim, não há 'antes do  big­bang',   de   modo   que   Deus   não   poderia   estar   criando   o   Universo.  Evidentemente, a visão materialista domina essa descrição. Se pensarmos no  plano espiritual, onde o tempo não é, nem precisa ser, sincronizado com o tempo  no   plano   material,   o   lugar   para   ação   de   Deus   permanece  válido. Além do mais, quem promulgou as leis a partir das  quais o Universo funciona? Os ateus diriam: o acaso, mas tal  resposta é uma escolha tão dotada de fé quanto a crença em  Deus. Existe um fato que nunca é mencionado pelos ateus por  razões óbvias.    Trata­se da física quântica ter derrubado a  ideia   do   determinismo   filosófico.   Isso   significa   que   muitos  filósofos ateus como Hume, Nietzsche, Russell entre outros,  que acreditavam não existir livre arbítrio porque todas ações  se   enquadravam   nas   leis   deterministas   da   natureza,  inclusive   nossas   decisões,   tiveram   suas   conclusões  invalidadas.   Agora,   a   ciência   provou   existir   espaço   para   a  livre ação, já que seu limite é bem mais restrito do que se  supunha, e já reconhecemos não ser possível descrever todos  movimentos de um sistema, mas apenas suas probabilidades. Existem outras discordâncias clássicas entre a Bíblia e  a ciência, mas elas são todas falsas, pois interpretam a Bíblia  de   maneira   equivocada.   Vejamos:   alega­se   que   na   Bíblia   a  Terra é plana e quadrada, mas não é verdade, pois no livro  32

O Sistema Solar: para a Igreja romana do séc. XVII, o fato de que a Terra não está no centro do Universo foi um golpe em suas crenças.

Albert Einstein, o formulador da teoria da relatividade.

de Isaías está escrito sobre o círculo  da   Terra.   Fala­se   também   sobre   a  profecia   de   que   estrelas   cairão   do  céu, acusando ser essa uma profecia  impossível de se cumprir, mas quem  assim questiona fala de estrelas no  sentido   científico   atual,   o   que   pode  não ter sido a intenção de Jesus ao  proferir   tal   profecia.   Trata­se   mais  de   uma   provocação   do   que   de   um  argumento   ateísta.   O   mesmo  acontece   em   relação   a   narração   do  Sol   ter   parado   em   seu   curso   na  peleja   de   Josué.   Dizem   os   céticos:  quem se move é a Terra, como pôde  o   Sol   ter   parado?   Mas   para   quem  observa   da   Terra,   é   legítima   a  afirmação de que o Sol percorre  ou  deixa de percorrer o céu. Tirando   a   má   interpretação  dos textos bíblicos, não há na física  ou   na   astronomia   qualquer  contradição em relação a fé cristã. A  Terra não é o centro do Universo, e o  Universo teve um início, mas quem  pôs   tudo   a   existência   foi   Deus,   e  contra   essa   concepção   não   há  argumentos, apenas a decisão de se  crer ou não.

A EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES

Manuscrito Einstein de 1914 sobre campos gravitacionais.

A teoria da evolução das espécies é sempre considerada pelos ateus como  a maior evidência de que a Bíblia está errada. Isso porque o primeiro capítulo  da Bíblia narra a criação dos seres vivos sem qualquer indicação de um processo  de evolução. A   teoria   da   evolução   diz   que   as   espécies   de   seres   vivos   nem   sempre  existiram como são. Elas se desenvolveram gradativamente até se tornarem o  que   são  hoje,   e  nesse   desenvolvimento   foi   onde   as  espécies   se   diferenciaram  umas   das   outras.   Por   exemplo,   o   homem   e   o   macaco   são   frutos   do  desenvolvimento de um  único ancestral. Vamos expor rapidamente a história  dessa teoria. A teoria da evolução surgiu com o trabalho de um biólogo chamado Jean­ Baptiste   Lamarck   (1744­1829).   Ele   dizia   que   as   características   dos   animais  foram desenvolvidas pelos seus hábitos. Por exemplo, as girafas tem pescoços  longos porque por muitas gerações elas se esticavam para se alimentarem das  folhagens  mais altas  das  árvores.   Mas  logo  se  percebeu  que  essa   teoria  está  errada: fizeram uma experiência onde se cortaram as caudas de ratos por várias  gerações,   mas   mesmo   assim   eles   sempre   nasciam   com   rabos   normalmente.  33

Somente   em   1859   foi   que   Charles  Darwin   (1809­1882)   publicou   seu  famoso  livro  “A  Origem  das Espécies”,  onde ele afirma que o desenvolvimento  das espécies se dá principalmente pelo  processo   de   seleção   natural,   ou   seja,  existem   pequenas   variações   em   cada  indivíduo de uma mesma espécie, como  por   exemplo,   alguns   são   mais   fortes,  outros mais altos, outros tem pernas ou  braços maiores etc., e os indivíduos que  sobrevivem   são   aqueles   que   tem   as  melhores   condições   de   adaptação   ao  ambiente   onde   vive.   Assim,   o   pescoço  das girafas é longo não porque elas se  esticavam, mas porque entre as girafas  haviam algumas de pescoço mais longo  que as outras, e como estas se nutriam  ou se defendiam melhor, foram as que  sobreviveram   com   o   passar   de   muitas  gerações.   Darwin   morreu   muito   antes  da   descoberta   do   DNA   (ácido  desoxirribonucleico),   e somente  com  os  estudos   da   biologia   moderna   é   que   os  mecanismos   bioquímicos   relacionados  com a evolução são bem compreendidos.  A   seguir,   daremos   uma   descrição  resumida dos principais mecanismos de  desenvolvimento dos seres vivos. Até   alguns   séculos   atrás,  acreditava­se que animais pudessem surgir espontaneamente da matéria não  viva.   Por   exemplo,   de   um   monte   de   lixo   surgiam   camundongos,   mosquitos   e  vermes. Evidentemente, esses animais não surgiam do lixo, mas se procriavam  ali, ou seja, eles vinham de algum lugar e ali se reproduziam. Até se entender  que animais só surgem   da reprodução, ou seja, um animal só pode surgir se  nascer de outro da mesma espécie, foi preciso muita pesquisa. Foi somente no  século   XIX   que   Louis   Pasteur   provou   isso   definitivamente.   Hoje,   existem  algumas teorias que especulam sobre o surgimento dos seres vivos a partir da  matéria   inanimada,   afinal,   o   ideal   materialista   parte   do   pressuposto   de   que  tudo o que existe está na natureza e deve ser explicado pela ciência. Assim, com  a existência dos seres vivos não é diferente: em algum momento ocorreu esse  surgimento,   e   cabe   à   ciência   explicá­lo.   A   principal   teoria   é   a   da   sopa  primordial. Basicamente, essa teoria diz que num ambiente aquoso primordial,  com condições físicas e químicas apropriadas, uma forma primitiva de vida deve  ter surgido. Na década de 50, alguns pesquisadores realizaram uma experiência  mostrando ser possível o surgimento espontâneo de aminoácidos em laboratório,  sendo que os aminoácidos são os componentes essenciais para a formação de  seres   vivos.   Recentemente,   um   pesquisador   chamado   Sidney   Fox   ganhou   a  atenção do mundo quando disse ter descoberto uma forma muito primitiva de  34

Charles Darwin: principal mentor da teoria da Evolução das Espécies.

vida, que era construída apenas com matéria não viva, mas seus 'seres vivos'  eram apenas proteínas que interagiam entre si num processo de auto replicação,  incapazes de desenvolver qualquer tipo de autonomia, o que é típico dos seres  vivos. Assim, até hoje a ciência não  tem   uma   palavra   final   sobre   o  surgimento dos seres vivos. Se   não   entendemos   o  surgimento   dos   seres   vivos,   tudo   o  que   sabemos   é   que   no   processo   de  replicação   genética   está   o   segredo  para compreendermos sua evolução.  O   processo   de   evolução   se   dá   pelo  acúmulo   de   pequenas   modificações  nos genes dos animais, isso pode ser  comparado   a   um   painel   gigante  formado   por   pequeninas   peças  coloridas,   que   é   modificado   numa  série de etapas. A cada etapa, uma  peça   aleatória   é   trocada   de   lugar  com   a   peça   vizinha.   Depois   de  milhares   de   etapas,   o   painel   final  será bem diferente do inicial, mas se  tivermos   inicialmente   dois   painéis  idênticos,   após   milhares   de   etapas,  eles   ficarão  bem  diferentes   um   do   outro,   e  ambos   bem  diferentes   do   modelo  inicial. É de uma forma semelhante a esta que os genes de um determinado  animal vão sendo mudados gerações após gerações. Mas porque existe apenas  um número determinado de espécies sobreviventes, e não infinitas espécies, já  que as modificações são aleatórias? Aqui entra o processo de seleção natural que  Darwin descobriu: apesar das modificações serem aleatórias, alguns tipos não  podem sobreviver porque não podem se adaptar bem ao meio em que vivem. Por  exemplo, um urso polar pode nascer ligeiramente modificado em sua pele, sendo  esta menos protetora do frio, mas este urso certamente não sobreviveria até se  tornar adulto e procriar, ou caso vivesse até procriar, sua saúde seria debilitada,  tornando­os  fadados a  extinção.  Em resumo,  a seleção natural  (adaptação  ao  habitat)   funciona   como   um   filtro   que   permite   sobreviver   apenas   algumas  espécies, e não qualquer tipo de ser vivo como poderia surgir das modificações  aleatórias dos genes. Com   o   processo   de   evolução,   as   espécies   podem   então   serem  modificadas em várias formas viáveis, e quando a modificação dos genes  altera o sistema reprodutor de tal forma que a espécie modificada não  pode mais ter cruzamento fértil com a espécie original, considera­se que  aconteceu  a  especiação,  ou  seja,   essa  modificação  fez  surgir  uma   nova  espécie. Dessa forma, é possível pensar que todas as espécies existentes  surgiram de uma mesma espécie ancestral, mas esse pensamento não é,  a   princípio,   necessário.   O   que   o   torna   necessário   é   outro   fator:   a  universalidade   do   código   genético.   O   código   genético   é   o   sistema   de  interpretação usado no momento da reprodução de um ser vivo. Funciona  como uma escrita. As informações do DNA dos pais são como um manual 

Até o séc. XVII, acreditavase que ratos nasciam do lixo, sem a necessidade de reprodução. A ideia do surgimento de seres vivos a partir da matéria bruta (abiogênese) só foi derrubada definitivamente com os trabalhos de Louis Pasteur no séc. XIX.

Chimpanzé: seu DNA difere do DNA humano em menos de 5%.

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de   construção   do   novo   ser   vivo   que   está  sendo   gerado,   e   a   forma   como   essas  informações são interpretadas é a mesma  em todos os animais existentes. Desse fato  admirável,   conclui­se   das   duas   uma:   ou  todos   animais   procedem   de   um   mesmo  progenitor (de onde herdou essa forma de  interpretação do código genético), ou se as  espécies   surgiram   inicialmente   já  separadas,   então  houve  uma   coincidência  extrema e inexplicável para que todos eles  tenham   o   mesmo   código   genético.   Os  cientistas,   evidentemente,   não   optaram  pela   notável   coincidência,   mas   pela  hipótese do ancestral comum. A   evolução   das   espécies   existe   e   é  comprovada   por   milhares   de   evidências.  Uma delas é o caso de uma ave que vive na  Ásia, chamada toutinegra esverdeada. Ela  vive numa região com extensão de mais de  3 mil quilômetros, mas ela sofre o processo  de especiação, ou seja, se cruzarmos uma  delas  do   extremo  dessa   região  com  outra  do   outro   extremo,   elas   não   se   cruzam,  sendo portanto de espécies diferentes, mas  se   cruzarmos   uma   delas   de   um   extremo  com   uma   intermediária,   elas   terão  cruzamento   fértil,   e   se   cruzarmos   essa  intermediária com uma do outro extremo,  elas   também   terão   cruzamento   fértil.  Assim,   as   aves   de   um   extremo   dessa  região   tem   algumas   modificações   em  relação as aves das regiões intermediárias,  mas   não   são   modificações   que   não  comprometem   a   reprodução   entre   elas,   o  mesmo   acontece   com   essas   mesmas   aves  da região intermediária com as aves do outro extremo, mas entre as aves de um  extremo   e   do   outro   extremo,   as   modificações   acumuladas   são   tantas   que  comprometem a reprodução entre elas. Criacionismo Agora vamos falar sobre o criacionismo, ou seja, a doutrina que ensina  que   os   seres   vivos   foram   criados   por   Deus.   O   criacionismo   é   uma   doutrina  extensa, existem muitas formas de professá­lo. A mais conhecida, porém, é o  criacionismo   fundamentalista.   Nessa   confissão,   acredita­se   que   o   mundo   foi  criado em seis dias de 24 horas, e que todos animais surgiram nesse período,  sendo já criados da forma como são conhecidos hoje. Esse tipo de crença é bem  recente   na   história   da   igreja,   na   época   dos   reformadores,   por   exemplo,  acreditava­se   na   interpretação   metafórica   dos   dias   da   criação.   Os  36

Mapa ilustrativo da evolução das espécies.

Toutinegra: evidencia viva do processo de especiação.

“A Criação de Adão”, de

fundamentalistas  tem a  intenção de  desacreditar a  teoria  da  evolução com a  Michelangelo. própria ciência, e alguns argumentos deles são: 1) O registro fóssil mostra o surgimento das espécies de forma simultânea  num pequeno intervalo de tempo,  o que contraria a tese evolucionista. 2) Os  seres vivos são complexamente irredutíveis e tem complexidade especificada, ou  seja, não podem ter se desenvolvido a partir de formas muito primitivas, pois  eles   tem   partes   independentes   e   complexas,   que   precisariam   ter   evoluído  independentemente para depois se juntarem, mas antes de se juntarem, essas  partes não formavam um ser vivo. São portanto, frutos de um design ou projeto  inteligente.   3)   O   sistema   solar   é   extremamente   propício   à   vida,   e   não   só   o  sistema solar, mas também o Cosmo, o que indica a existência de um propósito  referente a vida. Quanto   ao   primeiro   argumento,   existem   teorias   evolutivas   que   o  explicam, como a teoria do equilíbrio pontuado, que alega que as modificações  nos   genes   são   sutis,   mas   quando   afetam   genes   críticos,   produzem   muitas   e  grandes alterações em pouco tempo. O segundo argumento leva a uma discussão  Michael Behe: interminável,   pois   os   evolucionistas   dizem   que   por   mais   complexos   que   os  proponente da ideia de Projeto Inteligente. organismos sejam, a evolução pode seguir caminhos exóticos, cujos resultados  parecem   inexplicáveis,   alguns   verificados   em   simulação   de  computador.   E   quanto   ao   terceiro   argumento,   não   se   trata   de   um  argumento   contra   o   evolucionismo,   mas   contra   o   ateísmo.   O  evolucionismo explica somente o desenvolvimento dos seres vivos, já o  fato   de   o   Universo   e   o   sistema   solar   serem   propícios   à   vida,   pode  intrigar um ateu, mas não necessariamente a um evolucionista. Aliás,  é   essa   a   distinção   que   temos   de   mostrar   aqui:   onde   um   religioso  diverge de um ateu? Em aceitar ou não que os animais evoluem? Não!  Em aceitar ou não que a vida é fruto de um projeto? Sim! O cristão crê  que Deus propiciou o Universo para o surgimento e desenvolvimento  da   vida,   independentemente   de   como   esse   desenvolvimento   se   dá.  Acredita ainda que os seres vivos tem em si algo além de matéria, e  que  o ser humano tem algo  de especial, pelo fato  de ter sido  criado  conforme a imagem e semelhança de Deus, e são esses pontos que nem  37

o evolucionismo nem qualquer teoria científica pode explicar. A vida é mais que  um afortunado arranjo de moléculas, e o ser humano é especial pois sobressai a  todos animais. Como dizia Chesterton, se pararmos de olhar para livros sobre o  homem e sobre os aminais e começarmos a olhar diretamente para o homem e  para   os  animais,   veremos  que  a  diferença   entre  eles   é   absurda,   e   o   fato   deles   serem   quase  idênticos   em   sua   estrutura   biológica   torna   essa  diferença   ainda   mais   inexplicável.   O   erro   dos  ateus   não   está   na   ciência   da   evolução,   mas   em  considerar que tudo o que existe está na natureza,  e  que  a   ciência   pode   explicar   todos   os   fatos.   Se  admitissem o sobrenatural – que  é inacessível à  ciência,   perceberiam   que   compreendendo   os  mecanismos da natureza, fica cada vez mais clara  a   existência   de   algum   propósito   relacionado   a  vida.   Acreditar   nisso   requer   fé,   mas   não   requer  que neguemos a ciência. A grande jogada ateísta  aqui consiste em fazer intensa propaganda de que  a ciência é contra a fé, mas isso não passa de uma  máscara a ser denunciada. O segredo da vida, isto é, a exata diferença entre um ser vivo e uma mera  máquina   formada   por   um   sofisticado   arranjo   de   moléculas,   dificilmente   é  compreendido, mas pode ser observado na missão da vida – a perpetuação da  espécie.  A própria existência de uma missão, ou função de utilidade dos seres  “Que o homem e os animais são iguais é, num certo sentido, um truísmo; mas que, sendo tão iguais, eles sejam tão disparatadamente desiguais, esse é o choque e o enigma” (Chesterton). Uma metrópole, símbolo das realizações humanas. Em termos de realizações, os animais estão muito aquém dos seres humanos.

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Galáxia M 104: famosa por sua forma peculiar. As constantes físicas do Universo são minunciosamente ajustadas para propiciação à vida?

vivos,   sendo   elas   consideradas   do   ponto   de   vista   materialista   ou  espiritualista,   é   incompatível   com   um   entendimento   casual   da  existência:   soa   muito  estranho   e  inexplicável   atribuir   ao   acaso   a  produção de objetos que têm missões a cumprir!

A PSICOLOGIA E A FÉ Neste   capítulo,   vamos   discutir   sobre   a   argumentação  psicologista do ateísmo. Basicamente, a estratégia dos ateus é a de  usar   a   psicologia   para   esclarecer   o   surgimento   da   religião   na  história   da   humanidade,   e   explicar,   dum   ponto   de   vista  materialista,   o   significado   da   crença   religiosa   para   o   indivíduo.  Vamos aqui recorrer a dois pensadores de grande contribuição para  o desenvolvimento da psicologia, Sigmund Freud e Carl G. Jung. O  primeiro era um ateu declarado, já o segundo, apesar de não ser  ateu – era um cristão protestante, tem ideias que levam a concluir  que   o   sagrado   nada   mais   é   do   que   uma   aspiração   da   psique  humana,   o  que  é  uma   fonte  de  combustível   para   a  descrença   na  existência de Deus. Freud e “O Futuro de uma Ilusão” Sigmund   Freud   (1856­1939),   considerado   o   pai   da   psicanálise,   foi   um  grande   incentivador   do   ateísmo.   Sua   doutrina   psicanalista,   na   verdade,   em  nada   versa   diretamente  sobre  o  assunto,   mas  ele  fez analogias  diretas  entre  essa   doutrina   e   o   comportamento   religioso   humano,   donde   se   infere  constantemente o testemunho ateísta da psicanálise. Uma obra de Freud que discorre diretamente sobre a associação de seus  pensamentos a respeito da religião é “O Futuro de uma Ilusão”, escrito em 1927.  Trata­se de um ensaio, considerado dos maiores dele, ao lado de “O Mal Estar  na Civilização” e “Moisés e o Monoteísmo”. Vamos empreender uma análise do  conteúdo   deste   texto   a   fim   de   conhecermos   a   fundo   até   onde   a   ciência   da  psicanálise   –   há   quem   considere   que   a   psicanálise   não   merece   o   título   de  ciência, mas essa concepção é controversa e remonta a uma profunda discussão  epistemológica   –   influi   no   pensamento   ateu   deste   importante   e   renomado  pesquisador.   “O   Futuro   de   Uma   Ilusão”,   é   um   pequeno   ensaio,   mas   de  importância considerável, principalmente no esboço da formulação do ateísmo  freudiano. A maior constatação da leitura deste livro é o fato de que a teoria da  psicanálise não se defronta com a fé, são efetuadas apenas analogias entre essa  ciência e o comportamento religioso, mas nenhuma inferência conclusiva direta  pode ser extraída de tais considerações. O livro é composto de dez capítulos sem  títulos, e o seu objetivo é dissecar o efeito da religião na civilização. Freud   começa   dizendo   que   a   civilização   desenvolve   regras   para   que   a  criação   de   riquezas   seja   possível.   Por   exemplo,   se   não  houverem   regras   na   sociedade,   uma   grande   parte   das  pessoas   não   se   submeteriam   ao   trabalho.   Apesar   dessas  regras existirem já há muito tempo, as pessoas parecem não  ter fácil adaptação a elas, por exemplo, a vontade de matar,  o  incesto  e  outros desejos  perversos  parecem  já  nascer  em  algumas pessoas. Mas se as regras da sociedade são para seu 

Sigmund Freud: psiquiatra judeuaustríaco considerado o 'pai da psicanálise'.

As leis ajudam a defender os homens dos criminosos, mas como os homens se defenderão contra as calamidades naturais, como um terremoto? Para Freud, dessa busca nasceram as religiões.

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próprio   desenvolvimento   e   para  livrarem   as   pessoas   de   impulsos  arbitrários   de   indivíduos   neuróticos,  elas são incapazes de livrar as pessoas  das   calamidades   naturais   como  tempestades   e   terremotos,   ou   de  problemas como as doenças e a morte.  Assim,   a   primeira   tentativa   da  humanidade   foi   a   de   dialogar   com   as  forças   naturais,   logo,   o   sol,   a   lua,   as  montanhas,   o   mar   se   tornariam   seres  dotados   de   vontades,   vontades   essas  que teriam de ser satisfeitas para que  eles viessem a favorecer o ser humano.  Surgiram   então   as   divindades,   com   a  finalidade   de  exorcizar   os   terrores   naturais.   Mesmo   com   essas   divindades,   a  morte não pode ser vencida, logo, a função da divindade tornou­se também a de  compensar os homens por seus sofrimentos e morte. A sociedade teria acabado  criando, dessa desesperada tentativa de lidar com os sofrimentos, regras além  daquelas anteriores, regras agora que prometem tornar os deuses favoráveis ao  ser humano. Dadas essas explicações imaginadas, Freud agora se propõe a criticar esse  artifício chamado religião que os homens criaram. Para isso, ele inicia dizendo  que as informações sobre os deuses e sobre os rituais não podem ser aprendidos  naturalmente, eles tem de ser passados de geração em geração por sacerdotes,  mas sendo assim, qual a garantia de que essas informações são corretas? Para  essa pergunta, ele levanta as mais fúteis respostas. Diz que a garantia que os  religiosos oferecem sobre suas crenças está no fato de que os seus antepassados  também criam, ou que é proibido levantar essa questão. Para ele, a religião só é  acreditada ou porque é considerada acima da razão ou porque as pessoas agem  “como se” houvesse alguma garantia dessas ideias. Mesmo o pensamento de que  a   crença   religiosa   seja   fruto   de   um   sentimento   interior,   algo   comunicado  diretamente pelo Espírito Santo, Freud alega que seria ainda insuficiente para  disseminar a fé, pois as pessoas que não receberam essa graça não teriam  essa garantia para também acreditarem. Com   todas   essas   considerações,   Freud   diz   que   as   religiões   nada  mais   são   que   ilusões,   que   propõe   satisfação   aos   desejos   e   anseios  enraizados no interior do ser humano, seria uma forma do ser humano  fingir para si mesmo. Para ele, não é coincidência que as promessas feitas  pelas religiões para seus devotos correspondam exatamente com aquilo  que o ser humano busca: vida eterna, paradisíaca e isenta de sofrimentos,  além do reencontro  com ente  queridos já  falecidos;  pois  tudo isso  teria  sido   inventado   exatamente   com   esse   objetivo.   Nenhuma   dessas  afirmações tem qualquer valor para afirmar a inexistência de Deus, são  apenas cogitações baseadas na incredulidade. Diante   dessa   incredulidade,   Freud   fala   da   necessidade   de  desencantar   a   sociedade:   imagine   uma   sociedade   onde   a   proibição   a  matar  alguém  seja uma regra  baseada na fé religiosa.  Se um dia essa  sociedade perceber  que Deus não existe,  a regra  sobre não  matar  será  40

“A última ceia”, de Leonardo da Vinci. Freud questiona: que garantia temos de que as ideias religiosas são verdadeiras?

Para Freud, as promessas de paraísos eternos mostram que as religiões nada mais são que ilusões humanas.

abandonada.   Somente   após   algum   período   de   caos,   essa   mesma   sociedade  redescobrirá a necessidade de impor uma regra sobre não matar, mas agora não  como regra religiosa, e sim como regra laica de sobrevivência. Da mesma forma,  a humanidade precisa abandonar as regras de conduta baseadas em princípios  religiosos. Com isso, Freud foi um dos primeiros a mencionar a necessidade de  extinção da fé religiosa. A  comparação com  o comportamento  infantil  também é  evocado:   assim  como a criança que começa a desconfiar da estória de que bebês são trazidos por  uma cegonha, a humanidade começa a perceber, para Freud, que as estórias de  deuses   e   religiões   são   falsas.   Assim,   a   religião   é   a   neurose   da   humanidade.  Segundo ele, por isso mesmo os indivíduos religiosos são geralmente poupados  de outras neuroses.  Sua preocupação é a de eliminar da educação infantil os  valores religiosos.

Freud alega que a situação da humanidade frente as religiões é semelhante a criança que começa a desconfiar da estória de que bebês são trazidos pela cegonha.

Jung e a Análise da Psique Carl   Gustav   Jung   (1875­1961),   psiquiatra   suíço   filho   de   pastor  protestante,   dedicou­se   ao   estudo   dos   meios   pelos   quais   o   inconsciente   se  expressa.   Juntamente   com   Freud,   desenvolveram   elementos   da   Psicologia  Analítica, e apesar da apreciação mútua inicial,  ao   longo   do   desenvolvimento   de   seus   estudos  eles   divergiram   em   opinião.   Jung   não  concordava,   por   exemplo,   com   a   posição   de  Freud   em   prognosticar   qualquer   elemento   de  natureza religiosa como fruto de uma ilusão; em  oposição  a  isso,   confere   à   experiência   religiosa  utilidade   vital,   tratando­a   (quase   que  misticamente) como um elemento cuja análise é  necessária   para   o   autoconhecimento   humano.  Os   fatores   religiosos,   para   ele,   estão  diretamente ligados ao inconsciente. Para   analisarmos   a   avaliação   que   Jung  faz   da   religião,   recorreremos   a   uma   de   suas  obras, escrita em 1940 e intitulada “Psicologia e  Religião”.   Neste   trabalho,   ele   introduz   o  problema   da  psicologia  prática  e  suas  relações  com a religião; procura  evidenciar a existência  de uma função religiosa no inconsciente; e por  fim,   discorre   sobre   o   simbolismo   religioso   dos  processos inconscientes. Jung   se   concentra   em   indicar   uma  autonomia   do   inconsciente   de   cada   indivíduo.  Para isso, relata sonhos que seus pacientes lhe  contavam,   destacando   o   fato   de   que   várias  informações   obtidas   através   dos   sonhos   eram  informações   que   não   estavam   antes   na  consciência de seus pacientes, ou seja, pessoas  que não tinham consciência de certos assuntos  apresentavam informações sobre esses mesmos  assuntos   (referentes   a   própria   pessoa,   como 

Carl G. Jung: a religião como manifestação da psique humana.

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emoções,   desejos,   medos   etc)   em   seus   sonhos,   ou   seja,  formulações geradas com a ação do inconsciente. Logo, ele propõe  que a consciência é apenas uma parte da totalidade humana, há  uma outra parte – o inconsciente – que apesar de ser geralmente  desconhecida,   cumpre   um   papel   importante   nos   processos  psicológicos do ser humano. Valendo­se   da   ideia   do  numinoso,   isto   é,   a   percepção  psicológica   do   sagrado,   Jung   consente   com   a   antiga   afirmação  Homo homini lupos (“o homem é o lobo do homem”), ou seja, as  ideias religiosas são produzidas no inconsciente do indivíduo e o  afligem   manifestando­se   como   numinoso.   Com   essa   afirmação,  ele sentencia que as ideias religiosas não tem qualquer verdade  sobrenatural,   são   apenas   frutos   da   psique   humana;   além   de  inferir que essas sejam ameaçadoras ou  amedrontadoras.  Com  essa concepção, ele deduz que uma religião nada mais é do que a  institucionalização de dogmas, que objetiva proteger o homem da  experiência  numinosa  imediata,   ou   seja,   de   algum   tipo   assombroso   de  experiência   interior.   Dessa   forma,   o   católico   romano,   por   exemplo,   tem   seus  rituais   e   a   confissão   para   intermediar   sua   experiência   religiosa.   O  protestantismo, por sua vez, rompeu com tais elementos intermediários, fazendo  abrir­se a oportunidade de novas experiências religiosas imediatas, o que pode  ser,   em   sua   opinião,   um   risco,   já   que   os   rituais   religiosos   foram   concebidos  justamente para evitar tais experiências numinosas. De sua  vasta  experiência  em análise onírica  (estudo  dos sonhos),  Jung  percebe um padrão que julga ser universal, algo como um eco proveniente do  inconsciente   humano,   e   que   indica   haver   uma   identidade   maior   associada   a  cada   indivíduo,   identidade   essa   apresentada   de   forma   simbólica   como   uma  quaternidade,   ou   seja,   um   conjunto   fechado   de   quatro   elementos  complementares   entre   si.   Esse   símbolo,   segundo   ele,   costuma   ser  representado   nos   sonhos   como   uma   mandala,   geralmente   com   o  centro vazio. Conclui que a Trindade cristã  é a institucionalização  dessa   identidade,   que   juntamente   com   um   quarto   elemento  completaria a totalidade humana. Quanto ao quarto elemento, que  ocuparia o papel central, Jung chega cogitar ser a mãe de Deus ou o  demônio,   mas   acaba   concluindo   de   suas   pesquisas   que   se   trata  unicamente   do   próprio   indivíduo.   Assim,   o   centro   da   identidade  humana,   e   também   o   centro   das   experiências   numinosas   seria   o  próprio   ser   humano.   Mesmo   sem   afirmar   explicitamente,   está  inferido aqui não só a inexistência do sobrenatural, mas também o  pensamento de que  Deus,  como  projeção psíquica,  nada  mais  é  do  que uma manifestação inconsciente da identidade humana. Jung consente com a morte de Deus anunciada por Nietzsche,  mas a interpreta de outra forma: para ele, a morte de Deus indica  que nós perdemos sua referência, que abandonamos a imagem de um  ser   pessoal   que   vive   no   céu,   mas   temos   agora   que   procurá­lo   em  outro   lugar.   Ele   chega   a   dizer   que   a   história   da   ressurreição   de  Cristo   é   uma   manifestação   dessa   nova   busca:   o   Deus   ressurreto,  diferente   daquele   antes   de   morrer,   deve   ser   encontrado   dentro   de  nós, não como alguém distinto vivendo em nós, mas como sendo nós  42

Uma mandala tibetana. Jung identificou um padrão que considera ser universal: a representação da divindade vinculada com a identidade humana.

“A ascensão de Cristo”, por Garofalo. Jung acredita que a ressurreição é o símbolo da busca pela nova divindade.

mesmos.   A   relação   de   Jung   com   o   ateísmo   é  indireta; ele rejeita a ideia freudiana de considerar  as religiões como meras  ilusões, mas  acredita  que  elas são manifestações da identidade humana. Jung   era   protestante,   mas   suas   conclusões  somam   combustível   para   a   descrença   num   Deus  pessoal. Ele poderia ser considerado o “descobridor  de Deus”; mas com toda certeza, não o é em relação  ao  Deus  Criador   da  natureza.   É,   entretanto,   dum  deus interior ao homem que cria rituais e dogmas para protegê­lo de si mesmo.

A CULTURA CRISTÃ E AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Condomínio de luxo ao lado de uma favela em São Paulo: gritantes contradições em uma sociedade de cultura predominante cristã.

Uma das formas de atestar a veracidade dos pressupostos de uma religião  é   através   da   avaliação   de   seus   efeitos   nas   sociedades   onde   essa   crença   se  estabeleceu. O cristianismo, por exemplo, prega a igualdade e a justiça, mas se  países de maioria cristã  não alcançaram tais ideais, como acreditar que essa  religião tenha um efeito real na sociedade? Com o objetivo de desmascarar esse  argumento,   vamos   discutir   uma   obra   considerada   muito   importante   de   Max  Weber,   chamada   “A  Ética   Protestante  e  o  Espírito  do  Capitalismo”.   A  teoria  socialista de Karl Marx, tida por alguns como uma espécie de solução definitiva  para a sociedade, também será avaliada a partir de uma livre comparação com a  proposta de Cristo para os dilemas humanos. Baseados no dogma materialista, muitas explicações foram dadas para o  surgimento das religiões, entre elas, a chamada teoria animista. Discutiremos  um pouco dessa teoria a partir do trabalho de Edward Tylor intitulado “Cultura  Primitiva”. Tylor e a Cultura Primitiva Edward   Burnett   Tylor   (1832­1917),   antropólogo   britânico,   é  um  ilustre  representante   do   evolucionismo   cultural   (vertente   que   atribui   ao  desenvolvimento   cultural   e   religioso   de   um   povo   princípios   similares   ao  evolucionismo darwiniano).  Considerado um dos pais do conceito moderno de  cultura, sua principal obra é “Cultura Primitiva”, publicada em 1871, onde ele  delineia suas teorias sobre o desenvolvimento da sociedade e da religião, teorias  essas que aspiram a universalidade.  Vamos analisar de forma breve sua  teoria, onde temos a abordagem das  origens da religião sob um ponto de  vista materialista. Tylor   define   cultura   como   o  conjunto de todos os conhecimentos,  crenças, artes, moral, lei e costumes  adquiridos   pelo   homem   enquanto  membro   de   uma   sociedade.   Com  isso,   ele   se   propõe   a   explicar   o  desenvolvimento   cultural   das  sociedades   desde   o   meio   selvagem  até   a   civilização.   Os   provérbios   e 

“Akhenaton e Nefertiti”, baixo-relevo egípcio que faz alusão ao culto ao sol. O sol foi objeto de culto em inúmeras civilizações.

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ditados antigos, bem como os rituais religiosos são para ele as principais fontes  de conhecimento de temos hoje das culturas primitivas. O   conceito   mais   importante   em   relação   ao   surgimento   da   crença   no  sobrenatural para Tylor é o animismo. Animismo é uma teoria que alega que o  surgimento da crença no sobrenatural surgiu da personificação dos elementos  naturais. Por exemplo, o sol, a lua, as montanhas, os relâmpagos entre muitos  outros   elementos,   por   impressionar   o   ser   humano,   passaram   em   algum  momento a serem tratados como seres animados (daí o nome “animismo”), ou  seja,   como   indivíduos   dotados   de   personalidade.   Mas   a   personificação   da  natureza não parou por aí, logo o próprio ser humano passou a ter uma dupla  personalidade: sua personalidade própria e a personalidade dos sonhos, a alma.  Segundo Tylor, a ideia de alma humana surgiu porque nos sonhos a pessoa pode  estar em lugares diferentes de onde seu corpo realmente está, pode conversar  com outras pessoas, fazer várias coisas – inclusive coisas impossíveis para seu  corpo natural como voar, sem contudo ter ido, falado ou feito de fato qualquer  uma   dessas   coisas.   Logo,   passou­se   a   compreender   que   o   ser   humano   não   é  constituído apenas por seu próprio corpo, mas também por um fantasma que  vagueia e age nos sonhos. Não foi difícil para os primitivos pressupor que na  morte esse fantasma ficasse vagueando e agindo em algum lugar sem mais ser  interrompido,   pois  a  pessoa   morta  não  mais  acordará.  Assim  teria   nascido  a  ideia da imortalidade da alma, e mais: sendo comum o fato de que pesadelos  acontecem   a   quem   dorme   com   muitas   preocupações   ou   culpas   que   lhe  inquietem,   e   os   bons   sonhos   são   praxe   a   quem   não   está   sobrecarregado   de  perturbações, mas com a mente tranquila, logo a ideia de que após a morte a  alma   peregrinará   em   eterna   tranquilidade   ou   em   eterna   perturbação   surgiu  relacionada com as possíveis preocupações que aquela pessoa levou consigo: se  suas ações em vida foram más ou boas. Dessa forma, um tênue esboço da ideia  de paraíso e castigo eternos já pode ser deduzido dessa teoria. 44

“O sonho de Jacó” de Giovanni Batista Tiepolo (1726-29). Segundo a teoria animista, os sonhos deram origem a crença na alma.

Edward Tylor, principal desenvolvedor da teoria animista.

Para  construir  uma  teoria  do  desenvolvimento   da   religião,   Tylor  dá   uma   definição   mínima   que  envolve todas  as crenças religiosas.  Segundo   essa   definição,   religião   é  simplesmente   a   crença   em   seres  espirituais.   O   desenvolvimento   da  religião, para ele, se deu da seguinte  forma: a crença em seres espirituais  se deu com o animismo, onde vários  elementos   da   natureza   ganharam  vida, numa espécie de espiritismo. O  passo   seguinte   foi   selecionar   entre  todos   os   elementos   animados   alguns   que   passaram   a   considerar   mais  importantes   que   outros,   e   portanto,   dominadores.   Essa   ideia   não   surgiu   do  nada,   mas   da   própria   experiência   humana,   onde   indivíduos   passaram   a  dominar   sobre  outros.   Nesse   passo,   surgiu  o  politeísmo,   já   que  os   elementos  dominadores galgaram o  status  do que hoje entendemos por deuses.  Por fim,  com a experiência humana da monarquia, onde um indivíduo – o rei, domina  sobre todos, o reflexo na crença sobrenatural foi imediato: há um ser espiritual  dominante sobre todos, que é o verdadeiro Deus, que se eleva sobre todos deuses  e   os   subjuga.   Assim   nasceu,   para   o   animismo,   o   monoteísmo.   Logo,   o  monoteísmo   –   a   crença   num   único   Deus,   passa   a   ser   considerado   fruto   da  segregação social, estratificação e dominação econômica, e por essa razão vários  intelectuais   das   ciências   sociais   interpretaram   a   religião   como   o   fruto   dum  sistema que se pretende extinguir, e sem trégua passaram a rejeitar a Deus,  tratando­o   como   versão   animada   da   perversa   dominação   e   segregação  social,  que tanta injustiça trouxe ao mundo nos mais diversos lugares e épocas. A   teoria   de  Tylor   é  coerente,   completa   e  auto   consistente,   mas   há   um  único fator que a invalida completamente: ela não concorda  com a realidade.  Cerca   de   40   anos   depois   da  publicação   da   obra   de   Tylor,  começou   a   ser   desenvolvido   um  gigantesco trabalho pelo antropólogo  e   etnólogo   britânico   Wilhelm  Schmidt   (1868­1954),   realizado   a  partir   de   contatos   com   tribos  indígenas,   povos   aborígenes   e   com  as   mais   diversas   culturas  consideradas primevas e  isentas  de  contatos com colonizadores, e nessa  consulta   o   que   se   verificou   foi   a  existência   da   ideia   de   um   Deus  único,   mesmo   em   culturas   onde  jamais   se   experimentou   a  monarquia.   Com   tais   evidências  (trata­se   de   um   trabalho   de  dimensão enciclopédica de 12 largos  volumes   recheados   de   evidências), 

Mosaico retratando “Alexandre o Grande” encontrado nas ruínas da cidade romana de Pompeia. Assim como no período helenista, dominadores existiram em culturas primitivas, os quais inspiraram o surgimento das divindades.

A cultura indígenas norte-americana forneceu alguns exemplos da crença numa divindade soberana antes de qualquer experiência de monarquia ou similar.

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Schmidt   identifica   a   crença   num   Deus  soberano   nas   mais   diversas   culturas  primitivas consultadas. Ou seja, a crença  num Deus único, ao que tudo indica, é a  mais   antiga   forma   de   crença  sobrenatural,   contrariando   e  comprometendo   toda   estrutura   da   teoria  animista de Tylor. Mas   apesar   das   evidências   que   a  contradizem,   a   teoria   de   Tylor   forneceu  combustível para uma fogueira que fez e  ainda   faz   em   cinzas   a   fé   de   milhões   de  pessoas   mundo   afora:   o   comunismo  marxista. Marx e o Comunismo Karl   H.   Marx   (1818­1883),   nasceu  em   Trèves   (sul   da   Prússia),   filho   de  judeus   que   se   converteram   ao  protestantismo.   Estudou   direito   e  posteriormente   filosofia   em   Berlim.  Recebeu grande influência do pensamento  de   Georg   W.   F.   Hegel   (1770­1831).  Associou­se com jovens hegelianos, que se  intitulavam “espíritos livres”.  Foi  redator  do jornal  “Gazeta  Renana”,  que foi  fechado pelo governo devido ao seu teor radical. Na revolução de 1848, Marx foi  preso e expulso da Alemanha, quando passou a morar em Londres, em pobreza.  Seu   amigo   Friedrich   Engels   (1820­1895),   coautor   de   várias   de   suas   obras,   o  ajudava   financeiramente;   e   juntos,   publicavam   diversas   literaturas   onde  divulgavam   seus   pensamentos.   Sua   principal   obra,   escrita   em   1867,   é   “O  Capital”.   Marx   diferenciou­se   dos   demais   filósofos   principalmente   pela  característica   militante   e   ativa   de   suas   doutrinas.   Disse   que   o   trabalho   dos  filósofos até então, havia sido de analisar o mundo, mas agora, tratava­se de  transformá­lo. Para Marx, as religiões foram construídas com a finalidade de se manter  as   pessoas   dominadas.   Tal   concepção   é   fruto   de   sua   herança   animista,   que  visualiza na crença religiosa, sobretudo nas crenças monoteístas, o reflexo da  estratificação   social.   Entretanto,   esse   conceito   não   cabe   ao   Evangelho:   a  dominação humana, apesar das advertências episcopais sobre a sujeição servil,  é  condenada   por   Deus.   Prestar  serviços   e  ser  sujeito  a   quem  lhe  comanda   é  advertência bíblica, mas dominar pessoas ao bel prazer é uma prática própria  do   ego   humano.   A   selvageria   capitalista   é   incompatível   com   o   mandamento  cristão  de   amar   ao  próximo  como  a   si   mesmo.   Apesar   disso,   o  uso   de   meios  oportunistas típico do capitalismo selvagem de nossos dias tem sido adotado, de  forma   infeliz,   em   muitas   igrejas.   São   formas   de   constranger   pessoas   a  participarem   das   atividades   da   igreja,   de   fazerem   contribuições   entre   outros  abusos. Mostrar que o evangelho não é um meio de dominação, como acreditam  muitos adeptos do marxismo, requer expor que a comercialização da fé é um  vício, e que a doutrina cristã também tem seu aspecto libertário. 46

Karl Marx, o defensor da extinção das classes sociais.

Símbolo comunista com representação do proletariado: a Foice – ferramenta agrícola; e o martelo – ferramenta do operário.

Uma   comparação   entre   as   doutrinas   marxista   e   cristã   é   útil   para  esclarecer   as   diferenças   entre   as  duas   abordagens:   ambas   visam   a  libertação   humana;   a   de   Marx,   a  libertação dos proletários da tirania  dos   poderosos,   a   de   Cristo,   a  libertação   do   homem   de   seus  próprios   pecados.   O   inimigo   para  Marx é a propriedade privada, para  Cristo,   é   Satanás,   que   incita   no  homem   a   disposição   a   vaidade.   O  paraíso marxista é a sociedade sem  desigualdade   social,   sem   Estado   e  sem   coerções;   o   paraíso   cristão  é  a  eternidade   com   Deus.   A   solução  proposta   por   Marx   não   abrange   os  problemas indicados por Cristo, por  outro   lado,   a   solução   proposta  por  Cristo   abarca   os   problemas  indicados por Marx. Marx propõe a  luta   entre   as   classes   para   solução   dos   problemas   humanos,  Cristo   propõe   a  autorrenúncia para esse fim. A solução proposta por Cristo é mais difícil e, de  certa forma, passiva, pois lança a decisão para os próprios indivíduos e deixa os  problemas   sociais   sujeitos   a   transformação   interior   dos   indivíduos   que   a  compõe. A proposta de solução social marxista é ativa, não fica a mercê da opção  pela   transformação  interior  de cada   indivíduo,   mas  remete  ao  proletariado  a  incumbência de lutar e reverter a desvantagem social em igualdade. As duas  doutrinas  anunciam  soluções   para   o  ser  humano,   e  cada   uma   delas  tem  um  percalço.   Curiosamente,   elas   podem   se   acusar   mutuamente   de   utopismo:   a  transformação social procedente de uma transformação interior voluntária dos  indivíduos   é   a   utopia   cristã;   e   a   igualdade   social   conquistada   a   partir   da  iniciativa   de   pessoas   não   transformadas   interiormente   é   a   utopia   marxista.  Entretanto, a doutrina cristã não é uma proposta social, antes, uma necessidade  espiritual,   que   se   for   aceita   integralmente,   seus   benefícios   se  refletirão   na  sociedade como um todo. Assim, a considerada utopia cristã de solução para a  sociedade através do Evangelho se desfigura, já que não é essa a finalidade do  cristianismo, e nem mesmo essa conquista é esperada, como já dito pelo apóstolo  Pedro em sua epístola: “Mas os céus e a terra que agora existem pela mesma  palavra se reservam como tesouro, e se guardam para o fogo, até o dia do juízo,  e   da   perdição   dos   homens   ímpios.   (…)   Mas   nós,   segundo   a   sua   promessa,  aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça” (2 Pedro 3.7, 13).

Imagem da revolução russa, ocorrida em 1917.

Max Weber, considerado o fundador da sociologia.

Max Weber e o Espírito Capitalista Max   Weber   (1864­1920),   nasceu   na   Alemanha   e  é  considerado   um  dos  fundadores   da   sociologia.   Seu   trabalho   de   maior   importância,   “A   Ética  Protestante e o Espírito do Capitalismo”, escrito entre 1904 e 1905, chegou a ser  considerado por alguns como a mais importante obra produzida no século XX.  Nele, Weber trata de correlacionar o desenvolvimento do capitalismo ocidental  com o pensamento protestante, especialmente com o calvinismo. Não se trata de  47

um  trabalho de cunho  ateu,  tampouco de  crítica  a  qualquer religião,  mas  de  uma obra monumental sobre a qual alguém pode erigir, de forma  arbitrária,  ideias negativas em relação a religião cristã, especialmente sobre as doutrinas  protestantes,   no   sentido   de   lhas   atribuir   uma   parcela   de   culpa   nas   muitas  injustiças   sociais   decorrentes   da   selvageria   típica   do   capitalismo  contemporâneo,   inclusive   pela   flagrante   propensão   de   muitos   líderes  evangélicos atuais às benesses. Weber identifica um processo de estratificação social em seu tempo – na  Alemanha do final do séc. XIX e início do séc. XX, que consiste numa segregação  social entre católicos e protestantes. Os protestantes, conforme indica Weber,  buscavam empregos mais voltados para as competências técnicas da indústria,  do comércio e da agricultura, enquanto católicos eram mais propensos a área  das ciências humanas. Weber identifica essa diferença cultural como fruto da  doutrinação   religiosa   específica   de   cada   segmento,   e   se   dedica   a   expor   seu  entendimento sobre isso em seu livro. O que ele chama de “espírito do capitalismo” não é a iniciativa voltada  para o lucro a qualquer custo,  mas a ideia  de trabalho como uma finalidade 

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Cena do filme “Tempos Modernos” (1936), estrelado por Charles Chaplin, onde é feita uma crítica a mecanização da mão de obra.

humana. O trabalhador engajado no espírito capitalista é aquele que  deixa   família,   vida   social,   diversão,   meditação,   religião   e   qualquer  outra coisa em segundo plano, sua vida é voltada ao trabalho e sua  dedicação a trabalhar independe do resultado desse trabalho, é uma  máquina   de   produção.   O   trabalhador   tradicional   (não   dotado   do  espírito capitalista) vê o trabalho como um meio de ganhar a vida, ou  seja, há algo em viver que é maior do que simplesmente o trabalho,  este é apenas um meio para que a sua vida venha se realizar. Um  exemplo mencionado pelo próprio Weber esclarece as diferenças: se o  trabalhador   tradicional   recebe   um   aumento   de   salário,   ele   prefere  trabalhar por menos tempo – e continuar ganhando o mesmo valor  que   antes,   e   tirar   a   vantagem   em   tempo   livre   para   viver   com   a  família ou aplicá­lo num hobby. Já o trabalhador dotado de espírito  capitalista,   vê   no   aumento   de   salário   uma   motivação   extra   para  trabalhar ainda mais, e ocupar seu tempo totalmente envolvido em  sua profissão. Weber percebe que o homem com espírito capitalista não é louvado nas  Escrituras   Sagradas   nem   nos   textos   dos   reformadores   protestantes,   mas  também nota que a doutrina calvinista, em maior grau que as demais doutrinas  cristãs, levou os homens a aderirem esse espírito. O caminho percorrido nesse  processo envolve os princípios específicos da doutrina calvinista; nessa doutrina,  o homem não tem qualquer participação no processo de salvação, ou ele é eleito  por Deus ou recusado. Caso seja eleito, nada pode ser feito para que essa eleição  seja anulada, e caso seja recusado, nada pode ser feito para que essa recusa seja  reconsiderada.   Assim,   o   calvinista   praticante   tem   que   ter   convicção   de   sua  eleição, pois qualquer dúvida é considerado reflexo de fé imperfeita, o que seria  impossível a um salvo. A figura de pecadores arrependidos recorrendo a Cristo  através da Igreja em busca de salvação é substituída por homens de elevada  presunção, que acreditam na inevitável condenação dos moribundos não eleitos.  Nesse processo,  a intermediação da  Igreja   foi   suprimida,   pois   nada   há  que   possa   melhorar   a   condição   de  alguém   diante   de   Deus,   a   não   ser  sua eleição, mas o ser eleito ou não  por   Deus   é   impassível   da  intervenção   humana.   Weber  menciona   a   conhecida   (para   os  leitores   de   sua   época   e   local)  autoconfiança   puritana   e   sua  indiferença   aos   miseráveis   da  sociedade,   a   quem   comumente  consideravam perdidos. A   comparação   entre   esses  protestantes   autoconfiantes   e   os  católicos   –   que   dependiam   de  penitências   e   resignação   para  alcançar   a   graça   divina,   remete   ao  resultado   observado   em   nível  econômico:   autoconfiantes,   os 

Reprodução de uma ilustração mostrando um culto puritano.

A “Torre de Magdala”, sobre o cume de um monte em Magdala, terra onde nasceu Maria Magdalena, mulher que recebeu de Cristo o perdão e socorro, ainda que pecadora e rejeitada pela sociedade.

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calvinistas   criam   que   a   manifestação  prática   de   sua   salvação   envolvia   entre  outras  coisas  sua   disposição  ao  trabalho.   A  busca   humana   para   tais  pessoas  reduziu­se a prosperidade econômica da família; enquanto isso, para os católicos  ou cristãos de outras vertentes protestantes, a busca humana não se viu tão  bem   resolvida   e   terminada   numa   certeza   tão   clara:   assim   como   o   próprio  processo   de   salvação,   a   luta   interior   e   as   questões   existenciais   e   sociais  humanas continuaram a mover o entusiasmo e levou os estudantes católicos de  sua   época   a   buscarem,   majoritariamente,   ofícios   mais   relacionados   com   as  ciências   humanas.   Em   resumo,   a   autoconfiança   calvinista   se   traduziu   como  frieza   humana,   ao   passo   que   as   incertezas   espirituais   e   a   constante   mútua  dependência   entre   as   pessoas   se   traduziu   como   maior   apego   as   causas  humanas.   Esse   é   o   processo   que   Weber   descreve   correlacionando   a   ética  protestante com o espírito calvinista. Apesar disso, ele mesmo salienta que seria  equivocado dizer que o protestantismo causou ou fomentou o capitalismo. Com  essa ressalva, ele deixa a percepção de  tratar­se da análise de um caso real, e  não de um resultado necessário, isto é,  a doutrina calvinista na Europa tomou  parte de forma acidental na construção  do sistema capitalista tal como o vemos  hoje,   mas   isso   não   necessariamente  aconteceria em outros casos. A ressalva indicada geralmente é  ignorada quando se pretende associar a  fé cristã (nesse caso, particularmente o  protestantismo)   com   a   imagem   mais  terrível do capitalismo mundial. Infere­ se que graças a essa fé (nociva, então),  o mundo ganhou um sistema comercial  onde  reina   a  arbitrariedade  e  onde  os  mais   poderosos   tomam   as   iniciativas  que lhes favorecem. Todas as injustiças  sociais   são   contabilizadas,   por   esse  raciocínio, na conta do evangelho. Mas  essa   associação   é   correta?   A   doutrina  calvinista é realmente a causadora – de  forma   acidental   ou   não   –   da   tragédia  econômica mundial? Como   o   próprio   Weber   fez  questão   de   indicar,   nem   os  reformadores   nem   o   próprio   Cristo  apregoou uma crença onde a frieza e a  indiferença humana tomavam parte da  confissão.   Se   homens   calvinistas  caíram nesse erro, caíram contrariando  os   preceitos   da   própria   fé.   Católicos  também cometeram deslizes históricos,  como condenar a pesquisa científica em  vários momentos, mas nem isso implica  50

Gravura de João Calvino, reformador cristão francês do séc. XVI. Defensor da forma de protestantismo que passou a ser conhecido por calvinismo.

que a fé católica seja passiva de tais erros, da mesma forma, a crença calvinista  não pode ser acusada de produzir a indiferença para com os necessitados. O erro  de uma parte considerável de adeptos de uma religião faz parecer que a própria  religião consinta e autorize o erro, e esse é o caso aqui flagrado. Nos dias de  hoje, por exemplo, a Igreja evangélica brasileira está embriagada pelo poder.  Líderes são flagrados com dinheiro ilícito, outros usam espaços caros nos meios  de   comunicação   para   propagarem   suas   próprias   denominações,   e   não   o  evangelho de forma isenta. A forma como essa igreja entrará para a história  será relatada de acordo com as iniciativas que sua liderança enceta hoje, mesmo  sendo elas errôneas e havendo muitos adeptos que sabem do erro, advertem e  não seguem nos mesmos passos. A associação entre o calvinismo europeu e o espírito capitalista é fruto de  um   processo   que,   se   pudermos   aceitar   a   análise   de   Weber,   evidencia   a   má  prática do evangelho numa época específica, o que não é qualquer novidade, pois  em todas as épocas as notícias divulgadas com maior intensidade sobre a Igreja  são sempre as más notícias. Suas conquistas verdadeiras em transformação de  vidas ficam sempre anônimas e esquecidas, mas assim deve ser, pois aqueles  que se engendram na verdadeira missão evangélica cuidam para que tudo o que  foi feito pela mão direita, a mão esquerda não tomar conhecimento.

CONFRONTANDO A FÉ COM A HISTÓRIA Em  termos   de  conhecimento  humano,   não  há   autoridade  maior   que  as  ciências que investigam a história da humanidade para atestar ou condenar a  narração bíblica. E diante do vasto campo de análise das ciências da história, a  arqueologia   e   a   geologia   se   impõe   com   maior   precisão   em   relação   a   esse  julgamento. Junto a elas, a filologia, o estudo da linguagem e dos documentos  históricos escritos, exerce também um papel fundamental para a compreensão  do   passado.   Em   presença   desse   poder   de   decidir   sobre   a   veracidade   das  narrações bíblicas, muitos ateus têm lançado mão de mascarar as conclusões  dessas ciências para beneficiarem suas convicções de contrariedade à fé.  Argumentos   arqueológicos   confrontando   os  textos   bíblicos  encontram­se  pautados   no   livro   intitulado   “E   a   Bíblia   não   tinha   razão”,   dos   arqueólogos  israelenses Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. O livro explora os relatos  bíblicos   com   afirmações   geográficas   e   os   confronta   com   os   achados   da  arqueologia   moderna.   Veremos   que   os   autores   são   seletivos   em   suas  abordagens,   buscando   sempre   salientar   os   fatos   que   corroboram   suas  interpretações   e   atenuar   a   importância   dos   fatos   que   as   contradizem.   Não  pretendemos julgar ou questionar quaisquer evidências arqueológicas, apenas  discutiremos   as   interpretações   dadas   a   elas,   que,   aliás,   são   bastante  tendenciosas. 

Abaixo, código de Hamurabi: descobertas como a deste código trouxeram luz ao conhecimento de culturas antigas.

Desenterrando a Bíblia Os   autores   aceitam   a   teoria   multi­documentária   de   Julius   Wellhausen  (que   será   detalhada   mais   adiante),   e   de   acordo   com   essa   teoria,   o   Antigo  Testamento fora inventado no séc. VII a.C., época em que o rei Josias governava  Judá. Todas as suas conclusões são coincidentes com essa hipótese. Começando  pela história dos patriarcas hebreus (Abraão, Isaque, Jacó), a descrição bíblica  de seus dilemas familiares, os nomes dos lugares que aparece na Bíblia, e tudo o  51

mais contido na narração é identificado  como pertencente ao período de Josias.  Um  exemplo é  o uso  de  camelos  como  transporte de cargas, que para eles, só  se   tornou   comum   depois   do   séc.   XX  a.C., ou seja, na época reivindicada aos  patriarcas tal prática não existia. Outro  exemplo é a menção a cidade de Gerar  na história de Abraão, o que para eles  mostra que tal história fora inventada  por   pessoas   em   tempos   bem  posteriores,   já   que   essa   cidade   só  existiu   séculos   depois.   Segundo   os  autores,   as   histórias   dos   patriarcas  foram   criadas   com   intenções   políticas:  suas   relações   de   parentescos  objetivavam   motivarem   vínculos  estratégicos   entre   os   vários   povos   da  palestina antiga. Mas eles não mencionam o fato de que outras evidências são abundantes  a favor da veracidade das histórias bíblicas: os nomes das pessoas envolvidas  nas   histórias   dos   patriarcas   bíblicos   são   consoantes   com   os   nomes   da   época  reivindicada   pela   Bíblia,   e   o   mesmo   acontece   em   relação   aos   costumes  familiares narrados no Gênesis. Tais conclusões são provenientes do código de  Nuzi, extraído de tabletes cuneiformes do povo Hurrita, datados de cerca do séc.  XX a.C., que confirmam práticas legais narradas no Gênesis, expondo que tais  práticas   eram   comuns   na   época   patriarcal   e   em   Nuzi,   época   em   que   as  motivações políticas da época de Josias inexistiam. Os   autores   também   fazem   menção   as   narrativas   bíblicas   da   Canaã  patriarcal,   que   segundo   eles,   não   correspondem   a   Canaã   do   Bronze   Médio:  muitas cidades mencionadas na Bíblia não existiam nessa remota época, mas  eles não mencionam o fato de que a coalizão entre reis narrada em Gênesis 14  constitui­se uma notável exceção: tal texto é considerado de uma concordância  excepcional   pelos   historiadores,   as   condições   políticas   da   época,   os   nomes   e  lugares   tem   concordância   relevante,   ao   ponto   de   mesmo   os   céticos   lhe  considerarem   um   caso   a   parte.   A   seletividade   de   informações   dos   autores   é  tamanha que eles sequem mencionam tal fato. Sobre  a   história   do  Êxodo,   os  autores  são  enfáticos:   jamais  existiu  um  êxodo, nem mesmo uma estadia de judeus no Egito. Se houvesse uma jornada de  40 anos pelo deserto, resquícios certamente seriam encontrados, mas segundo  eles,   nada   jamais   foi   observado.   É   curioso,   entretanto,   que   logo   depois,   os  autores fazem referência aos chamados “povos do mar”, que invadiram Canaã  no  séc.   XXI  a.C.,   mas  jamais   deixaram vestígios  de  sua   origem.  Isso   lembra  algo?  O   fato  de  não  haver  vestígios  dos  judeus   saindo   do  Egito  lhes  levou  a  negar a  história do êxodo  bíblico, mas eles tem de confessar  que invasões  já  ocorreram  onde vestígios também  não foram encontrados;  ou seja,  a  falta de  vestígios arqueológicos não é suficiente para se negar um fato. A conquista de Canaã por Josué é desacreditada pelos autores devido ao  fato   de   não   haver   evidência   de   destruição   repentina   nas   cidades   de   Canaã  52

Vista parcial de um sítio arqueológico em Jericó.

Gravura representando a batalha entre Ramsés III e os 'povos do mar'.

daquela   época.   Selecionando   apenas   os   fatos  que querem mostrar, eles nada dizem sobre a  descoberta   de   fortificações   em   cidades   como  Gerar e Hazor, além de Jericó, as três cidades  que  biblicamente  foram  destruídas.  Todas  as  demais,   foram   conquistadas   gradativamente,  não   produzindo,   portanto,   vestígios   de  destruição   repentina.   Somente   através   do  arqueólogo   Randall   Price,   que   é   doutor   em  estudos arqueológicos no Oriente Médio, temos  essas informações. Nesse   ponto,   os   autores   do   livro   criam  uma teoria curiosa sobre a origem dos judeus. Eles alegam que o povo judeu  surgiu de uma revolução ocorrida há cerca de 3 mil anos antes de Cristo. Eram  povos nômades, e só puderam ser identificados por não conter ossos de suínos  em seus assentamentos. Mas como procuram negar que tenha existido a lei de  Moisés   nessa   época   (senão   estariam   admitindo   que   os   textos   bíblicos   tem  validade),   justificam  o   abandono   ao   consumo   de  suínos   como   uma   busca   por  identidade. Muito conveniente e pouco convincente. Sobre o período de monarquia mostrado na Bíblia, ou seja, os reinados de  Saul, Davi e Salomão, os autores diminuem sua importância, chegando a dizer  que tais reis não passavam de líderes tribais. Só não podem negar a existência  do rei Davi porque há uma evidência científica a qual eles não podem contestar.  Trata­se de uma inscrição encontrada em Tel Dã, que contém uma menção a  “casa   de   Davi”.   Recentemente,   entretanto,   foi   descoberto   em   Jerusalém   pela  arqueóloga   israelense   Eilat   Mazar   vestígios   de   uma   casa   real   imensa   e   de  importância   indubitável.   A   descoberta   não   pôde   ser   negada,   mas   sua  importância  foi  minimizada, chegando a  ser tratada  por alguns jornais  como  fruto de uma investida financiada por interesses religiosos. A  falta de  evidências  em Jerusalém  se deve  em grande parte,  como  os  próprios   autores   admitem,   a   falta   de   escavações.   Por   motivos   políticos   e  religiosos, a escavação na Jerusalém antiga é praticamente impossível. Sobre o reinado de Salomão, o livro mostra a parcialidade e a tentativa  dos ateus em desacreditar na narração bíblica. Eles discorrem sobre o fato de  que  o  estilo  arquitetônico   encontrado   nos   sítios   arqueológicos   das   cidades   de  Megido,   Hazor   e   Gezer   são   peculiares   e   iguais.   Essas   cidades,  segundo  a   Bíblia,   foram  construídas   por   Salomão,   e  a  coincidência  entre  os  estilos  peculiares  das construções   e  a  descrição  bíblica  da  origem dessas construções forneceu combustível para a crença de que  a Bíblia estivesse correta, mas os autores alegam que a possibilidade  de Salomão ser o construtor ruiu mediante as evidências: a datação  dos achados levou tais construções a décadas de diferença da época  atribuída   ao  reinado  de  Salomão.  Décadas  de  diferença?  A  própria  análise de datação, por melhor e mais acurada que possa ser, deixa  uma tolerância de cerca de 4 a 5 décadas de incerteza para a data  indicada. A alegação de décadas de diferença não pode ser válida, é  simplesmente   uma   tentativa   de   atribuir   desacordo   entre   o   achado  científico e a narração bíblica. Os   autores   mantém   um   posicionamento   parcial   em   todo   seu 

Estela de Tel Dã, onde há uma menção a 'casa de Davi'.

Extrato geológico mostrando evidência de erosão. A faixa escura é um depósito de carvão, registrando um aglomerado de seres vivos fossilizados.

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trabalho. Criam ou exageram interpretações, minimizam ou se silenciam sobre  fatos   que   lhes   causam   desconforto,   fazendo   com   que   o   leitor   sinta   estar   em  contato  com  a voz  da  ciência  em  total imparcialidade.  Franca  enganação,  na  verdade,   o   livro   nada   mais   é   do   que   a   tentativa   de   adequar   as   recentes  descobertas arqueológicas ao modelo multi­documentário, para o qual a Bíblia  nada mais é que uma coleção de fábulas inventadas para dominar as pessoas. Existem   evidências   arqueológicas   que   sequer   foram   mencionados   pelos  autores. Um deles é a evidência do dilúvio. A própria história do dilúvio tem  base em muitas culturas, não apenas na literatura judaica. Os sumerianos, povo  muito antigo, deixou importantes coleções de escritos que narram entre muitas  histórias, uma inundação catastrófica em que apenas uma família se salvou. O  mesmo  acontece   em  várias  culturas   primitivas   ao   redor   do   mundo,   inclusive  entre os indígenas brasileiros na lenda de Tamandaré. Além desse testemunho  etnográfico, evidências propriamente arqueológicas também  existem: o sedimento diluviano, descoberto pelo arqueólogo  inglês   Leonard   Wolley   em   suas   escavações   em   Ur,   deixa  provas incontestáveis da existência de uma inundação sem  precedentes.   Mas   em   “E   a   Bíblia   não   tinha   razão”   nada  disso é nem aludido nem refutado, é simplesmente ignorado. Outra evidência importante que recebe o silêncio dos  autores   está   nos   Pergaminhos   do   Mar   Morto.   O   achado  desses pergaminhos fez diminuir a distância entre a versão  atual e os mais antigos exemplares do Antigo Testamento  em mais de mil anos! E os textos, datados do início da era  cristã, em nada apresentam variações em relação ao cânon  atualmente conhecido. A famosa acusação de que os textos  bíblicos foram manipulados pela Igreja ao longo da história  na   era   cristã   perdeu,   com   essa   descoberta,   qualquer  possibilidade de ser levada a sério.

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Imagem de pedaços dos pergaminhos do mar morto. A descoberta desse material teve uma importância inestimável os estudos da Bíblia judaica.

Julius Wellhausen, construtor da teoria da composição multidocumentária do Antigo Testamento.

Wellhausen e a teoria multi-documentária O estudioso bíblico alemão Julius Wellhausen escreveu em 1878 um livro  chamado “Prolegômenos à história de Israel Antiga”, em que tratou de tentar  compreender como O Antigo Testamento surgiu. Seu trabalho é fruto da teoria  animista de Tylor, e desencadeou a crença na não literalidade do testemunho  bíblico: suas histórias são fontes de inspiração, mas não são reais, são fábulas  escritas com finalidade política na época do rei Josias, no séc. VII a.C. A teoria multi­documentária consiste em atribuir à formação do cânon do  Antigo   Testamento   um   processo   de   combinação   de   lendas   e   textos   fontes  originários de povos da Canaã do séc. VII a.C. Basicamente, haveriam 4 fontes  distintas que foram usadas para formar o cânon: a fonte J (“jeovita”), a fonte E  (“eloísta”),   a   fonte   P   (“sacerdotal”)   e   a   fonte   D   (“deuteronômica”).   As   duas  primeiras   fontes   seriam   as   originais,   provenientes   de   culturas   distintas   de  povos distintos da Canaã anterior a época de Josias. O deus de um dos povo era  Jeová e o deus do outro povo era Eloim. Na reforma político­religiosa de Josias,  ele juntou a cultura religiosa dos dois povos mais importantes (Judá e Israel) na  intenção de fortalecer uma coalizão contra a dominação egípcia. A fonte D foi  incluída nesse passo, quando os escribas de Judá inventaram o código de leis da  Torá, para manter o povo sujeito ao seu comando. A existência da fonte P foi  identificada   posteriormente,   quando   Wellhausen   percebeu   ser   difícil   explicar  todos os textos a partir dessa interpretação, e essa fonte, para ele, foi incluída  após o exílio, já que na confrontação dos textos pré­exílicos com os textos pós­ exílicos ele observou certas incompatibilidades com sua explicação. Mesmo citando vários exemplos entre os livros proféticos, ele reconhece  casos   difíceis   e   potencialmente   contrários   a   sua   tese.   Um   desses   casos   é   a  batalha de Micmás, quando Saul partiu para a guerra ignorando a ordem de  Samuel de esperá­lo para o sacrifício. O texto faz referências a um altar a Jeová,  mas   estranhamente,   não  faz  referência  a  um lugar  específico para o sacrifício.  O texto é estranho para a  teoria   de   Wellhausen  porque   para   ele,   a  invenção da lei objetivava  centralizar   Jerusalém  como   único   lugar  designado para adoração. Wellhausen   usou  um método específico para  chegar a tais conclusões, o  chamado   método  Wolfiano.   Esse   mesmo  método   já   foi   também  aplicado   a   outras  literaturas,   como   na  “Ilíada” de Homero, donde  se   obteve   como   resultado  uma   suposta   composição  da   Ilíada   por   diversas 

Estátuas de Josias e Manassés, reis de Judá e Israel, na Basílica El Escorial, em Madri, na Espanha.

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fontes originais, assim como aconteceu na análise do Antigo Testamento. Hoje,  porém, ninguém mais aceita que a Ilíada seja a costura de várias fontes, já que  estudos mais detalhados levaram a conferir que se trata de uma obra  única.  Com a Bíblia, porém, o mesmo cuidado foi deixado de lado. O método Wolfiano  não é mais utilizado, por mostrar que produz resultados equivocados, mas seu  resultado em relação ao Antigo Testamento, surpreendentemente, foi mantido.  A   chamada   Alta   Crítica   –   vertente   teológica   que   aceita   a   teoria   multi­ documentária, prefere aceitar a subtração da literalidade de várias narrações  bíblicas   a   rever   os   resultados   obtidos   por   Wellhausen   quando   utilizou   um  método  que hoje  ninguém  mais  utiliza.   Além do   mais,   jamais  foi   encontrado  qualquer vestígio dessas supostas fontes originais. Um verdadeiro favor para os  ateus e céticos, um desfavor para a crença na Bíblia.

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“O Pensador”, do escultor francês Auguste Rodim: se nos guiarmos pela nossa própria razão e inteligência, colocamos em xeque muitas das afirmações ditas científicas do ateísmo.

CONCLUSÃO O   ateísmo   é   uma   cosmovisão  possível e racional. Limita a existência  ao domínio da matéria (materialismo) e  o   saber   ao   conhecimento   científico  (cientismo), mas não é a única forma de  racionalização   da   existência.   As  religiões   são   racionalizações   possíveis  da   existência,   e   incluem   em   seus  paradigmas   a   existência   espiritual.  Tudo   isso,   enquanto   teoria,   pouco  representa:   cada   um   escolhe   seu  caminho,   e   a   escolha   mais   coerente  pode   ser   aquela   que   abre   mais  possibilidades   ou   aquela   mais  econômica   em   suas   suposições,   o  critério de escolha é livre e individual.  O   que   muda   tudo,   entretanto,   é   o  contato   com   o   sobrenatural:   uma  experiência que por si elimina argumentos e derruba filosofias. A   filosofia   se   desenvolve   e   em   seu   aprimoramento   evolui   também   sua  forma de confrontar  a  existência de  Deus. Muitos  filósofos atuais  admitem a  existência de Deus, e mesmo os ateus modificam, com o tempo, sua forma de  confrontarem a questão ideia de Deus na humanidade. O que de início era uma  negação   gratuita   –   baseada   em   argumentação   lógica,   mostrou­se   frágil   e  incapaz  de  eliminar das  mentes  a  ideia  de  Deus.   O  passo  seguinte  foi  então  sentenciar  que crer   em  Deus   é  impossível,   pois  sabemos  (como  criam)  que  a  natureza se explica por leis bem determinadas, e nada foge de seus princípios,  nem   mesmo   o   espiritual,   crer   no   sobrenatural   é   inassimilável   para   a   mente  humana.   Mas   a   mente   humana   assimila   a   ideia   de   Deus,   mesmo   insistindo  filósofos como Hume que isso seja impossível. Percebendo ser impossível tapar o  sol com uma peneira, a estratégia mudou: é até possível crer em Deus, mas a  crença não muda a realidade, ou seja, é inútil. O argumento de inutilidade não  convence e a crença prevalece, logo, torna­se necessário usar uma arma ainda  mais ousada: crer em Deus  é nocivo! Conviver com a fé religiosa prejudica o  desenvolvimento cultural e científico, perpetua falsos moralismos e faz retroagir  a mente humana. Mesmo com esse argumento, a crença prospera. O próximo  passo será deixar a descrença de lado e admitir a rejeição pessoal a Deus. Nesse  passo, o Deus a ser rejeitado com mais austeridade será o Deus cristão, e sua  57

rejeição pessoal será a manifestação do anticristianismo. Esse estágio  último   do   ateísmo   será   a   exposição   de   sua   face   sem   máscaras,   a  rejeição pessoal a Deus. A Ineficiência da Argumentação Ateísta Os argumentos ateístas não têm o poder de ameaçar a crença  religiosa. Isso se dá pelo fato de que nenhum argumento toca o âmago  da fé. Os argumentos que tomam a religião como objeto – a análise de  como quem está de fora – é ineficiente, uma vez que há uma lacuna  na   argumentação   lógica   que   protege   as   verdades   religiosas   dos  argumentos   céticos:   as  evidências  podem   provar  a  veracidade  ou  a  falsidade de determinados elementos, mas quanto ao transcendental,  nenhuma evidência o prova, e tampouco o refuta; o transcendental  fica imune à análise científica e mesmo à análise filosófica. De fato,  ele se estabelece como uma hipótese sempre válida, mas logicamente  jamais comprovada.  Quando David Hume alega que os milagres não são passivos de  aceitação  porque  nossa   própria   mente  impede   sua  assimilação,  um  religioso debocha de seu argumento: está tão errado que seu próprio  caso   é   a   prova   em   contrário.   Quanto   à   Nietzsche,   sua   própria  conceituação   de   valores   é   repugnante   a   um   cristão,   o   que   o   torna  simplesmente leviano. Sartre destitui a existência de Deus em troca  de uma moral laica, mas necessita da liberdade como argumento e  valor   preestabelecido,   conferindo   ineficiência   à   sua   teoria.   Russell  desfere   críticas   ao   Cristo   dos   evangelhos,   mas   suas   críticas  fundamentam ainda mais os valores cristãos.  Argumentos   contra   a   Bíblia   são   superficiais   e   acusações   de  adultério   do   cânon   não   são   confirmadas.   Quanto   às   denúncias   de  comportamento  ilícito por  parte da  Igreja,  o fiel  as reconhece,  mas  salienta que os infratores estão, em suas infrações, a negarem a sua  própria fé. Acusações contra Deus não lhes causam impressão, pelo  contrário,   fortalece   o   testemunho   das   escrituras.   O   uso   da   ciência  gera   apenas   argumentos   indiretos:   manieta­se   contra   determinado   texto  sagrado   numa   particular   interpretação.   De   fato,   nenhum   argumento   ateísta  toca o interior da crença religiosa.  Há   um   versículo   de   um   salmo   bíblico   que   expressa   com   exatidão   a  avaliação ateísta dos argumentos religiosos: “Por causa do seu orgulho o ímpio  não investiga; todas as suas cogitações são: não há Deus” (Salmo 10.4). De fato,  a máscara do ateísmo consiste exatamente em considerar a inexistência de Deus  um   fato:   cientistas   céticos   insistem   em   apontar   erros   na   revelação   bíblica   a  partir   da   leitura   fundamentalista   e   descontextualizada   de   sua   mensagem;  Freud   evidencia   um   protótipo   filogenético   na   compreensão   da   religiosidade  humana, mas descarta  gratuitamente a existência  do Pai Celestial; Jung,  da  mesma   forma,   decreta   à   divindade   uma   existência   ontologicamente  abstrata,  apesar de admitir a autonomia do inconsciente, donde se poderia igualmente  atestar ali uma porta de comunicação entre o ser humano e um factual mundo  espiritual. Arqueólogos dolosamente negam às narrações bíblicas historicidade,  baseados apenas na escassez de evidências, o que é propriamente contrário à  ciência; e finalmente, antropólogos e filólogos arremessam contra as escrituras  58

sagradas   métodos   e   evidências   já   descartados   para   outras   análises   por   se  mostrar inapropriados . Desse   modo,   toda   conjuntura   do   pensamento   ateu,   envolvendo   toda  filosofia e ciência que lhe dá suporte, não passa de um aparato inútil contra a fé,  e   isso   parece   ser   bastante   evidente   por   quem   aceita   a   fé,   aliás,   as   próprias  escrituras testificam essa ineficiência, quando assinala que a sabedoria deste  mundo é vã: “Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus; pois  está escrito: Ele apanha os sábios na sua própria astúcia. E outra vez: O Senhor  conhece os pensamentos dos sábios, que são vãos” (1 Coríntios 3. 19­ 20).  O argumento do evangelho é o amor Como   já   mencionado,   o   pensamento   ateu   vem   sofrendo,   desde   a  renascença,   grandes   alterações.   Primeiro,   alegou   a   impossibilidade   da  assimilação   racional   da   fé,   depois,   a   impossibilidade   foi   substituída   pela  inutilidade da fé, e já que nenhum desses posicionamentos conferiu a extinção  da fé, temos atualmente a mais insensata postura incrédula, que julga haver  nocividade   no  exercício   da   crença   religiosa.   Mas  todos   esses   argumentos   são  realmente ineficientes, uma vez que a fé continua a ser muito bem assimilada  por pessoas dos mais diversos níveis sociais e intelectuais. Por parte dos teístas,  tentativas de impor a impossibilidade da recusa  à fé, bem como inutilidade e  nocividade   à   incredulidade   religiosa   também   já   existiram,   mas   sempre  caracterizadas   por   inferências   ineficientes   a   um   convencimento   sobre   a  existência   de   Deus.   De   fato,   indivíduos   ateus   existem,   e   muitas   vezes   de  comportamento ético bastante exemplar, o que faz da alegação da nocividade  social  do ateísmo uma  afirmação gratuita.  A postura   afirmativa  referente  ao  cristianismo   deve   se   fundamentar   em   seus   verdadeiros   alicerces:   primeiro,  tratando­se duma fé, provas estão de antemão desqualificadas; segundo, Cristo  convida os homens a viverem sob a perspectiva divina, e se há algum argumento  válido   na   exposição   da   fé   cristã   a   partir   de   um  critério   racional,   deve  ser   o  argumento   baseado   na   avaliação   dessa   nova   perspectiva   de   vida   que   Cristo  propõe a seus fiéis. Como a súmula da vida cristã é a fé, a esperança e o amor, e  sendo o amor o maior dentre os três, decorre que o argumento do evangelho é o  amor. Nenhuma filosofia religiosa ou politicamente isenta, nem mesmo a mais  acurada e universal apreensão ética pode substituir ou convencer de modo mais  seguro e eficaz que esse poderoso argumento. A nova lei do amor (aos amigos e   inimigos), a regra de ouro – fazer pelo próximo aquilo que desejamos que façam  por nós – não são formulações exclusivas do cristianismo, mas correspondem aos  caracteres centrais dessa doutrina. Nesse sentido, a fé cristã detém o argumento  do   amor,   atestado   e   praticado   pela   sua   própria   divindade   (o   que   causou  surpresa no próprio adversário de Deus, que num de seus porta­vozes conferiu  loucura à piedade divina, que culminou no Calvário: como pode o Todo Poderoso  permitir­se   morrer   por   amor?).   A   prática   dessa   moral   custa   caro   ao  egoísmo  humano,   e   decorre   desse   alto   preço   de   renúncia   pessoal   toda   aversão  característica   à   fé.   Avaliando   profundamente,   a   grande   máscara   do   ateísmo  consiste na camuflagem da resignação ao apelo de Cristo, de cada um tomar sua  cruz e seguir­lhe. Somente esse argumento, o argumento do amor (não teorizado  apenas, mas vivido), tem a eficiência de transformar pessoas antes descrentes  em fervorosos adeptos da fé. 

Camões escreveu que o amor é “fogo que arde sem se ver”. Para os cristãos, o argumento que o faz se render ao evangelho é o amor: Deus ama o homem, e o ensina a amar seus semelhantes. Nenhuma filosofia ou ideologia terá tamanha originalidade e utilidade ao ser humano quanto a proposta de Cristo aos seus discípulos: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.

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