Filosofia 10 - Sumários Desenvolvidos-2016 e 2017
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Trata-se de um texto que aborda os conteúdos do programa de Filosofia para o 10º ano. Como está sempre em construção, ac...
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José Carlos S. de Almeida
Filosofia – 10º ano Sumários desenvolvidos
Ano letivo de 2011/2012 Alterado e aumentado em 2016 e 2017
José Carlos S. de Almeida / FILOSOFIA 10 – SUMÁRIOS DESENVOLVIDOS 2016
FILOSOFIA – 10º ano Programa / Conteúdos
- Abordagem introdutória à Filosofia e ao filosofar - A ação humana: análise e compreensão do agir - Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa - Dimensões da ação humana e dos valores: a Ética e a Política - Dimensões da ação humana e dos valores: a Estética - Temas / problemas do mundo contemporâneo
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Índice Capítulo 1 - O que é a Filosofia? O que é filosofar? §1. A definição de Filosofia §1. –A. Somos todos filósofos? §1 – B. O valor da Filosofia §2. O que nos diz a etimologia da palavra ‘filosofia’ §3. – A. Do mito aos primeiros filósofos. O mito enquanto primeiro ensaio duma tentativa de descrição e explicação quase racional do real §3. A Filosofia é filha da polis §4. O filósofo, distraído ou preocupado? §5. A alegoria da caverna de Platão e a atitude filosófica §5. A - Características da atitude filosófica §6. Historicidade §7. Radicalidade §7-A. Universalidade §8. Autonomia em relação à ciência e à religião §9. O carácter discursivo do trabalho filosófico §10. Filosofar é argumentar §11. Áreas e temas abrangidos pela Filosofia Capítulo 2 - O homem construindo-se através da ação §12-A. O que é a ação §12. O que leva o homem a agir §13. Sentidos usados na linguagem quotidiana que não deverão ser considerados neste âmbito §14. A ação humana constitui uma intervenção planeada e pensada §14-A. Devemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ação da reação §15. A consciência e a vontade são elementos que caracterizam necessariamente a ação humana §16. A importância da presença dos elementos consciência e vontade no agir do homem §17. Movimento / acontecimento e ação §18. A rede conceptual da ação: ação intencionada e ação causada §19. Perspetiva determinista e perspetiva baseada na ação intencionada §20. Combinando causas e intenções; o homem é simultaneamente livre e determinado §21. Ações voluntárias, atos involuntários e reflexos §22. O agente da ação e a relação causal §23. O estabelecimento de um motivo responde ao porquê e explica e legitima a ação §24. Intenção e motivo §25. O trabalho humano e a atividade dos animais §26. O trabalho enquanto forma particular de ação. Trabalho e projeto §27. Ação livre e responsabilidade §28. A culpa §29. Algumas notas sobre o existencialismo: o homem está condenado a ser livre §30. Classificação das várias condicionantes da ação humana §31. O que é o determinismo. Diversos tipos de determinismo §31 – A. A crença no destino como forma de determinismo §32. Consciência, vontade e responsabilidade Capítulo 3 - O mundo não é indiferente ao homem: os valores §33-A. A cultura ocidental e os valores §33. O que são os valores §33-B. Os valores e a vida de cada um §34. O percurso da ação aos valores §35. Não há ações gratuitas, isto é, sem a presença dos valores §36. Características dos valores §36-A. Como se transmitem os valores
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§36-B. Conflitos sociais e conflitos de valores §36-C. Valores contemporâneos e «crise de valores» Capítulo 4 - A experiência ética e política da vida e do mundo §37. Os valores morais e o relativismo cultural §38. Relativismo moral e relativismo cultural e tolerância §39. A dimensão da ética e da moral §39 – A. Distinguir ética e moral §39 – B. Distinguir moral e religião §40. Intenção e norma §41. Distinção conceptual entre moral e ética – quadro-resumo §42. Dimensão pessoal e social – o si mesmo, o outro e as instituições §42 – A. A construção da pessoa na sua relação com os outros §43. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva deontológica de Kant §43 - A. Alguns paradoxos com a teoria deontológica §44. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva consequencialista de Stuart Mill §44 – A. Confronto entre as teorias deontológicas e as teorias consequencialistas §45. A relação entre a ética, o direito e a política §46. O Estado enquanto problema da filosofia política §47. O homem e o Estado: a perspetiva clássica: Aristóteles §48. O homem e o Estado: a perspetiva contratualista moderna: John Locke §48 – A. Do estado de natureza à natureza do Estado §49. A teoria da justiça de John Rawls §49 – A. Conflito e cooperação nas sociedades contemporâneas; a relação entre a liberdade e a igualdade §49 – B. Rawls critica o utilitarismo §49 – C. A escolha racional dos princípios da justiça §49 – D. Crítica às teorias de Rawls Capítulo 5 - A experiência estética da vida e do mundo §50. A experiência estética §50 – A. Quando um acontecimento se torna numa experiência para o sujeito §50 – B. Caraterização da experiência estética §50 – C. Atitude e sensibilidade estéticas §50 – D. Objetivismo e subjetivismo na experiência estética §50 – E. Teorias acerca da natureza da Arte e da obra de arte
Nota Estes sumários desenvolvidos constituem um determinado momento no nosso trabalho que passa também pela nossa investigação e reflexão e pelo diálogo mais ou menos frutuoso com os alunos. Enquanto representam um momento desse trabalho, estarão sempre sujeitos a serem revistos e substituídos por outros textos considerados mais ajustados ao fim em vista. Trata-se de um texto em permanente reelaboração e reconstrução, mas não é esse o destino de qualquer texto de cariz ensaístico?1
1 Sobre a natureza do ensaio, ver Fernando Savater, ***** e Eduardo Prado Coelho, ******.
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Capítulo 1 - O que é a Filosofia? O que é filosofar? §1. A definição da Filosofia O início da aventura filosófica é sempre marcado por uma pergunta fatal: o que é a Filosofia? Ninguém gosta de embarcar numa viagem sem saber para onde vai, sem saber o que vai encontrar. De qualquer modo, perguntar sobre o que é a Filosofia sempre é uma questão mais interessante que perguntar, como também acontece habitualmente, sobre para que é que serve a Filosofia. Há, de facto, quem faça essa pergunta sobre a utilidade da Filosofia, mas com a ideia preconcebida de que a Filosofia não lhe servirá para nada. Ora, quando soubermos o que é a Filosofia, também chegaremos à resposta sobre a sua utilidade. O que não podemos fazer é condicionar a pergunta sobre o que é à pergunta para que é que serve. O problema da utilidade da Filosofia não se situa no mesmo plano que perguntar pela utilidade dum chapéu-de-chuva ou duma estrada. Ninguém tem dúvidas sobre a utilidade dum chapéu-de-chuva, porque todos estão seguros sobre o que é um chapéu-de-chuva. Porém, sobre a Filosofia, não estamos todos de acordo sobre o que seja. Nesse sentido, a questão sobre a sua utilidade sai prejudicada. É inútil tentar saber se a Filosofia é útil. Quando muito, é útil partir do princípio que a Filosofia pode ser inútil. Mas isso são contas para se fazerem mais à frente. Há quem considere que o primeiro problema da Filosofia é a questão da definição de Filosofia. E o problema adensa-se porque não existe uma resposta única a esta questão, como também poderíamos dizer que esta questão não tem sentido no caso da Filosofia. Saber o que é a Filosofia é um dos seus primeiros problemas. Existem várias respostas a esta questão, respostas que têm variado de filósofo para filósofo, de época para época. De tal maneira que seria mais rigoroso falar de Filosofias do que de Filosofia. Perguntar sobre o que é a Filosofia deixa, assim, de ter sentido e alcance, porque a Filosofia como realidade única e singular não existe. Existem Filosofias, no plural, e, por isso, àquela pergunta iremos receber uma pluralidade de respostas. Contudo, apesar dessa variação e variedade em torno da resposta à pergunta sobre o que é a Filosofia, variação e variedade que também existe acerca do valor da Filosofia, podemos avançar com algumas ideias muito gerais sobre o que possa ser a Filosofia, sendo certo que cada um irá construindo a sua visão pessoal do que é a Filosofia. A Filosofia é, antes de mais, uma reflexão sobre o homem na sua universalidade, mesmo que partindo duma situação concreta e particular em que sempre se encontra. A reflexão filosófica eleva a situação concreta e particular vivida ao nível da condição humana pensada, o Homem universal enquanto apropriado pelo pensamento que o reflete. Assim, poderíamos dizer, em primeiro lugar, que a Filosofia constitui-se como uma reflexão racional e crítica sobre os problemas fundamentais da condição humana considerada em si mesma e do homem face aos seus semelhantes e à realidade. Trata-se de uma definição que é proposta neste momento, suficientemente vaga e provisória, para que cada um a vá enriquecendo ao
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longo deste caminho. É que, por outro lado, como dizia o poeta espanhol António Machado, não existem caminhos, fazem-se a caminhar. Tentemos, num primeiro momento, aproximarmo-nos dos elementos que constituem aquela primeira tentativa de definição. Para já, a Filosofia surge como uma reflexão; uma reflexão enquanto atividade racional e crítica. Trata-se, então, de uma atividade da razão, das nossas faculdades racionais exigindo uma postura crítica. Como veremos mais adiante, faz parte da atitude filosófica o não aceitar passivamente (acriticamente) tudo o que observa e lhe é comunicado. Por outro lado, essa reflexão incide sobre problemas. Que problemas? Aqueles que dizem respeito à condição humana, às condições através das quais o Homem assegura a sua existência; e isto, na medida em que essas condições têm a ver com a sua relação com os outros e com o meio que o rodeia, implica a Sociedade e a Natureza. Mas, vejamos, como exemplo, um desses problemas ditos fundamentais. Todos nós já passámos pela experiência da morte de alguém próximo, um familiar ou um amigo. Esse momento traumático atingiu-nos, certamente, de uma forma profunda. Nessa ocasião chorámos, com lágrimas ou sem elas, essa perda definitiva. Doeu-nos, a uns mais do que a outros, o facto de nunca mais podermos contar com o convívio dessa pessoa junto de nós. A morte foi experimentada de diversas formas, mas apesar dessa diversidade, ela constituiu para todos um momento de profunda tristeza, vivida solitariamente ou partilhada com os outros. Como também foi ocasião de pensarmos, de forma mais profunda e sem paralelo com o que pensamos no dia-a-dia, sobre o que aconteceu e sobre a natureza da morte e o sentido da vida. De certeza, que pensámos e nos interrogámos sobre a morte enquanto fim, nomeadamente, interrogámo-nos sobre se a morte representa um fim absoluto ou apenas uma passagem para outra fase que ainda desconhecemos. Eventualmente, também nos interrogámos sobre o sentido da nossa vida, a razão de ser de tudo o que fazemos, porque confrontados com a fragilidade da vida. Possivelmente, mais desesperados, chegámos a pôr em causa o que fazemos e o que somos. No meio de todas as questões que colocámos nesse momento de dor, o que pretendíamos era obter algumas respostas que minorassem o nosso sofrimento. Sabemos que alguns de nós encontram essas respostas nas religiões e, dessa maneira, atenuam a sua experiência dolorosa; outros podem refugiar-se em caminhos menos recomendáveis; mas outros não aceitam esse tipo de respostas e procuram um entendimento mais racional sobre essas matérias. As reflexões, eventualmente desordenadas que nesse momento produzimos aproximam-se da Filosofia, tal como a vimos aqui entendendo. Nesse sentido, podemos até dizer que todos nós somos filósofos. §1. –A. Somos todos filósofos? Com efeito, há quem assim pense. “Creio que todos os seres humanos são filósofos, ainda que alguns mais que outros. Todo o homem desenvolve determinados pontos de vista filosóficos - ainda que
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geralmente acríticos -, filosofias boas ou menos boas. As expetativas, o que a vida deve oferecer, o que se pode alcançar na vida são, no fundo, pontos de vista filosóficos perante a vida. (…) Compete ao filósofo profissional investigar criticamente as coisas que muitos outros têm na conta de óbvias, pois muitos dos pontos de vista, não passam de preconceitos que são aceites acriticamente (…). E para denunciar isso, é necessário, talvez, alguém como um filósofo profissional, que dedica todo o seu tempo à reflexão crítica.” (Karl Popper, Sociedade aberta, Universo aberto, Lisboa, Publicações Dom Quixote) §1 – B. O valor da Filosofia Para que nos serve a Filosofia? O que é vale a Filosofia? Será que nos ajuda a explicar porque é não somos mais felizes ou porque é que existem tantas mulheres e homens e crianças, em muitas zonas do globo, que passam fome e sofrem a violência da guerra? Será que podemos compreender melhor com a Filosofia por que razão é negado um futuro digno a tantos seres perfeitamente iguais a nós? A Filosofia, aparentemente, formula mais questões que respostas e muitas das questões que adianta acabam por ficar sem uma resposta definitiva. Ora, torna-se legítimo e compreensível perguntar, então, o que é que serve uma disciplina com essas caraterísticas. Perguntar, levantar questões, mesmo sem obter uma resposta imediata, exprime uma atitude positiva e valiosa. Desde que nascemos que nos dão respostas quase pré-fabricadas e desde essa tenra idade que vamos construindo uma visão do mundo assente no que os nossos pais e os nossos professores nos dizem. Vamos vivendo e resolvendo os mais variados problemas recorrendo a esse repertório de respostas e regras. Durante muitos anos, o mundo está mais ou menos composto com base nesse manancial de respostas. Tudo vai correndo em harmonia e sem angústias de maior. A nossa maneira habitual de pensar (e responder) vai-se consolidando na nossa maneira de ser. Tudo isso é muito natural e não se vê razão porque é que há-de ser posto em causa tudo o que nos foi ensinado e que constituiu uma espécie de concha onde nos abrigávamos quando as tempestades nos ameaçavam. Essa muralha protetora punha-nos a salvo de todos os perigos. De todos?... Bem, de todos talvez não, e os perigos mais ameaçadores não nos surgiram sob essa forma. O valor da Filosofia não deve ser procurado nas respostas que nos dá. A começar, porque não abundam as repostas na Filosofia. E depois, as respostas que a Filosofia nos dá, não põem cobro a novas perguntas. Então, talvez seja de aceitar o que Bertrand Russel nos diz sobre o valor da Filosofia: “O valor da Filosofia, em grande parte, deve ser buscado na sua mesma incerteza. Quem não tem umas tintas de Filosofia é homem que caminha pela vida fora sempre agrilhoado a preconceitos que derivaram do senso comum, das crenças habituais do
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seu tempo e do seu país, das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada.”2
§2. O que nos diz a etimologia da palavra Filosofia Uma das maneiras de esclarecermos o significado duma palavra ou dum conceito é compreendermos a origem e evolução dessa palavra. A etimologia da palavra Filosofia diz-nos que Filosofia significa, originalmente, amor da sabedoria (filos + sofia). Repare-se que não se diz que tipo de sabedoria é, nem que a Filosofia consiste na posse do saber. O que a etimologia nos diz é que a Filosofia é, sobretudo, amor ou amizade pelo saber 3, movimento ou trânsito para o saber, caminhar na direção do saber e não propriamente um instalar-se no seio do próprio saber, isto é, possuir o saber. O amor pela sabedoria não exprime posse da sabedoria, nem faz disso um requisito para o saber; o amor da sabedoria exprime, antes, uma relação com o saber, um cuidado ou uma atenção em relação ao saber. Sublinha-se, deste modo, o caminho ou o processo, a aventura em direção ao saber, e não tanto o resultado ou ponto de chegada. E não será a desmesurada ânsia por chegar a qualquer lado uma forma de nos desinteressarmos ou não estarmos atentos às maravilhas do caminho? Se ao empreendermos uma viagem estivermos obcecados pelo ponto de chegada, pelo destino, não teremos olhos para as paisagens que acompanharão a viagem, para a viagem em si mesma 4. A Filosofia convida-nos para uma viagem. Sem grandes certezas sobre até onde essa caminhada nos poderá levar, a Filosofia chama-nos a atenção para saborearmos o caminhar, as sensações que estão associadas ao facto de estarmos em movimento. Em muitas das saborosas viagens que fizemos durante a nossa vida desconhecíamos o lugar para onde nos dirigíamos. Possivelmente até estávamos a fazer essa viagem para conhecer o sítio. Ora, toda a excitação que estaria associada à viagem só pode ter a ver com o ato de viajar, com o deixar de estar imóvel, com o mudar de sítio, de ares, de posição. Portanto, filósofo é aquele que ama a sabedoria, que mantém com a sabedoria essa relação intensa e de proximidade, própria de alguém que, insatisfeito, constantemente vai reatando (atando de novo) essa ligação com o saber. O que melhor reconhece o filósofo não é o conteúdo do seu saber, mas a sua disposição perante o saber, a vontade e a paixão pelo saber. Por isso, afirma um autor que “um filósofo não se reconhece pela sua erudição, mas pelo seu estado de espírito, pela sua atitude face à existência, face à realidade” 5.
2 Bertrand Russell, Os problemas da Filosofia 3 O amor ou amizade deve ser entendido no contexto da cultura grega antiga. 4 Vale a pena, a este propósito, ler o poema Ítaca de Constantin Cavafy. Estabelecendo um paralelo entre a Ítaca e a Filosofia, poderemos dizer que, se no fim da viagem, achares pobre a Filosofia, deverás contudo compreender que foi graças à Filosofia que te puseste a caminho e assim adquiriste as riquezas que foste encontrando e comerciando nos portos que visitaste. A pobre Filosofia ter-te-á dado a maior riqueza: a viagem com tudo o que vai acontecendo no caminho e que só poderemos fruir se não partirmos com ideias preconcebidas sobre o que iremos encontrar.
5 Bruno Giuliani, O Amor da Sabedoria – iniciação à Filosofia, Lisboa, Instituto Piaget, 2002, p. 15. Para concluir depois que a Filosofia é “uma aventura espiritual” (ibid.).
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“A palavra grega filósofo (philosophus) é formada por contraposição a sophos, e designa o que ama o saber, por oposição ao possuidor de conhecimentos, designado por sábio. Este sentido da palavra manteve-se até hoje: é a demanda da verdade, e não a sua posse, que constitui a essência da Filosofia, muito embora ela tenha sido frequentemente traída pelo dogmatismo, isto é, por um saber expresso em dogmas definitivos, perfeitos e doutrinais. Filosofar significa estar a caminho.” (Karl Jaspers, Iniciação Filosófica, Guimarães Editora) §3 – A. Do mito aos primeiros filósofos. O mito enquanto primeiro ensaio duma tentativa de descrição e explicação quase racional do real Todos nós já passámos pela ocasião fascinante de, numa noite límpida de luar, admirarmos o céu estrelado e nos interrogarmos sobre a possibilidade de existência de outros mundo como o nosso, de sistemas solares semelhantes ao nosso, de planetas como o nosso, com iguais condições propícias à vida humana. De certeza que nos interrogámos sobre a existência de outros seres idênticos a nós; e de como poderia naquele preciso momento existir outro ser humano a milhões de quilómetros, contemplando a nossa galáxia, admitindo que estivesse outro ser semelhante com o mesmo tipo de interrogações. O mundo sempre foi fonte de curiosidade e inquietação e ai daquele que não consegue sentir esse estremecimento que naturalmente ressoa em nós quando contemplamos o mundo à nossa volta, visível e invisível. Olhando à sua volta, são muitas as perguntas que surgem no espírito do homem. Uma dessas perguntas prende-se com a origem e funcionamento da realidade. Desde muito cedo que o homem se interrogou sobre como tudo teria começado. Observando a realidade, as coisas vivas que nascem e morrem, desde logo conclui que tudo tem um início, que as coisas evoluem, vão ganhando novas formas. Também deverá ter sido assim com o meio envolvente. Por isso, desde muito cedo que os homens procuraram explicar a realidade, fornecer um sentido aos múltiplos acontecimentos que ocorriam à sua volta. O nascimento das plantas e o surgimento dos frutos, o nascimento e a morte, a sucessão do dia e da noite, os astros celestes e o seu movimento, os rios e os mares. Desde muito cedo que existia toda uma série de eventos e seres que despertaram a curiosidade do homem e que o levaram a tentar formular hipóteses de resposta. As condições rudimentares dessas primeiras tentativas de resposta, conduziram os homens a fazer intervir nesses ensaios explicativos seres fabulosos, dotados de capacidades extraordinárias e mágicas. Nas primeiras explicações do mundo, os homens recorrem aos feitos fabulosos dos deuses e aos atos criadores dos heróis, de figuras sobre-humanas, dotadas de poderes sobre-humanos. As primeiras explicações que o homem formulou não eram explicações de natureza racional, mas antes mágica, pois eram forças mágicas e fantásticas que explicavam os acontecimentos. Os mitos eram, precisamente, narrativas em que se tentava explicar a origem quer do mundo (mitos cosmogónicos, de cosmogonia, isto é cosmos (ordem) + gonia, génese (nascimento)), quer de
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outras formas particulares de existência, mas de importância vital para a comunidade, como por exemplo, a origem do homem, duma aldeia, dum rio, duma montanha, da chuva. Essas tentativas de descrição e explicação têm de particular a intervenção de seres fabulosos. As explicações rudimentares que o homem conseguia formular estavam longe de constituir explicações racionais e muito menos possuíam a aparência de científicas. O pensamento mágico dos primeiros homens possuía a sua lógica, mas não era ainda uma lógica racional. No caso dos mitos cosmogónicos, o que aí se tentava descrever e explicar era a origem do mundo que, em muitos casos, era o resultado duma luta primordial entre as forças do mal e as forças do bem, entre o caos e cosmos, a desordem e a ordem. A descrição da origem do mundo que é feita no Livro do Génesis do Velho Testamento é um bom exemplo dum mito cosmogónico. Essas explicações fantásticas eram perfeitamente assumidas e vividas, na medida em que descreviam a vitória da ordem, isto é, do cosmos. E o mundo, o cosmos, estava ali para demonstrar a vitória dos deuses e de um mundo ordenado e harmonioso. Qualquer ameaça a essa ordem, qualquer acontecimento que viesse destruir essa ordem, representavam um perigo para a segurança da existência humana. Era necessário, então, restaurar a ordem, o que se conseguia através da ritualização dos acontecimentos descritos no mito. Além disso, a Grécia é constituída por um território extremamente montanhoso. Por todo o lado encontramos esse terreno assaz acidentado, que não dá descanso aos homens, obrigados a todo o momento a terem que trepar em ziguezague, por carreiros estreitos. A montanha divide e obriga os homens a instalarem-se em locais que achassem favoráveis, entalados entre a escarpa e o mar, mas que dificilmente comunicavam com os outros lugares povoados. Esta disposição acidentada do território favorece o estabelecimento de cidades independentes, suficientemente perto e prudentemente distantes do mar 6. §3. A Filosofia é filha da polis A Filosofia, segundo a generalidade dos autores e pensando no mundo ocidental, nasceu na Grécia Antiga por volta dos séculos VII – VI a.C.. Ora, isto deve-nos colocar a seguinte questão: porquê na Grécia e não noutro lugar da Europa? O que há assim de especial com a Grécia daquele tempo que fez com que nesse sítio, num determinado momento, se começasse a produzir uma reflexão que consideramos ser a origem da Filosofia, quando não já a própria Filosofia? Vários fatores contribuíram para isso, desde condições políticas e culturais, até fatores geográficos. O extraordinário florescimento cultural que ocorreu durante a época que corresponde àquilo que ficou conhecido como o ‘milagre grego’, o extraordinário desenvolvimento da literatura, da cultura e arquitetura e do teatro, o fim da guerra com os Persas instituindo um duradouro período de paz social e o desenvolvimento da democracia, regime político que, apesar das suas limitações, favorece a expressão e a troca de ideias.
6 Cf. André BONNARD, Civilização Grega – da Ilíada ao Parténon, pp. 23-24.
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A situação geográfica da Grécia também favoreceu o desenvolvimento da Filosofia. E aqui devemos salientar dois aspetos: a montanha e o mar. A Grécia é constituída por um território extremamente montanhoso. Por todo o lado encontramos esse terreno assaz acidentado, que não dá descanso aos homens que se vêm obrigados a todo o momento a terem que trepar em ziguezague por carreiros estreitos. A montanha divide e obriga os homens a instalarem-se em locais que achassem favoráveis, entalados entre a montanha e o mar, mas que dificilmente comunicavam com outros lugares povoados. Esta disposição orográfica acidentada irá favorecer o estabelecimento de cidades independentes, suficientemente perto e prudentemente distantes do mar 7. Se o Mediterrâneo era o ‘umbigo’ do mundo, a Grécia, ou o Mar Egeu, ocupava um lugar central nesse mesmo umbigo, situando-se no cruzamento de rotas comerciais oriundas do norte de África, Próximo Oriente e Península Ibérica, ligando três continentes. O grego esteve pois, desde sempre, em contacto com outras comunidades, outras culturas, outras ideias. O comércio das coisas também significou o comércio das ideias. O contacto com outros povos e outros costumes tornou-o mais aberto para a diferença e mais flexível em relação àqueles que eram diferentes e pensavam de modo diferente, com os seus hábitos e costumes próprios. Este contacto com a diferença também deve ter espicaçado a sua curiosidade e a sua vontade de refletir sobre esse mundo novo. O mar está presente por todo o território grego. A extensíssima linha de costa faz com que nenhum ponto do interior do território grego esteja a mais de cem quilómetros do mar! Por outro lado, uma extensa linha de costa, um território completamente exposto ao mar e virado para fora, onde o homem era, por natureza, um ser dado à comunicação, iluminado por uma luz solar que favorecia o desenvolvimento da racionalidade, tudo estes fatores geográficos e climáticos também favoreceram o eclodir dum pensar curioso, crítico e racional8. Todos nós, uma vez ou outra, devemos ter sentido esse apelo do mar para a reflexão. Diante do mar, contemplando o movimento das suas ondas, essa eterna impermanência e diferenciação constante que é ao mesmo tempo identidade e diferença, uma continuidade diferenciante, uma identidade que se mantém através da sua presença simultaneamente diferente e igual, é impossível que o Grego se mantivesse indiferente e não sentisse o aguilhão da curiosidade e o impulso para pensar. Diante da extensa linha do horizonte, contemplando o mar e essa longínqua linha, cujo espaço para lá dessa linha interpela o homem curioso, somos levados a pensar no que está e existe para lá do que é visível. Essa presença do mar e o seu apelo fazem do mar um elemento muito marcante da cultura grega. Daí a conclusão fundamental de que “o mar civilizou os Gregos” 9.
7 Cf. André Bonnard, Civilização Grega – da Ilíada ao Parténon, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1966, pp. 23-24 8 Para alguns autores, o surgimento duma cultura predominantemente ligada à escrita também é determinante para o eclodir do pensamento racional filosófico. As culturas marcadas pela predominância da oralidade, não conseguem estabelecer uma distância suficiente entre o texto e as condições da sua enunciação, estando assim demasiado marcado afetivamente pelas circunstâncias que rodearam a sua enunciação. Cf. a este propósito, Pierre LÉVY, As tecnologias da inteligência, Lisboa, Instituto Piaget, pp. 118-119.
9 André Bonnard, Civilização Grega – da Ilíada ao Pártenon, p. 28.
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Finalmente, a polis, a cidade, verdadeiro espaço emancipador, criou e alargou os espaços públicos de discussão e deliberação democráticos, onde se refletia sobre a essência do homem e da comunidade, os seus problemas, o seu futuro e o que, nesse sentido, se devia fazer, determinando o surgimento duma nova atitude racional e crítica e dum novo saber que se foi delineando como filosófico. Há quem fale dum «milagre grego» para explicar todo esta produção maravilhosa no campo da cultura e da política e que seriam determinantes para a formação da Europa e do espírito europeu. Também se falaria dum «milagre grego» para explicar (?) o surgimento da Filosofia. Contudo, talvez se deva antes falar da conjugação favorável de vários fatores e do aproveitamento oportuno dessa conjuntura propícia por parte dos Gregos. Assim, para tentar explicar o despontar da cultura grega não seria mais aconselhável recorrer a esse elemento do milagre que acabaria por “substituir uma explicação por pontos de exclamação” 10. §4. O filósofo, distraído ou preocupado? Num dos textos da Grécia Antiga onde pela primeira vez se refere a Filosofia 11, descrevem-se umas festas tradicionais, onde apareciam uns homens que vinham vender mercadorias, outros que vinham comprar e, finalmente, havia uma terceira classe de indivíduos que não vinham fazer nem uma coisa, nem outra: estes eram os filósofos. Deste modo, caracterizam-se os filósofos como alguém desinteressado, que não está preocupado com os interesses materiais. A ideia que relaciona a Filosofia e a sua gratuitidade com um certo desinteresse em relação às preocupações materiais está também, de certa maneira, presente numa anedota que se contava acerca de um dos primeiros filósofos, Tales de Mileto12. Contava-se que este sábio, andando tão distraído com certos problemas que o levavam a caminhar de cabeça no ar, não reparou num poço que estava diante de si e acabou por cair lá. Queria-se, com essa história, dizer que o filósofo era um indivíduo tão distraído com problemas transcendentes que nem reparava num elementar obstáculo colocado aos seus pés. Não contestamos esta interpretação, porque acerca do mesmo Tales de Mileto também se contou que, observando constantemente os astros celestes (chegou a prever um eclipse), conseguiu antecipar um ano de extraordinária produção de azeitona, pelo que procedeu ao aluguer de todos os lagares de azeite da cidade. Aquando da colheita das azeitonas e tendo-se verificado esse extraordinário aumento da produção, os agricultores foram ter com Tales para que este lhes subalugasse os lagares de azeite, onde iriam colocar essa produção. Deste modo, Tales acabou por ganhar muito dinheiro. Ora, daqui também se pode concluir que, de facto e aos olhos dos outros, talvez parecesse que Tales andasse distraído ao olhar para o céu; o problema é que os outros não conseguiram ver o que ele via e por isso não conseguiram
10 André Bonnard, op. cit., p. 34. 11 Trata-se um texto de origem pitagórica. 12 Tales de Mileto é considerado um dos sete sábios da Grécia Antiga. Nasceu em Mileto, na Ásia Menor, por volta de 624 ou 625 a.C. e faleceu em 556 ou 558 a.C. Tales de Mileto considerava que tudo tinha origem na água. Era este elemento primordial que explicava quer a origem do Cosmos como servia de princípio explicativo para todas as mudanças que ocorriam na Natureza.
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prever esse bom ano agrícola. Enquanto Tales fazia previsões acertadas, os seus contemporâneos só conseguiam ver que ele andava distraído! 13 Ou então, como se afirma num provérbio chinês, enquanto o sábio com o dedo para a Lua, o tolo apenas olha para a ponta do dedo. Tales olhava para a Lua, mas os seus conterrâneos, que se julgavam muito espertos, apenas viam nisso um comportamento bizarro. Isto deve-nos levar a uma ideia importante sobre a Filosofia. É que esta, mesmo que nos pareça estranha14, tem a ver com a realidade e, sobretudo, com a nossa vida. Apesar da sua estranheza, convenhamos que uma fórmula matemática, com os seus símbolos esquisitos, é bem mais estranha. Só não o achamos, porque sabemos que com a matemática se podem construir pontes e casas. Essa utilidade imediata afasta imediatamente qualquer ideia sobre o caráter estranho e abstrato da matemática. Ora, a Filosofia não tem a ver com pontes e casas, mas com as pessoas que habitam as casas e passam nas pontes. E, de certo modo, também poderemos dizer que a Filosofia também tem a ver com pontes, a Filosofia permite lançar pontes entre o passado e o futuro, entre o oriente e o ocidente, entre o indivíduo concreto e o Homem na sua universalidade. Pontes bem importantes, por sinal! §5. A alegoria da caverna de Platão e a atitude filosófica Recordemos o que nos conta Platão e que ficou conhecido como a alegoria da caverna no livro VII da República. Em primeiro lugar, deparamos com um grupo de homens agrilhoados no fundo de uma caverna, habituados a contemplar as sombras que iam sendo projetadas na parede de fundo para a qual estavam virados desde sempre. Esses homens, os prisioneiros da caverna, viviam numa situação ilusória, pois tomavam essas sombras como a única autêntica realidade existente. No entanto, as sombras eram o reflexo da realidade exterior à caverna, de homens e mulheres que passavam no exterior. As sombras eram imagens, representações empobrecidas (não eram a cores, não possuíam densidade) da verdadeira realidade. Os prisioneiros viviam iludidos, enganados quanto à verdadeira natureza da realidade. Consideravam que era real o que era apenas reflexo do real. Até que um desses prisioneiros se liberta. O prisioneiro liberta-se quer dos grilhões que o acorrentavam permitindo que ele iniciasse a caminhada difícil para o exterior, como também se vai libertando, agora num ritmo mais demorado, da ilusão em que vivia, simbolizado pelo mundo semi-obscuro em que estava(m) mergulhado(s). A sua libertação é uma caminhada em direção à verdadeira realidade, o mundo exterior à caverna, que irão proporcionar um conhecimento verdadeiro. À realidade autêntica corresponde um conhecimento verdadeiro, tal como à realidade ilusória correspondia um conhecimento iludido. É uma caminhada para a luz, de tal modo que terá, no início, dificuldade em enfrentar a luz. Platão quer-nos assim chamar a atenção para as naturais dificuldades que residem na via do saber; conhecer é uma tarefa árdua, porque neste
13 Como recordava Goethe, ninguém consegue ser herói para o seu criado de quarto! 14 Também se poderia dizer sobre a Filosofia que primeiro estranha-se, depois entranha-se!
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caso corresponde também a enfrentar e a superar as ilusões com que se tinha desde sempre vivido. É muito complicado ter que abandonar as nossas certezas e convicções que se tinha sobre o mundo em que se vivia. No entanto, o prisioneiro que se liberta e ascende ao mundo exterior contempla com admiração e gozo a verdadeira realidade. Até o seu próprio rosto é contemplado pela primeira vez. A célebre divisa de Sócrates, conhece-te a ti mesmo, é aqui evocada através desse momento original em que o prisioneiro vê, pela primeira vez, a si mesmo, descobre a figura do seu rosto. Este prisioneiro que chega ao verdadeiro mundo e ao verdadeiro conhecimento representa a figura do filósofo, tal como Platão a entende. Ele é um indivíduo excecional, que se libertou da condição em que vive a maioria das pessoas, presos nos seus dogmas e convicções. O prisioneiro enfim libertado, o filósofo, chega pois ao verdadeiro mundo, bem distante do mundo de trevas e ignorância em que se encontrava antes de proceder a esta ascensão. Apesar da beleza do mundo que descobre e da alegria que isso provoca, o prisioneiro recém-libertado não se esquece dos seus antigos companheiros de jornada. E decide regressar ao interior da caverna a fim de lhes transmitir a sua experiência e os convencer a acompanharem-no para o exterior. No entanto, a generosidade do filósofo não é recompensada; antes pelo contrário, os seus anteriores colegas, perante o que ele lhes transmite, vão julgar que ele está doido, vão ficar transtornados ou indispostos com o que ele lhes conta e iriam mesmo chegar a vias de facto e tentar eliminá-lo, se pudessem. Platão sabe, pelo que aconteceu a Sócrates, o seu querido mestre condenado à morte pelo poder político de Atenas, que o filósofo corre sempre o sério perigo de ser incompreendido, de os outros não aceitarem o que ele lhes diz porque vai pôr em causa as suas convicções e certezas de sempre, que tinham formatado a sua mente e a sua maneira de ser e estar. No entanto, o filósofo tem responsabilidade para com os outros, sente que existe uma missão e um compromisso da Filosofia para com a comunidade humana. E por isso tenta reiteradamente fazer passar a sua mensagem libertadora. Mas há saberes que não podem ser transmitidos pelo discurso. Há saberes que são tão essenciais que apenas podem ser adquiridos através da própria experiência. A libertação do Homem não é um efeito do discurso, por mais belo que o discurso seja. Aqueles prisioneiros, os homens que nós somos, só se libertarão libertando-se. Uma verdade simples, uma evidência diante dos nossos olhos, mas que mesmo assim nos escapa na maioria das vezes. Ora, uma das lições da alegoria da caverna de Platão é que a libertação do homem passou por uma nova maneira de estar, em que ele próprio construiu o seu caminho, traduzindo-se esse esforço numa conversão do olhar. Os outros continuaram prisioneiros na medida em que o seu olhar continuou dirigido para o mesmo lado; o seu olhar permaneceu igual ao que sempre foi desde o início da sua vida. O que verdadeiramente os prende não são os grilhões e as cadeias, mas um olhar que se fixou, que cristalizou, que foi incapaz de acompanhar o movimento subtil da realidade e de dirigir para o outro lado.
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A atitude filosófica é, se bem interpretamos o texto de Platão, uma mudança de perspetiva, o adquirir de uma nova maneira de olhar e analisar e criticar a realidade. E é também um convite a que cada um trilhe um caminho novo. Por isso é que é importante estar-a-caminho. §5. A – Caraterísticas da atitude filosófica Com a expressão ‘atitude filosófica’ pretende-se referir não um discurso ou um saber estruturado, mas antes uma maneira de estar e de olhar a realidade e os outros. Neste parágrafo é nossa intenção descobrir o que há de específico e próprio na atitude filosófica e que a distingue de outros saberes e olhares. Vejamos, então, algumas das características da atitude filosófica. §6. Historicidade Esta característica tem a ver com o facto de a Filosofia, ou filosofias, serem determinadas, isto é, condicionadas, pela época que as viu surgir. Como qualquer produto cultural, também a Filosofia se relaciona com os problemas próprios de cada época, com as necessidades e anseios da sociedade. Se há problemas que são perenes, que chegaram até nós vindos dos Gregos, o modo como são formulados tem sofrido modificações. O problema da existência ou não de vida para além da morte e o problema da imortalidade da alma, tem sofrido alterações no modo como tem sido colocado pelas diferentes épocas históricas e, consequentemente, pelos diferentes sistemas filosóficos. Por outro lado, há outros problemas que são próprios das diferentes épocas históricas. O problema da liberdade nunca se colocou aos Gregos, enquanto na época que antecedeu a Revolução Francesa, a questão da liberdade era uma questão central. Hoje, os problemas éticos que a manipulação genética da vida humana coloca constituem uma área nova de problemas que nenhuma outra época colocou. Noutro sentido, a historicidade é uma característica da atitude filosófica porque o homem que é objeto da sua reflexão é um homem situado, que só pode ser entendido enquanto ser rodeado de circunstâncias próprias. O homem é um ser de circunstância, ou como dizia Ortega y Gasset, eu sou eu e as minhas circunstâncias, querendo dizer com isso que o homem só se entende na relação que estabelece com o mundo que o rodeia. Dizia Marx 15 que os filósofos não nascem como os cogumelos. Para o filósofo alemão, os filósofos não são um produto espontâneo, mas sim o produto determinado da sua época. Cada Filosofia respira o ar do seu tempo, está impregnada pelo espírito do seu tempo, bem como recolhe das Filosofias que a antecederam, a experiência e a riqueza da reflexão acumulada. É nesse sentido que a historicidade constitui também o seu modo de ser.
15 Karl Marx foi um pensador, teórico da política, historiador e economista, que nasceu em 1818 e morreu em 1883. O corpo dos conhecimentos produzidos, conjuntamente com a produção intelectual do seu companheiro de sempre Friedrich Engels, constituem a base daquilo que ficou conhecido como a teoria marxista.
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§7. Radicalidade Com esta característica pretende-se salientar o facto de a Filosofia não se estruturar como uma visão superficial e acrítica da realidade, tal como é o senso comum. Ao contrário desta visão comum e empírica da realidade, a Filosofia é uma reflexão aprofundada e racional da realidade, que não se contenta com os aspetos superficiais que a constituem. Como a palavra indica, a Filosofia vai até à raiz dos problemas, investigando a primeira causa, o último porquê, não se contentando com respostas imediatas e superficiais. Partindo do pressuposto que a essência das coisas não reside na sua aparência, mesmo que esta a constitua, o conhecimento da verdade implica uma atenção e vigilância constantes, bem como uma postura inquieta e insatisfeita, que a leve constantemente a ultrapassar esse plano imediato da aparência. Como afirmava Heraclito, a essência das coisas gosta de jogar, no sentido de um permanente ocultar-se. A radicalidade enquanto característica da atitude filosófica significa, igualmente, que a Filosofia se opõe ao senso comum, não se prendendo às informações imediatas dos sentidos. É que para captarmos a verdadeira essência das coisas não podemos ficar pela aparência que é dada aos sentidos, mas devemos fazer uso da razão crítica. Como afirmava o provérbio chinês já citado, existe uma diferença essencial de perspetiva de encarar a realidade, quando comparamos a atividade dos sentidos e a atividade da razão.
§7-A. Universalidade A Filosofia ajuda-nos a desenvolver uma visão do mundo, uma conceção do mundo. Uma visão que ultrapassa a nossa vivência quotidiana e a perspetiva imediata que daí decorre. A visão do mundo que desenvolvemos reflete sobre o homem enquanto ser universal, reflete sobre a condição humana. Mesmo que se parta dum homem concreto e situado e do seu viver circunstancial, a Filosofia eleva-se ao universal ao refletir sobre a condição humana – no homem particular que vive, sofre e se emociona, a Filosofia vê a Humanidade viva, sofredora e emocionada. A Filosofia e a sua reflexão, através duma perspetiva totalizadora, elevam-nos ao universal.
§8. Autonomia em relação à ciência e à religião A Filosofia apresenta-se como um saber distinto da ciência e da religião. É com base nesta distinção que podemos falar de autonomia da atitude filosófica. A Filosofia não é uma ciência, distingue-se da ciência por possuir um método e um objeto que são distintos dos métodos e objeto das ciências. Em relação ao método, verificamos que as ciências se foram constituindo enquanto saberes específicos na medida em que construíram métodos próprios, baseados no método experimental. A Filosofia é um saber específico que não pode recorrer à
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experiência; a Filosofia, em termos gerais, baseia-se no método reflexivo — a reflexão racional e crítica é o seu método. Também ao nível do método a reflexão filosófica exibe a sua especificidade. Enquanto que cada ciência foi delimitando um objeto próprio e específico e que correspondia a uma zona delimitada do real, a reflexão filosófica faz da totalidade, o ser enquanto ser, a realidade em si mesma, a condição humana, o seu objeto. Diz-se que o todo é o objeto da Filosofia, enquanto que cada ciência tem como objeto uma determinada parcela do real. Mas a atitude filosófica também se constitui autonomamente em relação à religião. As religiões, monoteístas ou politeístas, sempre fizeram da fé a característica essencial da postura do homem religioso. Uma fé que lhe permite relacionar-se com uma entidade que lhe é apresentada dogmaticamente. Ora, a atitude filosófica não apela à fé, mas antes baseia-se num exame livre e racional dos seus postulados. E estes postulados estarão sempre sujeitos ao livre exame. §9. O carácter discursivo do trabalho filosófico A Filosofia não pode deixar de trabalhar com a palavra e com os textos que corporizam a(s) palavra(s). Por isso nos referimos ao carácter discursivo da Filosofia e do trabalho filosófico. A Filosofia vive de textos. É assim que os filósofos expõem as suas ideias, discutem as ideias dos outros, tomam posição sobre os problemas. Oral ou escrito, o texto filosófico é essencial para a reflexão. E, através dos textos, os filósofos argumentam, justificam e adiantam razões que apoiam as ideias (as teses) que defendem. O carácter discursivo da Filosofia implica uma definição tão rigorosa quanto possível das palavras e dos conceitos que utiliza, bem como coerência na articulação entre os conceitos. §10. Filosofar é argumentar O que é argumentar? Argumentar é apresentar razões em defesa de uma determinada tese, duma determinada posição [ver Posições de L. Althusser]. O texto filosófico é por essa razão, um texto eminentemente argumentativo, que avança argumentos. Na Filosofia, porque não estamos diante duma ciência exata, as posições que se tomam não são evidentes, nem podem ser demonstradas matematicamente. Portanto, temos que argumentar. Ora, o que é um argumento? Basicamente, um raciocínio que encadeia premissas e conclusões, onde as conclusões se retiram das premissas apresentadas, ou onde, uma vez aceites determinadas premissas, somos conduzidos pela força mais ou menos persuasiva da ligação (concatenação) estabelecida entre as premissas e as conclusões. Quando argumentamos em Filosofia, estamos a defender uma determinada posição, elencando argumentos a favor da tese defendida. Ao pretendermos fazer com que o outro
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acompanhe, aceite ou assuma as teses que defendemos, temos que selecionar os argumentos em função desse objetivo, ou estruturando o discurso para que ele ganhe capacidade de persuasão através da sua estrutura. §11. Áreas e temas abrangidos pela Filosofia Tendo a totalidade como objeto da sua reflexão, logo é possível constatar que são múltiplos os assuntos e os temas que cabem na discussão filosófica, originando-se, por essa razão, disciplinas filosóficas, também elas variadas para darem conta dessas variadas problemáticas. No campo da reflexão sobre o homem enquanto membro de um grupo e vivendo numa dada sociedade16, podemos indicar algumas disciplinas filosóficas que serão aí pertinentes: a Axiologia que se dedica ao estudo dos valores, a Ética que estabelece e conduz à reflexão sobre os princípios que deverão orientar a ação humana e a Filosofia Política, que perspetivará o homem como um animal político refletindo sobre o futuro da comunidade humana. Já no campo da reflexão sobre a linguagem, a sua origem e natureza ocupa um espaço próprio na reflexão filosófica. Aí vê-se delimitar algumas disciplinas filosóficas como sejam a Filosofia da Linguagem, a Filosofia Analítica e a Hermenêutica. No campo do conhecimento vemos discutir-se desde a natureza do conhecimento, à existência ou não de uma rutura entre o conhecimento do senso comum ou conhecimento vulgar e o conhecimento científico (e as suas implicações éticas) e o problema da verdade. Esta constelação de problemas gerou o surgimento de várias disciplinas filosóficas como sejam a gnoseologia, epistemologia e a teoria do conhecimento. A experiência humana, enquanto conjunto de acontecimentos humanos significativos, é também objeto da Filosofia. A experiência política, do homem enquanto cidadão, habitante da cidade (polis), a experiência estética, do homem enquanto produtor e espetador do belo artístico e a experiência religiosa, do homem relacionando-se com a transcendência, afirmando-a ou negando-a, também geram disciplinas no seio da Filosofia: Ética, Estética e Filosofia da Religião. Finalmente, cabe também à Filosofia a reflexão sobre a natureza e estatuto de entidades que se situam para além do mundo físico, que é o do nosso viver diário. Disciplinas como a Metafísica e a Ontologia movem-se precisamente nesse mundo inteligível.
16 Já Fichte afirmava que “o homem só é homem entre os homens” – Das man ist nür ein man unter den Menschen.
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Capítulo 2 - O homem construindo-se através da ação §12-A. O que é a ação O homem, desde sempre, que tentou construir um mundo mais habitável, à medida das suas necessidades e dos seus desejos e projectos. O meio que ele encontra no início, nem sempre está disposto da forma mais favorável aos seus intentos. A hostilidade do meio leva o homem a ter que agir. Por isso, ele tem que transformá-lo de acordo com as suas necessidades tem de agir. A cultura representa esse esforço incessante que resulta do confronto do homem com a Natureza. Esse esforço traduz-se no trabalho, num conjunto de atividades tendentes a transformar a Natureza, produzindo coisas novas e transformando as já existentes. O homem age, produz o seu próprio mundo, trabalha e por toda a parte deixa marcas da sua atividade. Ao contrário do animal que age (ou reage) por instinto, irrefletidamente e de acordo com a sua memória genética, o homem age reflectidamente, analisa, pondera e decide de acordo com a avaliação que faz do meio que o rodeia, oportunidades e obstáculos, e das suas capacidades e instrumentos postos à sua disposição. A
ação
humana
constitui
uma
interferência
do
homem
no
decurso
dos
acontecimentos, a produção e provocação de efeitos na realidade que o cerca. Por outro lado, a acção, enquanto algo de exterior e visível corresponde à exteriorização e concretização do pensamento. Embora possamos dizer que há pessoas que em determinados momentos agem sem pensar, tal afirmação não é rigorosa; o que se deveria dizer é que o pensamento que antecedeu a ação foi insuficiente ou desadequado em relação à realidade onde pretendia intervir. As nossas ações são algumas das coisas que nós fazemos. O fazer abrange um campo de actividades e acontecimentos mais amplo que aquele que é designado pelo agir. Tudo quanto realizamos é parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma ação. Por exemplo, realizamos coisas inconscientemente, enquanto dormimos; não temos consciência de que as realizamos isto não são ações. Por outro lado, há coisas que fazemos, mas que não correspondem a uma deliberação da nossa vontade. Há coisas que fazemos conscientemente, mas sem intenção, ex.: tiques nervosos, actos reflexos realizamos isso involuntariamente, apesar de termos disso consciência, constatamos isso enquanto espectadores e não enquanto agentes. O que fazemos involuntariamente também não constituem ações. Reservamos o termo ‘ação’ para as coisas que realizamos consciente e voluntariamente. A consciência e a vontade são elementos integrantes e caracterizadores da ação. Concluindo.
As
acções
correspondem
àquilo
que
realizamos
consciente
e
voluntariamente, não sendo acção do homem o que este realiza estando apenas presente uma daquelas características. Actos do homem são aquilo que realizamos ou sem termos consciência disso ou sem que isso corresponda à nossa intenção ou vontade. As acções humanas têm que ser, simultaneamente, conscientes e voluntárias.
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§12. O que leva o homem a agir? Segundo Fernando SAVATER, o perpétuo inacabamento da realidade humana é a essência da nossa condição humana; a inquietude é o coração do nosso coração e ser humano consiste em procurar constantemente a fórmula da vida humana 17. O homem, ao contrário dos outros animais, nasceu cedo demais, antes de estar desenvolvido e preparado para enfrentar o mundo. Ao fim de dois anos, qualquer bebé é incapaz de sobreviver sozinho; qualquer outro animal, ao fim do primeiro mês já sobreviveria sozinho. O desenvolvimento inicial do ser humano, a sua aprendizagem nos primeiros anos irá ter como objetivo superar essa insuficiência inicial. O seu inacabamento constituirá um impulso que irá orientar e dar sentido ao seu desenvolvimento. A sua intervenção, desde muito cedo, no meio que o rodeia intenta colmatar essas insuficiências que o homem traz consigo, esse inacabamento, esse ser-emvias-de. A imperfeição inicial obriga o homem a agir. Por isso, o homem é também projeto, ser que se lança para diante ou permanentemente lançado para diante, para o seu futuro. O homem, desde sempre, que tentou construir um mundo mais habitável, à medida das suas necessidades, dos seus desejos e projetos. O meio que ele encontra no início, nem sempre está disposto da forma mais favorável aos seus intentos. A hostilidade do meio leva o homem a ter que agir. Por isso, ele tem que transformá-lo de acordo com as suas necessidades, tem que torná-lo mais amigável, mais habitável tem de agir. A cultura representa esse esforço incessante que resulta do confronto do homem com a Natureza e o resultado dessa ação transformadora. Esse esforço traduz-se no trabalho, num conjunto de atividades tendentes a transformar a Natureza, produzindo coisas novas e transformando as já existentes. O homem age, produz o seu próprio mundo, trabalha e por toda a parte deixa marcas da sua atividade. O mundo é a sua casa, mas o homem tem de vencer a hostilidade inicial desse mesmo mundo.
§13. Sentidos da palavra ação usados na linguagem quotidiana e que não deverão ser considerados neste âmbito Quando falamos aqui de ação estamos a referir-nos a ação humana. No entanto, no dia-a-dia, referimo-nos também à ação dos animais e à ação dos elementos. Trata-se dum uso impróprio. Como veremos mais adiante (§15), a ação humana corresponde a algo que fazemos de forma consciente e voluntária. Isso não está presente no comportamento dos animais. O cão que abana a cauda, não o faz porque isso resulte duma decisão do cão ao ver o dono – trata-se não duma ação, mas antes duma reação do animal. Do mesmo modo, podemos falar da ação da chuva ou da ação erosiva do vento. Porém, nem a chuva nem o vente agem: não atuam segundo a sua vontade nem muito menos têm disso consciência.
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Cf. Fernando SAVATER, A coragem de escolher, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004, p. 30.
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§14. A ação humana constitui uma intervenção planeada e pensada Ao contrário do animal que age por instinto, irrefletidamente e de acordo com a sua memória genética, o homem age refletidamente, analisa, pondera e decide de acordo com a avaliação que faz do meio que o rodeia, das oportunidades e obstáculos, bem como das suas capacidades e instrumentos postos à sua disposição. A ação humana, em sentido lato, significa a produção de efeitos, o que implica que algo é modificado ou transformado. Com efeito, agir tem como consequência, na maioria das vezes, uma modificação da realidade que cerca o sujeito. Nesse sentido, a ação humana constitui uma interferência do homem no decurso dos acontecimentos, a produção e provocação de efeitos na realidade que o cerca. A ação humana, neste sentido, modifica a realidade. Foi através da ação dos homens que o mundo se foi tornando num lugar mais acolhedor, de acordo com as suas necessidades, desejos e projetos. Se olharmos à nossa volta constatamos facilmente como a realidade que nos rodeia é já o resultado da ação humana. Todas as coisas apresentam a marca da mão do Homem. No entanto, devemos entender que a ação não se caracteriza apenas pela produção de efeitos externos. Por exemplo, podemos falar duma ação interior, do sujeito sobre si mesmo. Por outro lado, a ação, enquanto algo de exterior e visível corresponde à exteriorização e concretização do pensamento. Embora possamos dizer que há pessoas que em determinados momentos agem sem pensar, tal afirmação não é rigorosa; o que se deveria dizer é que o pensamento que antecedeu a ação foi insuficiente ou desadequado em relação à realidade onde pretendia intervir. Na maioria dos casos, o homem antecipa o que pretende fazer e tenta agir de acordo com o que planeou. Se as coisas não correm como planeado, tal deve-se a diversos fatores, desde uma insuficiente ou desajustada análise e ponderação até à intervenção de causas inesperadas ou imponderáveis.
§14. - A Devemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ação da reação No sentido de percebermos o que é a ação, devemos proceder a algumas distinções e esclarecer melhor o que é o agir. Na nossa vida são muitas as coisas que nos acontecem. Por exemplo, ficarmos constipados ou cair-nos uma bola na cabeça. Isso são acontecimentos, não são ações do sujeito, mas algo que aconteceu ao sujeito. Também existem situações em que temos reações automáticas, instintivas. Por exemplo, quando algo nos passa inesperadamente diante dos olhos e, automaticamente, os fechamos, como defesa. Trata-se, não de uma ação, mas de uma reação, algo que fizemos sem pensar ou planear. Se tivéssemos que pensar e planear a nossa resposta perante o inseto voador que se dirigia para o nosso rosto, acabaríamos por não responder convenientemente a essa ameaça. Pensemos também, a título de exemplo, nas reações que podemos ter quando andamos de bicicleta e um obstáculo surge inesperadamente à nossa frente: nós reagimos automaticamente, desviando-nos desse
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obstáculo ou travando como uma reação por instinto. Se pensássemos na resposta que devíamos dar perante o surgimento do obstáculo, perdíamos o tempo útil de resposta e acabaríamos por não conseguir evitar o choque. Do mesmo modo que distinguimos o plano do agir do plano do acontecer, também devemos distinguir o que é uma ação do que é uma reação. “Por ação (…) entendo coisas como caminhar, correr, comer, fazer amor, votar nas eleições, casar-se, comprar e vender, ir de férias, trabalhar no emprego. Não entendo coisas como digerir, envelhecer ou ressonar.” 18 §15. A consciência e a vontade são elementos que caracterizam necessariamente a ação humana; o agir pressupõe uma atividade consciente e voluntária As nossas ações são algumas das coisas que nós fazemos. Nem tudo o que fazemos constitui uma ação. O fazer abrange um campo de atividades e acontecimentos mais amplo que aquele que é designado pelo agir. Tudo quanto realizamos é parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma ação. Fazer coisas é um aspeto de que se reveste a ação, mas não a esgota. Realizamos coisas inconscientemente, enquanto dormimos; não temos consciência de que as realizamos isto não são ações. Por outro lado, há coisas que fazemos, mas que não correspondem a uma deliberação da nossa vontade. Há coisas que fazemos conscientemente, mas sem intenção, ex.: tiques nervosos, atos reflexos realizamos isso involuntariamente, apesar de termos disso consciência, constatamos isso enquanto espectadores e não enquanto agentes. O que fazemos involuntariamente também não constituem ações. Reservamos o termo ‘ação’ para as coisas que realizamos consciente e voluntariamente e que, nalguns casos mobiliza um saber e um poder técnicos. A consciência e a vontade são elementos integrantes e caracterizadores da ação. Só devemos chamar ações aos aspetos da nossa conduta de que damos conta (de que temos consciência, que fazemos conscientemente) e que efetuamos intencionalmente, isto é, com intenção, ou seja, voluntariamente. Portanto,
as
ações
correspondem
àquilo
que
realizamos
consciente
e
voluntariamente, não sendo ação do homem o que este realiza estando apenas presente uma daquelas características. Atos do homem são aquilo que realizamos ou sem termos consciência disso ou sem que isso corresponda à nossa intenção ou vontade. As ações humanas têm que ser, simultaneamente, conscientes e voluntárias. Conscientes, isto é, quando o sujeito age, ele tem de saber que está a agir e que a sua ação corresponde ao que projetou e desejou. Voluntárias, isto é, as suas ações deverão ser a concretização da sua vontade, da sua intenção, fazendo aquilo que quis ou desejou.
18 John Searle, Mente, Cérebro e Ciência,
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Diz-me o que fazes e dir-te-ei quem és… Quando escolho o curso ou a profissão que quero seguir, não sou apenas o autor das ações que se seguirão em função dessa escolha, como me irei definindo através dessas ações. Aquilo que farei irá contribuir para o desenvolvimento da minha identidade. Eu não sou apenas aquilo que faço e que é escrutinado pelos outros, mas também a soma dos meus desejos e projetos, bem como das minhas frustrações, daquilo que tentei fazer e não consegui. A minha identidade, o que eu sou, é um processo, um permanente movimento, onde as minhas ações constituem elementos determinantes para essa construção da identidade.
§16. A importância da presença da consciência e da vontade no agir do homem Qual é a importância da presença dos elementos consciência e vontade na ação humana? Para responder a esta pergunta vamos analisar as três situações seguintes, partindo do princípio que te caberá a ti avaliar e julgar o comportamento dos sujeitos implicados. Imagina, por exemplo, que és o juiz destes processos e eras que proferir uma sentença… §17. Movimento / acontecimento e ação “Dizer: «estico o braço para mostrar que dou uma volta» é produzir um enunciado que não pode situar-se na mesma categoria que o enunciado «o braço levanta-se»: este descreve um movimento, aquele uma ação; este descreve um movimento que é observado por um espectador, o segundo descreve uma ação do ponto de vista do agente que a fez.” 19 Movimento e ação não são o mesmo. Dum ponto de vista dinâmico, no movimento está implicada a noção de causa com um sentido meramente mecânico, enquanto que na ação está presente a noção de motivo. Do mesmo modo, como já vimos, a ação não é um acontecimento, isto é, algo que acontece. O que acontece é um movimento enquanto observável, desprovido de intenção ou motivo. Se o homem surge aí implicado não o é enquanto agente, entidade ativa, mas enquanto sujeito passivo. Conduzir um automóvel corresponde a uma ação que eu realizo. Ter um furo é algo que me acontece, é um acontecimento para o qual eu não tive nenhum contributo, onde não se manifesta a minha intenção. Matar uma galinha corresponde a uma ação. A galinha morrer constitui um acontecimento, um facto. §18. A rede conceptual da ação: ação intencionada e ação causada Uma ação intencionada será uma ação que é desenhada de acordo com a nossa intenção. Com os fins que desejamos atingir e com a nossa vontade ao serviço da concretização desses mesmos fins.
19 Paul RICOEUR, O Discurso da Ação, p.13
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Uma ação intencionada é uma ação onde está presente a consciência do indivíduo, a ponderação de opções, onde existe uma escolha entre diferentes vias, uma decisão que se associa igualmente à nossa vontade, intenção e motivações. Como afirma William JAMES, “a procura de fins futuros e a escolha dos meios próprios para o alcançar são, assim, a marca e o critério da presença da mentalidade num fenómeno.” Diferente é o caso de uma ação causada. Esta é uma ação explicada por determinantes — genéticas, ambientais, histórico-culturais ou outras —, onde o elemento intencional, racional e ético não é visível, ou se encontra diminuído ou eliminado face ao peso e influência daquelas determinantes. Consoante o peso que atribuímos à influência daquelas determinantes ou à influência da nossa vontade, assim se formaram duas perspetivas opostas acerca da dependência da nossa ação em relação às causas exteriores ou em relação à deliberação da nossa vontade. §19. Perspetiva determinista e perspetiva baseada na ação intencionada Segundo a perspetiva determinista nós somos determinados por causas, somos o produto de causas; toda a ação humana é explicada e é determinada por fatores que têm a ver com a nossa natureza animal, com os nossos genes, com a nossa biologia, por um lado; e com fatores que têm a ver com a sociedade, a época, a educação ou ainda com fatores externos de diversos tipos e que nos ultrapassam (acasos, acontecimentos, obrigações ditadas por outras pessoas, etç.). A nossa liberdade está assim condicionada por esses fatores que acabam por funcionar como os verdadeiros autores daquilo que fazemos e das nossas ações. O sujeito como que se apaga diante desses fatores. Pelo contrário, quanto à perspetiva baseada na ação intencionada, há dentro de nós e nas nossas ações fatores racionais, graus de liberdade, elementos que ultrapassam as causas em si mesmas; há projetos e há intenções; logo, o indivíduo está acima das condicionantes ambientais, biológicas ou outras, escapa desses fatores e como que age exclusivamente partindo da sua vontade imune a esses fatores e ao meio onde o sujeito está. §20. Combinando causas e intenções; o homem é simultaneamente livre e determinado Somos, por um lado, produtos de genes e produtos da educação e de uma época, logo, seres sujeitos a essas condicionantes. A nossa inteligência, as nossas capacidades racionais têm limites. E isso permite ultrapassar, de certa maneira e a alguns níveis, as causalidades de base, as determinantes e condicionantes. Temos também livre-arbítrio, ou seja, capacidade de optar entre o bem e o mal. Em conclusão, há, simultaneamente, causalidade e intencionalidade nas nossas ações. Somos livres sem o poder ser de uma forma absoluta. Não podemos ou não conseguimos realizar tudo o que projetamos ou idealizamos. Por várias razões. A começar, o nosso corpo é, de certa maneira, um limite e uma limitação
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dos planos da nossa vontade. O meu corpo é um limite à minha liberdade, apesar de ser, igualmente, um instrumento e o meio através do qual eu posso realizar a minha liberdade. Mas a realidade que me rodeia também constitui uma limitação à minha liberdade e, portanto, para a minha ação. Por mais vontade que eu tenha de ser pescador, se viver no interior, longe do mar ou de um lago ou de um curso de água, o meu projeto de vir a ser pescador está fortemente condicionado. O meio, para além de poder ser um manancial de oportunidades, é também uma fonte de obstáculos e dificuldades. [a continuar]
§21. Ações voluntárias, atos involuntários e reflexos As ações intencionadas são ações voluntárias, ou seja, assentes no nosso querer, na nossa razão, no pensamento. Nisso distinguem-se das ações involuntárias e das ações reflexas. Parte dos nossos atos é comandada por impulsos e desejos porventura divergentes e difíceis de gerir. As nossas pulsões agressivas e as nossas pulsões sexuais são exemplos disso. Os atos que se associam aos nossos instintos, aos nossos reflexos, à nossa natureza animal, ao nosso lado irracional e emocional, ou que nos são impostas por terceiros ou pelas autoridades, são atos involuntários. Ao contrário, as ações intencionadas são voluntárias. §22. O agente da ação e a relação causal Toda a ação depende de um sujeito, isto é, de um agente, tal como toda a intenção é sempre intenção de alguém. Do mesmo modo, procurar os motivos de uma acção leva-nos a interrogações que nos conduzem ao agente. O agente é, assim, uma espécie de causa da ação. Por isso, afirma RICOEUR que “atribuir uma ação a alguém é, em primeiro lugar, identificar o sujeito da ação”. 20 Trata-se de saber a quem pertence tal e tal ação. A atribuição de um autor a uma ação pode ser uma tarefa simples, mas também pode ser uma tarefa complicada. Por exemplo, quando consideramos as consequências longínquas de uma determinada ação. Vejamos este exemplo: O António está conduzindo um automóvel a toda a velocidade para o Hospital da cidade, porque a sua mulher entrou em trabalho de parto. Entretanto, Manuel, que estava à janela, vê o automóvel aproximar-se a toda a velocidade, ao mesmo tempo que em frente ao seu prédio dois miúdos jogam à bola. Tenta avisá-los e debruça-se da janela, caindo. Felizmente que Manuel cai em cima do toldo da mercearia e não lhe acontece nada. O seu velho tio, que estava na sala, assiste à queda de seu sobrinho Manuel. Como está numa cadeira de rodas e não se pode deslocar não chega a saber que está tudo bem com Manuel, apenas uns
20 RICOEUR, Paul, op. cit., p. 61
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estragos no toldo da mercearia do Sr. José. Graças à queda, os miúdos param de jogar à bola e o automóvel de António passa a toda a velocidade, sem acontecer nada. O mesmo não se pode dizer do pobre tio do Manuel. Ao ver o seu querido sobrinho cair da janela, teve um ataque de coração que foi fatal. Quando Manuel regressou a casa, encontrou o seu tio já sem vida. Será que podemos atribuir a António, que despoletou este processo conduzindo a alta velocidade, as consequências do mesmo, incluindo aí a queda do Manuel e a trágica morte do seu tio. A quem é que o senhor José da mercearia pode pedir que lhe paguem um novo toldo. À esposa de António? E porque não ao seu futuro filho que se lembrou de acelerar o seu nascimento? E poderemos acusá-lo de homicídio involuntário, ainda não tendo nascido? É evidente que esta situação é uma caricatura. Mas dá para ver as dificuldades que poderão existir na identificação de um agente da ação, bem como da importância dessa mesma identificação, como neste caso de apuramento de responsabilidades. A tarefa pode ser complexa, mas há casos em que pode ser fundamental. Imagine-se um choque em cadeia em que entrem vários automóveis... Ou pensemos em situações em que um crime é cometido em regime de co-autoria, isto é, onde vários agentes concorreram para o cometimento da mesma ação e onde poderão existir meros cúmplices. É fundamental saber quem são os autores da ação e determinar o grau de participação na ação de cada um deles de forma a poder, no caso do crime comparticipado, estabelecer a pena ajustada que será necessariamente diferente para cada um deles.
§23. Estabelecer um motivo é responder ao porquê e explicar e legitimar a ação O estabelecimento de um autor para uma ação leva-nos a uma outra noção fundamental na estrutura da ação. Trata-se da relação causal, a relação entre dois acontecimentos, onde um é causa do outro, e este é efeito. Mas identificar a relação causal não é o mesmo que estabelecer o motivo da ação, já que neste caso estamos diante de uma ligação mais íntima e/ou interior na ação que vem justificá-la, torná-la legítima, necessária. O motivo, ao responder à questão do porquê esclarece a ação, torna-a inteligível. Entre os modos de tornar inteligível uma ação é relacioná-la com normas. A razão de ser de uma ação não apenas a explica, como a legitima. É nesse sentido que vai o texto de RICOEUR: “ [...] a relação causal é uma relação contingente no sentido de que a causa e o efeito podem identificar-se separadamente e que a causa pode compreender-se sem que se mencione a sua capacidade de produzir tal ou tal efeito. Um motivo, pelo contrário, é um motivo de: a íntima conexão constituída pela motivação é exclusiva da conexão externa e contingente da causalidade.”21
21 Paul RICOEUR, O Discurso da Ação, p. 51
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§24. Intenção e motivo “Intenção e motivo são noções conexas; o motivo é motivo de uma intenção. [...] A relação é tão estreita que, em certos contextos, motivos e intenções são indiscerníveis, em particular quando a intenção é explícita. [...] pode, no entanto, dizer-se que, inclusive, nos casos de extrema proximidade, intenção e motivo se distinguem em virtude de não responderem à mesma pergunta: a intenção responde à pergunta quê, que fazes? Serve, pois, para identificar, para nomear, para denotar a ação (o que se chama ordinariamente o seu objeto, o seu projeto); o motivo responde à questão porquê? Tem, portanto, uma função de explicação; mas a explicação, já vimos, pelo menos nos contextos em que motivo significa razão, consiste em esclarecer, em tornar inteligível, em fazer compreender.” (Paul RICOEUR, O Discurso da Ação, pp. 50-51) §25. O trabalho humano e a atividade dos animais O que distingue o pior dos arquitetos da abelha mais habilidosa? O que distingue a ação humana da atividade dos animais? No homem nós temos presente a consciência da sua ação, bem como dos resultados da mesma. O resultado da ação humana pré-existe idealmente, na cabeça do agente, à exteriorização da mesma. O homem planeia a sua atividade e prevê os seus resultados; existe no sujeito humano um trabalho de conceção mental que é prévio à sua execução. Pelo contrário, o animal age instintivamente, obedece aos seus instintos e atua no plano do imediato. O animal não ultrapassa o momento imediato, situa-se no plano do aqui e agora. O animal não age, antes reage. O homem não é dominado pelos instintos, antes concebe e aplica um plano: o que a sua mão realiza foi concebido previamente pelo cérebro. O trabalho manifesta a inteligência criadora do homem sobre a realidade envolvente. Neste sentido, apesar de tudo, existe uma superioridade do arquiteto mais desastrado sobre a abelha mais capaz. Afirmava PROUDHON em Création de l’ordre dans l’humanité: “O trabalho é a ação inteligente do homem sobre a matéria. O trabalho é o que distingue (...) o homem dos animais; aprender a trabalhar é o nosso objetivo sobre a terra.” §26. O trabalho enquanto forma particular de ação. Trabalho e projeto. “Tal é o trabalho humano: um plano que convida à realização, uma previsão que leva à efetivação, uma intenção que precede o ato, o interior do homem que se exterioriza e que, graças a essa exteriorização, se enriquece e se reconhece. O trabalho humano une a mão e o cérebro, o cérebro tem necessidade da mão para se manifestar enquanto a mão não pode agir sem que o espírito a dirija.” 22
22 Henri ARVON, A filosofia do trabalho, p. 43.
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No âmbito da ação, o trabalho representa uma das suas formas particulares. Decerto, a mais essencial e fundamental, tendo em conta a longa caminhada da humanidade e o seu constante esforço no sentido de dominar a natureza e colocá-la ao seu serviço. Existe no homem a dimensão do projeto. Só o homem existe na dimensão do projeto. Só o homem projeta. E projetando-se, projeta-se, o homem projeta-se. E é porque se projeta que se pode rever na obra produzida. Só há projetos para o futuro. O futuro é o tempo próprio do projeto, mesmo quando este se formula no tempo presente. Ele encontra-se vê-se a si mesmo na obra que realiza. O mundo à sua volta, que é obra sua, é ainda o homem realizando-se. Quando olhamos para as coisas que fazemos, vemos nelas um pouco da nossa história. “A obra reflete a imagem do espírito que a concebeu. Essa imagem permanece confusa enquanto a obra serve apenas a satisfação das necessidades vitais, torna-se nítida à medida que a obra se desembaraça de toda a necessidade exterior para atingir a «gratuitidade». É então que o trabalho, que é descoberta do homem por si próprio, cumpre totalmente a sua função.”23 O trabalho realiza o homem, exterioriza as suas expectativas, os seus desejos, os seus projetos. Tal como a ação manifesta o homem. O resultado da sua ação é o homem exteriorizado. Ao agir, exteriorizo-me, manifesto a minha essência, isto é, aquilo que sou – qualquer obra reflete o seu autor e isso é ainda mais evidente na criação artística. Aqui, o agente criador, livre de toda a necessidade e pressão, possui toda a disponibilidade para agir e criar de acordo com a sua vontade e imaginação, dando largas à sua subjetividade. Nesse sentido, será ao nível da criação artística que a obra melhor revela a essência do seu criador. A sinfonia nº 3 de Beethoven reflete melhor a sua personalidade que o conjunto de listas de compras que ele tenha elaborado durante toda a sua vida. A obra de arte é a obra que exprime melhor aquilo que o seu autor é, pretende ser e / ou pretende que os outros vejam nele. §27. Ação livre e responsabilidade Em que condições é que podemos falar de uma ação livre? Ora, a ação só é livre quando o sujeito age de acordo com a sua vontade, consciente do que está a fazer e das consequências que dessa ação resultem. O sujeito não age livremente porque não existam limites ao seu agir; antes pelo contrário, o sujeito é livre e age livremente porque reconhece as limitações e joga com elas, tira partido dessas limitações. Ora, a partir do momento em que o sujeito age livremente, pode ser responsabilizado pelo que aconteça. É responsável pelos seus atos e suas consequências.
23 Henri ARVON, A filosofia do trabalho, p. 41,
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Só o sujeito que age livremente é que é responsável pelos seus atos e pelas consequências dos seus atos. Só aquele que age voluntariamente está em condições de assumir plenamente a autoria dos seus atos e só a esse sujeito é que é possível exigir “responsabilidades”. Se a vontade do sujeito fosse manipulada ou adulterada, então nunca poderia ser responsabilizado pela sua ação, mas seria sim aquele que dominaria a vontade do sujeito. Se apontam uma arma à cabeça do sujeito para que ele furte um sabonete do supermercado, não pode ser totalmente responsabilizado por esse furto. Se a sua vontade estava a ser condicionada dessa maneira, ao ponto desse sujeito agir contra a sua vontade, não se lhe podem assacar responsabilidades pelo furto do sabonete. A responsabilidade deve cair sobre quem apontava a arma. Só um sujeito livre pode ser considerado responsável e responsabilizado. Ser responsável ou ser responsabilizado significa que deve arcar com as consequências da ação, isto é, do que acontece como consequência da ação. Quando ele é responsabilizado, vai arcar com o peso da sua decisão. Por isso, um sujeito que se sabe responsável, não decide de ânimo leve, de forma imediata, não ponderada. Ele sabe que a sua ação inicia uma série de reações em cadeia. Com o seu agir a realidade transforma-se e já não é mais igual ao que era. É por isso que, em termos do direito, a responsabilidade assume-se repondo a realidade tal como era antes da intervenção do agente. Só há lugar a indemnização em dinheiro quando já não é possível a reposição da situação original24. Em termos jurídicos (que segue de perto o significado filosófico) aquele que é responsável é aquele que é autor da ação e que deve repor o estado de coisas anterior à ocorrência da ação danosa. Por exemplo, se o meu automóvel destruir o muro do vizinho e eu for responsabilizado por isso, então serei eu o responsável e quem deve repor o muro tal qual ele existia antes do automóvel o ter destruído (ação danosa). Portanto, ser responsável significa ter que, “aguentar” com as consequências. No caso, reconstruir o muro ou indemnizar o dono do muro, dando-lhe a quantia de dinheiro que compense o dono do muro do prejuízo que teve ou possa ter enquanto o muro não for reconstruído 25.
§28. A culpa. Negligência e dolo. Próximo da noção de responsabilidade temos a noção de culpa. A culpa é o sentimento que o sujeito experimenta quando sabe que é responsável por determinada ação. Associada à noção de culpa está a noção de intenção: o culpado da situação x é aquele que teve a intenção de provocar a situação x. Isto quer dizer que agiu com a vontade de provocar a
24 Era o que aconteceria, por exemplo, se alguém destruísse um quadro pintado por um pintor famoso. Seria impossível repor a situação original.
25 Imagine-se que, enquanto o muro está destruído e aproveitando esse facto, fogem-lhe da sua propriedade, o rebanho de ovelhas que ele possuía. Neste caso a indemnização deve contemplar este prejuízo. Como também pode contemplar os lucros que o dono do muro deixou de ganhar. Imagine-se que durante o tempo que o muro está destruído alguém vem adquirir essa propriedade por um valor inferior por causa do muro destruído.
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situação x. Será, pois, culpado pela situação x. No sistema penal português distinguem-se dois graus de culpa: negligência e dolo. Agiu com negligência aquele que agiu descuidadamente, possuindo o dever de agir doutro modo, e nesse sentido é responsável pela situação criada. Imaginemos a seguinte situação: Antonieta, funcionária do jardim-escola não se apercebeu que uma criança que estava à sua guarda tinha corrido para a estrada onde foi atropelada por um automóvel. Veio a provar-se que Antonieta, naquele momento, estava a mandar uma mensagem pelo telemóvel para a namorada. Neste caso será culpada por negligência. O que não é o mesmo que agir dolosamente. Neste caso, agiu com dolo aquele que agiu com a intenção de provocar uma determinada situação. Veja-se o caso de uma funcionária do jardim-escola, Belarmina, que dissesse à criança (filha de um ex-namorado que ela detesta) para ir brincar para o meio da estrada sabendo que assim iria ocorrer um acidente. Nas duas situações existe culpa, mas em graus diferentes: Antonieta foi negligente, mas Belarmina atuou dolosamente. É por isso que na atribuição de uma pena o juiz irá distinguir se o arguido agiu negligentemente ou dolosamente. A negligência é uma forma de culpa menos censurada ou penalizada que o dolo 26.
§29. Algumas notas sobre o existencialismo: o homem está condenado a ser livre O existencialismo é uma corrente filosófica à qual ficou ligado o nome de Jean-Paul Sartre, como seu principal representante. As principais obras deste autor vieram a lume na segunda metade do século vinte, concretamente após o fim da IIª Guerra Mundial. Para aquele filósofo distingue-se a essência da existência. No mundo das coisas, a essência (aquilo que a coisa é) é anterior à existência (o estar da coisa diante do sujeito). Uma cadeira é definida previamente na cabeça do carpinteiro que a projeta e só depois é a passa a existir. No caso da cadeira, primeiro esta é (na cabeça e nos planos do carpinteiro) e só depois é que existe. A existência da cadeira está condicionada e limitada por aquilo que o seu criador planeou previamente: a cadeira acaba por ser e existir de acordo com o que seu criador (por exemplo, o carpinteiro) planeou mentalmente, isto é, idealizou. No caso do homem, passa-se algo completamente diferente. Segundo Sartre existe no homem uma anterioridade da existência sobre a essência. Isto quer dizer que o homem primeiro existe e só depois é que é, quer dizer, só depois é que se vai definindo, construindo as suas qualidades. Para Sartre, Deus não existe e, portanto, não existe nenhum ser que criou o homem. Ninguém criou o homem. É ele que se cria a si mesmo. Para isso, primeiro existe e só depois é que é — a existência é anterior à essência. No caso do homem, ele não está limitado por nenhum plano prévio. O homem não tem que conformar a sua vida segundo o projeto de um Deus qualquer. Porque Deus não existe, o homem é radicalmente livre, é ele que se inventa a si mesmo, é ele que
26 Para o nosso Código Penal existem até atuações que só serão crimes em caso de dolo; a negligência não é penalizada do ponto de vista do Direito. Como veremos mais à frente, isso não significa que não haja um juízo de censura social e a negligência não seja penalizada do ponto de vista moral.
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cria a sua essência, é ele que constrói o que quer ser. O homem não encontra nenhum sinal, nem nenhuma indicação a mostrar-lhe o caminho que deve seguir. Segundo o Existencialismo, cada homem é livre para seguir o que quiser. Mais, como dizia o poeta espanhol Antonio Machado, “não existem caminhos, fazem-se a caminhar”. Se Deus existisse, o homem não era livre, pois a sua existência estava determinada e ele teria que existir de acordo com essa essência. Sem Deus, cada homem “está só e sem desculpas” ou como diz a canção “não há estrelas no céu / a dourar o meu caminho”. O homem é livre para o fazer, como também é responsável e responsabilizado por isso. A todo o momento, o homem escolhe, mas não existe ninguém a indicar-lhe um caminho. O homem só se escuta a si mesmo, é ele que constrói a sua essência. Se Deus existisse e tivesse criado o homem, este poderia sempre admitir a vontade divina como responsável por aquilo que ele é e desculpar-se com isso. Deus dá jeito a quem não quer arcar com o peso da responsabilidade, quem quer fugir diante das suas responsabilidades. Neste sentido, quem acredita em Deus vê nele um bom refúgio para demitir-se da construção da sua essência e da própria realidade. Quem não acredita, tem de ficar com o peso e as consequências da sua escolha. §30. Classificação das condicionantes da ação humana O homem é um ser completamente exposto às influências do meio social, cultural e natural, sempre aberto aos outros, completamente permeável às influências do exterior. Por outro lado, é um ser inacabado e imperfeito, donde a necessidade de agir, de se transformar e transformar a realidade de acordo com as suas necessidades. O homem não é, assim, um ser fechado sobre si mesmo. Por isso se diz que o homem é um ser de relação. Também no mesmo contexto de ideias, note-se a afirmação do Ortega y Gasset: “ Eu sou eu e a minha circunstância”. Com esta afirmação o filósofo espanhol quer-nos dizer que na identidade e no conhecimento de qualquer um teremos de ter em conta o contexto em que o próprio sujeito se encontra. O homem não se pode definir isolado da realidade e dos outros. A sua estrutura anatómica-fisiológica aponta precisamente para essa interpenetração do sujeito com a realidade que o envolve, seja a realidade física ou a realidade cultural ou ainda a realidade social. O homem está na dependência do mundo, um mundo de coisas e pessoas, e este constitui fonte de limitações para a sua ação, mas também um conjunto de oportunidades e recursos postos à sua disposição. Esta situação particular de um ser dependente do mundo, aberto ao mundo e interagindo com o mundo, leva a que o homem não possa contar apenas consigo, mas tenha que levar em linha de conta com um conjunto de fatores que envolvem o sujeito e que o definem. O sujeito não se compreende isolado dos outros, porque apenas se desenvolve na interação com os outros. É assim que acontece quando consideramos a perspetiva filogenética e a perspetiva ontogenética, isto é, quer consideremos o homem na sua evolução individual desde a fase de criança até ao estado adulto (filogénese), quer consideremos a evolução da própria espécie humana e o processo de hominização (ontogénese). Nestes dois processos
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evolutivos o homem desenvolve-se na medida em que se relaciona com os seus semelhantes e realiza trocas com o meio exterior. Esta interdependência entre o homem e o meio que o envolve faz com que a sua ação nunca possa depender exclusivamente da sua vontade. Todo este percurso acontece estando o homem mergulhado numa determinada situação que o rodeia e influencia sob diversas formas. Ele não age de uma forma absolutamente livre. Existem fatores que condicionam e limitam a ação humana. Estas condicionantes da ação humana podem dividir-se segundo a seguinte classificação: condicionantes biológicas, histórico-culturais, psicológicas e físicas. O facto de o homem estar situado numa determinada sociedade e numa determinada época coloca limitações à própria atividade humana. A começar, devemos considerar as condicionantes sócio-culturais ou histórico-culturais, ilustradas por todo um conjunto de produtos culturais e sociais que estruturam a sociedade e asseguram o seu funcionamento mais ou menos regular: hábitos, costumes, normas de convivência social, leis, imperativos religiosos e morais, valores, tudo isto constitui uma constelação de princípios e regras que limitam a atividade humana. Condicionam, mas não são barreiras intransponíveis, porque todos nós sabemos que, nalguns casos, a atividade humana vai contra esses princípios e regras. O Código da Estrada assegura o regular funcionamento do trânsito na medida em que informa os condutores sobre o que se pode e não se pode fazer. Mas a existência das normas do Código da Estrada não asseguram só por si que não haja transgressões. Aquelas normas condicionam a ação dos condutores, mas não são limites absolutos. Mas existem outras limitações ao exercício da vontade. A estrutura e funcionamento do nosso corpo são também condicionadores da ação. Eu não posso estar debaixo de água mais do que determinado tempo e por mais vontade que tenha em voar, eu sei que não o posso fazer. Existem, deste modo, outro tipo de condicionantes que designaríamos como condicionantes biológicas e que são transmitidas geneticamente. Trata-se de condicionantes que têm a ver com a estrutura e funcionamento do nosso corpo. De notar, contudo, que o nosso corpo possui um duplo sentido: por um lado constitui uma condicionante da ação humana, por outro lado é com o corpo e é através do corpo que eu ajo e intervenho no mundo. O meu corpo é um limite, mas também um instrumento da vontade, o veículo para a concretização do meu pensamento. É através do meu corpo que eu exteriorizo as ideias da minha mente. Nesse sentido, eu realizo a liberdade através do meu corpo. O corpo é um instrumento ao serviço da ação, mas também limita a própria ação, na medida em que eu não posso agir para lá daquilo que o corpo me permite. O sujeito age dentro dos limites que são impostos pelo corpo, instrumento da ação, o corpo está ao serviço da liberdade, porque é através dele que eu manifesto o meu ser livre, mas ao mesmo tempo, o corpo condiciona a liberdade, ele é a fronteira da vontade. Mesmo com uma vontade intensa e esclarecida eu não posso voar ou viver debaixo de água. É verdade que eu posso ir alargando esses limites, quer porque eu posso ir treinando o corpo, e ganhar mais destreza física, quer porque eu posso socorrer-me de meios mecânicos
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para ampliar esses mesmos limites (quando eu uso um telescópio eu amplio a minha capacidade de visão) contudo, alargar os limites do meu corpo não significa que alguma vez eu possa dispensa-lo da execução da ação. As condicionantes biológicas não estão fixas. Na evolução da espécie humana, verifica-se que o homem progride na medida em que depende cada vez menos do corpo que foi transmitido geneticamente, construindo artifícios técnicos que o ajudam a ultrapassar as suas limitações biológicas. Para além do corpo, também a personalidade de cada um condiciona o seu modo de agir. Existem certas maneiras de ser que fazem com que o indivíduo seja mais passivo ou indiferente face ao mundo e, nesse sentido, menos propenso a agir. A ação de uma pessoa, a sua intervenção no mundo, pode ficar condicionada por causa de um temperamento mais envergonhado ou reservado. Neste caso, estamos a falar de condicionantes psicológicas que se relacionam com o psiquismo humano. Finalmente, também poderemos entender que o meio físico onde a ação se concretiza condiciona o agir humano. Pense-se, por exemplo, no trabalho agrícola e como ele está dependente e condicionado por um conjunto de fatores, tais como a natureza dos solos, a existência ou não e cursos de água, a existência ou não se solos apropriados ou terrenos acidentados, o clima. Quer isto dizer que poderemos também considerar a existência de condicionantes físicas ou ambientais. O vasto elenco de fatores que condicionam a ação humana leva-nos à conclusão de que o homem e a sua vontade estão limitados por determinados fatores que, contudo, não são obstáculos intransponíveis. Se assim fosse, não haveria nenhuma margem para a liberdade e vontade humanas. Ora, nós constatamos facilmente que o homem tem, em muitas ocasiões, a possibilidade de escolher algo e de recusar algo. Todas as vezes que eu ajo, eu sei também que poderia ter feito mais ou menos do que fiz, que poderia sempre ter feito diferente. Todas as vezes que eu levo por diante uma ação, eu sei que escolhi e rejeitei alternativas, caminhos diferentes daqueles que acabei por seguir. Isso significa que o homem é livre para escolher, mesmo que condicionado por inúmeros fatores. §31. O que é o determinismo. Diversos tipos de determinismo Uma das questões que se coloca à reflexão da Filosofia é a de saber se o sujeito quando age é ou não livre. Ora, nós afirmaremos que o sujeito é livre se, quando age, o faz na ausência de qualquer forma de coação que determine ou encaminhe a vontade do sujeito numa direção que não corresponde ao que ele deseja. Imaginemos que alguém me aponta uma arma à cabeça e diz: «Se não assinares esse documento, disparo e estoiro-te os miolos!» Mal oiço isso, apesar de não ser essa a minha vontade, decido-me a assinar. Eu decidi assinar o documento, mas agi de forma livre? À partida poderíamos dizer que foi o sujeito quem decidiu assinar. Logo, parece que ao assinar eu estou a executar uma decisão minha. Só que se atendermos ao contexto, percebemos que a vontade foi coagida, o sujeito foi levado a
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fazer algo que não correspondia ao que em última instância desejava. Se não existisse a arma apontada à cabeça, eu nunca assinaria. E era precisamente por saber isso que o outro me apontou a arma e exerceu esse poder sobre a minha vontade. Nesta situação poderíamos dizer que o sujeito não agiu de forma livre. Mas esta situação não corresponde ao que normalmente se passa com as minhas decisões. Nunca tive uma arma apontada à minha cabeça, para que decidisse de uma determinada maneira: para comer a sopa toda do prato, vestir um casaco horrível, ficar a estudar em vez de ir ao cinema, não foi preciso que me apontassem uma arma, proferindo ameaças de morte. Mas será que, quando decido duma determinada maneira, não existiram outros fatores que exercem o seu poder sobre a minha vontade levando-me a agir num determinado sentido? [incompleto] A liberdade humana não é absoluta. Como facilmente já vimos existem limitações que incidem sobre o homem e a sua vontade. Segundo alguns autores o homem está submetido a diversos tipos de determinismo. Determinismo físico Significa a conceção do universo em que os fenómenos ou acontecimentos estão de tal maneira relacionados uns com os outros que uma inteligência, capaz de conhecer todas as circunstâncias da evolução do universo num momento dado, poderia prever qualquer acontecimento futuro. Todos os acontecimentos estão interligados entre si em termos de causa e efeito, todos os acontecimentos são causa e efeito uns dos outros e onde o homem acaba também por ser determinado pela realidade física. Neste sentido, o homem não é livre pois acaba por agir determinado pelo turbilhão da realidade externa. É este determinismo que serve de base à indução das leis científicas. Determinismo biológico É a posição segundo a qual não há traços humanos que não sejam produto biológico. A vida de cada homem seria condicionada por certas limitações impostas pela herança biológica. Haveria, por exemplo, alguns mecanismos neurofisiológicos e modos de comportamento que seriam muito difíceis ou mesmo impossíveis de modificar. O homem seria consequentemente desresponsabilizado pelas suas tendências e pelos seus atos, na medida em que tudo aquilo que ele faz deve ser explicado não pela sua vontade mas através do funcionamento do seu corpo. Para algumas tendências mais radicais, como por exemplo no âmbito da biossociologia, mesmo os valores, como o patriotismo, teria um fundamento biológico. Determinismo psicológico É a tese segundo a qual todo o comportamento livre e espontâneo é determinado por antecedentes psíquicos de ordem afetiva (crenças, desejos, temores, etc.) ou de ordem intelectual (motivos). Esta forma de determinismo nega a liberdade humana.
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Determinismo sociológico Considera que o comportamento do indivíduo é um produto da cultura, ou seja, dos hábitos coletivos, adquiridos por aprendizagem social e transmitidos de geração em geração. A cultura modela a personalidade, influencia os valores, as crenças e atitudes. Condiciona, portanto, a maneira de ser, de pensar e de agir do homem.
§31 – A. A crença no destino como forma de determinismo O homem que se afirma a si mesmo, assumindo a sua liberdade, afirma-se como senhor do seu destino. Mas há também quem afirme que o destino do homem já está traçado de uma vez por todas e que tudo o que acontece no mundo corresponde à Providência Divina e à vontade de Deus. Para esses, o homem não é livre, é uma espécie de marionete, cuja vida é manipulada a partir do Além. Esta posição também pode ser muito cómoda para quem não quer assumir a responsabilidade pela sua condição e situação. Atribuir a Deus a causa de tudo o que acontece é afastar o homem do seu próprio caminho e da sua história. Quem assim pensa tem, sobretudo, medo que os homens sejam senhores do seu destino e da sua vida e expulsem definitivamente os deuses da sua realidade. §32. Consciência, vontade e responsabilidade Como já atrás vimos, as ações humanas envolvem a consciência e a vontade humanas. A consciência e a vontade são elementos intrínsecos à ação, sem os quais não poderíamos dizer que estávamos diante de uma ação humana. A liberdade e a ação livre concretizam-se através de um processo em que o homem (o agente) sabe o que faz e faz o que deseja fazer. A ação só é livre se o sujeito agir de acordo com a sua vontade, consciente do que está a fazer e das consequências de que daí resultam. O sujeito é livre e age livremente, não porque não existam limites / limitações ou barreiras à sua ação, mas porque reconhece essas limitações e joga com elas. A partir do momento em que o sujeito age livremente, de acordo com a sua vontade e consciente do caminho que iniciou, então o sujeito é também responsável pelos seus atos e pelas consequências destes. Só um sujeito livre pode ser responsável e responsabilizado. Se a vontade do sujeito fosse manipulada por indivíduos estranhos, por exemplo, então a responsabilidade recairia sobre estes e o sujeito nunca poderia ser responsabilizado. Se o sujeito é livre e sabe o que faz, então também é responsável, é sobre ele que recaem as responsabilidades do que acontecer como consequência direta do seu agir 27. Ser responsável significa assumir as consequências do que acontece devido à sua iniciativa e à sua ação.
27 Se não fosse a consequência direta, então poderíamos cair numa situação absurda em que o sujeito seria responsável por tudo o que acontecesse na sequência dos seus atos, mesmo tratando-se de uma consequência longínqua. Imagine-se que o senhor Albino provoca um acidente. Para além dos acidentados que aí aconteceram, seria também responsável por situações distantes como, por exemplo, pela vizinha do acidentado que escorrega na escada quando recebe a notícia do acidente!
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Quando o sujeito é responsabilizado ele vai arcar com o peso da sua decisão. Por isso, em certas condições, um sujeito responsável não decide de ânimo leve. Ele sabe que a sua ação pode dar início a uma série de consequências e reações em cadeia. Com o seu agir a realidade transforma-se e já não é mais igual ao que era. É por isso que, em termos do direito, a responsabilidade assume-se através do pagamento de uma indemnização que deverá, na medida do possível, repôr a realidade tal como era antes da intervenção do agente28. Na medida do possível, pelo que haverá lugar a uma indemnização pecuniária quando não for possível a reposição da situação originária 29. Há uma íntima ligação entre liberdade e responsabilidade. Se o sujeito não fosse livre, nunca seria responsável. Nesse sentido, muitos olham a liberdade como uma espécie de condenação30. Então, optam pela moral dos escravos, porque não querem aguentar com o ‘fardo’ da liberdade. Preferem ser mandados a assumir o peso da responsabilidade pelas suas decisões. Só que o homem só se afirma a si mesmo assumindo a sua liberdade, afirmando-se como senhor do seu destino. Mas também aqui há quem afirme que o destino do homem já está traçado de uma vez por todas e que tudo o que acontece no mundo corresponde à Providência e ao cumprimento da vontade de Deus. Para esses, o homem não é livre, é uma espécie de marioneta, cuja vida é manipulada a partir do além. Esta posição também pode ser muito cómoda para quem não quer assumir a responsabilidade pela sua condição e situação. Atribuir a Deus a causa de tudo o que acontece é afastar o homem do seu próprio caminho e da sua história. Quem assim pensa tem sobretudo medo que os homens sejam {ver o já impresso}
28 Isto no caso do ordenamento jurídico português. Noutros ordenamentos, onde as indemnizações podem atingir valores astronómicos, a indemnização tem também a função de penalizar o infrator, com o objetivo de do dissuadir de voltar a praticar a ter uma conduta prejudicial.
29 Por exemplo, quando da ação resulta a morte de alguém ou a destruição de um bem original, infungível. Nestes casos não será possível repôr a situação anterior á conduta negativa.
30 Era Sartre que afirmava que estamos condenados a ser livres.
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Capítulo 3 - O mundo não é indiferente ao homem: os valores
§33.-A A cultura ocidental e os valores A cultura ocidental carateriza-se entre as demais, nomeadamente, pelo cultivo de um elevado conceito de si mesma, o que viria, aliás, a constituir um poderoso e eficiente fator de dinamismo, de auto-superação e de expansão. Ao longo da história, no contacto com outras culturas, foi levada, algumas vezes, a desprezá-las, considerando-as insignificantes ou atrasadas. Estariam, por isso, destinadas a serem dominadas e instruídas por uma cultura que se afirmava como superior. O imperialismo cultural tem sido, assim, uma das caraterísticas da cultura ocidental. Tal imperialismo já se notava no modo como os Gregos, na Antiguidade, consideravam aqueles que não eram gregos: eram os bárbaros, porque não partilhavam dos valores da cultura grega e surgiam com outros valores e costumes. Mas esse imperialismo também se manifestou no expansionismo que se registou a partir do século XV e de que Portugal foi um notável protagonista. Pretendia-se aí levar aos outros povos as luzes da civilização (ocidental), para os arrancar do estado selvagem em que se achava que estavam mergulhados. Ocorreram, assim, processos de missionação, aculturação e educação, transmitindo e inculcando as conceções ocidentais da vida e do mundo, das técnicas e da religião, dos costumes e dos valores. No entanto, é precisamente no nosso século que se adquire consciência deste processos e que se começa a exigir e reconhecer o direito ao pluralismo das culturas e o direito à diferença cultural. Ao mesmo tempo, contra o que pensavam os filósofos dos séculos XVIII e XIX, não vivemos num processo de progresso contínuo e ilimitado a todos os níveis, crença para a qual muito contribuíram a ciência e a técnica do século XIX. Instala-se, assim, a suspeita de que não só o progresso não é contínuo e ilimitado, como a cultura do Ocidente não se revela nem a única, nem a melhor. Somos, deste modo, conduzidos a uma conceção menos absolutista e mais relativista. O Ocidente, afinal, também está sujeito a crises e a fenómenos catastróficos, a desastres e a retrocessos, a calamidades e a tristes espectáculos da miséria humana. Com efeito, começamos a descobrir como lei fundamental dos fenómenos culturais não o progresso contínuo, mas uma dialéctica entre a tradição e a criação dos valores. Ora, os valores não são algo de absoluto nem de fixo, de imutável ou eterno, mas, pelo contrário, o resultado de uma intervenção criadora dos homens e, por conseguinte, podem ser alterados e ultrapassados pelos próprios homens. Por isso podemos falar da revolução nos valores duma dada sociedade numa dada época. Mas será que não há valores absolutos que possam constituir uma referência para todas as épocas, culturas e povos?
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§33. O que são os valores Nós, no dia-a-dia, falamos ou ouvimos falar muitas vezes de valores. Nomeadamente, já todos nós ouvimos falar da Bolsa de Valores, instituição onde se transacionam ações e obrigações, entre outros papéis. Esses títulos são valores, mas não é nesse sentido que falamos aqui de valores. Os valores não são coisas materiais, mas representações mentais que nós possuímos e que justificam as nossas escolhas. Os valores não são uma realidade objetiva, material. Os valores são representações mentais, projeções mentais, entidades ideais. Os valores são realidades subjetivas e expressão da minha subjetividade, da minha vontade, da minha escala de preferências, que por sua vez são resultado da minha educação e da minha cultura e da sociedade em que vivo. Sem que isso queira dizer, no entanto, que não haja igualmente um movimento em sentido contrário, através do qual explicamos como é que os nossos valores também influenciam e transformam a educação, a cultura e a sociedade. Os valores são representações mentais que eu projeto sobre as coisas, factos ou pessoas. É isso que se passa quando eu realizo escolhas. Cada escolha é a manifestação das minhas orientações pessoais, é a afirmação da minha subjetividade. Isto quer dizer que os valores variam de pessoa para pessoa, de grupo social para grupo social, são uma manifestação da minha maneira de ser, da minha personalidade, mas também da minha educação, do modo como penso o mundo. E variam devido a múltiplos fatores de ordem cultural e educacional, nomeadamente. É por isso que os valores vão mudando de época para época. Muda o seu conteúdo, como também muda a escala de valores que cada época assume como sua. Na medida em que eu os projeto sobre as coisas, os valores não são caraterísticas intrínsecas às próprias coisas, como o tamanho, a cor ou a densidade, por exemplo. As mesmas coisas podem ter valores diferentes no mesmo momento, dependendo isso dos sujeitos avaliadores. Uma pedra que eu guardo no meu quarto pode ter um elevado valor sentimental porque está associada a um momento afetivamente importante da minha vida, enquanto que para os meus pais aquela mesma pedra na estante do quarto representa apenas lixo. Como podem estar sujeitas a uma sucessão temporal de vários valores. Porque os valores também estão sujeitos à evolução histórica das sociedades. Por isso, são portadores de uma variabilidade que depende de vários fatores, nomeadamente relacionados com a época histórica, as caraterísticas da sociedade, os projetos e expetativas da comunidade. As coisas não valem por si mesmas, mas valem em função do homem que é criador dos valores e duma sociedade que as avalia. Assim, houve épocas em que a honra e a vergonha eram valores da máxima importância, que se foram ‘desvalorizando’ com o passar do tempo. Neste sentido, podemos dizer que os valores são históricos, estão sujeitos à historicidade. As mesmas realidades vão sendo valorizadas ou desvalorizadas com o passar do tempo. Para Sartre, ao escolher quando ajo eu estou a afirmar o que é melhor para mim e para os outros. A minha escolha traduz uma conceção do que é melhor para a Humanidade. Isso faz com que as minhas escolhas tenham um peso acrescido. Contudo, eu nunca tenho a
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certeza do que é melhor para os outros. A incerteza que resulta dessa escolha é geradora de angústia, porque apenas posso contar comigo mesmo para assumir as consequências da minha decisão. A minha escolha, na acção, significa a eleição do que é preferível. Portanto, na ação estão sempre também conceções do que é correto e do que é incorreto, do que está bem e do que está mal, do que é melhor e do que é pior e deve ser rejeitado. Em todas as ações estão presentes os valores. Agir é também valorar, valorizar ou desvalorizar, atribuir valores, porque o sujeito nunca é indiferente ao mundo que o rodeia. Ao agir eu realizo a minha tábua de valores, eu torno o mundo mais significativo para mim, porque ele vai adquirindo a minha marca31. Por isso, podemos afirmar que não há acções neutras, o Homem não é indiferente em relação ao que o rodeia, quer se trate de acontecimentos, coisas ou pessoas. Em relação a tudo isso ele tem uma posição e pode (ou deve) Não há acções neutras, o Homem não é indiferente em relação ao que o rodeia, quer sejam acontecimentos, coisas ou pessoas. Em relação a tudo isso ele tem uma posição e pode tomar partido. Tomar partido significa posicionar-se perante a realidade, classificá-la, aderir ou repudiar. O homem toma partido porque confronta a realidade com a sua escala de valores. Cada um avalia a realidade a partir da sua tábua de valores e é também a partir dessa tábua de valores que ele age. Os valores que funcionavam como uma espécie de farol porque indicam um caminho a seguir. Entre os vários factores que determinam a minha acção os valores são um deles. Se eu faço greve ou não faço greve, isso depende de vários factores entre os quais a minha tábua de valores. Se o valor solidariedade for muito importante e pesar muito nas minhas decisões então eventualmente eu irei fazer greve, manifestando a minha solidariedade para com os meus companheiros. Pelo contrário, se o individualismo se sobrepuser aos outros valores então vou-me marimbar para a solidariedade, trato da minha vidinha e vou trabalhar para não descontar vencimento. Portanto os meus valores ajudam a perceber as minhas decisões e a minha maneira de agir como também explicam as posições que vou assumindo. Em cada acção do homem é possível identificar os valores que aí estão presentes. §33-B. Os valores e a vida de cada um Cada um decide e organiza a sua vida (se for um indivíduo consequente e não um trapalhão, aldrabão ou hipócrita, um indivíduo sem valores e sem princípios) segundo, nomeadamente, a sua tábua de valores. Isto é, existe uma relação estreita entre os valores de cada um e o modo como organiza a sua vida e a vai vivendo. Um indivíduo consequente será aquele que vive de acordo com os valores que defende e apregoa; um indivíduo hipócrita será aquele que
31 Tudo isto sem prejuízo das considerações que se podem fazer a propósito do conceito de alienação, dando conta de um mundo que é progressivamente mais estranho para o homem e o homem que se sente um estranho entre os outros, precisamente porque que realidade à sua volta se desumanizou.
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vive segundo valores que contrariam os valores que publicamente defende. O conhecido dito, vícios privados, públicas virtudes, pretende dar conta, precisamente, dessa incongruência que pode existir entre o que publicamente se anuncia e o que em privado se faz. Ora essa contradição é, muitas vezes, uma contradição também entre valores, entre os valores que publicamente preroramos e aqueles que efetivamente defendemos. Por exemplo, se eu considerar que a igualdade entre sexos for um valor importate, então não posso sentar-me no sofá a seguir ao jantar a fumar um charuto e a beber uma aguardente velha, enquanto vejo futebol na televisão e a minha mulher levanta a mesa e lava e arruma a loiça do jantar. [incompleto]
§34. O percurso da ação aos valores Todas as vezes que eu realizo uma ação, realizo determinadas opções, concretizo as minhas preferências. Quando pratico uma ação, opto por seguir um determinado caminho e rejeito aqueles que não sigo. Porque sou livre, quando realizo uma ação eu sei que podia sempre ter agido de outra maneira. Por exemplo, depois de estudar, eu sei que podia ter estudado mais ou estudado menos, que podia ter estudado ou ter feito outra coisa diferente. Aquilo que fiz ou deixei de fazer foi resultado da avaliação e ponderação que fiz em relação aos valores e alternativas em presença. Porque o sujeito é livre, todas as ações que eu levo por diante representam uma escolha e poderiam ter ocorrido de outra maneira. Quando agi, fiz uma opção, concretizei a minha liberdade. Todos os dias, de manhã, levanto-me da cama. Decidir levantar-me da cama, foi essa a minha escolha. Mesmo sentindo sobre mim o dever e a obrigação de me levantar, fui eu, enquanto sujeito livre, que aceitei obedecer ao dever e seguir as minhas obrigações profissionais e as minhas obrigações sociais. Ao escolher levantarme, rejeitei a opção de ficar a dormir. Assim, qualquer ação é simultaneamente uma escolha e uma rejeição. Ora, porque é que decidi levantar-me, ir trabalhar e enfrentar hordas de bárbaros adolescentes, em vez de ficar a dormir e descansar mais um pouco? Porque entre aquelas duas opções, eu preferi ir trabalhar; naquele momento, pelo menos, dei mais valor ao trabalho que ao descanso – foi essa a minha preferência e que está de acordo com os valores da própria sociedade burguesa e do espírito do capitalismo. Ou, então, acabei por dar mais valor ao próprio cumprimento dum dever do que à “satisfação de não cumprir um dever” (Fernando Pessoa). Ao agir duma determinada maneira eu estou a optar pelo que valorizo mais, estou a dar mais valor e importância à alternativa seguida que à alternativa rejeitada (Claro que não temos aqui em conta o peso que pode ter o desejo de evitar consequências negativas quando, por exemplo, ao comentar a escolha feita, afirmo que ‘do mal o menos’). Em todas as ações que realizo, eu faço uma escolha entre valores diferentes. Em qualquer ação existe, consciente ou inconscientemente, uma eleição entre valores algumas vezes opostos entre si; quando tomo uma decisão eu acabei de eleger o valor que naquele momento, face ao que está em jogo, é para mim o mais fundamental. Eu ajo em função dos
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valores que escolho e, escolhendo, aplico a minha tábua de valores. Enquanto médico, se pratico ou não a eutanásia, isso significa que me movimento entre dar valor à autonomia do doente e à qualidade de vida ou dar valor à quantidade de vida que se prolongaria a todo o custo (obstinação terapêutica). Se eu respeito o pedido do doente para morrer, isso quer dizer que eu dou mais valor à autonomia do doente que à manutenção da vida sem ter em conta a qualidade de vida que ele, o doente, ainda possui. Eu atuo segundo os valores que elejo. Imaginemos a situação dum médico que necessita, para salvar um doente menor, de proceder a uma transfusão de sangue; entretanto, os pais recusam a transfusão sanguínea por razões religiosas. Os valores que estão aqui em confronto são, pelo menos, dum lado o direito à vida e, do outro, o direito à livre manifestação da sua escolha religiosa, ou liberdade de culto. Não só estão estes valores em confronto, como estão em confronto diferentes tábuas de valores: para o médico a vida será o valor mais importante, enquanto que para os pais do rapaz, a liberdade religiosa sobrepõe-se ao direito à vida. O seu comportamento, o que devem fazer a seguir, como reagir perante situações-limite como esta é algo que resulta da ponderação dos valores em presença. Qualquer decisão para agir surgirá guiada, justificada e legitimada por uma opção de natureza axiológica, isto é, da ordem dos valores. Quer dizer, então, que os valores guiam a minha ação, funcionam como uma espécie de farol, indicandome o caminho a seguir. Os valores são, desta maneira, um critério e uma justificação para a ação que os concretiza. Os valores surgem como um referencial para a minha ação, uma espécie de luz que ilumina e conduz a minha existência e as minhas ações num certo sentido. Em todas as ações estão presentes um ou mais valores, porque todo o sujeito possui a sua escala de valores que, normalmente, é a escala de valores do grupo social a que pertence, numa determinada época histórica. As decisões, mesmo coletivas ou com um sentido marcadamente social, não escondem nem apagam o individual contributo que existe em cada decisão coletiva. A liberdade é um resíduo que nunca se pode apagar em qualquer circunstância. Vejamos ainda outro exemplo, outra situação. Se eu faço greve ou não faço greve, isso dependerá de vários fatores entre os quais a minha tábua de valores. Se o valor solidariedade for muito importante e pesar muito nas minhas decisões então, eventualmente, eu irei fazer greve, manifestando a minha solidariedade para com os meus companheiros. Pelo contrário, se o individualismo se sobrepuser aos outros valores então vou-me marimbar para a solidariedade, trato da minha vidinha e vou trabalhar para não me descontarem no vencimento. Portanto, os meus valores ajudam a perceber as minhas decisões e a minha maneira de agir, como também explicam as posições que vou assumindo. Em cada ação do homem é possível identificar os valores que aí estão presentes. No limite, se eu conhecer a escala de valores dum indivíduo, conseguirei antecipar as suas decisões e as suas escolhas. Veja-se a importância que esse conhecimento terá para quem é responsável pelo marketing e pela publicidade dum produto; ou para quem se quer candidatar a um cargo político e preparar o seu discurso em função dos valores do auditório.
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§35. Não há ações gratuitas, isto é, sem a presença dos valores O homem não é indiferente em relação ao que o rodeia, quer sejam acontecimentos, coisas ou pessoas. Em relação a tudo isso, o homem tem uma posição e pode tomar partido. Tomar partido significa posicionar-se perante a realidade com a sua escala de valores. Cada um avalia a realidade a partir da sua tábua de valores e é também a partuir dessa tábua de valores que ele age. Os valores funcionam como uma espécie de farol porque indicam ou iluminam um caminho a seguir. Entre os vários fatores que determinam a minha ação, os valores são um deles. Não há ações gratuitas, na medida em que todas as ações são movidas por um qualquer interesse, que não tem que ser necessariamente um interesse material ou um interesse consciente. Agir com interesse não significa ser interesseiro, mas apenas que eu atuo sempre com determinados objetivos, em função de determinados valores que eu persigo e quero ver concretizados. Sempre que ajo, ajo em função de qualquer coisa, de qualquer objetivo que pretendo alcançar. Mesmo que agisse por agir, agisse sem ter nada em vista, seria possível descobrir uma intenção mais profunda e oculta. Não há ações gratuitas, no sentido em que todas as ações têm um objetivo a alcançar, têm um determinado motivo que as dinamiza. Nunca o sujeito age por agir, nunca age sem intenção. Por mais ocultos que estejam, por poderem ser censuráveis do ponto de vista individual ou social, existem sempre objetivos na ação. Contudo, existem vários tipos de fins para a ação: eu posso agir tendo em vista objetivos exclusivamente espirituais, (a fruição estética que resulta da contemplação dum quadro ou da audição duma peça musical) ou posso também agir tendo em vista objetivos materiais, isto é, pretendendo obter vantagens materiais, que enriquecerão o meu património. O filantropo (o benemérito) pratica o bem e poderia pensar-se que age desinteressadamente, sem interesse algum visível. Mas também se pode dizer que ele não faz o bem para obter vantagens materiais, mas pode ter objetivos inconfessados: sentir-se bem consigo mesmo ou obter o reconhecimento da comunidade onde vive32, sem, no entanto, deixar de ser benemérito por essa razão. Assim, a sua ação benemérita não é totalmente gratuita. A aparente gratuitidade da ação esconderia, afinal, objetivos que concorrem para benefício do próprio sujeito. Já o indivíduo interesseiro seria aquele que apenas age se, antecipadamente, lhe garantirem determinadas vantagens. O indivíduo interesseiro apenas age com a certeza e a segurança da obtenção dos resultados pretendidos. Noutras situações, o sujeito age em função de motivos inconscientes, que ele próprio desconhece ou não reconhece imediatamente. Trata-se de motivos ou finalidades sobre as quais recaia um juízo de censura social que impede o sujeito de os assumir aberta e publicamente. Para Freud33 e para a psicanálise, existem objetivos e finalidades inconscientes
32 De qualquer modo, estará ainda assim, muito longe daquele que, num determinado momento distribui eletrodomésticos junto da população mais carenciada. É que este ‘benemérito’ era candidato à Câmara de Gondomar!
33 Sigmund Freud, o criador da psicanálise….. [incompleto]
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e que foram objeto de um processo de recalcamento, pelo que o sujeito não tem consciência dos motivos que o levam a agir duma determinada maneira 34. Portanto, não existem ações gratuitas, nunca o sujeito age por agir, de uma forma completamente desinteressada. Essa maneira de agir revela a abertura do sujeito à realidade que o circunda e a diferente valoração que o sujeito faz dessa mesma realidade. Do mesmo modo que o sujeito age tendo em vista determinadas finalidades, também a realidade não lhe é indiferente, fazendo com que o sujeito se mova e atue em função dessa mesma avaliação. Assim, ao agir, o sujeito revela o seu sistema de valores, estruturado em função desse processo de avaliação da realidade e que exprime as diferentes ordens de preferência do sujeito em relação ao mundo que o rodeia. Em todas as ações, o sujeito exibe a atualiza a sua avaliação da realidade; os valores fundamentam, justificam e guiam as ações do sujeito. Não há ações gratuitas, porque todas elas são guiadas pelos valores (e interesses) do sujeito.
§36. Caraterísticas dos valores Os valores não são coisas materiais, mas representações mentais que nós possuímos e que justificam as nossas escolhas. Perante a mesma realidade, esta poderá ser alvo de avaliações diferentes. A intervenção americana no Iraque movimentou posições opostas entre si. Foram várias as posições que surgiram na avaliação daquele conflito. Considerando que os principais valores em confronto neste conflito internacional serão a segurança internacional e o direito de cada povo a escolher o seu próprio caminho, veríamos que aqueles para quem a segurança internacional é o valor mais importante, apoiariam a intervenção americana; para aqueles que consideram que a segurança internacional não é um bem mais valioso que a soberania de cada povo e Estado, colocar-se-iam contra a intervenção americana no Iraque, que teria atentado contra essa soberania. Assim, o mesmo acontecimento é avaliado de forma diferente, consoante a escala de valores de cada um dos avaliadores. Se um médico se recusa a praticar a eutanásia, apesar do pedido insistente de um doente consciente que se encontra em sofrimento com dores insuportáveis e cuja doença mortal que o atinge é irreversível, sem hipótese ou esperança de cura, é porque, para ele, a defesa da vida é um valor mais valioso que a liberdade e a autonomia do paciente. O médico irá agir de acordo com a sua escala de valores (tábua de valores), com as representações que possui e lhe indicam o que está certo e está errado, o que deve e não deve fazer. Mas podemos encontrar outro médico com outra escala de valores e para o qual a autonomia do doente e a satisfação do seu pedido sejam mais valiosas que aquela vida daquele doente, naquele momento e naquelas condições. Assim, ele respeitaria o pedido do doente e praticaria a eutanásia. Isto quer dizer que os valores variam de pessoa para pessoa, são subjetivos. Os valores são expressão da subjetividade de cada um. E variam devido a múltiplos fatores de ordem cultural e
34 É o que acontece, por exemplo com os lapsos de memória (lapsus linguae) que Freud descreve na sua Psicopatologia da vida quotidiana.
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educacional, nomeadamente. É por isso que os valores vão mudando, de época para época vai mudando o seu conteúdo, como também muda a escala de valores que cada época assume como sua. Assim, houve épocas em que a honra e a vergonha eram valores da máxima importância, mas que se foram desvalorizando com o passar do tempo. Neste sentido, podemos dizer que os valores são históricos, estão sujeitos à historicidade. Mas também acontece que na mesma época histórica, os mesmos valores recebam conteúdos e graus de importância diferentes, consoante o grupo ou a classe social que os assume. Veja-se, por exemplo, como a honra tem um valor fundamental dentro dos grupos mafiosos, o que já não acontece fora desses grupos. Ou como a existência de relações sexuais antes do casamento é avaliada de forma diferente na comunidade cigana e fora dela. O mesmo é dizer que os valores não são realidades absolutas que pairam acima do seu tempo, afastados ou desinseridos da realidade; antes são relativos a cada época histórica ou ao grupo social que os produziu e os assume como seus. E é a partir da realidade historico-social que os valores são correta e plenamente compreendidos. Não há valores absolutos no sentido em que estariam desligados da realidade social concreta. Os valores não são coisas. Os valores não são uma realidade objetiva e material. Os valores são representações mentais, projeções mentais, entidades ideais. Os valores são realidades subjetivas e expressão da subjetividade da minha vontade, da minha escala de preferências, que por sua vez são resultado da minha educação, da minha cultura e da sociedade em que vivo. Os valores são representações mentais que eu projeto sobre as coisas, factos, ações e comportamentos ou pessoas. Se eu os projeto sobre a realidade, então os valores não são caraterísticas intrínsecas dessa realidade. Quando eu digo que aquele cão tem o corpo coberto de pêlos, isso trata-se de uma qualidade que faz parte da própria condição canina, é intrínseco ao próprio cão. Mas se eu digo que aquele cão é bonito, isso trata-se de uma qualidade que não faz parte da sua natureza, mas que eu atribuí àquele cão. Dizer que o cão tem o corpo coberto de pêlos, isso é emitir um juízo de facto, um juízo objetivo que descreve uma realidade. Dizer que o cão é bonito, trata-se de um juízo de valor, um juízo subjetivo, que não descreve como a realidade é, mas o que ela significa para o sujeito, como se integra na sua escala de valores, exprime o seu critério valorativo. Enquanto todos estão de acordo que o cão tem o corpo coberto de pêlos, nem todos estarão de acordo que ele seja bonito. Ser bonito é uma qualidade subjetiva, o resultado de uma qualificação ou avaliação que o sujeito produziu. As mesmas coisas podem ter valores diferentes no mesmo momento, dependendo isso dos sujeitos avaliadores e dos seus critérios. Como podem estar sujeitos a uma sucessão temporal de vários valores, porque estes também estão sujeitos à evolução histórica das sociedades. Por isso, são portadores de uma variabilidade que depende de vários fatores, relacionados nomeadamente com a época histórica, as caraterísticas da sociedade, os projetos e as expetativas da comunidade. As coisas não valem por si mesmas, não têm o valor inscrito na sua natureza, mas valem em função do homem e da sociedade que são criadores de valores e avaliam. Como afirmava Nietzsche, os homens é que são os verdadeiros avaliadores, os medidores de todas as coisas. Quando se diz que os valores não
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são absolutos, isso também quer dizer que os valores não existem por si e em si mesmos; os valores não existem isoladamente, fora do contexto que os originou e será sempre relativamente a esse contexto que devemos compreender a sua natureza e génese. Em suma. Os valores são subjetivos isto é são projeções da mente e não realidades materiais. Dependem da opinião e posicionamento de cada um, resultam da subjetividade humana. Como afirmava Nietzsche, os valores são criação do homem (e por isso também podem ser modificados pelo homem). São subjetivos, dependem da subjetividade do sujeito, não são realidades materiais ou caraterísticas intrínsecas das próprias coisas. Os valores são também bipolares isto é, existem sempre com o seu oposto (contra-valor). Os valores existem sempre aos pares como o pólo positivo e o pólo negativo. Por outro lado, os valores são hierarquizáveis, isto é, posicionam-se uns em relação aos outros numa escala de importância. Os valores são, finalmente, realidades históricas, isto é, determinados pela sociedade e cultura de cada época histórica, sujeitos à historicidade. Isso faz com que os valores não sejam absolutos – o seu conteúdo e o seu grau de importância vão mudando de época para época e de grupo social para grupo social. Neste sentido devemos dizer que os valores são relativos – a sua importância e o seu conteúdo aferem-se relativamente à época histórica em que os homens os assumem e deles se servem para enquadrar a sua atividade e experiência.
§36-A. Como se transmitem os valores Os valores fazem parte da superstrutura ideológica de uma dada comunidade e, enquanto tal, integram o património cultural que se transmite de geração para geração. Os valores, ao guiarem a minha ação, ajudam a revelar o caráter repressivo da cultura (Marcuse), na medida em que desta também se destaca um sistema de regras e proibições que controlam o lado animal e instintivo do homem, assegurando a convivência social e evitando que a sociedade seja dominada pela lei do mais forte. A família e a escola encarregam-se da transmissão dos valores e o sujeito educa-se, forma-se e socializa-se na medida em que interioriza a tabu de valores (a hierarquização dos valores) vigente na sociedade num determinado momento histórico. Ao interiorizar e partilhar os valores em vigor, eu afino o meu comportamento pelo modelo de comportamento que é oficial e desejável. O sujeito evita correr o risco de seguir valores que não são comungados pelo resto da sua comunidade. Se a educação é o sistema que se encarrega de transmitir os valores, então os valores impregnam todo o sistema educativo. Um rapazinho ou uma rapariga educadinhos serão aqueles que seguem, sem contestar, os valores transmitidos pelos papás. Estes, demasiado ocupados, encarregam a escola e os professores, como se fossem seus funcionários, de transmitirem aos seus filhos o que é bom, o é mau, o que é desejável e indesejável, o que é repugnante e o que é amoroso, o que é aceitável e o que deve ser repudiado. Da linha de montagem que é escola sairão umas fornadas de mulherzinhas e homenzinhos, todos fabricados à imagem e moldados pelos valores oficiais, muitos deles
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prontos para passarem o serão, a olhar em silêncio, para a televisão e a correrem, ao fim de semana, para o centro comercial, empurrando felizes, o carrinho das compras, envergando um fato de treino roxo. Temos, assim, mais uma geração apta par reproduzir, junto dos seus filhos, a miséria do nosso quotidiano. §36-B. Conflitos sociais e conflitos de valores Por outro lado, os conflitos sociais podem ser considerados, também, como conflitos de valores. A questão da interrupção voluntária da gravidez (aborto) ou da eutanásia e do suicídio assitistido são, igualmente, conflitos entre valores, conflitos que resultam duma diferente valoração dos bens jurídicos em conflito. Trata-se, com efeito, dum conflito entre os valores vida e o valor liberdade no caso do debate sobre o aborto, ou entre o valor vida e o valor dignidade humana, no caso da eutanásia e do suicídio assistido. Aqueles que defendem o direito da mulher a interromper uma gravidez não desejada estão a considerar que o valor liberdade individual é superior ao valor vida (não se discutindo aqui se o ser que se desenvolve nas primeiras semanas pode ser considerado uma vida humana). Por outro lado, aqueles que defendem o direito à eutanásia e ao suicídio assistido consideram que a dignidade humana é mais valiosa que a vida quando reduzida a uma mera atividade biológica ou que se processa sem qualquer autonomia por parte do paciente. Outro exemplo, são os conflitos intergeracionais. Neste caso, parece-nos evidente que um dos componentes deste conflito tem a ver com os valores e com o modo como cada uma das gerações em confronto hierarquiza os valores ou lhes dá conteúdo e os concretiza. Por exemplo, o modo como cada geração vê a liberdade sexual representa uma diferente valoração dos comportamentos sexuais dos jovens por comparação com o que se passava em gerações anteriores. A diversidade das opiniões e as lutas e conflitos de opinião pdoem ser interpretados à luz da luta e conflito de valores. E isto porque os valores influenciam e determinam, justificam e legitimam, as opiniões, a atitudes e as ações mais controversas. Aí é fundamental perceber os outros não como seres bizarros ou excêntricos, mas como vivendo segundo valores diferentes ou cujos conteúdos são diferentes. [incompleto] § 36-C. Valores contemporâneos e «crise de valores» No passado os homens e as suas comunidades possuíam certezas morais e religiosas, bem como crenças seguras em torno das quais organizavam e legitimavam o seu viver, bem como censuravam e repudiavam as transgressões e os comportamentos considerados desviantes. A Revolução Industrial foi o primeiro grande abalo nesse edifício de certezas e correlativa confgiança e segurança. As sociedades laicizaram-se e os valores tidos como absolutos relativizaram-se. No século XX certas revoluções ligadas à libertação da mulher e à
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sexualidade obrigou a que se olhassem certos comportamentos duma outra maneira. Comportamentos que eram até há bem pouco tempo considerados como censuráveis passaram a ser aceites ou, pelo menos, tolerados. Daí que ocorresse, ao mesmo tempo, aquilo que é comumente designado por «crise de valores». As tábuas de valores, individuais e coletivos, modificaram-se e alguma perplexidade e desnorte instalaram-se. As brutais [vds] alterações do nosso modo de vida que aconteceram nos últimos anos vieram instalar alguma confusão no nosso espírito e alguma dificuldade na concretzação das nossas escolhas. Porque o que também é verdade é que o leque de escolhas possíveis se alargou como nunca. A nossa indecisão antes de fazer escolhas e agir também se prende com esse mar imenso de alternativas que, a partir de certa altura, se colocou diante do sujeito, no âmbito das sociedades democráticas e liberais.
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Capítulo 4 – A experiência ética e política da vida e do mundo §37. Os valores morais e o relativismo cultural A experiência moral refere-se a situações, factos e atos suscetíveis de serem avaliados moralmente. É a experiência do dever cumprido ou infringido. Isso quer dizer que preside àquelas situações uma orientação dada por uma vozinha da consciência que nos dizia o que estava certo ou errado e, em função disso, o que devia ou não devia ser feito. A orientação correta é traduzida numa norma, numa regra que orienta a nossa ação e, por isso, é uma regra prática. A norma moralmente correta tem origem na nossa racionalidade, mas o homem é, como afirmava Kant, um ser anfíbio, isto é, um ser sujeito à razão, mas também dominado pelo seu lado sensível, pelos seus sentidos. O homem não é apenas razão, também é um corpo. Ele é simultaneamente assaltado por orientações da razão e impulsos dos sentidos. O homem sente-se dividido em seguir o caminho da razão ou o caminho dos seus impulsos e desejos sensíveis. O homem é um ser dividido, dilacerado. Ele deve seguir as orientações fundadas na sua parte racional. Estas aparecem-lhe sob a forma de comandos ou imperativos, regras que ele deve seguir na sua vida prática. As regras práticas racionais surgem-lhe sob a forma do dever. O homem ao obedecer-lhes, domina o seu lado sensível. As normas morais são normas imperativas, indicam o que se deve fazer ou como avaliar a moralidade dos atos e das decisões. Estes são moralmente corretos quando estão de acordo com o dever fundado na razão e que se exprime nas normas morais. Aparecem sob forma imperativa, porque o homem não obedece automaticamente à razão. Esta surge como um horizonte que deve ser concretizado. Como se ligam normas e valores morais? As normas são regras que exprimem os valores sob uma forma imperativa, sob a forma do «tu deves». Os valores são os motivos do cumprimento das normas. A ação moral realiza os valores positivos, aqueles que estão estabelecidos em nome da razão e que podem, por isso, orientar todos os homens, podendo, assim, fundar uma comunidade humana racional. Os valores morais são promovidos através do cumprimento das normas morais e das normas jurídicas. Qual a diferença entre estas normas? As normas jurídicas são instituídas pelo poder do Estado, estão organizadas sistematicamente em códigos escritos e o seu cumprimento é assegurado através da sua força coerciva que faz com que a infração das normas jurídicas seja punida judicialmente, através de sanções (penas ou multas); a não observância das normas morais não é sancionada pelos tribunais, apenas motiva um juízo de censura social. As normas morais são cumpridas em função dos valores donde emanam e da vontade do sujeito em evitar a censura dos outros. Claro que há sempre quem não se importe com isso, mas, nesse caso, terá que suportar a eventual marginalização que os representantes da moral socialmente dominante poderão provocar. As normas morais são elementos culturais. Perante a diversidade das culturas, pergunta-se se estaremos condenados ao relativismo moral. Este consistiria na afirmação da
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inexistência de valores absolutos, com validade absoluta, acima da mudança social e histórica. Para o relativismo moral todos os valores valem no contexto histórico em que surgiram e se aplicam. A sua validade é relativa, transitória. Para o relativismo moral há valores dominantes numa determinada época ou para um determinado grupo social que deixam de ter essa validade noutra época histórica ou no âmbito de outro grupo social. O que não há é valores que estejam acima da história ou da sociedade, valores cuja validade estaria fixada para sempre. O relativismo moral é difícil de defender, pois se todos os valores têm a sua validade própria de acordo com a sua época histórica ou o grupo social onde funcionam, então teremos de aceitar todos os comportamentos que concretizam esses valores, mesmo os que infringem os direitos humanos. Se cada cultura tem os seus próprios valores que nós devemos aceitar, pois não existem valores mais válidos que outros, então deveremos aceitar, por exemplo, que se condene à morte, por apedrejamento, mulheres acusadas de terem praticado o adultério? Em nome de que valores ou princípios poderemos criticar as outras culturas e os outros valores ou normas morais? Será que a cultura ocidental deve ser mais respeitada ou aceite que as culturas dos povos do terceiro mundo? O direito à vida, por exemplo, é um valor absoluto que se deve impor a todas as sociedades? Ou cada sociedade deve avaliar a vida de acordo com os seus princípios próprios e a sua tradição? Quais são as virtudes e os limites do relativismo moral e cultural? §38. Relativismo moral, relativismo cultural e tolerância O espetáculo do mundo oferece-nos, numa rápida apreciação, a constatação da enorme variedade de formas e manifestações culturais, bem como a extrema variedade de normas morais. Às várias sociedades e comunidades humanas, corresponde essa variedade cultural e moral. A partir dos séculos XV e XVI, com as aventuras dos descobrimentos e das viagens marítimas, a Europa despertou para essa constatação. Mas, ao mesmo tempo, afirmava a superioridade da cultura do homem europeu e das suas normas morais, perante aquele estranho mundo de bárbaros, de que se chegava a duvidar que possuíssem alma 35. O etnocentrismo e o eurocentrismo reinaram durante vários séculos. Hoje, a posição dominante é a que afirma a diversidade cultural e moral da Humanidade e a consequente necessidade de respeitar essa tolerância em relação às diferentes culturas e diferentes sistemas de valoração moral que integram o mosaico do género humano. Contudo, o respeito pelas diferenças, não nos pode levar a cair numa posição de indiferentismo perante certas práticas que, em nome do respeito pela diversidade, seriam acolhidas mesmo apesar de violarem flagrantemente os direitos humanos. O relativismo cultural não nos deve conduzir a uma relativização valorativa, onde tudo seja aceite em nome do respeito pelo outro que é diferente. O relativismo cultural e moral não é sinónimo dum nivelamento dos critérios valorativos, não
35 Neste sentido, o Cristianismo com a sua enorme força civilizadora, passados os primeiros momentos em que alinhou as suas teses pelas da superioridade do homem branco, acabou por contribuir para uma unificação dos diversos povos sob a única realidade da espécie humana. Todos éramos, afinal, criaturas de Deus. Mas esta posição, longe de traduzir, unicamente, um passo em direção à libertação do género humano, apenas alargava o número das ovelhas que deviam ser conduzidas pelos bons pastores da Igreja.
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pode conduzir ao abdicar duma tomada de posição crítica em relação a certos costumes e práticas culturais. Tolerar não é o mesmo que abster-se de tomar posição. Com efeito, poderemos aceitar ou virar costas ao costume bárbaro de mutilação dos órgãos genitais femininos, só porque se trata de uma tradição cultural de certos povos? Devemos deixar de ser críticos em relação ao sofrimento do touro nas touradas só porque se trata de uma tradição cultural que tem sentido para determinadas pessoas e para outras não, mas que deveriam ser respeitadas em nome da tolerância perante a diferença? §39. Ética e moral: dimensões próximas mas diferentes Todos os dias nos deparamos com factos e situações que envolvem a liberdade e a dignidade das pessoas, os seus direitos e deveres, e que por isso se podem situar na esfera da liberdade e da responsabilidade do sujeito. Consideremos, por exemplo, as seguintes situações: quando alguém opta por mentir a outro ou quando alguém decide não roubar um CD de uma loja porque existem câmaras de vigilância. Tudo isto são situações que envolvem uma avaliação moral e em ambos os casos existem regras, princípios, valores, decisões, responsabilidade e consequências. Trata-se, pois, de uma esfera de experiências com características e princípios próprios que a distinguem da experiência estética e da experiência religiosa. Aquelas situações remetem-nos para um campo coberto pelos conceitos de moral e ética. Quando falamos da ética e da moral referimo-nos a um domínio da ação humana orientado por valores e valorações ético-morais: bem / mal, justo / injusto, correto / incorreto, entre outros. Trata-se de valores que são ditados pela nossa consciência, transmitidos pela cultura da comunidade em que vivemos. Na orientação ético-moral dum indivíduo a sua consciência interior é determinante. A consciência consiste numa capacidade interior de orientação, avaliação e crítica da conduta, em função de vários fatores, nomeadamente, valores. Estamos, assim, no domínio da ação humana e da reflexão sobre a ponderação e as decisões que o sujeito leva a cabo e que se materializam, ou não, nas ações que realiza. O que é um ser ético-moral? Trata-se alguém que considera imparcialmente os interesses em jogo; alguém que reconhece e/ou aplica princípios éticos de conduta; alguém que não se deixa guiar por impulsos, mas escuta a razão, mesmo que isso implique rever as suas convicções; alguém que age com base nos resultados da sua deliberação independentemente de pressões exteriores, fazendo escolhas autónomas; alguém que se guia por valores e ideais que reconhece como certos e bons para se tornar um ser humano melhor. §39 – A. Distinguir ética e moral
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Há quem distinga a ética36 da moral37, pois são muitas vezes confundidas devido ao facto de se debruçarem sobre domínios muito aproximados. Quando alguém pratica um ato moralmente condenável podemos dizer que esse indivíduo não tem ética ou falta-lhe carácter. No entanto, moral e ética não são o mesmo, apesar de haver autores que consideram que a distinção não é relevante. A Moral designa um conjunto de princípios e normas prescritivos que regulam o comportamento de um indivíduo ou de um grupo, no sentido de se fazer o bem e evitar o mal, realizar o que é considerado correto e afastar o que é tido como errado ou indigno. A moral ordena e manda o sujeito agir de determinadas maneiras. Por outro lado, a moral faz parte da cultura de uma comunidade e serve para regular as interações entre as pessoas, a convivência social, o que a cada momento se deve ou não fazer. A Ética, também designada por Filosofia Moral, possui uma orientação mais teórica, por oposição à vertente mais prática da moral. Com efeito, a ética consiste numa reflexão teórica, racional e crítica, sobre o que vai sendo estabelecido a partir da moral. Por exemplo, perante a norma moral que nos diz que não devemos matar, caberá à ética a reflexão sobre os princípios que fundamentam essa norma, no caso, o direito à vida. Poderá também refletir sobre se essa norma deve ser considerada absoluta, isto é, válida em todas as situações, ou se poderemos admitir exceções, o que é importante quando analisarmos o comportamento daqueles que se suicidam, ou ajudam ao suicídio ou praticam a eutanásia. Nesse sentido caberá à ética analisar as decisões e os princípios nelas implicados 38. A reflexão teórica que a ética proporciona poderá também incidir sobre a legitimidade daqueles que estabelecem a fronteira entre o que é bom e o que é mau, o que é aceitável e o que é condenável, o que deve ser seguido e o que deve ser evitado. Como também deverá incidir sobre o fundamento das ações consideradas moralmente válidas. Em suma, enquanto a Moral se refere às normas concretas e aos comportamentos que as concretizam, respeitando ou violando, a Ética diz respeito à reflexão crítica sobre esse campo. A Ética não vai refletir apenas sobre a Moral; também a Política e o Direito são campos onde se exerce a ação humana e onde se concretizam as suas escolhas e decisões. A moralidade tem a ver com o nosso esforço para orientar a nossa conduta por princípios racionalmente justificados ou justificáveis, tendo em conta tanto os nossos interesses, como os interesses de todos aqueles que são afetados pelas nossas ações. §39 – B. Distinguir moral e religião
36 O termo ética deriva do grego ethos que significa carácter e também designa o lugar que habitamos. 37 O termo moral vem do latim moris, que significa costume ou modo de ser habitual. 38 É o que acontece por exemplo com as comissões de ética que existem nos nossos hospitais e cuja atividade está prevista e regulamenta por lei. Cabe a estas comissões, formadas por indivíduos de diversas formações académicas e profissionais, avaliar eticamente as decisões e as condutas com implicações dos profissionais da saúde, médicos e pessoal de enfermagem, nomeadamente. Por exemplo, poderá uma destas comissões analisar o comportamento dum médico que ocultou ao doente informações sobre a evolução da sua doença e os dias de vida que lhe restariam; ou dum médico que contrariou a posição dos pais que, por motivos religiosos, recusavam que o seu filho menor fosse sujeito a uma transfusão de sangue.
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A moral e as suas normas surgem muitas vezes associadas à religião. Não é por acaso que deparamos frequentemente com expressões tais como moral cristã ou moral islâmica. Qual, então, a relação entre a moral e a religião? Vejamos um exemplo concreto: o adultério. Entre nós, o adultério é avaliado do ponto de vista moral, na maioria dos casos, de forma negativa. Com efeito, ele pode traduzir uma violação dos deveres conjugais, de deveres contraídos no momento do casamento em relação ao outro, o cônjuge, e mesmo em relação aos filhos e aos próprios familiares e amigos. Contudo, tudo isto é aqui afirmado em abstrato, sem ter em conta qualquer caso concreto que poderia modificar esse juízo valorativo. No entanto, apesar da avaliação moral maioritariamente negativa, o adultério não é nenhum crime aos olhos do nosso direito. [muito incompleto] §40. Intenção e norma Para a avaliação da moralidade duma ação não basta uma norma, uma regra socialmente estabelecida que sirva de padrão para a ação; não basta a sua conformidade com a norma, o acordo exteriormente verificável. É fundamental a intenção, isto é, o julgamento íntimo que cada um faz do que é permitido e do que não é permitido. Situação 1. António está prestes a afogar-se por não saber nadar. Bárbara observa a situação e atira-lhe uma tábua a que António se deverá agarrar, evitando o afogamento mortal. Só que a tábua atinge António na cabeça e acaba por feri-lo mortalmente. Situação 2. Carlos caiu ao mar e, por não saber nadar, está com dificuldades e prestes a afogar-se. Diogo, seu arqui-inimigo, aproveita a situação desesperada de Carlos. Por enquanto, ainda ninguém apareceu. Estão, pois, sozinhos. Assim, atira-lhe com uma tábua com o objetivo de o atingir mortalmente na cabeça. Só que falha o alvo por muito pouco. Carlos consegue agarrar-se à tábua que o mantém à tona de água até chegar mais gente que sabe nadar. Assim, Carlos consegue salvar-se. É ou não imprescindível conhecer a intenção do agente (Bárbara na primeira situação e Diogo na segunda) para avaliarmos moralmente a ação? Ou conhecer a intenção não é essencial, bastando conhecer as consequências? E como é que conhecemos a intenção do agente? Se a intenção contar, então, na primeira situação, António morre, mas Bárbara não é condenada, pois ela queria salvá-lo, só que as coisas correram mal. E no segundo caso, Carlos salva-se, mas tendo em conta a intenção, teremos de condenar Diogo. Criámos uma situação absurda: onde não há vítimas, há condenação; onde há vítimas, não há condenação. Só age moralmente e faz uma opção moral aquele que se obriga a si mesmo a respeitar o fim que definiu como bom, tendo em vista o seu aperfeiçoamento, ainda que só ele conheça a verdadeira intenção dos envolvidos na ação.
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No domínio da moralidade cada indivíduo… → só tem que prestar contas à sua própria consciência, a única autoridade; → é responsável pelos seus atos, uma vez que tem a possibilidade de fazer escolhas. §41. Distinção conceptual entre moral e ética – quadro-resumo ÉTICA → Responde à questão: que princípios devem
MORAL → Responde à questão: que devo fazer ou
orientar a vida humana?
como
devo
agir
em
tal
circunstância
concreta? →
Analisa
os
princípios
que
regem
a
constituição das normas orientadoras da ação
→ Designa o conjunto de normas obrigatórias
e
(razões
(imperativos e interditos) estabelecido no
justificadoras); reflete sobre os fins que dão
interior de um grupo, sociedade ou cultura,
sentido à vida humana;
para orientar ou julgar uma ação;
→ Princípio: a vida humana tem um valor
→ A norma moral responde: não se deve
incalculável;
matar;
os
respetivos
fundamentos
→ A ética pergunta: por que razão não é permitido matar, ou seja, que valor ou
→ Analisa os problemas práticos e as
princípio justifica tal proibição?
dificuldades
Ou ainda: o que é o bem? Por que razão
realização;
que
se
colocam
na
sua
devemos agir moralmente? → É a reflexão sobre os fundamentos (justificação) e os princípios que regem a constituição das normas, propondo fins e
→ É o conjunto das normas obrigatórias
ideais
reconhecidas por um grupo social.
a
realizar
tendo
em
vista
o
aperfeiçoamento do ser humano.
§42. Dimensão pessoal e social – o si mesmo, o outro e as instituições A vivência social é necessária para garantir a nossa sobrevivência biológica, como também é indispensável para a nossa construção como seres humanos. Ora, nós não temos apenas deveres para connosco, mas também em relação aos outros.
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O ser humano, quando age, e na medida em que também é um ser comunitário, idealiza fins orientadores da ação que vão para lá da mera dimensão biológica e dos interesses individuais egoístas. A ação moral tem, assim, as seguintes características: - está orientada para um fim, que é um bem; - é voluntária e intencional; - é suscetível de juízo, isto é, de ser avaliada em termos de bem ou de mal; - adota um posicionamento não apenas individual, mas também comunitário, de tal maneira que o agente, colocando-se na perspetiva do outro, chegue à perspetiva da universalidade do agir.
§42 – A. A construção da pessoa na sua relação com os outros O ser humano que resulta da união de duas células sexuais (um óvulo e um espermatozóide) não é apenas uma realidade biológica, mas uma realidade de natureza complexa, biológica, psico-social e cultural. Tratando-se de uma realidade em devir, um processo de construção, uma realidade inacabada, o ser humano é uma realidade que se vai construindo. O facto do homem ser, à partida, um ser incompleto, longe de ser um inconveniente e uma desvantagem, revela-se uma condição e um impulso para o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. O facto de nem tudo no homem estar programado, constitui-se como um campo ainda imenso à sua frente no sentido de se ir preenchendo com a sua realização. A história de cada um está ligada às histórias dos outros seres humanos, onde a liberdade de agir de cada um surge também condicionada pela liberdade dos outros, pelo que longe de ser uma liberdade absoluta, é, sobretudo, uma história onde se combina a liberdade e os determinismos vários que concorrem para a construção do ser humano. A vida individual desenrola-se num contexto complexo, que se constitui de uma base física, mas que é também formado por um nível social: cada ser humano cresce no seio de várias comunidades (a família, os amigos, a escola, a sociedade) também elas caracterizadas pelas suas próprias histórias e culturas. À volta de cada ser humano é tecida uma complexa teia de relações que o condicionam mas que concorrem para o seu desenvolvimento: sociais, económicas, culturais, políticas, ideológicas. Essa complexa rede de relações constitui o pano de fundo onde cada um exerce a sua liberdade, nomeadamente, a liberdade de se construir a si próprio. Apesar de não podermos escolher antecipadamente o nosso sexo, a cor dos nossos olhos, ou a altura que iremos ter aos dezoito anos, tal não significa que o nosso destino esteja já traçado e visível na palma da mão. Do ponto de vista biológico muito já está programado e definido, mas será o ambiente físico e afectivo, social e cultural, que permitirá ou não o desenvolvimento dessas potencialidades.
A pessoa humana
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A palavra pessoa deriva do latim persona que é raiz de palavras como personagem e personalidade. Persona era também a máscara que era usada nas representações teatrais pelos actores para amplificar as vozes, mas também para definir melhor os sentimentos e as personalidades representados naquele momento. A personagem e a persona tinham, assim, um determinado papel. Também no palco do mundo, cada um de nós, cada pessoa, representa um ou vários papéis com direitos e deveres. Podemos distinguir sociedade civil e comunidade humana. No âmbito da primeira, os direitos e deveres são os que constam da sua relação de submissão ao Estado, definidos e consagrados numa lei fundamental (a Constituição política, por exemplo), de maneira a que a sociedade forme um estrutura coerente e pacífica e que a partir daí se promove o desenvolvimento individual. Mas a pessoa não é apenas o indivíduo, o cidadão. Cada homem atingirá a plenitude do seu ser através da consciência de que cada um é um fim em si mesmo e não um meio. A sua pessoa desenvolver-se-á no âmbito duma autêntica comunidade humana que coloque a emancipação individual e de todos como o supremo objectivo. “Este pobre eu que nós somos ou parecemos ser, tão estreitamente condicionado pelo organismo, pelos instintos, pelas relações existentes que o comprimem num círculo fatal; este pobre eu, que assim começa cativo e quase esmagado, transpõe gradualmente esses limites, transborda por assim dizer sobre o mundo que o continha, substitui motivos próprios aos motivos alheios, faz-se fim onde era meio e, de particular e limitado, transforma-se finalmente no que se diria um outro eu, impessoal, absoluto, todo razão e vontade pura. Identificado com o próprio ideal, só agora ele é ele mesmo. Não concebemos que outra coisa seja ser livre.” (ANTERO DE QUENTAL)
Kant
§43. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspetiva deontológica de
§43 ─ A. Alguns paradoxos com a teoria deontológica Ao afirmarmos que o critério para avaliar a moralidade duma ação reside na intenção (ou nos princípios práticos que elejo para deteminar a vontade) posso cair nalgumas situações paradoxais. A mais conhecida é a situação de um indivíduo que está prestes a afogar-se. Imagina que te aproximas desse indivíduo que está em dificuldades pois não sabe nadar. Tu também não sabes nadar, mas tens que fazer alguma coisa. O quê? Junto de ti descobres uma tábua. E pensas que se lhe atirares a tábua e se ele se agarrar à tábua conseguirá evitar ir ao fundo e poderá salvar-se. E assim fazes. Atiras-lhe a tábua, convencido que assim o vais salvar de morrer afogado. Só que a tábua bate-lhe na cabeça. Devido à pancada violenta, o indivíduo desmaia e acaba por se afogar. Oh!, que azar, dirias tu. Mas, o que diria Kant, que defende como critério da ação, o princípio prático que te orienta ao agires. Pois, Kant iria considerar que, apesar do resultado, acabaste de praticar uma ação moralmente válida, atendendo à tua (boa) intenção. Imaginemos agora outro desfecho. Temos à mesma um indivíduo dentro de água e prestes a afogar-se. Aproximas-te e reconheces o infeliz. Trata-se de um tipo que odeias, que é teu inimigo. Como junto de ti, descobres uma tábua de
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madeira, imediatamente pensas que podes atirar-lhe a tábua à cabeça e, assim, "despachálo". É uma ideia excelente, pensas tu, pois se ele morrer, toda a gente irá pensar que morreu afogado! É o crime perfeito! E se assim pensas, melhor o fazes. Pegas na tábua e, com toda a tua força, atiras-lhe a tábua, fazendo pontaria à cabeça. Só que falhas o alvo e o teu inimigo acaba por conseguir agarrar a tábua. Ora, ao agarrar-se à tábua, consegue encaminhar-se para a margem e salvar-se. O que diria, novamente, o senhor Kant? Bem, já sabemos o que ele pensa: apesar de teres salvo um indivíduo de morrer afogado, o filósofo alemão vai considerar como nada moral a ação que praticaste! Em suma: Kant valoriza-te quando o outro morre e condena-te quando ele se salva! Não é fantástico? §44. Teorias acerca da fundamentação da moralidade: a perspectiva consequencialista de Stuart Mill
§44 – A. Confronto entre as teorias deontológicas e as teorias consequencialistas Para um adepto das teorias deontológicas tudo aquilo que fazemos deve ser determinado por princípios. O princípio que afirma que «não se deve tirar a vida a um ser humano» deverá ser seguido, segundo as teorias deontológicas, em todas as ocasiões 39. Nesse sentido, um médico que seguisse esta orientação, deveria abster-se de praticar a eutanásia, mesmo que o paciente lho pedisse por estar em grande sofrimento e a sua doença ser comprovadamente fatal de forma irreversível. A vida é considerada um valor absoluto e, enquanto tal, fundamenta princípios que nos impedem de tirar a vida a alguém. Se um indivíduo não seguir princípios poderá vir a ter atuações contrárias entre si. Por exemplo, imaginemos um político que junto dos trabalhadores defende o direito à greve para obter o seu apoio e, logo a seguir, junto dos patrões, declara-se contra as greves para conseguir o voto do patronato. Para este político, o direito à greve não vale em si mesmo e não é um princípio a ser defendido e a ser seguido em todas as circunstâncias; aquilo que orienta e determina a sua ação é o interesse pessoal, o bem próprio, a sua ambição desmedida e para isso tentando sacar votos a toda a gente. Trata-se de um tipo de pessoas que nós designamos como não tendo princípios, um indivíduo sem princípios. Para ele são as circunstâncias que ditam o que ele deve fazer e, por essa razão, acabam por ter percursos sinuosos e ambíguos. Mas será que devemos ser atender exclusivamente aos princípios orientadores da ação? É que, em certas circunstâncias, devemos ter em conta as consequências da ação. Os resultados da ação devem ser considerados na avaliação da justeza e correção da ação. Os
39 Segundo Kant, um princípio acompanhado desta força obrigante, que obriga a ser seguindo de forma incondicional independentemente das circunstâncias, obriga de forma absoluta, isto é, tal princípio tem a forma dum imperativo categórico. Já aqueles que apenas obrigam em certas condições ou em vista de determinados fins são denominados imperativos hipotéticos.
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resultados da ação devem, em certas circunstâncias, ser tido também em consideração na avaliação moral da ação e não apenas as intenções e os princípios do sujeito. Imaginemos a seguinte situação. Uma empresa numa situação económica muito complicada, devendo já um mês de salários aos trabalhadores, e com empréstimos a bancos a serem pagos dentro de poucas semanas, recebe uma encomenda muito importante do estrangeiro que lhe permitirá, no prazo máximo de seis meses, alcançar uma situação financeira estável, eliminando todo o seu passivo. No entanto, os trabalhadores dessa empresa, por não lhes ter sido pago ainda o salário do mês anterior, decidem fazer greve durante uma semana. Essa greve irá impedir a empresa de satisfazer essa importante encomenda que vinha do estrangeiro. Neste caso, deve o respeito pelo princípio do direito à greve sobrepor-se às consequências resultantes da greve que se vai realizar? Ainda outro exemplo. Em determinados contextos, por exemplo, ao nível sãs políticas económicas, os resultados dessas mesmas políticas não podem ser postos completamente de lado. Por exemplo, em nome do princípio de que os acordos são para se cumprir, deve o governo português cumprir, custe o que custar, o que foi acordado com o FMI? Mesmo que os resultados da aplicação do acordo sejam desastrosos para a economia nacional e socialmente agressivos para as populações mais desfavorecidas? Partindo do princípio que o Estado deve ser uma pessoa honrada e de uma só palavra, deverá cumprir o acordo até ao fim, independentemente das consequências? §45. A relação entre a ética, do direito e a política Entre estas três dimensões – ética, direito e política – o que há de comum entre elas é, desde logo, o Homem. Com efeito, é o homem que está no centro das preocupações. No entanto, em cada uma dessas dimensões o Homem é tomado de diferentes maneiras. Ou o consideramos enquanto indivíduo que é uma realidade bio-psico-social, realizando-se no seio da sociedade e na relação com os seus semelhantes, sujeito de obrigações contratuais, condicionado por leis codificadas; ou é tomado enquanto pessoa, consciente de si mesmo e do outro, cujos direitos e deveres decorrem dum código moral não escrito e dum sistema ético que fundamenta e problematiza a sua atuação enquanto ser livre; ou, finalmente, assumindo-se como cidadão, intervindo na comunidade, simbolizada pela polis / civitas, espaços de afirmação e proteção de direitos, mas também de projeção de uma sociedade melhor. A relação entre ética e política parece-nos bem sintetizada nesta curto texto de Fernando Savater:
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“A ética é a arte de escolher o que mais nos convém para vivermos o melhor possível, o objetivo da política é organizar o melhor possível a convivência social, de modo a que cada um possa escolher o que lhe convém”40. A função do direito será a de enquadrar quer as escolhas pessoais, quer as das instituições políticas que as concretizarão, de forma a que decorram de forma pacífica, sem violação dos direitos das pessoas. É essa a função do poder político, que deverá controlar a vida pública da sociedade. §46. O Estado enquanto problema filosófico Uma das questões centrais da Filosofia política tem a ver com a origem do Estado. Trata-se de saber como é que determinados indivíduos, uma minoria, alcançaram uma posição de domínio sobre os outros que são a maioria. O Estado formou-se pela força ou resulta dum acordo entre os homens em que estes abdicam duma parte da sua liberdade e da sua autonomia e a entregam àqueles que irão dirigir a sociedade? O Estado é uma forma de poder e consiste num exercício mais ou menos violento de condução da sociedade. O problema que se levanta é o de saber que limites se devem estabelecer em relação ao poder, mesmo sabendo que este se justifica a si mesmo, afirmando que age em nome do bem público, isto é, do interesse da maioria. Essa é sempre a justificação do Estado: que estão a trabalhar no interesse dos outros que são a maioria, que estão a agir desinteressadamente, abnegadamente. Aquilo que nós vemos é que a maioria vive cada vez pior e uma minoria vive cada vez melhor. Assim, onde é que está o interesse público? Significa isto que a reflexão sobre o Estado, deve ser acompanhada por uma investigação sobre os mecanismos de controlo da atividade do Estado. Apesar da omnipresença do estado, cada homem não deixa de ser um cidadão, isto é, alguém com direitos e que observa criticamente a realidade.
§47. O homem e o Estado: a perspetiva clássica: Aristóteles
§48. O homem e o Estado: a perspetiva contratualista moderna: John Locke –
40 Fernando Savater, Ética Para Um Jovem, Lisboa, Editorial Presença, 1995, p.
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§ 48. – A Do estado de natureza à natureza do Estado41 A política remete-nos imediatamente para a questão do poder político. Se a política se prende com o encontrar das melhores maneiras de conduzirem uma comunidade à fruição do melhor e maior bem-estar possível, então temos também que ter em conta os meios para realizar esses fins; neste âmbito estamos a referirmo-nos à magna questão do poder político e do Estado. POLÍTICA ─ PODER POLÍTICO ─ SOCIEDADE MELHOR
O poder político está associado ao Estado. Quando falamos do poder lembramo-nos imediatamente do Estado. E isto porque associamos à ideia de Estado a ideia de exercício do poder. O Estado é uma entidade omnipresente. O Estado não é o mesmo que governo, indicia uma realidade mais ampla e complexa que o governo duma nação. As instituições do Estado englobam o governo, mas também o parlamento, os tribunais e as polícias. Apesar dessa omnipresença, o Estado nunca existiu desde sempre. É possível imaginar sociedades sem Estado, comunidades que se organizaram sem recorrer ao Estado e que dispensaram a atuação do Estado. Há filósofos que ficcionaram uma dada sociedade sem Estado e que denominaram, regra geral, por estado de natureza. No estado de natureza deparamos com uma situação em que o Estado não existe e ninguém detém o poder42. Para
ROUSSEAU
(1712-1778)
e
John
LOCKE
(1632-1704)
haveria
exemplos
contemporâneos de povos a viver num estado de natureza. Para LOCKE, isso aplicava-se a muitos grupos que viviam na América do século XVII. Para Thomas HOBBES (1588-1679) era a situação negra do estado de natureza que justificava a necessidade do estado 43. Assim, o estado existe naturalmente, é natural para os seres humanos. “Se os seres humanos existem, também existe o Estado” 44. Vejamos como HOBBES descreve o estado de natureza no Leviatã: « [No estado de natureza] não há lugar para a Indústria porque o seu produto é incerto e, consequentemente, não há Cultivo da Terra, Navegação, nem utilização dos bens que têm de ser importados por via marítima, não há Construção espaçosa, não há Meios para deslocar e retirar coisas que requeiram muita força, não há Conhecimento da face da Terra, nenhum registo do Tempo, não há Artes nem Letras, não há Sociedade e, pior
41 Seguimos neste parágrafo Jonathan WOLFF, Introdução à Filosofia Política, Lisboa, Gradiva, 2004 42 Cf. Jonathan Wolff, Introdução à Filosofia Política, Lisboa, Gradiva, 2004, pp. 18-19. 43 A obra mais conhecida de Hobbes é o Leviatã (publicada em 1651) e trata de um assunto que o preocupou durante muitos anos: as consequências nefastas da guerra civil e a anarquia que daí decorre. É perante essas duras realidades que Hobbes conclui pela necessidade dum Estado protector e dum governo forte que impeça a sociedade de cair num estado de guerra de todos contra todos.
44 WOLFF, Jonathan, Introdução à Filosofia Política, p. 19
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que tudo o resto, há um medo contínuo e o risco de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, desagradável, brutal e breve.» (Thomas HOBBES, Leviatã, 186) O estado de natureza segundo HOBBES é um estado de incerteza, onde não há lugar para as actividades produtivas e artísticas. Não há sociedade, mas um receio constante, acentuado pelo risco de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, desagradável, brutal e breve. O estado de natureza é um estado de guerra porque na ausência de governo, a natureza humana conduz-nos inevitavelmente para o conflito. A filosofia política de HOBBES requer, assim, um conhecimento da natureza humana. Porque é que no estado de natureza as pessoas são levadas a competir? Porque são iguais (e o mais fraco é capaz de eliminar o mais forte) e existe uma escassez de bens, pelo que mais que uma pessoa acabará por desejar a mesma coisa. Aquilo que eu possuo pode ser desejado por outro pelo que tenho de estar alerta. Eu, assim, não me livro do medo e os outros vêem-me como uma ameaça. O estado de natureza é, deste modo, um estado de guerra. «Desta igualdade de capacidade surge a igualdade da esperança de conseguir alcançar os nossos Fins. Por conseguinte, se dois homens desejam a mesma coisa – que, todavia, não podem ambos possuir – tornam-se inimigos e, na via para alcançar o seu Fim (que é sobretudo a sua própria conservação e por vezes apenas o seu deleite), procuram destruir-se, ou dominar-se, mutuamente. E, daqui, conclui-se que se um Invasor nada tem a temer além do poder solitário de um homem – se um planta, semeia, constrói ou possui um Lugar confortável – poder-se-á provavelmente esperar que os outros venham preparados com forças unidas para desalojá-lo e privá-lo, não apenas do fruto do seu trabalho, mas também da sua vida ou liberdade. E, por sua vez, o Invasor corre o risco semelhante de ser atacado por outrem.» HOBBES, Leviatã, 184) Aqueles que desejam a mesma coisa tornam-se inimigos e para atingir o seu fim procuram destruir-se. Segundo HOBBES as pessoas procuram os meios e o poder para satisfazer os seus desejos futuros. Em suma, HOBBES vê três razões principais para a agressão no estado de natureza: lucro, segurança e glória ou reputação. Os seres humanos, na sua busca de felicidade, tratam constantemente aumentar o seu poder (o meio para atingir bens futuros). Os seres humanos procuram satisfazer os seus desejos egocêntricos, mas na origem da guerra também está o medo. Como se vê, Hobbes não teve em conta a moralidade. Os seres humanos são diferentes, a maioria aceita que não se deve atacar as outras pessoas, nem privá-las dos seus bens.
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No estado de natureza haveria sempre uma minoria que se comportaria de maneira que Hobbes descreve, que roubaria e mataria; mas haveria também pessoas suficientes com sentido moral para impedir que uma minoria os conduzisse a uma guerra generalizada. Ora, para Hobbes, parece que não há moralidade no estado de natureza. A injustiça consiste na violação de uma lei, mas para que a lei exista é necessário um poder para a fazer cumprir, o que não existe. No estado de natureza não existe qualquer poder comum, pelo que não há lei e, portanto, não poderá haver violação da lei. Pelo que também não há injustiça. Cada pessoa tem a liberdade de usar o seu poder adequado à preservação de si próprio. “À liberdade de agir consoante se julgue adequado à preservação de si próprio chama Hobbes o «direito natural»”45. Parece que se pode concluir que, para Hobbes, no estado de natureza é permitido fazer tudo, se isso ajudar à nossa sobrevivência. Em suma, no estado de natureza não justiça, nem injustiça, não há certo nem errado. É a isto que Hobbes chama «Direito Natural de Liberdade». Para além do direito natural, existe também, no estado de natureza, aquilo a que ele chama «Leis da Natureza». São dezanove leis, mas poderiam resumir-se na formulação negativa da regra de ouro bíblica que diz: faz aos outros o que gostarias que eles te fizessem a ti. A fórmula de Hobbes é «não faças aos outros o que não farias a ti mesmo». Assim, as leis da natureza são uma espécie de código moral. Contudo, Hobbes não descreve as leis da natureza como leis morais, mas apenas teoremas ou conclusões da razão.
Racionalidade colectiva e racionalidade individual. As leis da natureza traduzem o que é racional colectivamente; é aquilo que é melhor para cada um, esperando que todos vão agir da mesma forma. Há casos em que a racionalidade individual diverge da racionalidade colectiva (exemplo dos camponeses que cultivam uma parcela de terreno numa encosta parcialmente arborizada dum monte; cada um abate as árvores para aumentar a área de terreno cultivável, mas depois vem a chuva forte que, na encosta e não encontrando árvores, arrasta todos os terrenos e provoca aluimentos). Ora, no estado de natureza de Hobbes
§49. A teoria da justiça de John Rawls §49 – 1. Conflito e cooperação nas sociedades contemporâneas; a relação entre a liberdade e igualdade [incompleto]
45 Wolff, p. 27
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Em todas as sociedades existem dinâmicas que exprimem quer conflitos de interesses, quer processos de solidariedade e cooperação entre os seus membros. Os conflitos podem resultar do choque de interesses dos vários grupos sociais (patrões e empregados, proletariado e burguesia, grevistas e fura-greves), das várias gerações, das minorias com as tendências dominantes. Mas há também conflitos entre o indivíduo e o grupo, entre o cidadão e o Estado. Os conflitos resultam do choque entre interesses antagónicos, nomeadamente entre o interesse privado e o interesse público. Porém, a sociedade não é apenas conflito, até porque se assim fosse, a própria sociedade acabava por implodir. Não só existem mecanismos que regulam os diferendos, como também assistimos nas sociedades atuais a fenómenos de comovente solidariedade e cooperação. Por isso, poder-se-ia dizer que a sociedade é simultaneamente conflito e cooperação. §49 – 2. Rawls critica o utilitarismo [incompleto] A crítica do utilitarismo levada a cabo por John Rawls estende-se por vários aspetos, nomeadamente: a) Falta-lhe um princípio absoluto que sirva de critério universal para decidir o que é justo ou injusto; b) Subordina o individuo a interesses sociais, não lhe reconhecendo direitos fundamentais invioláveis; veja-se, por exemplo, a situação de um indivíduo que se auto-imola pelo fogo para chamar a atenção dos meios de comunicação social para a situação do seu grupo, sacrifica o direito á vida pelos interesses da maioria; c) Não considera a forma justa ou injusta como a felicidade é distribuída; os utilitaristas valorizam o resultado, não se deixando condicionar pelos meios utilizados para atingir esse resultado. §49 – 3. A escolha racional dos princípios da justiça [incompleto] O ser humano é um ser social, mas a vida em sociedade não é isenta de conflito. Para a gestão dos conflitos é necessário que existam princípios para estabelecer critérios para a avaliação das pretensões em disputa e a superação dos conflitos. Estes princípios servirão de critérios para a distribuição de direitos e deveres entre os cidadãos e a distribuição dos encargos e benefícios resultantes da cooperação social. Ora, antes de definirmos os princípios e decidir sobre o seu conteúdo, coloca-se a questão de saber como é que se chega a uma escolha consensual desses princípios.
§49 – D. Crítica às teorias de Rawls a) a crítica de Robert Nozick
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Uma das principais críticas à teoria da justiça de Rawls é dirigida à aplicação do princípio da diferença. A redistribuição dos bens de forma a compensar os mais desfavorecidos é criticada por Nozick (1938-2002) que vê na tributação dos rendimentos do trabalho uma forma equiparável ao trabalho forçado, criticando assim o sistema fiscal que se apropria da parte de rendimento que corresponde a determinado número de horas de trabalho. Seria o mesmo que subtrair à propriedade privada de alguém bens que são direitos seus. Segundo Nozick, a redistribuição vila o princípio de Rawls que defende a igual liberdade. [Ver Robert NOZICK; Anarquia, Estado e Utopia, Ed. 70, pp. 213-215] Roberto Nozick retomará a crítica de Friedrich von Hayek contra a progressividade dos impostos e segundo a qual os mais ricos veriam o seu rendimento ser tributado por um imposto mais elevado que aquele que é aplicado aos contribuintes de recursos menos elevados. Segundo Hayek, a possibilidade de uma maioria, porque é maioria, poder aplicar a uma minoria uma regra que não aplicará a si mesma, é uma violação dum princípio elementar. Ora, Nozick retoma aqui um tema caro á tradição libertária ao considerar necessário a ausência da ingerência do público na esfera individual. Segundo Hayek, trata-se de um abandono do princípio fundamental da igualdade perante a lei. b) outras críticas e outros críticos O princípio da igualdade de oportunidades também é objeto de críticas. Alguns filósofos consideram que a garantia de igualdade de acesso a diferentes posições sociais não é realizável. Nomeadamente, por razões culturais. A discriminação positiva pode levar à ascensão de cidadãos menos capazes, o que originaria uma nova desigualdade. Também há quem critique as teorias da redistribuição porque pode conduzir a tentativas de nivelamento que desmotivem o esforço e a competição. Uma taxação exagerada pode conduzir o cidadão a cruzar os braços e a desistir de se esforçar mais. Por isso se diz até que se fosse descoberto petróleo nos terrenos da Rainha de Inglaterra, nunca se procederia à sua exploração, porque os altíssimos níveis que recaem sobre os rendimentos da coroa, desmotivam esta de produzir mais (ou qualquer coisa)! Outros críticos do princípio da diferença criticam o facto de a justiça distributiva implicar uma excessiva intervenção do Estado46.
§50. A experiência estética §50 – 1. Quando um acontecimento se torna numa experiência para o sujeito
46 Ver NOZICK, op. cit., pp. 207-213.
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De entre todas as coisas que acontecem na vida de uma pessoa, nem todas são recordadas como uma experiência, nem todas se elevaram a essa condição. O que é que faz dum acontecimento uma verdadeira experiência? Todos os dias acordo, lavo os dentes, ato os sapatos. Esses acontecimentos e gestos diários, apesar da sua repetição e, portanto, do elevado número de vezes que ocorreram, não são, na maioria dos casos, aquilo que designamos por experiências. O que faz dum acontecimento uma verdadeira experiência é mais as suas repercussões no sujeito, que o acontecimento em si. Com efeito, o sujeito pode afirmar que passou por uma experiência na medida em que ela deixou marcas no sujeito e este aprendeu e cresceu com isso. A experiência é o que mexe com o sujeito, que o abana e abala e por isso o sujeito que sai da experiência já não é o mesmo. Pensemos nas viagens que já fizemos na nossa vida. Poderá alguma traduzir-se por ter sido uma autêntica experiência? O que é que aconteceu nessa viagem? Ou melhor o que é que aconteceu em mim por causa dessa viagem?
§50 – 2. Caraterização da experiência estética O sujeito, diante da realidade, passa por várias experiências, assume diversas perspetivas e sente várias emoções. A mesma realidade, por exemplo, pode suscitar vários tipos de experiência. Consideremos, por exemplo, uma trovoada durante a noite sobre o mar. Podemos, neste caso, experimentar sensações de caráter religioso, mesmo místico, considerando as forças da Natureza como expressão divina naquele momento manifestando-se de forma radical. Podemos, também, assumir uma perspetiva científica, observando e analisando o fenómeno enquanto descarga eletromagnética. Mas a visão de uma violenta trovoada noturna também pode proporcionar uma experiência estética. Neste caso, o que é que está a acontecer? O que carateriza a experiência estética? Quando nos colocamos diante dos objetos, podemos assumir várias atitudes, que acabarão por condicionar a minha interpretação e a própria construção da representação. Podemos assumir uma atitude técnica se olharmos as coisas na perspetiva da sua capacidade para produzir algo; podemos assumir uma atitude pragmática se nos interessarmos pela utilidade do que observamos; podemos assumir uma atitude teórica se olharmos para a realidade com o intuito de a compreender ou de a explicar; podemos assumir uma atitude religiosa, se interpretarmos a realidade como criação ou mesmo presença do divino, a presença de uma realidade superior; posso, finalmente, ter uma atitude estética se tiver em conta o belo ou o feio que há nas coisas e., nesse sentido, me deixar conduzir pela sensação de satisfação e de prazer (ou de desprazer) que me proporcionam. Por isso se diz, também, que a atitude estética é uma atitude desinteressada, que apenas tem em conta o prazer ou o desprazer provocados pela perceção das coisas. A experiência estética também acontece no processo criativo. O artista, e todos aqueles que criam algo de novo, passam por uma experiência estética, obtendo prazer quer
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do produto final, quer do processo de criação que envolve a imaginação para além das habilidades técnicas. No processo criativo, o homem assemelha-se com o Criador, através desse processo de criação ex nihilo. Em suma, a experiência estética é um estado do sujeito em que se experimentam sensações de prazer (ou de desprazer) provocadas por situações, acontecimentos ou elementos da natureza ou objetos artísticos. Pelas sensações de prazer ou agrado que nos proporcionam, somos levados a classificar esses objetos como belos. «A experiência estética é um estado afetivo de agrado e de prazer suscitado pela apropriação subjetiva de um objeto, seja a contemplação da natureza, seja a criação ou a contemplação de uma obra de arte.» (manual Pensar Azul)
§50 – 3. Atitude e sensibilidade estéticas A atitude estética é uma atitude desinteressada porque apenas tem em vista o prazer proporcionado pela contemplação do objeto. Quando contemplamos um quadro de Bosch ou quando escutamos uma peça de Philip Glass não estamos motivados por qualquer sentimento de utilidade. A obra de arte não é útil como uma esferográfica ou um frigorífico. A obra de arte ‘serve’ para dar prazer, para ser fruída e nesse sentido não se lhe vê qualquer utilidade. Mas a sua inutilidade acaba por valorizar ainda mais a criação artística. O que é que move ou motiva, em última instância, o criador de obras de arte? Alguns artistas responderão que são movidos por uma espécie de necessidade interior, outros dirão que pretende comunicar sentimentos, ideias, dar a conhecer problemas sociais e apresentar propostas e projetos; a arte também tem uma função social que complementa a sua dimensão comunicativa. Em relação à sensibilidade estética e artística podemos considerá-la como sendo a capacidade de compreender ou apreciar mesmo sem compreender as obras de arte de que se gosta ou não, emitindo ou não um determinado juízo mais ou menos elaborado. Em todos os homens e em todas as sociedades encontramos a sensibilidade estética. Todas as pessoas têm a preocupação de agradar a si e aos outros em termos estéticos. Há quem faça dessa preocupação uma obsessão: imaginemos alguém que antes de sair à rua demora mais de duas horas a arranjar-se, a escolher a roupa e os acessórios, vestindo-se e despindo-se várias vezes, mirando-se de todos os ângulos e muitas vezes, depois desse prolongado exercício, opta por não sair, barafustando porque não tem nada para vestir. Mas esta atitude e sensibilidade é equiparável ao indivíduo que passa todos os dias uma hora ou mais a puxar o lustro à carroçaria do seu carro. §50 – 4. Objetivismo e subjetivismo na experiência estética Quando falamos de objeto artístico, isso pode ser em dois sentidos: objetivo, se nos referimos àquilo que o sujeito contempla; subjetivo se nos estamos a referir à representação mental do objeto artístico.
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§50 – 5. Teorias acerca da natureza da Arte e da obra de arte A Estética47 é uma disciplina da Filosofia que analisa a experiência estética e aborda e discute os problemas relativos ao belo, ao gosto e à natureza da arte e das obras artísticas. À pergunta sobre a natureza da arte e da obra de arte surgem várias respostas, que se fundamentam em tantas outras teorias da arte.
a) A arte como imitação – mimesis Uma primeira posição defende que a arte e a obra de arte imitam a natureza. Esta é a posição que foi defendida por Aristóteles na sua obra Poética. Esta posição foi desenvolvida através doutras teorias que se sucederam. Por exemplo, nas teorias literárias, com o naturalismo e o realismo. A função da arte (ou da literatura) seria a reprodução o mais fiel possível da realidade. É isso que faz com que se soltem exclamações por parte de quem vê um quadro e diz, “parece-se mesmo com a realidade!”.
b) A arte como expressão da subjetividade do autor – expressivismo No entanto, se considerarmos, a título de exemplo, o universo da pintura, facilmente deparamos com quadros que não reproduzem fielmente a realidade. Nem foi essa a intenção do seu autor. Com efeito, nalguns casos, o que o pintor pretende é exprimir o seu mundo de sentimentos e emoções. Para outra teoria acerca da natureza da arte e da obra de arte, defende-se que a arte não se deve limitar a reproduzir a realidade, porque a obra de arte também exprime e comunica os sentimentos, emoções e desejos do seu autor; como também deve procurar provocar esses mesmos sentimentos em que recebe a obra (público, leitor, espetador). Esta teoria recebeu o nome de expressivismo.
c) Finalmente, uma outra teoria é o formalismo, onde o que é importante na obra de arte é a organização dos seus elementos, organização que faz ressaltar a sua forma significante. Os quadros de Piet Mondrian, por exemplo, não são essencialmente significativos pelo seu conteúdo figurativo. O seu conteúdo “reduz-se” invariavelmente às cores básicas que preenchem formas geométricas também elas elementares (quadrados ou retângulos principalmente). Nos quadros de Mondrian há uma vitória da forma, da organização do espaço, da redução da multiplicidade aos seus elementos mais básicos ou puros. E nesse sentido há como que uma busca do Absoluto. É a forma que é significativa, o seu conteúdo é a
47 A palavra ‘estética’ deriva do grego…… [incompleto]
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forma. É como se tivéssemos recuado a um momento anterior à criação das coisas e estivéssemos no cadinho donde sairá tudo. Estas formas básicas são o Absoluto, o Deus antes da criação.
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Bibliografia André Bonnard, Civilização Grega – da Ilíada ao Parténon, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1966, pp. 23-24 Bruno Giuliani, O Amor da Sabedoria – iniciação à Filosofia, Lisboa, Instituto Piaget, 2002, 308 pp. Pierre LÉVY, As tecnologias da inteligência, Lisboa, Instituto Piaget, ***** John SEARLE, Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa, Edições 70, Jonathan WOLFF, Introdução à Filosofia Política, Lisboa, Gradiva, 2004
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