Fernando Pessoa Por Ele Mesmo
April 21, 2017 | Author: aniverso | Category: N/A
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
O ENIGMA EM PESSOA Introdução à obra de Fernando Pessoa
Uma vida e muitas invenções Ao escrever sobre Fernando Pessoa, o poeta mexicano Octavio Paz declara que “os poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. Afirma ainda, que, no caso de Pessoa, “nada em sua vida é surpreendente -nada, exceto seus poemas”. Homem de vida pública modesta, Fernando Pessoa dedicou-se a inventar. Através da poesia, criou outras vidas, despertando, assim, o interesse por sua própria vida tão pacata. Tornou-se, portanto, o enigma em pessoa.
Nascido em Lisboa, no dia 13 de junho de 1888, Fernando Pessoa perdeu o pai aos cinco anos de idade. Em 1896, a família se transfere, levada pelo segundo marido de sua mãe, para a cidade de Durban, na África do Sul. Lá, cursa o secundário, cedo revelando seu pendor para a literatura. Em 1903, ingressa na Universidade do Cabo.
Fernando Pessoa, educado em inglês, adquiriu o gosto pela poesia lendo Milton, Byron, Shelley, Edgar Allan Poe e outros poetas de língua inglesa. Deixando a família em Durban, o jovem estudante, que até pensava em inglês, retorna a Portugal. Fernando Pessoa matricula-se, então, no Curso Superior de Letras, que logo abandona, e entra em contato com os grandes escritores da língua portuguesa. Impressiona-se sobremaneira com os sermões do Padre Antônio Vieira (1608-1697) e particularmente com a obra de Cesário Verde (1855-1886), Em 1908 começa a trabalhar como tradutor de cartas comerciais para empresas estrangeiras. Deste emprego modesto tirará o sustento durante toda a vida. Boêmio, encontra-se com os amigos em cafés, especialmente a "Brasileira do Chiado" para discutir literatura. Em 1912 conhece o poeta Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916), de quem se tornaria grande amigo. Em Paris, no dia 26 de abril de 1916, Sá-Carneiro, após escrever cartas angustiadas a Fernando Pessoa, comete o suicídio. A revista Orpheu, fundada em 1915 por Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, e outros amigos, como Almada Negreiros e Luís de Montalvor, representa o marco inicial do Modernismo em Portugal. Após a notoriedade, nem sempre positiva, adquirida com a publicação de Orpheu, Pessoa mergulha em anos de relativa obscuridade. Publica um pequeno volume de poemas em inglês, Antinuos and 35 Sonnets (1918), ensaios e poemas esporádicos em algumas revistas, funda outras, envolve-se com o ocultismo e a magia negra, dedica-se ao estudo da astrologia. Em 1934 publica, tomando dinheiro emprestado, o livro Mensagem, e com ele participa do prêmio "Antero de Quental". Recebe o prêmio de Categoria B. No dia 30 de novembro de 1935, morre de cirrose hepática. Fernando Pessoa nunca teve, em vida, o reconhecimento que merecia. Viveu modestamente, em relativa obscuridade. Em vida, teve apenas dois livros publicados: alguns poemas em inglês e Mensagem.
Fernando Pessoa, por ele mesmo
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publicadas e ele é considerado hoje, ao lado de Camões, um dos dois maiores poetas portugueses de todos os tempos. Nenhum poeta, em língua portuguesa, obteve tanto prestígio em todo o mundo. O obscuro e modesto lisboeta tornou-se, assim, um nome importante em todo o mundo. Graças ao poder da palavra. Graças à magia da poesia.
Os heterônimos
Pessoa e os heterônimos
Desde cedo, Fernando Pessoa inventara seus companheiros. Ainda em Durban, imagina os heterônimos Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher. Cria também o especialista em palavras cruzadas Alexander Search e outras figuras menores. Mas seria no dia 8 de março de 1914 que os heterônimos começariam a aparecer com toda a força. Neste dia, Pessoa escreve, de uma só vez, os 49 poemas de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro. Como resposta, escreve também os seis poemas de Chuva Oblíqua, que assina com seu próprio nome. Logo, inventaria Álvaro de Campos e, em junho do mesmo ano, Ricardo Reis. Um semi-heterônimo de Pessoa, Bernardo Soares, só em 1982 teve sua obra, O Livro do Desassossego, composta por fragmentos de prosa poética, publicada. Álvaro de Campos e Ricardo Reis, assim como o próprio Pessoa, consideravam-se discípulos de Alberto Caeiro, mas cada um seguiu os ensinamentos do mestre à sua forma, e chegaram até a travar uma polêmica muito interessante sobre o fazer poético. A última frase de Fernando Pessoa foi escrita em inglês no dia de sua morte: “I know not what tomorrow will bring” ou “Eu não sei o que o amanhã trará” O amanhã trouxe para Fernando Pessoa uma admiração crescente. Suas obras foram aos poucos sendo
Mais do que meros pseudônimos, outros nomes com os quais um autor assina sua obra, os heterônimos são invenções de personagens completos, que têm uma biografia própria, estilos literários diferenciados, e que produzem uma obra paralela à do seu criador. Fernando Pessoa criou várias dessas personagens. Três deles foram excelentes poetas e seus poemas estão nesta antologia, lado a lado com os que Pessoa assinava com seu próprio nome. Os estudiosos seguem discutindo por que Pessoa teria criado seus heterônimos. Seria esquizofrenia? Psicografia? Uma grande piada? Um genial jogo de marketing poético? De certo, sabemos que a genialidade de Fernando Pessoa é grande demais para caber em um só poeta. Como bem o sintetizou o seu heterônimo mais atribulado, Álvaro de Campos: "Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, Quanto mais personalidades eu tiver, Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, Estiver, sentir, viver, for, Mais possuirei a existência total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fora." Além disso, Fernando Pessoa viveu durante os primórdios do Modernismo, uma época em que a arte se fragmentava em várias tendências simultâneas, as chamadas Vanguardas: Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo e muitas outras. A arte, no momento da explosão das inúmeras vanguardas modernistas por todo o mundo, também se dividia e se multiplicava. Fernando Pessoa, introdutor das
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vanguardas modernistas em Portugal, ao se dividir, levou a fragmentação da arte moderna às últimas conseqüências.
desejar: “Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem?” Caeiro coloca-se, portanto, como inimigo do misticismo, que pretende ver “mistérios” por trás de todas as coisas. Busca precisamente o contrário: ver as coisas como elas são, sem refletir sobre elas e sem atribuir a elas significados ou sentimentos humanos:
Alberto Caeiro (1889 - 1915) Fernando Pessoa explicou em detalhes a “vida”de cada um de seus heterônimos. Assim apresenta a vida do mestre de todos, Alberto Caeiro: "Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso." Pessoa cria uma biografia para Caeiro que se encaixa com perfeição à sua poesia, como podemos observar nos 49 poemas da série O Guardador de Rebanhos, incluída por inteiro nesta antologia. Segundo Pessoa, foram escritos na noite de 8 de março de 1914, de um só fôlego, sem interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz exatamente a busca fundamental de Alberto Caeiro: completa naturalidade. “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem por que ama, nem o que é amar...” Caeiro escreve com a linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês pouco ilustrado. Pratica o realismo sensorial, numa atitude de rejeição às elucubrações da poesia simbolista. Assim, constantemente opõe à metafísica o desejo de não pensar. Faz da oposição à reflexão a matéria básica das suas reflexões. Esse paradoxo aproxima-o da atitude zen-budista de pensar para não pensar, desejar não
“Os poetas místicos são filósofos doentes, E os filósofos são homens doidos. Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem E dizem que as pedras têm alma E que os rios têm êxtases ao luar. Mas as flores, se sentissem, não eram flores, Eram gente; E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras; E se os rios tivessem êxtases ao luar, Os rios seriam homens doentes.” É importante lembrar que os poetas simbolistas, que antecederam Fernando Pessoa, estavam impregnados de forte misticismo, herdado da poesia romântica. Enquanto românticos e simbolistas carregavam seus poemas de religiosidade, Alberto Caeiro procura, de forma coerente e lógica, afastar-se da reflexão sobre Deus.
“Pensar em Deus é desobedecer a Deus, Porque Deus quis que o não conhecêssemos, Por isso se nos não mostrou...” Seguindo esta linha de pensamento religioso, Caeiro escreve um poema muito ousado sobre o menino Jesus. No poema VIII de O Guardador de Rebanhos, destituído de santidade, Cristo é representado como uma criança normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso, está a religiosidade de Caeiro. Em perfeita consonância com sua busca de simplicidade e espontaneidade, Alberto Caeiro escreve versos livres (sem métrica regular) e brancos (sem rimas).
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desfrutar de prazeres contemplativos e regrados: "Prazer, mas devagar, Lídia, que a sorte àqueles não é grata Que lhe das mãos arrancam. Furtivos, retiremos do horto mundo Os deprendandos pomos." As odes de Reis, como as de Píndaro, recorrem sempre aos deuses da mitologia grega. Este paganismo, de caráter erudito, afasta-se da convicção de Alberto Caeiro de que não se deve pensar em Deus. Para Ricardo Reis, os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos homens: "Acima da verdade estão os deuses. Nossa ciência é uma falhada cópia Da certeza com que eles Sabem que há o Universo.
Ricardo Reis (1887 - 1935?) Se Alberto Caeiro era um camponês autodidata desprovido de erudição, seu discípulo Ricardo Reis era um erudito que insistia na defesa dos valores tradicionais, tanto na literatura quanto na política. De acordo com Pessoa: "Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria." Discípulo de Caeiro, Reis retoma o fascínio do mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo. Insiste nos clichês árcades do Locus Amoenus (local ameno) e do Carpe Diem (aproveitar o momento). Neoclássico Reis busca o equilíbrio, a "Aurea Mediocritas" ( equilíbrio de ouro) tão prezada pelos poetas do século XVIII. A busca da espontaneidade de Caeiro transforma-se em Reis, na procura do equilíbrio contido dos clássicos. Deixa de ser uma simplicidade natural e passa a ser estudada, forjada através do intelecto:
Álvaro de Campos (1890 - 1935?) Fernando Pessoa nos informa que Álvaro de Campos: “Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade."
“Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim como em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.” A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um vocabulário erudito e, muito apropriadamente, seus poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe rebuscada. Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis. Nelas, convida pastoras como Lídia, Neera ou Cloe para
Como normalmente acontece com os poetas de carne e osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta três fases distintas em sua poesia. De início é influenciado pelo decadentismo simbolista, depois pelo futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e desiludidos. No poema Opiário, o engenheiro Campos, influenciado pelo simbolismo, ainda metrifica e rima. Escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor
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autobiográfico e já se apresenta amargurado e insatisfeito: "Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda. Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmolas às portas da alegria." Campos em seguida envereda pelo futurismo, adotando um estilo febril, entre as máquinas e a agitação da cidade, do que resultam poemas como Ode Triunfal: "À dolorosa luz das lâmpadas elétricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos." Desta fase são também a Ode Marítima e a Saudação a Walt Whitman. Homenageando o grande escritor norte-americano, Campos, além de se referir ao conhecido homossexualismo de Whitman, de que parece comungar, revela uma das mais fortes influências sobre o seu estilo: Os poemas de Álvaro de Campos são marcados pela oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa. Despreza a rima ou métrica regular. Despeja seus versos em torrentes de incontrolável desabafo. A última fase do heterônimo Álvaro de Campos, em que pontifica o poema Tabacaria, apresenta um poeta amargurado, refletindo de forma pessimista e desiludida sobre a existência: "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Assim como Ricardo Reis, também Álvaro de Campos confessa-se discípulo de Alberto Caeiro. Mas se Reis envereda pelo neoclassicismo ao tentar imitar o mestre, Campos se revela inquieto e frustrado por não conseguir seguir os preceitos de Caeiro. No poema que se inicia pelo verso "Mestre, meu mestre querido", dialoga com Caeiro, revelando toda sua angústia: "Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada. (...) A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação."
Fernando Pessoa, ele mesmo A obra que Fernando Pessoa assinou com seu próprio nome está reunida nos volumes Cancioneiro e Mensagem. O ancioneiro é composto por poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência simbolista. É do Cancioneiro um dos poemas mais célebres de Pessoa, Autopsicografia, em que reflete sobre o fazer poético: "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm." O leitor atento há de perceber que o poeta parte de uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade pode ser ator. Como Fernando Pessoa. Já os leitores, lêem no poema a dor ou o sentimento que lhes falta e que gostariam de ter. Sentem-na ao atribuí-la a poeta. Mensagem (1934), foi o único livro em língua portuguesa publicado por Pessoa. Os poemas do livro estão organizados de forma a compor uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos líricos acaba formando um elogio de teor épico a Portugal. Traçando a história do seu país, Pessoa envereda por um nacionalismo místico de caráter sebastianista. O livro Mensagem está dividido em três partes: Brasão, Mar português e O Encoberto. Na primeira, conta-se a história das glórias portuguesas. Na segunda, são apresentadas as navegações e conquistas marítimas de Portugal. Na terceira, é apresentado o mito sebastianista de retorno de Portugal às épocas de glória. A primeira parte de Mensagem, Brasão, se estrutura como o brasão português, que é formado por dois campos: um apresenta sete castelos, o outro, cinco quinas. No topo do brasão, estão a coroa e o timbre, que apresenta o grifo, animal mitológico que tem cabeça de leão e asas de águia. Assim se dividem os poemas desta parte, remetendo ao brasão de Portugal. Versam sobre as
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grandes figuras da história de Portugal, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalenses, passando por sua esposa, Dona Tareja, e seu filho, primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques, até o infante Dom Henrique (1394-1460), fundador da Escola de Sagres e grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e Afonso de Albuquerque (1462-1515), dominador português do Oriente. Até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de Ulissepona, depois Lisboa, é apresentado: "O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo."
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Nota biográfica escrita por Fernando Pessoa em 30 de Março de 1935 e publicada, em parte, como introdução ao poema editado pela Editorial Império em 1940 e intitulado: "À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais")
Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa
A segunda parte, Mar português, apresenta as principais etapas da expansão ultramarina que levou Portugal a ocupar um lugar de destaque no mundo durante os séculos XV e XVI:
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio nº 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório), em 13 de Junho de 1888.
"E ao imenso e possível oceano Ensinam estas Quinas, que aqui vês, Que o mar com fim será grego ou romano: O mar sem fim é português."
Filiação: Filho legítimo de Joaquim Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do General Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do Conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto, e que foi director-geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral - misto de fidalgos e de judeus.
Já a última parte, O Encoberto, apresenta o misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Portugal cuja frota foi dizimada em ataque aos mouros em 1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a do padre Antônio Vieira, prevêem o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre o mundo: "Grécia, Roma, Cristandade, Europa, os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu dom Sebastião?"
Profissão: A designação mais prórpia será "tradutor", a mais exacta a de "correspondente estrangeiro em casas comerciais". O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.
Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargosn públicos, ou funções de destaque, nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: "35 Sonnets" (em inglês), 1918; "English Poems I-II" e "English Poems III" (em inglês também), 1922, e o livro "Mensagem", 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria "Poema".
Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Raínha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.
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Ideologia política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação orgânicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.
Posição iniciática: ....................................................................... .......................................... ....................................................................... ....................................................................... ..
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolidatoda infiltração católica-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: "Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação."
Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.
Resumo destas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente. Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta Segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais: assim tudo acaba em silêncio e poesia. Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro - os que jazem perdidos no passado remota da minha infância quase esquecida. Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagâ. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-s-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo (tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis). Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e
Lisboa, 30 de Março de 1933
====== "...E contudo - penso-o com tristeza - pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples! Creio que respondi à sua pergunta. Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!
apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escrito que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa.
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Imediatamente e totalmente. Foi o regresso de Fernando Pessoa - Alberto Caeiro a Fernando Pessoa - ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-me a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria. Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema "antigo" do Álvaro de Campos um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haveriam de ser depois de reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão... Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precise de um esclarecimento mais lúcido - estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido -, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro! Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante da mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 não me lembro do dia e mês (mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve
profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 horas da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil quanto era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1,75m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe cedo e pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico: vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre. Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que sùbitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos,
aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim, é escrever a prosa de Reis - ainda inédita - ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
(Extractos duma carta escrita a Casais Monteiro. In PÁGINAS DE DOUTRINA ESTÉTICA, pags. 259 a
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Exma. Comissão Administrativa do Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães Fernando Nogueira Pessoa, solteiro, maior, escritor, residente em Lisboa, na Rua Coelho da Rocha, número dezasseis, primeiro andar, e provisòriamente em Cascais, na Rua Oriental do Passeio, porta dois, vem concorrer perante V.Exa ao lugar de conservador do Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães, com os fundamentos seguintes, expostos no termo do artigo 6º e seus §§, do Regulamento do Museu-Biblioteca, conforme estão transcritos no anúncio inserto em O Século, de Lisboa, do dia 1 do mês corrente. O requerente tem 44 anos de idade, é natural de Lisboa, freguesia dos Mártires, e filho legítimo de Joaquim Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Nogueira Pessoa, ambos já falecidos. Não junta certidão de idade, nem, aliás, certidão de registo criminal, por o citado artigo 6º e seus §§ não exigirem, nem explicita nem implìcitamente, outros documentos que não sejam os rigorosamente precisos para apreciar a afirmação das habilitações neles indicadas, como motivos de preferência.
São as seguintes as habilitações do requerente, expostas nos termos do citado artigo e seus §§, pela ordem dos mesmos §§, e com o apoio documental que irá sendo indicado no decurso da presente exposição: § 1 - O requerente tem o Curso ou Exame Intermédio da Universidade (inglesa) do Cabo da Boa Esperança, como prova com a respectiva carta. À parte isto, foi concedido ao requerente, na mesma Universidade, o Prémio Rainha Vitória, de estilo inglês, como prova com a carta oficial assinada pelo secretário arquivista da Universidade, em que se comunica ao requerente a concessão do prémio. Juntam-se os 2 citados documentos. § 3 - O requerente tem uma já extensa colaboração dispersa por várias revistas portuguesas, de onde se lhe advém o ser hoje conhecido no País, sobretudo entre as novas gerações, a um ponto quase injustificável para quem se tem abstido de reunir em livros essa colaboração. Importa talvez citar as revistas em que essa colaboração foi ou mais assídua ou mais marcante. A Águia (nos anos 1912 a 1914), Orpheu, Centauro, Contemporânea, Presença, Athena e Descobrimento. Foi o requerente um dos directores do Orpheu, e dirigiu, conjuntamente com o pintor Ruy Vaz, a revista de arte Athena. - À abstenção do requerente de publicar livros fazem excepção os quatro folhetos em verso inglês que, destinados à Biblioteca do Museu- Biblioteca, acompanham o presente requerimento. Quanto o serem ou não estes escritos "de reconhecido mérito", melhor o poderão V.Exas
averiguar com perguntas casuais nos meios literários e artísticos portugueses do que o poderá demonstar, de modo realmente probante, qualquer documentação. O requerente chama, porém, a atenção de V.Exas para os dois estudos que lhe foram dedicados pelo jovem - e não fica mal dizer notável - crítico coimbrão João Gaspar Simões, a págs, 171 a 191 do livro Temas (Edições Presença, Coimbra, 1929) e a págs, 164 a 193 do livro O Mistério da Poesia (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931), assim como para o que do requerente diz Pierre Hourcade no artigo Panorama du Modernisme Littéraire ao Portugal inserto no número de Janeiro-Maio (nº1.2) do Bulletin des Études Portugaises, publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra e pelo Institut Français au Portugal. Quanto a opiniões, presumivelmente autorizadas, sobre os versos ingleses do requerente juntam-se as críticas que aos dois primeiros folhetos (os dois segundos não foram enviados a jornais) foram feitas pelo Suplemento Literário do Times e pelo Glasgow Herald, apresentado assim, em certo modo, opiniões representativas da crítica inglesa e escocesa. § 4 - Os documentos citados em referência ao § 1 e a este juntos demonstram mais do que o necessário quanto ao conhecimento que o requerente tem da língua inglesa. Quanto ao seu conhecimento da língua francesa, crê o requerente que na ausência de prova documental realmente válida (como a que tem para o inglês), o melhor que pode fazer é juntar uma folha de impressão da Contemporânea, número 7, onde, a págs. 20 e 21, vêm três canções (Trois Chansons Mortes) que escreveu em francês. - No texto do artigo 6º pròpriamente dito, do Regulamento, diz-se que é necessário que o conservador-bibliotecário seja pessoa de "reconhecida competência e idoneidade". Salvo o que de competência e idoneidade está implícito nas habilitações indicadas como motivos de preferência nos §§ di artigo e portanto se prova documentalmente pelos documentos referentes às indicações de cada §, a competência e a idoneidade não são susceptíveis de prova documental. Incluem, até, elementos, como o aspecto físico e a educação, que são indocumentáveis por natureza.
Cascais, 16 de Setembro de 1932 Fernando Nogueira Pessoa.
Alberto Caeiro O Guardador De Rebanhos II (8-3-1914)
O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas
Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Olhando para a direita e para a esquerda,
E todos os meus poemas são diferentes,
E de vez em quando olhando para trás...
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
E o que vejo a cada momento Às vêzes ponho-me a olhar para uma pedra. É aquilo que nunca antes eu tinha visto, Não me ponho a pensar se ela sente. E eu sei dar por isso muito bem... Não me perco a chamar-lhe minha irmã. Sei ter o pasmo essencial Mas gosto dela por ela ser uma pedra, Que tem uma criança se, ao nascer, Gosto dela porque ela não sente nada. Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Para a eterna novidade do Mundo...
Outras vezes oiço passar o vento,
Creio no mundo como um malmequer,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Porque o vejo. Mas não penso nêle
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Porque pensar é não compreender... O Mundo não se fêz para pensarmos nêle
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estôrvo,
(Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para êle e estarmos de acôrdo...
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar; Porque o penso sem pensamentos,
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem. Uma vez chamaram-me poeta materialista,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
E eu admirei-me, porque não julgava
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Amar é a eterna inocência,
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
E a única inocência não pensar...
O valor está ali, nos meus versos. Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
A Espantosa Realidade das Cousas
Um Dia de Chuva
(7-11-1915)
(8-11-1915)
A espantosa realidade das cousas
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
É a minha descoberta de todos os dias.
Ambos existem; cada um como é.
Cada cousa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
Passei Toda a Noite
E quanto isso me basta.
(10-7-1930)
Basta existir para se ser completo.
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
Tenho escrito bastantes poemas. Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Cada poema meu diz isto,
Faço pensamentos com a recordação do que ela é Fernando Pessoa, por ele mesmo
10
Fernando Pessoa, por ele mesmo
quando me fala,
É um universo barato.
E em cada pensamento ela varia de acôrdo com a sua semelhança. Amar é pensar.
THE TIMES
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela. Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. Tenho uma grande distração animada.
16-8-1928
Sentou-se bêbado à mesa e escreveu um fundo Do Times, claro, inclassificável, lido, Supondo (coitado!) que ia ter influência no mundo...
Quando desejo encontrá-la
....................................................................... ..................
Quase que prefiro não a encontrar,
Santo Deus!... E talvez a tenha tido!
Para não ter que a deixar depois. Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
PSIQUETIPIA (OU PSICOTIPIA)
Pensar nela.
7-11-1933
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
Símbolos. Tudo símbolos...
Todos os Dias
Se calhar, tudo é símbolos...
(23-7-1930)
Serás tu um símbolo também?
Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Antigamente acordava sem sensação nenhuma: acordava.
Postas, com boas maneiras inglêsas, sôbre a toalha da mesa.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho.
Pessoas independentes de ti...
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Olho-as: também serão símbolos?
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Não sei o que hei de ser comigo sòzinho.
Se calhar é...
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.
E porque não há de ser? Símbolos... Estou cansado de pensar...
Álvaro de Campos
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham. Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...
Começo a conhecer-me. Não existo.
Meu Deus! E não sabes...
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Eu pensava nos símbolos...
Ou metade dêsse intervalo, porque também há vida...
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...
Sou isso, enfim... Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor. Fique eu no quarto só com o grande sossêgo de mim mesmo.
"It was very strange, wasn't it?" "Awfully strange. And how did it end?" "Well, it didn't end. It never does, you know."
Fernando Pessoa, por ele mesmo
11
Fernando Pessoa, por ele mesmo
Sim, you know... Eu sei...
Ridículas.
Sim, eu sei...
Mas, afinal,
É o mal dos símbolos, you know.
Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor
Yes, I know.
É que são
Conversa perfeitamente natural... Mas os símbolos?
Ridículas.
Não tiro os olhos de tuas mãos... Quem são elas?
Quem me dera no tempo em que escrevia
Meu Deus! Os símbolos... Os símbolos...
Sem dar por isso Cartas de amor Ridículas.
Soneto já antigo
A verdade é que hoje
(12-1922)
As minhas memórias
Olha Daisy: quando eu morrer tu hás de
Dessas cartas de amor
dizer aos meus amigos aí de Londres,
É que são
embora não sintas, que tu escondes a grande dor da minha morte. Irás de
Ridículas.
Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
(Todas as palavras esdrúxulas,
que eu nada que tu digas acredito),
Como os sentimentos esdrúxulos.
contar àquele pobre rapazito
São naturalmente
que me deu tantas horas tão felizes,
Ridículas).
Embora não o saibas, que morri... mesmo êle, a quem eu tanto julguei amar,
Às vezes tenho idéias felizes,
nada se importará... Depois vai dar
Idéias sùbitamente felizes, em idéias
a notícia a essa estranha Cecily
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
que acreditava que eu seria grande...
Depois de escrever, leio...
Raios partam a vida e quem lá ande!
Por que escrevi isto?
Cartas de Amor
Onde fui buscar isto?
Tôdas as cartas de amor são
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Ridículas.
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Não seriam cartas de amor se não fôssem
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?
Ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras,
A Fernando Pessoa
Ridículas.
(1915)
As cartas de amor, se há amor,
Depois de ler o seu drama estático O Marinheiro em Orfeu I
Têm de ser Depois de doze minutos Fernando Pessoa, por ele mesmo
12
Fernando Pessoa, por ele mesmo
Do seu drama O Marinheiro
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
Em que os mais ágeis e astutos
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
Se sentem com sono e brutos,
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.
E de sentido nem cheiro,
Não ser nada, ser uma figura de romance,
Diz uma das veladoras
Sem vida, sem morte material, uma idéia,
Com langorosa magia:
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia, Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.
De eterno e belo há apenas o sonho. Porque estamos nós falando ainda?
Clearly Non-Campos! Não sei qual é o sentimento, ainda inexpressivo,
Ora isso mesmo é que eu ia
Que sùbitamente, como uma sofucação, me aflige
Perguntar a essas senhoras...
O coração que, de repente, (1-3-1917)
Entre o que vive, se esquece.
No lugar dos palácios desertos e em ruínas
Não sei qual é o sentimento Que me desvia do caminho,
À beira do mar, Leiamos, sorrindo, o segredo das sinas
Que me dá de repente
De quem sabe amar.
Um nojo daquilo que seguia,
Qualquer que êle seja, o destino daqueles
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Que o amor levou
Um desejo de indefinido,
Para a sombra, ou na luz se fêz a sombra dêles,
Um desejo lúcido de indefinido.
Qualquer fôsse o vôo.
Quatro vezes mudou a stação falsa
Por certo êles foram mais reais e felizes.
No falso ano, no imutável curso Do tempo consequente; Ao verde segue o sêco, e ao sêco o verde,
(1-3-1917) Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Para a vida, para o amor, para a glória...
Nem o último, e acabam.
Para que serve qualquer história, Ou qualquer fato? Estou só, só como ninguém ainda estêve, Õco dentro de mim, sem depois nem antes.
(18-8-1934)
Parece que passam sem ver-me os instantes,
Depus a máscara e vi-me ao espelho. -
Mas passam sem que o seu passo seja leve.
Era a criança de há quantos anos.
Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Não tinha mudado nada... É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
Fernando Pessoa, por ele mesmo
13
Fernando Pessoa, por ele mesmo
É-se sempre a criança,
É pouco o tempo que tens! Dormita!
O passado que foi
É a véspera de não partir nunca!
A criança. Depus a máscara, e tornei-a a pô-la.
(9-10-1934)
Assim é melhor,
O que há em mim é sobretudo cansaço -
Assim sem a máscara.
Não disto nem daquilo,
E volto à personalidade como a um términus de linha.
Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço asssim mesmo, êle mesmo, Cansaço.
(27-9-1934)
A subtileza das sensações inúteis,
Na véspera de não partir nunca
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Ao menos não há que arrumar malas
Os amôres intensos por o suposto em alguém,
Nem que fazer planos em papel,
Essas coisas tôdas -
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Essas eo que falta nelas eternamente -; Tudo isso faz um cansaço,
Para o partir ainda livre do dia seguinte. Êste cansaço, Não há que fazer nada Cansaço. Na véspera de não partir nunca. Há sem dúvida quem ame o infinito, Grande sossêgo de já não haver sequer de que ter sossêgo! Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros
Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada Três tipos de idealistas, e eu nenhum dêles:
Por isso tudo, ter pensado o tudo Porque eu amo infinitamente o finito, É o ter chegado deliberadamente a nada. Porque eu desejo impossivelmente o possível, Grande alegria de não ter precisão de ser alegre, Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Como uma oportunidade virada do avêsso. Ou até se não puder ser... Há quantas vezes vivo E o resultado? A vida vegetativa do pensamento! Para êles a vida vivida ou sonhada, Todos os dias sine linea Para êles o sonho sonhado ou vivido, Sossêgo, sim, sossêgo... Para êles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Grande tranquilidade... Para mim só um grande, um profundo, Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas! Que prazer olhar para as malas fitando como para nada! Dormita, alma, dormita!
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimo, íssimo, íssimo, Cansaço...
Aproveita, dormita! Dormita!
17-1-1933 Fernando Pessoa, por ele mesmo
14
Fernando Pessoa, por ele mesmo
E o esplendor dos mapos, caminho abstrato para a imaginação concreta,
Quem fui é alguém que amo Porém sòmente em sonho.
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. E a saudade que me aflige a mente O que de sonho jaz nas encadernações vestustas, Não é de mim nem do passado visto, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros. (Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.
Senão de quem habito Por trás dos olhos cegos. Nada, senão o instante, me conhece. Minha mesma lembrança é nada, e sinto Que quem sou e quem fui São sonhos diferentes.
Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime, Tudo o que diz o que não diz,
(30-7-1914)
E a alma sonha, diferente e distraída.
Só esta liberdade nos concedem
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)
Os deuses: submetermo-nos Ao seu domínio por vontade nossa. Mais vale assim fazermos
Ah, Um Soneto
Porque só na ilusão da liberdade
Meu coração é um almirante louco
A liberdade existe.
que abandonou a profissão do mar
Nem outro jeito os deuses, sobre quem
e que a vai relembrando pouco a pouco
O eterno fado pesa,
em casa a passear, a passear...
Usam para seu calmo e possuído
No movimento (eu mesmo me desloco
Convencimento antigo
nesta cadeira, só de o imaginar)
De que é divina e livre a sua vida.
o mar abandonado fica em foco
Nós, imitando os deuses,
nos músculos cansados de parar.
Tão pouco livres como eles no Olimpo,
Há saudades nas pernas e nos braços
Como quem pela areia
Há saudades no cérebro por fora.
Ergue castelos para encher os olhos,
Há grandes raivas feitas de cansaçs.
Ergamos nossa vida
Mas - esta é boa! - era do coração
E os deuses saberão agradecer-nos
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
O sermos tão como eles.
com almirante em vez de sensação?... (1-7-1916)
Ricardo Reis
Segue o teu destino,
(26-5-1930)
Rega as tuas plantas,
Se recordo quem fui, outrem me vejo,
Ama as tuas rosas.
E o passado é o presente na lembrança.
O resto é a sombra Fernando Pessoa, por ele mesmo
15
Fernando Pessoa, por ele mesmo
De árvores alheias.
Nada de verdadeiro a nós nos une -
A realidade
Somos quem somos, e quem fomos foi
Sempre é mais ou menos
Coisa vista por dentro.
Do que nós queremos. (14-2-1933)
Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Suave é viver só.
Teu exagera ou exclui.
Grande e nobre é sempre
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
Viver simplesmente.
No mínimo que fazes.
Deixa a dor nas aras
Assim em cada lago a lua tôda
Como ex-voto aos deuses.
Brilha, porque alta vive.
Vê de longe a vida. Nunca a interrogues.
(11-7-1914)
Ela nada pode
As rosas amo dos jardins de Adônis,
Dizer-te. A resposta
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Está além dos deuses.
Que em o dia em que nascem,
Mas serenamente
Em êsse dia morrem.
Imita o Olimpo
A luz para elas é eterna, porque
No teu coração.
Nascem nascido já o sol, e acabam
Os deuses são deuses
Antes que Apolo deixe
Porque não se pensam.
O seu curso visível. Assim façamos nossa vida um dia,
(26-4-1928)
Inscientes, Lídia, voluntàriamente
Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.
Que há noites e após
Quantos, se pensam, não se reconhecem
O pouco que duramos.
Os que se conheceram!
(17-7-1914)
A cada hora se muda não só a hora
Não consentem os deuses mais que a vida.
Mas o que se crê nela, e a vida passa
Tudo pois refusemos, que nos alce
Entre viver e ser.
A irrespiráveis píncaros, Perenes sem ter flôres.
(6-7-1930)
Só de aceitar tenhamos a ciência,
Não sei de quem recordo meu passado
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Que outrem fui quando o fui, nem me conheço
Nem se engelha connosco
Como sentindo com minha alma aquela
O mesmo amor, duremos,
Alma que a sentir lembro,
Como vidros, às luzes transparentes
De dia a outro nos desamparamos.
E deixando escorrer a chuva triste, Fernando Pessoa, por ele mesmo
16
Fernando Pessoa, por ele mesmo
Só mornos ao sol quente,
Pelo processo divino
E refletindo um pouco.
Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, êle vem seguro,
Eros e Psique
E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora. ...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que nos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera,
Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal
E vê que êle mesmo era A Princesa que dormia.
Conta a Lenda que dormia Uma Princesa encantada
Cancioneiro
A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada. Natal... Na província neva. Êle tinha que, tentado, Nos lares aconchegados, Vencer o mal e o bem, Um sentimento conserva Antes que, já libertado, Os sentimentos passados. Deixasse o caminho errado Coração oposto ao mundo, Por o que à Princesa vem. Como a família é verdade! A Princesa Adormecida, Meu pensamento é profundo, Se espera, dormindo espera. 'Stou só e sonho saudade. Sonha em morte a sua vida, E como é branca de graça E orna-lhe a fronte esquecida, A paisagem que não sei, Verde, uma grinalda de hera. Vista de trás da vidraça Longe o Infante, esforçado, Do lar que nunca terei! Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. (10-8-1929) Êle dela é ignorado. Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar, Ela para êle é ninguém. Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar, Mas cada um cumpre o Destino Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida, Ela dormindo encantada E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida. Êle buscando-a sem tino A vida é como uma sombra que passa por sôbre um Fernando Pessoa, por ele mesmo
17
Fernando Pessoa, por ele mesmo
rio
De que sou sentimental,
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento,
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
Que não senti afinal.
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Temos, todos que vivemos,
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Uma vida que é vivida
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
E outra vida que é pensada,
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E a única vida que temos
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
É essa que é dividida
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Entre a verdadeira e a errada.
Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face;
Qual porém é a verdadeira
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
E qual errada, ninguém
Não quero gôzo nem dor, não quero vida nem lei.
Nos saberá explicar;
Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar,
E vivemos de maneira
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Que a vida que a gente tem
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
É a que tem que pensar.
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
(19-9-1933)
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei (5-9-1933)
Que coisas eu sonhei.
Momento imperceptível,
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Que coisa fôste, que há
Para um espaço aberto
Já em mim qualquer coisa
Que não conheço, pois que despertei
Que nunca passará?
Para o que inda não sei.
Sei que, passados anos,
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
O que isto é lembrarei,
E nunca despertar.
Sem saber já o que era,
(20-9-1933)
Que até já o não sei. Mas, nada só que fôsse, Fica dêle um ficar Que será suave ainda Quando eu o não lembrar.
Viajar! Perder países! Ser outro constantemente Por a alma não ter raízes De viver de ver sòmente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir
(18-9-1933)
A ausência de ter um fim,
Tenho tanto sentimento
E da ânsia de o conseguir!
Que é frequente persuadir-me
Viajar assim é viagem. Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Mas faço-o sem ter de meu
E, abrindo as asas sôbre Renovar,
Mais que o sonho da passagem
A êrma sombra do vôo começado
O resto é só terra e céu.
Pestaneja no campo abandonado...
Tenho dó das estrêlas
O Menino da Sua Mãe
Luzindo há tanto tempo,
No plaino abandonado
Há tanto tempo...
Que a morna brisa aquece,
Tenho dó delas.
De balas traspassado
Não haverá um cansaço
- Duas, de lado a lado -,
Das coisas
Jaz morto, e arrefece.
De tôdas as coisas,
Raia-lhe a farda o sangue.
Como das pernas ou de um braço?
De braços estendidos,
De um cansaço de existir,
Alvo, louro, exangue,
De ser,
Fita com olhar langue
Só de ser,
E cego os céus perdidos.
O ser triste brilhar ou sorrir...
Tão jovem! que jovem era!
Não haverá, enfim,
(Agora que idade tem?)
Para as coisas que são,
Filho único, a mãe lhe dera
Não a morte, mas sim
Um nome o mantivera:
Uma outra espécie de fim,
"O menino de sua mãe".
Ou uma grande razão -
Caiu-lhe da algibeira
Qualquer coisa assim
A cigarreira breve.
Como um perdão?
Dera-lhe a mãe. Está inteira E boa a cigarreira.
XI
Êle é que já não serve.
Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
De outra algibeira, alada
E oculta mão colora alguém em mim.
Ponta a roçar o solo,
Pus a alma no nexo de perdê-la
A brancura embainhada
E o meu princípio floresceu em Fim.
De um lenço... Deu-lho a criada
Que importa o tédio que dentro em mim gela,
Velha que o trouxe ao colo.
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
Lá longe, em casa, há a prece:
E a congruência da alma que se vela
"Que volte cedo, e bem!"
Com os sonhados pálios de cetim?
(Malhas que o Império tece!)
Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Jaz morto e apodrece,
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O menino da sua mãe.
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se... Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
E do pensar se me some. TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO BOMBARDEAMENTO
Fico sem poder ligar Ser, idéia, alma de nome
A criança loura
A mim, à terra e aos céus...
Jaz no meio da rua.
E súbito encontro Deus.
Tem as tripas de fora
II
E por uma corda suaUm comboio que ignora.
PASSOU
A cara está um feixe
Passou, fora de Quando,
De sangue e de nada.
De Porquê, e de Passando...,
Luz um pequeno peixe
Turbilhão de Ignorado,
- Dos que bóiam nas banheiras -
Sem ser turbilhonado...,
À beira da estrada.
Vasto por fora do Vasto
Cai sobre a estrada o escuro.
Sem ser, que a si se assombra...
Longe, ainda uma luz doura
O universo é o seu rasto...
A criação do futuro...
Deus é a sua sombra...
E o da criança loura?
III A VOZ DE DEUS
DISPERSAS
Brilha uma voz na noute...
Além-Deus
De dentro de Fora ouvi-a..
(1913?) I ABISMO Olho o Tejo, e de tal arte Que me esquece estar olhando, E súbito isto me bate De encontro ao devaneando O que é ser-rio, e correr? O que é está-lo eu a ver? Sinto de repente pouco, Vácuo, o momento, o lugar. Tudo de repente é ôco Mesmo o meu estar a pensar. Tudo - eu e o mundo em redor Fica mais que exterior. Perde tudo o ser, ficar,
Ó Universo, eu sou-te... Oh, o horror da alegria Dêste pavor, do archote Se apagar, que me guia! Cinzas de idéia e de nome Em mim, e a voz: Ó mundo, Sermente em ti eu sou-me... Mero eco de mim, me inundo De ondas de negro lume Em que pra Deus me afundo. IV A QUEDA Da minha idéia do mundo Caí... Vácuo além de profundo, Sem ter Eu nem Ali... Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Vácuo sem si-próprio, caos
Só a noite enorme.
De ser pensado como ser...
Porque para êle, já virado
Escada absoluta sem degraus...
Para o lado onde está só Deus,
Visão que se não pode ver...
São mais que Sombra e que Passado
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
A terra e os céus.
Clarão de Desconhecido...
Ali o gesto, a astúcia, a lida,
Tudo tem outro sentido, ó alma,
São já para êle, sem as ver,
Mesmo o ter-um-sentido...
Vácuo de ação, sombra perdida,
V
Sôpro sem ser.
BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO
Só com sua alma e com a treva,
Entre a árvore e o vê-la
A alma gentil que nos amou
Onde está o sonho?
Inda êsse amor e ardor conserva?
Que arco da ponte mais vela
Tudo acabou?
Deus?... E eu fico tristonho
No mistério onde a Morte some
Por não saber se a curva da ponte
Aquilo a que a alma chama a vida,
É a curva do horizonte...
Que resta dêle a nós - só o nome
Entre o que vive e a vida
E a fé perdida?
Pra que lado corre o rio?
Se Deus o havia de levar,
Árvore de fôlhas vestida -
Para que foi que no-lo trouxe -
Entre isso e Árvore há fio?
Cavaleiro leal, do olhar
Pombas voando - o pombal
Altivo e doce?
Está-ljes sempre à direita, ou é real?
Soldado-rei que oculta sorte
Deus é um grande Intervalo,
Como em braços da Pátria ergueu,
Mas entre que e quê?
E passou como o vento norte
Entre o que digo e o que calo
Sob o êrmo céu.
Existo? Quem é que me vê?
Mas a alam acesa não aceita
Erro-me... E o pombal elevado
Essa morte absoluta, o nada
Está em tôrno na pomba, ou de lado?
De quem foi Pátria, e fé eleita, E ungida espada.
À Memória do Presidente-Rei Sidônio Pais
Se o amor crê que a Morte mente Quando a quem quer leva de novo,
(27-2-1920)
Quão mais crê o Rei ainda existente
Longe da Fama e das espadas,
O amor de um povo!
Alheio às turbas êle dorme.
Quem êle foi sabe-o a Sorte,
Em tôrno há claustros ou arcadas?
Sabe-o o Mistério e a sua lei. A Vida fê-lo herói, e a Morte Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
O sagrou Rei!
Ao tempo e ao espaço.
Não é com fé que nós não cremos
Tornará feito qualquer outro,
Que êle não morra inteiramente.
Qualquer cousa de nós com êle;
Ah, sobrevive! Inda o teremos
Porque o nome do herói moprto
Em nossa frente.
Inda compele;
No oculto para o nosso olhar,
Inda comanda, e a armada ida
No visível à nossa alma,
Para os campos da Redenção,
Inda sorri com o antigo ar
Às vezes leva à frente, erguida
De fôrça calma.
'Sprada, a Ilusão.
Ainda de longe nos anima,
E um raio só do ardente amor,
Inda na alma nos conduz -
Que emana só do nome seu,
Gládio de fé erguido acima
Dê sangue a um braço vingador,
Da nossa cruz!
Se esmoreceu.
Nada sabemos do que oculta
Com mais armas que com Verdade
O véu igual de noite e dia.
Combate a alma por quem ama.
Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
É lenha só a Realidade:
Chora e confia.
A fé é a chama.
Apraz ao que em nós quer que seja
Mas ai, que a fé já não tem forma
Qual Deus quis nosso querer tôsco,
Na matéria e na côr da Vida,
Crer que êle vela, benfazeja
E, pensada, em dor se transforma
Sombra conosco.
E fé perdida!
Não sai da nossa alma a fé
Pra que deu Deus a confiança
De que, alhures que o mundo e o fado,
A quem não ia dar o bem?
êle inda pensa em nós e é
Morgado da nossa esperança,
O bem-amado.
A Morte o tem!
Tenhamos fé, porque êle foi.
Mas basta o nome e basta a glória
Deus não quer mal a quem o deu.
Para êle estar conosco, e ser
Não passa como o vento o herói
Carnal presença de memória
Sob o êrmo céu.
A amanhecer;
E amanhã, quando queira a Sorte,
Spectro real feito de nós,
Quando findar a expiação,
Da nossa saudade e ânsia,
Ressurrecto da falsa morte,
Que fala com oculta voz
Êle já não.
Na alma, a distãncia;
Mas a ânsia nossa que incarnara,
E a nossa própria dor se torna
A alma de nós de que foi braço,
Uma vaga ânsia, um 'sperar vago,
Tornará, nova forma clara,
Como a êrma brisa que transtorna Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Um êrmo lago.
E a alma pressinta!
Não mente a alma no coração.
E qualquer gládio adormecido,
Se Deus o deu, Deus nos amou.
Servo do oculto impulso, acorde,
Porque êle pôde ser, Deus não
E um novo herói se sinta erguido
Nos desprezou.
Porque o recorde!
Rei-nato, a sua realeza,
Governa o servo e o jogral.
Por não podê-la herdar dos seus
O que íamos a ser morreu.
Avós, com mística inteireza
Não teve aurora a matinal
A herdou de Deus;
'Strêla do céu.
E, por direta consonância
Vivemos só de recordar.
Com a divina intervenção,
Na nossa alma entristecida
Uma hora ergueu-nos alta e ânsia
Há um som de reza a invocar
De salvação.
A morta vida;
Toldou-o a Sorte que o trouxera
E um místico vislumbre chama
Outra vez com noturno véu.
O que, no plaino trespassado,
Deus p'ra que no-lo deu, se era
Vive ainda em nós, longínquq chama -
P'ra o tornar seu?
O DESEJADO.
Ah, tenhamos mais fé que a esp'rança!
Sim, só há a esp'rança, como aquela
Mais vivo que nós somos, fita
- E quem sabe se a mesma? - quando
Do Abismo onde não há mudança
Se foi de Aviz a última estrêla
A terra aflita.
No campo infando.
E se assim é; se, desde o Assombro
Nova Alcacer-Kibir na noite!
Aonde a Morte as vidas leva,
Novo castigo e mal do Fado!
Vê esta pátria, escombro a escombro,
Por que pecado novo o açoite
Cair na treva;
Assim é dado?
Se algum poder do que tivera
Só resta a fé, que a sua memória
Sua alma, que não vemos, tem,
Nos nossos corações gravou,
De longe ou perto - por que espera?
Que Deus não dá paga ilusória
Por que não vem?
A quem amou.
Em mova forma ou novo alento,
Flor alta do paul da grei,
Que alheio pulso ou alma tome,
Antemanhã da Redenção,
Regresse como um pensamento,
Nêle uma hora incarnou el-rei
Alma de um nome!
Dom Sebastião.
Regresse sem que a gente o veja,
O sôpro de ânsia que nos leva
Regresse só que a gente o sinta -
A querer ser o que já fomos,
Impulso, luz, visão que reja
E em nós vem como em uma treva, Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Em vãos assomos,
Por descobrir,
Bater à porta ao nosso gesto,
Sê estrada, gládio, fé, fanal,
Fazer apêlo ao nosso braço,
Pendão de glória em glória erguido!
Lembrar ao sangue nosso o doesto
Tornas possível Portugal
E o vil cansaço.
Por teres sido!
Nêle um momento clareou,
Não era extinta a antiga chama
A noite antiga se seguiu,
Se tu e o amor pudeream ser.
Mas que segrêdo é que ficou
Entre clarins te a glória aclama,
No escuro frio?
Morto a vencer!
Que memória, que luz passada
E, porque fôste confiando
Projeta, sombra, no futuro,
Em QUEM SERÁ porque tu fôste,
Dá na alma? Que longínqua espada
Ergamos a alma, e com o infando
Brilha no escuro?
Sorrindo arroste,
Que nova luz virá raiar
Até que Deus o laço solte
Da noite em que jazemos vis?
Que prende à terra a asa que somos,
Ó sombra amada, vem tornar
E a curva novamente volte
A ânsia feliz.
Ao que já fomos.
Quem quer que sejas, lá no abismo
E no ar de bruma que estremece
Onde a morte a vida conduz,
(Clarim longínquo matinal!)
Sê para nós um misticismo
O DESEJADO enfim regresse
A vaga luz.
A Portugal!
Com que a noite êrma inda vazia
TERCEIRO TEMA
No frio alvor da antenhanhã Sente, da esp'rança que há no dia,
A FALÊNCIA DO PRAZER E DO AMOR (extractos)
Que não é vã. E amanhã, quando houver a Hora, Sendo Deus pago, Deus dirá Nova palavra redentora Ao mal que há,
I Beber a vida num trago, e nesse trago Tôdas as sensações que a vida dá Em tôdas as suas formas [...] ............................................................
E um verbo ocidental Incarnado em heroísmo e glória, Traga por seu broquel real Tua memória! Precursor do que não sabemos, Passado de um futuro a abrir
Dantes eu queria Embeber-me nas árvores, nas flôres, Sonhar nas rochas, mares, solidões. Hoje não, fujo dessa idéia louca: Tudo o que me aproxima do mistério
No assombro de portais extremos Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Eu, Fausto - aquêles que não sentem bem
Sensações, muitas, muitas sensações,
Tôda a extensão da felicidade,
De tudo, de todos neste mundo - humanas,
Gozá-la?
Não outras de delírios panteístas
....................................................................... ..........
Mas sim perpétuos choques de prazer Mudando sempre, Ferve a revolta em mim
Guardando forte a personalidade
Contra a causa da vida que me fêz
Para sintetizá-las num sentir.
Qual sou. E morrerei e deixarei
***********
Neste mundo isto apenas: uma vida Quero Só prazer e só gozo, só amor, Quero afogar em bulício, em luz, em vozes, Só inconsciência em estéril pensamento - Tumultuárias [cousas] usuais E desprêzo [...] O sentimento da desolação Mas eu como entrarei naquela vida? Que me enche e me avassala. Eu não nasci para ela.
************* Folgaria III De encher num dia, [...] num trago, Melodia vaga A medida dos vícios, inda mesmo Para ti se eleva Que fôsse condenado eternamente E, chorando, leva Loucura! - ao tal inferno, O teu coração, A um inferno real. Já de dor exausto, E sonhando o afaga. II Os teus olhos, Fausto, Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas, Não mais chorarão. Como me amarga n'alma essa alegria! ....................................................................... .........
IV
Nem em criança ser predestinado,
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
O mal da minha predestinação.
Consciente apenas de já nada ser...
....................................................................... .........
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Acabemos com esta vida assim! Acabemos! o modo pouco importa! Sofrer mais já não posso. Pois verei -
Sou só delas, encontro-me disperso Por cada grito bêbedo, por cada Tom da luz no amplo bôjo das botelhas. Participo da névoa luminosa
Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Da orgia e da mentira do prazer.
Te ouvisse todo com o coração.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Confessa-me já morto... Palpo, em tôrno
Se me faltas [...]
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
...Mas tu fazes, amor, por me faltares
Com o hábito imortal de perscrutar-me.
Mesmo estando comigo, pois perguntas Quando é amar que deves. Se não amas,
V
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Perdido
Mas tu és como nunca ninguém foi, Pois procuras o amor pra não amar, E, se me buscas, é como se eu só fôsse
No labirinto de mim mesmo, já
Alguém pra te falar de quem tu amas.
Não sei qual o caminho que me leva
.............................................................
Dêle à realidade humana e clara
Quando te vi amei-te já muito antes.
Cheia de luz [...]
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Por isso não concebo alegremente
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Mas com profunda pesadez em mim
Não há cousa feliz ou hora alegre
Esta alegria, esta felicidade,
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que odeio e que me fere [...]
Que o não fôsse porque te previa,
..........................................................
Porque dormias nela tu futuro.
Sinto como um insulto esta alegria
............................................................
- Tôda a alegria. Quase que sinto
E eu soube-o só depois, quando te vi,
Que rir, é rir - não de mim, mas, talvez,
E tive para mim melhor sentido,
Do meu ser.
E o meu passado foi como uma 'strada Iluminada pela frente, quando
...
O carro com lanternas vira a curva
XXI
Do caminho e já a noite é tôda humana.
- Amo como o amor ama.
...............................................................
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Que queres que te diga mais que te amo,
Amava-te já longe, mas de longe...
Se o que quero dizer-te é que te amo?
...............................................................
..................................................................
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
Quando te falo, dõi-me que respondas
-Compreendo-te tanto que não sinto,
Ao que te digo e não ao meu amor.
Oh coração exterior ao meu!
...................................................................
Fatalidade, filha do destino
Ah! não perguntes nada; antes me fala
E das leis que há no fundo dêste mundo!
De tal maneira, que, se eu fôra surda,
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
De o sentir...?
Grandes acolhimentos se darão
...............................................................
Por cada prolixo coração Que com seu próprio ser vive em demanda.
XXII
Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Há almas pares, as que conheceram
Os pensamentos na compreensão.
Onde os sêres são almas.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
Como éramos só um, falando! Nós
É maior.
Éramos como um diálogo numa alma. Não sei se dormes [...] calma,
XXIII
Sei que, falho de ti, estou um a sós.
Reza por mim! A mais não me enterneço.
É como se esperasse eternamente
Só por mim mesmo sei enternecer-me,
A tua vida certa e conhecida
Sob a ilusão de amar e de sentir
Aí embaixo, no Café Arcada -
Em que forçadamente me detive.
Quase no extremo dêste [...]
Reza por mim, por mim! Eis a que chega
Aí onde escreveste aquêles versos
A minha tentativa [em] querer amar.
Do trapézio, doriu-nos [...] Aquilo tudo que dizes do Orpheu.
Inéditas
Ah, meu maior amigo, nunca mais Na paisagem sepulta desta vida
SÁ CARNEIRO
Encontrarei uma alma tão querida
1934
Às coisas que em meu ser são as reais.
Nesse número do Orpheu que há de ser feito com rosas e estrêlas em um mundo novo.
[...] Não mais, não mais, e desde que saíste
Nunca supus que isto que chamam morte
Desta prisão fechada que é o mundo,
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Meu coração é inerte e infecundo
Cada um de nós, aqui aparecido,
E o que sou é um sonho que está triste.
Onde manda a lei certa e a falsa sorte,
Porque há em nós, por mais que consigamos
Tem só uma demora de passagem
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Entre um comboio e outro, entroncamento
Um desejo de têrmos companhia -
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
O amigo como êsse que a falar amamos.
Mas, seja como fôr, segue a viagem. Passei, embora num comboio expresso Seguisses, e adiante do em que vou;
(14-10-1930)
No términus de tudo, ao fim lá estou
Se tudo o que há é mentira
Nessa ida que afinal é um regresso.
É mentira tudo o que há.
Porque na enorme gare onde Deus manda
De nada nada se tira Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
A nada nada se dá.
Depois de ficar e ir,
Se tanto faz que eu suponha
Hei de ser quem vai chegar
Uma coisa ou não com fé,
Para ser quem quer partir.
Suponho-a se ela é risonha,
Viver é não conseguir.
Se não é, suponho que é. (17-6-1932) Que o grande jeito da vida Como nuvens pelo céu É pôr a vida com jeito Passam os sonhos por mim. Fana a rosa não colhida Nenhum dos sonhos é meu Como a rosa posta ao peito. Embora eu os sonhe assim. Mais vale é o mais valer, São coisas no alto que são Que o resto urtigas o cobrem Enquanto a vista as conhece, E só se cumpra o dever Depois são sombras que vão Para que as palavras sobrem. Pelo campo que arrefece. Símbolos? Sonhos? Quem torna
O Peso de Haver o Mundo (19-5-1932) Passa no sôpro da aragem
Meu coração ao que foi? Que dor de mim me transtorna? Que coisa inútil me dói?
Que um momento o levantou Um vago anseio de viagem Que o coração me toldou. Será que em seu movimento A brisa lembre a partida, Ou que a largueza do vento Lembre o ar livre da ida? Não sei, mas sùbitamente Sinto a tristeza de estar O sonho triste que há rente Entre sonhar e sonhar.
(28-3-1930) Quem vende a verdade, e a que esquina? Quem dá a hortelã com que temperá-la? Quem traz para casa a menina E arruma as jarras da sala? Quem interroga os baluartes E conhece o nome dos navios? Dividi o meu estudo inteiro em partes E os títulos dos capítulos são vazios... Meu pobre conhecimento ligeiro, Andas buscando o estandarte eloquente
(14-6-1932) Basta pensar em sentir Para sentir em pensar. Meu coração faz sorrir Meu coração a chorar. Depois de parar e andar,
Da filarmônica de um Barreiro Para que não há barco nem gente. Tapeçarias de parte nenhuma Quadros virados contra a parede... Ninguém conhece, ninguém arruma Ninguém dá nem pede. Fernando Pessoa, por ele mesmo
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Ó coração epitélico e macio,
chorar.
Colcha de croché do anseio morto,
Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
Grande prolixidade do navio Que existe só para nunca chegar ao pôrto.
Livro do Desassossego
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual. Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
Carta a Mário de Sá-Carneiro Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueca. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga. Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto. No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os baloucos para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter baloucos para esquecer a hora. Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se. Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas. Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de
De que cor será sentir? Milhares de abracos do seu, sempre muito seu, FERNANDO PESSOA P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanha, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características... Você acha-me razão, não é verdade? (em 14 de Marco de 1916) Carta a João Gaspar Simões (...) Estou começando - lentamente, porque não é coisa que possa fazer-se com rapidez - a classificar e rever os meus papéis; isto com o fim de publicar, para fins do ano em que estamos, um ou dois livros. Serão provavelmente ambos em verso, pois não conto poder preparar qualquer outro tão depressa, entendendo-se preparar de modo a ficar como eu quero. Primitivamente, era minha intencão começar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português (Contemporânea 4) é a segunda parte; (2) Livro do Desassosego (Bernardo Soares, mas subsidiariamente, pois que o B. S. não é um heterónimo, mas uma personalidade literária); (3) Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a Recordacão do Álvaro de Campos). Mais tarde, no outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro título igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros I a III ou I a V) vários dos muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo de essa maneira inexpressiva.
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Fernando Pessoa, por ele mesmo
Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar e rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a fazê-lo. E, quanto ao Caeiro, estou indeciso. (...) (em 28 de Julho de 1932) Carta a Adolfo Casais Monteiro (...) Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiracão, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberacão abstracta que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. O meu semi-heterónimo Bernardo Soares que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibicão; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilacão dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de "ténue" à minha, é iqual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. (...) (em 13 de Janeiro de 1935)
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