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June 24, 2019 | Author: Malu Rogenski | Category: Gênero, Etnia, raça e gênero, Feminismo, Sociologia, Feminilidade
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FEMINISMO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 

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Expediente DIREÇÃO ESTADUAL Presidência Marlei Fernandes de Carvalho Secretaria Geral Secretaria de Imprensa e Divulgação Mariah Seni Vasconcelos Silva Luiz Carlos Paixão da Rocha Secretaria de Finanças Secretaria de Sindicalizados Miguel Angel Alvarenga Baez Maria Madalena Ames Secretaria de Administração e Patrimônio Secretaria de Assuntos Jurídicos Clotilde Santos Vascon Vasconcelos celos Áurea de Brito Santana Secretaria de Organização Secretaria de Política Sindical José Ricardo Corrêa Hermes Silva Leão Secretaria de Aposentados Secretaria de Políticas Sociais Tomiko Kiyoku Falleiros Silvana Prestes de Araujo Secretaria de Municipais Secretaria de Funcionários Edilson Aparecido de Paula José Valdivino Valdivino de Moraes Secretaria Educacional Secretaria de Gênero e Igualdade Racial Janeslei Aparecida Albuquerque Lirani Maria Franco da Cruz Secretaria de Formação Política Sindical Secretaria de Saúde e Previdência Isabel Catarina Zöllner Idemar Vanderlei Beki Organização Solange Ferreira dos Santos de Alcantara, Lirani Maria Mar ia Franco da Cruz, Rosani do Rosário Moreira Colaboração Especial Colaboração Tica Moreno, Rosemeri Moreira e Hermes Silva Leão Foto da capa  Cintia Barenho Projeto Gráfico e Diagramação W3OL Comunicação - (41) 3029-0289 - w ww.w3ol.com.br Gráfica World Laser - Tiragem: 2 mil exemplares

APP-SINDICATO DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO PÚBLICA DO PARANÁ Rua Voluntários Voluntários da Pátria, 475, 14º andar - Ed. Asa - Curitiba/PR - CEP: 80020-926 Fone: (41) 3026-9822 - Fax: (41) 3222-5261 www.appsindicato.org.br www.appsindicato.org .br - [email protected]

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Sumário ........................... ............................ ............................ ............................. ............................. ............................ ............................ ............................. ............................. .................... ...... 4 Apresentação .............

I Parte ........................... ............................ ............................ ............................. ............................. ............................ .................. .... 6 Estudos de Gênero e História Social ............. Carla Bassanezi Pinsky

As Mulheres e a Separação das Esferas .............. ............................ ............................ ............................ ............................. ............................. ....................... .........30 Joana Maria Pedro

Fundamentos Contingentes: Contingentes: O Feminismo e a Questão do “Pós-Modernismo”. ........... 35 Judith Butler ............................ ............................ ............................. ................... ....51 Relações Sociais de Sexo e Divisão Sexual do Trabalho .............. Danièle Kergoat

Marxismo e Feminismo ............... ............................. ............................ ............................. ............................. ............................ ............................ ............................. .......................... ...........58 Frédérique Vinteuil

II Parte Por onde passa a História da Luta das Mulheres .............. ............................ ............................ ............................ ............................. ................... .... 74 Nalu Faria ........................... ............................. ............................. ............................ ............................ .............. 78 Eleições 2010: Conservadorismo e Religião ............. Janeslei Aparecida Albuquerque ............................. ............................. ............................ ............................ ............................. ................... .... 82 Feminismo,, Prática Política e Luta Social .............. Feminismo Tatau Godinho ............................ ............................ ............................ ............................. ............................. ............................ ............................ ..................... .......89 Referência Complementar ..............

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 Apresentação Companheiras e Companheiros de LUTA! Neste terceiro ano do programa de formação da APP-Sindicato em “Gênero, Diversidade Sexual e Igualdade Racial”, anunciamos a parceria com a UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). Este caderno “Feminismo e Transformação Social”, foi elaborado para subsidiar esta primeira etapa. Afim de facilitar o processo pedagógico, está estruturado em duas partes: I parte: traz textos de ordem conceitual e acadêmica. As autoras fazem uma abordagem teórica a partir dos seguintes temas: feminismo, conceitos de gênero, fundamentos das opressões das mulheres, as relações sociais de sexo, identidade, dentre outros. A II parte são textos de cunho militante, a partir da perspectiva e da prática feminista. Na parte I: Carla Bassanezi Pinski faz uma abordagem histórica: como os estudos de gênero podem colaborar com a história social. Somando-se a abordagem histórica e social, a professora Joana Maria Pedro discorre sobre a participação das mulheres no espaço público, até a conquista da instituição de cotas de gênero para as eleições nas instâncias legislativas. A filósofa pós-estruturalista estadunidense Judith Butler destaca a relação entre teoria social e politica feminista. Daniéle Kergoat, discorre sobre as relações de sexo e divisão sexual do trabalho. Por sua vez, Frédérique Vinteuil aborda conceitos fundamentais do marxismo, a luta de classes e luta política. Na parte II, a psicóloga e militante da Marcha Mundial das Mulheres Nalu Faria, remonta a história de luta das mulheres de esquerda.

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Greves, organização feminina nos partidos, a origem do 8 de março e a relação fundamental entre o feminismo e o socialismo marcam este texto. Janeslei Albuquerque faz uma leitura feminista e crítica do processo eleitoral de 2010 em que o conservadorismo religioso pautou a agenda política, especialmente a eleição presidencial. Por fim, o feminismo deve ser encarado como teoria e prática na luta pela libertação das mulheres, como destaca Tatau Godinho em seu texto. Os textos das companheiras militantes, tanto quanto os textos acadêmicos, são de extrema importância, pois permitem a leitura e a interpretação do mundo a partir das teorias ou vice versa, ambas em campos diferentes de atuação fazem do feminismo uma prática constante e marcam um lugar político e transformador na história das mulheres e na sociedade. Este caderno será a base de apoio às atividades desenvolvidas tanto na turma estadual quanto nas turmas regionais. Desejamos que as leituras, os estudos e os debates desta etapa contribuam para a emancipação das mulheres e a superação do capital, na perspectiva de uma sociedade livre, igualitária, justa e democrática.

Secretaria de Gênero e Igualdade Racial APP-Sindicato 2011

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Estudos de Gênero e História Social Carla Bassanezi Pinsky Historiadora

Resumo: Busco mostrar em que os Estudos de Gênero podem colaborar com a História Social, argumentando a partir de três eixos: 1) avaliação da importância do olhar preocupado com gênero para uma compreensão mais acurada do social sob uma perspectiva histórica; 2) análise das abordagens teórico-metodológicas atentas à construção social das diferenças sexuais que dialogam com a disciplina histórica - a desenvolvida dentro dos marcos da História Social e a ligada ao pós-estruturalismo de Joan Scott “ a partir de duas preocupações: a) destacar as possibilidades de ação humana e b) enfrentar questões gerais da disciplina; e 3) exposição de como o debate em torno dessas abordagens colabora para as atividades de pesquisa e a reflexão teórica. Meu objetivo último é tentar ajudar a aumentar o número de trabalhos de pesquisa em História que lançam mão do conceito de gênero no Brasil. Palavras-chave: gênero; Estudos de Gênero; História Social; pós-estruturalismo; historiografia; História das Mulheres.

O número de trabalhos de História que lançam mão do conceito de gênero no Brasil é muito baixo. Poderia ser maior. Com este texto busco mostrar aos historiadores (meus interlocutores privilegiados) que é possível responder positivamente à pergunta: “os Estudos de Gênero podem colaborar com a História Social?”. Minha argumentação se dá em torno de três eixos: 1) avaliação da importância do olhar preocupado Fórum Social das Américas, Paraguai/2010. com gênero para uma compreensão mais acurada do social sob uma perspectiva histórica; 2) análise das abordagens teórico-metodológicas atentas à construção social das diferenças sexuais que dialogam com trabalhos de História, tanto a desenvolvida dentro dos marcos da chamada História Social, quanto a ligada ao pensamento pós-estruturalista. A primeira, defendida por historiadoras como Louise Tilly, Eleni Varikas e Catherine Hall, inspira-se na corrente historiográfica de vertente marxista (adotada por Edward P. Thompson, Eric Hobsbawm, Natalie Davis, Michelle Perrot, entre outros). A segunda tem como principal defensora a historiadora Joan Scott, que, influenciada por obras de Foucault e Derrida, passou a criticar a História Social e sustentar o que chamou de uma nova epistemologia para os estudos históricos. Essas abordagens são aqui analisadas a partir de duas preocupações explícitas em ambas: a) destacar as possibilidades de ação    o     d    n    e    s    o     R    a     é    r     d    n     A

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humana na história e b) enfrentar questões gerais da disciplina histórica adotando uma perspectiva que leva gênero em conta;1 3) exposição de como o debate em torno dessas abordagens colabora para as atividades de pesquisa e a reflexão teórica. Com isso, busco inspirar um ou outro historiador a estudar questões de gênero em seus trabalhos de pesquisa. Daí, talvez, o tom um tanto didático do texto...

História das Mulheres Para observar as vantagens da preocupação com o tema e mesmo da adoção do conceito de gênero, é interessante relembrar as conquistas da História das Mulheres, assim como as primeiras tentativas de incorporar os Estudos de Gênero à disciplina histórica. A História das Mulheres adquiriu expressão a partir década de 1970, inspirada por questionamentos feministas e por mudanças que ocorriam na historiografia, entre as quais, a ênfase em temas como família, sexualidade, repre- sentações, cotidiano, grupos “excluídos”. Seu sucesso atrelou-se aos avanços da Nouvelle Histoire, Social History, Cultural History e dos Estudos de População. A produção historiográfica passível de ser reunida sob o título História das Mulheres foi e é bastante diversificada em termos de assuntos, métodos e qualidade intelectual. Entretanto, esses trabalhos têm em comum: a atenção às mulheres do passado e o reconhecimento de que a condição feminina é constituída histórica e socialmente. 1 E a famosa Judith Butler vai ficar de fora? Tenho dúvidas se os desafios de Judith Butler e se conceitos como “múltiplas identidades” ou gender trouble são imprescindíveis aos historiadores. É provável mesmo que a História Social possa dar conta dos fenômenos da mudança social e da ação humana com suas próprias ferramentas disciplinares.

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Vários historiadores, após denunciar a exclusão das mulheres nos trabalhos de História feitos até então, procuraram torná-las visíveis na chamada História Geral. Essa preocupação foi especialmente marcante nos primeiros momentos de desenvolvimento da História das Mulheres. Para alguns críticos, entretanto, isso não foi suficiente por não afetar profundamente a historiografia tradicional, com seus recortes temáticos, periodizações, fontes e “fatos históricos” já bem delimitados.2 Porém, muitos outros trabalhos sim contestaram a História Geral existente por tomar o homem branco e ocidental como “medida da humanidade”, e não reconhecer que as mulheres podem ter trajetórias distintas das dos homens. Na tarefa de reescrever a História, agora levando as mulheres em consideração, por um lado, ganharam destaque as biografias de mulheres e as evidências da participação feminina nos acontecimentos históricos e na vida pública. Por outro lado, passou a ser valorizada a “dimensão política da vida privada”, local privilegiado, mas não único, da female agency. Nas pesquisas sobre “pessoas comuns”, as mulheres também foram contempladas em “biografias coletivas” de diversos grupos sociais.3 Historiadores empenharam-se em estabelecer relações entre as experiências femininas e as vivências de classe e/ou étnicas e entre as classes e/ou os grupos étnicos. Certos trabalhos apresentaram as mulheres atuando na história da mesma forma que os homens. Outros, por sua vez, revelaram possibilidades diferenciadas das experiências femininas.4

2 Joan SCOTT, 1988b. 3 Louise TILLY, 1990. 4 Alguns chegaram até a falar de uma “cultura feminina”, enfatizando a diferença. Esses foram, posteriormente, criticados por isolarem as mulheres do contexto social mais amplo e supervalorizarem seus poderes e esferas restritas de atuação.

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A História das Mulheres deixava clara a importância da diferença sexual na organização da vida social em diversos contextos muito bem mapeados. Um grande avanço, sem dúvida, mas ainda insatisfatório para os que reivindicavam resultados mais amplos para além das meras descrições. Não basta acrescentar as mulheres aos livros de História - disseram -, é preciso repensar o próprio saber histórico e privilegiar abordagens analíticas.5  Atendendo ao apelo, vários historiadores procuraram explicar o desen- rolar do processo histórico oferecendo novas narrativas, apresentando novas causas e demonstrando consequências antes ignoradas. Surgiram também inquietações do tipo: como as experiências masculinas passaram a ser as únicas representativas da história humana? Qual o efeito do “olhar sobre as mulheres” na prática historiográfica? Assim, estudos sobre mulheres serviram para “questionar a prioridade relativa dada à ‘história do homem’, em oposição à ‘história da mulher’, expondo a hierarquia implícita em muitos relatos históricos”,6 em caracterizações de avanços e retrocessos e em temas e periodizações, tais como Renascimento, Revolução Francesa e cidadania, classe trabalhadora, conquista da América. “Se uma forma de periodização significa a eleição de determinados acontecimentos como os mais importantes para assinalar uma mudança fundamental na organização econômica, social, política, uma periodização no feminino será aquela que elege como acontecimentos-chaves aqueles relevantes para as mulheres”.7

cia masculina passou a ser estudada para além de categorias pretensamente neutras, como classe e etnicidade. O feminino foi visto como reportado necessariamente ao masculino nas práticas concretas e simbólicas, em relações de poder, conflito ou complementaridade, dentro de contextos históricos específicos. As relações sociais de sexo adquiriram o mesmo status de categorias como classe e raça e passaram a ser consideradas imprescindíveis em teorias que se propõem a explicar as mudanças sociais. Para Catherine Hall e Leonore Davidoff, por exemplo, “sexo e classe operam sempre  juntos, e a consciência de classe também adota sempre uma forma sexuada ainda que a articulação de ambos nunca seja perfeita”. A distinção entre homem e mulher é um fato sempre presente; determina a experiência, influi na conduta e estrutura expectativas.8 O debate sobre a necessidade e as maneiras de tornar o saber histórico preocupado com a construção social das diferenças sexuais um campo de conhecimento mais analítico prosseguiu e continua até hoje. Dentro desse debate, existem várias ressalvas e críticas, como também defesas ardorosas, do atrelamento da pesquisa com tal preocupação aos métodos e ferramentas conceituais da chamada História Social. As discussões a esse respeito chegaram a tomar rumos inusitados quando alguns envolvidos foram além do questionamento das formas de elaboração dos fatos históricos e criticaram a própria metodologia de análise da disciplina. Voltaremos a isso.

A tendência do enfoque exclusivo sobre as mulheres acabou dando lugar ao estudo das relações entre os sexos (o pressuposto: as  A preocupação com gênero mulheres são definidas também em relação Em outras reflexões, o termo sexo foi aos homens, e vice-versa). A própria experiênquestionado por remeter ao biológico e a palavra gênero passou a ser utilizada para enfatizar 5 Gisela BOCK, 1988; e Joan SCOTT, 1988a. 6 7

SCOTT, 1992. Carmen ESCANDÓN, 1991.

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Catherine HALL e Leonore DAVIDOFF, 1987.

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os aspectos culturais relacionados às diferenças sexuais. Gênero remete à cultura, aponta para a construção social das diferenças sexuais, diz respeito às classificações sociais de masculino e de feminino. A partir dessa visão aparentemente consensual do conceito de gênero, o termo foi empregado de diferentes maneiras pelos historiadores.

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se fosse algo a-histórico). As chamadas teorias do patriarcado explicam a subordinação “universal” e “invariável” das mulheres pela necessidade masculina de controle da sexualidade feminina, fixando a oposição homem/mulher. As correntes feministas marxistas apontam, por sua vez, para o peso da necessidade capitalista de controlar a força de trabalho feminina na divisão sexual do trabalho (procurando garantir o “papel reprodutivo” e a manutenção de um “exército de reserva”).

Os Estudos de Gênero entraram na História. Nesse debut, herdaram muitos dos pressupostos, preocupações e metodologias de pesquisa da já atuante História das Mulheres, mas também reformularam Uma das formas, talvez a mais inou contestaram vários outros.

teressante, de adoção do termo é seu emprego como categoria de análise.

Uma das formas, talvez a mais interessante, de adoção do termo é seu emprego como categoria de análise. Nesse sentido, uma das propostas da História preocupadas com gênero é entender a importância, os significados e a atuação das relações e representações de gênero no passado, suas mudanças e permanências dentro dos processos históricos e suas influências nesses mesmos processos.9

Na avaliação de Joan Scott (feita em 1986), com a qual muitos historiadores concordaram, os Estudos de Gênero representam a grande saída diante dos impasses provocados por teorias que procuram causas originais da dominação do sexo feminino pelo masculino. Trabalhos preocupados com “origens” e “causas primárias”, apesar de terem colaborado para o conhecimento da “condição feminina”, terminavam muitas vezes por subordinar as relações entre homens e mulheres a uma “causa essencial” abstrata e universal, sem refletir sobre os significados das transformações dessas relações (podemos acrescentar: tomando a própria dominação masculina como pressuposto, como 9

Carla BASSANEZI, 1992.

Essas duas perspectivas (e suas variantes, como, por exemplo, as teorias da “dominação dual”) não avançam no sentido de explicar historicamente a diversidade das formas de relações entre os sexos e as representações distintas do masculino e do feminino existentes em vários contextos e culturas. A categoria de gênero, entretanto, ajuda a pensar nessas questões, escapar ao reducionismo, levar em conta as transformações históricas e incorporar, na pesquisa e na análise, seus entrecruzamentos com etnia, raça, classe, grupo etário, nação, entre outras variáveis. Em determinadas abordagens, o termo “gênero” vai se sofisticando na promessa de enriquecer os estudos históricos. Tomado como uma categoria, ou seja, um modo de perceber e analisar relações sociais e significados, gênero pode ser empregado como uma forma de afirmar os componentes culturais e sociais das identidades, dos conceitos e das relações baseadas nas percepções das diferenças sexuais. Em

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outras palavras, a categoria de gênero remete à ideia de que as concepções de masculino e de feminino possuem historicidade. Assim, os significados de “ser homem”, “ser mulher” ou de identidades e papéis [relacionados de algum modo a concepções que fazem referência a sexo] como “mãe”, “boa esposa”, “moça de família”, “chefe da casa” são entendidos, na perspectiva de gênero, como situações produzidas, reproduzidas e/ou transformadas ao longo do tempo.10

Como uma categoria de análise, gênero por si só não pressupõe ou descreve nada além do fato de que percepções das diferenças sexuais são capazes de nortear relações sociais. Não traz em si um conteúdo. Não se refere a um ob jeto específico. Não define de antemão condições, identidades e relações. Portanto, estudar gênero demanda pesquisa.

ou dos discursos científicos (da Medicina, da História, da Biologia). Isso porque as representações de gênero estão presentes - sendo construídas, reproduzidas e contestadas - em vários espaços, tais como as instituições, o mercado de trabalho, os meios de comunicação, os movimentos sociais, as experiências coletivas e as escolhas individuais. Existem até historiadores com estudos interessantíssimos sobre a influência das concepções de gênero nas ideias sobre civilização12 ou nas concepções nacionalistas em vários lugares do mundo e em diversas épocas.13  Em minha opinião, esses temas são os que melhor simbolizam a novidade e o alcance de voo da categoria de gênero, pois não falam direta e imediatamente de homens e mulheres concretos, e sim de concepções de masculino e feminino presentes e atuantes no processo histórico.

A vantagem da categoria de gênero é justamente permitir, e mais, exigir que o estudo e  As propostas de Joan Scott a análise sejam feitos sem definições preestaUm grande marco nos Estudos de Gênero belecidas com relação aos significados ligados foi a publicação, em 1986, de “Gender: A Useful às diferenças sexuais. Essas definições devem Category of Historical Analysis”, de Joan Scott, ser buscadas em cada contexto. A questão cenque problematizava gênero em termos de catral a ser respondida pelos pesquisadores partegoria de análise como uma forma de fazer te do “como”: como, em situações concretas e com que os trabalhos preocupados com as diespecíficas, as diferenças sexuais são invocadas ferenças sexuais passassem das descrições para e perpassam a construção das relações sociais? as explicações (inquietação compartilhada por O objeto da investigação não precisa ser vários outros autores) e, finalmente, para a elanecessariamente a categoria empírica “mulher” boração de teorias. (ou “homem”), pode ser o significado atribuído a objetos11  e atitudes. Pode remeter às condições de desigualdade, a manifestações e a ideias sobre sexualidade, maternidade, paternidade; às relações familiares ou de trabalho; às ideias veiculadas pelos meios de comunicação. Pode tratar das manifestações subjetivas

A definição de gênero que Scott apresenta nesse texto parte de duas proposições: a) gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e b) gênero é um modo primário de significar relações de poder. A primeira re-

10 BASSANEZI, 1992. 11 Antropólogos ensinam que coisas também podem ser vistas co- mo masculinas ou femininas (Suely KOFES, 1993).

12 Como o estudo de Mary Louise Roberts (1992) sobre a França em “crise cultural” no pós-Primeira Guerra Mundial. 13 HALL, 1993.

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fere-se ao processo de construção das relações de gênero. A segunda refere-se à pertinência da aplicação do termo como categoria de análise de outras relações de poder.14 Para Scott, a definição de gênero envolve ainda quatro elementos que podem operar em conjunto: a) símbolos que evocam múltiplas representações (por exemplo, Eva e Maria, inocência e corrupção, virtude e desonra). Eles devem ser pesquisados em suas modalidades e nos contextos específicos em que são invocados; b) conceitos normativos que evidenciam as interpretações e os significados dos símbolos (doutrinas religiosas, regras sociais, científicas, políticas), e que remetem a afirmações dominantes dependentes da rejeição ou repressão de possibilidades alternativas. Aqui, o desafio das pesquisas seria revelar o debate por trás da aparência de uma permanência eterna na representação binária e hierárquica de gênero; c) política, instituições e organização social, noções e referências que devem ser incluídas nas análises, pois gênero é construído tanto no parentesco quanto na economia e na política; e d) identidade subjetiva. O pesquisador pode examinar os modos pelos quais as identidades de gênero são constituídas, relacionando-as a atividades (educacionais, políticas, familiares etc.), organizações e representações sociais contextualizadas. Enfim, Scott propõe que os pesquisadores observem “os efeitos do gênero nas relações sociais de maneira sistemática e concreta”.15 A afirmação de que o gênero é um campo primário no qual ou por meio do qual o poder é articulado (apesar de não ser o único, é um meio recorrente de proporcionar a significação 14 15

Eleni VARIKAS, 1991. SCOTT, 1986.

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de poder) conduz o historiador a buscar as formas pelas quais os significados de gênero estruturam a organização concreta e simbólica de toda a vida social, ou seja, as referências que estabelecem distribuições de poder (controle ou acesso diferencial às fontes materiais e aos recursos simbólicos). Gênero é tanto produto das relações de poder quanto parte da construção dessas próprias relações. Os pesquisadores podem, portanto, pensar nas seguintes questões: como as instituições incorporaram gênero? Por que as mulheres permaneceram por tanto tempo invisíveis no conhecimento histórico? O su jeito da ciência e a objetividade científica são engendered (pautados por gênero)? Quais são os efeitos sociais da associação entre Estado totalitário e masculinidade, regimes autoritários e controle da sexualidade feminina?16 Scott pergunta: se as significações de gênero e as de poder se constroem mutuamente, como ocorrem as mudanças? - uma grande questão da História -, ou seja, se as estruturas se reproduzem, como se dão as rupturas? Para Scott, as respostas não são únicas. Elas devem ser buscadas em cada contexto histórico. As pesquisas ancoradas na disciplina histórica têm mostrado que movimentos sociais, rebeldias individuais, transformações econômicas, crises demográficas etc., podem servir para que sejam redefinidos os termos de gênero ou reforçar os 16 Cito, como exemplo, dois objetos de estudo capazes de demonstrar como gênero é evocado para definir relações de poder: a) o nazismo, cujo ideal de superioridade é simbolizado pelo homem ariano, que cultua a virilidade e tem como objetivo o extermínio dos judeus (que conduz, entre outras coisas, à esterilização em massa de mulheres judias) (BOCK, 1988); e b) a discussão do caráter gendered masculino do espaço público burguês na época da Revolução Francesa: a política da monarquia, chamada de “política da alcova”, é associada pelos discursos revolucionários, negativamente, ao feminino e à imoralidade. Em contrapartida, a República (a política visível do espaço público) é associada, positivamente, ao masculino. Um estudo como esse fornece pistas sobre a exclusão das mulheres (relacionada à formação da virtude republicana) e sobre como, a partir de quais mecanismos ideológicos, a crítica da autoridade arbitrária não chega ao interior da família burguesa (Joan LANDES, 1988).

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conceitos tradicionais sob novas aparências. Dessa forma, por exemplo, “homem” e “mulher” - categorias aparentemente fixas ligadas à natureza dos sexos - podem receber definições alternativas ou incorporar possibilidades antes negadas ou reprimidas. Essas propostas de Scott foram amplamente aplaudidas, mesmo porque algumas delas já vinham sendo postas em prática por historiadores sociais.17  As preocupações militantes dessa autora e seu apelo para reflexões acadêmicas que colaborassem com o projeto feminista também atraíram atenções e elogios. Outros textos de Scott, porém, provocam reações negativas, por diversos motivos em vários campos: suas críticas aos Estudos de Gênero ligados à História social, suas observações relativas aos “limites epistemológicos” da própria História Social e, finalmente, sua aproximação com métodos linguísticos e o que chamou de pós-estruturalismo.

longos processos) e História do cotidiano. Especificamente, ele é o resultado bem-sucedido de um esforço de estudar a história do trabalho das mulheres na França e na Inglaterra no período 1700-1950. Sustentando o princípio de que o conhecimento das experiências femininas, no caso, a atuação das mulheres no mundo do trabalho, só pode surgir da compreensão dos contextos econômicos, demográficos e familiares nos quais essas mulheres configuram suas vidas, as autoras delineiam a trajetória do trabalho das mulheres a partir das mudanças e permanências desses fatores inter-relacionados. A obra não apenas trata do impacto da industrialização no trabalho feminino e de sua estreita relação com as estratégias de reprodução das famílias - como pretendem as autoras -, como também contribui com pistas em bases sólidas para o estudo das mentalidades e das intersecções entre condições estruturais, relações sociais e escolhas individuais.

Quando Scott fala em linguagem, não quer dizer representação de ideias que causam relações materiais ou da qual resultam.  A opção pós-estruturalista de Joan Scott

Posteriormente, referindo-se à parceria entre História Social e História das Mulheres (e fazendo uma espécie de autocrítica), Scott diria: os historiadores sociais (eu, dentre eles) documentaram os efeitos da industrialização sobre as mulheres, um grupo cuja identidade comum nós pressupomos. Questionávamos menos frequentemente naquela época sobre a variabilidade histórica do próprio termo “mulheres”, como ele se alterou, como no decorrer da industrialização, por exemplo, a designação mulheres “trabalhadoras” como uma categoria separada de “trabalhadores” criou novas percepções sociais do que significava ser uma mulher.19

Joan Scott deve sentir-se à vontade ao fazer críticas à História Social: em 1978, publicou, em parceria com Louise Tilly, um livro brilhante nessa linha de abordagem chamado Woman, Work and Family.18 Esse livro é uma rara e competente combinação de macro-História (comparativa, de grande duração, preocupada com

Para Scott, a História Social, ao estudar processos ou sistemas por meio de grupos humanos particulares e ao pluralizar os objetos

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VARIKAS, 1991. TILLY e SCOTT, 1987.

SCOTT, 1992.

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e as narrativas históricas, abriu espaço para a diferença sexual) opera na construção do sigHistória das Mulheres e de Gênero. Entretan- nificado” e “como as complexidades dos usos to, “reduziu a ação humana colocando-a em contextuais abrem caminho para mudanças no função de forças econômicas e fez do gênero significado”.24 um de seus inúmeros subprodutos”, e não algo Quando Scott fala em linguagem, não que pudesse ser estudado em si mesmo. Isso ocorre porque a História Social defende que a quer dizer representação de ideias que causam diferença de gênero pode ser entendida den- relações materiais ou da qual resultam.25  Por tro de seu quadro explicativo (econômico).20 A linguagem, ela entende “sistemas de significaideia adotada pela História Social de que cate- do ou conhecimento” em que o significado é gorias de identidade refletem uma experiência criado por meio da diferenciação. Afirma que objetiva (e que, portanto, determinações ob- “não há realidade social fora ou anterior à lin jetivas e efeitos subjetivos constituem esferas guagem”, ou seja, “é impossível separar signifiseparadas) conduz a explicações que servem cados de experiências, não há experiência somais para confirmar que para modificar visões cial separada da percepção das pessoas sobre preestabelecidas sobre as mulheres. Essa con- ela”, “linguagem não é só as idéias que as pescepção remete a uma essência feminina e con- soas têm sobre determinados assuntos, mas as sequentemente a interesses (e consciência) de- suas representações e organizações da vida e terminados pela posição econômica ou sexual. do mundo”.26  “Linguagem não somente posUma história escrita nesses termos endossa a sibilita a prática social; ela é a prática social”.27 ideia da diferença sexual imutável e termina Textos não são só documentos, mas também por ser usada para justificar a discriminação.21 “articulações de qualquer tipo ou meio, inclusiPara que se possa romper com o campo concei- ve práticas culturais”.28 Discurso não é uma fortual (da Filosofia Ocidental), que tem construí- ma de expressão, ou palavras, mas é um condo o mundo hierarquicamente em termos de  junto não só de modos de pensar, de entender, universalidades masculinas e especificidades como o mundo opera e qual o lugar de cada femininas, é necessária uma nova abordagem um nele, como também de modos de organizar vidas, instituições e sociedades, de impleteórica.22 mentar e justificar desigualdades, mas também Scott, então, descarta a História Social e de recusá-las.29 Em outras palavras, discurso “é afirma ter encontrado no pós-estruturalismo uma estrutura de proposições, termos, crenças uma “epistemologia mais radical”, capaz de “tra- e categorias histórica, social e institucionaltar as mulheres como sujeitos da história e gê- mente específicas”.30  Scott diz ter optado por nero como uma categoria analítica”.23 A autora essa noção porque ela permite quebrar com chama de pós-estruturalismo as abordagens as oposições conceito/prática, representações/ linguísticas e filosóficas calcadas em ideias de vida concreta, material. Diferença é a “noção de Derrida e Foucault. Para Scott, as teorias da lin- que o significado é feito através de contraste: guagem empregadas pelos pós- estruturalistas uma definição positiva se baseia na negação ou ajudam a pensar “como as pessoas constroem significados”, “como a diferença (e, portanto, 24 SCOTT, 1987. 20 21 22 23

SCOTT, 1988b. SCOTT, 1988a, introdução. SCOTT, 1988e. SCOTT, 1988c.

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SCOTT, 1987, 1988e. SCOTT, 1987, 1988c, 1988e. SCOTT, 1987. SCOTT, 1988e. SCOTT, 1987. SCOTT, 1988e.

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repressão de algo representado como sua antítese”. E, finalmente, desconstrução é a análise das operações da diferença (modos pelos quais os significados são postos para funcionar) nos textos.31 Uma abordagem que vê o significado como algo construído em termos de diferença é útil (para os historiadores com preocupações feministas), já que percebe a diferença sexual como uma maneira de estabelecer significado.32 A apropriação do pós-estruturalismo pelos Estudos de Gênero no sentido de pensar a diferença (em termos de pluralidade e diversidade, em vez de unidade e universalidade), segundo Scott, vai ao encontro das necessidades teóricas de se estudarem as relações de poder, a produção dos significados e as formas de construção e de legitimação das hierarquias de gênero. Nessa perspectiva, gênero é redefinido como conhecimento (o saber) sobre a diferença sexual.33 O conhecimento se refere a tudo em que se constituem as relações sociais (ideias, instituições, estruturas, práticas, rituais). Conhecimento é um modo de ordenar o mundo e é inseparável da organização social. Assim, “gênero é a organização social da diferença sexual”. Os significados estabelecidos por gênero podem ser contestados politicamente, e é por meio deles que as relações de poder são constituídas. Um dos princípios caros a essa abordagem é o de que os significados são produzidos diferencial e hierarquicamente. Diferencialmente por ocorrerem por meio de contrastes e oposições binárias (uma definição positiva se baseia na negação ou repressão de algo representado como sua antítese, por exemplo, homem/mulher, identidade/ diferença, presença/ falta). Hierarquicamente por haver um termo 31 32 33

SCOTT, 1988e. SCOTT, 1988c. SCOTT, 1988a, introdução.

dominante, prioritário, e outro subordinado, secundário.34 As oposições reprimem ambiguidades internas e a heterogeneidade de cada categoria. Encobrem assim a interdependência dos termos (pois, na verdade, o segundo é necessário ao primeiro). Por exemplo: “se a definição de Homem permanece na subordinação da Mulher, então uma modificação na condição da Mulher requer (e provoca) uma modificação em nossa compreensão do Homem (um simples pluralismo cumulativo não funciona)”.35 Os estudos pós-estruturalistas prometem ser capazes de relativizar o status de todo conhecimento, ligar conhecimento a poder e teorizá-lo em termos de operações da diferença. Consideram que podem dizer como as hierarquias de gênero são construídas e legitimadas (tratando de processos, não de origens; de causas múltiplas, de retóricas e discursos, e não de ideologias e consciências).36 Segundo Scott, esses estudos enfocam os processos conflitivos que estabelecem significados (tomados, nessa perspectiva, como instáveis, abertos à contestação e redefinição). Apontam as maneiras pelas quais conceitos de gênero adquirem a aparência de fixos. E lidam com jogo de forças envolvido nessa construção, ou seja, a política. Nessa abordagem, os interesses que controlam ou contestam significados são produzidos discursivamente, são relativos e contextuais, e não inerentes aos atores ou às suas posições estruturais (não há, como na abordagem da História Social, interesses objetivamente determinados e nem uma separação entre condições materiais, pensamentos e ações engendrados por aquelas).37  Os significados são disputados localmente dentro de campos de força discursivos que se sobrepõem, 34 35 36 37

SCOTT, 1988e, 1992. SCOTT, 1992. SCOTT, 1988a, introdução. SCOTT, 1988a, introdução.

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influenciam e competem uns com os outros. Porém, aparecem como verdades, exercendo uma função legitimadora de poder.38 Política é, portanto, o processo pelo qual jogos de poder e conhecimento constituem identidade e experiência, e estas, por sua vez, são fenômenos organizados discursivamente em contextos e configurações particulares.39 Ainda segundo Scott, a desconstrução é o método mais indicado para criticar, reverter e deslocar as oposições binárias, revelando, com isso, o seu funcionamento, expondo os termos reprimidos e desafiando o status natural da dicotomia dos pares.

 Aplicações(?) Um exemplo que ilustra a aplicação dessa abordagem é a análise que a própria Scott faz do famoso “Caso Sears” (1979-1986),40 que levou aos tribunais norte-americanos o debate “igualdade versus diferença”. A loja Sears, com a assessoria de uma historiadora, apoiou-se em argumentos que enfatizavam a diferença sexual - homens e mulheres têm interesses distintos com relação a postos de trabalho e tipos de emprego - para  justificar a política salarial da empresa contra as acusações de discriminação que lhe haviam sido feitas por feministas. As feministas, por sua vez, insistiam em argumentos que acabaram sendo entendidos como uma “suposição” a favor da igualdade de interesses das mulheres com relação a escolhas de emprego e, consequentemente, à questão salarial. As feministas perderam a causa. À luz do pós-estruturalismo, Scott afirma que “igualdade” e “diferença”, na verdade, não designam termos opostos, e sim interdepen38 39 40

SCOTT, 1988e. SCOTT, 1988a, introdução SCOTT, 1988e.

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dentes (“igualdade não é a eliminação da diferença e a diferença não obsta a igualdade”). Portanto, uma discussão mais profunda seria a que girasse em torno da relevância de ideias gerais de diferença sexual em contextos específicos. O termo “diferença” pode ser usado positivamente - enfatizando a desigualdade escondida em um termo aparentemente neutro, pois, por exemplo, o termo “trabalhador” pode não dar conta das especificidades das experiências femininas - ou negativamente - justificando um tratamento desigual. Scott toma o “Caso Sears” como uma lição “sobre a operação do discurso como um campo político” em que conceitos são manipulados para implementar e justificar um poder. A solução seria expor a formulação “igualdade versus diferença” como uma ilusão, pois o primeiro termo diz respeito a princípios e valores reivindicados e o segundo, a uma “ferramenta analítica” (antítese de semelhança ou identidade) cujo contexto deve ser especificado. Em outras palavras, a natureza da comparação deve ser explicitada, e não posta como algo inerente às categorias de “homem” e “mulher”, cuja oposição generalizada acaba por obscurecer as diferenças entre as mulheres, as semelhanças entre homens e mulheres e as distintas experiências históricas. A proposta, portanto, é enfatizar as diferenças (atenção ao plural!). A ênfase nas diferenças proporciona uma maior diversidade que a simples oposição homem/mulher. Dá condições para a criação de identidades individuais e coletivas (algumas pessoas se identificam, porque, entre tantas diferenças, têm algo em comum, por exemplo, sofrem discriminação, reivindicam determinados direitos). As diferenças destacadas desafiam identidades fixas e categorias essencialistas e podem ser o próprio significado da igualdade reivindicada: “a igualdade reside na diferença”. Scott questiona a visão de que igualdade e diferença são de fato dicotômicas. E “propõe que a igualdade pode impor indiferença às di-

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ferenças; logo, de acordo com sua avaliação, é possível ser tanto diferente quanto igual”.41 As sugestões de Scott para a análise das oposições binárias presentes nas operações dos discursos têm sido aproveitadas também por alguns pesquisadores que não concordam totalmente com seus princípios pós-estruturalistas. Sueann Caulfield,42  por exemplo, faz uso das “teorias epistemológicas de significação” para analisar as construções de gênero (no discurso da revista Vida Policial, entre 1925 e 1927) referentes a conceitos, tais como “mulher honesta”/”desonesta”, “garotas modernas”/”futura boa mãe”. Caulfield também se inspira nessas teorias para demonstrar que gênero é usado como ponto de referência para construir e legitimar relações sociais e interesses políticos que vão do campo da sexualidade ao das lutas raciais, dos conflitos nos espaços público e privado ao projeto de construção da nacionalidade brasileira.

sendo tomadas como permanentes e irredutíveis. E os argumentos igualitaristas (que servem como antítese do senso comum conservador) acabam ficando em segundo plano. A ideia de que a ênfase nas diferenças possibilita a criação de “identidades individuais e coletivas” não os convence, pois - argumentam - o pensamento que procura reconhecer um número cada vez maior de diferenças dentro das diferenças (a diferença múltipla) “só pode ir parar na mônada, no átomo, isto é, na afirmação de que todo indivíduo é único e diferente”.43 As implicações políticas das abordagens teóricas não podem ser descartadas, porque a própria Scott procura justificar sua adesão ao pós-estruturalismo por uma opção político-feminista, cujos objetivos seriam: tornar as mulheres sujeitos históricos; apontar e transformar as desigualdades entre homens e mulheres; modificar a distribuição de poder existente; produzir um novo conhecimento sobre a diferença sexual; articular uma (ou várias) identidade(s) política(s) em torno de algumas lutas de interesse das mulheres, sem conformá-las a estereótipos. Enquanto interpretam o mundo, os historiadores são capazes de contribuir para mudá-lo, afirma Scott.44 É impossível, portanto, dizer que ela não tem boas intenções. Scott não é uma alienada.

A proposta de Scott - como instrumento teórico-metodológico para o entendimento de como gênero significa relações de poder e de como é tomado como referência para cristalizar identidades - mostra-se útil na análise que Caulfield faz da linguagem conceitual da revista que utiliza como fonte de pesquisa. Porém, essa historiadora prefere outras abordagens teóricas ao enfrentar a questão das subjetividades e da ação humana (human agency), pois  Joan Scott versus E. P. Thompson reconhece - assim como vários outros historiadores - os limites do pós-estruturalismo diante Entre as propostas de Scott está um amdessa problemática. plo questionamento da disciplina histórica, tomada tanto como método quanto como insPesquisadores preocupados com a mi- tituição. Questionar a própria História é imporlitância política fora dos muros acadêmicos, tante porque as representações, os retratos que por sua vez, consideram as posições que privi- faz, do passado contribuem para a construção legiam as diferenças culturais entre homens e de gênero no presente; as “políticas da História” mulheres perigosas para os movimentos sociais fazem parte de relações de poder.45 contrários à discriminação, como é o caso do feminista. Segundo eles, as diferenças acabam 41 42

Marnie HUGES-WARRINGTON, 2002. Sueann CAULFIELD, 1991.

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Antônio Flávio PIERUCCI, 1990. SCOTT, 1988a. SCOTT, 1988a.

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Para Scott, a discriminação sofrida pelas mulheres nos estudos históricos pode não ter ocorrido apenas por machismo ou por um viés de gênero dos profissionais, e sim por problemas inerentes aos próprios métodos gender blind (cegos à questão de gênero) da História Social. O trabalho de E. P. Thompson, 46  A formação da classe operária inglesa,47  é tomado como exemplo dessa afirmação.

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Isso dificulta a incorporação da diversidade ou da diferença. Afirma também que, embora “homem” (humano) ou “trabalhador” possam ter um sentido neutro no trabalho de Thompson, a questão da mulher não está nele representada (e se estivesse, a coerência da narrativa seria desafiada, já que o texto, apesar de falar sobre mulheres, não trata de seus papéis históricos). Assim, a narrativa da obra é gendered (ela própria marcada por gênero), pois os conceitos gerais nos quais se baseia, na verdade, possuem um viés masculino.

Scott escolhe analisar essa obra pela influência que exerceu (e exerce) na História das Mulheres e de Gênero, apesar de, segundo a historiadora, Thompson nunca ter tecido considerações a respeito de gênero, de experiências femininas diferenciaEntre as propostas de Scott está das (ou não) das experiências dos traum amplo questionamento da balhadores em geral ou do peso dos aspectos masculinos e femininos na disciplina histórica. formação da classe trabalhadora.48 Em sua crítica ou “análise textual”, Scott afirma que o historiador concebe o movimento coletivo das lutas sociais em termos unificados, pois fala de The Making of, o processo, como uma única grande história. 49 46 Não cabe aqui desenvolver com detalhes as idéias de E. P. Thompson, o debate em torno delas ou os termos de sua contribuição para o desenvolvimento da História e da Sociologia histórica (para isso, ver: Harvey KAYE, 1984; Bryan D. PALMER, 1981; e Ellen TRIMBERG, 1984). Para uma análise de aspectos de sua forma de escrever História e do modo como define os conceitos de “experiência”, “ação”, “determinação” e “hegemonia”, ver: BASSANEZI, 1994. Contudo, é bom mencionar que, orientado por uma perspectiva marxista, Thompson rompe com análises simplistas economicistas. Incorpora a cultura em sua abordagem e enfatiza a ação humana no processo dinâmico da história, que, para ele, engloba tanto condicionamentos e determinações quanto a atuação dos sujeitos. Procura entender o “processo histórico e integrar a análise da cultura e da ação humana em uma análise macroestrutural de mudança social”. Afirma ser contra uma teoria descolada do empírico; daí a importância que atribui à pesquisa. Além disso, sua visão de História assume, explicitamente, um duplo compromisso: com as evidências históricas e com os problemas e as questões sociais do presente. 47 The Making of the English Working-Class, no original publicado em 1963 48 SCOTT, 1988d. 49 Será que essa crítica, no limite, não questiona o próprio pressuposto da disciplina História, que espera que o profissional da área, a partir de suas pesquisas, apresente uma narrativa legível sobre o período ou o processo histórico estudado?

Thompson, na visão de Scott, demonstra que as tradições auxiliam os trabalhadores na sua luta por direitos. Porém, dá a entender que as experiências domésticas femininas “atrapalham” essa luta; as reivindicações das mulheres, baseadas nessas vivências, são apresentadas, preconceituosamente, como imediatistas, menos políticas ou com um peso bem menor no processo de formação da classe trabalhadora. A presença das mulheres no trabalho de Thompson apenas enfatiza a relevância das associações de classe e da política dos homens. As mulheres são prioritariamente associadas às funções domésticas, mesmo sendo trabalhadoras, e o impacto diferencial do capitalismo sobre elas é negligenciado. Na luta dos trabalhadores ingleses, descrita pelo historiador, as mulheres são retratadas mais como companheiras leais que como militantes convictas. A variedade de comportamentos políticos é avaliada de acordo com um esquema gendered, ou seja, um esquema que emprega símbo-

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los comumente relacionados ao masculino e ao feminino para identificar polos positivos e negativos das estratégias políticas adotadas pelos trabalhadores. Assim, o racionalismo é considerado algo positivo na formação da consciência de classe, enquanto as referências religiosas e os usos do imaginário sexual são vistos como negativos. As mulheres que se encaixam no ideal de heroínas racionais são vistas como exceção, comportam-se como homens. A análise de Thompson faz com que o religioso, o espiritual e o doméstico (codificados como feminino) não sejam vistos como “aperfeiçoadores” da política. Enfim, a definição de experiência de classe (como fortemente determinada pelas relações produtivas50  nas quais os homens se inserem), empregada por Thompson, coloca a domesticidade de lado e associa implicitamente produtores e ação política efetiva. Embora esteja claro que nem todos os trabalhadores são homens, a produção é representada como uma atividade, ainda que não exclusivamente de homens, masculina.

como um campo de luta de visões diferentes sobre uma “nova sociedade” (revelando, por exemplo, que as vozes femininas eram mais ligadas ao socialismo utópico e, com a vitória do racionalismo, o “socialismo científico”, elas ficaram excluídas).51

Além dessas críticas específicas dirigidas ao trabalho mais famoso de Thompson, Scott toma o autor como um representante de uma tradição de historiadores comprometidos com a questão da igualdade social que, entretanto, descartam como reacionária qualquer tentativa de reconhecimento da complexidade da diferença sexual. Em consequência disso, os primeiros trabalhos de História das Mulheres, ancorados na tradição thompsoniana, foram incapazes de explicar o papel marginal das mulheres na formação da classe operária. Então argumenta ela -, só com a revisão das premissas teóricas do trabalho de Thompson é que a política da classe operária pode ser percebida

51 Há quem tenha identificado em um artigo posterior de Thompson - “The Moral Economy Revisited” (1990), mais especificamente na parte em que trata dos papéis de gênero nos food riots (“motins por alimentos”, ocorridos no século XVIII e início do XIX) - respostas indiretas às críticas de Scott. Afetado ou não por essas críticas, o fato é que, nesse trabalho, a partir da pesquisa em documentos (como gosta de fazer), Thompson dá bastante espaço à participação das mulheres nos motins, sua relação com os homens e com as autoridades, sua atuação no comércio e na economia familiar. O historiador alerta para a confusão que a noção de “igualdade” (ou a de “desigualdade”) pode trazer ao ser empregada erroneamente por historiadores de hoje na caracterização das relações entre homens e mulheres do passado. Naquela época, as pessoas não agiam por noções como esta, posto que “estavam profundamente habituadas a aceitar que os papéis de homens e mulheres fossem diferentes”, com certos espaços de justaposição. “Era exatamente a extensão e a importância manifesta dos papéis da mulher e suas responsabilidades que dava a ela autoridade na casa e respeito na comunidade”. Thompson explica a proeminência das mulheres nos motins em parte por seu papel destacado na economia (que lhes dava autoridade para administrar a vida diária e autoconfiança para reivindicar em protestos públicos). Entretanto, afirma, “é tolice supor que a reciprocidade e o respeito entre trabalhadores homens e mulheres nas comunidades dissolvessem as diferenças sexuais”. Por outro lado, as evidências “contestam os estereótipos da submissão feminina, timidez ou confinamento das mulheres ao mundo privado da casa”. Como de costume, Thompson enfatiza o estudo contextualizado da cultura e das ações dos sujeitos históricos.

50 Aqui, Scott parece adotar uma visão estreita do termo “relações produtivas”, opondo as esferas da “produção” (o mundo do trabalho, o espaço público) e da “reprodução” (o mundo doméstico, privado).

Na busca de uma explicação para os modos distintos pelos quais os interesses de classe são expressos ou definidos e, assim, contemplar a diversidade na narrativa histórica, Scott acaba descartando totalmente o que chama de “rede analítica de Thompson”. “Rede” esta que, segundo a historiadora, comete o equívoco de advogar uma correlação simples e direta entre esferas separadas: a da existência social e a do pensamento político. Outro de seus erros seria sustentar que a consciência emana da experiência e considerar classe como um movimento unificado enraizado numa percepção singular de interesse.

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Scott reitera que a abordagem mais frutífera encontra-se no estudo das organizações das representações (os contextos e as políticas de qualquer sistema de representação) nos discursos a partir das seguintes questões: como as categorias de classe foram formuladas por meio das representações em momentos históricos específicos? Quais os limites das formas linguísticas? Quais as lutas das definições envolvidas (afirmações, negações, repressões)? Como uma definição torna-se dominante? Como gênero é utilizado na construção de classe (terminologias, programas políticos e organização simbólica)? Ela garante que o resultado dessa abordagem será não um conceito unitário de classe (ou gênero), e sim um conceito de classe (ou gênero) como um campo de múltiplos e disputados significados.52 A construção dos significados, portanto, deve ser analisada como um conjunto de eventos em si mesmos, sem que seja empregada a distinção entre vida material e pensamento político, como fazem os textos clássicos. Se os próprios estudos históricos colaboram na construção das representações da diferença sexual, também eles merecem ser desconstruídos, alerta Scott. Antecipando-se a algumas críticas e respondendo a outras, Scott afirma que, embora alguns interpretem as ideias de Foucault como um argumento a favor da futilidade da ação humana na luta por mudanças sociais, elas devem, de fato, ser lidas como um alerta contra soluções simplistas, um conselho para que os atores pensem melhor sobre as implicações e os significados filosóficos e políticos dos programas e das estratégias que endossam.53 52 53

SCOTT, 1988d. SCOTT, 1988e.

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O casamento da História Social com os Estudos de Gênero Foram muitas as críticas à proposta de Scott. Ao responder diretamente a algumas delas,54  a historiadora55  basicamente acusou seus críticos de não terem entendido direito o que ela havia escrito. Viu-se então obrigada a reiterar suas definições de “discurso”, “linguagem” e “desconstrução” como coisas bem diferentes e mais abrangentes que as interpretações dadas pelos críticos (e, realmente, são definições aparentemente tão complexas e distintas das que os historiadores sociais costumam dar para os mesmos termos que não admira terem causado confusão). Em geral, os críticos valorizam o trabalho de Scott e comungam de suas preocupações políticas. Vários historiadores consideram “perspicaz” sua análise sobre os Estudos da Mulher e “original e promissora” sua visão a respeito de gênero. Concordam (uns mais, outros menos) com certas observações a respeito da historiografia, mas grande parte não se convence dos argumentos em favor do pós-estruturalismo.56 Para eles, o problema principal não está nas questões que Scott apresenta, mas na abordagem que propõe para resolvê-las. Consideram que ela foi “injusta” ao depor a História Social e insistem nas possibilidades positivas dessa linha de pesquisa. Uma das críticas mais recorrentes e interessantes diz respeito à deficiência das ferramentas teóricas pós-estruturalistas diante da 54 Linda GORDON, 1990; Bryan D. PALMER, 1987; e Christine STANSELL 1987. 55 SCOTT, 1987, 1990. 56 Scott também foi acusada de adotar indiscriminadamente o desconstrutivismo; ao se apropriar do vocabulário de Derrida e Foucault, nem sempre soube questionar suas (deles) suposições. “Por exemplo, é verdade que ‘não há nenhuma realidade externa ou anterior à língua’? [...] É possível distinguir os objetos do estudo literário dos objetos do estudo histórico?” (HUGES- WARRINGTON, 2002).

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questão da ação humana. Tal deficiência acentua-se quando se tenta casar essa abordagem com um projeto político como o explicitado por Scott, qual seja, romper com os determinismos, fazer das mulheres sujeitos históricos e fornecer elementos para se questionarem as desigualdades de gênero. Caracteriza-se aí uma contradição.

De fato, diante de uma abordagem teórica que afirma que “a elaboração dos significados envolve conflito e poder”, pois “os significados são localmente disputados dentro de campos de força discursivos” que “se sobrepõem, influenciam e competem uns com os outros, aparecem como verdade e servem a uma função legitimadora de poder”,59 podemos perguntar: qual o espaço para a ação? Ou, como faz Varikas,60 qual é o estatuto do su jeito da história? pós-estruturalis-

Na abordagem ta, as respostas não são claras.

Caulfield57 pergunta: como a análise textual resolve a questão dos modos como as identidades subjetivas ou os pontos de vista alternativos são construídos? Como pode haver ação se há somente sujeitos/objetos produzidos discursivamente? Como estudar rupturas e resistências se a ação humana parece dissolver-se diante dos onipresentes “sistemas discursivos”? Ao pressupor que a ação ocorre dentro de uma linguagem conceitual que estabelece por si limites e contém, ela própria, possibilidades de negação, resistência e interpretação, como reconhecê-los? Para Tilly,58  o método da desconstrução com sua ênfase no texto (quer se trate de um enunciado, da linguagem ou de oposições binárias) parece subestimar a ação humana e superestimar a coerção social. Ele praticamente ignora o ator e o mundo pautado por relações sociais concretas, e não atribui peso suficiente às lutas sociais nas mudanças históricas. E, mais, não pressupõe minimamente a relevância das condições em que as relações de poder se transformam.

57 58

CAULFIELD, 1991. TILLY, 1990.

Na abordagem pós-estruturalista, as respostas não são claras. Se, por um lado, parece afirmar a possibilidade de “intervenção dos sujeitos agentes” (ao mencionar a instabilidade do significado dos conceitos resultantes dos processos de contestação e, consequentemente, de múltiplas redefinições), por outro lado, parece negá-la diante da “impessoalidade das forças discursivas que constroem o significado”. Essa segunda leitura (favorecida pela “ausência literal do sujeito na exposição das teorias de produção do significado”) remete a um assustador determinismo: o da estrutura da linguagem. Mesmo quando se afirma a existência de “conflitos internos”, as pessoas parecem não existir ou contar decisivamente para os resultados dos “jogos de poder”.61 Em um de seus artigos, Scott parece considerar a influência da dinâmica das relações sociais na elaboração do significado ao afirmar que o poder de controlar um campo de força discursivo particular reside nas alegações do conhecimento incorporado em escritos/documentos, organizações, instituições e relações sociais (hierárquicas).62 Porém, Scott não deixa claro - ao falar em termos de “oposições biná59 60 61 62

SCOTT, 1988e. VARIKAS, 1991. VARIKAS, 1991. SCOTT, 1988e.

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rias”, “processos textuais de aquisição de significado” e “forças de significação” - como se dá essa influência e que peso ela tem no processo de elaboração e, menos ainda, no de contestação dos significados, ou, se preferirmos, das mudanças na história. A própria autora reconhece que as explicações foucaultianas não satisfazem seus colegas historiadores, preocupados em entender como as mudanças ocorrem, em especial aqueles que perguntam pelas “causas”.63 Para Tilly, o método preconizado por Scott coloca em questão “a existência de um mundo real e a possibilidade de descrevê-lo e explicá-lo”.64 Criticar os que afirmam a possibilidade de se resgatarem os fatos históricos “brutos”, “tal como aconteceram”, não é o mesmo que negar que eles tenham existido e que é válido tentar chegar próximo a eles, construindo narrativas e oferecendo interpretações. Os historiadores sociais atuais não têm mais a pretensão de chegar à “verdade” do passado. Sabem ser possível obter apenas verdades parciais, mas não negam que os acontecimentos da história tenham ocorrido e tenham tido efeitos concretos. Além disso, têm um compromisso com os fatos reconstituídos a partir das evidências e, apesar de interpretá-los, não os inventam. Abrir mão desses pressupostos é abrir mão da própria prática histórica. Se há um acordo com relação à validade de procurar resgatar o passado a partir de questões que nos inquietam hoje, vamos adiante. A etapa seguinte é assumir que essa é uma tarefa que pode ser executada sempre parcialmente, pois parece ser possível mergulhar sempre mais profunda- mente na pesquisa para se descobrirem novas evidências ou ângulos alternativos que sugerem interpretações novas ou mais abrangentes.65 A compreensão dos acontecimentos e o resgate de experiên63 64 65

SCOTT, 1988e. TILLY, 1990. Guita DEBERT, 1986.

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cias, as generalizações, as categorias e as teorias formuladas devem ser cotejados com os achados da pesquisa e a representatividade dos dados (ainda que, na prática, “investigação” e “análise”, ou “descoberta” e “teoria”, não sejam dois momentos totalmente distintos do trabalho do pesquisador). Escrever História não é escrever ficção ou registrar versões sem nenhum critério. A descrição, a explicação da “realidade” e as generalizações subsequentes devem aliar-se à preocupação de fazer uma leitura crítica das fontes, questionar ideias preconcebidas a respeito do assunto e, se for o caso, chamar a atenção para outros esquemas interpretativos. Diante da variedade de versões, é preciso questionar o sentido dessa diversidade e as condições de sua produção. Por outro lado, nos casos em que o objetivo é estabelecer uma reconstituição minimamente consensual da história,66 o historiador deve escolher entre uma versão ou outra e apresentar justificativas sólidas para o resultado de seu trabalho.67 A proposta de dar mais atenção às relações de poder que perpassam os documentos e os dispositivos institucionais agrada a historiadores sociais, como Tilly, Varikas e Hall. As análises do discurso (no sentido mais restrito) que se valem de algumas ferramentas linguísticas também não encontram oposição, mas a substituição do método da História Social pelo da desconstrução, sim. Tilly68 aponta para o limite desse método na tarefa de explicar o social, pois “permite a explicitação de significações ocultadas”, mas “não permite construir novas”. Além disso, não leva em conta tempo e contexto, dois recortes fundamentais para os historiadores. A desconstru66 Mesmo sabendo que ela pode mudar com o tempo e a evolução dos questionamentos dos pesquisadores em seu presente, mesmo reconhecendo o viés próprio das fontes e a inevitabilidade do viés próprio do historiador, e o dos seus futuros leitores, é preciso escrever uma história. 67 Sobre esse assunto, ver: Natalie DAVIS, 1990; Bryan D. PALMER, 1987; Carla PINSKY, 2006; E. P. THOMPSON, 1978; Eleni VARIKAS, 1991; entre muitos outros. 68 TILLY, 1990.

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ção pratica- mente nega as explicações (como um passo adiante das descrições). Portanto, é um equívoco preferi-la a uma abordagem preocupada em encontrar causas e consequências que leva em conta as condições sociais, os fatores relacionados às mudanças e às próprias relações de gênero. Hall,69 por sua vez, apela para o sentimento (que considera algo importante na escrita da História): “nós realmente pensamos em nós mesmos como sujeitos inseridos em um campo discursivo? Não é também vital pensar sobre os modos pelos quais os indivíduos e grupos são capazes de desafiar significados e expandir o terreno?”. Varikas, 70  como essas outras duas historiadoras, não acredita nas promessas referentes ao potencial político do pós-estruturalismo. Duvida da possibilidade de, com essa abordagem, conhecermos o papel dos atores sociais que se situam na base das hierarquias (de gênero, por exemplo) nos “processos de diferenciação” estabelecidos pelas próprias hierarquias. Além disso, não vê como o pesquisador possa ter acesso a essa informação por meio da desconstrução. Para Varikas, outro problema que o pós-estruturalismo de Scott não resolve é o do tratamento dos documentos. Como sua metodologia parece desenvolvida apenas para o trabalho com “discursos constituídos”, fica a questão de como trabalhar em seus termos quando os documentos usados informam pouco sobre as relações de força pelas quais seu discurso é constituído (quando, por exemplo, as mulheres são o objeto do discurso). E mesmo quando o discurso analisado tenha sido produzido por mulheres, o pesquisador pode cometer erros gravíssimos de interpretação, pois não são só os modelos culturais e as formações discursivas que explicam os discursos dessas mulheres. As 69 70

HALL, 1991. VARIKAS, 1991.

experiências acumuladas (vivências e interpretações) também o fazem e, portanto, também precisam ser estudadas. E o que, então, a História Social oferece aos Estudos de Gênero? Com várias das ferramentas comumente empregadas pela História Social, o pesquisador pode estudar as representações dos sujeitos e as relações de gênero a partir dos documentos, depoimentos e indícios variados produzidos e deixados pelas próprias pessoas das quais eles falam (como diários, cartas, testemunhos, textos publicados em qualquer mídia). O pesquisador também pode estudar relações de gênero, comportamentos, mentalidades e práticas a partir da fala de outros, inclusive de sujeitos ou discursos situados no primeiro plano das hierarquias (por exemplo, homens, produtores/detentores de saber, reprodutores de discursos dominantes, autoridades) ou de discursos mantenedores da ordem social.71 Por um lado, o pesquisador pode utilizar essas fontes para estudar tanto as normas culturais, os modelos de conduta e a moral dominante, a ordem social e as hierarquias de poder estabelecidas, quanto analisar as contradições internas desses discursos, suas ambiguidades, armadilhas e lacunas. Por outro lado, pode estudar essas mesmas fontes para detectar as atuações e performances dos atores históricos, submissas e/ou rebeldes aos limites sociais. Práticas, reinterpretações, tensões e conflitos presentes na vida dos sujeitos históricos emergem muitas vezes das entrelinhas e se revelam diante do olhar de um leitor mais atento (como, por exemplo, atitudes de “moças mal comportadas”, “esposas infelizes, mulheres “rebeldes”, “conflitos de geração”, resistências variadas e projetos de vida alternativos).72

71 Por exemplo, dos meios de comunicação (como as revistas femininas estudadas em: BASSANEZI, 1992), ou dos legisladores (como no trabalho de: CAULFIELD, 2000). 72 Como procurei mostrar em: BASSANEZI, 1992.

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Muitas das críticas de Scott à História das Mulheres não se sustentam, e os que saem em sua defesa argumentam com exemplos concretos. Muitos trabalhos considerados “descritivos” trataram de estudar a vida das mulheres no passado, sem isolar seu tema de outras preocupações históricas (como a força das ideias que contestam determinações sociais ou a relação entre os “vencedores” e os “vencidos”). Outros, mais “analíticos”, trataram de explicitar como suas pesquisas específicas contribuem para a discussão de questões “mais amplas” da disciplina histórica (por exemplo, os fatores envolvidos nas transformações sociais, as formas de resistência à ordem social e a mobilidade social). Além disso, apresentaram novas questões (tais como a importância da economia doméstica; o viés de gênero nos discursos nacionalistas; as definições de masculinidade e feminilidade relacionadas a esferas para além da vida privada, que afetam a estrutura legal, política e econômica; as condições de variação da divisão sexual do trabalho). Muitos deles utilizaram gênero como categoria de análise, sem precisar lançar mão do pós-estruturalismo.73 Um número grande de trabalhos, utilizando métodos da História Social, procura abordar o passado a partir da perspectiva de gênero. Fazem isso ao comparar e relacionar experiências e representações masculinas e femininas. Chamam atenção para as diferenças, variações e semelhanças entre classes, grupos etários e/ ou étnicos, ao longo do tempo em contextos distintos. Reformulam, a partir da perspectiva de gênero, conceitos (como o de trabalhador ou o de cidadão, por exemplo). Atentos a gênero, estudam as “operações do poder” em muitos espaços e tempos históricos. E vários deles dedicam-se a mostrar como e por que a escrita da História foi (e, por vezes, ainda é) marcada por um viés de gênero centrado no masculino. Outros ainda questionam as ideologias da “objetividade e neutralidade” de discursos científicos 73 HALL, 1990, 1991; HALL e DAVIDOFF, 1987; TILLY, 1990; e VARIKAS, 1991.

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e de projetos políticos que se dizem baseados na racionalidade.74 A própria crítica ao essencialismo não surgiu graças ao pós-estruturalismo, e sim a estudos que se debruçaram, por exemplo, sobre “povos dominados” ou determinados grupos étnicos, e a trabalhos que privilegiaram temas e recortes, como “mulheres negras”, “sociedades orientais”, entre outros. Segundo Hall, “a diferença” tornou-se assunto do feminismo ocidental devido não ao pós-estruturalismo, e sim ao desafio ao etnocentrismo; e só a capacidade de descentralizar nossas práticas (tarefa para a qual o pós- estruturalismo fez muito pouco) é que contribui para o desenvolvimento de uma política que valorize de fato a diferença.75 Historiadores sociais preocupados com gênero não veem necessidade de abandonar seus pressupostos em favor do pós-estruturalismo para estudar as formas pelas quais as representações e os símbolos constroem gênero e relações sociais. Com as ferramentas de que dispõem, sentem-se capazes de visitar o passado em busca das especificidades, descontinuidades e continuidades dos significados (por exemplo, de “ser homem”, “ser mulher”, “ser  jovem” etc.) e das relações (familiares, de trabalho etc., e até do próprio significado desses termos em cada época e contexto). Descrevem (parte importante do trabalho histórico), mas também analisam. Recusam de antemão definições dominantes ou essencialistas das diferenças dos sexos e historicizam noções relativas à masculinidade e feminilidade. Procuram ainda entender as relações de gênero também em termos de relações de poder. Investigam as experiências e, ao mesmo tempo, interpretam significados culturais, conferindo historicidade às representações de gênero. E, finalmente, buscam no próprio desenvolvimento da historiografia76 ferramentas metodológicas e dados 74 Catherine HALL, 1991; Bonnie G. SMITH, 2003; e Louise TILLY, 1990. 75 HALL, 1991. 76 Serviram e servem de apoio, por exemplo, os Estudos

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para suas pesquisas.77

as experiências diferenciadas de homens e mulheres.80  Essas acusações também não se sustentam diante de trabalhos preocupados com o peso das experiências femininas na constituição de representações sociais.

As acusações de que a História Social reduz as ações humanas em função das forças econômicas não têm sentido diante das inúmeras pesquisas nessa área baseadas no pressuposto de que a história não é o fruto de leis Não é necessário ser pós-estruturalista impessoais acima dos indivíduos, mas o resul- para se interessar pelos modos engendered tado (ainda que frequentemente incontrolável (pautados por gênero) da construção dos sige enviesado) das ações humanas. Elas levam nificados ou dos jogos de poder. Uma História em conta o problema do ator e das experiên- Social analítica e de gênero é capaz de não só cias e enfrentam a questão das possibilidades demonstrar que o poder constrói gênero e que de ação diante das determinações. Fazem isso gênero é utilizado como metáfora para outras ao reconhecer que a história e a sociedade são relações de poder, como também pode expliprodutos da ação dos indivíduos (mais ou me- car em que termos e quais as causas e consenos intencionais) tanto quanto são capazes de quências dos processos, as condições históricas modelar essa mesma ação.78 É parte do projeto que tornam as desigualdades e as hierarquias da História Social o reconhecimento da iniciati- mais ou menos acentuadas e como os limites va humana. A ideia de Marx de que os “homens mudam com as condições históricas.81 Portanfazem sua história, mas não nas condições que to, é ainda no âmbito da História Social que escolheram, e sim nas que lhes foram legadas muitas pessoas encontram subsídios para propelo passado” ou “as circunstâncias fazem os  jetos políticos que implicam em romper com homens na mesma medida em que os homens “determinismos biológicos” e questionar desifazem a circunstâncias” é uma forte referência. 79 gualdades sociais baseadas nas percepções da Na História Social, portanto, os sujeitos são es- diferença sexual. tudados em sua relação com as determinações Pesquisadores esclarecem que as “posi(sociais, políticas, econômicas e até culturais) e as possibilidades de agir; o pressuposto é de ções estruturais” não dizem respeito ao “econôque, na história, as pessoas atuam dentro de mico”, e sim à produção e reprodução da vida condições objetivas determinadas (se as condi- real concreta.82  Debatendo com Scott, confirmam que a História Social toma como ponto de ções são favoráveis, as ações são viáveis). partida uma ligação (de causalidade, relacionaNão há como acusar de gender blind (ce- da a um ou mais fatores) entre posições estrugos a gênero) ou androcêntricos pesquisadores turais e interesses sociais, necessidades sociais que equiparam gênero à classe (recusando-se, e formas de consciência.83 Entretanto, isso não portanto, a explicar gênero como um subpro- direciona os resultados a uma resposta única, duto da economia) e que analisam a influência não banaliza o conteúdo e a multiplicidade do gênero na constituição da classe (e vice-ver- possível desses interesses ou as formas como sa), incorporando nos conceitos de classe (ou esses interesses se articulam com os interesses de etnicidade, ou de grupo etário, entre outros) de População (padrões de casamento, taxas de fecundidade, migrações, situação dos domicílios), a História Mundial, os estudos de processos em larga escala (urbanização, industrialização, globalização etc.), a História das I deias, a História Política, a História Econômica e a dos Movimentos Sociais 77 BASSANEZI, 1992; TILLY, 1990; e VARIKAS, 1991. 78 Por exemplo: TILLY, 1990. 79 Carlos Nelson COUTINHO, 1987.

80 : HALL, 1990; HALL e DAVIDOFF, 1987; SMITH, 2003; e VARIKAS, 1991. E ainda a primeira parte de Scott (1988d). 81 CAULFIELD, 2000; e TILLY, 1990. 82 Como lembra Heleieth SAFFIOTI (1990). 83 Por exemplo, preocupa-se com as experiências femininas em determinada classe social e pres- supõe a existência de alguns (não todos) interesses e necessidades diferenciais das mulheres devido a sua (delas) posição estrutural num certo tipo de relação que envolve poder ( VARIKAS, 1991).

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comuns de homens e mulheres. Pelo contrário, esse mesmo enfoque é que impulsiona a buscar respostas para esses problemas. Historiadores sociais rebatem a crítica de postularem uma relação imediata e fatal entre experiência e consciência, afirmando que os interesses comuns de um grupo social são constituídos no processo de reflexão e interpretação dos fatos e das situações do cotidiano. Não subestimam a relevância do estrutural (como as relações de produção), ainda que esse não se estabeleça em outro domínio que não seja a atividade humana. Porém, além disso, valorizam os aspectos culturais presentes nas experiências humanas e seu papel na dinâmica social (constituída por permanências e mudanças). De fato,84  muitos historiadores identificados com a História Social preocupam-se em estudar os modos como homens e mulheres atribuíram significado às suas vidas.85 Em termos práticos, na História Social, dissolvem-se as oposições do tipo “realidade versus consciência”, “determinação versus agency”. Thompson enfrenta o problema da articulação entre ação humana e determinações históricas ao falar sobre o termo experiência:

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guida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] das maneiras mais complexas (sim, “relativamente autônomas”) e, em seguida, agem, por sua vez sobre sua situação determinada. [...] a experiência é um termo médio entre o ser social e a consciência social, é a experiência que dá cor à cultura, aos valores, ao pensamento.86

As determinações são entendidas como “limites” fixados, “pressões” exercidas, e não “programação predeterminada” ou “implantação de necessidade”. Em outras palavras, Thompson atribui certo peso aos limites impostos pelas condições materiais de existência sobre a formação da consciência e as possibilidades de ação dos sujeitos, mas não um peso absoluto; dentro desses limites (objetivos e culturais) as pessoas podem atuar, contribuindo, em certos casos, para o alargamento dos mesmos limites.

Historiadores sociais rebatem a crítica de postularem uma relação imediata e fatal entre experiência e consciência.

Os homens e mulheres [...] retornam como sujeitos dentro desse termo - não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos e em se-

84 Como avalia Varikas (1988). 85 Não há como acusar historiadores como Robert Darnton ou Natalie Davis de simplistas ao tratarem das relações entre ação/ expressão individual e vida social/ estruturas. Para Darnton (1986), “a expressão individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar sensações e a entender coisas pensando dentro de u ma estrutura fornecida por nossa cultura. Ao historiador [...] deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento e extrair a significação de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao primeiro, até abrir caminho através de um universo mental estranho”.

Ao desenvolver um trabalho de pesquisa histórica (com revistas femininas dos Anos Dourados) a partir da perspectiva de gênero, adotei como fio condutor o esquema que redigi da seguinte forma: As concepções relacionadas a percepções da diferença sexual tanto são produtos das relações sociais quanto produzem e atuam na construção destas relações. Em outras palavras, assim como as idéias influenciam a vida das pessoas, as experiências e os elementos materiais da existência, por sua vez, influem 86

THOMPSON, 1978.

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na constituição do pensamento (moldando as formas de as pessoas interpretarem tudo o que relacionam de algum modo às diferenças sexuais). [...] As relações entre pessoas e grupos sociais se estabelecem a partir das maneiras pelas quais eles dão significado e interpretam suas experiências (entre elas a da percepção das diferenças sexuais), em épocas e contextos determinados, a partir de limites culturais específicos, e, ao mesmo tempo, passam a agir de acordo com os significados construídos. A realidade social define os parâmetros de escolhas possíveis dos sujeitos históricos que, dentro das determinações de seu tempo (as “condições ob jetivas”), também participam dos processos de construção, manutenção e contestação dos significados e das relações de gênero (e, consequentemente, da distribuição de poderes marcada por concepções de gênero) em uma certa ordem social. Essa ordem fica ameaçada, entre outras coisas, quando sua potência é questiona- da pela ação de sujeitos que, conscientemente ou não, coletiva ou individualmente, desafiam, burlam ou tentam transformar seus limites. Assim, as transformações históricas nas relações pautadas por gênero estão ligadas tanto a mudanças no contexto sócio-econômico, nas sensibilidades e nas interpretações culturais gerais quanto às resistências e reivindicações concretas de sujeitos históricos (rebeldias femininas, por exemplo: quando certas mulheres assumem atitudes que desafiam normas do comportamento feminino apropriado, ameaçam e podem chegar a subverter as relações de gênero estabelecidas, participando, assim, da reformulação destas relações).87

Em publicação posterior - Pássaros da liberdade: jovens, judeus e revolucionários no Brasil -,88  pude observar com mais clareza o entrelaçamento das questões de gênero com as de classe, grupo etário e etnicidade. A perspectiva de gênero enriqueceu meu estudo da trajetória dos participantes de um movimento  juvenil preocupado em desafiar a ordem social 87 88

BASSANEZI, 1992. PINSKY, 2000.

e contribuir para o estabelecimento de uma nova era ao propor um estilo de vida socialista radical num contexto de igualdade sexual em que, inclusive, defendia-se o “amor livre”. Entre outros assuntos, procurei investigar se as relações de gênero dominantes na sociedade mais ampla resistiram ou não em um grupo jovem, estruturado, emocionalmente motivado e com um projeto explícito de mudança de práticas e valores. Constatei que aquele movimento juvenil não só foi capaz de se mostrar como uma alternativa às concepções de gênero dominantes para o futuro, no kibutz, como viabilizou, no presente, entre seus membros, relações e identidades de gênero em muitos pontos distintas das que predominavam fora, na sociedade mais ampla. As concepções baseadas na diferença sexual e etária são produtos da história. Assim, as vivências de rapazes e moças e suas visões sobre o que era próprio ou socialmente aceito para homens e mulheres e para jovens, na luta revolucionária e na sociedade que pretendiam criar, foram frutos de seu tempo. As inter-relações de determinações sociais e ação dos sujeitos históricos envolvidos desenvolveram-se no cotidiano de uma geração formada por imigrantes ou descendentes de imigrantes que chegaram ao Brasil fugindo da pobreza ou de perseguições antissemitas na Europa. Forjaram-se, de um lado, na intersecção entre as tradições judaicas, a cultura familiar, a herança dos diversos movimentos juvenis sionistas socialistas e as relações inter-étnicas, entre gerações, de classe e de gênero, que caracterizavam a sociedade urbana brasileira dos anos 1940-1950. E, de outro, foram moldadas pelas novas experiências, reflexões e vontades daqueles jovens idealistas. Sempre determinação social e opção pessoal. O belíssimo trabalho de Sueann Caulfield   - Em defesa da honra: moralidade modernidade e nação no Rio de Janeiro (191889

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CAULFIELD, 2000.

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1940) - valeu-se do conceito de gênero para melhor compreender as práticas sobre honra nos âmbitos pessoal, familiar, jurídico e nacional e sua relação com hierarquias de poder, sexuais, sociais e raciais. Mostrou como, mesmo sem ideais revolucionários e sem rejeitar frontalmente “as normas que mantêm sistemas de honra e vergonha”, pessoas envolvidas com os meandros da Justiça foram responsáveis por mudanças nos significados de honra, nos valores sexuais e na concepção de “mulher moderna”. Algumas delas foram, inclusive, capazes de ampliar os limites das convenções relativas às relações de gênero e das identidades femininas e masculinas. Aproveitando-se das possibilidades oferecidas à História pela perspectiva de gênero, Caulfield estudou, ainda, a função das normas ligadas à honra sexual nos debates públicos sobre a modernidade do Brasil e nas formas como a modernização cosmopolita ocorreu na primeira metade do século XX. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica, de Bonnie G. Smith, 90 retrata o viés de gênero embutido no processo de profissionalização da disciplina histórica: as “definições evolutivas de masculinidade e feminilidade” estreitamente ligadas à definição de História. O livro destaca ainda o trabalho das historiadoras, desde o século XVIII; os preconceitos sofridos e sua contribuição para a ampliação dos objetos e temas da História. Com sua pesquisa específica, Smith colabora também para uma análise historiográfica e metodológica da nossa disciplina. Peter N. Stearns - em sua bela síntese História das relações de gênero91 - promoveu uma união instigante entre os Estudos de Gênero e a chamada História Mundial, a linha que “elege o mundo como objeto de pesquisa”, compara sociedades e civilizações e analisa as mudanças mais significativas nos processos de longa duração. Stearns vai da pré-história ao século 90 91

SMITH, 2003. Peter N. STEARNS, 2007.

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XXI. Investiga o que ocorre com as definições de masculinidade e de feminilidade e com as relações de gênero quando duas culturas distintas entram em contato. Estudou o feminino e o masculino nas primeiras civilizações agrícolas e, depois, o que ocorreu com as relações de gênero a partir do encontro entre as civilizações da China e Índia antigas e sociedades do mundo clássico e determinados grupos nômades. Observou também a interação de duas importantes concepções de gênero no momento em que o budismo se expandiu da Índia para a China. Com relação ao período pós-clássico, descreveu o que se passou com as relações de gênero nas regiões de expansão do islamismo, nos primeiros contatos culturais do Japão com a China, e nos séculos de invasão mongol. Examinou a questão de gênero nos contatos culturais pós-1450 da Europa Ocidental com a Rússia e com partes da Ásia (Filipinas e Índia) e os encontros na América entre povos tão distintos quanto os colonizadores, os nativos americanos e os escravos trazidos da África. Sobre o século XIX, Stearns verificou as transformações de gênero que se deram a partir do encontro do Ocidente com povos da Oceania, da África e da Ásia, num momento em que os próprios padrões ocidentais estavam se modificando com rapidez. Analisa, para os séculos XX e XXI, as interações entre tradições de gênero e influências externas do contexto mundial que envolvem movimentos feministas, nacionalismos, atuação de organismos internacionais, imigrações, movimentos sociais e globalização cultural. Ao final, a partir de um olhar geral sobre os principais intercâmbios culturais que afetaram as relações de gênero, esboça algumas generalizações, identificando padrões, tipologias e tendências históricas. Como se vê, é possível e, a meu ver, necessário utilizar o conceito de gênero em trabalhos de História. Eles ganham muito com isso, como poderá constatar o leitor dos livros, acessíveis em português, acima mencionados. Por outro lado, não seria desprezível se também outros pensadores da questão de gênero procurassem

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dar historicidade às suas análises para evitar o risco de girar em falso em torno de abstrações.

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 As Mulheres e a Separação das Esferas Joana Maria Pedro*

A participação das mulheres no espaço público através do direito político de votar e ser eleita, embora consubstanciada, em alguns países, já no final do século XIX e, em outros, somente em meados do século XX, tem ficado restrita apenas ao direito de votar. Poucas mulheres têm-se aventurado neste espaço. Candidatar-se a cargos públicos tem continuado a ser um espaço eminentemente masculino. A luta pela instituição Fórum Social das Américas, Paraguai/2010. de cotas para as eleições nas instâncias legislativas tem como objetivo, tornar efetiva a participação das mulheres na esfera pública. O artigo de Marta Raquel Zabaleta, traz uma significativa contribuição para a discussão sobre as formas como as mulheres têm participado de maneira secundária da esfera pública, e sobre como as instâncias políticas têm tornado difícil esta participação, reafirmando o privado como o lugar das mulheres.    o     d    n    e    s    o     R    a     é    r     d    n     A

O artigo de Marta Raquel Zabaleta, O Partido das Mulheres Peronistas: história, característica e consequências (Argentina 1947-1955), além de denunciar o limite estreito de opções disponíveis para as mulheres “quando elas se engajam nas atividades formais do partido”, reivindica que estas aprendam a “não delegar sua responsabilidade pela ação política”. De acordo com o artigo, foi isso que ocorreu com a seção feminina do Partido Peronista. Em 1946, no governo de Juan Perón, a Argentina aprovou a instituição do voto para as mulheres e, em 1949, o Partido Peronista criou uma seção feminina – o Partido das Mulheres Peronistas (PPF). De acordo com a autora, o Partido Peronista desenvolveu uma “reduzida consciência social de gênero entre suas filiadas mulheres”. Em nosso entender, ao criar uma seção separada para as mulheres o Partido Peronista reeditou uma cartografia que tem sido constante na história das mulheres, no interior da sociedade burguesa ocidental: definir esferas separadas para as atividades de homens e de mulheres. Desta forma, a esfera privada tem sido pensada como o lugar das mulheres, mais especialmente a esfera *

Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina.

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íntima familiar; e a esfera pública, desenhada como o lugar dos homens, aí incluído o setor público.1 Em 1840, no livro de Alexis de Tocqueville, Democracy in America, é descrita a imagem física do círculo e a interpretação deste como a delimitação do espaço feminino circunscrito ao lar. Desde então, esta metáfora tem sido usada, tanto para justificar e enaltecer a presença feminina neste espaço, como para a crítica, reivindicando a eliminação desta separação das esferas de atuação (Kerber, 1988). De acordo com esta imagem de círculo, a domesticidade, atribuída às mulheres encerradas na esfera privada, vinha acompanhada de virtudes como piedade, pureza e submissão. Assim, além de um lugar definido para as mulheres, atribuíam-se a elas virtudes emanadas deste espaço. Barbara Welter argumenta que as mulheres foram cooptadas por este discurso, pois no lar existe serenidade, “há algo sedativo nos deveres que envolvem o lar. Ele garante segurança não apenas do mundo, mas de ilusões e enganos de todo tipo”. Teria sido, então, com “culpa e confusão” que as mulheres teriam sido envoltas por um estereótipo, o da “verdadeira feminilidade, tão estimulante e ao mesmo tempo tão confinador” (Welter, 1973. p. 224-50). Convém destacar que esta cooptação destinou-se a algumas mulheres, aquelas das camadas médias em ascensão, e ainda que não é em todo lar que existe a tal segurança – inumeráveis violências são praticadas no “doce lar”. Entretanto, esta imagem do círculo, da esfera separada, e de virtudes ligadas a ela, tornou-se uma figura de linguagem muito poderosa. No artigo de Zabatela, vemos que Juan Perón, em seus discursos, e mesmo Eva Perón, exigiam das mulheres do PPF virtudes ligadas a esta es-

fera da domesticidade: “calma, obediência, solidariedade e disciplina”. Esta relação das mulheres com a esfera íntima familiar, e sua exclusão da esfera pública, tem historicidade. Catherine Hall, no texto Sweet Home, mostrou que, na Inglaterra, no início do século XIX, as transformações no comércio promoveram o isolamento gradativo das mulheres na esfera privada. Nas vendas, nas pequenas casas comerciais, as mulheres eram uma presença constante, atendendo à freguesia. Nas grandes casas comerciais e nas atividades do transporte marítimo de grande monta, a presença feminina tornou-se rara, ficando esta, cada vez mais restrita ao espaço doméstico (Hall, 1991: 62-9). Na França, Michelle Perrot (1998: 59-87) mostra-nos como a Revolução Francesa foi excluindo as mulheres das assembléias e do direito à palavra. Política tornou-se uma atividade exclusivamente masculina. Em trabalhos anteriores, pude constatar em Florianópolis (SC), na segunda metade do século XIX, esta mesma separação sendo construída. Enquanto o comércio era familiar, pequeno, nele trabalhava toda a família, incluindo-se a esposa e as filhas. Quando o comércio tornava-se maior, eram construídas casas de dois pavimentos. As mulheres e filhas ficavam no segundo pavimento, onde se localizava o lar. Os homens e filhos ficavam no andar de baixo – no comércio2. Pode-se afirmar que é a sociedade urbana e burguesa que transforma o lar em lugar do ócio masculino (Kerber, 1988), no “descanso do guerreiro”. Por outro lado, foi também pensando no lar como uma esfera feminina, que muitas feministas do século XIX reivindicaram a educação para as mulheres. Esta educação deveria tornar as mães mais capacitadas para a formação de 2

1

A terminologia é utilizada por Habermas, 1984.

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Pedro, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe . Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p.31.

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seus filhos. A própria campanha pelo voto nem sempre questionou o dito “lugar das mulheres”. Foi, ainda, com base na existência desta esfera separada que as feministas da década de setenta justificaram a constituição de uma irmandade das mulheres. O pressuposto era de que, por terem permanecido nesta esfera separada, as mulheres teriam mantido um afastamento do mundo da violência e da competição, sendo, por isso, mais capazes de sensibilidade e de solidariedade, entre elas mesmas e com as outras pessoas (Pedro, 1994: 31). A reivindicação da construção de “casas para mulheres” teve este tipo de justificativa, ou seja, a recuperação de uma cultura de mulheres que teria sido preservada pela delimitação de suas vidas na esfera privada.

No final dos anos setenta, e especialmente nos anos oitenta e noventa, surgiram inúmeros estudos que questionaram esta metáfora das esferas separadas, desnaturalizando-as. Estes mostram como a sociedade tem realizado esforços para a constituição das esferas e para sua manutenção3. Mesmo assim, nas relações cotidianas, a responsabilidade das mulheres pelo espaço doméstico continua sendo mantida; aí, os homens apenas “ajudam”. Por outro lado, por mais que trabalhem e recebam salários, atuando no mercado ou no setor público, considera-se que as mulheres mais ajudam que trabalham. Mulheres fisicamente exaustas são visualizadas como se não estivessem trabalhando ou, então, que aquilo que fazem é “trabalho leve”.4

Além disso, muitas profissões mais rendosas e prestigiadas, assumidas pelas mulheres – professoras, Muitas destas mulheres têm enenfermeiras, modistas, etc., têm sido frentado com dificuldade os esconsideradas femininas por serem extensões de suas atividades no lar. Enpaços institucionalizados dos tretanto, foi através de algumas despartidos políticos. tas profissões que muitas mulheres ganharam destaque na esfera pública; eram professoras, por exemplo, as O que se percebe é, como já afirmamos, principais sufragistas. A educação, neste caso, que a metáfora das esferas separadas tem sido pode ser pensada com um capital simbólico – usada, tanto para definir espaços limitadores, como o passaporte para assuntos públicos. Foi como para reivindicar e constituir direitos e desta forma, através da profissão de professoproteção. De um lado, não podemos descon- ras, que muitas mulheres tiveram participação siderar que, embora a criação da ala feminina política, candidatando-se, inclusive, a cargos do Partido Peronista (PPF) tenha reeditado a públicos (Sarlo, 199 :174-179). separação das esferas e exigido das mulheres Nos anos 80, inaugurou-se uma nova virtudes ligadas à domesticidade, por outro as afastou, mesmo que de forma temporária, forma de fazer política, fora dos setores tradida “pia, das crianças e do preservativo” -  como cionais ligados aos partidos políticos. Constibem pontuou Zabaleta - e ainda, levou para tuíram-se naquilo que passou a ser chamado dentro dos lares a discussão política. Havia um grande empenho em tornar todos os membros 3 O artigo de Linda Kerber apresenta inúmeros estudos que têm questionado a naturalidade das esferas. da família adeptos do peronismo.

4 Sobre a atribuição de leveza aos trabalhos realizados por mulheres, ver Paulilo, 1987.

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de novos movimentos sociais. Muitos, dentre os chamados novos personagens que entravam em cena5, eram mulheres. Assim, um novo ator social formado, principalmente, por mulheres dos setores médios e populares, emergiu no interior de lutas pelos mais elementares direitos individuais, sendo estes violentados, muitas vezes, pelas ditaduras que se espalhavam pela América Latina (Schmukler, 1995: 136-155). Convém destacar que diversas reivindicações destes movimentos foram feitas em nome dos papéis familiares desempenhados pelas mulheres na esfera privada. Ou seja, eram como mães, esposas e donas de casa que as mulheres reivindicavam creche, postos de saúde, moradia, etc. O canal político de reivindicação foi, por sua vez, constituído fora das instâncias políticas normativas dos partidos. Havia uma certa desconfiança de amplos setores da população, em relação aos canais institucionais de reivindicação e às instituições do regime democrático formal. Passou a ser considerado uma perda de tempo participar das discussões partidárias e dos espaços formais do Estado (Idem, 139-140). Foi a partir destes movimentos, que novas lideranças políticas femininas se apresentaram. Elas reivindicavam a autoridade da experiência. Estas mulheres transformaram assuntos privados em debates e intervenções públicas, e, em suas ações, faziam valer as funções familiares tradicionais, transformando paixões e virtudes privadas em base para a ação política (Sarlo, 188-192). Estas atividades, embora reeditassem referências ao espaço privado de forma tão tradicional, embaralham as esferas pública e privada, dando fluidez aos seus limites. A participação das mulheres por diferentes modos na esfera pública, além de representar interferência num espaço costumeiramente 5

Sader, Eder. Quando novos personagens entraram em cena – experiência e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1979-1980 . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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dominado pelos homens, traz para o espaço privado a exigência de negociações e institui, desta forma, novas relações entre os gêneros. Beatriz Schmukler mostra como as mulheres que atuam nos movimentos sociais agem no sentido de enfrentar o autoritarismo dos maridos e pais, e como estas atitudes aumentam-lhes a auto-estima e modificam as relações (Schmukler, 145-148). Algumas destas líderes de movimentos sociais tem sido eleitas para cargos no setor público; no entanto, muitas delas não se autodenominam feministas. Schmukler argumenta que se observa inicialmente, nestas mulheres, uma tomada de consciência de suas questões de classe, de suas carências materiais, e somente depois, em algumas organizações, é que se iniciaram as discussões sobre serem oprimidas como mulheres (Schmukler, 150). Zabaleta também percebeu esta configuração entre as mulheres argentinas, especialmente na eleição de 1951; nesta, as mulheres votaram “mais pelo sentido da classe” do que pelo de gênero. Muitas destas mulheres têm enfrentado com dificuldade os espaços institucionalizados dos partidos políticos. No processo de filtragem (Araújo, 1998:85) realizado pelos partidos, as mulheres, por sua própria trajetória de gênero, não têm se sentido muito confortáveis. Entretanto, a própria redução de muitos partidos políticos à sua função de representação eleitoral tem fornecido espaço para a expansão dos movimentos sociais e para a atuação de organizações não governamentais. Este contexto tem, também, favorecido o destaque político de muitos destes personagens que se destacam nestes movimentos (Schmukler, 148). No Brasil, apesar de o voto feminino ter sido instituído já em 1932, a participação política das mulheres tem sido muito restrita. No ano de 1998, em plena vigência da política de cotas, somente 7% das representações da Câmara Federal foi ocupado por mulheres. Os partidos políticos, por sua vez, tiveram sérias

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dificuldades para preencher as cotas: de um total de 100.000 vagas para candidatas mulheres, os partidos apenas conseguiram preencher 60.000 (Araújo, 71-90). Esta dificuldade de ocupação de espaços no setor público, por parte das mulheres, não se restringe somente ao Brasil ou à América Latina. Michelle Perrot fala-nos da dificuldade das mulheres em, após a instituição do voto feminino na França, em 1944, tornarem-se oradoras. As mulheres que se atrevem a falar nas assembléias políticas tornam-se alvo de muitos olhares. Tornam-se objeto de “exame em que predominam o irônico e o vulgar.” (Perrot, 1994: 129). Este desconforto com as instituições da esfera pública tem relações diretas com a metáfora da esfera separada desenhada por Alex de Toqueville em 1840, e tem sido reforçado constantemente. A persistência de relações de gênero desfavoráveis para as mulheres tem mantido muito fortes os limites entre as esferas pública e privada. Isto tem provocado a necessidade da instituição das cotas, e as dificuldades para preenchê-las. Em seu artigo, Zabaleta mostra-nos como este separatismo das esferas foi reinventado pelo governo peronista, através da criação do Partido das Mulheres Peronistas. Aí, as mulheres dedicaram-se aos setores de saúde e educação, como extensão de seus papéis familiares. Elas eram chamadas ao partido não como cidadãs, mas como donas de casa, mães, esposas, filhas, noivas, amadas, etc. Era justamente destes papéis instituídos por hierarquizadas relações de gênero, que as mulheres falavam em política. Foi desta forma que se mantiveram em separado, delegando sua ação política nos momentos mais cruciais. Necessitamos de muitas mulheres atuando na política, das mais variadas formas e sem medo de falar no espaço público. Neste sentido, a política das cotas pode nos ajudar a

conseguir isso. Estes exemplos são importantes para que as mulheres, cada vez mais, se aventurem por este caminho, e o vejam como um lugar que também lhes pertence, e não somente uma esfera de homens. Então, talvez, não precisemos mais reivindicar a instituição de cotas.

Referências Bibliográficas ARAÚJO, Clara. Mulheres e representação política: a experiência das cotas no Brasil. Estudos Feministas. IFCS/ UFRJ, v. 6, nº 1: 85, 1998. HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução por Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. HALL, Catherine. Sweet Home. In: PERROT, Michelle et al. História da vida privada. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v.4. KERBER, Linda K. Separate spheres, female worlds, woman’s place: the rethoric of women’s history. The Journal of American History. V. 75, n. 1; jun. 1988. PAULILO, Maria Ignez. O peso do trabalho leve. Ciência Hoje. Rio de Janeiro, v.5, n. 28: 64-70, 1987. PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. Trad. São Paulo: Unesp, 1998, p.59-87. Pedro, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p.31. SARLO, Beatriz. Mulheres, História e Ideologia. In: Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 199 . SCHMUKLER, Beatriz. Las mujeres en la democratización social. Estudos Feministas. IFCS/UFRJ-PPCIS/UERJ, v. 3, n. 1: 136-155, 1995. WELTER, Barbara. The cult of true womanhood: 18201860. In: Gordon, Michael (ed.). American Family in Socialhistorical Perspective. New York: Saint Martin Press, 1973.

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Fundamentos Contingentes: O Feminismo e a Questão do “Pós-Modernismo”* JUDITH BUTLER**

Resumo: Este artigo analisa a relação entre teoria social e política feminista. A autora aborda temas como: pós-modernismo, pós-estruturalismo, a nova política da noção de sujeito, as controvérsias colocadas ao feminismo a partir da crítica da política identitária e o fundamentalismo como política de exclusão. O texto finaliza com uma discussão sobre a materialidade ontológica fictícia do corpo e do sexo. Rejeitando críticas simplistas, a autora analisa essas categorias - corpo e sexo - como “lugares de poder”. Palavras-chave : feminismo, pós-modernismo, pós-estruturalismo, sujeito, identidade.

   o     d    n    e    s    o     R    a     é    r     d    n     A

Fórum Social das Américas, Paraguai/2010.

A questão do pós-modernismo é certamente uma questão, pois existe, afinal, algo chamado pós-modernismo? É ele uma caracterização histórica, um certo tipo de posição teórica, e o que significa para um termo que descreveu certa prática estética ser agora aplicado à teoria social e, em particular, à teoria social e política feminista? Quem são esses pós- modernistas? Trata-se de um nome que se assume ou é, com mais frequência, um nome pelo qual se é chamado se e quando se apresenta uma crítica do sujeito, uma análise discursiva, ou se questiona a integridade ou coerência de descrições sociais totalizantes?

Eu conheço o termo da maneira como é usado e ele aparece geralmente em meu horizonte embutido nas seguintes formulações críticas: “se tudo que existe é o discurso...", ou "se tudo é um texto...", ou "se o sujeito está morto...", ou "se verdadeiros corpos não existem...". A frase começa com uma advertência contra um niilismo iminente, pois se o conteúdo invocado dessa série de cláusulas condicionais mostrar-se verdadeiro, então, e há sempre um então, se seguirá certamen* Este artigo foi apresentado numa versão diferente, com o título de Contingent Foundations: Feminism and the Question of “Postmodernism” no Greater Philadelphia Philosophy Consortium, em setembro de 1990. Tradução: Pedro Maia Soares. Agradecemos a gentil autorização da autora e da Routledge, New York, para publicação. ** University of California at Berkeley.

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te algum conjunto de consequências desastrosas. Assim, o “pós-modernismo” parece estar articulado na forma de um temível condicional ou, às vezes, na forma de desdém paternalista pelo que é jovem e irracional. Contra esse pós-modernismo, há um esforço para escorar as premissas primárias, de estabelecer de an-

tal forma que essa imposição fica protegida do exame político. O ato que estabelece unilateralmente o domínio do político funciona então como um estratagema autoritário pelo qual se silencia sumariamente a contestação política do estatuto do sujeito.1

Recusar-se a pressupor, isto é, a exigir a noção do sujeito desde o início, não é o mesmo que negar ou disAssim, o “pós-modernismo” papensar essa noção totalmente; ao contrário, é perguntar por seu processo de rece estar articulado na forma de construção e pelo significado político um temível condicional . e pelas consequências de tomar o su jeito como um requisito ou pressuposição da teoria. Mas já chegamos nós a temão que qualquer teoria da política requer uma noção de pós-modernismo? um sujeito, precisa desde o início presumir seu Várias posições são atribuídas ao póssujeito, da referencialidade da linguagem, da integridade das descrições institucionais que -modernismo, como se fosse o tipo de coisa proporciona, pois a política é impensável sem que pudesse ser portadora de um conjunto de um fundamento, sem essas premissas. Mas es- posições: o discurso é tudo que existe, como se sas afirmações buscam garantir uma formação o discurso fosse uma espécie de matéria mocontingente de política que exige que essas noções permaneçam como traços não proble- 1 Aqui vale a pena observar que em certa teoria polímatizados de sua própria definição? Seria o tica recente, notadamente nos escritos de Laclau, Mouffe, Cone Nancy & Lacoue-Labarthe, há uma insistência de que o caso de que toda política, e a política feminis- nolly campo político é necessariamente construído mediante a protem particular, é impensável sem essas estima- dução de um exterior determinante. Em outras palavras, o dodas premissas? Ou será que uma versão especí- mínio da política se constitui por meio da produção e naturalização do “pré” ou “não” político. Nos termos de Derrida, trata-se fica de política é mostrada em sua contingência da produção de um “exterior constitutivo”. Gostaria de sugerir depois que essas premissas são problematica- uma distinção entre a constituição de um campo político que produz e naturaliza esse exterior constitutivo e um campo polímente tematizadas? tico que produz e torna contingente os parâmetros específicos Afirmar que a política exige um sujeito estável é afirmar que não pode haver oposição política a essa afirmação. Com efeito, essa afirmação implica que uma crítica do sujeito não pode ser uma crítica politicamente informada, mas antes, um ato que põe em xeque a política enquanto tal. Exigir o sujeito significa tomar de volta o domínio do político e essa espécie de execução judicial, instalada analiticamente como uma característica essencial do político, impõe as fronteiras do domínio do político de

desse exterior constitutivo. Embora não pense que as relações diferenciais pelas quais se constitui o próprio campo político possam ser totalmente elaboradas (exatamente porque o estatuto dessa elaboração também teria de ser elaborado ad infinitum), acho útil a noção de William Connolly de antagonismos constitutivos, uma noção que encontra uma expressão paralela em Laclau e Mouffe, que sugere uma forma de luta política que põe os próprios parâmetros do político em questão. Isso é especialmente importante para as preocupações feministas, na medida em que as bases da política (“universalidade”, “igualdade”, “o sujeito dos direitos”) foram construídas mediante exclusões raciais e de gênero e por uma fusão da política com a vida pública que torna o privado (reprodução, domínios da “feminilidade”) pré-político. LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy. Londres, Verso, 1986; CONNOLLY, William. Political Theory and Modernity. Madison, University of Wisconsin Press, 1988; NANCY, Jean-Luc e LACOUE-LABARTHE, Philippe. Le retrait du politique. Paris, Editions Galilée, 1983.

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nística da qual todas as coisas são compostas; o sujeito está morto, jamais poderei dizer “eu” de novo; não há realidade, somente representações. Essas caracterizações são variadamente imputadas ao pós-modernismo e ao pós-estruturalismo, que são combinados um com o outro, fundidos às vezes com a desconstrução e, outras vezes, compreendidos como uma reunião indiscriminada de feminismo francês, desconstrução, psicanálise lacaniana, análise foucaultiana, conservadorismo e estudos culturais de Rorty. Deste lado do Atlântico e no discurso recente, os termos “pós-modernismo” ou “pós-estruturalismo” resolvem as diferenças entre aquelas posições numa única tacada, proporcionando um substantivo, um nome, que inclui aquelas posições e muitas de suas modalidades ou permutações. Pode ser uma surpresa para alguns fornecedores da cena européia continental ficar sabendo que na França, a psicanálise lacaniana se posiciona oficialmente contra o pós-estruturalismo, que Kristeva denuncia o pós-modernismo2, que os foucaultianos raramente se relacionam com os derrideanos, que Cixous e Irigaray opõem-se fundamentalmente, embora encontre-se uma certa afinidade nas práticas textuais de Derrida e Irigaray. Biddy Martin tem razão também ao apontar que quase todo o feminismo francês adere a uma noção de alto modernismo e avant-garde, que levanta alguma questão sobre se essas teorias ou escritos podem ser agrupados simplesmente sob a categoria de pós-modernismo. Proponho que a questão do pós-modernismo seja lida não apenas como a questão que o pós-modernismo coloca para o feminismo, mas como a questão, o que é pós-modernismo? Que tipo existência ele tem? Jean-François Lyotard defende o termo, mas ele não pode ser visto como exemplo daquilo que está fazendo todo o resto dos que passam por pós-moder2 KRISTEVA, Julia. Black Sun: Depression and Melancholy. Nova York, Columbia University Press, 1989, pp.258-59.

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nistas.3  A obra de Lyotard está, por exemplo, em conflito com a de Derrida, que não sustenta a noção do “pós-moderno”, e com a de outros autores dos quais querem que ele seja representante. É ele paradigmático? Têm todas essas teorias a mesma estrutura (uma noção confortadora para o crítico que quer dispensá-las todas de uma vez)? O esforço para colonizar e domesticar essas teorias sob uma única rubrica é uma simples recusa de conceder a especificidade dessas posições, uma desculpa para não ler, e não ler atentamente? Pois se Lyotard utiliza o termo, se ele pode ser convenientemente agrupado com um conjunto de escritores e se alguma citação problemática pode ser encontrada em sua obra, então essa citação serve como um “exemplo” de pós-modernismo, sintomático do todo? Mas se entendo parte do projeto do pós-modernismo, deve-se pôr em questão as maneiras pelas quais esses “exemplos” e “paradigmas” servem para subordinar e apagar aquilo que eles buscam explicar. O “todo”, o campo do pós-modernismo em sua suposta amplitude, é efetivamente “produzido” pelo exemplo que fazem passar por sintoma e exemplar do todo; com efeito, se pensamos que no exemplo de Lyotard temos uma representação do pós-modernismo, então forçamos uma substituição de todo o campo pelo exemplo, efetuando uma redução violenta do campo a um pedaço de texto que o crítico está disposto a ler, um pedaço que, convenientemente, usa o termo “pós-moderno”. Num certo sentido, esse gesto de domínio conceitual que agrupa uma série de posições sob o pós-moderno, que faz do pós-mo3 A fusão de Lyotard com uma variedade de pensadores sumariamente colocados sob a rubrica de “pós-modernismo” é realizada pelo título e o ensaio de BENHABIB, Seyla. Epistemologies of Postmodernism: A Rejoinder to Jean-François Lyotard. In: NICHOLSON, Linda. (ed.) Feminism/Postmodernism. Nova York, Routledge, 1989.

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derno um marco ou um todo sintético e que convertidas em sintomáticas, exemplares ou afirma que a parte pode representar esse todo representativas umas das outras e de alguma artificialmente construído, realiza um certo ar- estrutura comum chamada pós-modernismo. dil de poder auto-congratulatório. Na melhor Se o termo pós-modernismo tem alguma força das hipóteses, é paradoxal que o ato de domí- ou significação na teoria social, e na teoria sonio conceitual que efetua esse agrupamento cial feminista em particular, ela talvez possa ser descartante de posições sob o pós- moderno encontrada no exercício crítico que busca mosqueira evitar o perigo do autoritarismo político. trar como a teoria, como a filosofia, está semA suposição é a de que alguma parte do texto é pre implicada no poder, e que talvez seja isso representacional, que representa o fenômeno, que sintomaticamente está em funcionamento e que a estrutura “dessas” posições pode ser de- no esforço para domesticar e recusar um convida e economicamente distinguida na estrutu-  junto de críticas fortes sob a rubrica de pósra do exemplo. O que autoriza essa suposição? -modernismo. Não é nenhuma novidade que o Inicialmente, devemos acreditar que as teorias aparato filosófico, em seus vários refinamentos se oferecem em feixes ou em totalidades orga- conceituais, está sempre empenhado em exernizadas e que historicamente, um conjunto de cer poder, mas de novo é preciso dizer que o teorias que são estruturalmente semelhantes pós-moderno não se confunde com o novo; surgem como a articulação de uma condição afinal, a busca do “novo” é a preocupação do histórica específica da reflexão humana. Esse alto modernismo; quando mais não seja, o póstropo hegeliano, que continua com Adorno, su- -moderno lança dúvidas sobre a possibilidade põe que essas teorias podem ser substituídas de um “novo” que não esteja de alguma forma umas pelas outras porque são sintomas varia-  já implicado no “velho”. dos de uma preocupação estrutural comum. Mas o argumento articulado eficazmente Contudo, essa suposição não pode mais ser feita, pois o suposto hegeliano de que há uma por alguns críticos recentes da filosofia política síntese disponível desde o início é precisamen- normativa é que o recurso a uma posição - hite o que tem sido contestado de várias formas potética, contrafactual, ou imaginária - que se por algumas das posições alegremente unifica- coloca acima do jogo do poder, e que busca das sob o signo do pós-modernismo. Pode-se estabelecer a base metafórica para uma neargumentar que se - e na medida em que - o gociação de relações de poder, é talvez a mais pós-moderno funciona como esse signo uni- insidiosa artimanha do poder. O fato de que ficador, então trata-se decididamente de um essa posição acima do poder reivindique sua “signo” moderno, e é por isso que há dúvidas so- legitimidade, recorrendo a um acordo anterior bre se é possível debater a favor ou contra esse e implicitamente universal, não evita de forma pós-modernismo. Instalar o termo de tal forma alguma a acusação, pois que projeto racionaque só possa ser afirmado ou negado é forçá- lista designará de antemão o que conta como -lo a ocupar uma posição dentro de um binário acordo? Que forma de imperialismo cultural e assim afirmar uma lógica da não-contradição insidioso legisla para si mesmo sob o signo do universal?4 acima e contra um projeto mais generativo. O motivo para essa unificação de posições talvez seja ocasionado pela própria indisciplina do campo, pelo modo em que as diferenças entre essas posições não podem ser

4 Isso fica abundantemente claro nas críticas feministas a Jurgen Habermas e a Catharine MacKinnon. Ver YOUNG, Iris. Impartiality and the Civil Public: Some Implications of Feminist Criticisms of Modern Political Theory. In: BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla. (eds.) Feminism as Critique: Essays on the Politics of Gender in Late- Capitalism. Oxford, Basil Blackwell,

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Não sei em relação ao termo “pós-moderno”, mas se há um argumento válido naquilo que eu entendo melhor como pós-estruturalismo, é que o poder permeia o próprio aparato conceitual que busca negociar seus termos, inclusive a posição do sujeito do crítico; e mais, que essa implicação dos termos da crítica no campo do poder não é o advento de um relativismo niilista incapaz de oferecer normas, mas ao contrário, a própria pré-condição de uma crítica politicamente engajada. Estabelecer um conjunto de normas que estão acima do poder ou da força é em si mesmo uma prática conceitual poderosa e forte que sublima, disfarça e amplia seu próprio jogo de poder, recorrendo a tropos de universalidade normativa. E a questão não é acabar com seus fundamentos, ou mesmo defender uma posição que se classifica como antifundamentalismo. Ambas as posições são versões diferentes de fundamentalismo e da problemática cética que engendram. Em vez disso, a tarefa é interrogar o que o movimento teórico que estabelece fundamentos autoriza e o que precisamente exclui ou priva de direitos. Parece que a teoria postula fundamentos sem cessar e forma comumente compromissos metafísicos implícitos, mesmo quando busca se prevenir contra isso; os fundamentos funcionam como o inquestionado e o inquestionável em qualquer teoria. Todavia, esses “fundamentos”, isto é, as premissas que funcionam como base autorizante, não são eles mesmos constituídos mediante exclusões que, se levadas em conta, expõem a premissa fundamental como uma suposição contingente e contestável? Mesmo quando afirmamos que há alguma base universal implicada para um determinado fundamento, essa implicação e essa universali1987; FRASER, Nancy. Unruly Practices: Power and Gender in Contemporary Social Theory. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1989, em especial “What’s Critical about Critical Theory: The Case of Habermas and Gender”; Brown,Wendy. Razing Consciousness. The Nation 250:2, 8/15 de janeiro de 1990.

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dade constituem simplesmente uma dimensão nova de inquestionabilidade. Como poderemos fundamentar uma teoria ou política numa situação de discurso ou posição de sujeito que é “universal” quando a própria categoria do universal apenas começa a ser desmascarada por seu viés altamente etnocêntrico? Quantas “universalidades” existem5 e em que medida o conflito cultural pode ser compreendido como o choque de um conjunto de “universalidades” presumidas e intransigentes, um conflito que não pode ser negociado recorrendo a uma noção culturalmente imperialista do “universal”, ou antes, que só se resolverá por esse recurso ao custo de violência? Acho que testemunhamos a violência conceitual e material dessa prática na guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, na qual o “outro” árabe é entendido como estando radicalmente “fora” das estruturas universais da razão e da democracia e que, portanto, se exige que seja trazido para dentro pela força. Significativamente, os EUA tiveram de revogar os princípios democráticos da soberania política e da livre manifestação do pensamento, entre outros, para efetuar esse retorno forçado do Iraque ao campo “democrático”; esse gesto violento revela, entre outras coisas, que as noções de universalidade são instaladas mediante a anulação dos próprios princípios universais que deveriam ser implementados. Dentro do contexto político do pós-colonialismo contemporâneo, talvez seja especialmente urgente sublinhar a própria categoria do “universal” como o lugar de insistente disputa e re-significação.6 Tendo em vista o caráter contestado do termo, supor desde o início uma noção instrumental ou substantiva do universal é impor uma noção culturalmen5 Ver Nandy sobre a noção de universalidades alternativas no prefácio a NANDY, Ashis. The Intimate Enemy: Loss and Recovery of Self under Colonialism. Nova Delhi, Oxford University Press, 1983. 6 A noção de “hibridismo” de Homi Bhabha é importante de ser considerada nesse contexto.

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te hegemônica sobre o campo social. Anunciar essa noção então como o instrumento filosófico que negociará entre conflitos de poder é exatamente proteger e reproduzir uma posição de poder hegemônico instalando-a no lugar metapolítico da máxima normatividade. Pode parecer, a princípio, que estou simplesmente pedindo uma “universalidade” mais concreta e internamente diversificada, uma noção mais sintética e inclusiva do universal, e dessa forma, comprometida com a própria noção fundamental que procuro solapar. Mas creio que minha tarefa é significativamente diferente daquela que articularia uma universalidade abrangente. Em primeiro lugar, uma tal noção totalizadora só poderia ser alcançada ao custo de produzir novas exclusões. O termo “universalidade” teria de ficar permanentemente aberto, permanentemente contestado, permanentemente contingente, a fim de não impedir de antemão reivindicações futuras de inclusão. Com efeito, de minha posição e de qualquer perspectiva historicamente restringida, qualquer conceito totalizador do universal impedirá, em vez de autorizar, as reivindicações não antecipadas e inantecipáveis que serão feitas sob o signo do “universal”. Nesse sentido, não estou me desfazendo da categoria, mas tentando aliviá-la de seu peso fundamentalista, a fim de apresentá-la como um lugar de disputa política permanente. Uma teoria social comprometida com a disputa democrática dentro de um horizonte pós-colonial precisa encontrar uma maneira de pôr em questão os fundamentos que é obrigada a estabelecer. É esse movimento de interrogar aquele estratagema de autoridade que busca se fechar à disputa que está, em minha visão, no âmago de qualquer projeto político radical. Na medida em que oferece um modo de crítica que efetua essa contestação, o pós-estruturalismo pode ser usado como parte dessa agenda

radical. Observem que disse “pode ser usado”: penso que não há consequência política de uma tal teoria, mas apenas uma possível disposição de forças políticas. Se um dos temas associados ao pós-modernismo é que o ponto de partida epistemológico na filosofia é inadequado, então não se trata de uma questão de sujeitos que afirmam conhecer e teorizar sob o signo do pós-moderno lançados contra outros sujeitos que sustentam conhecer e teorizar sob o signo do moderno. Com efeito, é essa maneira de enquadrar o debate que está sendo contestada pela sugestão de que a posição articulada pelo sujeito é sempre, de alguma forma, constituída pelo que deve ser deslocado para que aquela posição se sustente, e que o sujeito que teoriza é constituído como um “sujeito teorizante” por um con junto de procedimentos exclusivos e seletivos. Pois, com efeito, quem é constituída como teórica feminista cujo enquadramento do debate ganhará publicidade? Não acontece sempre de o poder atuar de antemão, nos próprios procedimentos que estabelecem quem será o sujeito que fala em nome do feminismo, e a quem? E não está claro também que um processo de sujeição está pressuposto no processo de sub jetivação que produz diante de você um sujeito falante do debate feminista? O que fala quando ‘eu” falo para você? Quais são as histórias institucionais de sujeição e subjetivação que me “posicionam” aqui agora? Se há algo chamado “posição de Butler”, será essa que crio, publico e defendo, que pertence a mim como uma espécie de propriedade acadêmica? Ou há uma gramática do sujeito que apenas nos estimula a me posicionar como proprietária dessas teorias? Com efeito, como uma posição se torna uma posição, pois está claro que nem toda declaração se qualifica como tal. É obviamente uma questão de um certo poder autorizador

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que não emana da própria posição. Minha posição é minha na medida em que “eu” - e não me esquivo do pronome - repito e volto a dar significado às posições teóricas que me constituíram, trabalhando as possibilidades de sua convergência e tentando levar em conta as possibilidades que elas excluem sistematicamente. Mas claramente não é o caso de que “eu” esteja acima das posições que me constituíram, saltando de uma para outra instrumentalmente, pondo algumas de lado, incorporando outras, embora um pouco da minha atividade possa assumir essa forma. O “eu” que seleciona entre elas já está sempre constituído por elas. O “eu” é o ponto de transferência daquela repetição, mas simplesmente não é uma asserção forte o suficiente para dizer que o “eu” é situado; o “eu”, esse “eu”, é constituído por essas posições e essas “posições” não são meros produtos teóricos, mas princípios organizadores totalmente embutidos de práticas materiais e arranjos institucionais, aquelas matrizes de poder e discurso que me produzem como um “sujeito” viável. Com efeito, esse “eu” não seria um “eu” pensante e falante se não fosse pelas próprias posições a que me oponho, pois elas, as que sustentam que o sujeito deve ser dado de antemão, que o discurso é um instrumento ou reflexão desse sujeito, já fazem parte do que me constitui.

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autogênese, é sempre já masculino. Do ponto de vista psicanalítico, essa versão do sujeito é constituída por meio de uma espécie de rejeição ou mediante a repressão primária de sua dependência do maternal. E tornar-se um sujeito com base nesse modelo não é, com certeza, um objetivo feminista.

A crítica do sujeito não é uma negação ou repúdio do sujeito, mas um modo de interrogar sua construção como premissa fundamentalista ou dada de antemão. No início da guerra contra o Iraque, quase todos vimos estrategistas que expunham diante de nós mapas do Oriente Médio, objetos de análise e alvos de ação militar instrumental. Generais reformados e da ativa foram chamados pelas redes de televisão para ocupar o lugar dos generais que estavam em campo, cujas intenções seriam invariavelmente realizadas com a destruição de várias bases militares do Iraque. As afirmações do sucesso inicial dessas operações foram feitas com grande entusiasmo e parecia que esse cumprimento do objetivo, essa realização de intenção aparentemente inconsútil, mediante uma ação instrumental sem muita resistência ou obstáculos, era uma ocasião não somente para destruir as instalações militares iraquianas, mas também para defender um sujeito ocidental masculinizado cuja vontade se traduz imediatamente em O termo “universalidade” teria de ato, cuja declaração de ordem se maficar permanentemente aberto. terializa em uma ação que destruiria a própria possibilidade de uma reação e cujo poder obliterador confirma ao mesmo tempo os contornos impeneNenhum sujeito é seu próprio ponto de partida; e a fantasia de que o seja só pode des- tráveis de sua própria condição de sujeito. conhecer sua relações constitutivas refundinNessa altura, talvez seja interessante lemdo-as como o domínio de uma externalidade contrabalançadora. Com efeito, pode-se levar brar que Foucault relacionava o deslocamento em conta a afirmação de Luce Irigaray de que do sujeito intencional com as relações de poo sujeito, entendido como uma fantasia de der modernas que ele mesmo associava com a

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guerra.7 O que ele queria dizer, penso eu, é que sujeitos que instituem ações são eles mesmos efeitos instituídos de ações anteriores, e que o horizonte em que agimos está aí como uma possibilidade constitutiva de nossa capacidade de agir, não mera ou exclusivamente como um campo exterior ou teatro de operações. Mas o que talvez seja mais significativo é que as ações instituídas via aquele sujeito fazem parte de uma cadeia de ações que não pode mais ser entendida como unilinear quanto à direção, ou previsível quanto aos resultados. Todavia, o su jeito militar instrumental aparece inicialmente para proferir palavras que se materializam diretamente em atos destrutivos. E ao longo da guerra, foi como se o sujeito ocidental masculino se apropriasse do poder divino de traduzir palavras em atos; os apresentadores das telenotícias estavam quase todos cheios de felicidade vertiginosa e leviana enquanto demonstravam, observavam, representavam de modo vicário a exatidão da destruição. Quando começou a guerra, a palavra que se ouvia na televisão era “euforia”, e um apresentador observou que as armas americanas eram instrumentos de “terrível beleza” (CBS); celebrou-se prematura e fantasmaticamente a capacidade própria de agir instrumentalmente no mundo para obliterar a oposição e controlar as consequências dessa obliteração. Mas a presunção desse ato não pode ser prevista pelo ator instrumental que celebra na atualidade a efetividade de suas próprias intenções. O que Foucault propôs é que esse sujeito é ele mesmo o efeito de uma genealogia que é apagada no momento em que o sujeito se toma como única origem de sua ação, e que o efeito de uma ação sempre suplanta a intenção ou propósito declarado do ato. De fato, os efeitos da ação instrumental têm sempre o poder de proliferar para além do controle do sujeito, para desafiar a transparên7 FOUCAULT, Michel. An Introduction. In: The History of Sexuality. Vol. 1. Nova York, Random House, 1980, p.102. Traduzido por Robert Harley.

cia racional da intencionalidade desse sujeito, e assim subverter a definição do próprio sujeito. Sugiro que estivemos no meio de uma celebração por parte do governo dos Estados Unidos e de alguns de seus aliados do sujeito fantasmático, aquele que determina seu mundo unilateralmente e que é, em alguma medida, tipificado pelas cabeças de generais reformados agigantando-se diante do mapa do Oriente Médio, onde a cabeça falante desse sujeito é mostrada como tendo o mesmo tamanho, ou sendo maior do que a área que busca dominar. Em certo sentido, isso é a representação gráfica do sujeito imperialista, uma alegoria visual da própria ação. Mas aqui você pensa que fiz uma distinção entre a ação em si mesmo e algo como uma representação, mas quero ir adiante em meu argumento. Você terá provavelmente notado que Colin Powell, o general do Estado Maior, invocou o que é, acredito, uma nova convenção militar ao chamar o envio de mísseis de “the delivery of na ordnance” [a distribuição de uma artilharia]. A expressão é significativa, penso eu: ela representa um ato de violência como um ato de lei (o termo militar ordnance está ligado etimologicamente ao jurídico ordinance - ordem, regulamento), dando à destruição a aparência de ordenação; mas além disso, representa o míssil como uma espécie de comando, uma ordem a obedecer, e assim representava-se a si mesma como um certo ato de discurso que não só distribui uma mensagem - caia fora do Kuwait - como também reforça essa mensagem com a ameaça de morte e com a própria morte. Evidentemente, trata-se de uma mensagem que jamais pode ser recebida, pois mata o destinatário, e portanto, não é de forma alguma uma ordem, mas o fracasso de todas as ordens, a recusa da comunicação. E aqueles que sobram para ler a mensagem não lerão o que às vezes está literalmente escrito no míssil.

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Ao longo da guerra, testemunhamos e participamos da fusão da tela da tevê com as lentes do piloto de bombardeio. Nesse sentido, o registro visual dessa guerra não é uma reflexão sobre a guerra, mas a realização de sua estrutura fantasmática, parte dos próprios meios pelos quais ela é socialmente constituída e mantida como guerra. A assim chamada smart bomb grava seu alvo enquanto avança para destruí-lo - uma bomba com uma câmara fotográfica na frente, uma espécie de falo óptico; ela envia o filme para um controle de comando e aquele filme é apresentado na televisão, constituindo efetivamente a tela da tevê e seu espectador no aparato ampliado da própria bomba. Nesse sentido, ao assistir, estamos bombardeando, identificados com ambos, bombardeiro e bomba, voando pelo espaço, transportados da América do Norte para o Iraque, e ao mesmo tempo protegidos no sofá da sala. A tela da smart bomb é, evidentemente, destruída no momento em que realiza sua destruição, o que significa dizer que se trata da gravação de um ato totalmente destruidor que  jamais pode gravar essa destrutibilidade, que efetua a distinção fantasmática entre o impacto no alvo e suas consequências. Assim, na qualidade de espectadores, nós realmente convertemos em realidade a alegoria do triunfo militar: conservamos nossa distância visual e nossa segurança corporal por meio da decretação desencarnada da morte que não produz sangue e na qual conservamos nossa impermeabilidade radical. Nesse sentido, estamos em relação com esse lugar de destruição absolutamente próximo, absolutamente essencial e absolutamente distante, um emblema para o poder imperial que assume a visão aérea, global, o assassino desencarnado que nunca pode ser morto, o atirador de tocaia como um emblema do poder militar imperialista. A tela da tevê replica assim a visão aérea, garantindo uma fantasia de transcendência, de um instrumento desencarnado de destruição que está infinitamente

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protegido de um ataque do inimigo pela distância eletrônica. Essa visão aérea jamais chega perto de ver os efeitos de sua destruição e quando um close-up do local vai ficando cada vez mais possível, a tela se auto-destrói convenientemente. E assim, embora fosse dado a entender que se tratava de um bombardeio humano, que tem por alvo prédios e instalações militares, tratava-se, ao contrário, do efeito de um enquadramento que excluía da visão a destruição sistemática de uma população, o que Foucault chama de sonho moderno dos estados. 8 Ou talvez devamos dizer de outra maneira: precisamente mediante a exclusão de seus alvos da visão, sob o pretexto de provar a capacidade de atingir com precisão o alvo, trata-se de um enquadramento que realiza efetivamente a aniquilação que ele sistematicamente desrealiza. O semideus de um sujeito militar americano, que euforicamente realizou a fantasia de que pode atingir seus objetivos com facilidade, não entende que suas ações produziram efeitos que excederão em muito seu alcance fantasmático; ele pensa que seus objetivos foram alcançados em questão de semanas e que sua ação se completou. Mas a ação continua a agir depois que o sujeito intencional anunciou sua conclusão. Os efeitos de suas ações já inauguraram violência em lugares e de maneiras que ele não só não poderia prever, mas que será in8 “As guerras não se travam mais em nome da soberania que precisa ser defendida; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são mobilizadas com o objetivo de massacrar em nome da necessidade da vida: os massacres se tornaram vitais”, escreve ele. Adiante acrescenta: “O princípio ordenador da tática de batalha - que se deve ser capaz de matar a fim de continuar vivo - tornou-se o princípio que define a estratégia dos estados. Mas a existência em questão não é mais a existência jurídica da soberania; o que está em jogo é a existência biológica de uma população. Se o genocídio é de fato o sonho das potências modernas, isso não se dá assim devido a um retorno recente do antigo direito de matar, mas porque o poder é situado e exercido no nível da vida, da espécie, da raça e do fenômeno em larga escala da população”. FOUCAULT, M. The History of Sexuality. Op.cit., p.137.

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capaz de, em última análise, deter, efeitos que  já estivesse aí como o processo desarticulado da produzirão uma contestação maciça e violen- produção desse sujeito, escondido pelo enquata da auto-construção fantasmática do sujeito dramento que situaria um sujeito ready-made ocidental. numa teia externa de relações culturais. Podemos ser tentados a pensar que supor o sujeito de antemão é neEssa dependência e esse romcessário a fim de proteger a capacidade de agir9 do sujeito. Mas afirmar que pimento já são relações sociais, o sujeito é constituído não é dizer que aquelas que precedem e condiele é determinado; ao contrário, o caráter constituído do sujeito é a própria cionam a formação do sujeito. pré-condição de sua capacidade de agir. Afinal, o que permite uma reconfiguração significativa e consciente das Se posso então, tentarei retornar ao su- relações culturais e políticas senão uma relação  jeito em discussão. Em certo sentido, o sujeito que pode ser virada contra si mesma, retrabaé constituído mediante uma exclusão e dife- lhada, resistida? Será que precisamos pressurenciação, talvez uma repressão, que é poste- por teoricamente desde o início um sujeito com riormente escondida, encoberta, pelo efeito capacidade de agir antes que possamos artida autonomia. Nesse sentido, a autonomia é a cular os termos de uma tarefa significativa de consequência lógica de uma dependência ne- transformação, social e política, de resistência, gada, o que significa dizer que o sujeito autô- de democratização radical? Se não oferecemos nomo pode manter a ilusão de sua autonomia de antemão a garantia teórica daquele agente, desde que encubra o rompimento que a cons- estamos condenados a desistir da transformatitui. Essa dependência e esse rompimento já ção e da prática política significativas? Minha são relações sociais, aquelas que precedem e sugestão é que a capacidade de agir pertence a um modo de pensar sobre as pessoas como condicionam a formação do sujeito. Em conseatores instrumentais que confrontam um camquência, não se trata de uma relação em que po político externo. Mas se concordarmos que o sujeito encontra a si mesmo, como uma das política e poder já existem no nível em que o relações que formam sua situação. O sujeito é sujeito e sua capacidade de agir estão articuconstruído mediante atos de diferenciação que lados e tornados possíveis, então a capacidade o distinguem de seu exterior constitutivo, um de agir pode ser presumida somente ao cusdomínio de alteridade degradada associada to da recusa de inquirir sobre sua construção. convencionalmente ao feminino, mas não ex- Considere que a “capacidade de agir” não tem clusivamente. Nessa guerra recente vimos “o existência formal ou, se a tem, não tem relação árabe” representado como o outro degradado, com a questão em discussão. Em certo sentido, bem como um lugar de fantasia homofóbica o modelo epistemológico que nos oferece um explicitado na abundância de piadas de mau sujeito ou agente dado de antemão se recusa a gosto baseadas no trocadilho de Saddam por reconhecer que a capacidade de agir é sempre e somente uma prerrogativa política. Enquanto Sodoma. tal, parece essencial questionar as condições de Não há reflexividade ontologicamente intata para o sujeito que é então colocado dentro de um contexto cultural; é como se esse contexto

9 Traduz-se a agency do original por “capacidade de agir”, uma vez que o termo português agência não tem esse significado, digamos, essencial e primordial. (NT)

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sua possibilidade, não a tomar por uma garantia a priori. Ao contrário, precisamos perguntar que possibilidades de mobilização são produzidas com base nas configurações existentes de discurso e poder. Onde estão as possibilidades de retrabalhar a matriz de poder pela qual somos constituídos, de reconstituir o legado daquela constituição, e de trabalhar um contra o outro os processos de regulação que podem desestabilizar regimes de poder existentes? Pois se o sujeito é constituído pelo poder, esse poder não cessa no momento em que o sujeito é constituído, pois esse sujeito nunca está plenamente constituído, mas é sujeitado e produzido continuamente. Esse sujeito não é base nem produto, mas a possibilidade permanente de um certo processo de re-significação, que é desviado e bloqueado mediante outro mecanismo de poder, mas que é a possibilidade de retrabalhar o poder. Não é suficiente dizer que o sujeito está invariavelmente engajado num campo político; este fraseado fenomenológico não percebe que o sujeito é uma realização regulada e produzida de antemão. E como tal, é totalmente político; com efeito, talvez mais político no ponto em que se alega ser anterior à própria política. Fazer esse tipo de crítica foucaultiana do sujeito não é acabar com o sujeito ou pronunciá-lo morto, mas apenas afirmar que certas versões do sujeito são politicamente insidiosas. Para que o sujeito seja um ponto de partida prévio da política é necessário adiar a questão da construção e regulação política do próprio sujeito, pois é importante lembrar que os sujeitos se constituem mediante a exclusão, isto é, mediante a criação de um domínio de sujeitos desautorizados, pré-sujeitos, representações de degradação, populações apagadas da vista. Isso fica claro, por exemplo, na justiça, quando é preciso primeiro atender a certas qualificações a fim de ser uma demandante em casos de discriminação sexual ou estupro. Aqui torna-se bastante urgente perguntar quem se qualifica como um “quem”, que estruturas

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sistemáticas de privação de poder tornam impossível para certas partes injuriadas invocar o “eu” efetivamente dentro de uma corte de justiça. Ou menos abertamente, como acontece numa teoria social como a de O colonizador e o colonizado, de Albert Memmi, que é um forte chamamento à emancipação radical, a categoria das mulheres não se enquadra na categoria dos oprimidos, nem das opressores.10 Como teorizamos a exclusão das mulheres da categoria dos oprimidos? Aqui, a construção de sujeitos-posições funciona para excluir as mulheres da descrição da opressão e isso constitui um tipo diferente de opressão, aquela que é efetuada pelo apagamento que fundamenta a articulação do sujeito emancipatório. Como Joan Scott deixa claro em Gender and the Politics of History, uma vez entendido que os sujeitos se formam mediante operações exclusivistas, torna-se politicamente necessário remontar às origens das operações dessa construção e apagamento.11 O dito acima esquematiza, em parte, uma reinscrição foucaultiana do sujeito, um esforço de re-significar o sujeito como um lugar de re-significação. Em consequência, não se trata de um dizer adeus ao sujeito de per si, mas antes um apelo a retrabalhar essa noção fora dos termos de um dado epistemológico. Mas talvez Foucault não seja realmente pós-moderno; afinal, a sua é uma análise do poder moderno. Existe, é claro, uma conversa sobre a morte do 10 Escreve Memmi: “No auge da revolta, o colonizado ainda traz os traços e lições da coabitação prolongada (da mesma forma que o sorriso ou os movimentos de uma esposa, mesmo durante os procedimentos de divórcio, lembram estranhamente os do marido)”. Aqui Memmi estabelece uma analogia que pressupõe que colonizado e colonizador existem numa relação paralela e separada de marido e mulh er se divorciando. A analogia sugere de modo simultâneo e paradoxal a feminilização do colonizado, em que se supõe o colonizado é o sujeito dos homens, e a exclusão das mulheres da categoria do sujeito colonizado. MEMMI, Albert. The Colonizer and the Colonized. Boston, Beacon Press, 1965, p.129. 11 SCOTT, Joan W. Introdução. In: Gender and the Politics of History. Nova York, Columbia University Press, 1988.

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sujeito, mas qual sujeito? E qual o estatuto da declaração que anuncia seu passamento? O que fala agora que o sujeito está morto? Que há uma fala, parece claro, pois de que outro modo a declaração poderia ser ouvida? Assim, fica claro que a morte do sujeito não é o fim da capacidade de agir, do discurso, ou do debate político. Há o refrão que, justamente agora, quando as mulheres começam a assumir o lugar de sujeitos, as posições pós-modernas chegam para anunciar que o sujeito está morto (há uma diferença entre posições do pós-estruturalismo, que afirmam que o sujeito nunca existiu, e posições pós-modernas que sustentam que o sujeito outrora teve integridade, mas não a tem mais). Algumas vêem isso como uma conspiração contra as mulheres e outros grupos privados de direitos que só agora começam a falar em sua própria defesa. Mas o que se quer dizer exatamente com isso e como damos conta das críticas muito fortes do sujeito como instrumento da hegemonia imperialista ocidental teorizado por Gloria Anzaldua12, Gayatri Spivak 13 e vários teóricos do pós-colonialismo? Temos aqui certamente uma advertência de que na luta pela emancipação e democratização podemos adotar os modelos de dominação pelos quais fomos oprimidas, não percebendo que um modo da dominação funcionar é mediante a regulação e produção de sujeitos. Por meio de que exclusões se construiu o sujeito feminista e como esses domínios excluídos retornam para assombrar a “integridade” e a “unidade” do “nós” feminista? E como é possível que a própria categoria, o sujeito, o “nós”, que deveria ser presumido com o propósito da solidariedade, produza a facciosidade que deveria liquidar? Querem as mulheres tornar-se sujeitos com base no modelo que exige e produz uma região 12 ANZALDUA, Gloria La Frontera/ Borderlands. San Francisco, Spinsters Ink, 1988. 13 SPIVAK, Gayatri. Can the Subaltern Speak? In: NELSON e GROSSBERG. (eds.) Marxism and the Interpretation of Culture. Chicago, University of Illinois Press, 1988.

anterior de degradação, ou deve o feminismo tornar-se um processo que é auto-crítico sobre os processos que produzem e desestabilizam categorias de identidade? Tomar a construção do sujeito como uma problemática política não é a mesma coisa que acabar com o sujeito; desconstruir o sujeito não é negar ou jogar fora o conceito; ao contrário, a desconstrução implica somente que suspendemos todos os compromissos com aquilo a que o termo “o sujeito” se refere, e que examinamos as funções linguísticas a que ele serve na consolidação e ocultamento da autoridade. Desconstruir não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais importante, abrir um termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que anteriormente não estavam autorizadas. No feminismo, parece haver uma necessidade política de falar enquanto mulher e pelas mulheres, e não vou contestar essa necessidade. Esse é certamente o modo como a política representativa funciona e, neste país, os esforços de lobby são virtualmente vir tualmente impossíveis sem recorrer à política de identidade. Assim, concordamos que manifestações manifestações,, esforços legislativos e movimentos radicais precisam fazer reivindicações em nome das mulheres. Mas essa necessidade precisa ser reconciliada com uma outra. No instante em que se invoca a categoria mulheres como descrevendo a clientela pela qual o feminismo fala, começa invariavelmente um debate interno sobre o conteúdo descritivo do termo. Há quem afirme haver uma especificidade ontológica das mulheres enquanto mães que forma a base de um interesse específico legal e político na representação; há outras que entendem a maternidade como uma relação social que é, nas atuais circunstâncias sociais, a situação específica das mulheres, comum em todas as culturas. E há aquelas que recorrem a Gilligan e outras para estabelecer uma especificidade feminina que

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se manifesta nas comunidades ou modos de conhecer das mulheres. Mas cada vez que essa especificidade é articulada, há resistência e formação de facções dentro da própria clientela que está supostamente unificada pela articulação de seu elemento comum. No começo da década de 1980, o “nós” feminista foi atacado com justiça pelas mulheres de cor que diziam que aquele “nós” era invariavelmente branco e que em vez de solidificar o movimento, era a própria fonte de uma dolorosa divisão. O esforço para caracterizar uma especificidade feminina recorrendo à maternidade, seja biológica ou social, produz uma formação de facções semelhante e até uma rejeição completa do feminismo, pois é certo que nem todas as mulheres são mães: algumas não podem sê-lo, algumas são jovens ou velhas demais para sê-lo, outras escolhem não sê-lo, e para algumas que são mães, esse não é necessariamente o ponto central de sua politização no feminismo. Eu diria que qualquer esforço para dar conteúdo universal ou específico à categoria mulheres, supondo-se que essa garantia de solidariedade é exigida de antemão, produzirá necessariamente facções e que a “identidade” como ponto de partida jamais se sustenta como base sólida de um movimento político feminista. As categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal, exclusivistas. Isso não quer dizer que o termo “mulheres” não deva ser usado, ou que devamos anunciar a morte da categoria. Ao contrário, se o feminismo pressupõe que “mulheres” designa um campo de diferenças indesignável, que não pode ser totalizado ou resumido por uma categoria de identidade descritiva, então o próprio termo se torna um lugar de permanente abertura e re-significação. Eu diria que os rachas entre as mulheres a respeito do conteúdo do termo devem ser preservados e valorizados, que esses rachas constantes devem ser afirmados como o fundamento

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infundado da teoria feminista. Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas, ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir. Paradoxalmente, pode acontecer que somente mediante a liberação da categoria mulheres de um referente fixo se torne possível algo parecido com “capacidade de agir”. Pois se o termo permite uma re-significação, se o referente não é fixo, então se tornam possíveis possibilidades de novas configurações. Em certo sentido, o que mulheres significa foi dado como certo durante tempo demais e o que foi determinado como “referente” do termo foi “fixado”, normalizado, imobilizado, paralisado em posições de subordinação. Com efeito, o significado foi fundido com o referente, de tal forma que um conjunto de significados foi levado a ser inerente à natureza real das próprias mulheres. Refundir o referente como o significado e autorizar ou salvaguardar a categoria mulheres como lugar de re-significações possíveis é expandir as possibilidades do que significa ser uma mulher e, nesse sentido, dar condições para e permitir uma capacidade de agir realçada. Alguém pode perguntar: mas não deve haver um conjunto de normas que discrimine entre as descrições que devem e que não devem aderir à categoria mulheres? A única resposta a essa questão é uma contra-questão: quem estabeleceria essas normas e que contestações elas produziriam? Estabelecer um fundamento normativo para resolver a questão do que deveria ser propriamente incluído na descrição de mulheres seria somente e sempre produzir um novo lugar de disputa política. Esse fundamento não resolveria nada, mas afundaria necessariamente em seu próprio estratagema autoritário. Isso não quer dizer que

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não há fundamento, mas sempre que há um, haverá sempre um afundamento, uma contestação. Que esses fundamentos existam apenas para serem questionados é o risco permanente do processo de democratização. Recusar essa disputa é sacrificar o ímpeto democrático radical da política feminista. Que a categoria não seja restringida, mesmo que venha servir a propósitos antifeministas, antifeministas, será parte do risco desse procedimento.. Mas trata-se de um risco produprocedimento zido pelo próprio fundamentalismo que busca proteger o feminismo contra ele. Em certo sentido, esse risco é o fundamento de qualquer prática feminista e, por conseguinte, não o é. Na parte final deste artigo, gostaria de abordar uma questão relacionada que nasce da preocupação de que uma teoria feminista não possa avançar sem supor a materialidade dos corpos femininos, a materialidade do sexo. Não diz o canto do anti pós-modernismo que se tudo é discurso, então os corpos não têm realidade? Como entender a violência material que as mulheres sofrem? Ao responder a essa crítica, gostaria de sugerir que a própria formulação da questão compreende erradamente o ponto essencial. Não sei o que é pós-modernismo, mas tenho alguma idéia do que possa significar submeter noções do corpo e da materialidade a uma crítica desconstrutiva. Desconstruir o conceito de matéria ou de corpo não é negar ou recusar ambos os termos. Significa continuar a usá-los, repeti-los, repeti-los subversivamente, e deslocá-los dos contextos nos quais foram dispostos como instrumentos do poder opressor. Aqui é necessário obviamente declarar que as opções para a teoria não se exaurem presumindo materialidade, de um lado, e negando materialidade, de outro. É meu propósito exatamente não fazer essas duas coisas. Pôr um

pressuposto em questão não é a mesma coisa que o suprimir; antes, é libertá-lo de sua morada metafísica a fim de ocupar e servir objetivos políticos muito diferentes. Problematizar a matéria dos corpos acarreta, em primeiro lugar,, uma perda de certeza epistemológica, mas gar essa perda de certeza não tem por resultado necessário o niilismo político.14 Se uma desconstrução da materialidade dos corpos suspende e problematiza o referente ontológico tradicional do termo, ela não congela, bane, torna inútil ou esvazia de sentido seu uso; ao contrário, proporciona proporciona as condições para mobilizar o significante a serviço de uma produção alternativa. Vejamos o mais material dos conceitos, “sexo”, que Monique Wittig chama de uma completa alegoria política e que Michel Foucault chama de “unidade fictícia” e reguladora. Para ambos os teóricos, o sexo não descreve uma materialidade prévia, mas produz e regula a inteligibilidade da materialidade dos corpos. Para ambos, de diferentes maneiras, a categoria sexo impõe uma dualidade e uma uniformidade sobre os corpos a fim de manter a sexualidade reprodutiva como uma ordem compulsória. Discuti em outro lugar com mais precisão como isso funciona, mas para nossos propósitos aqui, gostaria de sugerir que esse tipo de classificação pode ser chamado de violento, forçado e que essa ordenação e produção discursiva dos 14 O corpo postulado como prévio ao signo é sempre postulado ou significado como prévio. Essa significação funciona mediante a produção de um efeito de seu próprio procedimento, o corpo que ela todavia e simultaneamente afirma descobrir como aquilo que precede a significação. Se o corpo significado como prévio à significação é um efeito da significação, então o estatuto mimético ou representativo da linguagem, que afirma que o signo segue os corpos como seus espelhos necessários, não é de forma alguma mimético; ao contrário, é produtivo, constitutivo, pode-se até dizer performativo, visto que esse ato de significação produz o corpo que então afirma encontrar antes de qualquer significação.

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corpos de acordo com a categoria sexo é em si mesma uma violência material.

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de estupro governamentalmente facilitado.

Uma linha similar de raciocínio está em A violência da letra, a violência da marca funcionamento nos discursos sobre estupro que estabelece o que irá ou não significar, o quando o “sexo” de uma mulher é responsabique será incluído ou não no inteligível, assume lizado por seu estupro. O advogado de defesa uma significação política quando a letra é a lei do grupo acusado de estupro em New Bedford ou a legislação autorizadora do que será a ma- perguntou à queixosa: “Se você está vivendo terialidade do sexo. com um homem, o que está fazendo correndo pelas ruas sendo estuprada”?16 O “correndo” nessa sentença colide gramaticalmente com a voz passiva “ser Desconstruir o conceito de maestuprada”. Literalmente, seria difícil téria ou de corpo não é negar ou “estar correndo” e “ser estuprada” ao mesmo tempo, o que sugere que há recusar ambos os termos. uma passagem omitida aqui, talvez um direcional que leve do primeiro ao segundo? Se o sentido da frase é “corO que pode esse tipo de análise pós-es- rendo pelas ruas [procurando ser] estuprada”, trutural nos dizer sobre violência e sofrimento? que parece ser a única maneira lógica de ligar Talvez que as formas de violência devam ser en- as duas partes da sentença, então o estupro tendidas como mais difusas, mais constitutivas como uma aquisição passiva é exatamente o e mais insidiosas do que modelos anteriores objeto de sua busca ativa. A primeira cláusula nos permitiram ver? Isso é parte do argumento sugere que ela “pertence” ao lar, ao seu homem, da discussão anterior sobre a guerra, mas que- que o lar é o lugar no qual ela é a propriedade ro agora apresentá-lo num outro contexto. doméstica daquele homem, e as “ruas” a estabelecem como aberta à caça. Se ela está busVejamos as restrições legais que regulam cando ser estuprada, está buscando ser a proo que é e o que não é considerado estupro: aqui priedade de outro e esse objetivo é instalado a política da violência opera regulando o que em seu desejo, concebido aqui como bastanserá e o que não será capaz de aparecer como te frenético em sua busca. Ela está “correndo”, um efeito da violência.15 Já há, portanto, nessa sugerindo-se que está procurando embaixo de exclusão, uma violência em ação, uma demar- cada pedra por um estuprador que a satisfaça. cação prévia do que será ou não qualificado Significativamente, a frase instala como princícomo “estupro”, ou “violência do governo”, ou pio estruturador de seu desejo “ser estuprada”, nos casos dos estados americanos em que se onde o “estupro” é representado como um ato exigem doze provas empíricas separadas para de auto-expropiração intencional. Uma vez caracterizar “estupro”, o que pode ser chamado que se tornar propriedade de um homem é o 15 Para uma análise mais extensa da relação entre linguagem e estupro, ver a contribuição de Sharon Marcus em BUTLER, Judith e SCOTT, Joan. (eds.) Feminists Theorize the Political. Nova York, Routledge, 1997, de onde foi retirado este artigo.

16 No original: “If you are living with a man, what are you doing running around the streets getting raped?”, citado em MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. Boston, Harvard University Press, 1989, p.171.

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objetivo de seu “sexo”, articulado em e por seu desejo sexual, e o estupro é o meio pelo qual essa apropriação ocorre “na rua” [uma lógica que implica que o estupro está para o casamento assim como a rua para o lar, isto é, que o “estupro” é o casamento das ruas, um casamento sem lar, um casamento para garotas sem lar, e que o casamento é estupro domesticado], então “estupro” é a consequência lógica da realização de seu sexo e sua sexualidade fora da domesticidade. Não importa que esse estupro tenha acontecido num bar, pois o bar é, nesse imaginário, uma extensão da rua, ou talvez seu momento exemplar, pois não há recinto cercado, isto é, proteção, fora do lar enquanto espaço marital doméstico. De qualquer forma, a única causa de sua violação é aqui representada como seu “sexo”, que, tendo em vista sua propensão natural a buscar expropriação, uma vez deslocado da propriedade doméstica, persegue naturalmente seu estupro e é, portanto, responsável por ele. A categoria sexo funciona aqui como um princípio de produção e regulação ao mesmo tempo, a causa da violação instalada como o princípio formador do corpo e da sexualidade. Aqui sexo é uma categoria, mas não apenas uma representação; é um princípio de produção, inteligibilidade e regulação que impõe uma violência e a racionaliza após o fato. Os próprios termos pelos quais a violação é explicada executam a violação e reconhecem que a violação estava em andamento antes que assumisse a forma empírica de um ato criminoso. Assim, a execução retórica mostra que

a “violência” é produzida mediante a exclusão efetuada por essa análise, mediante o apagamento e a negação que determinam o campo dos aparecimentos e da inteligibilidade de crimes de culpabilidade. Como uma categoria que produz efetivamente o sentido político do que descreve, “sexo” põe em funcionamento aqui sua “violência” silenciosa ao regular o que é e não é designável. Ponho os termos “violência” e “sexo” entre aspas: é isso um sinal de uma certa desconstrução, o fim da política? Ou estou sublinhando a estrutura iterativa desses termos, os modos pelos quais eles cedem a uma repetição, ocorrem de forma ambígua, e estou fazendo isso justamente para aprofundar uma análise política? As aspas mostram que eles estão sob crítica, disponíveis para iniciar a disputa, questionar sua disposição tradicional, e pedir por algum outro termo. As aspas não põem em questão a urgência ou credibilidade de sexo ou violência enquanto questões políticas, mas antes mostram que o modo como a materialidade deles é circunscrita é totalmente político. O efeito das aspas é desnaturalizar os termos, designar esses signos como lugares de debate político. Se há um medo de que, por não ser mais capaz de tomar como certo o sujeito, seu gênero, seu sexo ou sua materialidade, o feminismo vá afundar, talvez seja interessante examinar as consequências políticas de manter em seus lugares as próprias premissas que tentaram assegurar nossa subordinação desde o início.

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Relações Sociais de Sexo e 1 Divisão Sexual do Trabalho Danièle Kergoat (Publicado em “Gênero e Saúde” - org. Marta Julia Marques Lopes, Dagmar Estermann Meyer e Vera Regina Waldow. Ed.  Artes Médicas – 1996)

   o     d    n    e    s    o     R    a     é    r     d    n     A

Fórum Social das Américas, Paraguai/2010.

Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho são duas proposições indissociáveis que formam um sistema. A reflexão em termos de relações sociais de sexo é, ao mesmo tempo, anterior e posterior à reflexão em termos de divisão sexual do trabalho. Ela é preexistente como noção, mas posterior como problemática. É preexistente, pois foi uma aquisição do feminismo, por meio da emergência de categorias de sexo como categorias sociais, de mostrar que os papéis sociais de homens e mulheres não são produto de um destino biológico, mas que eles são, antes de tudo, construções sociais que têm uma base material.

Mas ainda faltava provar isso! Foi o que permitiu a formalização em termos de divisão sexual do trabalho, oferecendo um quadro para conhecer simultaneamente: - Um trabalho considerável, geralmente de primeira mão, para conhecer a realidade (e não mais os estereótipos) do trabalho feminino em todos os seus aspectos e por especificar sexualmente o trabalho masculino. - Um trabalho paralelo de desconstrução/reconstrução dos conceitos usualmente utilizados e de desvendar sua “neutralidade” mostrando as suas características sexuadas, conduzindo, necessariamente, a uma crítica dos modos de conceituação no conjunto das Ciências Sociais. A partir de então é que se tomou possível um retomo às relações sociais para construir um quadro teórico de conjunto, no qual se insere a divisão sexual do trabalho. Isto porque estes dois conceitos são inseparáveis. É sobretudo a análise em termos de divisão sexual do trabalho que permite demonstrar que existe uma relação social específica entre os grupos de sexo. É esta análise 1 Do original A propos des rapports sociaux des sexes publicado na Revista “M”, Paris n. 53-54, abril-maio, 1992, traduzido por Marta Julia Marques Lopes.

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A divisão sexual do trabalho está no centro do poder que os homens exercem sobre as mulheres. que permite, a partir de uma análise fechada da repartição (da distribuição) dos homens e das mulheres quanto à qualificação, por exemplo, no que se refere ao assalariado (Kergoat, 1982) ou quanto ao trabalho doméstico (Chabaud-Rychter, Fougeyrollas-Schwebel, Sauthannax, 1985), de provar que as separações entre homens e mulheres não são redutíveis a mais ou menos exploração ou a uma divisão desigual, mas que se trata de um tratamento contraditório segundo o sexo. Enfim, de uma análise da relação social específica à variável sexo. Esta curta introdução foi necessária, pois o termo de divisão sexual do trabalho, se é hoje conhecido na linguagem sociológica corrente, tem significações muito diferentes umas das outras. Frequentemente ele é utilizado com uma conotação simplesmente descritiva -há uma diferenciação entre os sexos nas atividades sociais. Correto, esta abordagem sociográfica foi e é indispensável. Mas, falar em termos de divisão sexual do trabalho é, a meu ver, muito mais. É articular essa descrição do real com uma reflexão sobre os processos pelos quais a sociedade utiliza esta diferenciação para hierarquizar as atividades. A divisão sexual do trabalho está no centro (no coração) do poder que os homens exercem sobre as mulheres. Portanto, argumentar em termos de divisão sexual do trabalho é, para mim, indissociável de uma sociologia das relações sociais.

Para ficar claro, utilizamos, ao longo deste texto, relação social não simplesmente como contato, ligação social, mas como uma relação: 1º) antagônica, 2º) estruturante para o con junto do campo social e 3º) transversal à totalidade deste campo social.

 AS RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO Este conceito nos leva a uma visão sexuada dos fundamentos e da organização de sociedade. Fundamentos e organização estes ancorados materialmente na divisão sexual do trabalho. Existe, portanto, um esforço para pensar de forma particular, mas não fragmentada, o conjunto do social, ou seja: - Particular, porque ela foi elaborada a partir do “ponto de vista” da opressão das mulheres (feminist stand-point ). - Não-fragmentada, já que as relações sociais de sexo existem em todos os lugares, em todos os níveis do social. Esta abordagem deve, portanto, se integrar em uma análise global de sociedade, contribuir para fazê-la avançar (não se trata, evidentemente, de se integrar passivamente, o que seria mesmo impossível) e se articular aos outros elementos da dinâmica social. Finalmente, é necessário precisar que esta visão global do social é pensada em termos dinâmicos, pois ela repousa em antagonismos e contradições, bem como em termos materialistas, pois toda relação social tem um fundamento material. A definição de relações sociais de sexo que avançamos aqui repousa em vários pontos:

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1. Em uma ruptura radical com as explicações biologizantes das diferenças entre as práticas sociais masculinas e femininas. 2. Em uma ruptura radical com os modelos supostos universais. 3. Nas afirmações de que tais diferenças são construídas socialmente e que esta construção social tem uma base material (e não apenas ideológica). 4. Que elas são, portanto, passíveis de ser aprendidas historicamente. 5. Na afirmação de que estas relações sociais repousam em princípio e antes de tudo em uma relação hierárquica entre os sexos. 6. De que se trata, evidentemente, de uma relação de poder. Nesta perspectiva convém ressaltar que o conceito de relações sociais de sexo se prende à noção de prática social. De fato, se admitimos que existe uma relação social específica entre os homens e as mulheres, isto implica práticas sociais diferentes segundo o sexo. Como práticas sociais e não-condutas biologicamente reguladas, podem se buscar seus princípios de inteligibilidade. Assim, o que estava fora do campo da disciplina sociológica se toma um objeto legítimo de questionamento. Neste sentido, a noção de prática social é indispensável para: - Permitir a passagem do abstrato ao concreto (o grupo, o indivíduo). - Definir os atores de outra forma do que como puro produto das relações sociais. - Poder pensar simultaneamente o material e o simbólico. - Restituir aos atores sociais o sentido de suas práticas, para que o sentido não seja

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dado de fora por puro determinismo. Esta definição é uma entre outras possíveis. Conceituar em termos de relações sociais de sexo não é coisa nova entre as intelectuais francesas (podemos citar como exemplo a produção de N.C. Mathieu). E, evidentemente, muitas de nossas aquisições reflexivas são resultado do conjunto de nossos trabalhos. A construção, para referenciar os termos de Helène de Doaré (1991), de um verdadeiro pensamento dialético, torna-se real o que não tinha sido feito anteriormente a não ser no âmbito das classes sociais. Os sexos não são, a partir de então, categorias imutáveis, fixas, a-históricas e associais. As relações sociais de sexo são, ao contrário, periodizadas, e o problema da mudança da transformação pode ser abordado. Falar em “relação social” quer dizer falar de relação de poder. A partir de então, está descartado o desconhecimento do ponto de vista do dominante, pois ele conhece os mecanismos econômicos, as justificativas ideológicas, os constrangimentos materiais e físicos a utilizar. Isto é tanto mais indispensável que, quando se é dominado, se a gente conhece a vivência da opressão, não se tem necessariamente plena consciência dos mecanismos da dominação (N.C. Mathieu,1991). Por fim, e é aqui onde os caminhos divergem, as práticas de pesquisa são bastante divergentes e uma questão se coloca: é necessário, então, centrar a reflexão somente nas relações sociais de sexo, ou é necessário, ao contrário (e esta é a minha posição), tentar pensar o conjunto das relações sociais na sua simultaneidade? Tudo depende do objeto que se assume. A meu ver, trata-se de se instrumentalizar, com princípios de inteligibilidade, para compreender a diversidade e a complexidade das práticas sociais de homens e mulheres. Nesta

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perspectiva, considerar somente a relação de dominação homem/mulher é insuficiente. É assim que pensam a si mesmos os atores sociais. É evidente que os homens, dominantes, não se colocam enquanto “homens”,  já que, quase por definição, o dominante existe de direito, mas não “se pensa” como tal. É O dominado que se pensa, e ainda nem sempre, como “relativo”. Mas uma mulher não se pensa como mulher, ela se pensa também dentro de uma rede de relaçÕes sociais. Como trabalhadora (na relação capital/trabalho, na relação salarial), como jovem ou velha, como, eventualmente, mãe ou imigrante. Ela sofre e/ou exerce uma dominação segundo sua posição nestas diversas relações sociais. E é o conjunto que vai constituir sua identidade individual e dar nascimento às suas práticas sociais. Em nível coletivo, é ainda o conjunto das relações sociais que vai fundar o sentimento de pertencer a um grupo e a consciência de dele fazer parte. Minhas reflexões se assentam, portanto, nas seguintes bases: 1. As relações sociais de sexo dinamizam todos os campos do social. Toda relação social é sexuada, enquanto que as relações sociais de sexo são perpassadas por outras relações sociais: - As relações de classe são analisadas enquanto relações que imprimem conteúdo e direção concreta às relações sociais de sexo. - Ao imerso, as relações de sexo são analisadas como emprestando conteúdos específicos às outras relações sociais (por exemplo, a norma da “virilidade”, tão presente no meio operário masculino). 2. Fazemos, assim, “explodir” os quadros de referência binários e com isso se pode pen-

sar a totalidade do social, sem que tentemos, afobadamente, pesquisar a “boa” relação social, ou a “boa” identidade que vai resolver o que não pode aparecer, tanto numa perspectiva clássica como das contradições. 3. Quebramos, assim, a homologia entre um tal lugar e uma tal relação social: a relação entre os sexos não se esgota na relação conjugal, mas é ativa no lugar de trabalho, enquanto que a relação de classes não se esgota no lugar de trabalho, mas é ativa, por exemplo, na relação com o corpo, ou na relação com as crianças. 4. Podemos pensar a complexidade e a mudança no jogo das diferentes relações sociais entre si. De fato, as relações sociais de sexo não funcionam de forma homogênea em todos os setores, nos diferentes níveis sociais. Assim, na empresa, se assiste a uma recriação das relações sociais de sexo e não a um simples reflexo do que se passa do lado de fora dela (Humphrey, 1987). Nada é imutável, mecanicista, tudo é histórico, periodizável (Milkman, 1987). 5. Isto permite, enfim, de falar de “sujeitos” que, ao mesmo tempo, sofrem a ação das relações sociais, mas, igualmente, agem sobre elas, construindo, tanto individualmente como coletivamente, suas vidas, por meio das práticas sociais. Para concluir esta parte, afirmo que a função do conceito de relações sociais de sexo é dupla e retomarei aqui os termos do último relatório de atividades do GEDISST (Groupe d’Étude sur Ia Division Sociale et Sexuelle du Travail- Laboratório do CNRS). Vimos que este conceito é princípio organizador das práticas sociais, da mesma forma que as demais relações sociais, às quais ele se articula. De fato, 1°) ele indica que a dimensão sexuada é parte integrante do social e deve ser levada em conta na construção das categorias de análise das ciên-

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cias sociais (trabalho de desconstrução); 2°) ele indica a necessidade de forjar “instrumentos” conceituais aptos a analisar a dinâmica complexa do conjunto das relações sociais (trabalho de construção). É necessário, ainda, legitimar a articulação entre relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. Este é um problema essencial para não pensarmos em divisão sexual do trabalho na “pura base empírica”, enquanto que reservamos às relações sociais de sexo a “teoria”. Teoria esta, tanto mais inconsistente quanto menos ligada à materialidade social. É importante igualmente, se não quisermos pensar tão-só o “porquê” dos fenômenos sociais, mas também o “como” (sobre este problema, cf. Kergoat, 1986). É importante, enfim, se quisermos articular quadro teórico e metodológico, porque não podemos estudar as relações sociais em si, mas suas modalidades, suas formas, sua periodização, e isso se faz por meio das práticas sociais. Mesmo assim, ainda falta uma mediação: hipóteses à capacidade média na qual situamos o papel explicativo da divisão sexual do trabalho, a partir do momento em que lhe atribuímos um papel central nas disputas (enjeux *.) nas relações sociais de sexo. As relações sociais organizam, denominam e hierarquizam as divisões da sociedade: privado/público, trabalho manual/trabalho intelectual, capital/trabalho, divisão internacional do trabalho, etc. As modalidades materiais dessas bicategorias são centrais nas relações sociais; a divisão social do trabalho entre os sexos é ponto (de disputas) fundamental nas relações sociais de sexo.

* Enjeux (do francês) não encontra tradução exata em português. Significa literalmente “o que está em jogo”. Assim sendo, utilizamos neste texto o termo “disputar” ou “centro de disputas”. (N.da T.)

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 AS LINHAS DE DEMARCAÇÕES COM OUTROS CAMPOS TEÓRICOS2 Um primeiro debate poderia ser o da utilização do termo “gênero”, “relações de gênero” (do inglês gender) ao invés de “relações sociais de sexo”. A primeira observação é de bom senso: é impossível colocar em oposição gênero e relações sociais de sexo; os dois termos são altamente polissêmicos. Encontramos, nos dois casos, O mesmo leque de acepções que vão da simples variável mulheres, até uma análise em termos de relações sociais antagônicas (Scott, 1988). Trata-se, a meu ver, menos de conceituações alternativas do que de formalizações preferenciais. Pode ser útil lembrar que o movimento feminista francês, diferentemente do que se passou em outros países, se definiu, de início, em parte no interior e/ou em oposição aos partidos políticos de esquerda e foi profundamente marcado pelo marxismo como teoria de referência. Vem daí um vocabulário análogo: modo de produção doméstica, relações sociais de sexo, classe de sexo (Guillaumin, 1978), etc. Mas não se esgota nisso. De fato, a redução da análise em considerar somente a variável sexo é muito mais difícil com o conceito de relações sociais de sexo, termo que implica, necessariamente, uma certa visão da sociedade e que elimina outras, por exemplo: é difícil falar simultaneamente de relações sociais de sexo e patriarcado, enquanto que a utilização do termo gênero o permite. E mais, “relação” tem uma conotação de reciprocidade, o que não tem o termo “gênero”: uma categoria só existe em relação à outra. 2 A literatura à qual fazemos alusão é vasta. Cada ponto deste capítulo precisaria ser desenvolvido e discutido aprofundamente, o que este pequeno artigo não permite. Mesmo que reduzido, este giro nos parece útil para dar aos leitores n eófitos alguns pontos de esclarecimento.

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É, portanto, mais difícil “esquecer”, no segundo termo, o grupo social dos homens.

sociais de sexo, que foi proposta aqui, torna caducas as análises que se referem à “condição feminina “ (pois esta é pensada em termos de especificidade em relação a um modelo que se diz geral) ou à noção de papéis sociais (essa análise pensa as posições sociais dos dois sexos em termos de complementaridade).

Enfim, a aproximação relação social (forçosamente fato da cultura) com a palavra sexo (sempre percebido como fato da natureza) tem um efeito detonador, interrogativo, subversivo, efeito que, para nós, é positivo, já que pensamos que esta abordagem conduz a repensar a epistemologia das Ciências Sociais. Toda

mudança na situação de um grupo induz uma mudança para outro grupo.

Um segundo debate diz respeito ao emprego do termo “patriarcado”. Diferentes definições de patriarcado apareceram nos Estados Unidos (patriarcado baseado na reprodução ou na sexualidade) e na França, (patriarcado baseado no modo de produção e no modo de produção doméstica). Esses trabalhos parecem se inscrever definitivamente numa abordagem estruturalista, e isso, levanta, a meu ver, dois problemas: - Primeiro, remete às dificuldades próprias a toda abordagem estruturalista: a que insiste na metaestabilidade do sistema, e, no que diz respeito aos nossos propósitos, rapidamente pode-se passar à uma abordagem que considera a posição das mulheres como imutável. - Afirmar a primazia (ou a simultaneidade -Guillaumin, 1978) do sistema patriarcal em relação à organização social no seu conjunto não é suficiente para mostrar como o sistema afeta domínios que não parecem estar ligados. Assim, por exemplo, como articular o modo de produção doméstico (Delphy, 1978) -que explica que é a apropriação ou a exploração do trabalho das mulheres na família que está na base de sua exploração comum, com o modo de produção capitalista? Podemos ver que a definição de relações

Quanto ao que se convencionou chamar “ estudos sobre as mulheres”, tais análises se chocam inelutavelmente na dificuldade seguinte: como pensar teoricamente a acumulação de dados e de estudos pontuais? Mas o mais grave é que os “estudos sobre as mulheres” acreditam geralmente na proposição segundo a qual é preciso desconstruir os conceitos que se apresentam falsamente como universais, mesmo que eles sejam somente sujeito e objeto de teorias que esvaziam os dados desse universal. No entanto, tais estudos tendem, por intermédio de seus dispositivos metodológicos e teóricos, a apresentar lia” mulher como dotada de uma essência e como universal, como sujeito e objeto de pesquisa (Harding, 1986). Nestes aspectos, essas análises me parecem desembocar numa contradição insuperável. Serei ainda mais breve sobre o esquema igualitário que, propondo como objetivo o alinhamento da situação das mulheres baseado na situação dos homens, se constitui de fato sobre uma norma masculina, supostamente estática. Realmente, o fracasso relativo das po-

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líticas de igualdade (Doniol-Shaw et alii, 1989) mostra bem os limites de uma argumentação em termos de recuperar o que foi perdido, Toda mudança na situação de um grupo induz uma mudança para outro grupo, É certamente sobre o terreno das relações de força que se afrontam, com armas desiguais, os grupos de sexo em oposição.

DELPHY C. (1978). “Travail ménager ou travail

Terminarei sobre a teoria da diferença. É evidentemente com ela, baseado na adesão a valores intrinsecamente sexuados, portanto, a-históricos (identidade feminina) que a distância é maior. Citarei simplesmente Simone de Beauvoir que, desde 1972, em Tout compte fait, declarava: “Eu não acredito que existam qualida-

HARDING S. (1986), “L ‘instabilité des catégories

des, valores, modos de vida especificamente femininos; seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer dizer, aderir a um mito inventado  pelos homens para prender as mulheres na sua condição de oprimidas. Não se trata para as mulheres de se afirmar como mulheres, mas de tornarem-se seres humanos na sua integralidade”.

KERGOAT D: (1982), Les ouvrieres, Paris, Le Sycomore.

É justamente o problema do universal que está posto aqui. Falar de relações sociais é colocar no centro do problema a luta dos dominados - homens e mulheres - para ascender ao universal e para poder pensar, enfim, esse universal.

domestique?”, in Les femmes dans la societé marchande, Paris, PUF, pp. 39-54. DONIOL-SHAW G., Junter-Loiseau A., Genestet V., Gouzien A., Lerolle A.(1989). Les plans d’égalité professionnelle. Etude-bilan. 1983-1988, Documentation Française, Paris. GUILLAUMIN C. (1978). “Pratique du pouvoir et idée de Nature”, Questions Féministes nº 2 (pp. 5-30) e 3 (pp. 5-28).

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Méridiens, collection Réponses Sociologiques.

d’analyses, Paris, IRESCO, Cahiers de l’ APRE n° 7, 3 vol.

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Marxismo e Feminismo

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Frédérique Vinteuil

A vontade de refletir sobre as relações entre os sexos não é, ao contrário do que se pensa, uma novidade deste século. Pode inclusive sustentar-se que a generalização do modo de produção capitalista e a revolução ideológica do Século das Luzes constituem simultaneamente o ponto de partida do obscurantismo sobre as relações reais entre os sexos e a possibilidade da sua superação. Com efeito, se observamos as antigas socieFórum Social das Américas, Paraguai/2010. dades escravagistas ou as sociedades medievais, choca constatar até que ponto a elaboração teórica, ou fantasmagórica, que justifica a dominação das mulheres é infinitamente mais abundante do que a produção ideológica destinada a perpetuar a divisão de classes. A mitologia da Grécia Antiga2, da China de Confúcio3, da Índia dos Vedas4... alimenta-se, em grande medida, dos conflitos entre os sexos; a igreja medieval edificou um formidável edifício conceitual em torno da inferioridade das mulheres5. Pelo contrário, o pensamento burguês está repleto de contradições. Ao postular a existência do Homen, sujeito universal, a-histórico e à margem das classes, torna-se-lhe mais difícil afirmar a inferioridade ontológica de um grupo humano qualquer (o mesmo problema colocou-se com os povos colonizados, cujas elites viraram contra as metrópoles valores oficiais da burguesia). Do mesmo modo, se bem que a vontade de demonstrar cientificamente a inferioridade natural das mulheres seja uma constante desde há dois séculos – do tamanho do cérebro até os testes de aptidão new-look  -, o pensamento burguês prefere consolidar a legitimidade das instituições através das quais se exerce a opressão sobre as mulheres, do que afirmar uma infra-humanidade. A doutrina fascista, que no começo postula a inferioridade das mulheres, constitui precisamente a exceção que confirma a regra. O clero da Idade Média apresenta a mulher como diabólica; a ideologia burguesa coloca a necessidade da família e a adequação feminilidade / maternidade6. Além do mais, a burguesia dispõe de uma produção ideológica dirigida fundamentalmente para a defesa dos seus interesses diretos de classe;a exaltação do trabalho, do indivíduo, do Estado... A opressão das mulheres,tão amplamente utilizada, e tão amplamente reivindicada noutros modos de produção, parece ter desaparecido no capitalismo. Sabemos que o feminismo dos anos 70 começou por afirmar algo que supõe assim uma ruptura: a opressão existe, e estas são as suas manifestações.    o     d    n    e    s    o     R    a     é    r     d    n     A

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Texto publicado em Marxismo e Feminismo, cadernos Democracia Socialista, Vol. 8. Editora Aparte 1989. Ver os livros de J. P. Vernant e M. Destienne sobre a mitologia grega. Ver Marcel Granet - La pensée chinois. Ver as obras de G. Dumézil. George Duby - La femmme,lê pretre, lê Chevalier. Ver as obras de Ph. Aries, e também de E. Batinder - L’amour em plus

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Ora em, em nossa opinião, MARX E ENGELS são tributários de um contexto intelectual no qual não se analisavam as relações entre homens e mulheres, nem a situação global das mulheres no interior do sistema capitalista e das suas diferentes classes, mas em que analisavam unicamente as instituições através das quais se reproduz a sociedade burguesa e nas quais as mulheres estavam implicadas. Este ponto de vista que, digamos, se encontra com as mulheres, mas que nunca parte da opressão com uma vontade de explicação global, é parcial e só podia levar a erros de prognóstico e a meras aproximações teóricas. As mulheres são consideradas sucessivamente como proletárias do proletariado, servas, escravas..., termos que podem estimular a imaginação, mas que de modo algum fazem avançar a compreensão da função geral da opressão do sistema. Assim temos podido assistir, na última década, a uma recusa do marxismo, acusado de esterilidade intelectual. “ M ARX  não disse nada de sensato sobre as mulheres, E NGELS equivocou-se na questão das origens da opressão...” estes são os sentimentos mais espalhados, frequentemente acompanhados de afirmações dicotômicas tais como: “o marxismo continua a ser operativo para analisar as relações entre as classes, mas não serve no que respeita as relações entre os sexos. Para um novo tema de estudo, nova metodologia”.

Não se pode dizer que a origem deste questionamento do marxismo seja puramente teórica. A constância do movimento operário reformista de tradição social-democrata ou estalinista, em repetir desde há décadas, a ideologia burguesa sobre esta questão (com exceção de breves períodos revolucionários) tem repercutido e repercute necessariamente na credibilidade do marxismo. A origem americana do neofeminismo atual, cujo ponto de partida é a psicanálise, ou uma forma de pensar por assimilação de análise de outras formas de opressão (questão nacional ou racial), não favorecia

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de modo algum o enfoque marxista. Por último, o feminismo ao pretender pensar sobre um grupo social vítima de uma segregação e inscrito numa relação de alteridade (ser homem é a norma, a mulher é o outro) dificilmente poderia escapar à moda das filosofias da diferença que fez estragos nos últimos anos: desde a Nova Filosofia até à Nova Direita, passando por diversas e variadas interpretações que se reclamam da psicanálise. Queremos abordar no âmbito deste artigo àquilo que nos parece operativo nos textos de MARX e aquilo que nos parece problemático. Queremos também mostrar a incapacidade das teorias que pretendem recusar ou superar o marxismo, para explicar a opressão das mulheres como fenômeno total. O marxismo continua a ser o único método que permite a sua compreensão... apesar de algumas teses de pensadores marxistas.

Marx, Engels e a Opressão das Mulheres O marxismo teve o enorme mérito de denunciar, no século XIX, a subordinação das mulheres, quando outros socialistas chegavam inclusive a preconizar o seu agravamento (PROUDHON). M ARX e ENGELS inscrevem-se na linha de continuidade dos socialistas utópicos seguidores de SAINT-SIMON e FOURIER, entre os quais se encontra FLORA TRISTAN, que reivindicavam a igualdade dos sexos e a subversão da família burguesa. Superando os utopistas que se limitavam a descrever a inferioridade das mulheres e a exigir a igualdade em nome da justiça, o marxismo partiu de um pressuposto fundamental: a opressão das mulheres não é uma invariante na história, mas sim o produto de formações sociais; as relações entre os sexos não são naturais, mas sociais. Esta base materialista e histórica continua a constituir, nos nossos

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dias, a linha divisória com a etnologia estruturalista (LEVI-S TRAUS), que considera o intercâmbio de mulheres como o elemento constitutivo das sociedades humanas e com os psicanalistas, que atribuem à diferenciação sexual o papel motor na estruturação do psiquismo. Não obstante, parece que neste terreno o enfoque histórico de MARX se baseia mais num postulado derivado da lógica do materialismo do que numa convicção construída sobre um estudo preciso do estatuto das mulheres através dos tempos. Teremos que esperar a última obra de Engels, quarenta anos depois da morte de FLORA TRISTAN..., para encontrar um enfoque sistemático da questão. Em A ORIGEM DA FAMÍLIA distinguem-se três grandes períodos na história das mulheres: as sociedades sem classes, nas quais as mulheres ocupariam uma posição dominante (matriarcado original); as sociedades de classes não capitalistas, onde as mulheres escravas estão dedicadas à reprodução doméstica; e o capitalismo que reinsere as mulheres na produção e oferece uma base objetiva para a sua emancipação. Esta divisão em períodos, se bem que enormemente simplificadora, pode ser aceita; o que parece errado é a análise do estatuto das mulheres dentro de alguns períodos. Em primeiro lugar, é indiscutível que sociedades sem apropriação privada dos meios de produção, sem Estado, em que as relações sociais se expressam em termos de parentesco, oferecem exemplos de opressão das mulheres infinitamente mais violentos que os sofridos nas metrópoles imperialistas dos finais do século XX. Numerosas tribos deste tipo vivem quase exclusivamente do trabalho realizado pelas mulheres, mas este é controlado pelos homens; as mulheres trocadas como mercadorias vão viver na povoação do seu marido, onde se vêem privadas de todos os direitos; a elaboração ideológico-religiosa destas sociedades é fortemente misógina.

a) O Erro de Engels Porque se equivocou ENGELS? Prisioneiro das descobertas etnológicas da sua época, muito mais limitadas do que aquelas do que nós dispomos, assimilou duas realidades que de algum modo são iguais: a matrilinearidade e o matriarcado. Se bem que seja inegável que a maioria das sociedades arcaicas ou primitivas conhecidas funcionam ou funcionaram segundo o modelo de descendência matrilinear, o sistema confere o poder ao tio materno e não à própria mulher. ENGELS não se dá conta da importância que tem o lugar de residência da família. Segundo seja o marido quem vai residir com o clã da sua mulher (matrilocalidade) ou a mulher quem vai residir com o clã do seu marido (patrilocalidade), as relações de força entre os sexos são completamente diferentes. A generalização da patrilocalidade marca mais claramente a derrota histórica do sexo feminino (conceito por outro lado ambíguo, ao evocar uma batalha em toda a regra e não uma série de processos contraditórios desenvolvidos no seio de formações sociais transitórias, ao longo de milênios) que a parição da escravatura, do Estado, da patrilinearidade e da família patriarcal. Além disso, ENGELS  baseia a origem da degradação do estatuto das mulheres numa divisão primitiva do trabalho (o homem caça, as mulheres cultivam e coletam...) suscetível de proporcionar aos homens a capacidade de apropriação do sobre-produto social. Porém, nós pensamos que não existe uma divisão sexual do trabalho natural e universal. Os homens fazem o mesmo que as mulheres, e vice-versa: tudo depende da sociedade em que se encontrem. Inclusive a fiação e tecelagem, atividades femininas por excelência, são realizadas pelos homens em algumas tribos da África do Norte.

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O que é válido para as sociedades de classes o é para as sociedades primitivas: o que conta não é a natureza do trabalho, mas sim as relações sociais em cujo seio se realiza. Não é este o lugar para desenvolver as hipóteses de investigação sobre o estatuto da mulher nas sociedades pré-classistas, e ainda menos sobre a origem histórica da opressão das mulheres, tema em relação ao qual é pouco provável que se imponha uma resposta definitiva. Diremos unicamente que o método mais frutífero nos parece ser o que dos conceitos clássicos do marxismo. Inclusive para as sociedades em que as relações de produção se jam mediadas pelas relações de parentesco, as perguntas mais úteis são estas: quem produz? Quem controla a produção? Em benefício de quem se exerce as relações de parentesco?

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ruptura / continuidade com as sociedades de linhagem, onde a apropriação coletiva do trabalho feminino e a desvalorização de um grupo humano no seio de um clã proporcionavam um modelo às formas posteriores de exploração. Não obstante, se bem que acreditemos que a primeira forma de luta de classes opôs mulheres a homens, não deduzimos dessa anterioridade histórica, a primazia da luta dos sexos nos modos de produção ulteriores8.O aparecimento da escravidão modifica a contradição essencial e redistribui os homens e mulheres bem função do seu lugar na produção.

Não obstante, as mulheres não são distribuídas da mesma forma que os homens no seio das classes fundamentais: se bem que a situação de classe das mulheres camadas exploradas não coloque problemas (embora nunca sejam exploradas “como” os homens), a das mulheres das classes dominantes torna-se muito mais difícil de discernir em O marxismo continua a ser o determinados períodos da história; a que classe pertencia na Antiguidade a único método que permite a sua mulher do aristocrata ateniense, casacompreensão. da aos doze anos, encerrada no gineceu, privada de todo o controle sobre os seus bens e trabalhando junto às suas servas? Por conseguinte, defendemos a idéia de Engels caracteriza o segundo período da que as sociedades pré-classistas conhecidas, quase todas elas patrilocais, matrilineares ou história das mulheres pela sua exclusão da propatrilineares, funcionam sobre a base da apro- dução. Desde o nascimento da escravidão até a priação coletiva, por parte dos homens, da for- manufatura, as mulheres dedicar-se-iam, antes ça de trabalho das mulheres. Esta situação pode de tudo, à reprodução nos dois sentidos do terconstatar-se nas sociedades primitivas atuais; mo: a mulher converte-se na primeira serva, pode deduzir-se do estudo das formações ar- foi afastada da produção social. Só a grande caicas onde domina a escravatura feminina e indústria – e unicamente à mulher proletáonde a adequação ideológica feminilidade/es- ria – lhe voltou a abrir as portas da produ9 cravidão é uma constante7. Pensamos, pois que ção social . Esta afirmação aceitam-na muitos a revolução escravagista e a apropriação pri8 Esta tese é defendida particularmente por S. F IRESTOvada dos meios de produção se inscrevem em NE - A Dialética do Sexo, e por F. D’EAUBONNE - Lês femmes et le 7

M. DESTIENNE - Esclavage et gynécocrtie em Gréce Antique.

patriarcat. 9 ENGELS - A Origem da família, da p ropriedade privada e do Estado.

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marxistas. MOYNOT10  escreve que na história a força de trabalho masculina jogou o papel principal, já que as mulheres estavam dedicadas a cuidar dos filhos e às tarefas domésticas. Esta tese parece-nos anacrônica e inaceitável. Anacrônica porque defende uma divisão uma divisão entre as esferas da produção e da reprodução que só se dá no capitalismo. Tomemos o exemplo de uma comunidade camponesa, no apogeu do modo de produção feudal: a divisão sexual do trabalho era absoluta e imutável. Porém não reflete a oposição trabalho produtivo/trabalho reprodutivo. As mulheres realizam certos trabalhos agrícolas, os mais pesados, os homens fazem o resto: todos produzem. As mulheres fiam, atividade tão produtiva (por vezes a lã fiada comercializava-se) como os trabalhos do campo destinados em grande parte ao consumo próprio. E as tarefas domésticas? Eram bastante limitadas dadas as condições de vida e alimentação, e estavam frequentemente atribuídas a um avô ou aos filhos mais crescidos11. Além de anacrônica esta tese é inaceitável porque nenhuma formação social conhecida na história pôde prescindir da utilização massiva da força de trabalho das mulheres para a produção. Apenas o estudo detalhado de uma sociedade num dado momento, pode permitir determinar os papéis respectivos da força de trabalho feminina e masculina, papéis afinal de contas muito variáveis. Porém, sustentar que todas as mulheres ficaram excluídas da produção é produto da ideologia patriarcal que apresenta o trabalho das mulheres como um não trabalho. Improdutivas as escravas dos grandes monarcas asiáticos ou de Mecenas, que eram operárias têxteis, ou cultivavam os extensos domínios dos reis e dos templos? Improdutivas as camponesas medievais? Pelo contrário, o que caracteriza a utilização da força de trabalho 10 11

J. MOYNOT; artigo em La condition fémminine, CERM. Ver E. SHORTER - Naissance de la famile moderne

feminina é a combinação dos trabalhos produtivos mais desvalorizados com as tarefas de reprodução, apresentando-se frequentemente uns como a extensão dos outros. A exclusão da produção apenas se verifica realmente nas sociedades de classes não capitalistas, para as mulheres das classes dominantes. E ainda assim, estas se diferenciam dos homens pelo fato de que quase sempre trabalham: são a primeira serva, tanto no gineceu como na mansão feudal, enquanto que o seu marido está totalmente ocioso, dedicando-se,consoante a época, à política, à guerra ou à caça. Também nos parece pouco operativa a distinção produção / reprodução para compreender a condição da mulher nos modos de produção escravagista ou feudal. Parece-nos mais interessante partir da realidade do estatuto pessoal das mulheres para constatar que a utilização de sua força de trabalho, em qualquer trabalho, nunca se faz como a dos homens a não ser no quadro das relações sociais específicas de dominação. Nas origens das sociedades escravagistas, as escravas-mulheres eram muito mais numerosas; se depois se alcança uma igualdade numérica, as possibilidades de libertação da escravidão são muito desiguais entre os sexos, uma vez que uma escrava traz consigo uma riqueza suplementar: os seus filhos. Na sociedade medieval, entre a camponesa e o seu senhor, existe um intermediário necessário, o pai ou o marido, a quem a tradição concede a propriedade do seu trabalho e da sua pessoa. Tomemos o exemplo do camponês livre da Europa Ocidental, possui a propriedade útil da terra, pode vendê-la, abandoná-la; deve numerosos impostos a seu senhor, mas é um homem livre. No caso da camponesa a terra não lhe pertence (raramente herda), nem tampouco o produto do seu trabalho; não pode partir porque depende da autoridade paterna ou marital. Ela não é livre.

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Sem dúvida, camponês e camponesa pertencem fundamentalmente à mesma classe: os seus interesses face ao senhor confundem-se, e o seu lugar no processo de produção é semelhante. Mas resulta evidente que no seio da classe explorada, as constituem uma camada que se define não só pela sua situação de classe, mas também pelo seu estatuto pessoal na família, estatuto cujas semelhanças com a escravidão são evidentes. Uma mulher não se pertence a si mesma. O marido ou o pai, por mais explorados que sejam, exercem sobre ela, nestas sociedades em que a autoridade se distribui em todos os níveis do tecido social, um poder econômico (controle do trabalho) e político (manutenção da hierarquia).

B) Uma Intuição Acertada MARX e ENGELS intuíram muito bem, a forma

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mulheres na produção capitalista (para além de algumas fórmulas ambíguas), tinha o mérito de legitimar o direito das mulheres ao trabalho numa época em que a maioria do movimento operário descrevia as trabalhadoras como ladras de emprego. Hoje esta posição com alguns matizes (o acesso ao trabalho assalariado não é uma condição suficiente de libertação, uma vez que as mulheres se proletarizam na sua condição de mulheres), continua sendo a base de ruptura com os que põem em causa, na teoria ou prática, a necessidade das mulheres de trabalharem fora de casa. Tampouco encontramos em MARX e ENGELS a defesa do trabalho doméstico ou da maternidade; e isso deve ser especialmente realçado porque os socialistas utópicos reclamavam direitos para as mulheres em nome da sua função maternal. Repito-o a mulher é tudo na vida de um operário: como mãe atua sobre ele durante a infância; dela e só dela extrai as primeiras noções dessa ciência tão importante de adquirir, a ciência da vida...12. E ainda assim poderíamos considerar essa formulação de FLORA TRISTAN  como uma constatação; mas o “Saint-Simoniano” PROSPER ENFANTIN, ou os seguidores de Fourier, exaltam a mulher-mãe e as suas obrigações, com uma fraseologia mística perfeitamente sintonizada com a ideologia burguesa que se tinha se desenvolvido sobre esta questão, nos finais do século XVIII. ENGELS é infinitamente mais atual ao escrever: a família

como o capitalismo introduziu uma fissura na situação das mulheres e na natureza da família. Na época do capitalismo selvagem, quando a situação das mulheres proletárias parecia mais atroz que a das camponesas, souberam ver que a lógica do novo modo de produção o levaria a criar as condições objetivas para a emancipação. Ao enviar tendencialmente cada vez mais mulheres para a esfera da produção social, ao proletarizar um número de trabalhadores cada vez maior, retirando da família o seu papel de conjugal moderna baseia-se na escravidão dotransmissão de propriedade, o capitalismo mi- méstica, confessada ou velada, da mulher 13. nava (parcialmente) as bases da dominação masculina. Se bem que esta visão nos pareça Não obstante MARX e ENGELS  não pensahoje excessivamente unilateral, ainda que MARX ram, como dizíamos na introdução, em fore ENGELS tenham se equivocado quanto aos rit-  jar uma teoria da opressão das mulheres. Em mos, o capitalismo tardio justifica em parte a O CAPITAL, que é onde se realiza a analise das sua análise. Basta comparar a condição das mu- condições de produção do sistema capitalista lheres do Terceiro Mundo, tão parecida, respei- não se abordam quase nunca as condições de tando as proporções à das nossas bisavós, com reprodução. A explicação está na natureza do o estatuto atual das mulheres nos paises impe- próprio sistema que produz a separação mais rialistas, para nos convencer disso. Papel positiFLORA TRISTAN. Texto de fundação da “União Operária”. vo também atribuído por ENGELS, à inserção das 12 13

ENGELS, op. cit.

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radical entre o universo da produção e o da reprodução, e permite realizar uma analise separada. Deste modo, MARX só se encontra com as mulheres quando se incorporam na manufatura e não aborda a condição das mulheres na sua globalidade. MARX e ENGELS têm uma teoria da família, mas a estrutura que descrevem é um legado do passado; o papel da transmissão da herança aos filhos legítimos, o enriquecimento graças ao dote da mulher..., são por eles considerados como as características fundamentais da família monogâmica: soberania do homem na família e procriação dos filhos, que só podem ser dele e estão destinados a herdar a sua fortuna: tais eram (...) os fins exclusivos do matrimonio conjugal 14.

a) Duas forças de trabalho Reorientados para estudos técnicos de onde saem mais bem adaptados MARX  e seus contemporâneos tiveram que constatar o papel determinante que a mão de obra feminina desempenhou na acumulação de superlucros, nos começos do capitalismo industrial. Quando o capital se apoderou da máquina o seu lema foi: trabalho para as mulheres, trabalho para as crianças15.  A explicação desta preferência parece evidente: as mulheres, ao contrário dos membros das antigas corporações, não tinham qualificação e eram infinitamente mais adaptáveis às novas adequações de trabalho; a sua educação e sobretudo a extrema precariedade da sua existência as fazia dóceis.

MARX e ENGELS  tinham razão ao

considerarem que esta função da família estava condenada a desaparecer E obstante a família continua com a generalização do capitalismo. Se bem que estudos realizados sobre existindo, e com ela a opressão a formação dos patrimônios na França das mulheres. demonstrem que a herança desempenha um papel determinante na circulação da riqueza no seio da classe dominante, é evidente que esta não é a função primordial da família para a maioria da Esta explicação é conjuntural, e como tal população. E obstante a família continua exis- a dava MARX. Mas, não obstante, a superexploração da mão e obra feminina é, até no capitalistindo, e com ela a opressão das mulheres. mo tardio, um fenômeno estrutural. Ninguém ignora que a desigualdade profissional entre os  As Lacunas do Marxismo sexos é a regra em qualquer nível da pirâmide social. A subqualificação não é uma causa, mas A nosso ver a teoria marxista apresenta uma consequência da necessidade do capital lacunas em três aspectos fundamentais: a uti- dispor de uma mão de obra super explorada. lização diferenciada da força de trabalho femi- Na França chegou-se ao paradoxo das moças, nina e masculina pelo capitalismo; o apareci- por terem mais êxito escolar, ficarem menos mento de uma família burguesa, adaptada às qualificadas: na sua maioria chegam a níveis de necessidades econômico-políticas do sistema; curso secundário, ou de bacharelado, enquana natureza das relações sociais entre os sexos. to os rapazes (devido ao fracasso escolar) sãoao mercado de trabalho. De qualquer modo, basta 14

ENGELS, op. cit.

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MARX - O Capital, livro I, capítulo II.

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que uma profissão, por muito qualificada que seja, se feminize , para que se desvalorize com uma rapidez surpreendente. Por outro lado, o que MARX para a primeira revolução industrial volta a verificar-se com a mutação tecnológica atual. As novas formas de trabalho são experimentadas com mão de obra feminina: informática, burocracia, reestruturação dos ritmos de trabalho...Esta constante é suficiente para recusar como superficial a analogia com a mão de obra imigrada da Europa. Os estrangeiros acabaram por integrar-se, exigindo a chegada de uma nova remessa em cada período de expansão econômica. As mulheres não se integram e colocam o problema de saber o que permite ao capital manter a desvalorização da sua força de trabalho. Um aspecto muito importante é a composição do salário, diferente nos homens e nas mulheres. MARX dá esta definição de salário: o valor da força de trabalho determina-se pelos gastos com a manutenção do operário e da sua família16. Esta composição do salário verificou-se globalmente, com exceção dos períodos de crise aguda do capitalismo e do lumpen-proletariado, mas só serve para a retribuição da força de trabalho masculino. Pelo contrário, parece que o trabalho feminino é amputado da parte que os homens recebem para manter a família além de si mesmos. Esta diferenciação no salário parece funcional para todos, uma vez que o sistema postula que todos os assalariados estão casados. A melhor prova encontramo-la nas medidas sociais adotadas nos paises capitalistas desenvolvidos em favor das mulheres que em parte estão destinadas a compensar a ausência de um marido: subsídios para viúvas, para mães solteiras, para as divorciadas; pensões que as viúvas recebem imediatamente, enquanto os viúvos têm de esperar a sua própria aposentadoria (e esta é 16

MARX - O Capital, livro I, capítulo II.

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uma medida recente), etc... A sociedade prefere assistir a milhões de mulheres em vez de retribuir a força de trabalho definida em igualdade com o dos homens. Em sentido oposto ao das aparências e da legislação burguesa, a distância continua a aprofundar-se: as mulheres são proporcionalmente cada vez mais numerosas entre o pessoal menos qualificado. É evidente que a existência do salário de apoio procede das exigências da acumulação de lucros; determinar se constitui um elemento conjuntural ou estrutural é abstrato, uma vez que a obtenção do lucro se realiza sempre em condições históricas (e de relações de força) concretas. A persistência do fenômeno através de três revoluções industriais fala a favor do seu caráter estrutural, desde as origens do capitalismo até a sua fase atual. A particularidade desta superexploração consiste em extrair a sua legitimidade de uma instância considerada exterior às relações de produção: a família, e para além da família, do conjunto da sociedade civil que constitui as mulheres em grupo oprimido.

b) A família burguesa não desapareceu e ENGELS  vaticinavam o desaparecimento da família burguesa em curto prazo, o que se lhes criticou em numerosas ocasiões. Pelo contrário, alguns historiadores e alguns pensadores marxistas afirmavam que a família se reforçaria17, como corolário da afirmação do estado burguês. A previsão de MARX e ENGELS explica-se pelo contexto histórico: a brutal exploração realizada pelo “capitalismo selvagem” tinha separado o operário/a da sua família camponesa e tinha alterado os papeis anteriores. Engels descreveu amplamente, por vezes com formulações ambíguas, a MARX

17

CRITIQUE COMMUNISTE n. 20-21 (Dezembro 77 - Janeiro 78).

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situação inglesa. Em numerosos casos a família não se desagregou por completo, mas está tudo de pernas para o ar. A mulher alimenta a família, e o homem fica em casa, cuida dos filhos, varre as habitações e faz a comida.   Este

caso é muito frequente. Só em Manchester, poderiam encontrar-se várias centenas destes homens condenados ao serviço doméstico. É fácil imaginar a indignação legítima que esta castração provoca nos operários, e o transtorno resultante na vida das famílias, quando as demais condições sociais permanecem iguais18. A família aparecia como uma relíquia das relações sociais pré-capitalistas, sem valor funcional algum a não ser para as classes dominantes. Aqui reside o erro de MARX e ENGELS, que consideraram um fenômeno conjuntural como estrutural. Este erro é explicável, como dissemos, pelo contexto histórico e impediu-os de elaborar uma teoria da família burguesa. Esta lacuna permitiu aos ideólogos reformistas do movimento operário constituírem-se em defensores da família operária, em aparecer em ruptura demasiado aberta com o marxismo. Com efeito, uma vez transcorrida a primeira fase do capitalismo selvagem, a burguesia sentiu a necessidade de familiarizar , sobre a base de um modelo burguês, uma classe operária considerada móvel e indisciplinada.  Numerosos estudos19 aparecidos na França nos últimos dez anos, que expressam o novo interesse dos historiadores em relação a estas questões (o qual tem a ver evidentemente com o Ascenso do feminismo), mostram o desenvolvimento deste processo a partir de 1870/1880: constituição de um habitat operário mais decente e, sobretudo adaptado à família mononuclear (as casas dos mineiros substituem os 18 19

ENGELS - A Polícia das Famílias. Ver REVOLTES LOGIQUES n. 1 a 5; RECHERCHES n. 25; RÉMY B U TLER, PATRICE NOISETTE - De la cite ouviére au grand ensemble, Françoise Mayer - L’education dês files ou XIX siécle.

barracões); extensão da ideologia da maternidade à mulher operária. Para a burguesia o interesse é óbvio: as tarefas de reprodução da força de trabalho, que o capital não pode então socializar, continuam a ser assumidas no âmbito privado20; o operário assenta e estabiliza-se, responsabiliza-se através da família; as mulheres continuam a ser definidas pelo seu papel na família, que permite a sua super exploração e a sua utilização como mão de obra de reserva. A burguesia tem contado com a ajuda ativa do movimento operário organizado composto essencialmente, como é sabido, por trabalhadores masculinos qualificados21. feminilidade Isto se explica por vários fatores: a ideologia arcaizante, ao estilo de Proudhon, que enaltecia os méritos da família patriarcal, frente à imoralidade capitalista, era muito forte; a estabilidade dos operários masculinos parecia propícia para organizar-se no sindicato; acima de tudo, a manutenção de uma maioria de mulheres em casa e a esperança de para lá enviar também o resto, protegia-os da concorrência feminina. Assiste-se igualmente de forma progressiva à generalização para todo o tecido social do modelo de família burguesa, unidade dedicada à reprodução (à margem do universo da produção), à socialização dos filhos e à adequação / maternidade. MARX e ENGELS não destacaram o fato de que o capitalismo no seu primeiro período não estava em condições de socializar uma grande parte das tarefas domésticas. O seu erro não assenta naquilo que consideraram possível, mas em ter analisado pouco as condições concretas, na sua época, da reprodução da espécie e da força de trabalho. Não obstante, o estatuto da mulher deduz-se precisamente da relação dialética existente entre o trabalho reprodutivo realizado por elas na família e a sua 20 Muitos poucos sabem que o capitalismo selvagem tinha posto de pé serviços coletivos (creches) evidentemente em condições detestáveis, que desapareceram nos finais do século XIX. 21 MADELEINE G UILBERT - Les Femmes et l’organisation syndicale jusqu’em 1914.

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inserção no trabalho para o mercado, sendo este determinado por aquele. Não considerar as mulheres senão na sua relação com a produção implica não compreender aquilo que faz com que sejam trabalhadores a parte. Enquanto o sistema não estiver em condições de transformar as tarefas domésticas em produtos para o mercado, a sua realização no âmbito familiar supõe uma enorme economia de capital. MARX não compreendeu bem este aspecto, e afirmava que o trabalhador encontrava no mercado os meios para reproduzir a sua força de trabalho. O trabalho doméstico era considerado na teoria marxista clássica como um não trabalho, o que por outro lado é contraditório com a fórmula de ENGELS sobre a escravatura doméstica. Descritas comodamente como gratuitas, as tarefas domésticas não o são totalmente. O trabalhador masculino recebe no seu salário uma parte para que viva (ou sobreviva) com a sua família, e, por conseguinte, recebe de certo modo uma retribuição para o trabalho doméstico da sua esposa. Esta constatação não é contraditória com a função de economia de capital do trabalho doméstico. O sobre-salário masculino (a diferença do salário feminino) não cobre nunca o custo das horas de trabalho doméstico, nem sequer pagas ao nível de salário mínimo. Quer isto dizer que MARX e ENGELS se enganaram e que o capitalismo produziu um reforço da família? O termo “reforço”, utilizado tão frequentemente, não é adequado. A burguesia não impõe um estreitamento das relações familiares pré-capitalistas, mas um modelo diferente de família. A novidade consiste numa consolidação da base econômica desta nova família como resultado da reprodução no âmbito privado? A novidade, como vimos, consiste na separação geográfica e econômica entre produção e reprodução. Mas nas sociedades não capitalistas, as tarefas chamadas de repro-

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dução também eram assumidas pelas mulheres no seio da família; o sistema atual apropriou-se desta situação. Inclusive pode se dizer que o capitalismo socializa tendencialmente  mais trabalhos realizados noutras épocas no âmbito familiar. Desde a primeira revolução industrial, começa a desaparecer nas cidades a produção familiar dos alimentos básicos (pão, legumes, carne); as roupas podem adquirir-se progressivamente no mercado... Por seu lado, o capitalismo tardio demonstra a capacidade do sistema em alargar ao reino da mercadoria amplos setores da reprodução (desenvolvimento fulgurante da confecção, pratos prontos, lavanderias...). Mesmo o consumo perde algo do eu caráter familiar para ser cada vez mais individual22. Este novo estágio do capitalismo corresponde logicamente a uma nova onda de acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Neste processo podemos destacar dois elementos fundamentais: a realização pessoal do trabalho doméstico não é estruturalmente indispensável para o funcionamento do sistema, mas é necessária em longo prazo: o estatuto da mulher está inserido na relação mercado de trabalho / família, mas a determinação em última instância, que modifica a sua condição, reside nas exigências de acumulação de mais-valia no próprio coração do sistema. Onde se encontra então a especificidade da família burguesa em relação a formas anteriores? Evidentemente, no terreno político. A família materializa a ruptura entre o homem privado, por um lado, e o produtor e cidadão por outro; encarna com eficácia o individualismo burguês (família mononuclear voltada sobre si mesma), assegurando simultaneamente ao indivíduo um lugar com um mínimo de solidariedade afetiva; assegura, mais do que nunca 22 Ver os estudos sobre o consumo dos jovens e também das mulheres conjunturais; a crise econômica tem pressuposto um certo retorno aos objetos feitos em casa.

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e apesar da escolaridade obrigatória, a socialização dos filhos. Todos os sociólogos o sublinham:  já não existe o casamento por interesse, mas por amor, e desta forma a família mantém-se como valor-refúgio  no Hit-parade de todas as pesquisas. Esta função sócio-política é suficientemente eficaz, e bastante independente das estruturas econômicas, para ser integrada, sem modificações pelos estados da Europa do Leste, onde presta praticamente os mesmos serviços às camadas dirigentes.

to no trabalho como na família. Este fenômeno foi pressentido por MARX e ENGELS porque está na lógica do sistema, mas a sua manifestação foi mais lenta e contraditória do que eles previram. Além do mais, este fenômeno está muito longe de estar concluído; nele, a intervenção consciente das mulheres organizadas é um elemento decisivo.

c) A questão das relações sociais

A interiorização deste modelo é muito A terceira lacuna na teoria marxista reforte em todo o lado, e contribui para a alie- porta-se á natureza das relações sociais entre nação de quem constitui o pilar desta estrutu- homens e mulheres. Há que dizer, no entanto, ra: as mães particularmente. Mas o processo é que MARX e ENGELS souberam empregar termos contraditório. Efetivamente, nas sociedades muito mais vigorosos do que os seus distintos não capitalistas, a família funciona indiscutivel- epígonos que se dedicaram fervorosamente a mente como lugar de opressão das mulheres negar a opressão das mulheres em nome da nestas formações sociais fundamentalmente unidade operária. “A (família) contém em miniadesiguais, onde o Estado é mais débil, a autori- tura todos os antagonismos que, posteriormente, dade se dispersa por todos os níveis do tecido se desenvolverão amplamente na sociedade e social segundo as hierarquias de nascimento, no seu Estado”  ( MARX). “O (matrimônio conjugal) função, idade, sexo, aceitas como imutáveis. Os apresenta-se como o submetimento de um sexo homens dominam as mulheres porque Deus  por outro, como a proclamação de um conflito (ou a natureza) assim o quis. O Estado moderno, entre os dois sexos”  (ENGELS). encarnação do direito acima das classes e dos grupos, teve que romper com estas hierarquias   Mas apesar disso, o que nem um nem intermediárias, proclamando a liberdade e a outro, realmente viram é o fundamento, no igualdade do indivíduo perante ele; esta evo- sistema capitalista, da atualidade dos conflitos lução corresponde a obviamente as necessida- entre os dois sexos. des que o capital tem de mão de obra “livre” .  Algumas feministas falaram de exploraDeste modo, a família, lugar onde se exercia a autoridade masculina, encontrou-se - lenta e ção das mulheres pelos homens através do traparcialmente – esvaziada deste papel, por ra- balho doméstico23. A noção de apropriação da zões objetivas (lógica do sistema) e subjetivas força de trabalho das mulheres pelos homens (lutas das mulheres). A participação das mu- através do trabalho doméstico e da reprodulheres na produção para o mercado, o acesso a ção, não parece operativa para as sociedades níveis de estudos idênticos aos dos homens, o pré-classistas. Há que discuti-la caso a caso, discurso burguês sobre a igualdade formal de quando se trata de sociedades classistas não todos os indivíduos, entraram em contradição Ver C. DURAND PARTISANS  n. 54-55; Etre exploitée, obra com o estatuto de opressão das mulheres, tan- 23 de um coletivo italiano.

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capitalistas. Mas não serve para o capitalismo. Exploração implica extração de mais valia no mercado da produção mercantil e separação radical entre o proprietário do capital e o trabalhador. Nada disso se dá no caso do trabalho doméstico. O seu destino é operar no âmbito doméstico, sem nenhum critério de rentabilidade e, portanto sem ser produtivo (no sentido marxista do termo). Pode se admitir que o marido representa a força de trabalho da sua esposa através do seu próprio salário, mas os seus interesses não são radicalmente contraditórios; ambos são juridicamente proprietários do salário do marido, dos bens produzidos em casa, e nenhum dos dois está interessado em diminuir a parte do outro. Para alem do mais, o esposo aguarda um serviço; não está diretamente interessado na produção da esposa: pouco lhe importa que a lavagem de roupa se realize em uma ou duas horas, desde que seja feita; e quando toda a roupa estiver lavada, não irá buscar roupa suplementar na casa do vizinho só para que sua mulher se mantenha ocupada.

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tatuto desvalorizado a todas as mulheres, em todos os níveis da sociedade civil. Não fazia falta uma grande imaginação criadora. Bastava manter, adaptando-a  a opressão milenar, com o apoio ativo dos que extraem vantagens materiais e morais indiscutíveis, em qualquer classe social. Os homens encontraram-se com um estatuto coletivo de opressores garantido, com migalhas de mais-valia (salários mais elevados), privilégios sociais (não realizar o trabalho doméstico) e ideológicos.Este último provoca nos mais explorados sentimentos do tipo dos do pequeno-burguês colonialista face aos naturais do país colonizado, que constituem um fator importante no mascaramento da consciência de classe. No interior de cada classe os seus interesses históricos são idênticos (se bem que pudéssemos questionar-nos sobre os interesses contraditórios das mulheres burguesas). Mas conjuntural e concretamente as coisas são de outra forma: competição pelo emprego, especialmente sentida em períodos de crise; competição pelo acesso a lugares importantes; competição no mundo político ou sindical um dos bastiões masculinos mais defendidos... As relaAlgumas feministas falaram de ções sociais entre homens e mulheres encaixam mal no marco de conceitos exploração das mulheres pelos pré-estabelecidos. Falar de escravidão homens através do trabalho doou servidão supõe não entender a liméstico. berdade jurídica, a igualdade de que gozam as mulheres hoje. Os homens estão dotados, desde o nascimento,   Excluir o conceito de exploração não de uma situação global de privilégio em relação nos leva a ver na dominação masculina um às mulheres da sua classe e, em certos aspectos mero atraso de consciência . Vimos como o ca- em relação a todas as mulheres. Torna-se esclapitalismo tem funcionado com super explora- recedora uma analogia parcial com as minorias ção do trabalho feminino, com as poupanças raciais (do tipo das dos Estados Unidos), com a conseguidas graças a ele para a manutenção diferença enorme de que no dito caso a opresda força de trabalho global. É evidente que a são não individualmente: cada branco não tem mediação necessária é a atribuição de um es- o seu negro para dominar. Se acrescentarmos

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que a antiguidade desta opressão, juntamente com a imediatez da relação homem/mulher, que lhe confere um papel primordial na estruturação da personalidade individual, poderemos afirmar a sua capacidade para permanecer para além das relações de produção capitalista, e inclusive para além da família atual. Os conflitos entre os sexos (se bem que fragmentados pela luta de classes) existem, podemos vê-los todos os dias. Que a evolução interna do capitalismo tenha proporcionado parcialmente uma base objetiva e contraditória para a sua superação; que a destruição do sistema amplie esta base objetiva: tudo é evidente. Mas ainda que Marx e Engels dificilmente pudessem tê-lo compreendido, o fator subjetivo, a luta autônoma das mulheres, é o determinante.

O Feminismo, marxismo?

superação

do

 Há quem, em nome da luta independente das mulheres, tenha recusado o marxismo por inadequado . Poderemos classificar brevemente estes novos enfoques metodológicos em duas grandes correntes. A primeira critica o marxismo como economicista e pela sua incapacidade em explicar os conflitos entre os sexos. A segunda pretende completar o marxismo com uma teoria sobre o modo de produção patriarcal, supostamente paralelo ao capitalismo. Como não podemos explicar aqui os distintos matizes das teses colocadas, limitar-nos-emos a referir-nos àquelas que na França dão coerência às correntes do feminismo organizado.   O grupo “Psicanálise e Política” apresenta-se desde a sua criação como portador de uma teoria nova, que realizaria a fusão do marxismo e da psicanálise. Considera que o marxismo contribui com um conjunto de con-

ceitos úteis: exploração, poder de Estado, luta de classes, imperialismo, bem como uma análise das relações dos homens (masculinos) entre eles. A psicanálise, reinterpretada e socializada pelas chefes  do grupo, proporciona o fundamento metodológico para a análise das relações entre os sexos. O enfoque é o seguinte: a diferença sexual induz uma relação de cada um com o seu corpo que é diferente consoante o sexo, que por sua vez induz uma relação antagônica com o simbólico. Já o grupo MLF pensa, como Lacan, que o âmbito do poder, do fazer, da palavra construída é masculino, enquanto a resistência ao poder, o discurso inarticulado do corpo, a imediatez da vida são feminismos. O campo social está estruturado por esta polaridade simbólica; os homens levaram as mulheres a renunciar á sua verdadeira identidade e a entrar no modelo dos valores patriarcais (racionalidade, poder...). Desta forma, a sociedade atual é a sede dos conflitos que se desenvolvem paralelamente, se bem que um sobredetermina o outro: a luta de classes que os homens desenvolvem entre si, expressão do seu gosto imoderado de submeter o vizinho; a revolução simbólica assumida pelas mulheres mais conscientes para encontrar a sua identidade, subverter a ordem a ordem patriarcal e, consequentemente a sociedade capitalista que dela resulta. Esta luta só pode ser levada a cabo através de uma separação radical com os homens, a independência erótica e política .

 Porque razão esta corrente – perdendo influência mais por razões políticas que teóricas – conseguiu seduzir muitas mulheres, sobretudo nos meios intelectuais? É inegável que oferece uma resposta a um problema abandonado pelos textos marxistas: como justificar a profundidade da interiorização, por ambos os sexos, da opressão das mulheres? De que for-

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ma explicar a persistência da polaridade sexual dos símbolos e dos valores que transcende os modos de produção? É certo que falta ao marxismo uma teoria do sujeito, considerado na sua globalidade – e na sua alienação – e não só como agente econômico. A psicanálise – ao decifrar os comportamentos individuais e coletivos – é um instrumento para o estudo da alienação, o acesso à linguagem, a estrutura da língua, o universo dos símbolos... Encontra-se fortemente marcado pela dicotomia sexual, que se afirma como um componente da estrutura da personalidade. Atualizá-lo, analisá-lo, tanto pode ter um papel corrosivo como de reforço da ordem social.É este último caso que ocorre quando se leva a psicanálise até uma filosofia do ser. Então o “conteúdo ” do inconsciente apresenta-se como uma invariante da espécie humana, e não como uma interiorização por parte do indivíduo e da coletividade de uma situação dentro de determinados limites históricos. A escola de Jung e os seus mais recentes epígonos, que pretendem encontrar os fantasmas universais da humanidade nos mitos das sociedades arcaicas e primitivas, postulam a estruturação dualista do inconscient inconscientee entre o masculino e o feminino (animus-anima). A tradução do terreno de valores, como poderá prever-se, é uma coleção de preconceitos patriarcais: mulher igual a passividade,irracionalidade, matéria... A recente obra de G DEVEREUX “Mulher e Mito” são modelo do gênero.Na sua busca de uma identidade feminina, “Psicanálise e Política” tem que reproduzir os mesmos tópicos e a mesma ideologia reacionária. Com efeito, o que pode ser uma identidade feminina? Uma relação com o corpo e com a sexualidade diferente das do homem? De acordo, se bem que não se deve esquecer que a relação com o corpo na espécie humana, não é de modo algum imediata, mas sempre determinada pela história. Temos

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que deduzir desta relação com o corpo uma diferença no psiquismo do indivíduo? Crê-lo seria cair num determinismo biologizante, e /ou na velha idéia segundo a qual as mulheres não são mais do que o seu corpo. O útero para todas as mulheres , proclama “Psicanálise e Política Política””24 . Os e as marxistas têm de recusar esta interpretação da psicanálise, e denunciar as filosofias da diferença que se desenvolvem desde há uma dezena de anos. Por parte das mulheres, também se encontra este desejo de descobrir os valores femininos como o neofeminismo americano ( BETTY FRIEDEMAM). Por parte da nova direita25, lançam-se diatribes contra as filosofias monistas , culpadas de querer pensar com conceitos universais quando nesta terra reina a diversidade (digamos desigualdade) das etnias, das religiões, dos sexos dos indivíduos. Diversidade que não poderia compreender-se melhor que através dos critérios próprios de cada grupo humano. Este enfoque faz o pensamento recuar não só para além do marxismo, mas para além da filosofia clássica. Para as mulheres é fatal, porque pense o que pensar o grupo MLF, é o mesmo discurso do opressor. Sem dúvida que esta corrente não adota até as suas últimas consequências a lógica da diferença, já que atribui uma função determinante e totalizante ao universo simbólico: ele é que reproduz as relações sociais e as sobredetermina. Não obstante, fazer depender o processo histórico de uma invariante que imobiliza dois grupos humanos numa alteridade radical é colocar a existência de dois campos de pensamento, e sobre tudo de dois campos de ação; subversão simbólica para as mulheres, luta de classes para 24 A palavra de ordem O útero para as mulheres, as fábricas para os operários; foi lançada por Psychoana Psychoanalyse lyse et Politique. 25 Ver as publicações do Club de l’Horloque.

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os homens. Pelo contrário, a força do marxismo reside no fato de ser a metodologia que permite a reconstrução dos fragmentos dispersos da opressão das mulheres (trabalho, família, valores,...) num conjunto que lhes de sentido. Introduz as mulheres na história e no social, de onde tinham sido expulsas pela ideologia patriarcal (não pela realidade). E desta forma situa as mulheres não à margem da luta de classes, mas no próprio coração da luta de classes. E não por miserabilismo, por que elas são as mais explo-

redução das diferenças entre os sexos empobreceria a humanidade, como proclamam as ideologias antifeministas e algumas mulheres. Que pensar da mutilação imposta a todos os indivíduos, obrigados a dobrar-se às normas impostas pela sociedade devido ao seu sexo, desde a atitude corporal até as idéias e comportamentos? O rancor da vítima, a necessidade satisfeita do opressor são os corolários necessários dos racismos  étnicos ou sexuais. Podemos duvidar do seu valor enriquecedor.

Estabelecer uma norma de valores femininos e masculinos é reacionário.

radas, oprimidas... Mas porque a sua opressão permite que o mistério capitalista funcione em todos os níveis e porque esta opressão remodelada pode transmitir-se a outras sociedades opressoras.

A outra crítica feita ao marxismo reprova-lhe que distribua as mulheres no seio das classes, apagando assim a unidade da sua opressão. Em alguns casos sustenta-se a formulação seguinte: toda mulher sofre uma discriminação e a mulher burguesa continua a ser uma oprimida.  As mu-

lheres enquanto grupo objetivamente explorado na sociedade dos homens formam uma categoria social à parte cujas características são as mesmas, qualquer que seja a classe em questão , escreve ANNE TRISTAN na HISTORIA DO MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO DAS MULHERES. Quanto a tal formu-

A subversão simbólica? Quem se lhe pode opor? Mas não se entende muito bem como pode levar-se a cabo fora de um processo social que ponha em jogo o conjunto das relações de produção e à margem da inserção das mulheres neste processo. Quanto ao conteúdo da subversão simbólica, os desacordos com “Psicanálise e Política” são evidentes. evidente s. Estabelecer uma norma de valores femininos e masculinos é reacionário; impô-los em nome da identidade reencontrada, tem ressábios autoritários. Acaso os homens são mulheres e vice-versa? Não há dúvidas que uns são opressores e as outras oprimidas: a relação com o mundo é notavelmente distinta... Então, a

lação, torna-se bastante fácil responder que a opressão que a opressão se manifesta de formas bem distintas num bairro popular ou numa zona residencial. Noutros casos, para fundamentar a unidade das mulheres, erige-se a família em instância determinante para o funcionamento econômico do capitalismo. A idéia é a seguinte: a reprodução da força de trabalho, vital para o capitalismo, é realizada pelas mulheres; o sistema não pode renunciar a isso sem destruir-se a si mesmo. A família reproduz as relações de produção: a existência do mundo como mercado de mercadorias baseia-se na existência de um modo

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de produção doméstico excluído deste mercado

(ETRE EXPLOITÉE , pág 128). Desde modo, todas as mulheres ficam definidas por esta função precisa, face às classes dos homens. Esta teoria parece-nos falsa em dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, autonomiza a família burguesa até ao extremo de convertê-la numa instância determinante para a perpetuação do sistema (daí o caráter revolucionário que estas mulheres atribuem à exigência do salário doméstico...). É possível um capitalismo sem família? É absurdo responder a esta pergunta em abstrato, à margem de todo o contexto histórico e geográfico. Mas em alguns períodos e em algumas camadas sociais, o sistema rompeu com o marco familiar, se bem que o tenha reconstruído depois: desmembramento da família operária nos primeiros tempos do capitalismo selvagem, proibição de constituir uma família26. Além disso, podemos ver como a terceira revolução industrial vai até uma certa socialização das tarefas domésticas. Em segundo lugar, ignora a mulher que trabalha fora de casa. Em que classe se inclui? Qual é a relação entre o seu trabalho no exterior e as suas funções em casa? Mistério... Outras feministas vão ainda mais longe. O marxismo descreve um modo de produção, porém há dois: o capitalismo, baseado na exploração do homem pelo homem (no masculino), e o modo de produção familiar, baseado na exploração do trabalho gratuito das donas de casa pelo homem, numa relação de escravidão. Ambos os sistemas, segundo CHRISTINE DURAND 26 Ângela Davis, em A Condição Feminina  CERM p.189. “Segundo a lei sul-africana, as mulheres negras que não têm emprego são expulsas das zonas brancas brancas (quer dizer, de 87% do país), incluindo as cidades onde os maridos vivem e trabalham. Quando as mulheres conseguem encontrar é-lhes frequentemente atribuída residência em hotéis em que se aplica a separação entre os sexos e, por conseguinte, a vida familiar está proibida.”

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(artigo já antigo em PARTISANS N 48-49; artigos mais recentes em QUESTIONS FÉMINISTES) são teoricamente independentes um do outro. Também a isso opomos duas objeções essenciais. Primeiro, não se pode falar de exploração no caso do trabalho doméstico, pelo menos no sentido marxista do termo, como já dissemos antes. Se o fato de pertencer à classe mulher  se  se baseia no trabalho doméstico que se realiza para um homem, basta permanecer solteira para se excluir da condição de explorada? Segundo a coexistência de dois modos de produção é, na atual etapa do capitalismo, uma pura ilusão. Havia que demonstrar que a família é uma unidade econômica que funciona na base de uma lógica específica, à margem do capitalismo. Porém tudo indica que a evolução desta estrutura se dá em estreita dependência com as exigências, a evolução, as evoluções do sistema. Na realidade todas as teorias que afirmam a superação do marxismo têm um ponto em comum: dão uma visão estática da realidade, desprovida de toda a perspectiva histórica. Eis aqui a opressão das mulheres, tal como a eternidade a estabeleceu... E se bem que sobre a questão da mulher não seja suficiente ler MARX, o método marxista (a historia fazendo-se por superação de contradições sucessivas) constitui um instrumento insubstituível.

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Por onde passa a História da 1 Luta das Mulheres Nalu Faria2

   o     d    n    e    s    o     R    a     é    r     d    n     A

Fórum Social das Américas, Paraguai/2010.

A luta das mulheres mostra a sua presença em todas as experiências de lutas e resistência dos povos oprimidos, embora, na maior parte da história, as representações predominantes apresentem as mulheres dentro de casa e sem nenhuma participação pública. No caso da América Latina, aqui e acolá, aparece a figura de mulheres excepcionais. E quase sempre o relato é que participaram das lutas a partir da relação com um marido ou amante. Na verdade ainda está oculto que desde as lutas anticoloniais e anti-escravidão as mulheres indígenas e negras lutaram ombro a ombro com os homens.

A permanente e continuada a presença das mulheres nos processos de luta. Desde a participação já conhecida em processos como a Revolução Francesa, em 1789, a Comuna de Paris, a Revolução Russa, etc. O movimento feminista, a partir da organização das mulheres reivindicando direitos à igualdade data, mais ou menos, da segunda metade do século 19. Neste período, organizou-se um movimento de mulheres burguesas e de classe média, chamadas de sufragistas. Elas lutaram pelo direito ao voto, a estudar e a exercer determinadas profissões. Ao mesmo tempo, as trabalhadoras se organizaram nos sindicatos e desde o início das organizações socialistas houve a presença das mulheres. Essa organização encontrou resistência e oposição de vários homens militantes. Eles argumentavam que o lugar adequado para as mulheres era a família e, decorrente disso, que as mulheres eram ladras de emprego. Por outro lado, é importante ressaltar que a história está cheia de exemplos de homens que defenderam o direito das mulheres à igualdade, inclusive participando dos embates, por exemplo, dentro da 1ª e da 2ª Internacional. O movimento de mulheres sufragistas tensionou positivamente, forçando os partidos socialistas a realizar o debate sobre a participação das mulheres. Na 1ª Internacional o debate foi permanente, embora não necessariamente todos os socialistas tivessem a mesma posição. Marx e Engels defenderam o direito das mulheres ao trabalho e também situaram 1 Texto extraído de “O feminismo é uma prática: reflexões com mulheres jovens do PT”. 2 Psicóloga, coordenadora da Sempreviva Organização Feminista e integrante da Secretaria Nacional da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil.

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a questão da opressão das mulheres como za boa parte da classe? Porém, prevaleceu a uma questão histórica e não como produ- posição de que deveria ser uma organização to da biologia. Apresentaram forte crítica socialista específica e que a classe era a quesà família patriarcal e burguesa.  No entan- tão determinante. to, influenciados pelo momento conjuntural, o que apontaram como futuro da família se mostrou uma Queriam abolir o trabalho doavaliação simplista. Pensavam que méstico, por um lado coletivo o como a grande produção industrial proletarizou as mulheres levandoque é positivo: pelas creches, la-as para o espaço público, isso havia vanderias etc. criado as bases para a destruição da família. No entanto, o capitalismo conseguiu reorganizar uma família Os temas em debate se relacionavam burguesa para seus interesses. August Bebel, que escreveu um livro sobre a mulher e o so- ao direito ao trabalho. Os marxistas defencialismo, foi o primeiro que sistematizou um diam o direito das mulheres ao trabalho reponto de vista socialista sobre a situação das munerado, mesmo encontrando oposição mulheres. Tentou imaginar o que seria, no so- em outros setores. Também prevaleceu a crítica à família e ao trabalho doméstico, visto cialismo, a vida das mulheres. como algo pesado, rotineiro e escravizante Em todos os processos grevistas que se que deveria ser abolido. Queriam abolir o tradesenvolveram desde a última década do sécu- balho doméstico, por um lado coletivo o que lo 19 até os anos de1920 (inclusive no Brasil), é positivo: pelas creches, lavanderias etc. Não era expressiva a participação das mulheres. In- entravam na discussão que uma parte do traclusive muitas greves foram deflagradas pelas balho doméstico continuará em casa (depois mulheres e muitas a partir da denúncia da vio- que as crianças saem das creches, vão para as casas dar trabalho). Portanto, não aparecia lência sexual. a idéia de que os homens deveriam dividir o Os partidos socialistas, principalmente trabalho doméstico, apenas que deveria hana Rússia e Alemanha, debatiam se as mulhe- ver a socialização das tarefas domésticas para res deveriam se organizar num movimento liberar as mulheres. autônomo ou dentro do partido. Prevaleceu Eram absolutamente críticos à prosa proposta de organizar por dentro do partido. Muitos socialistas alemães e russos ti- tituição. A prostituição era vista por dois nham a convicção de que não iriam fazer a pontos de vista: de que as mulheres se prosrevolução sem organizar as mulheres. Havia tituíam por falta de opção de trabalho, poruma questão objetiva de que as mulheres tanto uma questão econômica, mas também eram a maioria do operariado. Se a classe questionada do ponto de vista da hipocrisia operária é a vanguarda da revolução, como é em relação à sexualidade, e com a questão que se organiza a revolução se não se organi- da família.

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Sobre o histórico do 8 de março

nização de um movimento autônomo das mulheres, consolidou o e conhecimento das mulheres como sujeitos políticos e construiu um arcabouço teórico que questionou vários dos paradigmas dominantes do conhecimento teórico.

As pesquisas feministas sobre a história do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, revelaram que sua origem é parte das lutas e militância das socialistas. Sua história remonta ao “Woman’s Day ”, iniciado em 1908, Neste momento conviveram várias posidedicado à luta pelo direito ao voto feminino, organizado pelas socialistas estadunidenses. ções onde o setor socialista fez o esforço de arClara Zetkin, na II Conferência Internacional ticular as dimensões da opressão das mulheres das Mulheres Socialistas, em 1910, propôs ins- com a opressão de classe e, portanto, colocar taurar um dia internacional das mulheres, se- a questão do feminismo e socialismo. Há granguindo o exemplo das socialistas americanas. de contribuição sobre feminismo e socialismo Nos anos seguintes, na Europa, se espalharam vinda dessa segunda onda. Muitas autoras as comemorações do dia internacional da tentaram avaliar os limites de Marx e Engels, mulher ainda sem data fixa, e nem sempre a os avanços do marxismo, como enfrentar seus mesma para todos os países. Mas sempre com limites, se o marxismo era adequado para explireferência no direito ao voto feminino como car a opressão das mulheres, o debate sobre o parte da luta por emancipação das mulheres. patriarcado etc. Em 1917, na comemoração desse dia, um 8 de março (23 de fevereiro no calendário ortodoxo), as operárias rusDe forma geral, pode-se dizer sas entraram em greve e iniciam um que havia a influência de uma viamplo processo de luta que deu início à revolução de fevereiro. Em 1921, são socialista e classista. na Conferência Internacional das Mulheres Comunistas, se propôs a data do dia 8 de março como o Dia InterEssa onda do movimento feminista teve nacional das Mulheres, lembrando a iniciativa como grande mérito afirmar a compreensão das mulheres russas. da opressão específica e, portanto, enfrentou o debate da contradição colocada pelas relações  A segunda onda do movimento sociais entre mulheres e homens e teve como resultado uma forte politização do privado. feminista Mas fruto das contradições e limites da esquerNos anos 1960 se inicia a segunda onda da socialista, e também das correntes radicais e do movimento feminista, que incorpora seto- autonomistas do feminismo, a partir de um deres de classe média e mulheres profissionais terminado momento prevaleceu uma visão de na Europa e Estados Unidos. Essa retomada direitos individuais, dentro de uma perspectiva trouxe várias contribuições, das quais se des- de incorporar as mulheres ao modelo e pouco tacam a afirmação da necessidade de orga- questionamento global.

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Feminismo na América Latina A segunda onda do movimento feminista chegou à região nos anos 1970. Muitas análises tratam da complexidade deste processo, levando em conta as especificidades de nossa situação política e cultural.

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vimento. Estamos recuperando um campo mais de esquerda no movimento neste último período. O Brasil foi um dos países em que conseguimos manter uma referência de feminismo e socialismo durante esse período e as mulheres do PT têm um papel importante nisso.

Um aspecto comum para vários países é que a articulação do movimento feminista ocorreu em um contexto de ditaduras e que ele foi parte do processo de luta pela redemocratização. Dentro desse processo, houve a construção de relações com outros movimentos sociais e isso é apontado como um dos fatores pelo crescimento do debate e da organização das mulheres nos setores populares. De forma geral, pode-se dizer que havia a influência de uma visão socialista e classista. Isso definiu como prioridade ações que buscavam levar o feminismo para as mulheres dos setores populares. Mas não impediu que surgisse em vários países a tensão entre “feministas e movimento amplo de mulheres”.

Há muito o que dizer nesta história da luta das mulheres, do feminismo e as lutas de todos os oprimidos e oprimidas. Quando abordamos o tema do feminismo e a esquerda estamos tratando de uma parte das lutas e formas de organização construídas a partir da resistência ao capitalismo e de como se inseriram aí as lutas contra o machismo, o racismo e a lesbofobia.

Na América Latina, essa segunda onda se ampliou para os setores populares, para as mulheres negras, as camponesas, mas isso não significa a inexistência de conflitos. Tampouco o movimento feminista se desenvolveu de maneira linear desde quando começou a segunda onda. Nos 1990, houve um esvaziamento do debate de esquerda, perda de radicalidade e institucionalização do mo-

FARIA, Nalu. El Feminismo Latinoamericano y Caribeño: Perspectivas frente al Neoliberalismo. In Mujeres Y Cambio: Construir alternativas en la Lucha. São Paulo. REMTE – Rede Latinoamericanas de Mujeres Transformando a Economia. Enero, 2006.

Bibliografia COTE, Renée (1984). La Journée internationale des femmes ou les vrais dates desmystérieuses originis du 8 de mars jusqui’ici embrouillés, truquées, oubliées: la chef des énigmes. La vérité historique. Montreal: Les éditions du reue ménage.

GONZÁLEZ, Ana Isabel Alvarez. Los orígenes y la celebración del Dia Internacional de La Mujer, 19101945. KRK ediciones. Oviedo. 2000. SILVEIRA, Maria Lúcia. 8 de março: em busca da memória perdida. In Feminismo e Luta das Mulheres. São Paulo. SOF. 2008.

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Eleições 2010: Conservadorismo e Religião Janeslei Aparecida Albuquerque1

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3ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, Brasil/2010.

As eleições que vivenciamos em 2010 foi um processo sórdido e macabro que jamais tinha se vivenciado na história da República. Esta é a tese comum a muitos analistas que acompanham processos eleitorais há décadas. Não há lembrança de outra eleição em que a mentira, a calúnia, a difamação, a tentativa de destruição de reputações tenha sido usada de forma tão descarada, tão impune, tão violenta. A internet foi o meio pelo qual centenas de mentiras, as mais absurdas, circularam como verdade e numa velocidade nunca antes vista.

O tema do aborto que dominou o segundo turno, já havia sido levantado pela candidata Marina Silva em 2009. No segundo turno, um problema que é de saúde pública e de caráter privado passou a ser tratado como se fosse do interesse público e dominado pelo argumento religioso. Não há como não enxergar que o elemento detonador dessa guerra foi o fato de termos, no segundo turno, uma candidata mulher disputando contra um homem.

Controlar o corpo feminino oprimi-lo, tem sido a base de sustentação do patriarcado nos últimos seis mil anos. O uso de instrumentos como o cinto de castidade, são exemplos materiais do exercício desse controle. A opressão da mulher está na base da organização de muitas denominações religiosas e, se estende para outras instituições. A Inquisição, da qual Bento XVI é herdeiro, teve sua base teológica, ideológica e filosófica em Tomás de Aquino (Séc. XII) inspirado em Santo Agostinho (Séc.IV): ambos pregaram com veemência a tese da inferioridade da mulher. Não por acaso muitos historiadores afirmam que a perseguição e a morte de milhares de mulheres pela inquisição nada teve de loucura ou desvario: foi parte de um premeditado e detalhado projeto de centralização de poder na Europa. Sempre que as sociedades se movimentam rumo a uma restauração conservadora, o primeiro alvo são as conquistas no campo dos direitos civis do exercício livre da sexualidade. Cynthia 1 Diretora da Secretaria Educacional da APP-Sindicato, Mestre em Educação pela UFPR, Professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino e integrante da Marcha Mundial das Mulheres.

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Semiramis em um artigo formidável sobre esse tema lembra que:  [...] feministas foram perseguidas pelos nazistas, que tinham uma visão extremamente limitada: mulheres deveriam obrigatoriamente ser mães, portanto estudos superiores e creches foram limitados, e aborto e métodos contraceptivos foram proibidos. O discurso feminista de emancipação das mulheres foi atribuído aos judeus, aumentando os motivos para persegui-los. A política nazista é anti-feminista, como bem demonstrou Kate Millett.2

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Essa restauração conservadora experimentada nas eleições de 2010 colocou os direitos civis em questão. O debate político sobre se queríamos ser um país soberano ou dependente dos EUA, se as reservas do Pré-sal seriam do povo brasileiro ou das petroleiras norte-americanas, sobre erradicar a miséria ou fazer os ricos ficarem mais ricos, sobre a educação ou a saúde pública, foi substituído pela discussão bizarra se a Dilma ou seu opositor eram a favor ou contra o aborto. Contra ou a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo e outras questões da vida privada que não cabem a um estado laico discutir como pauta eleitoral.

Nesse movimento pôde-se perceber com clareza a emergência da força e do trabalho eminentemente político realizado por muitas igrejas nas últimas O mais grave disso tudo é que décadas. Muitas fazendo política, disesse Estado laico, uma conquisputando poder, espaço, poder econôta da modernidade, foi colocado mico. O resultado concreto é que as bancadas do poder – secular e mateabaixo. rial – evangélicos na Câmara Federal elegeram cerca de setenta deputados federais! O mais grave disso tudo é que esse Muitas igrejas tornaram-se substitutas Estado laico, uma conquista da modernidas Associações de Moradores, das Associações dade, foi colocado abaixo. O padrão de mede Bairros, das Comunidades Eclesiais de Base, dida de um bom ou mau governante deixa dos Núcleos Partidários e outras organizações de ser seu compromisso com a superação da sociais declaradamente políticas. Muitas igrejas miséria, ou com a implementação de polítifazem política dia e noite, muitas invadiram o cas públicas e passa a ser o compromisso que espaço da concessão pública de rádio e TV de a candidata ou o candidato assume com as um Estado Laico! E nessas eleições, mais que crenças religiosas. Com a pauta, portanto, de em nenhuma outra, vimos o engajamento po- um Estado Teocrático. lítico-partidário de religiões que se tornaram Essas eleições fizeram o debate feminista partidos políticos sem as obrigações dos partidos políticos, e sem as sanções e fiscalizações a retroceder ao século XVII. O Estado novamente teve que prestar contas a autoridades relique estes estão sujeitos. giosas. De muitas regionais da Igreja Católica partiram a distribuição de panfletos contra a 2 Disponível em: http://cynthiasemiramis.org/2010/12/07/ feminazi-ignorancia-a-servico-do-conservadorismo

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candidatura de Dilma Roussef, como qualquer comitê eleitoral. Em memorável artigo no site Carta Maior, o professor Emir Sader reflete sobre política e religião:

herdeiros do fascismo nem do nazismo que estão assumindo o poder. Mas há um movimento reacionário que avança de modo progressivo sobre o imaginário juvenil. E nessas eleições no Brasil, vimos que esse movimento não é exclusivo da Europa ou dos Estados Unidos que tem lá seu Tea Party 4.

Um Estado democrático, republicano, é um Estado laico e não religioso, nem étnico. Que não estabelece diferenças nos direitos pelas opções privadas das pessoas. Ao conMuitos de nós que lutamos contra a ditatrário, garante os direitos às opções priva- dura, que fomos às ruas pela Anistia, ficamos das das pessoas. Nestas deve haver a maior estupefatos vendo a juventude ser convenciliberdade, com o limite de que não deve da de que os que lutaram contra o regime de prejudicar a liberdade dos outros de fazearbítrio e violência eram “terroristas”, bandirem suas opções individuais e coletivas. (...) dos. Ser convencida de que os torturadores é Misturar religião com política, ter Estados que estavam certos, eram os heróis! religiosos – Irã, Israel, Vaticano, como exemplos – desemboca em visões ditatoriais, até De repente, os torturadores são anistiamesmo totalitárias. Na democracia, os didos politicamente por parte dessa geração, e reitos individuais e coletivos devem ser garantidos para todos, igualmente. Ninguém as vítimas passam a ser condenadas! E o que deve ter mais direitos ou ser discriminado, aconteceu? Vivemos 21 anos de regime milipor suas opções individuais ou coletivas, tar que acabou há apenas duas décadas e a desde que não prejudique os direitos dos  juventude de hoje já não sabe nada sobre a ditadura? Nos perguntamos: a escola não tem outros. 3

nada a ver com isso? Qual é nosso compromisso com a História para que nossas tragédias não se repitam?

Qual é nosso compromisso com a História para que nossas tragédias não se repitam? O que se percebe é que diversas forças conservadoras organizadas e tendo todos os grandes meios de comunicação e toda a imprensa como seu porta voz, aliados a igrejas, somando a uma educação cujo currículo que não estuda a história recente do seu país, os  jovens vem sendo paulatinamente conquistados pela pauta conservadora. Não são os 3 Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/templates/ postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=398.

As manifestações de xenofobia, racismo e preconceito que invadiram as redes sociais depois do resultado eleitoral são motivo de escândalo e horror pelo conteúdo fascista que contêm. Os espancamentos de homossexuais em São Paulo mostram que a candidatura conservadora dialogou com esse espectro social da intolerância e do sectarismo fortalecendo-o. 4 Movimento social e político populista, conservador, de ultra direita, surgido nos Estados Unidos em 2009, através de uma série de protestos coordenados tanto no nível local como nacional. O movimento defende uma política fiscal conservadora e o originalismo, isto é, a interpretação do texto constitucional segundo o seu significado à época em que foi adotado.

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A tentativa de assassinato da deputada democrata, Gabrielle Gittords, nos Estados Unidos, porque defendia leis imigratórias mais brandas e um sistema de saúde que atendesse minimamente os mais pobres, mostra que esse discurso tem feito mais vítimas do que podemos supor. O movimento Tea Party   está sendo responsabilizado pela sua pregação de intolerância contra os imigrantes e pelo racismo delirante que prega. E a maior vítima é a democracia, as liberdades e os direitos sociais conquistados. Além da pessoa que ficou entre a vida e a morte.

Pensar somente em si mesmo, competir e eliminar o concorrente, assim como o retrocesso no campo dos costumes e a retomada da demonização do aborto e do estado atrelado ao poder religioso, indicam que temos uma larga e difícil tarefa pela frente. Uma sociedade sem violência exige mulheres e homens solidários, que se preocupem por justiça, por igualdade. Por que estes temas ganharam tamanha repercusão durante as eleições? E diante de tudo isso que vivenciamos, urge perguntarmos: que mundo queremos para nós, para nossos filhos e netos, para as novas gerações que chegam a cada dia?

Pudemos observar que há, por parte da extrema direita, um avanço na guerra de posições descrita por Gramsci nos Cadernos do Cárcere. Só que num processo contrário àquele desejado e desenhado pelo militante comunista italiano. Ao contrário do que ele propunha, não tem sido as forças da esquerda, nem o ideário progressista da solidariedade e da justiça social o que tem ganhado posições, e sim a negação disso tudo.

No espaço da escola, território de luta e partilha que nos cabe, temos a tarefa de construir a democratização da sociedade, do conhecimento. Construir a experiência e a vivência da liberdade, do respeito à diferença e sua valorização. Educar, ser educador, vai além da sala de aula e seus conteúdos. Vai além dos muros porque a escola não está sozinha, e como parte dessa sociedade tem que ter com ela um diálogo que seja humanizador e que faça valer a pena o ofício de ensinar. E de aprender todo dia.

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Feminismo, Prática Política 1 e Luta Social  Tatau Godinho2

   r    a     l    c    n     i     Z    o     ã    o     J

3ª Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, Brasil/2010.

Para iniciar um debate sobre o feminismo, um bom ponto de partida é explicitar a definição do que compreendemos como feminismo. O feminismo é a teoria e a prática da luta pela libertação das mulheres. Dito de outra forma: é a teoria e a prática, a ação política para construir uma sociedade igualitária entre mulheres e homens, ou seja, para construir relações igualitárias, romper com as desigualdades das relações sociais de sexo ou de gênero. Sinteticamente, essa definição indica um campo com o qual nosso feminismo se identifica.

Orientado para o debate, este texto buscará apresentar, de forma resumida, alguns dos aspectos que fundamentam a perspectiva de um feminismo que se define como parte essencial de uma proposta de mudança radical, anti-capitalista e libertária. Uma visão de que o feminismo se constrói como luta, como disputa política. Um processo de luta e de disputa social que se expressa na prática cotidiana e em um projeto de futuro; uma prática social e política fundada na perspectiva de construção de uma igualdade efetiva e global das relações sociais, tendo as relações entre mulheres e homens como o prisma que ilumina a análise da sociedade e a perspectiva de transformação. É exigência do feminismo a construção de uma prática fundada em forte coerência entre o que é nossa vida pública e nossa vida privada; o que é nossa atuação pública e nossa vida privada. Não apenas para as mulheres. Uma das contribuições mais importantes que o feminismo trouxe para a sociedade como um todo, e para a esquerda em particular, é a reafirmação de que nossa proposta de transformação social não pode se restringir a uma transformação do mundo público. Não se pode aceitar de forma acrítica a existência de contradições entre o que defendemos na esfera pública e o que é nossa vida pessoal, nosso cotidiano.

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Texto utilizado na formação com mulheres jovens do PT. Org. Fernanda Papa e Flavio Jorge São Paulo, 2008. Doutora em serviço social pela PUC-SP e militante feminista do Partido dos Trabalhadores.

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Da mesma forma, a proposta de uma transformação radical das relações entre mulheres e homens não pode prescindir de uma perspectiva de construção de relações sociais sem opressão e exploração econômicas; sem a superação das diversas formas de discriminação e desigualdade social. Por isso, um feminismo radical e coerente identifica-se com uma visão de mundo anti-capitalista e com o combate às distintas formas de desigualdade social. Em momentos centrais da luta socialista aparece com destaque a idéia de construir um novo homem e uma nova mulher. Nos primeiros anos da Revolução Russa, ou em textos de Che Guevara, para mencionar duas referências importantes na história da esquerda, esse ideal é destacado como um dos desafios na construção de uma nova sociedade. Mas até onde a esquerda encarou esse desafio como a possibilidade de uma igualdade radical entre mulheres e homens?

 VISÕES DE FEMINISMO Por que ressaltar a importância de definir feminismo? Porque a definição que temos de uma determinada questão, de um determinado problema, é parte central da compreensão que orienta nossa ação. Fundada na compreensão do que é a desigualdade entre mulheres e homens, e do que se busca alterar, ela orienta nossa ação no mundo e, por consequência, a estratégia de luta a ser priorizada. De forma ampla, nossa visão de socialismo e de feminismo orienta nossa visão de mundo. Dependendo da forma como se entende a opressão das mulheres, como se entende a desigualdade, busca-se construir um tipo de movimento, de atuação política visando a uma perspectiva de mudança. Decorrente dessa compreensão do feminismo, alicerçada na

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integração entre teoria e prática pela libertação das mulheres, não se vê feminismo e movimento de mulheres como dois campos distintos. Feminismo é a ideologia e a prática que orienta, que conforma, que constrói o movimento de mulheres; ou ele é um pensamento estéril. Afinal, qual é o sujeito dessa luta? Qual é a perspectiva dessa mudança? Defendemos uma visão de feminismo, de movimento social, profundamente vinculada à realidade do conjunto das mulheres. O que não significa fechar os olhos à desigualdade entre mulheres. Mas significa, sim, conceber a ação política desse movimento, seu pensamento, a visão de mundo daí decorrente, diretamente vinculados às questões concretas vividas pelas mulheres em seu cotidiano e engajados na proposta de transformação global da vida das mulheres. Essa não é, com certeza, a única visão de feminismo. Existem distintas concepções de feminismo e de construção do movimento, tanto no próprio movimento de mulheres como na sociedade. Podemos encontrar diversas perspectivas do que seja o feminismo. Aqui mencionamos duas visões, com as quais nos deparamos diversas vezes, e consideramos que limitam profundamente o projeto feminista como proposta de mundo e de mudança social. Uma primeira concebe a ação feminista prioritariamente nos marcos de direitos iguais para mulheres e homens. Ainda que se ampliem para distintas dimensões, o horizonte da equivalência de direitos entre mulheres e homens, da equidade, sem o pressuposto de ruptura com os limites da igualdade formal que caracteriza a noção de direitos na sociedade capitalista, reduz a dimensão da transformação social indispensável para que seja possível su-

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perar a opressão das mulheres. A luta por direitos – políticos, econômicos e sociais, por direitos de reconhecimento etc. – foi e permanece como um aspecto importante da luta feminista. Afinal, a cidadania das mulheres ainda é uma cidadania limitada. Se na maioria dos países ocidentais têm-se uma aparente igualdade formal entre mulheres e homens, basta fugirmos da superficialidade da análise para percebermos o quanto, mesmo do ponto de vista das normas  jurídicas e legais, os direitos das mulheres são negados. A inexistência do direito ao aborto é a maior evidência. Mas o que se questiona é a perspectiva que coloca como horizonte da luta social a igualdade formal e, portanto, prioriza em qualquer momento os marcos da legislação como o caminho principal de mudança.

-se em uma interpretação culturalista da desigualdade entre mulheres e homens; assim, a mudança de consciência aparece como que desvinculada de práticas sociais e das bases materiais que fundamentam a desigualdade. Tal interpretação arrisca-se, além disso, a se posicionar em uma fronteira, nem sempre explicitada, em que os padrões de mudança são considerados inacessíveis às mulheres comuns. Levando ao extremo, na verdade, para alguns e algumas, o feminismo só pode existir como um modo de vida de classe média (intelectualizada ou semi-intelectualizada); inalcançável na dura realidade vivenciada pelas mulheres mais pobres, mulheres populares, mulheres da classe trabalhadora. Que em última instância podem até ser do movimento de mulheres, mas “feministas” nunca vão ser.

Não se trata aqui de minimizar a Que em última instância podem importância da construção da consciência política, neste caso da consciênaté ser do movimento de mulhecia política feminista. A mudança na vires, mas “feministas”nunca vão ser. são de mundo, a ruptura com práticas sociais discriminatórias, a superação ideológica da visão de mundo sexista, Uma segunda visão é a que define o foco da lógica machista que impregna o nosso cotida ação feminista nos processos de transfor- diano e a própria construção de nossa persomação pessoal, individual, de modo de vida. nalidade é central no feminismo. É um desafio Portanto, um processo de transformação em que exige uma postura crítica permanente aos que a experiência pessoal, as possibilidades valores e práticas aprendidos por mulheres e de estabelecer um modo de vida pessoal al- homens. Aliás, uma das grandes contribuições ternativo é o que define a identidade com o do feminismo foi o desvendamento da dicotofeminismo. Nos limites deste texto, de maneira mia entre o mundo público e o mundo privado; rápida, podemos apontar dois questionamen- a exigência de se perceber que o pessoal tamtos a essa definição. Afasta-se de uma perspec- bém é político; cobrando da sociedade integrativa de mudança social geral, concentrando-se ção capaz de transformar de forma libertária o nos processos de transformação pessoal, que que são consideradas duas esferas. Importa ensão importantes, mas ganham sentido global fatizar, portanto, aqui, o sentido de transformaquando se inserem na luta por transformações ção integral e coletiva, no qual a perspectiva do coletivas. Além disso, em geral, fundamenta- feminismo como luta social busque incidir, de

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forma concreta, sobre as diversas dimensões das contradições sociais que conformam a desigualdade entre mulheres e homens, expressas no âmbito da vida privada e das relações pessoais e conformadas como práticas sociais coletivas. Esse resumo com certeza não dá conta das diferenças de nuances entre as distintas interpretações de feminismo, mas nos ajuda a refletir sobre as opções de construção da militância feminista.

FEMINISMO MILITANTE, SOCIALISTA, RADICAL 

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Se entendemos que a opressão das mulheres, assim como a questão de raça-etnia, é central na estruturação da dominação capitalista, e da teia de subordinações/hierarquias que conformam as relações sociais, nossa concepção de feminismo busca estruturar uma ação militante que combina, de maneira permanente, a luta contra as diversas formas de dominação. As estratégias de luta e as prioridades de ação se pautam por essa compreensão, uma vez que não é possível construir a igualdade entre mulheres e homens sem romper com a desigualdade de classes, de raça-etnia; sem romper com os diversos aspectos da desigualdade e da discriminação social que estruturam as relações de poder na sociedade.

Se o projeto político global que defendeNesse sentido, a ação feminista precisa mos é um projeto no qual a mudança, a construabarcar as distintas formas como a opressão ção de uma igualdade real entre mulheres e hoseexpressa na diversidade das condições de mens, em que o fim da opressão das mulheres vida e da vivência das mulheres. As mulheres só será possível com uma mudança do sistema  jovens, por exemplo, vivenciam de forma pargeral de opressão social, capitalista, é evidente ticular o controle sobre a sexualidade, a impoque para nós a luta é vinculada. Assim, nossa sição de padrões de feminilidade sexistas, as concepção de construção de um movimento dificuldades de decidir sobre seu projeto de de mulheres autônomo, feminista, massivo, vida e de futuro, tanto do ponto de vista das como força indispensável para garantir que a relações pessoais e afetivas quanto de suas igualdade seja parte integrante e indispensável possibilidades profissionais e de trabalho. Sua desse projeto, não abre mão da construção da organização própria, no interior do processo militância feminista dentro de organizações e de organização das mulheres, sua identificação movimentos mistos. A existência de um proces- com a luta feminista dá a essa luta a perspecso de organização das mulheres, a presença de tiva de se renovar sistematicamente e de conuma força feminista organizada, no interior dos frontar a repactuação das formas de dominapartidos políticos de esquerda, dos movimenção masculina. tos sociais de luta dos trabalhadores e trabalhadoras, das instâncias de organização e articulaPara mudar essas relações é preciso a forção das lutas sociais é fundamental para que a ça organizada de um sujeito político e social coperspectiva feminista não seja secundarizada. letivo. Nos diversos momentos históricos, foi a O que se contrapõe, com certeza, à interpreta- atuação de mulheres organizadas que permitiu ção de alguns setores do feminismo que consi- que as reivindicações das mulheres, as temáderam incompatível a militância feminista com ticas de seu interesse, estivessem presentes; a atuação em entidades mistas.

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que as mulheres ampliassem sua participação política e seus direitos sociais. A experiência da esquerda e das revoluções deixa evidente a importância da organização específica das mulheres. É decisiva a construção de um movimento de mulheres, feminista, massivo, capaz de disputar uma plataforma de mudanças sociais em favor das mulheres. Construir o feminismo como a ideologia e a prática de um movimento de mulheres, massivo, enraizado socialmente, é tarefa fundamental na disputa política que nos colocamos: de construir um mundo sem desigualdade, sem opressão. Por isso defendemos o direito de auto-organização das mulheres. Sem auto-organização não se constrói esse sujeito político coletivo, capaz de propor e agir no sentido de uma mudança social. Mulheres capazes de construir sua própria história. Nesse processo de autoorganização precisamos estar atentas, também, a uma alteração crítica dos métodos de luta tradicionais, métodos viciados de militância que, muitas vezes, mais afastam do que abrem espaço para novas militantes. Sem abandonar a clareza do debate, das polêmicas reais, busca-se a construção de um espaço de solidariedade e unidade em torno de uma proposta política de feminismo que unifique as militantes, colocando em primeiro plano nossos objetivos políticos. Mais que a unidade por sermos mulheres, trata-se de forjá-la como mulheres que lutamos por um projeto político comum.  Como parte do processo de auto-organização está o desenvolvimento da autoconsciência, a auto-reflexão. A socialização de homens e mulheres é conformada pelas relações de poder e hierarquia que marcam as relações sociais de sexo. A percepção crítica de como incorporamos ou não esses valores é parte de

um processo pessoal e coletivo de mudança necessário. A consciência crítica feminista enfrenta agressiva resistência cotidiana expressa na desvalorização não apenas do conteúdo da luta, mas das próprias militantes. É nesse sentido que o combate contra o feminismo o contrapõe de forma tão direta à noção dominante de feminilidade. A desqualificação é feita pela contraposição com aquilo que se valoriza como imagem tradicional de mulher. As feministas seriam, então, mulheres mal-amadas, masculinizadas, não-belas etc. Um mecanismo recorrente de desqualificação de qualquer rebeldia e oposição aos valores hegemônicos cuja eficiência se deve ao enraizamento do padrão hegemônico de feminilidade, daquilo que é construído como identidade das mulheres, reforçada pelo apelo mercantil que atribui o valor das mulheres em função das necessidades masculinas. O desenvolvimento de uma consciência feminista, portanto, exige a construção de uma alternativa crítica radical a esse padrão de feminilidade. Crítica também necessária à definição da maternidade como função e identidade centrais das mulheres; ao padrão de relações pessoais e afetivas que reafirmam a subordinação; à heterossexualidade obrigatória; à mercantilização do corpo e da vida das mulheres, entre diversas outras questões que aqui não é possível desenvolver.

RELAÇÕES SOCIAIS, PRÁTICAS SOCIAIS E TRANSFORMAÇÃO Entre mulheres e homens são fundadas socialmente; não são as diferenças biológicas que justificam a desigualdade. E que a desigualdade entre os sexos tem uma base material ancorada na divisão sexual do trabalho.

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A análise de Danièle Kergoat nos ajuda social tem uma base material (e não apenas a refletir de forma mais sistemática. Em seu ideológica). texto “Relações sociais de sexo e divisão se- 4 – Que elas são, portanto, passíveis de serem xual do trabalho”, argumenta que os questio- aprendidas historicamente. namentos da opressão das mulheres trazidos 5 – Na afirmação de que estas relações sociais pelo feminismo permitiram ver que os “papéis repousam em princípio e antes de tudo em sociais de homens e mulheres não são produ- uma relação hierárquica entre os sexos. to de um destino biológico, mas que eles são, 6 – De que se trata, evidentemente, de uma reantes de tudo, construções sociais que têm lação de poder.” uma base material”. Central na organização social do trabalho, a divisão sexual do trabalho articula diferenNosso desafio é a construção de ciação e hierarquia das atividades soum feminismo capaz de se orgaciais, conformando um processo que, por um lado, fortalece as formas de nizar em torno de uma plataforexploração diferenciada de mulheres ma radical. e homens e, por outro, conforma padrões de desigualdade entre mulheres e homens que dão aos homens Não podemos nesse texto abarcar em posições de privilégio e poder em relação às mulheres. Por isso a divisão sexual do trabalho toda profundidade esse debate. Ressaltamos deve ser entendida não apenas em seu aspec- apenas que compreender a opressão das muto descritivo, mas como constitutiva da desi- lheres no marco de relações sociais, de práticas sociais construídas historicamente, nos leva a gualdade entre os sexos. orientar nossa militância para a organização A análise específica, particular, dessas política dos sujeitos capazes de romper com relações – das relações sociais de sexo – não estas práticas e protagonizar a construção de significa perceber o mundo de forma fragmen- novas relações: as mulheres como sujeito coletada, uma vez que se busca integrar e articular tivo em movimento. essas relações ao conjunto das relações sociais. Da mesma forma, construídas socialmenSintetizando, Danièle Kergoat explicita que essa compreensão das relações sociais de sexo te e fundadas em bases materiais, que se articulam em especial pela divisão sexual do trabalho, se apóia nos seguintes pontos: a perspectiva de mudança exige ruptura com “1 – Em uma ruptura radical com as explicações essa base material que fundamenta a desigualbiologizantes das diferenças entre práticas so- dade. O conflito, as contradições entre mulheciais masculinas e femininas. res e homens estão assentadas sobre práticas 2 – Em uma ruptura radical com os modelos su- e interesses materiais que conformam relações postos universais. de poder. Por isso a construção da autonomia 3 – Nas afirmações de que tais diferenças são das mulheres é indispensável para que se posconstruídas socialmente e que esta construção sam estabelecer novos parâmetros de relações

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sociais. Ao falar em fundamentos materiais não nos limitamos às questões econômicas que são, sem dúvida, centrais para a construção da autonomia das mulheres, pois, mantidas as relações de dependência e exploração econômica não se pode falar em autonomia. A construção da autonomia pessoal pressupõe, também, o controle sobre sua vida, sobre o seu corpo, sobre sua atuação no mundo, sobre seu tempo, o que não é dado só pelas condições econômicas, ainda que sejam condições materiais. Exemplo importante é a questão da legalização do aborto, aspecto fundamental da possibilidade de decidir sobre suas opções de vida. Processos de mudança social efetivamente libertários, como a construção de um socialismo democrático libertário, só podem existir com mudanças nas práticas sociais e nas relações entre mulheres e homens. Um dos grandes desafios que o feminismo trouxe para a esquerda foi insistir nessa questão: a libertação das mulheres, a igualdade, não é automática. Não é dada como consequência automática da ruptura nas relações de poder de classe. É fundamental que as mulheres, como

sujeito político coletivo, sejam parte integral da proposta, que a pauta feminista explicitada faça parte do projeto político de mudança. Para além do direito elementar de participar e decidir sobre seu próprio destino, porque existem conflitos reais. O conflito entre homens e mulheres não é fantasia da nossa cabeça. Nosso cotidiano, nossa militância, a história da esquerda e dos processos revolucionários são testemunho das dificuldades de se construir a igualdade. Nosso desafio é a construção de um feminismo capaz de se organizar em torno de uma plataforma radical, de esquerda, capaz de mobilizar a força massiva de um movimento de mulheres que não deixe dúvidas que a igualdade real entre mulheres e homens é parte indispensável de nossa luta.

Referência citada: KERGOAT, Danièle. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, Marta Júlia M.; MEYER, Dagmar E.; WALDOW, Vera Regina. Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

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Referência Complementar Sugestões de leitura BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. v. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado. O mito do amor moderno. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro, 2002. p. . LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Delume Dumará, 2001. PERROT, Michelle. As mulheres e os silêncios da História. Bauru: EDUSC, 2005. MARTINS, Ana Paula. Visões do Feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. MARX, Karl. O capital. Livro primeiro, Vol. 1., 12ª edição. pp. 449-459. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Castro e Costa, L. C. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PEDRO, Joana Maria. As mulheres e a separação das esferas. Diálogos, Maringá, v. 4, p. 33-39, 2000. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2003. VINTEUIL, Frederique. Marxismo e Feminismo. Cadernos democracia socialista, v. 8, 1989.

Sugestões de sites • Biblioteca Feminista

www.bibliotecafeminista.org.br • CFEMEA - Centro Feminista de Estudos e Assessoria

www.cfemea.org.br • NIEM - Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero

http://www6.ufrgs.br/nucleomulher/index.php • Revista Estudos Feministas - Instituto de Estudos de Gênero - IEG

www.ieg.ufsc.br • Secretaria de Políticas para as Mulheres

www.sepm.gov.br • SOF - Sempreviva Organização Feminista

www.sof.org.br

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Sugestões de blogs feministas • Escreva Lola escreva • Blogueiras Feministas • Machismo Mata • Quem o machismo matou hoje? • Cynthia Semíramis • Maria Frô • Desculpe a Nossa Falha • O biscoito no e a massa • O Feminismo Está a Passar Por Aqui... • Feministas sem fronteiras • Lilás com gengibre • O mal da indiferença

Sugestões de filmes • A excêntrica família de Antônia - Marleen Gorris –Holanda/Bélgica/Inglaterra - 1995. • Camille Claudel - Bruno Nuytten - França - 1988 • Lanternas vermelhas - Zhang Yimou - China / Hong Kong / Taiwan - 1991 • Transamérica - Duncan Tucker - 2005 - EUA • Desmundo - Alain Fresnot – Brasil - 2003 • Um assunto de mulheres - Claude Chabrol – França - 1988 • A cidade do silêncio - Greogry Nava – EUA/Inglaterra – 2007 • Liberdade (Libertárias) - Vicente Aranda – Espanha/Itália/Bélgica – 1996 • As Filhas Do Vento – Joel Zito Araújo – Brasil - 2004 • A bela da tarde – Luis Buñuel – França / Itália – 1967 • Je vous salue, Marie – Jean Luc Godard – França/Suiça – 1985

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