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May 8, 2019 | Author: podcre | Category: Racism, Etnia, raça e gênero, Criminal Law, Mind, State (Polity)
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A “”HERANÇA MALDITA” DO TRATAMENTO JURÍDICOPENAL DOS SILVÍCOLAS NÃO-ADAPTADOS Fábio André Guaragni, Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor dos Programas de Mestrado da UNICURITIBA e UNIPAR. Coordenador da

Pós-Graduação

em

Direito

Criminal

da

UNICURITIBA.

1- O problema: o tratamento do silvícola pelo direito penal O art. 26, caput, do Código Penal brasileiro, seguindo o sistema biopsicológico de estruturação da inimputabilidade, arrola três condições mórbidas capazes de tornar o agente que as porta inimputável: a doença mental, o desenvolvimento mental incompleto e o desenvolvimento mental retardado. Quando um destes fatores, portados pelo agente, conduzi-lo à incapacidade de compreensão do caráter ilícito do que faz (elemento cognitivo da imputabilidade) ou, alternativamente, à incapacidade de autodeterminação de acordo com a compreensão da ilicitude (elemento volitivo), é-lhe inimputável a prática de injustos penais. Afinal, a “capacidade psíquica de culpabilidade” – como se define a imputabilidade – inexiste. Nestes casos, dá-se a absolvição imprópria do agente: isento de pena, sofre medida de segurança pelo período mínimo de 1 a 3 anos, com máximo indeterminado 1. A medida de segurança, alias, não atinge a todos os inimputáveis: somente aqueles que se enquadram no rol do art. 26, caput, CP, é que são seus destinatários 2. Do rol de causas de inimputabilidade, importa dirigir a atenção àquela que menciona os portadores de desenvolvimento mental incompleto. A quem se dirige esta hipótese? Há décadas, a doutrina brasileira vem proclamando sua aplicação a dois grupos

1

- Esta indeterminação vem sendo corretamente limitada pela jurisprudência, ao estender o limite de 30 anos para execução de penas, do art.75, CP, para as medidas de segurança, bem como pela doutrina, que propõe reduções ainda maiores, como a limitação da execução da medida ao máximo de tempo de pena cominado no preceito secundário do tipo penal praticado. 2 - Assim, os menores de 18 anos estão sujeitos à legislação própria, sendo destinatários de medidas sócioeducativas; já a absolvição por embriaguez acidental completa é plena, e não imprópria.

de pessoas: surdos-mudos sem desenvolvimento cognitivo ou volitivo e silvícolas não adaptados. Nesta esteira, vem sendo perpetuada no nosso universo dogmático, ano a ano, a idéia de que o índio sem contato com nossa tábua de valores não possui desenvolvimento mental pleno, com as implicações daí decorrentes. Trata-se de uma herança maldita. Validando-se esta posição, teríamos três possibilidades quando do cometimento de injusto penal por silvícola, todas impositivas do laudo antropológico, destinado a verificar o grau de sua aculturação segundo a tábua “oficial” de valores: 1- no caso de silvícola plenamente adaptado aos valores dominantes, é imputável e sofre plenamente as conseqüências penais, havendo atenuante obrigatória derivada da condição pessoal “índio”, por força do art. 56, caput, Lei 6001/73 (Estatuto do Índio); 2- no caso de parcial adaptação, sua pena é reduzida – “ o juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola” , diz o art. 56, caput, Lei 6001/73 - podendo ser executada junto a

estabelecimento federal de assistência ao índio existente próximo a sua tribo, em regime de semi-liberdade (art. 56, parágrafo único); 3- se não possui nenhum grau de adaptação, sendo silvícola não adaptado e, portanto, portador de desenvolvimento mental incompleto, sofre medida de segurança, seguindo-se estreitamente a letra do art. 97, caput, CP, e tomando-se em conta que o Estatuto do Índio nada dispõe sobre casos de absolvição por ausência plena de integração do silvícola. Afinal, o art. 56 deste texto legal somente menciona casos de “ condenação do índio por infração penal” . 2- Crítica: o etnocentrismo europeu-colonialista e seus reflexos no

tratamento jurídico-penal do silvícola Até aqui, está gizada a posição dominante na literatura brasileira acerca da qualificação jurídica do silvícola não adaptado como portador de desenvolvimento mental incompleto e as conseqüências que daí derivam. Pelo paradigma filosófico da alteridade, todavia, flui a possibilidade de um tratamento absolutamente diverso da matéria. Parte-se do pressuposto forjado neste modelo de pensamento: a existência de cada pessoa exige a existência do outro, a partir da idéia

básica de que “eu” só existo se e quando os outros me percebem. A visão do outro, reconhecendo-me como ser no mundo, é que conforma a minha existência. Nestes termos,“eu” não existo sem o outro; nem o outro sem mim. A essência da alteridade operase no sentido de que sempre devo enxergar o “outro” em “mim”. O encaixe deste paradigma ou modelo de pensamento no ambiente do estado democrático de direito é harmonioso e simples, confortando-se na idéia corrente de que democracia é respeitar a diferença. Naturalmente,

este

desenho

das

relações

interpessoais

refoge

completamente à herança etnocêntrica 3, européia e colonialista, consistente no mito da “superioridade do homem branco”. A hegemonia européia teve início com as grandes navegações do século XVI, a descoberta do Novo Mundo e conseqüente fixação das colônias ultramarinas 4, sobretudo ibéricas, carregando a noção da superioridade cultural do homem branco, de seus hábitos, crenças, valores, sobre os povos descobertos. A consolidação do mito ocorre mais tarde, fruto do darwinismo da segunda metade do século XIX, sobretudo no projeto neocolonial inglês. Foram vitimadas, neste processo, as culturas autóctones de povos ameríndios, asiáticos e africanos. No diário que escrevia no navio Beagle, quando de sua celebre viagem às Ilhas Galápagos, DARWIN registrou sobre os habitantes da Terra do Fogo, na Patagônia Argentina: “ Nada pode provocar mais assombro do que a primeira visão de um bárbaro em seu estado nativo – um homem em seu estado mais baixo e selvagem. A mente da gente recua a séculos passados e pergunta se nossos progenitores puderam ser homens como estes homens que não  parecem ostentar razão humana. Não creio que seja possível descreve ou 3

- O etnocentrismo, segundo DUROZOI & ROUSSEL ( Dicionário de Filosofia. Campinas: Papirus, 1993, p. 171), com apoio em LÉVI-STRAUSS, é o “termo empregado (...) para designar a atitude que repudia `as  formas culturais (morais, religiosas, sociais, estéticas) que são as mais afastadas daquelas às quais nos identificamos´ ”, revelando-se perigoso quando “ chega a negar o direito do outro à diferença: resulta então no racismo, no genocídio (...) e no etnocídio (destruição da identidade cultural de um grupo étnico) ”. 4 - Segundo MICHEL FOUCAULT ( Microfísica do Poder. 18ª. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003, p. 52), o discurso racista era necessário para que os agentes da metrópole não se unissem aos colonizados, mantendo-se separada a “ plebe proletarizada” da “não proletarizada”: “E era sem dúvida para evitar que entre esses “pequenos brancos” e os colonizados se estabelecesse uma aliança, que teria sido aí tão perigosa quanto a unidade proletária na Europa, que se fornecia a eles uma sólida ideologia racista; `atenção, vocês vão para o meio de antropófagos´.”

 pintar a diferença entre o homem selvagem e o homem civilizado (...) É  maior do que a existente entre um animal selvagem e um animal domesticado”. 5

Resultou deste processo histórico uma “capitis diminutio” do índio. A partir de uma expressão etnocêntrica de superioridade intelectual do homem branco, até hoje a só condição de silvícola não adaptado vem associada a uma menor capacidade intelectual, como se o pertencer a outra cultura pudesse equiparar-se ao portar de condições mórbidas de incapacidade mental. Pior: esta visão centrada num evidente racismo evolucionista vem sendo reproduzida e perpetuada pela própria cultura jurídico-penal brasileira. Daí tratar-se de autentica herança maldita.

3- A solução pela via do art. 21, CP O índio não é portador de desenvolvimento mental incompleto por pertencer à outra cultura. Ao contrário: como qualquer pessoa mentalmente madura e sã, carrega consigo uma tábua de valores, a partir da qual compreende o certo e o errado e, após, determina suas ações acorde com o que compreende como certo. O que varia não é a capacidade cognitivo-volitiva de apegar-se a um universo de valores culturais, sintetizados mediante normas. O que muda é a própria tábua de valores. Este fenômeno, aliás, é perceptível quando se comparam quaisquer povos diversos entre si. Os valores dominantes, v.g., num país muçulmano, divergem dos nossos. Nem por isso os povos árabes possuirão capacidade mental incompleta, sob o olhar ocidental brasileiro. E vice-versa. Há, portanto, necessidade de abandonar-se a repetida noção de que o silvícola não adaptado porta desenvolvimento mental incompleto. O índio tem plena capacidade cognitivo-volitiva. O fato de internalizar uma tábua de valores diversos não a afasta.

5

- Apud FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Milênio - Uma histórica de nossos últimos mil anos. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 529.

Quando houver a prática de injustos penais por índios, é na avaliação da potencial consciência da ilicitude 6 que se dá a clivagem do tratamento penal. Em termos: 1sendo inviável que compreendesse (internalizasse) a ilicitude, por força da barreira representada pela seu próprio conjunto de valores, incidirá em erro de proibição invencível. Nestes termos, dá-se a absolvição plena, por falta de culpabilidade; 2- podendo compreender (internalizar) a norma, mediante esforços leigos viabilizados pelo seu grau de adaptação aos valores “oficiais” com os quais trabalha a legislação penal, o índio, ainda que possuidor de uma matriz diversa de valores, será condenado ao cumprimento de pena, incidindo a figura do erro de proibição evitável. O juiz, neste caso, tem a faculdade de reduzir a pena de 1/6 a 1/3, fração que aumenta tanto quanto se intensifica o patamar de esforço do silvícola para compreensão da norma infringida. Assinale-se que a expressão do art. 56 da Lei 6001/73 – “ na sua aplicação o juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola”- ganha sentido nestes termos. Afinal, quando o juiz reduz a pena em fração,

na forma do art. 21, 2ª parte, final, CP, “atende ao grau de integração do silvícola”. Ressalve-se que, havendo capacidade de entendimento plena, dá-se a condenação pura e simples, respeitada – nos casos próprios - a forma de cumprimento de pena possibilitada pelo art. 56, parágrafo único, Lei 6001/73. Com este procedimento, à vista da legislação vigente: 1- a dogmática livra-se do incômodo de manejar uma posição de raiz histórica superada, de cunho racista e etnocêntrico europeu, completamente apartada da idéia contemporânea de preservação do “outro”; 2- afasta-se a solução esdrúxula, resultante da aplicação pura das regras do art. 26 c/c 97, CP, de aplicação de medidas de segurança para o silvícola que, por não adaptado, assumia só por isto a condição de portador de desenvolvimento mental incompleto.

6

- Neste sentido, v. ZAFFARONI, Eugenio Raul, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro.  Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 2000, pp. 705-706, itens 5 e 6.

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