Escritos Clínicos - Serge Leclaire

October 20, 2017 | Author: Leandro Nogueira Dos Reis | Category: Psychoanalysis, Jacques Lacan, Sigmund Freud, Love, Image
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Descripción: Diversos escritos clínicos sobre a experiência do psicanalista e discípulo de Lacan, Serge Leclaire....

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Serge Leclaire

ESCRITOS CLÍNICOS

Tradução

Lucy Magalhães Revisão técnica:

Maria Clara Queiroz Corrêa

psicanalista doutora em teoria psicanalítica, UFRJ

Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

Título original: Écrits pour la psychanalyse Tradução autorizada de uma seleção da edição francesa, originalmente publicada cm dois volumes (em 1996 e 1998) por Éditions du Seuil/Arcane, de Paris, França Seleção de textos: Marco Antonio Coutinho Jorge Copyright © Éditions du Seuil/Éditions Arcane 1996 e 1998, volume 1 1998, volume 2 Copyright© 2001 da edição brasileira: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 240-0226 / fax: (21) 262-5123 e-mail: [email protected] site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 9.610)

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. L496e

Leclaire, Serge Escritos clínicos / Scrge Leclaire; tradução, Lucy Magalhães; revisão técnica, Maria Clara Queiroz C01Têa. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001 (Transmissão da psicanálise; 66) Tradução de: Écrits pour la psychanalysc Inclui bibliografia ISBN 85-7110-603-7 l.Psicanálise.I. Título. II. Série

01-0722

CDD 616.8917 CDU 159.964.2

SUMÁRIO

Um psicanalista em seu trabalho, Christian Simatos . . . . . . . . . . . Um psicanalista à escuta do seu século, Jacques Sédat . . . . . . . . . PARTE 1-

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ESBOÇO DE UMA TEORIA PSICANALÍTICA SOBRE A DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS

Função da mãe, fimção do pai. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Como pensar o sexo sem a a/feridade? . . . . . . . . . . . . . . . . . . Narcisismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fazer a diferença. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Entre o c01po e as palavras, o.falo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . C01po e palavra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O incesto. Fazer "com" as mulheres. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A outra coisa, o real. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O que acontece numa relação analítica. . . . . . . . . . . . . . . . . . Amar. Simbolizar o real. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . PARTE II -

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TEXTOS CLÍNICOS

1. Do bom uso da clínica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A jimção imaginária da dúvida na neurose obsessiva. . . . . . . A propósito da abulia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O aspecto psicanalítico da sexualidade infantil ...........

93 93 116 124

2. Psicoses ............................................ Em busca dos princípios de uma psicoterapia das psicoses . . Sobre o episódio psicótico apresentado pelo "Homem dos Lobos" .... ......................... As palavras do psicótico .............................

131 131 175 199

Notas ................................................ 212 Bibliografia de obras de Serge Leclaire ..................... 219 Índice remissivo ....................................... 225

UM PSICANALISTA EM SEU TRABALHO

Nos anos 80, um jornalista perguntou: "O que move Serge Leclaire"i Esta obra é, em si mesma, uma resposta a essa pergunta. Mas alguém poderia dizer que esses fragmentos variados, escritos ao longo de tantos anos, não teriam a vocação de se reunir. Entretanto, tudo está no fio, não premeditado porém muito visível, que os percorre: Serge Leclaire quer significar, manifestar o que é o trabalho do psicanalista, dar um testemunho vivo da psicanálise. E o que é ele? Essa é justamente a questão presente nestes textos, e ela exclui toda resposta pré-fabricada. À maneira de um seminário, este livro nos convida a pm1icipar dessa tarefa, fornecendo uma contribuição pessoal para o tema. Aliás, Serge Leclaire gostava de repetir que a psicanálise é uma disciplina do conflito. Intrapsíquico ou não, no conflito nada é isolado. Em sua monumental Histoire de la découverte de l'inconscient, Henri Ellenberger afirma que Freud aderia resolutamente a uma figura compósita do espírito do seu tempo, mistura de positivismo, cientificismo e ateísmo. Esses vocábulos um tanto rebarbativos dão a entender, estranhamente, que a abertura do inconsciente às luzes se misturavase chocava? - com a vontade de fazer triunfar algumas certezas. Instalando-se num terreno atulhado de preconceitos, é preciso admitir, Freud fo1jou um poderoso instrumento de emancipação. Um instrumento concebido para atacar os laços capitais que fixam o pensamento em fonnas sistemáticas, tão rigorosas que nos apegamos a elas como ao nosso próprio corpo. Na verdade, ele conseguiu construir uma via fecunda entre o seu positivismo e aquilo que ele chamava, aparentemente sem ironia, de psicologia das profundezas - trabalhando assim para manter a diferença, tão cara a Serge Leclaire que se tomou, na obra deste, um leitmotiv. Afinal, o nome de Freud acabou se fundindo com o seu produto; a palavra "psicanálise" se impôs como uma espécie de marca registrada, à qual não se tem necessidade alguma de associar um nome próprio. Os próprios junguianos tendo renunciado a essa denominação, "Freud", o nome, parecia então definitivamente incorporado ao substantivo "psi7

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canálise", e foi sob essa bandeira que o jovem Serge Leclaire encontrou seu destino de analista, na pessoa de Jacques Lacan, a quem se ligou. Lacan era de outra época. Não era positivista, nem cientificista, nem ateu, mas tinha o seu projeto: restaurar o gume, como ele dizia, da disciplina freudiana. E não lhe faltavam argumentos. Apoiava-se certamente em.Freud, de quem fez uma leitura original: sua "volta a Freud" é célebre. Mas não fez só isso. Fundando solenemente uma instituição com o nome de Escola Freudiana de Paris, poderia muito bem ter acontecido que ele praticasse uma operação consistindo em enxertar o nome de Freud no seu próprio corpo, a psicanálise. A denominação de origem se perdera nas areias do tempo? De qualquer fonna, Lacan constatava isso, à sua maneira, nessa estranha operação, a memória do nome recobrindo o nome. Não se estava longe de uma refundação, reforçada na medida certa pelo efeito da substituição da clássica palavra "sociedade" pela inovadora "escola" - uma escola não deve tratar do campo dos enxertos e não tem autoridade para fazer isso? Ora, é impressionante constatar hoje que o movimento lacaniano, que surgiu dessa refundação, está hoje à procura de suas marcas. Parece arrastar consigo, incomodamente, os efeitos dessa operação que - isso é importante - atingia a origem e o nome. Se considerannos que a repetição de inúmeras divisões manifesta o retorno do recalcado que afeta os filhos de Lacan, tudo indica que é graças a um dispendioso recalcamento que se consegue manter o enxerto. Alguns pressentem que há certa redundância em qualificar a sua casa de freudiana quando se é psicanalista, e preferem batizá-la de lacaniana. Assim, têm a possibilidade de introduzir em sua fundação argumentos de doutrina. Mas, quanto ao nome "psicanálise", a confusão é grande, a tal ponto que muitos analistas renunciam a inscrever-se de maneira formal numa instituição explicitamente nomeada e continuam, apesar de todo o desconf01to, à margem - a respeito disso, existe a transcrição de uma entrevista no rádio, na qual Serge Leclaire é acusado de manter-se à margem da organização institucional. 1 Problema de inscrição e de identidade? O nome Leclaire encobre outro nome, que foi preciso recalcar na sombria clandestinidade, sob a Ocupação. Clara e obscuramente, o percurso do analista Leclaire é uma reminiscência desse fato, referida por ele como tal. Percurso entre dois pólos, um de filiação institucional, outro de filiação marginal. Mas que se alternam, se respondem, descrevem a essencial filiação à psicanálise, sempre problemática, jamais garantida, impossível sem que se abra mão de um pouco de si, não "pagando com a própria pessoa", como se diz, mas abdicando da posição subjetiva de que dependem nossas certe-

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zas e as ideologias que elas obstruem. Uma tal operação de subversão do sujeito deve ser incessantemente reconduzida; de fato, ela só poderia produzir-se fugidiamente, à margem. Os textos reunidos aqui dão mais do que uma idéia dessa questão; eles a testemunham. Ainda mais, repito, porque não se inscrevem num plano preconcebido. Não sem aiiificios, acentuo duas datas, nem tanto por seu incontestável valor histórico, mas porque elas me parecem esclarecer a leitura sobre o procedimento do psicanalista. Em 1953, começou o tempo da filiação institucional. A psicanálise não tinha de provar sua filiação, mas estava esquecendo sua origem. Tempo de ativismo, de militantismo no seio da Sociedade Francesa de Psicanálise, isolada da internacional IPA, a casa-mãe, depois de um ato falho cheio de conseqüências. 1 A adesão de Scrgc Lcclairc foi total a esse movimento de restauração do fermento originário e, como ele era um melómano - como mencionou várias vezes - eu diria que essa adesão se expressava nos harmônicos do discurso de Lacan, alma desse movimento. Em Roma, em 1953, era também o tempo da assunção jubilosa do nome - apadrinhado por Lacan: "Você é psicanalista", 2 espécie de prova iniciatória do "ser analista", que se leva a vida inteira para conduzir até um resultado honroso. Durante toda a sua carreira, procuraria obstinadamente uma justa posição em relação a esse selo enigmático. Em 1964, fundou-se a Escola Freudiana de Paris. Logo se instalou o tempo da filiação à margem, que no fundo era apenas o devir conseqüente ao engajamento inicial: interrogar a origem do nome, descobrir o que foi encoberto, explorar o nome "psicanálise" enquanto significando promessa de abertura para a filiação e para a história. Ora, tratava-se de um nome vivo, e como tal destinado a ser colonizado pelo nome próprio, pela assinatura, pelo traço transferencial, prontos para cimentar sistemas de pensamento e ideologias. Tratar de manter abe1io um distanciamento: o psicanalista em seu trabalho também é isso. Conservar-se à margem não é estar fora do jogo; não se ocupa a posição sem ter de responder por ela; isso não proporciona mais confo1io do que a disciplina do grupo, pelo contrário: à margem, a coação é dupla, é preciso agüentar dois senhores. É urna verdadeira posição de sujeito. Serge Leclaire declarou: "O sujeito é a função que, de modo vivo, permite alternativamente uma relação com o sistema das representações e com o real." 2 É freudiano ou lacaniano, esse sujeito? Essa questão, que poderia ser um puro debate de Escola, se situa em seu texto de uma maneira completamente diferente: está realmente implicada, de tal modo que ai-

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temativamente o sujeito freudiano se define ao encontrar um último muro de contenção - recalcamento originário, complexo de castração - e o sujeito lacaniano ao se inscrever numa retomada - em que se pode situar o desejo do analista. Contenção e retomada remetendo-se reciprocamente ao termo último da verdade do desejo; assim poderiam indicar-se a diferença, o distanciamento, o entre-dois que Leclaire convoca quando quer significar o sujeito do inconsciente. Insistência do sujeito, alternância da relação com o sistema das representações e com o real, assim se organizam os diversos temas abordados. As representações zelam pela identidade e pelo corpo próprio, que é a sua casa segundo os nossos sonhos. Daí vem que elas sejam as garantias da nossa concepção de um mundo sem falhas. Mas elas próprias têm origem e causa no mesmo lugar em que se induziram em erro, no limite da angústia, num real do corpo radicalmente outro, inassimilável ao familiar, insuportável ao sonho. Então, por que a psicanálise? Vamos reforçar o sistema que garante o confo110 da casa? Ou dizer que se deve destruir a ordem das coisas? Nesse ponto, Serge Leclaire sabe como distribuir as cartas. Leva o Édipo a sério: a "ordem das coisas" é o incesto. O incesto está entre nós. Paradoxo fecundo, ele consiste em construções - dos sistemas de representações - elaboradas com alto custo de investimento libidinal, como outras tantas reedições do modelo matemo. Para além da mãe, guardiã sagrada dos representantes da potência fálica, abre-se um mundo de angústia. Em outras palavras, o incesto não é nada mais do que a relação comum que mantemos com nossas fantasias. Quanto ao balanço, se é verdade que tudo se paga, esse comércio se inscreve efetivamente cm termos econômicos. Sendo a angústia proporcional à defesa, trata-se de dar espaço aos laços que fazem consistir a nossa fantasia. Note-se que Leclaire não exclui a si mesmo desse processo, como percebemos ao longo dessa leitura, que atinge quarenta anos de uma presença assídua na cena psicanalítica. Mas talvez fosse melhor prevenir um mal-entendido, indicando que, na sua linguagem, uma cena é mais ou menos organizada à maneira- justamente--da cena da fantasia, a pai1ir do modelo dessas construções que não se trata pois de reforçar, mas, pelo contrário, cujos laços devem ser desatados. Assim, o analista tem a obrigação de não se devotar inteiramente à cena de que participa. Mas como dizer isso sem cair no ÍITisório ou no ridículo? Neste livro, isso não se diz, efetivamente, mas pode-se ouvi-lo. Em termos lacanianos consagrados, evocaríamos certamente a chamada "travessia da fantasia" para designar esse distanciamento que a análise supostamente introduz no sujeito, mas, talvez por respeito aos concei-

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tos que ele mesmo não forjou, Leclaire toma o partido de mantê-los a alguma distância, balizas discretas que estruturam o seu espaço. Incestuosa, nossa ideologia dominante também é qualificada por ele de homossexual, porque a imagem protetora da mãe está no princípio do reencontro com o mesmo, mundo sem outro, fechado em sua auto-reprodução, recalcando a diferença para garantir o poder do "um". A questão não é filosófica, é a da prática psicanalítica: como reconhecer que há outro, mais exatamente do outro sexo, quando, na nossa rotina, o real do sexo permanece mascarado sob o emblema fantasístico fálico? A ordem assim estabelecida - incestuosa, homossexual - não é senão o poder do "um", reconduzido repetitivamente para a ladeira da pulsão de morte. Compreende-se que, para Serge Leclaire, desse ponto de vista, todo o mundo sofra do mesmo mal, sob o regime da neurose obsessiva. 3 O analista seria então um moderno cavaleiro andante, com a missão de subtrair o sujeito às condições dominantes, à situação incestuosa considerada como estado comum, realidade ambiente, modelo das sociedades fundadas na religião do pai? Esse é o paradoxo aparente, com o qual Serge Leclairejoga. Sua descrição da social-incestocracia, como ele diz, não é um panfleto nem a denúncia de um sistema; é uma interpretação, no sentido analítico. Ela quer expressar que a ordem das coisas, à qual estamos submetidos, sobre um fundo de angústia de castração, é da responsabilidade do psicanalista. Isso é uma missão? E então, ele seria o enviado de que senhor? De qualquer forma, se não é uma missão, ela não tem como objetivo a salvação, nem a verdade em si, mas a manutenção de uma via aberta entre a contenção e a retomada. Não creio pois que Serge Leclaire queira refazer o mundo, embora não deixe de convidar-nos, às vezes, a experimentar a utopia. Trata-se, antes, de incitar o interlocutor a acompanhá-lo por caminhos imprevistos, de provocá-lo para a réplica, de tomar cuidado para não se fechar com ele num discurso convencional. Em suma, não fiquemos plantados no nosso topos, vamos pôr as caiias na mesa e perguntar apaixonadamente que jogo fazemos, já que pretendemos intervir como psicanalistas. Evidentemente, a questão vale para os analistas, mas não apenas para eles. O analista não existe sem o seu outro. Confinando-nos entre nós mesmos, só se produziria virtualidade ou semblante de substância analítica. É por isso que Leclaire quis, de diversas maneiras, pôr a psicanálise à prova fora dos círculos em que ela se cultiva em circuito fechado. No campo da psicanálise, uma posição como essa, para não ser uma postura, só pode se sustentar por um desejo. Percebe-se isso pelo clima que emana desses textos sempre dirigidos para o seu objeto: manter

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aberto aquilo que todo pensamento conc01Te para fechar. Vemos assim como ele se esforça pacientemente para obedecer à escola da psicanálise, tentando ao mesmo tempo esquivar-se à dominação da Escola, sob todas as suas formas de lugar de poder. Infinito da tarefa que consiste em "produzir" psicanálise. Daí a evidência de que uma apresentação vinda de fora não atinge o essencial. O que nos é dado ouvir é uma verdadeira apresentação, por ele próprio, do psicanalista em seu trabalho. Apresentação, isto é, presença sustentada - fora de toda consideração referente à pessoa, ao carisma ou a alguma particularidade do talento do analista. Presença, esse termo não faz parte dos seus conceitos familiares, mas poderia dar uma idéia da relação desse analista com o seu objeto; ele diz a paixão de pôr novamente em jogo aquilo que, desde toda a origem, está à espera; lembra a exigência de contar com uma parte de desconhecido, de onde surgirá a supresa do que se ouvir; valoriza a atenção, nem tão flutuante assim, em que se mantém a boa distância do poder. Serge Leclaire se inscreve assim, de modo original, na refundação lacaniana. Inscreve-se como agente e como testemunha, como aluno e neófito entusiasta; e como companheiro de estrada, fica à escuta dos avanços do mestre, porém marcando vivas reservas quando os vê recuperados no psitacismo, inconscientemente paródico, do grupo. Dizer que ele nunca deixou de considerar Lacan um mestre seria apenas uma figura de estilo para qualificar polidamente suas relações. Na verdade, era outra coisa. No centro vivo, lugar de desejo e de invenção, que suscitava o seu trabalho e a sua concepção da análise, um lugar indispensável à coesão do conjunto estava reservado para Lacan. Isso é sensível nos textos da maturidade, do aluno emancipado. Serge Leclaire, psicanalista cm ato, não se compreenderia sem esse segundo plano. Assim, talvez nos seja dado constatar ao vivo que a resolução da transferência e os efeitos de livre jogo que dela resultam para um sujeito fazem causa comum com um resto indestrutível - questão a ser tratada num debate sobre a transmissão. Mas, afinal, isso é a minha leitura e, como tal, inevitavelmente orientada. Em contraponto, insere-se aqui a lembrança de uma época em que Leclaire era considerado o semeador da subversão na Escola Freudiana de Paris, prova de que os analistas não são menos cegos que outros à verdade do desejo. Subversão: essa palavra apareceu, talvez um pouco forte. Entretanto, o fato é que, em ce1ios textos, ele vai fundo; por exemplo, sua intervenção no Rio, que deixa aparecer, mais vivamente do que de costume, a tendência anticonformista. 4 Mas ele estava longe; entre os sul-ame-

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ricanos as coisas assumiam outra ressonância, podiam ser ditas e ouvidas de outra forma. Mais uma vez a consideração de uma diferença? Mas o cúmulo da subversão foi atingido quando Leclaire lançou, em 1989, um apelo à criação de uma instância ordinal dos psicanalistas! Para a paisagem psicanalítica francesa, isso se apresentou como uma provocação e foi recebida como tal, em primeiro grau. Nos textos que se referem a esse episódio, e nos quais ele é levado a se explicar, vê-se que não havia nada de contraditório com as posições que ele sempre defendeu. O objeto da psicanálise obedece a uma lógica da diferença e se os analistas não tiram quanto a isso suas conseqüências políticas, os caminhos que conduzem até eles serão simplesmente desviados para lugares em que se obedece à lógica do mesmo - entenda-se: as psicoterapias. Entretanto, estou convencido de que ele não ignorava que a sua própria dialética podia ser voltada contra ele mesmo, de modo que alguns acabariam imputando-lhe o apetite pelo poder e a intenção de ditar leis aos analistas. Na verdade, mais uma vez ele se expôs·----- fato bastante raro entre os analistas para ser celebrado. Ao longo de todo esse trabalho de uma vida, percebe-se, sem dúvida alguma - e aprecia-se -- que ele não se esquiva, não procura enganar seu público, que seu respeito e seu gosto pelas palavras não o deixam fazer mau uso delas. Assim, ele deve se expor, produzir algo que seja "da ordem" da psicanálise e encontrar-se em posição falsa em relação a toda posição de mestria. Se tivéssemos de situá-la hoje, no espírito da nossa época, gostaríamos de dizer que a razão de ser da psicanálise é, mais do que nunca, fazer frente às ideologias e exercer, diante delas, uma espécie de contrapoder. Certamente, trata-se apenas de um voto formulado sob a influência de uma leitura que suscita um ardor um tanto mimético, mas esse voto manifesta, creio, a justa orientação deste trabalho no seu conjunto.

Christian Simatos

UM PSICANALISTA À ESCUTA ' * DO SEU SECULO

Ser psicanalista é, na enganadora permanência da sua poltrona, a cada instante, voltar a sê-lo novamente ...

Serge Leclaire faleceu em 8 de agosto de 1994 em Argentiere, na Haute-Savoic, de hemorragia cerebral. Tinha setenta anos. Nascido em 6 de julho de 1924 em Estrasburgo, Serge Liebschutz pertencia a uma velha família judaica liberal e agnóstica, que se refugiou no centro do país, durante a guerra, com o sobrenome de Leclaire. Passou a juventude em Bordcaux e cm Lyon. Posteriormente, conservou esse sobrenome. Iniciou estudos de medicina e depois de psiquiatria em Paris. Em sua participação no congresso de Roma, em setembro de 1953, lembrou uma conversação com Françoise Dolto, o que constituiu o seu primeiro encontro com a psicanálise: "Disse-lhe minha intenção de fazer uma análise didática, e enquanto falávamos de um interesse comum pela tradição hindu, que sempre me pareceu tão rica e atraente, ouvi esta resposta: 'A atração que você sente pela cultura e pela mística hindu corresponde evidentemente a um caráter anal; isso é muito típico.' Foi assim que tomei contato com a linguagem psicanalítica. Certamente, essa observação, apesar de sua pertinência, me ofendeu um pouco, e nunca consegui, a partir dessa época, considerar a linguagem psicanalítica sem alguma desconfiança." 1 Isso aconteceu em 1949, ano em que começou sua análise com Lacan, que continuaria até 1953. Efetivamente, Serge Leclaire sempre conservaria uma vigilância em relação ao que chamaria depois de "império das palavras mortas", que podem imobilizar um sujeito por uma teoria. Por ocasião desse mesmo congresso em Roma, que seguia de perto a primeira cisão do movimento analítico francês, ocon-ida em junho de

* Urna primeira versão deste texto foi publicada em Cliniques Méditerranéennes, nº 45-46, 1995. Leclairc, S., Démasquer le réel, Seuil, Paris, 1971, p.41.

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1953, Lacan, respondendo a Serge Leclaire, o interpelou nestes termos: "Não é a resposta de mim a ele: 'Você é meu discípulo', da qual lhe sou devedor, pois ele já se declarou como tal... mas é daquela que ele merece de mim diante de você: 'Você é um analista', que lhe dou o testemunho."2 Já no ano seguinte, 1954, foi nomeado membro associado da nova Sociedade Francesa de Psicanálise, ao mesmo tempo que W. Granoff, F. Perrier e M. Safouan. De 1957 a 1962, foi um dinâmico secretário da Sociedade Francesa de Psicanálise. No ano seguinte, foi seu presidente. Esse foi o ano que precedeu a segunda cisão. Nessa época, a "Troika", composta por Serge Leclaire, Wladimir Granoff e François Pe1Tier, promoveu um intenso trabalho político, na esperança de que sociedade francesa fosse reconhecida pela Associação Psicanalítica Internacional (API), da qual, ao se demitirem da Sociedade Psicanalítica de Paris, os membros da SFP se . excluíram defàcto. 3 Ao mesmo tempo ministrou, com Granoff e Perrier, um curso sobre "Problemas práticos de psicoterapia analítica". Foi um tempo de intenso trabalho clínico e teórico, principalmente sobre a psicose, a esquizofrenia e a neurose obsessiva: conferência sobre a abulia4 no colóquio de Bonneval em 1956, que tinha como tema a vontade; no ano seguinte, relatório importante sobre a esquizofrenia, "Em busca dos princípios de uma psicoterapia das psicoses," 5 ao lado das intervenções de André Green, François Perrier, Paul-Claude Racamier, Conrad Stein; e enfim, em 1960, ainda no colóquio de Bonneval, o famoso relatório escrito com Jean Laplanche, "O inconsciente, um estudo psicanalítico", que se tornaria um clássico. 6 Como a negociação com a API fracassou, a SFP se dissolveu. Disso se originaram a Associação Psicanalítica da França, que seria reconhecida pela API, e a Escola Freudiana de Paris, fundada por Jacques Lacan cm 21 de junho de 1964. Leclaire e Perrier optaram por Lacan. Entretanto, o próprio Leclaire continuou sendo membro direto da API até setembro de 1967. Se foi muito ativo na elaboração dos estatutos da EFP, e, no seio da primeira diretoria, na instalação das primeiras estruturas de trabalho, Serge Leclaire retirou-se pouco a pouco. A partir de então, seu trajeto psicanalítico mostraria principalmente suas intenogações sobre o lugar e função do analista na sociedade. Assim, desde o começo da Escola, marcado talvez pelo fracasso da "Troika", evitou as questões institucionais, voltando-se mais para o campo das questões analíticas ou, reciprocamente, para o campo em

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que questões culturais podem questionar os limites da psicanálise e de sua eficácia na prática. Aceitou então a discussão com os nonnalistas dos Cahiers pour l'analyse e realizou, em 1965-1966, um seminário na Rue d'Ulm: "Contar com a psicanálise". "A prática do tratamento psicanalítico confronta quem a aborda com a existência do sujeito desejante, esse sujeito que pode ser dito sujeito do inconsciente e que não encontra lugar em nenhuma psicologia, assim como parece excluído de todos os enunciados", escreveu na apresentação desse seminário. 7 Desde o início dessa aventura lógica, no seio da Escola Freudiana, manifestaria reservas a partir da própria prática da psicanálise. Após a brilhante conferência de J.-A. Miller intitulada "A sutura", 8 ele diria, com coragem intelectual: "Quem não sutura pode ver a realidade do sexo sustentada pela fundamental castração. Pode encarar o enigma da geração. Não apenas da geração da seqüência dos números, mas também da geração dos homens e da palavra. O domínio da análise é um domínio necessariamente a-verídico, pelo menos no seu exercício. O analista se recusa a suturar, como eu disse. De fato, ele não constrói um discurso, mesmo quando fala. Fundamentalmente, e é nisso que a questão do analista é irredutível, o analista está à escuta. À escuta de quê? Do discurso do paciente; e, no discurso do paciente, o que lhe interessa é justamente saber o que se fixou para ele no ponto de sutura. Reconhecemos que o próprio Miller se situa, para nos falar, num ponto de uma topologia nem aberta nem fechada, mas o analista é, antes, como o sujeito do inconsciente, isto é, não tem nem pode ter lugar." 9 Foi nessa época que, respondendo com outros ao apelo de Henri Ey, participou do "Livro Branco da psiquiatria franccsa." 10 O início de 1968 foi marcado pela publicação do seu primeiro livro, P.~yclzanalyser, nas Éditions du Seuil. Foi o primeiro grande livro a prestar contas de uma prática analítica sob os signos conjugados de Freud e Lacan. Mas já convergia com Lacan e com a teoria do "significante" pela introdução da "Letra" e até da "Cifra": "Um só e mesmo texto, ou melhor, uma só e mesma letra, ao mesmo tempo constitui e representa o desejo inconsciente: a psicanálise questiona assim, em sua visada última, a distinção comum e cômoda entre um termo de realida- ,,11 de e sua representaçao. Sua posição singular diante do Jacanismo foi logo observada por um lacaniano vigilante e preocupado com a 01iodoxia, numa resenha inteligente e muito crítica. 11 Com os acontecimentos de 1968, Serge Leclaire passou para outra cena. Percebeu a necessidade, para a psicanálise, de ter acesso à univer-

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sidade, não para formar diplomados em psicanálise, mas para tentar tornar inteligíveis a prática e a teoria psicanalíticas num lugar aberto. Estimulado por Edgar Faure, no seio do Centro Experimental de Vincennes, fundou com o apoio de Michel Foucault e Jacques Derrida o depaiiamento de psicanálise, que não seria ligado à psicologia, mas à filosofia. Seria o responsável por ele até que a 01iodoxia Iacaniana e o próprio Lacan o levassem a pedir demissão em fins de 1970. Os seminários do período de Vincennes foram publicados. O de 1969, "Vincennes psicanalisa Leclaire" 13 foi uma publicação pirata que o irritou muito. O editor afirmou ter tido a sua autorização, mas ele não fora consultado. O outro seminário foi publicado em seu segundo livro, Desmascarar o real, 14 sob o título: "Um semestre em Vincennes 1969-1970", com uma intervenção de Juan-David Nasio. Assim como Serge Leclaire declarara tranqüilamente, a partir do sonho da "monografia botânica" na Inte1pretação dos sonhos, que Freud era um "apaixonado pelo incesto", em Desmascarar o real ele escreveu que "a prática psicanalítica é incestuosa em sua essência", 15 introduzindo assim uma concepção do real diferente da de Lacan. O real não pertence mais à ordem do impossível, mas, pelo contrário, é aquilo a que se deve ter acesso na análise, como essa cena primitiva estrutural, cm que o sujeito se gera, confrontando-se com o que depende da ordem literal, sempre marcada pelo desejo em sua função metonímica, naquilo que se refere ao sexo e à morte, isto é, à castração e ao real como a própria modalidade da relação com o real. Depois dessa elaboração sobre a função do real no tratamento, Serge Lcclairc prosseguiu seu estudo sobre a prática com um livro, !itera. . be la o bra, [jma criança . namente sua mais e' morta. 16 "A prática psicanalítica se funda numa evidenciação do trabalho constante de uma força de morte: aquela que consiste em matar a criança maravilhosa (ou aterrorizante) que, de geração em geração, testemunha os sonhos e os desejos dos pais; só existe vida à custa do assassinato da imagem primeira, estranha, na qual se inscreve o nascimento de cada um. Assassinato irrealizável mas necessário, pois não há vida possível, vida de desejo, de criação, se se deixar de matar 'a criança maravilhosa' que sempre renasce". 17 Isso o levou a adotar fommlações ousadas, como a do "assassinato da representação narcísica primária", 18 na medida em que essa representação inconsciente é apenas a representação do desejo da mãe no interior do sujeito. É essa preocupação permanente de detectar os lugares e as operações que podem afenolhar o sujeito, que podemos encontrar num texto dirigido à Escola Freudiana, por ocasião das Jornadas de Deauville so-

um psicanalista á escuta do seu século

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bre "O Passe" em 1978: Heimlichkeiten. 19 Foram essas jornadas memoráveis que Jacques Lacan concluiu com esta piada: "Obviamente, esse passe é um fracasso completo."2º* Enquanto isso, Serge Leclaire se manifestara em outra cena, em Co,!frontation. Fundado por René Major e Dominique Geahchan, durante uma década esse ponto de encontro e debate teve o papel de um respiradouro para os que desejavam ouvir uma língua diferente daquela que se falava na sua própria casa analítica. Foi nesse contexto que Leclaire organizou, com Antoinette Fouque, responsável pelo Movimento de Liberação Feminino, as Jornadas de 1977, intituladas "Dites 33", para pesquisar a prática dos jovens analistas nascidos depois da guerra. Em seguida, tentou fazer um seminário na Escola Freudiana com Antoinette Fouque para investigar o destino do feminismo e da feminilidade na prática e na teoria psicanalíticas. Esse projeto foi recusado por Lacan, numa carta datada de 15 de julho de 1977. 21 Quando das peripécias da dissolução da Escola Freudiana, Serge Leclaire ouviu muito todas as partes interessadas, mas falou pouco. Só tomou parte no debate institucional à maneira poético-alegórica, que gostava de praticar para deslocar uma questão. "Os momentos de verdade, quando enfim ocorrem, são saboreados em silêncio, com uma angústia serena, ouvidos, olhos e coração abertos ... É quando se podem ler, em palavras explícitas, as paixões daqueles que tudo exploram e que reatam, nostálgicos, os fios de um destino ... O terceiro golpe acaba de soar. A cena trágica está armada, o coro, com suas vozes múltiplas declama: 'Que o destino se faça!' ... por um espelho d'água. Deus, como o abismo é belo! ... Cena sobre si mesma, cercada. 'Eu' não está ali; não vem. O efeito de uma aposta, feita há trinta anos, o retém perto de outra arena, felizmente dispensada, agora, para a sua clandestinidade. " 22 Essa posição lhe foi censurada; mas essa era então sua maneira de investir as realidades institucionais, marcada por uma certa desilusão, a partir de 1966. No início de 1981, reuniu o conjunto de textos que são suas tomadas de posição circunstanciais. Romper os encantamentos - esse é o título da obra- visa detectar "o ferrolho incestuoso como efeito da parte

* Lacan joga com o duplo sentido da palavra "échcc", "fracasso" e 'jogo de xadrez". (N.T.)

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escritos e/ín icos

não-paga do legado de Freud" e "o fenolho narcísico, efeito do não-dito que anima a elaboração de Lacan". 23 Nesse penúltimo livro, que inaugurava sua aventura solitária e doravante fora de qualquer instituição, ele reencontrava a intuição de um dos seus primeiros textos psicanalíticos (1956), um dos seus maiores textos, pouco conhecido: "Sobre o episódio psicótico apresentado pelo 'Homem dos Lobos"'. Fazendo uma doação reiterada em dinheiro ao Homem dos Lobos, Freud reconhecia de forma implícita tê-lo explorado teoricamente para enriquecer a sua teoria. Mas, precisa Serge Leclaire, "dando-lhe dinheiro, Freud o confirma em sua alienação. Como em 1920, quando lhe deu dinheiro pela primeira vez, ele lhe disse com esse gesto: 'Você me prendeu.' Como, então, esse presente ou essa confissão fala e diz: 'Comigo se desvanece a testemunha, o pai simbólico que por um instante você entreviu cm sua primeira análise.' Com esse dom desaparece a esperança de possuir um dia um pênis, sem medo da castração, porque reconhecido em seu pleno valor simbólico". 24 A partir daí, bastou que um dermatologista, a quem pediu que verificasse os orifícios do seu corpo, lhe observasse que essas marcas corporais são indeléveis, para que o Homem dos Lobos compreendesse que não podia escapar à castração e fosse precipitado num momento psicótico. Esse apólogo do momento psicútico do Homem dos Lobos, induzindo para a instituição psicanalítica a primazia da compulsão teórica de Freud sobre a escuta possível do sujeito, no caso, poderia retroativamente permitir que se detectasse, no percurso de Serge Leclaire, essa atenção infinita c incansável, para restituir à psicanálise sua dimensão de invenção e de abertura. Embora muito criticada pelo conjunto da comunidade psicanalítica, a experiência de Psy-sholl' na televisão, em 1983-1984, representava, a seus olhos, uma tentativa de encenação para a abertura de uma palavra. Sua última intervenção na psicanálise foi a "Proposta de uma instância ordinal para os psicanalistas", publicada em Le Monde de 15 de dezembro de 1989, dirigida a cinco mil profissionais na França e assinada com quatro psicanalistas amigos, o professor Lucien Israel, Philippe Girard, Daniele Lévy e Jacques Sédat. Sua intuição do momento dizia que era preciso tornar inteligível para o público a prática da psicanálise, que restitui ao sujeito um campo extraterritorial de enunciação. Essa iniciativa teve inicialmente uma recepção bastante reticente ou intenogativa. Mas ele não renunciou e fundou, com alguns colegas, no

um psicanalista â escuta do seu século

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começo de 1990, a Associação para uma Instância Terceira dos psicanalistas (APUI), que publicou em 1991 um Levantamento da psicanálise. 25 Foi a única associação na qual quis retomar o trabalho, depois da dissolução da Escola Freudiana em 1980. Mas até o fim da vida, continuou sendo um soldado da infantaria ligeira (levis miles) da psicanálise, apaixonado por essa prática que pode dar nascimento ao sujeito, arrancando-o às suas submissões, tendo como única arma "o sabre de papel da palavra e da interpretação". 26 Esse sabre de papel, ele também o usou à sua maneira metafórico-metonímica, no último livro O país do outro, publicado no Campo Freudiano em 1991. 27 "Considero a estrutura do mito como uma arquitetura que conviria às casas freudianas", escreveu ele. O livro seguinte, que planejava escrever durante o verão de 1994, deveria articular a clínica psicanalítica com o pensamento e com a formação do conceito. Não o leremos.

Jacques Sédat

PARTE

I

ESBOÇO DE UMA TEORIA PSICANALÍTICA SOBRE A DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS *

* Série de

conferências inéditas pronunciadas no Rio de Janeiro, em agosto de 1978. O texto foi estabelecido a partir de gravações, e os subtítulos foram inseridos pelo editor.

FAFICH/UFMG- BIBLIOTECA

Função da mãe, função do pai

O tema que me foi proposto - a função da mãe, a função do pai - logo trouxe à minha mente uma idéia dominante, da qual não consigo me livrar. É a pergunta que as crianças, todas as crianças, fazem: "O que o papai faz? O que a mamãe faz? O que eles fazem juntos?" Talvez todos nós ainda sejamos crianças. A pergunta que ouço no tema proposto é mesmo a da criança: "Por que eu nasci? Como foi que vocês me fizeram?" Ou, ainda, a pergunta que o melancólico repete: "Por que me fizeram viver?" Como sabemos, há toda uma série de respostas prontas. O querespondem os pais a essa pergunta? Eles ficam muito constrangidos. Mas um psicanalista sabe responder! Outrora, aprendia-se nos livros para uso dos pais que se devia falar da "sementinha", do que acontece com as flores e, evidentemente, esta é uma resposta: "O papai pôs uma sementinha na mamãe." Não se diz exatamente onde ou se diz que não se sabe. "E é assim que o bebê cresce, como o feijão que você plantou." É uma resposta muito científica, que até pode ser aperfeiçoada, principalmente agora que podemos fecundar um óvulo in vitro, como está em todos os jornais. Mas sabemos que isso não é uma resposta; é uma explicação para não responder. Então, se tentamos responder, o que dizemos? "A gente se amava muito, a gente se beijou e, assim, a gente fez um bebê." Mas o que significa "a gente se amava muito"? Quando se tenta lembrar ou imaginar mais precisamente, indagamos se dizer as coisas dessa maneira é a "verdade verdadeira". Talvez a gente se amasse, mas também tinha vontade de fazer amor, o que nem sempre é a mesma coisa. Então, 25

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escritos clínicos

uma boa resposta seria: "A gente queria que você nascesse", "A gente se amava tanto que queria ter um bebê". Às vezes, acontece que uma mulher tem mesmo a vontade de ter um filho, e às vezes um homem tem mesmo a vontade de fazer um filho, só que o mais comum - pelo menos era assim antes da pílula - era o contrário; não se tinha vontade de fazer filho, mas de fazer amor. E ainda, nem sempre era assim. Muitas vezes o homem, a mulher também, mas nem sempre ao mesmo tempo. O problema é que, na verdade, não se tem resposta. Mesmo que se diga "porque a gente se amava", "porque a gente se desejava" ou "porque a gente queria ter um filho", a resposta não fica muito clara. Todo analista que fez sua própria análise, que fez uma análise, a conhece. No fundo, não podemos responder à pergunta da criança porque continuamos a fazê-la como crianças: "Como os meus pais, papai e mamãe, ou mamãe e um senhor que não conheço, me fizeram?" É uma questão delicada. Na psicanálise, temos uma teoria que nos dispensa de refletir mais além; é a cena primitiva. Como ela veio à nossa análise? O que ela lembra, agora, hoje, aqui? Mas nosso constrangimento para responder à pergunta da criança é tão grande quanto nosso constrangimento diante de nossa própria pergunta. A rigor, podemos representar em nós mesmos a cena primitiva do outro, de um amigo, de alguém que conhecemos bem. Mas somos capazes de nos representar o que nossos pais fizeram? Parece-me que resta sempre, naquilo que chamamos de "cena primitiva", algo que não podemos nos representar por fantasias, imaginações, sonhos. É, falando claramente, a "coisa obscena". Até agora, eu lhes falei como se a pergunta fosse a mesma para uma mulher e para um homem. Evidentemente, não é o caso. Os pais não existem. Há uma mulher e há um homem. Acho, mas não tenho certeza, que para a mulher é mais fácil responder - em parte. Se o filho diz: "Como é que você me fez?", ela pode responder sem muita dificuldade: "Eu te carreguei na minha barriga, você saiu da minha barriga", porque ela própria se representa muito bem como ela saiu do ventre de sua mãe. Mas, na realidade, isso não responde verdadeiramente à pergunta: "Como ... por que você me fez?". Talvez porque seja mais fácil para mim, vou começar falando do homem. A única coisa que um homem poderia dizer, mas que ele não ousa, é: "Porque eu fiz amor com uma mulher, que é a sua mãe." Evidentemente, ele pode acrescentar que ela não estava tomando pílula, ou tinha esquecido. Um homem diz, ou deveria poder dizer: "É porque fiz amor", foi assim que ele se tomou pai. Mas a função do pai significa: "O que faz o pai? O que fez o pai, ou o que fará um homem que vai tor-

.funçâo da 111cie.f1111ção do pai

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nar-se pai?" Como ele responde a essa pergunta fundamental sobre sua função? Diz: "Fiz amor", pode acrescentar: "Estava loucamente apaixonado, fui pego pelo desejo, foi um acidente." Indo um pouco mais longe, o que expressa o homem, ao dizer que faz, fez ou fará amor? Isso pode ser enunciado de outro modo: "Tentei ser feliz, tentei esquecer, tentei mitigar minha angústia." Esta é verdadeiramente a pergunta: "O que faz o homem, ou o que ele diz que faz, ao fazer amor?" Talvez ele também exorcize a morte, é um fato conhecido. Ele tenta esquecer sua angústia; o amor e a morte estão ligados. Quando mergulhamos no amor, é quase como uma "pequena morte", da qual voltamos. O que diz o homem da sua função, ao dizer que faz amor com uma mulher? Enfim, também pode ser com um homem ... No caso paiticular do homem que faz amor com uma mulher e a fecunda, é fazendo amor que ele se torna pai, ou é com ela que ele se torna pai. Não é o único caso, mas é o que temos a considerar, pois falamos de pai. Então, "a criança foi encomendada", como se diz; ou então ela já nasceu, ou então imagina-se que ela já nasceu. É esperada. Como o homem pensa, e diz a si mesmo, o que acaba de fazer? Porque agora tudo foi feito, e tão feito que, depois, muitas vezes ele não faz mais amor com a mesma mulher. O que parece interessante é uma representação ingênua, mas sempre presente, que o homem pode construir daquilo que acaba de fazer ou do que fez. Ele é muito modesto, toma-se por Deus. Como Deus, fez alguém à sua imagem, é a cara do pai. Temos idéias tortuosas. Acontece ainda, quando é uma menina, que o papai não fique contente e às vezes diga o contrário: "Ah, era justamente uma menina que eu queria." Mas sempre há, na cabeça ou no corpo do homem, a idéia de que ele fez alguém à sua imagem. Como Deus. Aliás, é uma das respostas que se podem dar: "Eu quis fazer de você alguém tão bom quanto eu." Mas a pergunta pode se inve1ter. "Que representação você tem do seu pai? Você foi feito à imagem dele? Se foi, isso lhe agrada?" Ejá que o homem se diz: "Vou fazerum filho à minha imagem; ele vai sobreviver a mim, garantir minha imortalidade, ter mais sucesso que eu, ou ser ainda melhor do que eu", ao menos pode-se perguntar que imagem esse homem se faz do pai, e muito exatamente a imagem que tem do pai no momento em que este o estava fazendo. Eu disse que isso era obsceno e in-epresentável. Mas temos muitos truques para contornar a situação. O mais cômodo é o pai morto. Ele tem a sua foto, a sua história, falamos dele, ele pode até ter uma estátua. Os que praticam a análise sabem até que ponto um pai morto tem, na história dos filhos, um lugar privilegiado e uma imagem. Se o pai

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não tem a sorte de estar morto, é muito mais dificil que se tenha dele uma imagem que não seja irrisória, grotesca, como um homem que faz amor, muitas vezes, nem sempre. Então, tem-se uma imagem irrisória ou, ao contrário, uma imagem gloriosa, absolutamente supercompensada: alguém muito forte, como dizem as crianças, extraordinário, muito inteligente, muito sensível, enfim, cheio de qualidades. Há um caso em que sempre encontrei o que poderia ser uma imagem do pai: a criança concebida pelo pai em licença, durante a guerra. Isso pode ser classificado como um episódio do repouso do guerreiro. Mas, no fundo, creio que não há imagem do pai na sua jimção de pai, isto é, no momento em que faz um filho. Ou então, só existe pai depois que ele não está mais ali. É quando não existe mais que pode existir. A hipótese que proponho - talvez, ao dizer-lhes isso, eu seja apenas um fiel da religião judaica- se baseia no mandamento "Não farás para ti imagem de Deus, do Pai." Mesmo sendo dito por um fiel, esse mandamento conserva o seu valor e deve ter uma parte de verdade. "Você tem uma imagem do pai, mas não pode saber o que é um pai, e, aliás, não só não fará imagem do pai, mas, como é um mandamento impossível de cumprir, todo mundo sabe que você fabrica ídolos, apesar de tudo." Então, é preciso destruir os ídolos, isto é, as imagens, as estátuas. Só que, se destruinnos, como é recomendado, a imagem do pai, e reconhecennos que ela não existe e não pode existir, vamos nos tornar o quê? Órfãos. É terrível. Evidentemente, isso é pensar as coisas ao contrário. Mas, de qualquer fonna, cada vez que alguma coisa de uma estátua, da imagem, de um ídolo, de uma representação do pai, de um estereótipo da virilidade paterna desaparece, surge a angústia. É como se, nesse momento, o homem não tivesse um status garantido. Quando se destrói a estátua, algo se perde do status. O que diz o mandamento? Que "não façamos para nós imagem de Deus". Isso nos diz que não há homem-estátua, homem em forma de estátua, e não há modelo de homem. O homem está sempre por ser inventado, não é a repetição segundo o modelo de alguma coisa que já existiu. Assim que não haja mais imagem, a angústia surge, porque nesse momento a estátua que erguemos no interior de nós desaparece e nossa segurança narcísica se desvanece. Se não temos a estátua do homenzinho modelo em nós, aparece a angústia. E, no entanto, o que se pode fazer? Podemos fazer outra coisa senão destruir essa imagem, se quisermos viver? Precisamos não apenas do bezerro de ouro ou do ídolo que está no santuário, mas também do ídolo que está no interior do homem. Esse ídolo é um ídolo com um falo, ou um ídolo-falo, o que dá no mesmo. Essa é a situação em que nos encontramos, quando

.f1111çao da núie,.f1111çcio do pai

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temos a imprndência de nos fazer a pergunta sobre a função do pai: o que o pai faz, ou como é que um pai é feito? Quando fazemos verdadeiramente essa pergunta - digo mesmo "verdadeiramente", não apenas durante uma conferência - encontramos a angústia. Aliás, é por isso que ela nunca é feita "verdadeiramente". É melhor evitar a angústia, quando possível. Não ter status garantido, não ter segurança narcísica - como se tem um seguro contra incêndio - gera uma angústia insuportável. Calma, a sociedade é bem organizada e essa situação já estava prevista há muito tempo. Não há modelo de pai, não há imagem de pai, mas há· uma imagem da mãe. Basta passear pelos países cristãos para encontrá-las por todo lado. Você vê um filho mo110, uma santa mãe ... Por todo lado. Evidentemente, é mais fácil fazer uma imagem da mãe. Ou ela é fecundada pelo Espírito Santo (existem muitas dessas representações), ou anunciam-lhe que ela vai ser mãe. São imagens esplêndidas. E depois, há a imagem da mãe plena de seu filho, Virgens gloriosas, Virgens que carregam o Menino. O que mais se vê é a Virgem com o Menino, diante do Filho morto, e a Coroação da Virgem ... É uma coisa gloriosa do começo ao fim, e daí para o começo. Outras séries de imagens, as pinturas de mulheres, as imagens de mulheres, as estátuas de mulheres, existem tanto em imagens quanto na realidade; há mães-modelo, mulheres-modelo, a mulher-modelo, a tal ponto que isso pode se tornar uma profissão: ser modelo. Como o homem se defende de sua ang'ústia de não ter modelo de homem? Ele olha para o outro lado, onde pelo menos há um modelo de mulher, porque todo homem nasceu de uma mulher. De certo modo, ele é fabricado segundo o modelo, com uma pequena diferença. Mas desse lado, há uma representação possível da mãe. Tentaremos indagar a função da mãe, porque não basta ser um modelo. Por enquanto, quero sublinhar que essa situação de fato - não há modelo de pai, só há modelos de mulheres - cria um sistema. Esse sistema é o seguinte: diante da angústia da ausência de estátua ou de modelo de pai, o movimento natural é voltar-se para a mãe, pois ela constitui um modelo. De que não se sabe, mas é um modelo; pode-se fazer uma estátua, pode-se representá-la como mãe. Assim, toda a atividade do homem - no tempo presente, e desde muito tempo, na história - consiste em garantir que a mãe esteja realmente ali, e se ela não está ali sob a forma de uma boa esposa ou de uma mulher-modelo, em construir sempre alguma coisa que possa lhe dar uma certa segurança. O que o homem faz, o que ele não pára de "fazer", é fabricar a mulher-mãe; mãe, não mulher. Não pára de fabricar mãe. É a sua grande atividade, e

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o sistema é muito bem organizado. Diz-se que a mãe é todo-poderosa; isso significa que ela é toda inteira, não lhe falta nada. Ela é todo-poderosa, enquanto o homem é impotente para construir um modelo de si. Não falei suficientemente do que se chama de impotência do homem. Não é apenas o que se chama de sua impotência sexual. A verdadeira impotência do homem é uma impotência positiva. Ele não pode construir para si um modelo de homem, mas, em compensação, pode construir uma imagem de mulher. Toda a sua atividade e todo o seu poder consistem em preservar uma economia social e política, o que equivale a fabricar mãe continuamente. É a garantia do seu poder. Ele diz que a mãe é todo-poderosa, logo ele fabrica onipotência, mas não é a mãe que exercerá o poder, é aquele que o fabricou. Esse sistema é muito bem arrumado. Os sociólogos e os psicanalistas sabem, é claro, que o que organiza a sociedade e o aparelho psíquico é a estrutura edipiana, e que a estrutura edipiana se funda na interdição do incesto, isto é, de uma relação com a mãe. Parece que isso é respeitado, mas de fato, quando o homem não pára de fabricar mãe, o que ele faz, a não ser viver no incesto? Ele "faz" a mãe. O sistema que evoco rapidamente é um verdadeiro sistema sociopolítico, que chamo de "social-incestocracia". Vivemos num sistema quase universal de social-incestocracia. Isso dá tranqüilidade, porque não sabemos disso. Vivemos no incesto, mas isso dá prazer e, principalmente, tranqüiliza. Gostaria de lhes dar alguns elementos positivos sobre o que poderia ser a função do pai, quando o regime da social-incestocracia tiver desabado, o que não acontecerá tão cedo. O que o homem pode fazer, além de ser um reprodutor que glorifica a mãe? Pode fazer outra coisa que não seja reproduzir mãe, já que não se pode reproduzir pai, do qual não existe modelo? Será preciso modificar as imagens dessa função que talvez não se chamará mais "de pai" e ter a coragem de afirmar, de reconhecer, que um homem existe sem modelo, é vivo, está sempre nascendo. Ele não é apenas uma repetição- isso é a morte -mas ele é vivo. Afirmá-lo é dizer que, para viver, ele não precisa fabricar mãe continuamente. O que ele pode fazer é dar testemunho. Etimologicamente, em latim, testimonium se refere ao mesmo tempo à cabeça, a de cima, ou à cabeça dos testículos. Testemunhar, para o homem, é atestar algo que é vivo, e não uma repetição m011al, é atestar que há outra coisa além de mãe. Qual é o status da mãe nas sociedades patriarcais, nas sociedades do Maghreb? Penso que são sociedades em que o homem guerreiro parece ter todo o poder, a tal ponto que as mulheres vivem totalmente reclusas.

.fimçcio da müe, _fimçcio do pai

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Entretanto, quando há operações de guerrilha, é a mulher que decide a hora e o lugar. Cada vez que, num país, um regime - digamos mais autoritário toma o poder, a religião é restabelecida, tendo como imagem central a Santa Virgem. O esquema que descrevi parece ser específico da tradição ocidental judeu-cristã e islâmica, mas é a cultura na qual nos encontramos, nosso terreno de partida, ou nossa história. Se a mulher se sente a esse ponto cativa ou oprimida, é porque ela é instalada, pelo sistema da social-incestocracia, no lugar de modelo. Como fazer para escapar a essa função de modelo, quando tudo a empurra para esse lugar? Ela própria é cúmplice desse lugar que ocupa. O que se chama hoje de movimento feminista ou revolta das mulheres é uma primeira manifestação da tentativa de fugir desse sistema. Quando algo dessa imagem ausente for derrubado, quando algo da angústia do homem se desatar, a mulher se encontrará em outro lugar, poderá ser mulher sem ser necessariamente imaginada como mãe. Não tenho muitas explicações a fornecer. Como falo materno, ele não é mais do que uma figura da mãe, seja macho ou fêmea. Não há imagem de pai; não há poder que não seja usurpado. Deveríamos falar sobre o poder. Falamos daquilo que é ou deveria ser o pai. Que ele tenha até agora usurpado aquilo que se chama poder não modifica em nada o fato de que o poder é sempre uma usurpação. Não existe poder legítimo.

Co1no pensar o sexo sem a alteridade?

Tentei dizer, por meio de imagens, como me parece que nossa grande preocupação é fazer o mesmo, e que esse mesmo é sempre feito a partir de um único modelo, que é aquele, imaginário, da mãe. Inconscientemente, fantasisticamente, o outro é sempre reduzido ao mesmo, ou pelo menos é o que predomina. Vivemos num mundo homo. Então, quando se levanta a questão do sexo, que impõe uma diferença, essa é uma questão secundária ou principal, relativamente à alteridade? Mas como se pode pensar o sexo sem pensar a alteridade? Como se pode pensar a diferença sexual, se estamos mais ocupados em negar qualquer diferença? Como se pode deixar advir o "Isso", como diz Freud, ou pelo menos reconhecê-lo como algo diferente? Como superar nossa compulsão de fazer o mesmo, nossa compulsão à repetição, se a resistência maior "consiste" no medo do homem diante da ausência estrutural de modelo de homem? Para superar essa compulsão de fazer o mesmo, seria necessário demolir a maior das resistências, a que Freud descreve no mito de Totem e tabu. O pai é aquele que tem a posse de todas as mulheres. O que quer dizer "posse"? O que é, para uma mulher, ser possuída; o que é, para um homem, possuir, ou., inversamente, ser possuído? Estamos numa dialética de poderes, mesmo etimologicamente, ou então numa demonologia, isto é, numa lógica do destino, dos demônios, pelos quais se é possuído. Essa lógica do poder, ou esse sistema da demonologia, não são uma denegação de um fato que o homem recusa, a saber, que não existe posse de um outro, não pode existir, estruturalmente, posse de 32

Como pensar o sexo sem a alteridade?

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um outro? Pergunto-me se a invocação do falo não vem substituir areferência ao demônio ou ao destino. Também encontramos isso em Freud, nesta fórmula muito conhecida: "A anatomia é o destino." Enfim, ter ou não ter pênis é o destino,

daimôn. Como podemos conceber o falo para além de uma demonologia? Creio que, para fazer uma representação do falo - o que, de qualquer fonna, é ímpio - é melhor fazer como a criança e representá-lo como o falo da mãe. Se representássemos o falo como o pênis do homem, cairíamos num impasse. A grande vantagem do falo da mãe é que ele existe de uma maneira que não conhecemos, mas existe. Não vemos em que consiste o narcisismo da mulher, pela boa razão de que ele não existe. O narcisismo é um problema de homem, como a castração. Quando se diz que a mulher é narcísica, é uma projeção. E a mulher narcísica é uma forma de resposta às fantasias do homem. O que resta à mulher? Parece-me que essa seria a pergunta de uma mulher... que se põe no lugar ordenado pelo homem. Nessa perspectiva, é evidente que não lhe resta nada, pois, de qualquer forma, ela não tem nada. Mas se uma mulher consegue escapar da ideologia imposta pelo homem, como ela vai se pensar como mulher, isto é, de maneira diferente do que como mãe? É uma pergunta à qual não posso nem quero responder, pois, se respondo, renovo o sistema da dominância do discurso do homem. Não posso escapar à minha condição de homem e é verdade que, como Deus Pai, eu bem desejaria criar a mulher, mas isso não é assunto meu. O homem diz que a mulher é o sexo -- em francês, diz-se: "uma pessoa do sexo". Ainda não sabemos muito sobre o sexo, mas penso que uma mulher, não é o que ela tem a fazer, ou o que lhe resta. O que ela teria a produzir realmente é diferença, é sexo, e não apenas filhos; algo de diferente daquilo ao qual ela é culturalmente submetida. Ela tem a produzir o outro e não o mesmo, como faz o homem com a cumplicidade das mães. Produzir o outro, o diferente, é tomar possível que haja, um dia, sexo entre os seres falantes e não apenas sexo natural. Se se pode falar de narcisismo da mulher, ele está por vir, não é nostálgico ... Insistam sobretudo no trabalho que deve ser feito quanto ao homem, que se refere precisamente à sua angústia narcísica. A resistência mais fotie à mudança de regime, no sentido de regime político, consiste no medo do homem de reconhecer que não tem modelo e que deve renunciar à sua organização narcísica dominante, ou seja, que ele supere sua angústia de castração. Esse é o trabalho mais importante, a chave da situação.

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Mas isso são palavras da teoria, palavras já mortas. Cabe a ele fazer esse trabalho, e não à sua mãe. Nada impede que uma mulher faça ao mesmo tempo um outro trabalho e aproveite essa situação - por pouco que o homem renuncie ao seu poder- para "dizer-se e fazer-se" como mulher, isto é, diferente.

Narcisismo

Que angústia! Vivemos num mundo em forma de mãe! A sala, sua casa ou seu apartamento podem ser um espaço matemo. Aliás, a empresa na qual você vive também é um sistema que pode servir de mãe, boa ou má. Desde sempre, chama-se a universidade de Alma Mater. A Igreja, é claro, é nossa Santa Mãe, e também a pátria, a Mãe-Pátria. A viagem ao centro da Tena é, naturalmente, uma viagem no corpo da mãe. Tudo se organiza num dentro e num fora. O sedentário fica num espaço protetor, o nômade foge desse interior; ninguém escapa. A angústia do homem produz esse tipo de construção. Por que ele é obrigado a ver mãe em todos os lugares? É porque ele possui um órgão do qual tira um pouco de prazer e sua anatomia lhe dá um pênis, sempre grande, é claro! Por esse pedacinho de corpo que lhe dá um pouco de prazer, ele quer acreditar que detém a chave do paraíso. O paraíso é o outro mundo; ele tem a chave, ou pelo menos supõe que tem a chave do céu, como são Pedro. Para ele, é muito impo11ante defender esse sonho. Mas, ao mesmo tempo, ele tem consciência de que não detém a pedra filosofal. Não conhece a fónnula mágica com que sonham todos ossonhadores. Assim, é imp011ante dar uma realidade ao seu sonho, defender o pouco prazer que pode ter. Como garante ele o seu sonho, senão pegando o que está ao seu alcance, para fazer com isso a imagem desse outro mundo, isto é, a mãe? Houve pelo menos um momento na sua vida em que ele teve uma mãe a seu alcance, em que ele estava ao alcance de uma mãe, ou até no seu ventre. É um céu que ele conhece, e principalmente um céu do qual ele pode se fazer uma imagem. É impo11ante poder fazer-se uma imagem, 35

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quando se é um sonhador que sonha ter a chave do paraíso. Como não a temos, sonhamos ter o paraíso ao nosso alcance. A mãe é uma boa imagem de um paraíso ou de um inferno. Para manter esse sonho, tudo, o mundo inteiro se toma então representação desse pedacinho do céu, desse outro mundo que é o corpo matemo. A representação da mãe se torna o grande ídolo, e a atividade do homem consiste em fabricar ídolos, seja um metrô ou um arranha-céu, um sistema filosófico bem fechado ou uma teoria pessoal. Sua grande atividade é construir espaços fechados. A mãe, nesse sonho, é verdadeiramente o modelo universal que ordena o dentro e o fora, que nos dá até uma representação das leis da gravitação, um centro, uma periferia; a gravidade natural do homem o faz voltar para esse espaço mítico, a fim de manter o seu sonho. Desse outro mundo, representado pela mãe, ele tenta fazer o que chama de "seu lar", isto é, o céu. Acredita agarrá-lo com a imagem da mãe e constrói um monte de coisas a partir desse modelo, particularmente sua casa. Um processo divertido! Você pega imaginariamente um pedacinho do outro mundo e faz com isso o seu espaço, o seu mundo. Aliás, diz-se que um homem é casado, como se, com uma mulher, ele tivesse entrado na casa. Se estamos um pouco nostálgicos, dizemos que é o nosso refúgio. Ainda a barriga da mamãe ... Sobre esse mundo feito de lar, casa, propriedade, refúgio, o homem reina, como os reis do Ancien Régime, segundo o seu "bel prazer". O homem constrói assim um mundo de imagens que produz coisas extraordinárias.

Fazer a diferença

Então, como ser mulher neste mundo? Pois afinal, uma mulher não é apenas uma fantasia do homem. Todavia, pode-se pensar que uma mulher exista de outra forma. Não estou certo de conseguir sair das minhas fantasias de homem e espero que meu "lado mulher" possa falar um pouco, sem que meu "lado homem" o chame à ordem. Não é fácil para uma mulher escapar a essa universalidade da fantasia masculina. Vejam o que acontece quando uma mulher deixa a casa, ou não se conforma com o modelo "mãe". Ser mulher pode ser outra coisa além da reprodução do modelo "mãe" segundo a fantasia do homem, reprodução que não é nem mesmo uma cópia autenticada, é uma falsificação, no sentido em que se diz que há um original. Você tem um quadro e tem cópias do quadro. A mulher não é uma cópia. Se ela tenta sair da casa ou do modelo que o homem tem do seu refúgio, a repressão - mas não no sentido psicanalítico - se desencadeia. Se ela se pennite um distanciamento em relação à figura da boa mãe, pode muito bem ouvir: "É uma puta." Então, só haveria escolha entre a mamãe e a puta. Se ela começa a ser mulher, anisca-se a ouvir, até dos psicanalistas: "Você é uma histérica", uma louca. Outrora, até diziam: "É uma bruxa", e podiam queimá-la. É bem mais forte do que a repressão no sentido do recalcamento: uma mulher dificilmente sai do papel que lhe é atribuído. Ela luta com o medo de ser ela própria esse outro mundo, isto é, essa outra coisa ou esse outro sexo. Como se o real do seu mundo, embora seu, lhe desse medo. Esse outro mundo não tem necessidade de representação. Ao contrário do que o homem sonha, a mulher não tem nenhuma necessi37

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dade de ser representada. Ela tem uma relação imediata com esse outro mundo. Para ela, o que sempre é possível é produzir vivo real, com o seu corpo e no seu corpo. Então, por que ela tem medo de reconhecer esse mundo, que é o seu? A ameaça da repressão masculina tem a ver com isso, pois se verdadeiramente ela tem essa relação imediata com o real, o poder do homem, que está nas representações e no sistema das imagens, vai desabar. Irá ela então - pois parece-me que é assim que ela o vive - ficar exilada nesse outro mundo, que não é o mundo das representações, mas o do presente? Irá ela expor-se a ser chamada de louca, isto é, alienada, em outro mundo? Ela tem necessidade de se deixar colonizar pelo poder das representações, pelo mundo das imagens, isto é, pelo mundo das fantasias? Grande é a angústia de ter a possibilidade de viver nesse outro mundo. Seria pois necessário que ela se deixasse colonizar pelo poder do homem, poder de um império de palavras mortas, palavras que não são mais do que representações e que recusam sua referência, sua relação com o presente? Palavras m01tas c01tadas do real, do vivo, do que é atual, do que ocorre em atos e não apenas em palavras. Como a mulher pode assumir esse "fora-de-lugar", esse semlugar no sistema das palavras mortas? Como pode ela assumir sem angústia esse outro mundo, mundo da presença, que entretanto é o seu? Não é o céu. Não é um mundo depois da morte. E o mundo, agora, onde a vida é sempre a mais forte. Esse outro mundo é presente! Uma boa maneira de se livrar da mulher é dizer que o outro mundo está depois da morte. Como ser mulher? Não posso responder. Entretanto, o homem sai, o homem volta e reconhece que suas fantasias não são a lei. As palavras que ele usa, ele já as matou. Como ser mulher, a não ser renunciando aos beneficios do status de colonizada? Aceitar, como uma roupa pronta, as imagens do homem, é deixar-se colonizar - e eventualmente deixar-se deportar. Não tem saída, estamos ainda na mãe. Ser assim colonizada deve oferecer vantagens, pois há dois mil anos que isso dura. Como ser mulher? Afirmando que o céu não existe apenas depois da morte, mas que esse outro mundo está aqui, que ele existe realmente, que ele é presente_. À outra parte cabe dizer que não é o inferno, que as mulheres não são diabas que levam você direto para o inferno. Mas o céu e o inferno não estão nem acima nem abaixo, eles estão aí. Como ser mulher me parece uma pergunta necessária, antes de poder pensar o que pode querer dizer uma mãe, e o que uma mãe faz: ela é. O que a mãe faz? O poder do bel-prazer do homem impõe a imagem de uma mãe todo-poderosa, plena, redonda, como as estátuas de certas

fa:er a d1fere11ça

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deusas, tão plena que o leite sai, e com ele se enche o filho querido ou, inversamente, a imagem da mãe completamente má, que vai devorar o filho, comê-lo. Ao contrário da imagem da mãe-refúgio, da mãe-continente, encarceradora, devoradora, o que faz uma mãe, ou deveria fazer, é abrir as portas. Aliás, ela o faz na realidade, tanto no tempo da concepção quanto no tempo do nascimento, mas isso é apenas uma metáfora. Não é dessas portas que quero falar, mas daquelas que abrem o caminho entre o mundo do presente e o mundo da representação, dois mundos que não se casam bem. O mundo da representação reina universalmente, pelo seu imperialismo, sobre o mundo do presente. Não é exatamente o que se chama uma porta aberta. É um aprisionamento; mas vamos ficar com a imagem desses dois mundos. Quem pode passar por esse caminho? Um caminho pelo qual o homem deveria poder passar, apesar da sua cabeça grande, cheia de falso saber; ele deveria poder passar para reconhecer que o outro mundo, o do presente, do real, do atual, não é um mundo de recompensa ou punição, que não vai achar nele nem confirmação narcísica nem perseguição, porque é o que ele imagina. E é um caminho pelo qual a mulher também deveria poder passar, na medida em que houvesse uma mãe que abrisse verdadeiramente as portas. Ela poderia passar, para experimentar que o mundo das representações, d.as imagens, não é apenas e necessariamente uma prisão ou um exílio do presente, mas que ele poderia ser uma outra figura do Céu, do Paraíso, um lugar em que não se joga somente como nesse mundo do presente, no qual ela tem medo de ser confinada, um mundo em que a angústia a ameaça, porque nele haveria um excesso de real. Ainda não chegamos lá, ainda estamos em guerra. O poder do império das palavras mortas ainda é muito fo1te. Entre os homens e as mulheres, qualquer que seja a ternura que às vezes se manifesta, na maioria das vezes a regra é a violência, para não dizer o estupro. Qual é o motivo dessa guerra? Continuar a impor ao outro que ele seja o mesmo, continuar a fazer a mulher viver, ou antes continuar a impedi-la de viver, como se ela fosse apenas uma fantasia do homem. É a guena, e o que domina nas relações entre sujeitos são os efeitos da colonização. Somos todos iguais. Somos todos mães disfarçadas de homens-mulheres. Somos todos judeus árabes. Somos todos judeus alemães. Somos todos negros brancos etc. Somos todos iguais. O motivo da guerra é manter relações homossexuais. Entretanto, já sabemos, pelo simples fato de que possamos falar disso como fazemos agora e como outros fazem em outros lugares, que quando o outro, o sexo, isto é, a diferença, estiver verdadeiramente presente e não apenas re-presentado, faremos talvez outra coisa, talvez amor.

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Não tenho a ingenuidade de crer que algum desses dois mundos que caricaturei possa existir sozinho. O que me interessa é a situação atual, dominante, das relações entre os vivos, relações entre homens, entre homens e mulheres, entre mulheres, exatamente como temos, em nossa prática analítica, uma relação habitual com um outro ou uma outra. Quando, nesta situação de conferência, tento falar com vocês, não é apenas para propor conceitos. É porque penso que estamos em estado de guerra, porque penso que meu pequeno ponto de vista é estratégico. Atualmente, o que constitui a praça-forte dessa guerra é a posição do homem diante do que a teoria psicanalítica chama de castração. Enquanto esse tremendo blocausse-fortaleza não for destruído, por mais que se fale nas sociedades eruditas, o mesmo estado de coisas continuará. É por isso que, de um ponto de vista estratégico, atribuo atualmente um privilégio ao que chamo de relação da mulher com aquilo que faz a diferença. O que faz a diferença na linguagem teórica da análise se chama, confusamente, o falo. O medo da castração é um problema do homem. Enquanto esse medo continuar a fazer o homem pensar como ele pensa, nada será mudado. É por isso que, no presente momento, pareço dar um privilégio ú posição feminina. No momento, atribuo a responsabilidade maior, e até mesmo exclusiva, à angústia do homem diante da castração. Parece-me que a mulher não tem a mesma necessidade de investir o sistema das representações, porque, quanto a isso, ela não tem nada a defender. Seu problema seria, antes, poder utilizar o sistema das re-presentações sem se deixar colonizar pelo desejo do homem. Não é uma angústia diante da perda de uma representação, mas diante de algo que ela poderia viver como um excesso de real. Quando uma mulherespera um filho, encontra-se em situação de ter de fazer uma relação entre dois mundos. Ela se representa o filho que vai ter, um filho real. Todo o problema, para ela, será estabelecer uma referência, uma relação entre o que ela imaginou e a realidade daquilo que ela produziu. A civilização religiosa garantia a verdade revelada dessa relação, o problema sequer podia ser levantado. O que fazia de uma mulher uma mãe era o Espírito Santo; o real era assumido pelo Espírito Santo. A grande dificuldade é pensar a relação das representações com o real. A dificuldade contemporânea é que o sistema de representações reveladas - o das Sagradas Escrituras - não tem mais o mesmo poder; somos obrigados a assumir aquilo que, até agora, deixávamos a cargo de Deus. Como podemos dizer, nós homens e mulheres, o que constitui uma mulher? As respostas que podemos dar são muito pobres. Posso apresentar uma hipótese que nos seria muito familiar. Quando uma mulher

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produz um filho, ela se encontra na situação de produzir realmente alguma coisa que pode facilmente ser uma representação daquilo que faz a diferença. Sabemos, e isso parece evidente, que o filho se toma o falo da mãe, isto é, que o filho se torna o suporte de uma representação do falo. É o mesmo processo para o homem que, pelo fato de possuir um pênis, acredita possuir uma representação daquilo que faz a diferença. Mas não é exatamente a mesma coisa. Uma mulher não possui um filho. Ela é mulher pela possibilidade de produzir no seu corpo e fazer sair dele um filho. Assim, não é inicialmente uma relação de posse, corno o homem diante do pênis. A mulher tem a possibilidade de produzir um filho. Dizer que o filho é o falo da mulher é uma fónnula excessivamente condensada. Sobre o filho é projetada a representação daquilo que faz a diferença, isto é, uma representação do falo. Mas isso também não é verdade, pois não há representação do falo, assim como também não se pode dizer que o pênis é verdadeiramente uma representação do falo. É tão-somente a indicação de uma direção, que remete ao que faz a diferença. Lembro que o falo não é nem representação, nem real; ele é o que "faz a diferença" entre os dois. Como se constrói a relação do sujeito-mãe com o filho que ela produziu? Evidentemente, ela recebe do filho uma espécie de mensagem, como se o filho fosse verdadeiramente um pedaço de real, um falo real. O problema, para ela, é representar-se o que é esse outro vivo que vem dela. O filho é real, mas isso não quer dizer que ela se represente o real. Enquanto havia um sistema de representações reveladas, que fazia do filho uma produção de Deus, pela mediação do Espírito Santo e com o homem corno instrumento, a coisa podia ser pensada e vivida. Mas hoje, que temos de dizer por nós mesmos aquilo que fazíamos Deus dizer, como vamos poder dizê-lo? Parece-me que atualmente a mulher vive o que faz como mãe com as palavras do homem, isto é, segundo o mesmo processo ou o mesmo raciocínio inconsciente do homem: produzi um filho que é uma representação daquilo que faz a diferença, uma representação do falo, e vou defendê-lo. Mas esse é o modelo do homem. É uma possibilidade que fecha a mulher numa imagem de mãe, a mãe como o homem a construiu, e a impede de se pensar como mulher. O processo que deveria ser o de uma boa mãe seria interrogar-se sobre sua posição subjetiva de mulher, sobre a particularidade do seu caminho, que vai do sujeito ao falo, isto é, interrogar-se sobre o seu desejo. Ora, a relação de uma mulher com o que faz a diferença, com o falo, não é a mesma que a do sujeito masculino. Ela é, de certa maneira, garantida por uma relação com o

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real. É por isso que eu lhes dizia que o seu terceiro olho, o seu olhar, que não é o da pulsão escópica, está voltado para o lado do real. Mas o que ela vai fazer com isso? Pois é preciso, apesar de tudo, que ela possa fazer a diferença entre o real e a representação. Clinicamente, é sempre interessante conhecer a representação que uma mãe pode ter do filho que ela carrega ou espera. O que vai acontecer ao filho em sua relação com a mãe é a realização dessa relação entre a representação que a mãe faz do filho que espera e o real. Por exemplo, outra situação muito atual: na representação que uma mulher faz do filho que espera sempre surge, mesmo que ela não queira saber nada sobre isso, a questão do sexo da criança. Ela diz: "Eu queria uma menina" ou "um menino", ou então "Tanto faz, o que vier está bom". De qualquer forma, a questão surge. Há alguns anos existe a possibilidade de saber o sexo da criança in utero. Faz-se sistematicamente uma amniocentese nas mulheres em risco de gerar uma criança mongolóide e, na mesma ocasião, fica-se sabendo o sexo do feto. Surge então a pergunta: a mulher quer saber o sexo do filho? Algumas recusam, querem preservar sua representação livre, pelo menos durante o tempo em que estão grávidas, como se dissessem: "Terei bastante tempo até ser confrontada com o real." Entretanto, o que lhes é proposto é dizer-lhes algo sobre a diferença. Mas, na maioria das vezes, elas dizem não. Parece-me que a "boa mãe" é aquela que não tem angústia demais diante do real que ela produz -- angústia demais quer dizer também prazer demais ou êxtase-, mas que pode apreender alguma coisa da diferença real que ela produziu. A "boa mãe" é aquela que deixa o filho ser outra coisa. Ela não se serve disso para desatar a sua relação com o real e não o investe como um falo real. Para realizar isso, não poderia ter uma relação com o falo do mesmo tipo que a do homem, porque o problema se apresenta diferentemente para ela. Seu problema parte do real, o do homem parte do sistema de representações que ele investiu. Se ela pensa como um homem, não poderá ser verdadeiramente um sujeito feminino. Mas como só o pensamento do homem reina, a situação é difícil; ela tem de construir ela própria um pensamento de mulher. Se a nossa sociedade promove tanto a imagem da mãe, em detrimento da "mulher", somos levados, inevitavelmente, a nos interessar pelo incesto. Eu disse que só havia incesto com a mãe. O que é o incesto, senão fazer amor com a própria mãe, e, por extensão, com a mãe? Lembro, de passagem, que como estamos sempre construindo mãe, em todo amor o que domina são sempre amores incestuosos.

fazer a diferença

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Vamos tomar o problema mais restrito, fazer amor com a própria mãe. Se a mãe é o que produz a possibilidade de ter acesso àquilo que faz a diferença, fazer amor com a mãe é fechar a possibilidade de ter acesso, como sujeito, ao falo. Nesse sentido, há incesto. Continuamos a pensar que a lei, isto é, o que pode se dizer sobre essas relações entre os homens e as mulheres, foi enunciada por Deus Pai. Hoje, mesmo se tentamos assumir o que se tinha delegado a Deus, continuamos, apesar de tudo, a pensar que é o pai que deve fazer a lei. Mas por que seria o pai o único a poder dizer e falar? Tudo que acabo de indicar afirma que a mulher tem a dizer o que é a sua posição subjetiva, que ela não está exilada no continente negro da realidade, do real. Enquanto continuar a pensar que seu desejo não pode ser dito, ela permanecerá nessa terra de exílio ou de colonização, que é apenas o reflexo do pensamento do homem, isto é, da sua angústia. Mas essa lei só pode ser dita "com... ". Não é o homem que, como Deus Pai na religião, pode dizê-la ou fazê-la. Essa lei só pode ser feita e dita com uma mulher e um homem. Mas, para isso, seria preciso que os homens começassem a escutar.

Entre o corpo e as palavras, o falo

No momento, no regime sob o qual vivemos, a diferença é apagada pela imagem da mãe. O homem não cessa de construir essa imagem para se defender de sua angústia narcísica, com a cumplicidade das mulheres. A mulher está esmagada sob um acúmulo de modelos. Não tem o mesmo problema que o homem com o modelo. Seu problema é escapar ao modelo. O problema do homem é a angústia de não ter modelo. A palavra "narcisismo'' pode nos enganar. Minha posição supõe uma teleologia, uma finalidade criticada como fim e como origem, a fim de pôr cm ato a diferença. O fim da minha perspectiva teleológica é pôr em prática, em ato e em palavras, a diferença: criar "outro" e não "mesmo". Na minha prática, hú um aspecto de provocação, isto é, uma expectativa de que o outro fale como outro; nesse sentido, é verdade, eu interpelo as mulheres. Parece-me que Freud só podia pagar - pois essa é a lei do regime no qual ele já vivia - pelo fato de ter descoberto o Outro. Aliás, ele sabia disso e dizia que aquele que anda por regiões desconhecidas se arrisca a ser punido, o que não o impediu de fazer o novo. Isso é mais importante do que aquilo que ele repetiu de mesmo, porci,ue me pergunto qual é a legitimidade desta expressão: "A lei do Pai." E um estado de fato, mas qual é a sua legitimidade? Por que é preciso dizer que a lei é do Pai? Por que deveria ser sempre assim, logos e lei colados ao Pai? Só o homem falaria, a mulher seria muda? Foi por isso que lhes propus como ponto de pa11ida o conceito analítico de falo da mãe. É a mais sugestiva das representações. Se uma mulher falasse disso, o homem diria que o desejo de uma mulher "é de44

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sejo de nada", como, justamente, se reconhece na histérica. Mas o que quer dizer "nada" para o homem que diz isso, a não ser "sem representação"? Se penso novamente na relação da mulher com o modelo, isto é, nas representações nas quais ela é modelada, parece-me que o desejo é precisamente ter outra relação com os sistemas da representação, uma relação diferente da do homem. É por isso que observo que no mesmo momento em que se queria falar do falo, no momento em que eu sugeria que uma mulher falasse disso, precisamente o que ela pensava lhe escapou. Penso num fato bem conhecido: quando uma mulher manifesta, expressa o seu desejo, muitas vezes o homem - que, entretanto, acredita desejá-la também - perde a ereção. Com certeza é por isso que os homens dizem que muitas mulheres são frígidas; isso excita os homens. Também se poderia falar da afânise. O falo é uma função. Já que perguntávamos qual era a função do pai, a função da mãe, o falo faz a relação possível e impossível entre os significantes e os objetos. Pode-se dizer, para representar as coisas de modo intuitivo, que ele faz a relação entre o corpo e as palavras, entre dois termos que não têm relação. A quesião que devemos considerar para construir o conceito psicanalítico de sexo é saber a relação que o sttieito do inconsciente ( que represento assim: Si) mantém com o falo; o sujeito é um efeito da cadeia dos significantes. O significante representa o st~jeito para um outro significante. Tsso é ao mesmo tempo uma fonnulação e uma fórmula mágica, cuja pergunta é: qual é a relação do sujeito com a função que permite uma relação entre o significante e o objeto? Digo "fónnula mágica"; também poderia dizer "invocação" ou "provocação". Ele não é nem significante nem objeto, é ao mesmo tempo significante e objeto, e não é nada disso. É uma função. A construção do conceito psicanalítico de sexo é a elaboração da intuição freudiana da castração, que se precisa da seguinte maneira: relação do sujeito do inconsciente com a função fálica. Segundo Freud, jogamos sempre com os demônios, o destino, a anatomia; pelo fato de que o homem é provido de um pênis, tem uma forte tendência a se acreditar possuidor de uma representação do falo, mesmo que não saiba disso. Representação do falo que faz com que seu olhar seja, de preferência, voltado para o sistema das representações inconscientes, isto é, dos significantes, na terminologia lacaniana. A mulher não tem o mesmo problema. Por causa de sua anatomia, ela não possui, ou não se sente possuir, uma representação do falo. Não sei para onde está voltado o seu olhar, mas não está orientado para o "desejo de nada", um desejo sem representação. Seu olhar está mais di-

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retamente voltado para o lado do real, isto é, do objeto, por oposição às representações. Seu problema é saber o que vai fazer com o sistema das representações que reina pela ação do homem. Imperialismo do significante. Esse lado do real é também o do corpo, que existe apesar de - e com - o sistema das representações, mas que não se reduz a ele. O corpo não é apenas um sistema de representações. Descritiva, e não estruturalmente, o sujeito-inconsciente homem está numa relação com o falo que privilegia o investimento do sistema das representações pelo qual, para ele, tudo passa, enquanto a relação do sujeito-inconsciente mulher está, por assim dizer, em contato direto com o real e, secundariamente, seu problema será formalizá-lo. Eis assim dois tipos de relação que privilegiam, cada um, um aspecto da função fálica. O olho, o olhar que o homem lança, de modo privilegiado, para o sistema das representações, é um objeto, isto é, uma parte significante do corpo vivo. Porque o homem tem um pênis, ele acredita ter, possuir uma representação do falo, mas é uma ilusão que o deixa na angústia. Ele volta seu olhar para o lado do sistema das representações, para certificar-se de que aquilo que acredita ter - uma representação do falo - vai realmente permanecer, não irá embora. É isso que determina sua angústia. Ele precisa então garantir essa representação. O sistema e.lo homem, que consiste em investir o sistema das representações a fim de confirmar a idéia de que ele tem uma mestria sobre a representação do falo, deixa lugar para a c.lúvida; ele não crê completamente no seu lado feminino. Em geral, é quando o seu pênis não funciona como ele c.lesejaria que ele começa a se fazer perguntas. No sistema das representações que interessa ao homem, a mãe tem um lugar. A outra mulher do título do livro de Luce lrigaray 1 é realmente aquela que não é a mãe. Na minha fónnula mágica, não há representação do lugar de uma mulher. Esse lugar da mulher, não posso - nem quero - indicá-lo, porque se o fizesse repetiria a dominância do sistema das representações. Cabe às mulheres não fazer um lugar para si, mas fazer a diferença. Penso que o homem, por ter um pênis, tem a ilusão de possuir uma representação do falo. Minha idéia é que o sujeito do inconsciente de uma mulher não tem o mesmo problema em sua relação com o falo. Como se organiza, para um sujeito feminino, a relação com o falo? O falo não existe nem no sentido de um objeto, nem no sentido de uma representação, mas no de uma função. Quando digo "função", uso o nome em lugar do verbo. "Função" é fazer aquilo que faz.

entre o c01po e as palavras, ofalo

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O que faz o falo? O conceito dessa ação se torna função do falo. O falo faz a diferença, no sentido mais ativo do termo, a diferença entre o sistema de representações inconscientes e outra coisa, que se pode chamar de real, o "atual" em ato, isto é, o que é diferente daquilo que é representado. A representação não é representação do real. A representação é um sistema diferente do real. É a diferença entre o sistema das representações e o real que constitui o problema da psicanálise. O sistema das representações permite fabricar realidade, por exemplo, o sistema de representação da ciência eletroacústica pennite fabricar a realidade de uma memória. Essa máquina grava as representações verbais que trocamos, e mesmo que você esqueça, ela lembra. É a realidade de uma memória sobre a qual você tem controle. Mas o atual, o real, não pode ser gravado. Você pode fazer fotografia, pintura, até cinema, mas nunca representará o real; você fabricará uma realidade que tem a sua técnica e a sua lógica, diferente dessa outra coisa que é o real. O que o falo faz é a diferença entre os sistemas de representações e essa outra coisa que é o real. O problema é a relação do sujeito do inconsciente com o que faz a diferença. Quando se pensa, imagina-se que se descobrem diferenças, mas as diferenças que acreditamos descobrir são sempre diferenças no interior do sistema das representações. Não podemos ter uma garantia de possuir o que faz a diferença entre o real e a representação, pois o que faz a diferença, o falo, não existe nem como objeto nem como representação. Podemos ter a ilusão, como o homem, de possuir uma representação do falo, mas não é verdade; não há posse possível daquilo que faz a diferença. A relação do sujeito com aquilo que faz a diferença é uma relação viva, ela "se faz" sempre, ela não é, não tem existência no sentido de uma fixidez. Quanto à relação do sujeito feminino com o que faz a diferença, não podemos dizer nada de modo temático, porque essa relação é viva. Não podemos, como fazem os anatomistas ou os anatomopatologistas, fazer uma preparação anatômica ou histológica e fixá-la, porque nesse momento fazemos dela uma representação que é diferente do que se diz. A paixão do sujeito masculino pelo sistema das representações se obstina em querer fixar e representar a relação com o que faz a diferença. É por isso que eu dizia, quando me propuseram falar em lugar de urna mulher, que isso equivalia a me pedirem que eu continuasse a dominação do sistema da representação, o que se chama, muito aproximativamente, de poder falocrático. Entretanto, parece-me que a relação do sujeito feminino com o que faz a diferença-o falo-é menos obcecada pela preocupação com a representação, mas tem uma abertura maior

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para o real, para o atual, para o que vive, apesar da dominação das representações. O falo, que faz a diferença, é uma função viva. Até se poderia dizer: entre a vida e a morte. O tenno "dialética" me veio à mente, mas ele não convém, porque "dialética" designa o que se joga no interior do sistema das representações em positivo e em negativo. Mas há uma vida entre a representação e o real. Para encontrar uma palavra que não seja "dialética", deveríamos retomar o tenno original logos, que está em são João, cuja fórmula muito conhecida é: "No princípio, era a palavra", ou "o verbo", e/ou "No princípio era a ação, o ato". No texto original, esse termo diz as duas coisas: no princípio, era a palavra-ato. Nesse sentido, utilizar a palavra "dialética" é dizer o que está em jogo entre as palavras-atos, entre o sistema das representações e o real, o atual. Há, pois, um movimento contínuo entre o sistema das representações e a outra coisa. No conceito inconsciente de tempo, sempre há o real que se acha projetado no sistema das representações, representações que tentam fixar-se no real. O que faz a diferença - o falo - se projeta ou está em movimento, tanto em direção ao sistema das representações quanto em direção ao real. Inversamente, o real é projetado naquilo que faz a diferença, isto é, o falo. A única realidade seria o falo. Mas como o sistema das representações se projeta naquilo que faz a diferença, o falo seria apenas representação. Tudo isso não púra de estar em movimento; estamos sempre diante de fenômenos híbridos, oscilando entre real e realidade. Dei como exemplo de realidade da memória a fita magnética, e também tudo o que está escrito nos livros, revelado pela foto ou gravado na pedra. Essa realidade é uma construção, constituída por um conjunto de representações. Quando você constrói um viaduto, hú primeiro a imagem muito simples do viaduto, o desenho; depois você dá o projeto a um escritório que traduz em cifras e fórmulas esse projeto, outro sistema de representação. Depois, passa-se à realização concreta. Os cálculos e as plantas do escritório são retraduzidos em materiais, cuja resistência é calculada, e afinal, você tem a realidade do viaduto. Essa realidade é uma construção que passa por uma história, como uma tradução de um sistema de representações para outro sistema de representações, acabando por dar uma realidade. É grande a tentação de projetar o sistema de realidade, a realidade, sobre o real, porque o real, tal como falamos dele, é, ao contrário, aquilo que não se deixa prender no sistema das representações. Mas é dificil, com tudo o que construímos no sistema das representações, reencontrar o real, isto é, o atual, que já não estaria construído ou reconstruído.

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Retomo meu primeiro exemplo. A memória, realidade da gravação cinematográfica ou magnética, pode nos fazer crer que enfim aprisionamos a memória e que fazemos dela uma realidade, mas sabemos, na prática analítica, que essa memória não nos serve de nada, não é o real da memória. Você pode gravar as sessões, até filmá-las; é o meio mais certo de não atingir o alvo, de esquecer o que realmente aconteceu durante uma sessão. Quando um paciente lhe traz uma lembrança muito bem inscrita, com muitas representações bem organizadas, você sabe que se trata sempre de uma lembrança encobridora, para evitar se deparar atualmente, realmente, com aquilo que sempre foi e aquilo que ainda é. Digo isso para tentar precisar a distinção entre realidade e real. Nenhum sistema de representações pode ser concebido sem a diferença para com o real. Se eu escrevesse certos termos num livro, sem que pudesse falar com vocês, eu certamente reforçaria a dominância do sistema das representações. É só porque lhes falo que posso, ao mesmo tempo, fazer uma representação que não seja apenas morta. Toda projeção do sistema das representações sobre o real é uma tentativa de colonização. O efeito dessa tentativa de colonização é apagar a diferença. Outro movimento, absolutamente importante, é a projeção do "fazer a diferença" sobre o sistema das representações, outro modo de apagar a diferença, um semblante de diferença. Outra alternativa é projetar um pouco de real na realidade, uma pequena parcela de real que se introduzirá no sistema das representações. E uma ilusão exemplar dizer que o destino está marcado nas linhas da mão. É verdade, mas ele está marcado em todo lugar. Pode-se ler toda a patologia na íris, como fazem alguns médicos, mas isso é um desvio. O real não se partilha. Enfim, a última possibilidade seria projetar o que faz a diferença no real. Sabemos que parece mais fácil apreender o real se o cortamos em pequenos pedaços. Os pedaços de corpo existem, mas não sozinhos. Uma das formas mais impressionantes de aproximação do real é quando você acorda durante a noite e vê repentinamente uma perna avançar sozinha. Você percebe então que o real dá medo. Na prática, sempre temos de trabalhar com esses termos embaralhados, porque toda a história nos ensina, principalmente, a reconhecer falsas pistas. É preciso dizer que, se um certo número de pessoas reconhecesse em palavras e em atos que o que faz a diferença não pertence a ninguém, todo o sistema de poder cairia por terra. Até agora, parece que a maioria não tem interesse nisso, e é uma pena. Penso que Freud, descobrindo a psicanálise com as histéricas, fez uma tentativa de ouvir como

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uma mulher podia falar na sociedade vienense, apesar de tudo. O efeito foi a construção da psicanálise e sua teorização, mas me parece que ele só explorou uma pequena parte do território que descobriu: a neurose, isto é, a obsessividade. Penso que é verdade que existe apenas uma neurose, a neurose obsessiva. Paradoxalmente, esse ponto de partida da descoberta de Freud permanece inexplorado. A famosa expressão "continente negro", que se refere à sexualidade feminina, é um retorno do obscurantismo. Esse continente é negro porque querem deixá-lo negro. Entretanto, na análise de Dora, que é uma análise fracassada, ele nos dá pequenas indicações. Mas penso que a história da psicanálise é dominada pela exploração do campo da neurose, isto é, da neurose obsessiva, e que a construção da noção de neurose histérica é apenas um efeito de retorno daquilo que foi verdadeiramente explorado, mas deixa em suspenso o que lhe permitiu descobrir a psicanálise, isto é, a questão do desejo de uma mulher. Assim, penso que a maioria dos conceitos da psicanálise tem sua pertinência nesse território ou espaço que é a neurose obsessiva; o problema da castração, o do recalcamento, a questão do narcisismo, todos os grandes conceitos da psicanálise, enfim. Seria inexato transpor esses conceitos - certamente válidos no campo da neurose obsessiva, e que convêm para o rapaz - para a moça. Chega-se a impasses. Quando se fala do problema da castração, ela convém para o homem afetado pela neurose obsessiva, neurose masculina, mas não convém àquilo que ainda se chama histeria, campo em que o trabalho está por fazer. Eu poderia fornecer muitos outros exemplos, mas insisto principalmente na questão do método, fundado num ce1io olhar sobre a história do movimento e do pensamento psicanalíticos. Temos novos conceitos a encontrar para aquilo que ainda se chama neurose histérica, para a psicose, mas parece-me um mau método estender os conceitos descobertos no estudo da neurose obsessiva, praticamente todos os conceitos psicanalíticos, a outros terrenos de exploração do aparelho psíquico. Entretanto, o estudo de um terreno do aparelho psíquico como o da neurose obsessiva pode fazer surgir fragmentos de leis que regem o funcionamento do aparelho psíquico. São essas leis que temos de trabalhar e, em parte, descobrir. Por exemplo, no conceito de recalcamento, aplicável à neurose obsessiva, com o investimento dos mecanismos do pensamento - diz-se até superinvestimento - podemos reconhecer o que constitui a evitação ou o medo da castração. Mas, mesmo em sua formulação da teoria, Freud é muito explícito sobre o que ele chama de recalcamento secundário. Nessa imagem, as representações recalcadas

entre o corpo e as palavras, o.falo

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são representações conscientes que foram recalcadas no que se chama inconsciente. Contudo, para explicar o mecanismo do recalcamento, Freud é obrigado a reconer à hipótese de um recalcamento originário. O recalcamento não é apenas uma força que empuna uma representação consciente para o inconsciente, mas haveria uma atração, uma força de atração, que faria com que certas representações caíssem naquilo que é originalmente recalcado. Na teoria freudiana, o recalcamento originário permanece um enigma. Nós nos voltamos para a questão do recalcamento originário quando estabelecemos uma relação com um psicótico, mas só temos metáforas como teoria. Parece-me que o que lhes proponho permite avançar um pouco mais, porque algo do funcionamento e da própria natureza do recalcamento originário aparece. A força de atração que Freud supõe no recalcamento originário teria como fonte justamente a outra coisa, isto é, o real. Na teoria existente da neurose obsessiva, penso que isso é um suplemento que permite conduzir mais claramente o tratamento de uma neurose obsessiva. Vocês sabem que, no tratamento de uma neurose obsessiva, o paciente é tão especialista quanto o psicanalista em todo o jogo dos deslocamentos referentes aos representantes recalcados secundariamente. Como se diz, "eles andam cm círculo" e as palavras mais comuns são: "Não consigo me safar disso." Aliás, é também o que o psicanalista pensa. Se podemos pensar "algo" referente ao recalcamento originário, talvez o paciente possa nos ouvir e "algo" possa verdadeiramente mudar em sua economia. Mas, para isso, é preciso primeiro que o psicanalista compreenda que a neurose obsessiva não é a psicanálise inteira, e, sobretudo, que ele desinvista a organização obsessiva das sociedades psicanalíticas. Vocês também sabem que as obsessões graves - não as neuroses obsessivas, mas os grandes obsessivos-, nós os sentimos como psicóticos e encontramos diretamente, a partir do sintoma obsessivo, o problema do recalcamento originário. Podemos encontrar no nó do recalcamento originário o problema do narcisismo, pois o narcisismo na neurose obsessiva começa com o investimento de uma representação do pênis, que ele interioriza e investe como seu campo de base. Interrogando a noção analítica de narcisismo, encontraríamos a mesma distinção que para o recalcamento, entre um narcisismo secundário - aquele sobre o qual se trabalha - e o narcisismo primário, sobre o qual se acredita que nada se pode fazer, porque se imagina que, quando ele é tocado, entra-se numa ordem psicótica. A verdadeira razão é que, falando-lhes como fiz, eu estava inteiramente num sistema obsessivo.

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escritos clínicos

É quando a primeira representação do pênis como falo se instala que o narcisismo primário se constrói; quando algo ameaça o poder dessa representação, a angústia aparece.

Corpo e palavra

O que o paranóico nos ensina sobre aquilo que ameaça o poder dessa representação e do narcisismo? O paranóico sempre tem razão, mas não sabe onde se situar para dizer o seu protesto, é muito astuto e muito desconfiado. Conto-lhes uma fábula. Ele diz a si mesmo: "Se me apresento como sujeito, vão me agarrar, vão me fazer entrar à força no sistema, logo recuso-me a ser um sujeito. Eu sei como são as coisas; é o conjunto do sistema dos significantes que manda, que reina. Se me apresento como sujeito, entro no sistema, e desse sistema eu não quero saber. Protesto radicalmente, mas já que é preciso viver, digo que reconheço o conjunto dos sistemas dos significantes como aquilo que dirige 'o conjunto'. Provem-me o contrário ... Talvez, depois que se fizer a revolução ... " Evidentemente, há formas de paranóia mais bem-adaptadas. O paranóico pode dizer: "Sou eu que vou mudar o mundo." Ou então: "O mundo me persegue." É verdade. O que domina, no delírio paranóico, é a recusa, ao mesmo tempo que o reconhecimento, de entrar ou ficar preso no sistema. É mais f01te do que o desejo de construir um narcisismo obsessivo. O efeito dessa recusa é um narcisismo universal, com muita angústia, às vezes. Mas o que domina é a recusa de passar por esse caminho: "Não quero ser um sujeito." O resultado é que há apenas o ser eu, pois estruturalmente não há sujeito; o sujeito é Deus ou o conjunto do discurso. Em contrapa1tida, o sujeito não é nada mais, na teoria de Lacan, do que aquilo que é representado por um significante para outro significante. É uma função ou um tenno. O que caracteriza essa função é o ser, 53

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escritos clí11icos

por assim dizer, o suporte da divisão. Acrescento, para completar o horizonte do que é a estrutura no sentido lacaniano, o tenno objeto, que também se distingue fundamentalmente do objeto no sentido da psicologia ou da filosofia. É nesse ponto que a dualidade dos sistemas está absolutamente presente na fonnalização lacaniana. O objeto "a" descoberto por Lacan deriva do que Freud chamou de objeto da pulsão. Se quisennos retomar o conceito de objeto "a" na formalização de Lacan, teremos de retomá-lo a partir do que conhecemos do sistema das pulsões e do objeto da pulsão parcial. A palavra que tem um corpo é uma expressão que me agrada. A palavra que está perto do corpo. Entretanto, penso que não há saída se continuannos a trabalhar somente sobre oposição corpo/palavra. É preciso que desenvolvamos e trabalhemos o que se chama, com uma única palavra, "o corpo". Há muitos corpos. No momento em que se fala de corpo epistemológico, também se fala de corpo teórico. Para dar-lhes uma idéia de uma direção de trabalho, proponho analisar o que se chama "corpo". Em nossa mais profunda tradição, o corpo se situa em oposição à alma, à psique, precisamente, e estamos num período histórico em que pensamos de novo a mesma coisa. Por exemplo, fala-se de psicossomática. Mas, depois, levou-se em consideração o corpo, e basta tomar velhos tratados de anatomia ou de fisiologia para perceber que a anatomia - isto é, um olhar objetivo ou supostamente objetivo sobre o corpo é sempre uma construção originária, centrada em torno da glàndula pineal, com órgãos que não estão necessariamente em seus lugares reais ou que assumem uma importância, como encontramos, por exemplo, na hipocondria. O que se deve saber é que ainda hoje a anatomia, mesmo a mais científica, é uma anatomia imaginária, construída sobre um sistema significante. Um dos modelos mais recentes desse sistema significante é a estrutura do DNA. É um modelo atômico, ou molecular, sobre o qual construímos uma anatomia e uma fisiologia imaginárias. Mas o que domina é sempre esse modo de construção do corpo. O próprio Freud continuava a pensar que os problemas sexuais poderiam ser resolvidos com um progresso da química, da bioquímica. É um modelo ou fantasia profundamente enraizado e, entretanto, por nossa prática analítica, sabemos que um corpo não é construído assim. Um corpo é construído - e essa é outra anatomia imaginária - a partir de zonas erógenas, de uma sensibilidade de superficie da pele, de uma sensibilidade particular dos orifícios, dos órgãos dos sentidos, como se diz. A psicanálise começou a construir uma anatomia diferente com a teoria dos estágios. Mas os pintores não estão atrasados em relação à psicanálise. Desde há muito, re-

c01po e palavra

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presentaram uma decomposição ou uma reconstrução dessa anatomia: orelhas que são olhos, bocas que são ânus, mãos que são sexos ou vice-versa, ou ainda, de modo muito mais forte, interiores que são exteriores, um corpo todo em superficie, em que não há mais interior nem exterior - como nos desenhos de Bellmer. Não digo que essa nova anatomia é mais verdadeira do que a antiga, nem proponho uma fisiologia das pulsões, em lugar de uma fisiologia da digestão, mas desejo mostrar uma constante no modo de construção daquilo que se chama corpo, que sempre compreende, ao mesmo tempo, a instalação de um sistema significante. Aliás, na bioquímica todo o corpo pode ser posto em letras, em estruturas, e as trocas podem ser simbolizadas. Isso não impede que, sobre esse sistema significante, venha projetar-se uma construção imaginária, e é isso a constante daquilo que se chama corpo. Mas o que se negligencia na maioria das vezes é a relação entre os conjuntos singulares que constituem cada corpo. Nesse ponto, ainda estamos na Idade Média. Até Freud pensava em telepatia e em fenômenos para psíquicos.

O incesto. Fazer "com" as mulheres

Falamos do espaço e não do tempo. Tento dizer o que penso da represenlação inconsciente do espaço, como projeção do corpo que nos leva a questionar a imagem dominante da esfera. Quando, na medicina, estudamos a embriologia, percebemos que mesmo geneticamente o corpo não é uma esfera, mas que ele se constrói em envolvimentos e associações de planos. É isso que faz o corpo. A abordagem do espaço que corresponde a essa representação do corpo é uma abordagem topológica, em que o espaço não é construído em torno de uma esfera, mas em torno de superfícies que se enrolam e desenrolam. A questão subseqüente diz respeito ao tempo e à articulação espaço-tempo. Ela nos leva a interrogar um fato: o tempo inconsciente. O tempo inconsciente não funciona da mesma maneira que o tempo consciente. Conscientemente, representamos o tempo por um vetor no qual, à esquerda, estaria o passado, à direita o futuro e, num ponto central, o presente. Freud diz que o tempo inconsciente não existe, que a categoria tempo não existe no inconsciente. Não é exatamente verdade. Seria preciso pensar a questão de outra forma. O futuro, o que acontece, é tão-somente o aparecimento daquilo que já existia. O que nos pennite construir o conceito inconsciente de tempo é essencialmente a noção freudiana de Nachtraglichkeit, de "só-depois". Se projetamos sobre a representação consciente do tempo o que ocorre no inconsciente, chegamos ao seguinte esquema: representação consciente do tempo, passado, presente, futuro. O inconsciente nos diz que o presente não é um ponto, mas um espaço. Não é forçosamente o presente. Não há presen56

o incesto ..fci=er "com" as mulheres

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te, passado, futuro. Temos de pensar as coisas de outra forma. Não há continuidade, não há sentido, não há pontualidade presente. Clinicamente, temos isso no que Freud detectou no déjà-vu, nos efeitos de "só-depois" ou nos efeitos de premonição. Como se constrói a história, qual é o conceito analítico de história? Eu poderia abordar, nesta ocasião, o caráter "incestuoso" da relação analítica. Por exemplo, a cena primitiva é um acontecimento histórico ou um fato de estrutura? Ambas as coisas. A cena primitiva é atual. Atual não quer dizer presente, mas em ato. Quando um paciente relata uma lembrança, por um lado algo aconteceu objetivamente, por outro lado a lembrança é uma construção, o que significa que ela não é verdadeira. O que o paciente diz na sessão, ele o diz a mim, aqui e agora, para dizer outra coisa. O que me interessa não é o conteúdo da lembrança, da qual não estou seguro, mesmo que ela seja provada, mas a estrutura. Não a estrutura no sentido estático do tenno, mas a estrutura atual, em ato, da nossa relação. Então, o que diz ele quando diz "Agora, eu me lembro da escada da casa da minha infância e da minha innã que caiu"? Quando se trabalha uma lembrança, acontece muitas vezes que se perceba que não foi a irmã que caiu, mas ele, e que a escada não era a escada da casa de que ele falava. Mas por que essa lembrança lhe ocorre agora, em que eu pensava, eu mesmo, quando ele me disse isso, o que evoca em mim a imagem da escada? Esse é um pequeno exemplo. A violência - penso no estupro - é sempre a atualização de uma tentativa de sair da relação incestuosa. Uma vez que já falamos disso, vou propor uma fónnula um pouco paradoxal. O que é proibido na nossa sociedade não é o incesto. Na verdade, o que é proibido é sair do incesto. Então, só resta a violência. O que estou dizendo não é muito explícito e vamos trabalhá-lo. A representação comum da violência é a de uma agressão ao corpo, agressão ou ferimento, às vezes mortal. Se a hipótese que propus, de que a nossa sociedade tem uma finalidade, um objetivo, que é sempre tranqüilizar-se, tranqüilizar o homem, construindo, reconstruindo o corpo da mãe, tudo que vai contra essa ideologia dominante é denunciado como violência. Inconscientemente, é uma violência contra o corpo da mãe; na prática é vivida como violência contra qualquer corpo. Então, o que é a relação analítica? A verdadeira relação analítica deveria ser aquela que suspende a interdição, isto é, que permite sair da organização incestuosa. Sim, a prática analítica deveria ser uma prática radical, que desatasse radicalmente o sistema ideológico, mas também o sistema que vem do inconsciente, aquele no qual vivemos. Esse sistema é detem1inado

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pelo medo do homem de não ter modelo. Na teoria analítica, isso se chama medo da castração, que quer dizer que o problema mais importante é o da angústia do homem, masculino, do homem com um J:ênis, enfim, diante da falta de representação narcísica de si mesmo. E isso que é determinante na organização habitual das relações humanas. Nesse sentido, a organização das relações está centrada no homem, e sua angústia diante de sua insegurança narcísica é a mais forte. Em tese, a análise do analista deveria analisar essa angústia, mas na prática sabemos que o analista defende, antes de tudo, o seu narcisismo. Ele o defende com a sua prática. Se ele não tiver outro apoio narcísico, resta-lhe pelo menos sua poltrona. No momento, não estou muito otimista. O analista encontra vantagens demais na exploração de sua posição para que considere verdadeiramente a questão de sua própria análise, isto é, de sua relação com sua posição narcísica mais profunda. Esse recalcado que persiste na sociedade analítica está na origem de uma profunda perversão da prática. Vocês sabem que, numa relação analítica, o momento mais dificil sempre é o questionamento das referências narcísicas do sujeito. É o momento em que ele corre o risco de fazer um episódio psicótico. Temos exemplos históricos: os analistas mais loucos são muitas vezes os mais verdadeiros. Isso também quer dizer que, quando alguém se permite interrogar sua posição narcísica secreta, logo se diz que ele não vai muito bem e a instituição ou sociedade tende a afastá-lo para o lado daqueles que se denominam loucos, os que não aceitam o sistema comum, a linguagem dominante. Também se diz que aquele que realiza o incesto se torna louco. É uma crença, uma denegação. Isso significa que somos todos loucos, porque só vivemos no incesto. Quando digo incesto, digo exatamente relação "de fazer" com a mãe. Se nós, os homens, nos defendemos contra nossa angústia "fazendo" a mãe, fabricando mãe, necessariamente todas as nossas relações são com mãe, pois só fabricamos isso, mesmo que seja um filho. Assim, só fazemos incesto. Mantemos a qualquer preço um sistema incestuoso. A violência não é sair desse sistema; a violência, o estupro, é mantê-lo. Quando o psicanalista tenta desatar esse sistema incestuoso, isso não é uma violência, é a análise do sistema da violência, digamos, de um sistema sadomasoquista. A violência é manter esse sistema. Praticamente, é o que fazem quase todos os analistas, o que lhes dá o seu poder. Eles mantêm esse sistema com uma nova teoria, a teoria edipiana, para que ele continue. Isso lhes confere - mesmo que eles não queiram - uma posição de poder muito grande. Eles são hoje os melhores guardiões do sistema,

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porque têm uma nova forma de pensamento que poderia desatar o sistema, mas que é utilizada para reforçá-lo. Seria necessário chegar a uma psicanálise não-violenta, no sentido de que não se deveria continuar a violar o outro. Fui, por acaso, membro da IPA, participei de várias cisões, isto é, de saídas de uma instituição, de movimentos de protesto contra o poder da instituição. Mas o inconsciente é muito astuto ou, mais precisamente, as resistências ao inconsciente são muito fortes. A cada vez que, num movimento de libertação, saí de uma instituição, percebi que a nova instituição repetia o que acontecia na antiga, de modo mais forte. A Escola Freudiana de Paris está se tornando uma potência, e até uma potência multinacional. As instituições analíticas não escapam à lógica do sistema "social-incestocrático", mas, pelo contrário, porque estão muito perto do ponto de ruptura, elas o defendem com muita força. Penso que é inútil atacar a instituição. A instituição, como o partido no poder, se reforça quando há uma oposição. O simples fato de se opor a um sistema já é reconhecer sua legitimidade. É muito inteligente, da parte do poder, legitimar a oposição; isso o reforça. Nada é mais desagradável para alguém que tem o poder do que não ter oposição. Os sistemas que não têm oposição se destroem por si mesmos. Entrar na oposição não é politicamente uma conduta correta. O que seria uma conduta correta? Creio que dizer é fazer. Dizer, fazer, são a mesma coisa. Quando algumas pessoas dizem corretamente, analisam corretamente uma situação, isso tem efeitos. Na relação analítica, sabemos que para nós basta estar inconscientemente numa posição correta, numa situação atual, para que o outro com quem trabalhamos o perceba, quaisquer que sejam as palavras que nós lhe digamos, qualquer que seja o conteúdo manifesto da interpretação. É aí que se produz uma mutação, um momento interpretativo. Por exemplo, um velho militante trotskista se tornou dirigente de uma grande empresa cooperativa. Tinha uma excelente relação com o conjunto da empresa, principalmente com os empregados. Sua vida amorosa continuava a ser muito dificil. Não era apenas porque ele já tinha sessenta anos; aos vinte, era a mesma coisa. No momento em que pensei: mas ele "faz" a mãe para todos os empregados, foi como se ele tivesse me ouvido e alguma coisa de sua posição na empresa tivesse mudado, como se ele tivesse dado um passo. Ele sabia que assumia a posição de uma mãe para com todos, que era por isso que tivera tanto sucesso. Tivera muito sucesso, mas todo o dinheiro que ganhava ia para o partido. Ele também sabia que na empresa se jogava sua relação com sua dupla mãe, isto é, sua mãe e sua tia. O simples fato de eu ter pensado

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"ele se põe no lugar da mãe", fez com que ele ouvisse antes que eu dissesse. Dizer é ao mesmo tempo fazer com. Não é só a comunicação entre os inconscientes. É um trabalho de análise que se faz "com", porque eu cheguei a pensá-lo "com" ele, com outros. Penso que, fora da relação analítica, as coisas ocorrem um pouco do mesmo modo. Quando algumas pessoas começam a pensar de outra forma e começam a viver de outra forma suas relações sociais e privadas, algo de subversivo ocorre. Então, a tentação é tranqüilizar-se narcisicamente, fonnando um grupo com essas pessoas. Mas é uma tentação que detém o trabalho em curso, porque nesse momento o mais importante é tranqüilizar-se narcisicamente e não continuar o trabalho. Mesmo que consigamos que exista uma rede de pessoas com as quais se faz um trabalho, parece-me importante não lhe dar um status, pois o status do grupo é uma projeção do status narcísico tranqüilizador. É muito dificil conservar essa posição, porque ela pode ser cansativa, mas também pode ser satisfatória de outro modo que não seja narcísico, e até mais satisfatória, pois dá mais prazer quando o outro com quem falamos consegue dizer o que nós mesmos não podemos. Dá mais prazer do que se ele disser: "Foi você que disse isso." Dá mais prazer do que se ele o remeter para uma imagem narcísica de você mesmo. É uma questão de experiência e de convicção. Mas é muito dificil não dar status a essa rede. O que sempre funciona melhor, na vida política, são as redes clandestinas, porque elas não têm status oficial, mas uma organização sempre móvel. Quando um grupo sai da clandestinidade, não tem mais muito tempo de vida. Não quero dizer que ele não existirá durante muito tempo, mas que existirá morto. A grande infelicidade da psicanálise é que ela saiu da clandestinidade. Se eu lhes digo que o problema que me parece mais importante hoje é a angústia do homem diante da sua ausência de imagem narcísica, é ao mesmo tempo porque eu o sinto assim e também porque mantenho para mim, secretamente, uma imagem narcísica. Se digo que a maneira de ter uma imagem, apesar detudo, é fabricar uma mãe ou fabricar mãe, é porque também faço isso. Fazer quer dizer fazer com; é preciso, pois, fazer com as mulheres. A dificuldade que encontro é que as mulheres têm dificuldade em existir como mulheres. São condicionadas por uma imagem de mãe, é o lugar em que são postas. O conceito psicanalítico de mulher é ainda quase inexistente, não só o conceito psicanalítico de mulher, mas a mulher. Parece-me que o problema da mulher é diferenciar-se desse lugar de mãe.

o incesto..fa::er "com" as mulheres

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Devo ter uma certa dificuldade em falar agora, porque encontro-me na situação de ter de falar no lugar de quem deveria ser uma mulher. É uma annadilha. Ao mesmo tempo, vocês desejariam poder dizer algo de uma mulher, ou das mulheres, que não fosse tomado na imagem da mãe, porque a mãe tem um lugar, e ao mesmo tempo vocês pedem que eu diga qual deveria ser o lugar de uma mulher. Isso equivaleria a repetir o que sempre se fez: o homem faz a distribuição dos seus escravos. O que eu desejo é que as mulheres com quem falo possam falar comigo, sem me remeterem para uma posição de pai, sem se situarem numa posição de mãe, ou, ao contrário, sem me remeterem para uma posição de mãe. O que desejo é que se produza alguma coisa diferente, alguma coisa diferente de um homem, mas no fundo "outra coisa" que não seja mãe. A mulher que não fosse apenas mãe teria necessidade de recalcar certas representações ou, ao contrário, teria ela que produzir não apenas filhos, mas também outras representações inconscientes, que permitissem construir uma mulher, construir o conceito - entendo com isso a realidade-de uma mulher? Tenho a impressão de que o homem está sempre ocupado em se defender contra representações angustiantes, que chamamos de castração, contra uma falta de modelo narcísico. Mas parece-me que uma mulher não tem necessariamente esse problema, que o seu problema é produzir representações - no sentido inconsciente - que afirmem que há "mulher" e não apenas mãe. Mas a ideologia analítica, que é um assunto do homem, afirma que a defesa contra a castração, o recalcamento, vale para todo mundo. Não penso assim. É problema da mulher na sua relação com um homem, mas não é o lugar de onde ela deveria falar. Não há o que recalcar, não há um recalcamento a suspender, mas existe algo a produzir. A dificuldade é que o fato de que a mulher esteja em polêmica de produzir o vivo pareça dispensá-la de produzir aquilo que seria uma posição de mulher. De certo modo, ela se contenta com sua possibilidade de ser mãe e assim se torna cúmplic da fantasia masculina. O que desejo é que possa ser dito, com mulheres, outra coisa que não seja essa cumplicidade, que chamarei de homossexual; é que as relações com as mulheres se tornem heterossexuais. Essa denegação, que está no centro da posição perversa, pode se expressar pelas palavras de Octave Mannoni: "Sei bem que há uma diferença, mas, apesar disso, não quero saber. Sei bem, mas apesar disso ... " Como respondemos nós, homens, mulheres, analistas, a essa posição? Respondemos exatamente em espelho. Sei bem que há uma diferença, "mas apesar disso" vivo como se não houvesse, isto é, em relações ho-

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mossexuais. A pergunta que se faz ao psicanalista é realmente para saber qual é a sua posição de verdade, uma posição na qual ele não seria apenas perverso. Como o analista reconhece e atualiza a diferença sexual? Parece-me que ele se encontra numa posição contraditória. A imagem - a representação que se faz dele - é a de alguém que verdadeiramente sabe algo sobre a diferença dos sexos. No grande público, o psicanalista precedia aquele que seria o sexólogo. Na verdade, o que vocês sabem, o que eu sei, o que podemos dizer sobre a diferença entre os sexos? Podemos dizer o que as crianças sabem: que há anatomias diferentes, que há uma "pequena diferença" na anatomia. Podemos fazer uma caracterologia. Mas propusemos algo de novo, no que se refere à diferença entre os sexos? Parece-me que não. Ficamos com as idéias prontas, por exemplo, com a idéia de que o falo é propriedade do homem, confundindo pênis e falo, enquanto a questão da diferença entre os sexos só pode ser pensada em termos de relações com o falo, que não pertence nem ao sexo masculino nem ao sexo feminino. Trata-se de relações, não sexuais, mas de relações com o falo, e de relações diferentes. Aí está a questão do que é o falo.

A outra coisa, o real

Por várias vezes, dissemos que a dualidade dos sistemas era uma hipótese fundamental, decorrente da descoberta freudiana. Mas também vimos que é muito dificil manter uma verdadeira dualidade. Quando propomos dois sistemas, sempre há um que é dominante e o outro é apenas a réplica invertida desse fato. O sistema do poder faz de qualquer outro sistema uma complementaridade, o que equivale a cometer uma tautologia, dando a ilusão de uma divisão. Primeiramente, gostaria de lembrar que a dualidade de sistemas se impõe a nós na relação analítica; ela é necessária para tentar levantar a questão do falo e da diferença entre os sexos. É muito fácil fazer uma idéia do que é um sistema de representações. O sistema das representações conscientes é o que se chama de realidade, ou então de fantasias. São sistemas de representações organizados de modo surrealista. A vantagem do sistema de representações surrealista é que ele nos pem1ite abordar o sistema do inconsciente,já que este é feito de representações inconscientes absolutamente surrealistas. Tínhamos como exemplo as construções de sistemas do corpo, tal como eles podiam ser descobe1ios no inconsciente. Mas não basta, para estabelecer uma verdadeira dualidade, opor o sistema das representações conscientes ao sistema das representações inconscientes. Elas acabam sempre, como na fantasia, por fazer concessões e fundir-se num único sistema de dupla face. O problema que se apresenta ao psicanalista, a pm1ir do momento em que ele se interessa pelo sistema das representações inconscientes, pelo sistema dos significantes, como diria Lacan, é 63

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que, nesse sistema, há outra coisa - insisto na expressão "outra coisa" - que não são representações. Sempre há algo que escapa ao sistema das representações inconscientes. Mais precisamente, o sistema das representações inconscientes tem apenas como função, positiva ou negativa, fazer-nos dizer, na sua língua, que há outra coisa, que é outra coisa. Toda a dificuldade vem do fato de que somos tentados a fazer ou a representar essa "outra coisa" com representações. Podemos muito bem fazer um sistema de representações do funcionamento do sistema solar e de outros sistemas de estrelas. As estrelas, os planetas são elementos figurados presentes e representáveis. A partir dessas representações, podemos estabelecer leis, construir um discurso que diga as relações entre esses diferentes elementos. Podemos instalar lugares e reconhecer forças. Podemos pois, mais uma vez, instalar todo um sistema de representações e estabelecer leis, que podem ser ditas, escritas, postas em fórmulas matemáticas ou fisicas. Mas o problema é representar o que faz a força de atração ou de repulsão que organiza o sistema; entretanto, isso é o mais importante. A tomada em consideração do sistema das representações inconscientes levanta um problema da mesma ordem. Qual é essa "outra coisa" que organiza ou desorganiza o sistema? O que faz com que existam forças que atraem ou repelem? Evidentemente, somos tentados a fazer uma representação de um centro, ou de vários centros, mas não conseguimos. O centro, os centros que fazem a força que organiza o sistema escapam ao sistema das representações. Prefiro tomar uma imagem. Em que consiste a força, o ponto que se diz central, que organiza o sistema da gravidade em nossa Terra? Pode-se descrever e representar o movimento, a força, mas o que se representa como núcleo da atração escapa ao sistema que podemos descrever. Entretanto, essa "outra coisa", que chamamos metaforicamente de centro de gravidade, existe. Se fôssemos apenas filósofos ou fisicos, bastaria que descrevêssemos as leis desse sistema de gravitação, mas se somos psicanalistas e pretendemos mudar algo em nossa relação com o outro, ou mudar a relação do outro conosco, somos forçados a levar em consideração essa "outra coisa", porque só por ela uma mutação da organização poderá se produzir. Assim, quando nos interessamos pelo sistema do inconsciente, temos razão em reconhecer essa "outra coisa". Mas esta não é redutível a uma representação. Toda a questão freudiana sobre as pulsões, precisamente o sistema de forças do aparelho psíquico, na sua relação com o somático, com o

a outra coisa, o real

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corpo, é bem teorizada como um sistema de forças que impulsionam (pulsões) e a propósito do qual Freud se interroga sobre a fonte, a origem, o objetivo, os meios. E, pois, uma questão fundamental da psicanálise mais freudiana. Ora, tenho a impressão de que os psicanalistas, hoje, se contentam em fazer como os filósofos ou como os fisicos: estabelecer uma cartografia das forças. Mas esquecem completamente que a única maneira de mudar alguma coisa nessas relações é questionar o que faz a força, a pulsão. A dualidade dos sistemas é uma palavra inadequada. Deveríamos dizer "não há um" em vez de "há dois", porque quando dizemos "há dois sistemas",já estamos presos na fantasia de repetição obsessiva, de divisão indefinida no espelho. Quando dizemos dois, dividindo um em dois, podemos continuar até o infinito, mas será sempre a mesma coisa, pelo direito e pelo avesso. Como não fazer sempre o mesmo, como levar em conta essa "outra coisa", que é para nós a condição absolutamente necessária para fazer um trabalho sobre o inconsciente? Detenho-me nessa questão, lembrando isto: o conceito psicanalítico de falo é o único que nos abre a porta para esse mundo da "outra coisa". Ele não é, em si mesmo, a "outra coisa", é a porta muito conhecida e ao mesmo tempo muito secreta que pode nos deixar ver ou ouvir de outro modo, e não só com nossos olhos e ouvidos, o que é a "outra coisa". É o que poderia nos deixar abrir o nosso terceiro olho, nosso outro ouvido, que não estão voltados para o lado do sistema das representações. Parece-me que a questão do sexo, da diferença entre o homem e a mulher, só pode ser pensada como uma diferença de relação com essa porta muito conhecida e muito secreta. O caminho pelo qual um indivíduo provido de pênis chega a essa porta não é o mesmo pelo qual urna mulher chega. Mas, no estado atual da nossa civilização, na dominância milenar do sistema "social-incestocrático", as agências de viagens estabeleceram mapas cada vez mais aperfeiçoados e cada vez mais confusos, porque elas não sabem que caminhos devem indicar. Temos muito trabalho para tentar escrever outro guia para os candidatos ao sexo ... Isto é apenas um prefácio - ou uma introdução - para que se possa considerar a questão do falo e da diferença entre os sexos. O que eu disse até agora quanto a essa "outra coisa" é apenas negativo. Naturalmente, corremos o risco de nos engajar numa prática mística, aquela de são João da Cruz. É uma tentação para os psicanalistas. Por um lado, temos o sistema das representações, com todas as suas variedades, representações conscientes, pré-conscientes, inconscientes, projeções dos sistemas de representações, construções dos sistemas de

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representações etc. A "outra coisa" é não-representável, só pode ser apresentada imediatamente, isto é, sem mediação. Representação, isso já é uma imagem ou um re-dobramento. O que podemos fazer com o presente, o não já passado, ou o ainda não ali? Essa "outra coisa", na teoria lacaniana, é o real. Na teoria das pulsões, é o objeto da pulsão que não tem imagem, que escapa ao espelho, que está presente, mas não é uma palavra certa. Sabemos há muito tempo que a relação analítica é trabalhada na transferência, isto é, hic et nunc, com aquilo que está ali, agora, presente, mas não apenas como representação. Retomei, no início do meu livro Desmascarar o real, esta frase: "Sejam realistas, peçam o impossível." Ela estava nos muros de Paris em 1968 e me fez pensar numa fórmula de Lacan: "O real é o impossível." Acrescento hoje: impossível de representar. Certos sonhos nos escapam. Vocês me diziam que certos momentos de alucinação durante as sessões nos escapam. Sabemos, desde o começo da análise, que aquilo que nos escapa é o mais importante; o que esquecemos, a palavra que nos falta, a palavra que vem em lugar de outra, o lapso. É como se nos aproximássemos da parte que se abre para o outro lado e, de repente, não a víssemos mais. Vou tentar lhes dar uma imagem que seria como um viático para passar para o outro mundo e figurar o sistema das representações. Pode-se pôr tudo o que se quiser em interseções, mas isso sempre dá um sistema fechado. Dou-lhes uma figura das representações modernas, isto é, redes em que as relações entre os diferentes termos podem ser múltiplas. De passagem, lembro que o que se faz em geral como trabalho psicanalítico consiste em deslocar as letras: a estava aqui, b estava ali. É como nos jogos em que se tenta pôr em ordem os números ou as letras, em que se quebra a cabeça para fazer a passar para b, e b para e (figura 1, p.68). Isso é o que acontece muitas vezes nos tratamentos psicanalíticos. Um sintoma desaparece, mas outro vem. Agora não estou tossindo mais, não tenho mais tosse histérica; estou espirrando. Vou bem melhor. Figuro o sistema das representações: ali (figura 1), o que não pode ser figurado, a outra coisa; melhor seria se não houvesse nada. Como, até agora, olhamos apenas com nossos dois olhos e não com o terceiro, vemos melhor. O falo de que se trata está ali e eu lhes disse que é o que pode pennitir, a partir do sistema das representações, fazer-se a passagem para outra coisa.

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Pediram-me, a partir daí, o sistema das representações inconscientes. M_as o esquema poderia ser o mesmo para o sistema das representações ou todos os outros sistemas das representações. O sistema das representações inconscientes tem um efeito: produz sujeito, porque o inconsciente existe, entre os vi vos que falam. Sé uma cifra que uso para designar o sujeito e é também a inicial do meu nome. Quando se fala ou quando se joga com os pequenos peões do sistema das representações, produz-se um lugar ou uma função. Quando você desloca um peão, há pelo menos o dedo que o desloca. É pela palavra que isso se faz, pela evocação das representações inconscientes. Uma mão, um objeto, nada ou todas as palavras que o pai disse constituem o sujeito. No sistema das representações conscientes, isso produz Eu, isto é, um lugar que reúne e produz a ilusão do indivíduo. O sujeito do inconsciente não é a mesma coisa que o eu. Eu lhes disse que é uma função que pennite a relação entre a, b, e e todas as pemmtações. Vou desenhar esse joguinho: • Há cifras ou letras, e uma casa vazia para permitir os deslocamentos. O sujeito seria algo como essa casa vazia que permite o deslocamento. O problema é sempre saber como o sistema das representações tem uma relação ou uma não-relação com a "outra coisa", porque ele não poderá existir se não houver essa "outra coisa". Não há movimento se não há força. Para jogar bem, é preciso que o sujeito conheça o que faz a força da lei. Está ali (casa vazia). Assim, é preciso que haja uma abertura para essa "outra coisa", de outro modo ele é apenas uma máquina e um computador pode resolver o problema. Mas há um prêmio para nós: o prazer que faz a máquina funcionar. É preciso, pois, que o sujeito possa estar em relação com a força, a outra coisa. Só pode passar por essa porta, é a única relação, o único caminho. A questão é, então, estabelecer ou construir uma relação entre o sujeito do inconsciente e a função de relação, que o sujeito encontre a porta ou tenha um sujeito para ir até a porta e ter uma relação com a "outra coisa" que lhe pennita jogar esse jogo. É essa relação do sujeito com o falo que faz a diferença, ou que encontra a diferença entre o sistema das representações e a "outra coisa".

* As figuras 1 e 2, adiante, foram reconstituídas a partir do texto, para torná-lo mais compreensível, mas são apresentadas com todas as reservas. A figura 1 reproduz o "mosaico" de G. Perec, extraído do Magazine littéraire, n 2 193, março de 1983. [Nota do editor.]

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O primeiro tempo é o que levanta a questão do outro, isto é, de uma diferença primária. Para que verdadeiramente haja uma diferença, que não seja a separação em espelho, a repetição da separação do mesmo, é preciso que haja relação com a função que faz a diferença. Mas a relação do sujeito do inconsciente de um corpo masculino com a função de diferença não é a mesma que a relação de um sujeito do inconsciente de um corpo feminino com a função de diferença, porque há alguma coisa de ativo. De fato, o sujeito do inconsciente de um corpo masculino tem uma relação de posse com o pênis. Ora, o pênis é uma representação possível do falo. O sujeito do inconsciente de um corpo masculino imagina possuir uma representação daquilo que faz a diferença. O fato de que o homem possua um falo, que tenha uma relação de posse com o falo, o leva a crer que ele possui, que tem a mestria de uma representação do falo, de uma representação daquilo que faz a diferença. Ele é muito apegado a essa posse de uma representação. Mas, de qualquer fonna, não está completamente seguro disso; esse pedaço de corpo que é um pênis é apenas uma ilusão; ele não tem a mestria da representação do falo.

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O que anima o sujeito do inconsciente de um corpo masculino é o desejo de garantir uma falsa mestria. O fato de que ele possua um pênis o leva a crer que possui uma representação do falo. Ele investe então arepresentação, e como não está seguro disso e não é ce110, ele se tranqüiliza investindo todo o sistema das representações. É, pois, um ce110 caminho para aquilo que faz a diferença, mas é um caminho que o leva para um labirinto sem saída. Esse caminho fechado lhe garante um semblante de poder, ele investe o sistema das representações e faz dele um sistema dominante, com o qual tentará colonizar a "outra coisa". Estou apenas descrevendo o estado daquilo que ocorre no filme atual, milenar. O sujeito masculino tem um semblante de poder que lhe dá acerteza de uma mestria sobre a representação daquilo que faz a diferença. Mas esse é um falso poder. Dou uma indicação: o olhar do homem sobre o seu sexo tem antes como efeito perturbá-lo em sua ilusão favorita de que é uma representação daquilo que faz a diferença, ou antes algo que romperia o sistema do homem. Quanto à relação do sujeito do inconsciente de um corpo feminino com aquilo que faz a diferença, parece que esse sujeito em questão não tem o mesmo problema, não se refere àquilo que daria a ilusão de possuir a representação do falo. A posição é, assim, diferente, o sujeito do inconsciente do corpo feminino não é forçado, primitivamente, a defender a dominância do sistema das representações; ele pode reconhecer a representação daquilo que faz a diferença, sem ter que defender sua posse. O problema da relação com aquilo que faz a diferença passa, antes, pela possibilidade que ela tem de produzir o real, o vivo, imediatamente. Um real vivo sai do seu corpo, mas também é uma ilusão, porque é preciso que ela o faça com um homem. O drama da situação atual é que, para o sujeito do inconsciente de um corpo feminino, ter acesso à relação com aquilo que faz a diferença o expõe ao encontro com um homem e todo o seu sistema do sexo, seu sistema falso de poder sobre a representação. O drama é que o seu acesso ao que faz a diferença, o expõe ao encontro com o sistema dominante do falso sexo masculino, isto é, à dominância do sistema das representações que leva a mulher a se submeter ao projeto colonizador. O trabalho da psicanálise na relação psicanalítica consiste em desviar algo dessa dominância do regime que se chama erroneamente falocrático, pois ele não tem, por direito, nenhuma dominância da relação que privilegia o sistema das representações. O mais importante é isso, apesar de tudo; é isso que faz a força. A relação da mulher com o que faz a diferença - o falo - deveria atribuir pelo menos um valor igual ao

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investimento e à "outra coisa". Mas, no sistema atual, o homem, o sexo, explora a mulher em sua relação com o real e ela se deixa explorar. Nesse esboço de uma teoria psicanalítica sobre a diferença entre os sexos, pode-se ao menos reconhecer que aquilo que se chama relação com o falo se faz, pelo menos, por dois caminhos, por causa da anatomia, mas o conceito de diferença dos sexos necessita primeiro do reconhecimento do falo como aquilo que faz a diferença, sem ser a propriedade de ninguém. Há pois pelo menos dois tempos, antes de poder falar do sexo: primeiro, reconhecer que uma função faz a diferença entre o sistema das representações e "outra coisa", e um segundo tempo, que é a detenninação da posição em relação ao que faz a diferença. Esse segundo tempo constitui a detenninação do sexo - e seria também "o destino" - porque é o lugar em que o real, em que a força está ali, apesar de tudo. O destino também é o demônio. Aliás, Freud diz que, quando se faz uma psicanálise, invocam-se os demônios com as forças das pulsões. A mãe fálica é um conceito interessante, mesmo que empregado impropriamente, pelo avesso. A mãe fálica é a mãe que crê que pode, sozinha, fazer a diferença, isto é, fazer o falo. Não é sem razão que ela pensa assim, porque a "boa mãe" não faz o falo, mas pennite o caminho em direção àquilo que faz a diferença. Na expressão "mãe fálica", falta uma palavra: a mãe deveria deixar o caminho aberto para a função fálica. Mas a "mãe má", que toma o lugar da função fálica, seria aquela que diz: "Sou eu, como mãe, que faço a diferença", o que seria falso. Na verdade, a primeira idéia é que é preciso inverter o problema. Estamos, na verdade, no Édipo, e seria necessário que o pré-edipiano se tomasse o pós-edipiano - isso é uma brincadeira. De fato, estamos presos e dominados por um sistema edipiano. O que há de mais importante no sistema edipiano é o que se chama interdição do incesto. Eu disse que represento o que se chama de incesto como uma relação sexual com a mãe e que, como todos nós usamos antolhos que nos fazem ver mãe por toda a parte, acontece que todas as nossas relações são incestuosas. Mas se tomo agora a questão da relação com a mãe tal como se pode verdadeiramente pensá-la, nem mãe fálica nem mãe castradora, mas como uma mulher que se tornou mãe, como compreender o que se chama relação com a mãe? Isso levanta a questão do desejo, da qual nada falamos até agora. O desejo é uma força, como as pulsões são uma força, força de atração ou de repulsão. O que conhecemos um pouco na teoria analítica é o que se refere às pulsões. Sabemos que as pulsões são cegas, que podem

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se satisfazer com qualquer coisa. Os objetos das pulsões se caracterizam pelo fato de que podem ser mudados. Como devo resumir, vou fazer mais alguns desenhos. Escrevo: falo = fazer a diferença, figuro o sistema das representações sobre o atual-real. É do real que parte a força, o que se chamava alma, com a diferença de que a alma é o corpo. O real é o que anima o sistema. A história nos mostra que a paixão dominante, no caso a do homem, tentou colonizar o real, apropriar-se da força, e é assim que o sistema ftmciona hoje. Para ficar certo de bem colonizar, ele se dá a ilusão de importar alguns pequenos pedaços de real para o seu sistema de representações. O que Freud chama de pulsões, é uma força. O sistema das pulsões, segundo ele, pode ser figurado da seguinte maneira (figura 2): as pulsões parciais- pois se trata sempre de pulsões parciais-, um pequeno pedaço de real importado ou exilado no sistema das representações, como um bwnerangue, tenta pegar um pouquinho de real, para levá-lo para a pulsão parcial, que se contentará com qualquer pedaço de real, na ilusão de levá-lo ao seu ponto de partida, para obter uma satisfação. Acredita-se que a pulsão oral se satisfaz com um objeto de alimentação. Não é verdade. Quando pego um cigarro, só tenho fumaça. Também se pode dizer que a pulsão oral quer retomar toda a mãe. Qualquer droga ou uma parte do próprio corpo pode se tornar objeto da pulsão oral. Isso vale para todas as outras pulsões parciais que conhecemos, e particulannente para a pulsão escópica.

pulsão parcial

fonte

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Agora, como pensar o desejo? O desejo é aquilo que resulta da inclusão da função daquilo que faz a diferença no sistema das pulsões. A experiência nos mostra que o exercício das pulsões parciais é insatisfatório, como se todo o sistema se mostrasse inadequado. Toda realização do circuito da pulsão resulta numa ilusão. A satisfação obtida é sempre diferente da satisfação procurada, e o desprazer domina o prazer. Como se pode figurar a inclusão daquilo que faz a diferença no sistema de forças, na medida em que essa diferença é vivida? Há uma diferença entre a satisfação obtida e a satisfação procurada; isso não é um conceito mas uma experiência atual vivida como desprazer, ou inversamente como prazer, angústia ou êxtase, como diria Janet. A experiência é sempre o prazer ou o desprazer, um "não é assim". Para tomar outra perspectiva, digamos que a função do sujeito é um efeito do sistema das representações. Faço um deslocamento do objeto parcial- ou das zonas erógenas - para uma outra instância do sistema psíquico, o sujeito do inconsciente. Não sei se há primeiro objetos parciais ou se há primeiro sujeito, é uma questão teológica. Há zonas erógenas e sujeito. A função do sujeito, que lhe permite a miiculação das representações inconscientes, só pode se exercer se há uma relação com aquilo que faz a diferença, na realidade. A pulsão, ou a força que vai se chamar prazer, permite um outro modo de relação entre o real e o sistema das representações. Há uma multiplicidade de figuras do desejo. Isso nos leva à questão do desejo da mãe ou do desejo para a mãe. O desejo parte do sujeito inconsciente. A questão é saber qual é o objeto do desejo ou se o desejo tem um objeto. Qual é o status desse objeto? Evocamos o desejo de "nada", que poderia ser uma das fonnulações do desejo de uma mulher. A capitalização pulsional consiste em importar forças vivas para o sistema da representação. Imaginem as linhas de alta tensão de uma central hidroelétrica, que seriam acumuladas em grandes acumuladores tal como o sistema de representações. Há dois modos de utilização da corrente capitalizada: uma utilização pulsional, natural, que é tomar sempre mais na fonte, e uma utilização mais elaborada, que passaria por um transfomrndor, convertendo a corrente contínua em corrente alternada. A força que o sujeito representa seria, em suma, uma produção de corrente alternada que vai, em certos momentos, para o lado do sistema das representações, e, em outros, para o lado do real. Pode-se imaginar que a função do sujeito - dupla alternativa em eclipse - tem uma fase, ou um momento, do lado dos acumuladores, da capitalização. O que interessa ao sujeito é aquilo que faz a diferença, porque, se a função do que faz a diferença não está em relação com essa função (transfonna-

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dor), esse relé se queima; como na psicose, em que não haveria mais sujeito. Assim, a questão do desejo é realmente a relação com o falo. A confusão é maior porque se acredita que o falo é aquilo que deseja, ao passo que é uma relação. Partindo da hipótese de que aquilo que deseja é o sujeito do inconsciente, o que se chama desejo no sentido psicanalítico é o sistema de forças que parte do sujeito do inconsciente. Isso não significa que o sujeito do inconsciente seja a origem, mas que o sistema de forças que se organiza nessa encruzilhada é o sujeito do inconsciente. Clinicamente, aborda-se essa organização pelas fantasias. Quando um elemento da estrutura falta, a relação de forças entre o real e o sistema das representações se inclina sempre em favor do real. Para o psicótico, a função do sujeito do inconsciente não opera. A imagem da mãe não existe em uma desorganização psicótica. As formas clínicas são múltiplas. Não penso que se possa dizer que essa função de diferença falta, mas, antes, que a relação com essa função de diferença é frágil. Mas ela existe. Freud disse o essencial: o perverso sabe muito bem o que faz a diferença, mas, ao mesmo tempo, tem interesse em fazer como se não soubesse, porque o seu poder de gozar toma-se maior. O gozo do perverso é, em geral, muito forte. Isso se organiza como um reconhecimento: ele sabe muito bem o que faz a diferença. Os pacientes que me falaram muito bem sobre a diferença entre os sexos são perversos e não têm vontade de mudar, porque seu gozo sexual é grande. O que constitui um problema para mim, na relação com eles, é que, como psicanalista, eu me assemelho a eles, pois minha profissão também é saber o que faz a diferença entre os sexos. Existe uma grande analogia entre a estrutura perversa e a posição do psicanalista ligada à primeira tópica freudiana. O que designo como a "outra coisa" responde, na segunda tópica, ao Isso, o sujeito do inconsciente corresponde ao Eu freudiano e o Über-Ich ao Supereu. Fica assim reconstituído o conjunto do sistema das representações. A tópica freudiana evoluiu. Continua a evoluir. Hoje, o Eu não designa o sujeito da consciência, mas o sujeito do inconsciente - o que Freud propôs com a clivagem do Eu. É a partir dessa clivagem que se estabelece a relação com a diferença. A boa mãe, no sentido em que a entendo, é uma mulher produzida como mãe pelo filho. Lembro-me de um jovem em tratamento, que dizia à sua mãe: "E não se esqueça de que fui eu que te fiz mãe", o que é certamente mais certo do que o retomo habitual da mãe: "Fui eu que te

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fiz." A boa mãe é aquela que permite o acesso ao que faz a diferença. Se é possível dizer a mesma coisa sobre um pai, a maneira de fazer é diferente, pois a mãe produz o filho no seu corpo, com o seu corpo, ela se situa do lado do real. Qual é a posição subjetiva de uma mulher que é feita mãe? O que domina nessa relação do sujeito com o falo é o impacto do real. A mulher pode fazer, com seu corpo, um filho. Ela sabe que sua mãe a fez e que a mãe de sua mãe fez a sua mãe. Fazer é sempre, inconscientemente, como as bonecas russas, uma boneca que contém outra, que contém outra ... Alguém que vive e faz segundo o mesmo modelo. Qual é o lugar do homem nessa genealogia do fazer? Ele faz o amor, só isso. Às vezes consigo mesmo. Para fazer o amor, seria necessário que ele o fizesse com outra pessoa, que não cantasse a mesma canção, que houvesse pelo menos duas canções. As outras mulheres, a mulher outra, ele só as encontra como sintomas. Na tradição, o homem é ativo; o fazer é culturalmente o seu domínio. Ele faz porque acredita não poder produzir e lamenta isso; assim, teoriza. Com o discurso que ele faz sobre sua incapacidade de fazer, ele pode fazer muitas coisas, exceto o amor com uma mulher, "outro". Em suas vidas amorosas, muitos homens estão sempre à procura de outra mulher.

O que acontece numa relação analítica

O que acontece entre um psicanalista e seu paciente? Penso que essa questão não pode ser separada de todas as outras formas de relações humanas. Muitas vezes, tenho a impressão de que o psicanalista isola a relação particular- ou a relação privilegiada que se produz no quadro da análise - das outras relações humanas. Pelo menos na Europa, os psicanalistas já têm uma consciência de classe. Quando falam, dizem "nós, psicanalistas", o que é uma maneira de dizer que eles já vivem na segregação, como se diz "nós, judeus" ou "nós, africanos" ... Todavia, essa particularidade da relação psicanalítica já existia e é por isso que hoje existem psicanalistas. E como existem psicanalistas, também existem psicanalisados, pacientes. O que me importa é tentar compreender, saber o que acontece de particular e que se repete cegamente nessa relação. Não creio que baste usar palavras, dizer relação psicanalítica, social, privada ou política para esclarecer o problema, porque todas essas palavras já fazem parte de uma tradição e de uma ideologia que instauram classes e separações. Não me parece que a psicanálise possa admitir essas distinções sem questioná-las. Penso que até a relação entre homens e mulheres deve ser questionada. Vivemos ainda num estado de segregação entre homens e mulheres, mesmo que a mulher se suponha, ou se acredite - como ela diz emancipada. É esta a pergunta que faço cada vez que vivo essas múltiplas relações com meus pacientes. O que eles vieram me pedir? O que lhes imponho, pelo próprio fato de que me chamo psicanalista ou eles

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me chamam de psicanalista? Que ideologia está ali, imediatamente, instalada no consultório analítico? Talvez já tenhamos muitas respostas nos livros. A relação psicanalítica se caracteriza pela mobilização da transferência e pela tomada em consideração das resistências. Mas já sabemos demais sobre essas palavras, para não dizer sobre esses conceitos, para que eles ainda sejam verdadeiros. Já são palavras mortas. Mesmo fora dos meios psicanalíticos, a palavra "resistência" e a palavra "transferência" também são utilizadas. Muitas vezes, ouve-se dizer que um psicanalista enuncia a regra fundamental: "Você pode dizer tudo, mas não pode fazer nada." Isso me parece completamente louco, pois se não se pode fazer nada, nada acontecerá. Qual é a diferença entre dizer e fazer, para um ser falante? E no entanto, continuam a dizer: "Você pode dizer tudo, mas é só." Quando faço a pergunta: "O que ocorre na relação psicanalítica?", faço-a a mim e a cada um de vocês, não para ter uma resposta que já está escrita nos livros. O que me interessa é saber como cada um de nós vive verdadeiramente essa relação, não só na sua cabeça, mas também no seu corpo; o que sente, durante a sessão ou fora dela, um homem que vive uma relação com sua paciente mulher, se ele a deseja e como isso o afeta, mas também que paixão ele pode ter por um homem que esteja no seu divã, se ele gosta dele ou se tem a idéia de tomá-lo um de seus alunos. E, é claro, faço principalmente a pergunta às mulheres: "Como vivem elas a sua relação com os pacientes ou as pacientes?" E, mais uma vez, não para que me respondam ou eu responda o que está nos livros, mas para ouvir aquilo que, secretamente, não se ousa dizer, ou que não se tem a ocasião de dizer... Como podemos ficar contentes porque esperamos um paciente, ou como ficamos abon-ecidos porque o esperamos, ou como podemos nos entediar durante uma sessão, a ponto de cochilar... Se podemos falar disso, é a partir de momentos precisos e atuais da nossa experiência. Talvez sejamos logo tentados a identificar temas conhecidos, talvez digamos imediatamente "castração", "relação com a mãe", "relação incestuosa", "resistência" ou até "contratransferência". Mas eu gostaria de que não fôssemos precisos demais e não começássemos a pôr rótulos ou títulos sobre o que vivemos. A experiência mostra que, desde que encontramos uma palavra erudita para dizer algo que vivemos, a coisa mone, não é mais algo vivo e começamos a fazer um trabalho acadêmico sobre a palavra, esquecendo o que vivemos e o que essa palavra dizia naquele momento. Não é proibido usar as palavras, com a única condição de aceitar questioná-las.

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Para trabalhar, o analista se instala num lugar secreto, fechado, onde, teoricamente, não há espectadores. É uma cena sem espectadores, a não ser as duas pessoas que são os atores. A primeira idéia que me vem é que a noção de isolamento não está forçosamente ligada à situação solitária. Sei que uma equipe pode perfeitamente construir um modo de isolamento, assim como todo grupo social. O isolamento não consiste apenas no fato de um indivíduo ou duas pessoas se fecharem juntas num cômodo. O tenno fobia me ocorre; mas em vez de dizer que o analista é fóbico, o que é verdade- mas quem não é?-, penso que o que o caracteriza é a organização do seu sistema contrafóbico. Do lugar em que estamos, isto é, do lugar em que trabalhamos, seja no consultório, numa instituição, numa biblioteca, com livros ou num grupo de seminário, o que podemos dizer e pensar do fato social no qual nos encontramos? A palavra "social" não se opõe a "individual". Uma formação social é equivalente a um indivíduo. O que dizer, da posição em que trabalhamos como psicanalistas, sobre os caracteres de uma formação social? Freud falou disso. A oposição individual/social é uma posição pertinente hoje? É operante? ... Parece-me que não. O que pensamos hoje, quer nos digamos, quer sejamos marxistas ou não, é que o ponto de vista econômico é determinante na história das formações sociais. Por uma simples analogia dos termos, lembro que o ponto de vista econômico é um dos pontos de vista fundamentais da elaboração freudiana. Aliús, se escuto o que se diz aqui, de modo analítico, o ponto de vista econômico logo se apresenta, com o preço das sessões, seu aumento e seu efeito sobre o fechamento progressivo ou, como eujá disse, sobre a constituição dos analistas como classe. Até o momento, são apenas indicações. Nestes últimos tempos, ouvi dizer muitas vezes na França que a teoria psicanalítica se faz, a instituição se constrói. "Você escreve um livro; a que preço?" e, mais precisamente: "À custa de quem?", ou ainda: "Com a pele de 9uem?" Em geral, são as mulheres que fazem essa pergunta, dizendo: "E com a minha pele, com o meu corpo que você trabalha." O analista não trabalha sempre com a pele dos outros? Essa pergunta não-deixa de ter relação com o sistema de exploração. A organização da Escola Freudiana foi baseada sobre o passe - o passe é o processo pelo qual um analista tenta dizer como e por que se tornou analista. Faço alusão a isso porque, durante o ano passado, uma pessoa que tentara o passe como se tenta atravessar a arrebentação, no mar, se matou e imediatamente voltou a pergunta: a que preço se institucionaliza o passe? Quantas pessoas serão levadas a se matar, quantas

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pessoas a instituição vai matar, por meios muito inteligentes? Nessa abordagem, o preço a pagar, do qual se trata no ponto de vista econômico, parece sempre ter algo a ver com o que se chama "a sua própria vida" ou "a sua própria morte". Há mortes lentas, há mortes súbitas. A sociedade não funciona da mesma maneira? A divisão da sociedade em classes não diz que é sempre à custa da vida ou do trabalho dos outros que certos outros vivem, ou mais exatamente acreditam viver? Na verdade - e aqui, remeto a Hegel-, "são aqueles que são os senhores que já estão, de fato, meio mortos". A profissão do psicanalista é ser doutor em inconsciente. Na França, como está nos manuais das escolas, é tomar o inconsciente consciente; trata-se de uma tomada de consciência. Não se sabe por quem essa tomada vai ocorrer, mas também houve a tomada da Bastilha! Tomada de consciência - o trabalho político no seu lado ideológico, o militantismo ideológico, consistem também em fazer tomar consciência, é a mesma expressão. Mas a razão social do psicanalista seria, antes, algo como tomar o inconsciente, ou tomar consciência do inconsciente; é uma nobre vocação! Infelizmente, isso ocorre como na vida. Quando, depois de muitos anos de estudo, um pesquisador encontra alguma coisa, um pedacinho de idéia que ele acha que é novo, fica muito contente, cai numa grande depressão e sua descoberta de um dia vai lhe servir para viver toda a vida; ele vai explorá-la. Como psicanalistas, estamos um pouco nessa situação. Papai ou vovô descobriram alguma coisa Freud ou Lacan. Fizemos uma psicanálise e descobrimos uma coisinha, em geral uma coisinha de nada, mas não faz mal, dizem que nós compreendemos, e vamos passar toda a vida explorando, isto é, enterrando a descoberta. Mas apesar de tudo o inconsciente está ali, e ele nos faz a consciência pesada porque pretendemos continuar a ser descobridores e na realidade somos coveiros. Creio que a consciência pesada é principalmente essa contradição na qual vivemos todo o tempo. Deveríamos descobrir, deveríamos inventar, deveríamos nos inventar com aqueles que nos falam, mas não é o que fazemos, mesmo que tenhamos boa vontade. E a consciência pesada vem dessa contradição, porque, apesar de tudo, fica sempre isso, não somos psicanalistas por acaso. Um dia, alguma coisa nos interessou. Atualmente, parece-me que uma das grandes dificuldades da minha prática é que me chamam de psicanalista e, chamando-me assim, fecham-me num isolamento, ou mesmo, como aqui, sobre um estrado. A palavra "privilégio" também me interessa muito. A Revolução Francesa foi feita para abolir os privilégios. É verdade que os analistas estão instalados em seus privilégios e que as instituições estão aí para

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defendê-los. A representação que tenho disso é que, além do privilégio, para muitos, de ter muito dinheiro, eles têm o privilégio de tornar-sepor assim dizer - os capitalistas dessa nova moeda que se chama inconsciente. Eles se tornam os banqueiros do inconsciente. Aliás, é por isso que eles ganham muito dinheiro. Parece-me que as sociedades psicanalíticas estão organizadas da maneira mais reacionária possível, com essa ambigüidade de que os psicanalistas são não apenas os conhecedores, mas também os possuidores do inconsciente ou dos mecanismos do inconsciente. É um escândalo. Descrevo assim a situação e não a caricaturo; os analistas se tornaram os banqueiros do inconsciente. Aliás, na França, quando se faz um programa de televisão, ou um simpósio de bombeiros ou de horticultores ou seja lá de quem for, chamam um psicanalista. É a garantia de se ter segurança, pois se alguma coisa escapar a você, ele está ali e ele sabe. Na França, o psicanalista é solicitado em todo tipo de situação: para debater um filme, para discutir religião, é claro, para uma reunião de empresários, mas também para uma reunião da polícia. É por isso que digo: não é uma fantasia ou uma construção, é uma descrição. Os privilégios têm sempre uma história e não é sem razão que eles se instauram ou são atribuídos. Aliás, isso ocorre com a concordância implícita daqueles que não são privilegiados. Nesse sistema, há uma profunda cumplicidade. É verdade que a relação analítica é uma relação particular. Não sei se ela é privilegiada, mas é particular. Na origem, pelo menos, ela deveria ser completamente particular, a tal ponto que não deveria haver nenhum efeito de poder, em princípio. Mas a história e o alargamento da família psicanalítica caminham em sentido exatamente oposto, isto é, no sentido do desenvolvimento de um poder do psicanalista. Entretanto, o caráter particular da relação psicanalítica não admite nenhuma posição de poder. Acredita-se que os psicanalistas - e eles mesmos querem que se acredite - não exercem poder. Assim, eles recebem um privilégio - ou então se sentem privilegiados - mas, de fato, há um desvio profundo da relação que faz com que, pouco a pouco, se instaure o poder mais forte. É por isso que eu lhes dizia que sempre se solicita, na França, um representante desse poder numa assembléia ou debate público, como garantia. Isso é um paradoxo. Mas estou interessado em saber de onde vem o poder do psicanalista. Uma resposta aproximativa seria: o poder vem do fato de que se trata de uma relação na qual, em princípio, não deveria existir poder. Eu gostaria muito de ser chamado pelo meu nome. Em conseqüência da guerra na França, tive de mudá-lo e não gosto de ser designado

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por um título ou uma função. Relendo a Bíblia, vemos que as genealogias são descritas assim: "Fulano, filho de Fulano, filho de Fulano" etc. É assim que se conta a história, a história dos nomes e não a história dos títulos ou das funções. Hoje, na Europa, principalmente na França, mas também na Argentina, dizem: "- Ele é psicanalista. - Ah, você é psicanalista? Então, me diga por que eu sonhei isso", durante um jantar, por exemplo. É uma razão social e isso não é possível. Ficam assim enunciadas algumas das possibilidades de suspender um dos numerosos recalcamentos que nos instala no status de psicanalista; recalcamentos entre os quais o fato político é um dos mais importantes. O recalcamento do fato político persiste, mas a pergunta que faço a mim mesmo é se o entusiasmo de certos psicanalistas, hoje, em engajar-se politicamente não é uma solução de facilidade. A questão é séria. Penso que a psicanálise, que já é em vários países um fato social e até um fato político, tem algo muito melhor a fazer do que aquilo que já fez até agora. Eu disse que uma certa precipitação no engajamento político do psicanalista me parecia uma facilidade. Penso que a maior facilidade é não fazer nada, mas, a partir do momento em que se decide suspender esse recalcado da psicanálise, o trabalho "a fazer" é mais dificil do que aquele que consiste simplesmente num movimento de precipitação. Proponho analisar um pouco o "fazer", a partir do que fazemos ali ou a partir do que fazemos em outro lugar. O que quer dizer "fazer" para vocês? A lógica anal é imediatamente evocada e a alternativa construção/destruição não deixa de ter relação com essa lógica. Há na análise algo que não é destruidor, porque destruição/construção é tomado numa fantasia da mesma ordem. Fundamental e etimologicamente, a anúlise consiste cm desatar, desligar, Analuein é "desligar". Qual é a natureza desses laços que a análise tem, não que destruir, mas que desatar? Se pensannos apenas em termos de destruição, seremos obrigados a construir, e construir casas ou sistemas é também construir novas gaiolas ou novos laços. Construir um sistema de pensamento é construir outro sistema para ligar, uma outra rede, na qual vamos apanhar... o quê? Nada, evidentemente. Para mim, fazer não é fazer alguma coisa ou nada. Com efeito, parece-me que pennanecemos numa lógica anal: inibição, retenção ou, ao contrário, proliferação sempre suja, de certo modo. Fazer, é "fazer com". Não há outra maneira de entender "fazer". Faz-se com aquilo que se chama um outro, ou os outros. Do mesmo modo que não se fala a alguém; fala-se "com". E isso chama não algo mas alguém diferente. A pergunta é "como fazer, com um outro, outros?". Não é apenas porque

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temos corpos separados que somos, cada um para o outro, um outro. É a representação que impede de fazer a pergunta. O outro, é o que não é semelhante, mas como aceitamos ou podemos falar com um outro? Aqui, estamos em boa situação, porque, pelo menos, entre mim e você, falamos outra língua, observamos isso. Quando falamos a mesma língua, esquecemos; o outro torna-se apenas um semelhante, um lugar de projeção de si mesmo, e falamos, pelo desvio do outro, conosco, fazemos disso um objeto de satisfação pulsional. Não é isso, fazer "com", nem falar "com". A questão do outro está levantada. E já que deixei há pouco uma questão em suspenso, não há, entre os analistas, um ponto de vista ideológico que Jcvaria a dizer, por exemplo, que "tal paciente estaria melhor com uma mulher", ou ainda "há uma escuta diferente, do lado da mulher ou do lado do homem"? No momento, não. A análise continua sendo um assunto de homem, mesmo que haja muitas mulheres. A história da análise, apesar das Anna Freud e das Melanie Klein e outras mulheres presidentes ou influentes de todas as sociedades do mundo, continua sendo um assunto de homem, no centro do qual está situada a angústia da castração. Não é assunto de mulher. Todavia, hoje, por toda a parte, começa-se a entender outra coisa. Diz-se muitas vezes "Isso não é análise". Aqui, acredito que a segregação se faz principamente entre analistas, médicos psiquiatras e psicólogos, que não têm o direito ... Enfim, a gente os tolera ... A anúlise continua sendo um assunto de homem na sua história, há um recalcado a suspender. Fazer com, fazer com um outro, e na questão do outro se apresenta simultaneamente a questão da alteridade e a do sexo. No outro, também há sempre o outro sexo. Existe aí uma divisão. O que se faz com, senão homossexualidade, o mesmo? Vivemos numa sociedade homossexual e sabemos bem disso. Neste momento, passa no Rio o filme de Ettore Scola Um dia especial. Em todas associedades fascistas de antes da guerra, perseguiam-se não só os judeus, mas também os homossexuais; até se começou por eles. Eles eram a representação daquilo que não se queria saber ou daquilo que não se queria reconhecer sobre o funcionamento fundamental da sociedade. Então, era muito cômodo dizer "Eles são homossexuais, é inaceitável! Em nossa sociedade, há verdadeiros homens, guerreiros, e também as boas mães, as santas mães", o que é uma maneira disfarçada de afirmar uma sociedade homossexual. Mas uma sociedade estruturada como uma sociedade homossexual é forçada a perseguir ou a exilar os homossexuais que se declaram como tal. Não é suportável ter a imagem daquilo que se é. Alguém pode dizer: "Um homem diante de outro homem, não é um outro?" Aqui está, justamente, um dos

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problemas. Claro que é um outro; ele tem outra história, outras fantasias, outra linguagem. Tem apenas a mesma anatomia, só isso, mas é um outro. Quando digo "fazer com", é a diferença com as máquinas. Admitamos que haja um- porque sempre se pensa que um indivíduo é "um" - indivíduo; em francês, individual quer dizer não-dividido ... Então, pensa-se "fazer com" um "um", não é possível pensar assim. É por isso que eu dizia "com o outro sexo", a fim de introduzir a divisão. Poderíamos, a partir daí, retomar a oposição indivíduo/sociedade, individual/social. É uma oposição tradicional e ideológica. O conceito de indivíduo é um conceito de defesa. Contra o quê? Fizeram-me a pergunta sobre a diferença entre a análise estrutural no sentido de Lacan e a análise que já se tomou tradicional. Observo, a esse respeito, que a análise tradicional, aquela que é um recalcamento do que deve ser a análise, foi inteiramente colonizada pela psicologia do Eu, com a cumplicidade de Anna Freud, entre outros - não tenho nada contra ela; é uma mulher encantadora. Por muitas razões, gosto muito dela, mas não por sua teoria. A psicologia do Eu reforça a idéia de um indivíduo centrado em torno de um núcleo de identificação, fazendo disso o centro do mundo, como se pensava, antes de Galileu, que a Terra era o centro do mundo. Foi preciso tempo para que se compreendesse que a Terra não era o centro do mundo, que era o lugar onde nós estávamos, mas que havia outros lugares, e que o sistema dos astros, que não era regulado pela Terra como centro, era um sistema de relações entre diferentes sistemas. Creio que isso é mais ou menos compreendido, se não aceito, mas ninguém contesta hoje essa estrutura ou essa lógica da astronomia, mesmo que possamos acrescentar-lhe muitas precisões. Em certo sentido, a descobe11a analítica é uma revolução da mesma ordem: o indivíduo não está organizado em torno de um Eu, mesmo que o Eu exista. Eu, quer dizer !eh, Ego. Mas é uma idéia pouco aceita. Na verdade, as relações que vivemos continuam a ser organizadas como se o Eu fosse determinante na organização psíquica, enquanto é o inconsciente que é o seu operador. O inconsciente não é um Eu. O inconsciente é um sistema, que tem relação com outros sistemas. É isso que quero dizer quando declaro que a oposição entre individual e social é arcaica, pré-analítica. Temos hoje os meios de pensar as relações entre os seres vivos falantes, o que Lacan chama, de outro modo, "os parlêtres" [fala - seres], mas não queremos isso, ainda temos muitos beneficios com a organização antiga. Enquanto pensannos as fonnações sociais como uma coleção de indivíduos, as soluções que propusennos serão sempre marcadas por esse mesmo erro. Se você pensa que a TetTa é o centro do mundo e que

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ela atrai tudo, você nunca poderá ir à Lua, e as relações ficam congeladas segundo uma certa ordem ideológica. Enquanto nos representannos as fonnações sociais como uma coleção de indivíduos, o problema estará mal fonnulado e, por isso, não haverá solução. É por isso que a pressa de colar conceitos não é um bom trabalho. O trabalho que podemos fazer, do lugar onde estamos, é desligar ou destruir, se quiserem, alguma coisa da ideologia do Eu como organizador do sistema psíquico. É um longo trabalho, porque as resistências, como sabemos na psicanálise, são fortes. Podemos compreender, podemos até escrever um belo livro sobre isso, podemos dizer que o homem não deve oprimir a mulher, considerá-la como objeto. Muitos homens que eu conheço pensam assim, mas quando se trata da mulher deles, cuja posse, apesar de tudo, eles supõem ter, o que eles pensam não serve para nada. Eles agem como se não soubessem nada. O trabalho está por fazer. Há oposições entre sistemas, mas a oposição social/individual me parece superada e principalmente paralisante. Não se pode fazer tudo, principalmente fazer tudo ao mesmo tempo, no lugar em que estamos. No nosso consultório de analistas, podemos, pelo menos - e isso já é muito importante - fazer com o outro que está ali. Se conseguirmos, será muito mais importante do que escrever vinte livros, porque alguma coisa foi feita "com". O sistema social, embora eu não deseje chamá-lo assim (prefiro dizer "a coisa política"), parece atualmente organizado com um objetivo de poder. O político é o que se refere ao poder sobre a cidade. O que é o poder, senão o poder de administrar a morte? As relações de qualquer ser vivo com a morte são um problema. A sociedade organiza, assume essas relações com a morte. Numa sociedade religiosa, isso é muito visível, você até ganha uma passagem mais ou menos direta para o paraíso ou para o inferno. Você é enterrado com todas as cerimônias. Mas qualquer poder é sempre religioso, no sentido em que organiza as relações de cada um com a morte. É esse sistema de delegação a uma instância, mesmo por eleição democrática, que me parece ser o problema. Por que é preciso que um organismo administre a relação com a morte? Proponho, quanto à organização social, a idéia de que o poder, delegado pelo povo ou imposto pelo céu, é feito para regular as relações de cada um com a morte. Como está nossa relação com a morte? A relação com a morte é um fato político, não é um fato inconsciente.

Amar. Simbolizar o real

A palavra "amar" significa o mesmo que "desejar" ou "ter necessidade de'"? Ela merece um exame melhor. O amor é habitar o verbo; entretanto, direi as coisas de outra maneira. O sujeito é produzido pelas palavras, pelas representações inconscientes. O amor é o que se produz quando uma relação se estabelece entre um sujeito e outro sujeito, em geral quando se acredita viver uma relação amorosa entre um Eu e outro Eu. Usualmente, chama-se isso de amor, do qual muitas vezes se diz que acaba mal. Com isso, interrogamos a relação entre um sujeito e um outro sujeito. Quando ela ocorre entre um Eu e um outro Eu, essa experiência resulta num conflito sobre um fi.mdo de identificação. O Eu pode ser pensado como o lugar das identificações imaginárias. As brigas de namorados se resumem quase sempre nestas palavras: "É você que ... ", "Não, é você ... ", "Não, não sou eu, é você", ou "Não é você, sou eu". A palavra "afeto" sempre me incomodou. Na verdade, o afeto é um movimento, uma emoção, que excede, ultrapassa, transborda o que poderia contê-lo. Na minha opinião, numa relação comum ou mesmo numa relação analítica, um afeto emerge quando algo da força do real faz irrupção além das representações que são feitas para contê-lo. Para Freud, as representações são representações de moções pulsionais; é outro modo de dizer que o real estaria contido, ou pelo menos representado, pelas representações, isto é, pela força que, no sistema psíquico, só existe sob a fonna de representações. 84

amar. simbolizar o real

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A finalidade de uma certa psicanálise é reforçar o Eu, organizador das representações do aparelho psíquico. O Eu seria então uma espécie de terminal de computador, reunindo as representações de um sistema psíquico determinado. Mas o sujeito do inconsciente, tal como nós o enunciamos, não cumpre a mesma função. Ele garante a passagem entre as diferentes representações e a mudança de sua organização. Qual é, pois, a função do sujeito, em relação ao representante das moções pulsionais? Não é uma função de reunião, mas de abertura; como se o sujeito tivesse como função remeter ao real, logo à origem, à fonte verdadeira das pulsões, a fim de reuni-las, fechá-las num centro. O sujeito teria como função garantir uma circulação entre a força do real e a fixidez das representações. Pode-se considerar que a história de cada um se constrói como uma mitologia, como nos ensina a prática psicanalítica. Temos que reconhecer a história mitológica daquele que nos fala, mas também temos que lhe dar a possibilidade de relacioná-la com as outras histórias mitológicas. O que faz com que uma relação entre dois sujeitos possa produzir aquilo que se chama amor? É o interesse de um pela mitologia do outro, e reciprocamente. O que faz o amor é o interesse pela estrutura dessas histórias e a relação que cada história mitológica mantém com o conjunto das histórias "mitológicas"; logo, o interesse por uma terceira história. A história universal, a mitologia grega, a mitologia matemática, a mitologia psicanalítica ou a mitologia de um amigo comum ... De fato, não há relação entre um sujeito e outro, mas apenas uma relação entre vários, entre, pelo menos, três. A relação pseudo-amorosa ou amorosa comum, entre dois Eus "você" e "eu" - é uma relação em espelho, com um outro que não é um outro, mas um mesmo. Um outro é alguém que fala outra língua, porque tem outra história e outra mitologia. Tem outras representações de suas moções pulsionais, e elas estão organizadas de outra forma. A esse respeito, acreditar que aquilo que é representado, escrito, é o que fica - e é permanente - , é falso. Se há uma coisa pennanente, é a força que vem do real. Quando uma determinada mulher, por exemplo, se toma catatônica, ela diz com todo o seu corpo alguma coisa da permanência do real e protesta contra a idéia de que o que é permanente são as representações. Falar do sujeito e do amor, a respeito do psicótico, equivale a perguntar por que ou como o psicótico não pode aceitar ser um sujeito. Será porque se fez do sujeito um Eu cedo demais? É uma hipótese. Será porque sua primeira experiência de sujeito foi forte demais, traumatizante, como se diz? Será porque a mãe não pode suportar que

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haja sujeito? As anamneses de psicóticos confinnam que são necessárias pelo menos duas gerações para fazer um psicótico, um sujeito sem sujeito. A sociedade está organizada a partir de um modelo homossexual; pensar que vivemos sob um regime heterossexual é apenas um voto. A idéia de que uma organização fundamentalmente homossexual da sociedade exista para Freud certamente tem algo de verdade, mas por que referi-la apenas ao passado, enquanto ela é presente e atual? Interpreta-se a história da descoberta do complexo de Édipo pelo fato de que a mãe de Freud era da geração dos irmãos deste; 1 Freud se encontrava, assim, confrontado com uma situação possivelmente incestuosa. A enunciação desse tipo de relações entre os homens e as mulheres não teve necessariamente como efeito, no que lhe diz respeito, poder considerar a mulher como uma mulher. E toda a seqüência da história da psicanálise prova isso: os filhos de Freud continuam a fabricar mãe, continuam a manter as condições de um regime fundamentalmente homossexual. Então, o que significa na teoria a idéia de que se trataria de uma regressão, senão o retorno para trás, a fim de levar em consideração o outro lado do problema: o protesto do paranóico? Se ele não quer ser sujeito, é porque percebe rapidamente que todos aqueles que pretendem ser sujeitos, isto é, outros, não o são. Desde o início, ele se sente preso num sistema homossexual, contra o qual protesta. Ele desejaria amar, mas "amar" supõe um outro. Schreber, professor de psicose, achara a solução: queria ser uma mulher. Ele, pelo menos, como mulher, como outro, teria criado a outra mulher. Tudo isso está escrito muito claramente: "Como seria bom ser uma mulher submetendo-se à cópula." O mais dificil, para nós, é realizar a passagem de uma sociedade homossexual para uma sociedade heterossexual. Gostaria de tentar precisar o que entendo por "homossexual". O problema todo é fazer a diferença entre o sistema das representações e a outra coisa que o anima. Esse poderia ser um problema filosófico, o problema do mesmo e do outro. Mas isso não acontece assim na relação analítica. Temos que abordá-lo com um sujeito e nós mesmos como sujeito. O problema para o analista é desatar o que impede o sujeito de ser um sujeito. O sujeito é a função que, de maneira viva, permite alternativamente uma relação com o sistema das representações e com o real. O sujeito que temos de desligar da função do Eu que o encobre é o que nos permite viver urna relação com a fonte de todas as forças pulsionais. Mas ele não pode, sozinho, garantir o que faz a diferença. O sujeito é sempre atraído para o sistema das representações de que ele é

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proveniente. É preciso que ele estabeleça outra relação com o sistema das representações de que ele é proveniente, relação com o que faz adiferença, isto é, o falo. Na relação analítica, temos de trabalhar a relação do sujeito com o falo. Essa relação é tão variada quanto o número das histórias mitológicas de que falei. Mas ela se agrupa em dois tipos de relações: a relação do sujeito do inconsciente de um corpo masculino e a relação do sujeito do inconsciente de um corpo feminino. Vocês se lembram de que, para o homem, essa relação tende a se orientar para o investimento do pênis como representação do falo. Como não é certo que essa representação seja verdadeira, ele se tranqüiliza investindo todo o sistema das representações, para ter a ilusão de ter o poder sobre - ou com o falo. A relação do sujeito feminino com o que faz a diferença parece passar pela possibilidade que ela tem de produzir real, isto é, um filho. A relação com o falo, do lado masculino, é dominada pelo investimento de uma representação, ao passo que aquilo que se propõe, do lado feminino, é o investimento de algo de real. Mas como pode se investir o real, por oposição ao investimento de uma representação,já que o real é a fonte de todas as forças de investimento? Pode-se imaginar que então é necessário, para a mulher, obter uma grade de representações, não para estar ceita da sua relação com o real, mas para poder simbolizá-lo. Não é o mesmo problema que o do homem, pois o homem investe a representação, e toda a sua dificuldade serú não reduzir o real a um sistema de representações, isto é, não colonizá-lo, mas reconhecer que há outra coisa. Parece-me que o problema da mulher não é o mesmo. Sua relação com aquilo que faz a diferença é uma relação imediata, e a questão para ela é mediatizá-la. É por isso que - parece-me -- o recalcamento não é tanto o problema da mulher. No estado atual da nossa sociedade, o ponto de vista dominante é o do homem. Ele é bastante eficaz, até permite ir à Lua, mas não permite que o outro "mulher", aquela que não é uma construção sua, exista, fale, viva. A mulher se colonizou como o homem coloniza o real. As pessoas se habituam a tudo, e as mulheres, até o começo do nosso século, estavam habituadas a esse sistema; para mediatizar sua relação com o real, imediato, elas adotavam o sistema do homem. Há um trabalho a continuar, que consiste em reconhecer o outro sexo, porque, enquanto a mulher mediatizar sua relação com o real segundo o modelo do homem, ela será apenas uma mãe; o homem só pode construir mãe. E continuamos a fazer das mães a mesma coisa, um ser

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falsamente sexuado, porque tudo é feito a partir do modelo da dominância da representação, para ajudar o homem a se defender contra sua angústia de castração. Esse não é o problema da mulher. Parece-me, mas não tenho verdadeiramente base para afinnar, que o problema da mulher é construir o sexo, o outro sexo, isto é, uma outra relação com aquilo que faz a diferença, outra relação com o falo. Mas para isso é preciso que lhe permitam abrir a boca. Como não somos filósofos, felizmente, só podemos abordar o problema do mesmo e do outro por meio do sexo. Mas essa relação do sujeito com aquilo que faz a diferença é uma relação dificil e angustiante. Em geral, pára-se no meio do caminho e, quando se compreendeu um pouco alguma coisa, passa-se a vida explorando isso. Não se pode trabalhar sozinho essa relação do sujeito com o que faz a diferença. Temos de fazê-lo com o outro, mas é preciso que esse outro aceite ser outro. Perguntaram-me há pouco se eu acreditava que poderíamos chegar a uma sociedade heterossexual. Tenho certeza disso, como também penso que aqui começamos verdadeiramente a trabalhar esse problema, talvez quanto a vocês, sem dúvida para mim. Em Paris, falamos amesma língua, então supomos compreender, mas o poder do código, do sistema de representações, é ainda mais forte do que o desejo de sair da homossexualidade. Hierarquia tem a mesma etimologia que anarquia; isso evoca uma pirâmide, em cujo topo reina um arconte. André Green se interessou, ao mesmo tempo que eu, por essa palavra, are/zé, arquétipo, hierarquia, oligarquia etc. Freud se interessava muito por arqueologia. Em uma imagem que me foi trazida no sonho de um paciente, tratava-se das marcas deixadas sobre a areia pelas nádegas de quem se sentava ali. Aliás, ouvi dizer, não sei mais onde, que era costume ensinar as crianças a apagar as marcas do corpo na areia, depois de deitar-se ou sentar-se na praia. Isso me levou a uma imagem, que era a do sonho. Essa marca das nádegas na areia era precisamente a marca das nádegas do pai. Em alemão, o traseiro do pai se diz Vaterarch; isso dá uma idéia da etimologia de hierarquia. O que se chama em Paris de Movimento de Libe11ação das Mulheres (MLF) começou em 1967, ao mesmo tempo que a instituição dopasse na Escola Freudiana. As poucas mulheres que estiveram na origem desse movimento sempre foram muito próximas do movimento psicanalítico, mas a maioria delas nunca entrou numa instituição psicanalítica. Esse movimento teve um enonne sucesso. Luce Irigaray, de quem falei acima, aderiu a ele por volta dos anos 70. Ela não tem mais do que

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relações distantes com a instituição analítica. Mas o destino do MLF fez com que esse movimento se tomasse, em 1974, um movimento feminista, a negação do projeto inicial, pela tentativa de uma tomada do poder pelas mulheres. Esse movimento continua a ter um grande sucesso, mas é apenas a imagem em espelho do poder dos homens e, aliás, todos os partidos políticos na França fazem a corte às feministas. Não é o movimento feminista que me interessa, mas o pequeno grupo de mulheres que continuam a manter o que se chama simplesmente Movimento das Mulheres. Foi com elas que trabalhei durante estes dois últimos anos. Elas me ensinaram a desconfiar de tudo o que eu poderia continuar a pôr em ato quanto às minhas repetições, especialmente escrever teoria. Para infonnação de vocês, desde o início do ano, elas publicam um jornal mensal, que se chama "Fcmmes en mouvement". Há correspondentes no Brasil e especificamente no Rio. Esse jornal tem a particularidade de não ser parisiense. É tão africano quanto sul-americano ou oriental. A fórmula de Lacan é: "Não existe relação sexual." Ela significa que o encontro sexual não pode se inscrever num sistema de representações. O sistema das relações, que se chama encontro sexual ou relação sexual, é diferente de uma relação no sentido da representação. O significante representa a instância da morte. Mas não é um destino inelutável; o real, o atual, o vivo, é sempre o mais forte, ao contrário do que se diz. Nenhuma imagem é mais impressionante do que as de um filme como Hiroshima mon amow·, em que se vê, depois de uma catástrofe atômica, a vida ressurgir, apesar de tudo.

PARTE II

TEXTOS CLÍNICOS

1. DO BOM USO DA CLÍNICA

A função ünaginária da dúvida na neurose obsessiva*

Eu não saberia lhes dizer, 1 apesar de uma tentativa de análise, por que mecanismos de censura, deslocamento, inversão ou regressão meu tema se tomou, nas mãos do tipógrafo de L 'Évolution: "A função onírica na psiconeurose reativa." Entrego esse fenômeno à reflexão de vocês, lembrando-lhes que meu título verdadeiro é: "A função imaginária da dúvida na neurose obsessiva." Mas é notável que uma única. palavra, apenas uma, tenha resistido ao trabalho da censura. É a palavrafimçcio. Dou alguma importância a ela e é por isso que vou introduzir minha fala com um breve comentário sobre essa palavra, pois ela pode situar a perspectiva da minha exposição, assim como pode situar o campo da psicanálise. O que temos em vista nessa disciplina não é, como alguns querem acreditar, uma dissecção, ou até mesmo uma microdissecção do homo psychologicus, do qual teríamos em nossas igrejas um modelo sintético, que serviria de referência para nossa ação. Não, o que temos em vista, na psicanálise, é uma procura do sentido, da significação, da "função", e entendo com isso a função humana. Se a psicanálise pode se servir de esquemas estruturais, se recorre a diversos campos das ciências humanas, se participa da psicologia, da filosofia, da sociologia, da história, da criação artística e também da medicina, ela não é, entretanto, em si mesma, um ramo de nenhuma dessas disciplinas.

* Entretiens psychiatriques nº 4, PUF, 1958, p. l 93-216. 93

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escritos clínicos

A psicanálise é uma procura do sentido, e esse é o seu campo próprio; pois pensamos, talvez ingenuamente, que a ação do homem tem um sentido. Qual é, então, a significação da dúvida que o doente obsessivo apresenta? É o que me proponho considerar, tentando, ao mesmo tempo, mostrar que, se a abordagem psicanalítica constitui uma posição basicamente original, ela não é forçosamente, e, por isso, completamente impenetrável. Para tratar do sentido, é preciso, antes de mais nada, que o meu discurso possa ter um sentido para vocês. Em poucas palavras, este é o caminho que seguirei: falarei primeiro da dúvida e lembrarei as diferentes maneiras clássicas de encará-la, antes de estudá-la mediante um exemplo clínico. Direi depois algumas palavras sobre a neurose obsessiva, terra de eleição da dúvida. Enfim, tentarei, na terceira parte, situar o terreno do imaginário, opondo-o ao simbólico e ao real; espero mostrar que essas três categorias são, para nós, de um eminente valor operacional, na conduta do tratamento. Só então tentarei explicar, como conclusão, a função imaginária da dúvida na neurose obsessiva. O objeto de nosso estudo, a dúvida, parece, na verdade, bem fugaz. Assim, vamos tomar algumas referências, para que possamos nos entender. Para começar, acompanhem-me por um momento no terreno, que se pretende sólido, das "definições". "A dúvida é um conflito de julgamentos, a nenhum dos quais conseguimos aderir de maneira duradoura", diz H. Delacroix no tratado de Dumas. E prossegue: O conhecimento é incompleto e sabemos que ele é assim; nenhuma hipótese se impõe verdadeiramente; logo, elas se apresentam sucessivamente, sem que a decisão da crença seja possível: a dúvida consiste, antes de tudo, nessa oscilação mental e num estado afetivo geralmente penoso, que vai do simples mal-estar à angústia.

Essa dúvida se toma patológica quando a impossibilidade de chegar a uma conclusão vem da impotência do sujeito, e quando os problemas que o habitam são obra de um trabalho estéril de pensamento e apenas expressam sua agitação mental. Entretanto, resta definir nessa perspectiva a crença, pois, continua Delacroix, "crença e possibilidade de duvidar são conexas, como evidência e impossibilidade de duvidar". De modo que se chega a esta conclusão sobre a dúvida patológica: "Ele duvida das coisas porque não é mais ele mesmo e não sabe mais apropriar-se delas."

a(unçêio imaginária da dúvida na neurose obsessiva

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O caráter global, central e invasor da dúvida foi observado por todos os autores: Sollier, em seu estudo sobre a dúvida ( 1909), relega o conflito de julgamento para segundo plano e define assim a dúvida: É um fenômeno de ordem afetiva, interessando a personalidade inteira primitivamente, acarretando secundariamente reações instintivas e volitivas, e constituído por um conflito entre estados quaisquer de atividade cerebral, conflito que tem a forma de oscilações que se produzem de maneira involuntária, e é acompanhado de um sentimento mais ou menos penoso ...

Essas definições podem servir de ponto de partida para muitas reflexões; eis alguns exemplos, para aqueles que gostariam de continuar nesse terreno: - A incerteza não é a dúvida, mas a sua conseqüência ... a menos que seja o contrário, segundo a dúvida seja um fenômeno "afetivo" ou "intelectual"; - Do mesmo modo, a hesitação deve ser distinguida da dúvida, como um comportamento resultante de um estado de dúvida, cujo movimento de oscilação ele objetiva; -- Também se pode considerar a dúvida como uma falência da vontade; -- Enfim, seria preciso encarar a dúvida em relação ao seu objeto e distinguir assim uma dúvida do mundo exterior, da realidade presente, passada ou futura, de uma dúvida de si mesmo ... etc. Aqueles que têm o hábito, por falta de ciência, de inventar "formas clínicas" para suas questões de residência médica, poderão sem dificuldade dedicar-se a este joguinho sobre a questão "Dúvida": formas segundo o objeto, o tempo, o terreno, a evolução ... Deixo isso para eles, pois hoje não é nesse sentido que desejo conduzir nossa reflexão. Também não é para o plano ji/osójico que cu desejaria arrastá-los esta noite; mas como calar aquilo que, na quarta parte do Discurso, intitulada "Provas da existência de Deus e da alma humana ou fundamentos da metafisica", Descartes expunha em seu Método'?: Mas, no que então cu desejaria consagrar-me somente à busca da verdade, pensei que fosse necessário que eu fizesse exatamente o contrário, e recusasse como absolutamente falso tudo aquilo em que eu pudesse imaginar a menor dúvida ...

e mais adiante: Em conseqüência de que, refletindo sobre o que eu duvidava, e que, por conseguinte, meu ser não era completamente perfeito, pois eu via com ela-

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reza que era maior perfeição conhecer do que duvidar, decidi procurar de onde eu aprendera a pensar algo de mais perfeito do que cu era; e conheci evidentemente que isso deveria ser de alguma natureza que fosse, de fato, mais perfeita.

Releio essas linhas com a intenção de lembrar-lhes estas duas dimensões do problema da dúvida: a da verdade e a da transcendência, pois só falaremos muito pouco disso agora. Mas vocês verão que não me bastará reconer à clínica psiquiátrica para avançar nitidamente no teneno da compreensão, para além das descrições puras ou das especulações ingênuas. A dúvida aparece, é verdade, em toda observação clínica do obsessivo. Entretanto, vamos reler alguns trechos de notáveis clínicos do começo do século; Pitres e Régis nos apresentam, em sua observação XXVIII, um caso de obsessão de dúvida do pensamento e da existência: Há dois meses, M.D., cinqüenta anos, se indaga se realmente pensa, e como pode ter ce11cza de que pensa ... Uma noite, acorda e pergunta: será que cu penso? Como não sente que pensa, diz a si mesmo: já que nada prova que cu penso, não posso saber se existo.

Ele destruía assim o famoso aforismo de Descartes ... E nossos autores, depois de lembrar a "loucura da dúvida" de Falret, Morei e Legrand du Saulle, observam: Na realidade, Iodas as obsessões idcalivas, quaisquer que sejam, representam variedades de uma única e mesma doença .... E até, quando se examinam melhor as coisas, percebe-se que a maioria das idéias que se observam nas obsessões são apenas, com todas as variações que o pensamento humano comporta, idéias de hesitação, de perplexidade, cm suma, de dúvida: de modo que se pode dizer, sem temor de enganar-se, que a dúvida ansiosa está na base da maioria, se não de todas as obsessões ... "

E concluem sabiamente: "Basta-nos assinalar esse ponto." P. Janet, que recusa o lugar central que é dado à dúvida por Pitres e Régis, faz do "sentimento de dúvida" um estigma psicastênico enquanto manifestação de incompletude nas operações intelectuais. Em vez de reportar uma de suas observações (o que farei daqui a pouco), quero citar alguns dos títulos que ele lhes dá; assim, nas "manias de oscilação", isola duas observações, que intitula: mania mental de hesitação, de interrogação e mania de hesitação detenninada pelo casamento. Sinto muito não poder lê-las, por falta de tempo. A explicação que P. Janet dá desses distúrbios é conhecida e eu a lembro aqui: "Acredita-

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mos hoje, diz ele, que esse sentimento é a primeira manifestação de um grande rebaixamento da tensão psicológica que impede os sujeitos de chegarem ao sentimento do Real." Parece que a abordagem psicanalítica, preocupada em reconhecer a significação dos sintomas, introduz uma dimensão nova na pesquisa. É na observação do "Homem dos Ratos" que Freud nos confia suas reflexões sobre "a predileção dos obsessivos pela incerteza e pela dúvida". A oscilação de dúvida tem seu modelo no paciente de Freud, em duas ordens dos conflitos afetivos primitivos. O primeiro desses conflitos corresponde à oscilação normal entre o homem e a mulher como objeto de amor, na qual pomos a criança, com a famosa pergunta: "De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?", oscilação que a acompanha por toda a vida.

"O outro conflito é entre o amor e o ódio", cuja conseqüência é deduzida inexoravelmente: Se a um amor intenso se opõe um ódio quase tão forte, o resultado imediato deve ser uma abulia parcial, uma incapacidade de decisão cm todas as ações cujo motivo eficiente é o amor. Mas essa indecisão não se limita durante muito tempo a um único grupo de ações, pois quais são os atos de um amante que não estão cm relação com sua paixão? Assim, principalmente graças ao mecanismo de deslocamento familiar ao obsessivo, a paralisia da decisão se estende pouco a pouco à atividade inteira do homem .... No .fundo, é uma dúvida do amor, pois aquele que duvida do seu amor pode e deve duvidar até de todas as outras coisas.

As conseqüências dessa dúvida são as medidas de defesa do obsessivo: repetição contínua, tendo por fim banir essa incerteza, compulsão que tenta compensar a inibição, isolamento da medida de defesa, anulação, enfim, numa sucessão que prova que todos esses meios esgotam a sua eficácia. Logo que a impulsão amorosa consegue executar o que quer que seja no seu deslocamento sobre uma ação insignificante deslocar uma pedra, por exemplo, para evitar um acidente-, a impulsão hostil logo a segue e aniquila sua obra. A extensão da dúvida é indefinida e Freud observa "que todo obsessivo pode, graças à incerteza da memória, estender a dúvida a tudo ... mesmo aos atos passados que não têm nada a ver com o complexo amor-ódio". Na verdade, depois dessa época histórica, a dúvida interessou pouco aos psicanalistas e, assim, não mencionaremos os raros complementos acrescentados a partir de então a essas reflexões freudianas, seja no.

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âmbito da teoria do caráter anal, cujas aplicações pitorescas vocês podem adivinhar, seja no âmbito da psicologia analítica, em que todo o problema parece reduzir-se a uma oposição sem saída entre o Isso e o Supereu, em que o Eu fica neutralizado. Assim, se nos limitamos ao texto freudiano, vemos que a questão fica aberta num ponto que não poderia ser contestado: a dúvida é, em última análise, uma dúvida do amor: amor de si, amor do outro, amor de si pelo outro. É nesse ponto que o caminho fica aberto para nossa análise, ou então, falando de modo mais técnico, é no nível do problema do narcisismo que a questão permanece. A dúvida é uma dúvida de si mesmo. E já que acredito que estamos todos mais ou menos de acordo sobre essa proposição, vamos tentar compreender o que ela significa, qual é o sentido da dúvida de si mesmo. Até aqui, tomamos nossas coordenadas com a ajuda de algumas referências psicológicas, filosóficas e históricas. Agora, sigam-me por favor até o divã; instalem-se perto da poltrona, olhem e escutem. São três horas, mando o paciente entrar. Ele tem 26 anos, um belo sorriso ilumina seu rosto preocupado quando ele me aperta a mão; sua elegância é discreta, seus gestos moderados. Não, ele não parece mesmo doente; é impressionante como ele se parece conosco! Mas se vocês soubessem o que passa pela sua cabeça! Será que estacionou bem o carro, será que o carro não vai provocar algum acidente? Ele se tortura, "a vida é uma provação". Solteiro, é claro, e é pena, porque ele é terno, gentil, espirituoso, grande apreciador de arte. Até imagina ótimos contos, mas não os escreve. lco11é:fbro é o seu nome. Iconéforo, depois de estender-se sobre o divã, começa assim: "Era mesmo às três horas que eu devia chegar? Talvez você esteja me esperando há quinze minutos; sinto muito realmente, me desculpe." E continua: "Fiquei com isso na cabeça: você disse três horas ou quinze para as três? Com certeza, eu anotei três horas, e sei que raramente você muda a hora, seja como for. Mas eu estava quase certo de que você disse: da próxima vez, vai ser mesmo quinze para as três; aliás, se eu tivesse pensado um pouco, teria compreendido que, já que eu me lembrava das suas palavras, é porque, como sempre, eu me enganei quando escrevi ... Realmente, sinto muito ter chegado quinze minutos atrasado." E continuou assim durante uns bons ... quinze minutos. Nem preciso dizer que a hora de Iconéforo era realmente às três e que ele chegou muito pontualmente às três horas menos um minuto.

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O que significa isso? Ele está me ironizando ou verdadeiramente duvidando? Não tenham dúvida: está duvidando, apesar de saber. Antes de qualquer análise, o que se impõe efetivamente, em primeiro lugar, é que ele chegou na hora e isso nos indica de imediato que não se deve considerar essa dúvida no seu aspecto facial. Ele duvida porque sabe. Sim, é isso mesmo, ele duvida porque sabe, e não é um lapso. Isso nos confim1a a opinião de que não tiraríamos nada de uma análise que se referisse exclusivamente ao objeto da dúvida. Janet notou isso admiravelmente; escutem este trecho da observação 119: Uma jovem que trabalha como caixa duvida, sempre que dá o troco, da exatidão de suas contas .... Muitas vezes lhe sugeriram uma coisa muito simples: ir ao endereço do cliente e perguntar-lhe se a conta eslava certa. Ela se recusa absolutamente a isso, sentindo bem que, no fundo, não havia erro.

Mas essa é apenas uma consideração liminar à nossa análise. Vamos prosseguir. O que significa o discurso cujo início reproduzi? Um detalhe me impressiona, e eu o observei de passagem; é que ele dedica um bom quarto de hora a discorrer sobre esse assunto, e esse é o tempo que ele imagina ter perdido com o seu atraso. Está claro; ele está perdendo tempo, e isso pode significar: "enquanto estou falando disso, não falo de outra coisa. Estou me ocupando e, afinal, estou ocupando o analista". É o que se convencionou chamar de defesa. Isso é tudo? Certamente que não. O que faria um homem sensível diante de um indivíduo que se atormenta assim, sem motivo? Ele o tranqüilizaria, lhe responderia que não há por que se preocupar; ele não está atrasado e não prejudicou ninguém, a menos que, habituado com esse tipo de situação, ele lhe passe um sennão e o mande calar-se; talvez também esse homem sensível, tocado pela delicadeza desses escrúpulos, aprecie tanta preocupação com o outro. Acredito que esse discurso também é uma annadilha, para que eu lhe responda, à maneira de um homem sensível, para elogiá-lo, repreendê-lo ou tranqüilizá-lo. Mas se entendo esse discurso dubitativo como uma annadilha para que eu intervenha, também devo encará-lo sob o ângulo positivo de apelo, mais ou menos süicero, mais ou menos hábil, mas apelo discreto e longínquo de um ser cativo da sua solidão. De fato, se o seu discurso é uma maneira de perder tempo e fazer uma annadilha para mim, é apesar de tudo um modo muito indireto de

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abordar um tema que lhe é caro, como ficará provado na seqüência da sessão. É o problema do tempo. Iconéforo não tem relógio durante o dia, mas dorme sob a vigilância de dois despertadores; o tempo perdido, o tempo passado, o tempo que deve dedicar ao sono, ao trabalho, ao exercício são para ele temas familiares, e não há sessão em que ele deixe de me perguntar que horas são e quantos minutos lhe restam até o fim. Em suma, a irreversibilidade do tempo, principalmente do tempo que ele perde, o apavora e fascina como um mistério. Assim, se podemos reconhecer nesse ponto um dos motivos reais do seu discurso dubitativo, para além do seu valor de defesa, armadilha ou apelo, chegamos ao fim da análise? Não. Pois enfim, se esse fosse o caso, bastaria continuar a conversação sobre o tema do tempo, para tirar disso preciosas vantagens terapêuticas. O que observo então, se aprofundo um pouco minha análise, é que esse discurso é, de fato, um preâmbulo, uma introdução preliminar. .. Muito bem. Vamos esperar a continuação. Mas a continuação é uma espécie de parêntese que se situa entre o prólogo e um hipotético epílogo que nunca chega, a não ser como projeto. E é sempre assim: Iconéforo põe tudo entre aspas, entre travessões, entre parênteses, em pós-escrito ou em prólogo ... Não é que uma vez ele me disse que gostaria de escrever uma história em que não acontecesse nada? Seu discurso dubitativo representa uma espécie de mensagem que é preciso decifrar, como vemos, que contém muito ruído e poucas palavras, que pede uma resposta e uma recusa ... Explicarei depois a resposta que é preciso dar e a recusa que se deve opor a esse apelo. Uma coisa é certa: a dúvida é uma pergunta. Releiam todas as observações de dúvida: o ponto de interrogação nunca falta no fim das declarações do doente, e é por isso que acho bastante pertinente a tenninologia que fala de mania de interrogação, até mesmo de delírios interrogativos (Capgras e Abély). Com esse ponto de interrogação, vamos suspender provisoriamente a análise desse início de sessão, cujos elementos eu lhes lembro: Iconéforo duvida do que sabe. Ele ganha tempo ... ou perde, falando comigo. Prepara uma armadilha para mim, uma isca. Lança-me um apelo interrogativo, em fonna de prólogo. O que poderia ser resumido nesta fónnula provisória: sua dúvida é uma isca problemática e interrogativa. Mas, dirão vocês, por que Iconéforo usa tantos desvios para não dizer o que tem a dizer, mas dizendo isso entre parênteses? Por que faz tantos rodeios para falar de uma questão?

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Por quê? A resposta óbvia é: porque ele é um obsessivo. O que é, pois, um obsessivo? É o que vou tentar apresentar-lhes agora. O obsessivo é esquivo e diverso, sólido como um rochedo e fluido como o mar; presente sem estar ali, por toda pai1e e em lugar nenhum. Vocês já participaram da sua vertigem, quando ele os arrasta pelo círculo vicioso das suas dúvidas, das suas contradições, da sua rigidez monolítica à sutileza das suas relativizações incessantes? Que curiosa fortaleza, esse castelo fortificado cujas portas abertas são mais intransponíveis do que muralhas; é um impressionante reino fechado que contém nos seus limites, infinitamente extensíveis, mn fora e um dentro, um castelo interior cercado de uma natureza muito rica, onde todas as paisagens do mundo estão representadas, que contém no seu microcosmo todas as verdades como outros tantos elementos estéreis. Fortaleza surpreendente, que esconde tantas fraquezas, temores e angústias. Parece muito com um conto de fadas ... Nada melhor do que relatar por completo para vocês a grande.fantasia de lconéforo. Ele nos fala da "Cidade Encantada". Vamos escutá-lo. Eu andava intcnninavelmente ao longo desse recinto mudo; um sentimento estranho me ligava a ele, e o campo imóvel sob o sol do meio-dia abafava a cadência dos meus passos; eu avançava sem me mexer ... Quanto tempo? Não sei! Encontrei-me então diante de uma porta imensa, recortada na muralha; suas grades ricamente ornadas estavam abertas e no alto do pórtico li meu nome. Entrei. A luz era estranha, calma, límpida, azulada. Parecia que ali a lua era o astro do dia e dava ao campo, desenhado como um parque, um rigor insólito. Mal se atravessava o limiar, uma inscrição gravada no mám10rc advertia o estranho: Aqui o tempo dura e não passa. Continuei, mas ao mesmo tempo senti que cu encolhia como uma pele de asno, e compreendi então que era preciso que eu estivesse à escala da natureza que me cercava: os carvalhos centenários eram pequenos como macieiras, e os mais majestosos pinheiros pareciam enfeites de Natal. Os caminhos e estradas se abriam para um povo de pigmeus. O trem que ia me levar até a cidade parecia saído das fantasias de algum milionário: era uma cópia só. um pouco reduzida. Instalei-me nesse trem maravilhoso, com o qual todos nós sonhamos, para atravessar o campo que cerca a cidade: as terras cultivadas estavam organizadas como jardins à francesa e os campos de lúpulo se pareciam com nossas vinhas; a natureza "selvagem" estava organizada à inglesa, e quando se prestava atenção,

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via-se que ela parecia ser um capricho de geógrafo: todos os continentes foram representados pelo jardineiro, adornados com sua vegetação própria. Um campo curioso: imagine lado a lado pequenos trechos de estepe, jardim exótico e parque Monceau. Atravessei assim um trecho de natureza muito selvagem. Era uma reserva natural, disseram-me, só um pouco maior do que um jardim zoológico, mas ali estavam todos os animais, como na arca de Noé. Com a diferença de que estavam solteiros. A cidade me pareceu então mais próxima, como um castelo sobre uma colina; antes mesmo que eu me recuperasse das minhas primeiras surpresas, desci do trem e encontrei-me sob os seus muros. Atravessei uma porta sempre aberta, por trás de uma ponte levadiça que nunca se levantava; mas foi para me encontrar logo, ao mesmo tempo cm que meu tamanho encolhia de novo, diante de outro recinto, que também atravessei por outra porta sempre aberla ... Atravessei dessa maneira seis recintos, antes de encontrar-me no centro da cidade, desta vez reduzido ao tamanho de um verdadeiro liliputiano; cada redução me espantava durante um momento, depois eu me acostumava, esquecendo até que as pessoas podiam ser maiores. Então, fizeram-me subir ao torreão que se elevava no centro da cidade. Assim como Estrasburgo, do alto da flecha da sua catedral, se emoldura no seu jardim, assim também o campo, que cu acabava de percorrer, se estendia sob o meu olhar, e os limites do reino escapavam à minha visão. O espanto me congelou, quando cu me virei: diante de mim, uma cidade, exatamente igual úquela que me cercava, mostrava seus seis recintos e o torreão que brotava do seu centro correspondia àquele que me suportava. E assim fui introduzido ú vida da cidade ... Era como se fossem gêmeas, bastava saber: havia duas. A história da cidade, continuou Iconéforo, reproduz assim a origem da cidade gêmea: outrora, há muito tempo, fazia-se a guerra, depois a paz, com uma cidade que se encontrava além do reino; mas houve muitas vicissitudes, e por duas vezes a cidade quase foi incendiada. Assim, o Conselho, com muita sabedoria, decidiu construir, no próprio interior do recinto e logo ao lado da nossa fortaleza, outra cidade simultaneamente amiga e rival, construída à imagem da nossa: se as duas são iguais,julgava o Conselho dos Sábios, os combates e lutas serão puramente fonnais. Assim, a partir desse tempo, quando a guerra estourava entre as cidades gêmeas, era por pura diversão, e quando por acaso um dos nossos era feito prisioneiro no combate, ficava no cativeiro como se estivesse em casa ... Aliás, em guerra ou paz, combates ou jogos, era a mesma coisa. Informei-me sobre os costumes da cidade, e o que me surpreendeu, disse Iconéforo, foi que nunca se falava de amor; só o acaso me mostrou que aquilo que chamamos assim se ensinava no ginásio, como jogo de combate: era apenas um exercício. Fiquei sabendo assim, disse o nosso contista, que os habitantes da cidade gostavam de passar as férias na cidade gêmea vizinha, e que tinham grande

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satisfação cm mudar de ares e de ponto de vista, reencontrando os mesmos, simetricamente; nada seria mais repousante. Duas administrações, rigorosamente hierarquizadas, duas guardas civis, duas igrejas e duas universidades se defrontavam assim de uma cidade a outra, continuamente: é assim que se cultiva a cultura ... Nada é mais engraçado, disse Iconéforo, do que essas intermináveis discussões acadêmicas, em que os defensores de cada escola são os seus antigos adversários ... Informei-me então, disse ele, sobre a natureza dessa colina que se elevava um tanto fora das cidades gêmeas e que me parecia única; um prédio magnífico, simétrico e harmonioso, que se parecia ao mesmo tempo com o Biirgcnstock e com um grande mosteiro lamaísta, estava construído ali. É a mansão Sirius, disseram-me, o palácio da unificação; nossos pensadores vão para lá de vez em quando para descansar. Na verdade, continuou Iconéforo, é um lugar encantador e compreendo que as portas abertas nunca vejam ninguém sair, a não ser os moribundos. De fato, é fora do reino que se morre, e se é enterrado por estranhos. Não há cemitério na cidade. Não é mesmo, a morte é tão irreal, confiou-me Iconéforo. Fiquei sabendo ainda, disse ele, que a reserva zoológica da cidade gêmea, igual à que cu havia pcrcorido, abrigava as 'metades' dos únicos representantes da outra reserva. Mas então, como eles procriavam?, perguntei. Quase nada, responderam; aliás, isso não era necessário, o tempo passava tão pouco ... Ele também me falou longamente dos relógios: estavam por todo lado, e na rua cada poste tinha um mostrador, sem contar os das torres, das portas e das praças; o relógio era tão necessário num cômodo quanto a janela, e cada habitante tinha que levar dois relógios consigo. Mas era estranho: não se ouvia nenhum tique-taque ... pois eles não funcionavam como os nossos e cada um ajustava o seu tempo para que ele durasse de acordo com a sua vontade.

Durante uma sessão inteira, Tconéforo me falou dos museus da cidade: tudo o que a aite produziu estava encerrado em intermináveis galerias, e os cidadãos eram muito cultos ... Mas eram apenas cópias ou reproduções; não havia um único original. Na verdade, como os habitantes não sabiam disso, dava no mesmo para eles. As bibliotecas eram tão ricas quanto os museus e a obra escrita do mundo se encontrava nelas, interpretada, traduzida ou resumida em sinopses, de maneira muito metódica. Enfim, disse ele, visitei um monumento espantoso, que se encontrava no coração da cidade, mais bem defendido do que uma reserva de ouro ou de urânio. Sabe o que ele guardava em seus milhões de fichários em gavetas? Fotos, ou mais exatamente microfotos de liliputianos ... Acredite-me, nada

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escritos clínicos do que se pode ver no nosso mundo faltava ali: foi o mais belo álbum de figuras que eujá folheei.

Ah, encantador Iconéforo! Será que sabia que, em sua "Cidade Encantada", era a si próprio que ele descrevia? Talvez; mas não tive coragem de dizer-lhe, pois assim ele realizava o seu sonho de imaginar uma história em que nada acontecia. Dominado pelo encanto dessa fantasia, que me lembrava os contos goethianos do Nouveau Pâris e da Nouvelle Mélusine, arrastei-o para o caminho do pecado psicanalítico da curiosidade e interroguei-o sobre a sua fantasia: "Como é que a cidade se comunica com o mundo que está fora do seu reino?" Esperava, com esse recurso, obter algumas indicações sobre a aite e a maneira de atacar a fortaleza obsessiva. Esta é, em resumo, a resposta que ele me deu: Fiquei sabendo, durante minha breve estada na cidade, que essas relações com o exterior eram indispensáveis, eu diria vitais. O ouro da cidade, que lhe permite viver, enfim ... que lhe pennite olhar o tempo passar, é a fototeca; mas ela tem de ser constantemente alimentada, atualizada, renovada e, para isso, é preciso manter relações com o mundo. Por outro lado, essas relações são indispensáveis para tudo aquilo que diz respeito à morte, como já expliquei. Mas se essas relações são necessárias, elas também são perigosas e cansativas, pois afinal, logo que os habitantes têm de abandonar seu tamanho liliputiano para ir se encontrar com os homens, eles se expõem, como sua história mostra, a inúmeros perigos: roubos, destruição, ferimentos, estupros. Então, como se organizam essas relações? É muito simples: a partir do grande princípio do guichê que faz a comunicação entre as clausuras rigorosas e o exterior; nada sai sem ser verificado no guichê da alfândega, pois de outra forma a cidade poderia ficar imediatamente exanguc, e por outro lado, nada entra sem ser rigorosamente depurado, censurado e principalmente calibrado ... Como provam os museus e as bibliotecas, o horror ao autêntico é sagrado. Assim, os meios práticos de comunicação são a mala diplomática, a mensagem cifrada e, em geral, todos os meios de telecomunicação que são capazes de alterar suficientemente o autêntico ... Acredite, concluiu Iconéforo, apesar de tudo vive-se muito bem na cidade encantada, e aliás, como eu disse, ninguém quer sair de lá. A esse respeito, conta-se a triste história do homem que quis sair: a luz do sol o ofuscou, ele foi atacado, maltratado, despojado de seus relógios e de sua microfototeca, que trazia sempre consigo; falaram com ele sem gentileza e ele quase caiu no jogo do amor. Isso foi demais; ele quis voltar, mas não encontrou mais as portas da cidade encantada. Andou desesperadamente, sentindo subir em si a angústia irresistível do homem perdido ... Ah, como ele lamentava os muros sem calor da cidade ... Andava sem destino. E sabe o que ele fa-

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zia, no seu desespero? Começou a construir portas abertas no meio dos campos. Tinha ficado louco.

Vou poupá-los da interpretação árida dessa grande fantasia. Acidade encantada é uma bela imagem do mundo do obsessivo. Basta que reconheçamos nela a estrutura obsessiva em sua prudência, em sua força aparente, em suas fraquezas internas e em seu horror ao contato direto, à relação autêntica. Lembrem-se da pergunta que fazíamos no fim de nossa primeira análise de uma manifestação de dúvida: "Por que Iconéforo faz tantos rodeios para não dizer o que tem a dizer, dizendo-o entre parênteses, e por que usa tantas fonnalidades para falar de uma questão?" A resposta óbvia foi: porque ele é um obsessivo. Nisso, ele se parece muito com o habitante da cidade encantada, que nunca se comunica diretamente com o mundo exterior, mas usa, para isso, de todos os meios que vimos ... Aliás, para ilustrar melhor esse fato, saibam que Iconéforo, em suas primeiras sessões comigo, usava a técnica bem conhecida do pedacinho de papel no qual escrevera tudo o que queria me dizer, e isso, como ele reconheceu depois, era apenas um modo de transmitir-me uma mensagem rebuscada e incompleta, é claro - e transmiti-la principalmente "em segunda mão", segundo a sua própria expressão, o que é uma variante do travessão ou do parêntese. É esse tipo de relação que denomino relaçüo imaginária, e vou tentar explicar esse ponto. Efetivamente, já que vimos em que sentido podíamos dizer que a dúvida constituía uma isca problemática - logo, um tipo de relação particular com o psicanalista - , já que consideramos depois, de um ponto de vista estrutural, graças à fantasia de Iconéforo, o que era a posição obsessiva, tentemos precisar agora, no tempo que nos resta, o que é a re/açüo imaginária, para além da sua ilustração fantasística. O que tenho de melhor a fazer, para estudar rigorosamente a relação imaginária, é opor essa relação ao outro tipo de relação, que chamo de autêntica. A relação imaginária em estado puro, como se pode ver, é uma ficção. Mas isso não impede o fato de que ela possa nos dar, se a concebemos claramente, pontos de apoio muito úteis para estudar posteriormente o caráter imaginário da relação com o outro do neurótico. Talvez alguns de vocês tenham visto um desenho animado de Walt Disney intitulado A parada dos esportes, filme altamente instrutivo em que Donald ensinava vôo a vela, antes que o espectador tivesse, com Pluto, uma aula de golfe incomparável. Como toda boa exposição, esse

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filme era precedido de um histórico dos esportes desde a origem dos tempos, e essa retrospectiva fora confiada ao lápis de Maurice Henry. O autor nos mostra, na origem, um homem vigoroso, de pêlos abundantes, olhos particulannente redondos e fixos, segurando na mão direita um sólido tacape. Este é, diz ele, o homem da idade da pedra, e sem mais, depois de empurrá-lo para o lado, apresenta-nos o seu semelhante, verdadeiramente semelhante em todos os pontos, à exceção de segurar sua arma na mão esquerda: um quaito de volta para o centro da tela e eles se fixam reciprocamente no branco de seus olhos vivos ... É então que o homem da esquerda, talvez o mais alerta e o mais dialético dos dois, levanta lentamente o seu tacape, fazendo-o cair de repente sobre o crânio do seu semelhante, provocando um barulho surdo. Então, o homem da direita, estimulado no ritmo do seu pensamento, levanta por sua vez o seu bordão, mandando-o com um vigor simétrico na cabeça do seu semelhante. Sem mais delongas, o homem da esquerda, movido por algum automatismo de repetição, reitera mais vivamente o seu gesto, o que não deixa de determinar um reflexo semelhante no seu semelhante ... Para a mesma causa, o mesmo efeito, e uma vez o exercício começado, continua sem parar, numa cadência que se acelera indefinidamente. Não pensem que o crânio de um ou de outro vai ceder! Não, os dois se ente1nm, progressivamente, no rochedo que os suporta. A relação imaginária pura é assim: fascinante, inexorável, sem saída. Mas também vemos, na mesma ocasião, que essa relação pode, com razão, ser qualificada de "dual". Esse exemplo é de grande utilidade para nós, pois nos mostra o que acontece quando somos dois, dois sozinhos, cm tête-à-tête exclusivo, mesmo que seja no consultório do analista. Mas, enfim, não vamos falar mal de ninguém. Tranqüilizem-se; a face imaginária de uma relação neurótica é mais matizada do que aquilo que acabo de descrever, e vou lhes dar exemplos clínicos, sem omitir, desta vez, a observação complementar do ilustre terapeuta. Esses exemplos lhes mostrarão os diferentes aspectos da relação imaginária, dos quais o primeiro, que acabamos de isolar, é que a relação imaginária é uma relação dual, isto é, relação a dois, sem recurso a nenhum outro, exatamente como as duas cidades da Cidade Encantada se enfrentam por fonnalidade, num isolamento rigoroso. Lembro-me de uma sessão logo no início do tratamento, em que meu paciente confessou ingenuamente: "Não consigo realizar a existência do meu próximo como um outro; sou incapaz de ter uma verdadeira presença social. Os outros ... me servem de referência, de medida: sou tão bonito quanto eles, tão culto, tão inteligente, será que lhes inte-

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resso, prestam atenção em mim? Mas, de fato, eles só existem na medida em que me servem de réplica lisonjeira ... Talvez seja por isso que eu tenho poucos amigos." Não preciso fazer um longo comentário para mostrar que o tipo de relação assim expresso se refere à preocupação de Narciso. Aqui, a fonte e sua superficie de água são os outros que só existem na medida em que servem para precisar para ele a sua própria imagem, por comparação. Esse é o caráter narcísico da relação imaginária, que nos será ainda mais sensível se nos lembrannos de que a cidade primitiva da Cidade Encantada, cansada de medir-se com as cidades vizinhas, construiu para si, como rival, uma cidade exatamente igual a si própria, o que só podia confirmar, nas comparações posteriores, a excelência da sua constituição. Talvez se compreenda mais facilmente o que é uma relação imaginária, para além do seu aspecto dual e narcísico, analisando brevemente uma manifestação de transferência durante a análise: "Para mim, é muito desagradável", dizia um paciente, "fazer confidências a uma pessoa que não vejo." Declaração paradoxal à primeira vista, cuja análise mostra logo que uma das referências históricas se encontra no fato de que, durante os seus primeiros anos, o paciente lamentava que sua mãe, quando lhe contava histórias antes que ele donnisse, ficava fora da sua visão, sentando-se perto de uma lâmpada, que a cabeceira da cama escondia da criança. E, para que a história continuasse, ele tinha de permanecer deitado. Entretanto, confessou ele, gostava tanto de ver o rosto e o peito da mãe quando ela lia. Assim, quando se queixa de não me ver, esse paciente transfere para mim a lembrança de sua mãe, e, na sessão, a lembrança desses momentos de doce intimidade: para falar muito aproximativamente, ele substitui a minha imagem pela imagem da mãe ... Mas por quê, também aqui, esse desvio, essa incapacidade de expressar-se diretamente? No fundo, o que ele quer me dizer é isto: "Lamento esses momentos de doce intimidade, de que minha mãe me privava à noite." Mas, por razões que não analiso aqui, ele não consegue dizer isso "diretamente". Usa um estratagema; substitui minha imagem pela imagem da mãe e diz que não pode fazer confidências (atmosfera de doce intimidade) a uma pessoa que ele não vê. Ao fazer isso, ele não realiza minha presença e confunde, inconscientemente, minha imagem com a de sua mãe. Na prática analítica mais cotidiana, esse é um exemplo muito simples de relação imaginária. Considerem, de fato, qual teria sido a situação se ele tivesse se expressado sem recorrer aos desvios da transferência; teria dito: "Lamento os momentos de doce intimidade

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com minha mãe, de que fui privado"; mas então, ele me teria falado da mãe como pessoa definida e situada como tal, como se eu estivesse realmente presente, e a partir daí haveria três pessoas - ele, sua mãe e eu - ao passo que, na expressão transferencial, estávamos num tête-à-tête imaginário: havia ele, mantendo comigo uma relação fantasística, em que eu usava a· máscara da mãe. Esse é apenas um aspecto da compreensão da transferência, mas que mostra pelo menos uma face concreta do tipo de relação imaginária. Entretanto, não acreditem que o uso inconsciente de uma relação de tipo imaginário seja próprio apenas dos neuróticos e pacientes! Acontece que seja próprio do terapeuta, e por um eufemismo excessivamente generoso, cobre-se pudicamente a coisa com o nome de contratransferência. Vou lhes dar um exemplo que mostrará os perigos, para o analista, de ignorar o imaginário ou confundi-lo com o autêntico. Há muitas maneiras de ignorar o sentido daquilo que o paciente diz, mas existe uma cujo uso é particulannente difundido: é o saber tranqüilo, porque pré:fàbricado. Quando se sabe, por antecedência, como é um paciente, quase não se tem necessidade de ouvi-lo. Assim, o sábio analista 2 sabe de fonte segura que um sujeito é composto de um Eu, de um Isso e de um Supereu, e que sua evolução se divide em três estágios que têm os nomes de oral, anal e genital. Acrescente-se a essa ciência um pouco de dinamismo, sob a forma de agressividade, conflitos, acting out, e mesmo de regressão, e teremos o mais belo aparato imaginário que Iconéforo poderia desejar. É grande a tentação de usá-lo. Vejam como é simples: tal paciente, sobrecarregado de escrúpulos, declara que, há alguns dias, não pára de se atormentar por causa do dinheiro que convém dar regularmente à esposa: é suficiente, demais, de menos, seria melhor dá-lo mensalmente, por semana, e sob que forma? Além disso, continua, essa preocupação incessante o torna irritável e hoje de manhã ele teve uma discussão com o porteiro. Acrescenta que, atualmente, está cansado, talvez gripado; aliás, está sempre com sono ... Bom. O que ele quer dizer com isso? Facílimo. Vamos aplicar as chaves do nosso aparato imaginário e tudo se esclarecerá. Dinheiro= anal. Você não tem prisão de ventre? É, de vez em quando. Porteiro= rivalidade edipiana com o pai: ele teve que lhe entregar o dinheiro do aluguel. (Se é uma porteira= regressão: Você gostava de leite? Detestava. Tudo bem; isso é o que se chama de defesa.) Escrúpulos= neutralização do eu por um conflito bem equilibrado demais entre o Supereu e o Isso. Pronto! Vejam como é fácil compreender! Resta apenas explicar bem ao paciente a mitologia do analista para que, doravante conve11ido à sabedoria pseudopsicanalítica, ele saiba que, quando hesita sobre uma

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questão de dinheiro, é que o seu Supereu está oprimindo o seu Eu arespeito de uma necessidade natural. Em qualquer nível que a consideremos, é essa superação que assinala a vida autêntica no seu progresso oposto à esterilidade do Imaginário. Aliás, a entrada na vida de homem não se marcava, em todas as civilizações tradicionais, por um juramento, um compromisso que nada poderia quebrar, e que compreendia o enfrentamento, a aceitação da Morte como incógnita suprema? Então, o que podemos dizer da relação autêntica? A relação autêntica se manifesta por uma palavra que compromete o homem com o seu semelhante ou com Deus, em um futuro que lhe é desconhecido e o ultrapassa; ela significa uma aceitação da condição humana e da Morte, ao passo que - lembro-lhes - a relação imaginária é estéril, defensiva, narcísica, fora do tempo que leva à morte. É essa relação autêntica que eu chamo, como J. Lacan, de simbólica, distinguindo-a da relação imaginária. Chamo-a simbólica, pois o símbolo é o signo do reconhecimento do homem. Porque só pode existir na sua pureza em estado nascente, o símbolo é a marca da autenticidade de uma vida, e é por isso que, opondo-a à relação imaginária, chamo simbólica a relação humana autêntica e fecunda. Não preciso lembrar que, nem uma nem outra, nem a relação imaginária nem a relação simbólica, existem em estado puro, e que é num movimento dialético que vai de uma a outra que se assume verdadeiramente a Realidade da existência? Como Iconéforo, eu os levei por caminhos desviados; depois de lhes falar da dúvida e da estrutura obsessiva, tentei mostrar-lhes que a dime11sc1.o do imaginário não existia, assim como também não existiria nenhuma instituição propriamente humana. Entretanto, não creio que o sim que introduz o paciente na análise seja pronunciado imediatamente de modo autêntico, no sentido em que, assim como no casamento, o indivíduo não sabe completamente com o que está se comprometendo. Ele tem todo tipo de idéias sobre o desenrolar da análise, e a vê seja como uma experiência inefável, seja como o desmonte de um mecanismo, seja como uma confissão, pois não pode vê-la de fato como ela é,já que ela não é como no momento em que ele se compromete. Em resumo, tudo mostra que, se a dúvida é uma isca problemática, ela também constitui uma relação imaginária, pois é estéril, não se dirige direta e autenticamente à pessoa que sou, porque demonstra uma preocupação eminentemente narcísica de referenciação de si mesmo. Assim, considerem comigo que a oscilação da dúvida en-

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tre três horas e quinze para as três é apenas a recusa da oscilação lúdica que se situa no nível de um problema narcísico de ordem estrutural: vocês se lembram como pareciam repousantes, aos olhos de Iconéforo, as férias passadas na cidade gêmea e como lhe pareciam divertidos os combates e lutas alternados entre as duas cidades. O que devemos compreender é que, enquanto permanecermos cativos do nível no qual o problema se apresenta assim, não poderemos sair dali, pois, com isso, situamos a nós mesmos no reino do imaginário e de toda a sua esterilidade. Ora, como vimos, não existe relação imaginária pura: há um pouco d~ autenticidade em cada uma delas. Se formos atentos, é isso que vai nos deixar sair dos caminhos rotineiros, compreender um pouco mais e formular o sentido verdadeiro da interrogação da dúvida. Para usar a imagem da fantasia de Iconéforo, eu diria que a dúvida marca a hesitação no limiar do mundo simbólico; o sujeito se detém às margens do mundo autêntico, olha, sem participar dela, a verdadeira dimensão humana, e se paralisa diante do risco da morte e da revelação do Verbo. A dúvida é um apelo de quem é cativo do imaginário, mas também é uma pausa diante do limiar. A hesitação marcada pela dúvida não se situa entre um sim e um 1Uio: ela se situa no nível do compromisso com o desconhecido propriamente humano da fala ou do símbolo, sem que se possa dizer, por isso, que a ausência de compromisso s~ja uma recusa, pois ela é apenas uma expectativa. É a essa expectativa que deveremos pôr um termo, como terapeutas. Como? Com nossa recusa a responder, moderada e compreensiva. Efetivamente, se respondo a quem duvida, seja tranqüilizando-o, seja com alguma tentativa de convencê-lo, estou lhe mostrando assim l. Que não compreendo nada do verdadeiro sentido da questão. 2. Que entro no seu jogo imaginário. Se, por outro lado, tento lhe dar as explicações que estou dando a vocês aqui, também não serei mais eficiente. Cativo da sua relação imaginária, ele "fagocitará" propriamente o meu discurso, depois de depurá-lo e calibrá-lo no guichê da alfândega; em suma, ele não compreenderá nada. Que fazer, então? Primeiro, mostrar-lhe que estamos atentos ao seu discurso, presentes mas discretos, pois nada assusta mais o obsessivo do que uma presença excessivamente direta; é preciso responder ao seu apelo, mostrando-lhe, com uma breve mas pertinente observação, que estamos abe1tos ao seu verdadeiro problema, que estamos autenticamente

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presentes, embora reservados. É preciso que ele compreenda algo como: "Eu o escuto e dou valor ao que você diz." Por uma justa compensação, agora é o seu paciente que será atraído pela isca e cairá na annadilha de uma relação autêntica com você, relação que ele temia e desejava com igual paixão. É então que o seu silêncio sorridente e a sua recusa tranqüila a responder assumirão todo o seu valor. Esteja certo de que, para a expectativa do paciente, não há resposta mais autêntica. Se fonnulei, por meio dessas palavras, o que se pode entender sob o título de função imaginária da dúvida na neurose obsessiva, e se resumi a conduta terapêutica que essa compreensão implica, desejo, para concluir, ilustrar ainda estas linhas com um curto fragmento de análise. Iconéforo, passeando no "mercado de pulgas", viu um belo relógio Luís XV. "Como ele ficaria bem em cima da minha lareira! Quanto custa essa ... esse relógio? Oitenta mil, senhor. E ele funciona. Ah ... Obrigado." A partir de então, todas as noites, na hora de donnir, o relógio vinha visitar Iconéforo, para lhe repetir seus encantos e sua pontualidade. No sábado e no domingo, era lconéforo que o visitava na feira, temendo, a cada dia, não encontrá-lo mais. Enfim, não agüentou mais; essas idas e vindas eram extenuantes e se a coisa continuasse, um dos dois desapareceria. Um belo dia, Jconéforo, com o ar mais despreocupado do mundo, perguntou ao comerciante: "Quanto custa essa ... esse relógio? Oitenta e cinco mil. senhor." Perturbado demais para compreender que o preço fora aumentado, pagou sem hesitar os malditos oitenta e cinco mil... O relógio está sobre a lareira; foi preciso consertá-lo (quinze mil francos) e, desde então, ele marca o tempo que Iconéforo passa contemplando-o. Eu lhe disse: "Você procura o seu tempo e o tempo de sempre ... " Ele poderia ter esquecido essas poucas palavras, lançadas de passagem. Mas não. Quando voltou, dois dias depois, falou assim: "O que você disse no outro dia? Foi 'você está perdendo o seu tempo' ou 'você está procurando o seu tempo'? Não consigo decidir... Responda! Parece que você disse: 'Você está perdendo o seu tempo'. Mas eu me pergunto: será que não foi 'você está procurando o seu tempo"'?

Ele duvidava. Pois é. Ele tinha ouvidos, poderia ter entendido o sentido das minhas palavras. Mas compreendê-Ias significaria comprometer-se, e, de ceita

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forma, atravessar o limiar; entretanto, ele não dizia não, pois teria demonstrado isso se esquecesse as minhas palavras. Estava na expectativa ... Então, eu me calei ... Vocês se lembram de que, para romper um sortilégio, é preciso que um mago pronuncie uma palavra? Mas, para o paciente, qual é essa palavra? Não posso dizer-lhes, pois essa palavra final é a dele.

Discussão Dr. E. Minkowski: A bela e sugestiva exposição que acabamos de ouvir toca cm posições doutrinárias, o que toma a discussão um tanto dificil. Não desejaria levar o diálogo muito longe nessa direção, e me limitarei a indicar alguns pontos que talvez fosse interessante examinar mais de perto. Já indicamos um desses pontos depois da conferência precedente: se, efetivamente, toda ação e toda manifestação, no campo do patológico, têm uma significação e uma intencionalidade, ou, em outros termos, se não conseguimos explicá-las abordando-as de outro modo. Isso nos leva ao aspecto clínico do problema clínico, isto é, ao modo de existência (ao quadro, à forma) do qual procede a mencionada "neurose obsessiva", e que pode variar em função desse modo. Conhecemos suas formas ciclotímicas. Mais imp011antes ainda são as correlações com os distúrbios da série esquizofrênica, seja como "porta de entrada", seja como manifestação maior durante bastante tempo (atitude interrogativa) dessa afecção, seja, enfim, sob forma de esquizoidia, suscetível de determinar um aporte importante de racionalização com um recuo paralelo da auticidade. Muitos autores insistiram na freqüência dessas correlações, que têm sua importância tanto nos pontos de vista teórico quanto prático. O termo genérico "neurose obsessiva" presta-se assim a alguma reserva. Os dados recolhidos, em particular também na perspectiva psicanalítica, não se aplicam necessariamente a outros. Também por isso, o sentido e o alcance a atribuir à dúvida variarão. Quanto a mim, pergunto-me se reduzir o fenômeno da dúvida ao amor, ou mais exatamente à forma que ela tem no antagonismo entre o amor e o ódio, constitui uma vantagem real, se não seria, antes, uma diminuição do fenômeno original. É que a dúvida tem sua razão de ser. Aliás, o sr. Leclaire lhe reservou o lugar que lhe cabe na vida, falando-nos da dúvida de Descartes. Enfatizou muito adequadamente que a dúvida do

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seu neurótico se refere àquilo que, no fundo, "ele sabe" com certeza. Assim, surge também a questão de saber se a dúvida patológica, tal como a encontramos em diversos quadros clínicos, é apenas um grande exagero da dúvida "nonnal" ou se é uma deformação desta, uma expressão, na "linguagem corrente", do distúrbio gerador subjacente, característico do quadro que o condiciona. Mas são principalmente as noções de relação imaginária, de relação simbólica e de relação autêntica que mereceriam ser estudadas mais de perto. A respeito do doente que nos apresentou, o sr. Leclaire falou de "domínio imaginário em toda a sua esterilidade". Nesse caso, certamente, essa asserção parece válida, mas não se poderia subordinar a essa fónnula todo o "domínio imaginário"; é claro que ele tem um papel completamente diferente a representar. As relações simbólicas e autênticas, em razão de sua oposição à relação imaginária, foram consideradas idênticas, talvez erroneamente, pois não se diz que não possa haver relação autêntica que não seja simbólica. A questão merece, pelo menos, ser discutida. A propósito, é preciso dizer que o próprio sentido do tenno "símbolo", um dos que são empregados mais freqüentemente, correndo o risco da banalização, está longe de ser preciso e unívoco. Durante os últimos meses, examinei de perto essa questão. As relações qualificadas de "simbólicas" são a tal ponto distintas e afastadas umas das outras que, também nesse ponto, um trabalho de diferenciação parece necessário. Dr. Henri Ey: Estamos verdadeiramente encantados com essa rapsódia imaginária sobre o tema da dúvida. Não sabíamos mais qual dos dois, Iconéforo ou Leclaire, fazia soar a harpa maravilhosa das idéias. E permita, Leclaire, que eu lhe diga que o vôo tão leve quanto profundo da sua certeza sobre a dúvida foi para nós como a própria hannonia do sentido e dos sentidos. Mas não é apenas pela sutileza que quero elogiá-lo, pois se trata - como, precisamente, está em Crátilo ou Protágoras - de ir até a verdade das coisas. Destaquei, da brilhante conferência do sr. Leclaire, um primeiro ponto: é a sua definição da psicanálise como "procura do sentido". Não sou bastante ingênuo para pensar que as ações, as palavras e os homens não têm sentido. Na verdade, cair nessa ingenuidade seria perder o bom senso. Mas se definimos a psicanálise como uma hermenêutica ou uma semântica (o que ela é, de fato, "em certo sentido"), o sr. Leclaire compreenderá, ce1tamente, que isso não pode definir a ação e a teoria de Freud e da sua escola, pois se Freud é psicanalista, também deveríamos dizer que Champollion, Sherlock Holmes e até Cristóvão Colombo são psicanalistas ... E ce1tamente todos os homens que decifram suas inten-

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ções respectivas e recíprocas! Aqui está o sofisma. Digamos, antes, que entre as ciências propriamente antropológicas, que são efetivamente as ciências do sentido da existência, a psicanálise deve se definir em relação ao seu objeto. Ora, quanto ao que nos interessa, e que está na origem e no centro da prática psicanalítica, o objeto da psicanálise é a doença mental. Não basta dizer que a psicanálise se define pela sua procura do sentido e que ela pode se aplicar a outros objetos (sociedade, mito ou pedagogia) para classificar a psicanálise fora das ciências médicas, das quais ela é, pelo contrário, um aspecto fundamental, com a condição, precisamente, de que ela tome a doença na totalidade do seu ser, da sua existência ou das relações do organismo e do seu meio. Peço a todos que reflitam bem sobre isso, pois se trata de um problema muito sério, de que depende, no fundo, o próprio futuro da psicanálise como método de investigação e de terapêutica das "doenças mentais", ou, se quisermos dar um aspecto mais "moderno" ao meu pensamento, a esses doentes, a esses "homens doentes em sua maneira de estar no mundo", que entram na patologia da humanidade, da liberdade ou das comunicações interpessoais etc. Isso me parece ainda mais imp011antc porque é por esse ponto de vista, precisamente, que cu desejaria insistir cm dois pontos desta conferência, que tem como "objeto", como "tema" ou por "título" "A função imaginária da dúvida na neurose obsessiva". 3 Em primeiro lugar, a descrição da fantasia é simplesmente maravilhosa. Não sei se a obra-prima depende unicamente do próprio doente ou da sua tradução estilística pelo sr. Leclaire. Mas isso não afeta sua autenticidade, pois na clínica psiquiátrica (e esse é um dos seus traços essenciais) o vivido, o exprimido, o percebido e o vivido dessa expressão fonnam um todo, que é o próprio material clínico tomado na relação intersubjetiva do doente e do seu médico. A arquitetura dessa fantasia, sua simetria, sua forma de cidadela, suas muralhas defensivas, seus guichês de controle, sua paisagem eriçada pelos arames farpados da interdição, esse mundo da annadilha e da vigilância, todo esse arsenal calculado das armas do ataque e da defesa, é a ilustração imaginária do cerco que o obsessivo faz contra si mesmo. As duas cidadelas, por sua simetria, estão encerradas na unidade da pessoa narcísica do obsessivo. E quando o sr. Leclaire nos fala da função imaginária da dúvida, torna evidente essa relação que liga o sujeito a si próprio pelos laços estratégicos de uma burocracia militar, de um mundo que, como o Castelo de Kafka, é absolutamente construído como uma máquina de guen-a. A dúvida é uma referência à estrutura belicosa do combate que ele trava contra um outro, que não pode ser senão ele próprio. Assim, a fantasia expressa a própria estrutura da obsessão e admiramos com que arte o sr.

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Leclaire encerrou, na elipse da relação entre o sujeito e o psicanalista, esse choque em retomo das hostilidades que Iconéforo abriu contra suas imagens. Mas o que é menos claro nessa análise é a própria função da análise em relação ao próprio doente. Certamente, o sr. Leclaire nos indica que o problema é a restauração ou a instituição da relação autêntica, e ele fez a esse respeito observações muito pertinentes, justas e profundas, sem, todavia (talvez por falta de tempo, talvez por não se ter situado numa perspectiva mais resolutamente clínica, isto é, mais na perspectiva do estudo do doente obsessivo do que da neurose obsessiva), fazer-nos perceber a eficácia do seu trabalho terapêutico. Apreciei muito a sua maneira encantadora e irônica de ridicularizar o psicanalista que pensa descobrir o complexo oculto ou a situação arcaica, mas parece-me evidente que quando o psicanalista renuncia a essa "caça ao tesouro", sua função autêntica fica menos clara e mais conjectura!. Efetivamente, é preciso que ela passe então de uma simples hermenêutica para uma verdadeira propedêutica existencial. É realmente nesse sentido, parece-me, que deve evoluir a técnica psicoterápica analítica, e penso que as magníficas qualidades intelectuais e morais de Serge Leclaire o designam para ser um dos seus pioneiros. Fazer cessar a dúvida do doente é, de fato, descobrir e refonnar o dogmatismo no qual ele aprisionou sua existência, no qual ele a aintinou para salvá-la, por não poder abrir-se à dúvida autêntica e, em última análise, às virtudes teologais da fé, da esperança e do amor...

A propósito da abulia Reflexão psicanalítica sobre a questão da vontade*

Se eu tivesse ouvidos tão amplamente abertos como deve ter um psicanalista, poderia ouvir daqui os seus estômagos munnurarem: "Seja breve." Não ouvi nada disso. Aliás, tal conselho seria desnecessário, pois minha decisão de ser breve foi quase extrema, tão raros eram os ecos que a questão que nos reúne hoje despertava nas minhas circunvoluções freudianas. De fato, quanto mais eu me esforçava, como psicanalista, em refletir sobre a questão da vontade, tal como ela pode aparecer em nossa prática, mais minha confusão aumentava e mais se confirmava minha impressão de que se tratava de um problema que não estava fonnulado no campo analítico. Em vão, eu tentava apreendê-lo por uma de suas faces. Se se tratasse, por exemplo, do julgamento mais comum sobre o indivíduo que "não tem vontade", como se pode não ter qualquer outra qualidade ou virtude, eu não via nisso nada que pudesse deter a atenção do analista, a quem não cabe, em princípio, julgar as virtudes do seu paciente. Se se tratasse da análise do processo voluntário e da distinção dos seus diferentes momentos, eu encontrava, em contrapartida, inúmeros temas que poderíamos estudar: representação, deliberação, decisão, passagem ao ato, problemas sobre os quais eu devia me inclinar, que eu estava longe de, ao menos, formular corretamente, e a propósito dos quais, além disso, eu raramente evocava a palavra "vontade".

* Qu'esr-ce que vou[oir?, les Éditions du Cerf, Paris, 1958. ]]6

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Então, como não conseguia ver sobre que ponto deveria exercer minha reflexão, interroguei aqueles que sabiam e eis o que eles me disseram: Annand, categórico e direto, me deu esta resposta simples: "Meu caro, para um analista, o tema é evidente: trata-se das relações entre a vontade e o desejo." Era mesmo evidente, e eu lhe agradeci. Porém, mal o deixei, comecei a refletir sobre o desejo de certos pacientes de terem vontade, e sobre a vontade que outros diziam ter de controlar os seus desejos. Isso já me parecia bem menos simples e decidi meditar sobre o assunto. Mas, nesse meio tempo, encontrei Bernard, cujo espírito tortuoso nos leva por caminhos desviados. Ele me fez um discurso sobre a psicanálise, acompanhado de um histórico emdito; evocou as vicissitudes do movimento analítico e começava a se embrenhar pelo caminho das variantes técnicas quando eu lhe lembrei discretamente a minha pergunta. Então, falou-me longamente do inconsciente e sugeriu que eu estudasse se poderia haver uma vontade inconsciente, como certos textos analíticos fazem supor, oposta à vontade clara, "consciente". Colette é filósofa; ela me disse que o "x" do problema estava na distinção entre a vontade e o querer. Daniel deu um conselho: "Já que você se interessa pela obsessão, dedique-se então ao estudo clínico da hesitação e da dúvida"; isso conviria perfeitamente, concluiu ele com uma ponta de agressividade, à perseverante obstinação do seu temperamento. Interroguei ainda muitos outros, que sabiam, todos eles, do que eu deveria falar-lhes hoje. Xavier também me aconselhou. Yves sugeriu. Zoé, que também é filósofa, concluiu: "O seu tema, caro amigo, é a liberdade e a vontade." Dá para entender meu embaraço. Para cada um deles, era muito simples, eles sabiam do que se tratava e me diziam objetivamente. Por que era tão claro para todos eles? À minha confusão crescente, acrescentava-se o constrangimento e um vago sentimento de inferioridade; eu dizia a mim mesmo que não era nem psicólogo, nem filósofo, nem moralista, nem teólogo, nem pedagogo; era simplesmente analista. Mas, logo eu me repetia, concordando com meus mestres, que eu também podia pensar como filósofo, como médico, como moralista, até como lingüista, e tentei filosofar sobre o voluntário e o involuntário ... sem sucesso. Depois de várias tentativas inúteis, pensei em abandonar tudo, pretextar uma doença, em resumo, calar-me. Com o olhar embaçado, o cérebro enevoado e turbilhonante, disse afinal a mim mesmo: decididamente, você não sabe o que quer. Anotei esse pensamento e parei por ali, mergulhado em profunda abulia. Fiquei assim durante muito tempo,

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até que na minha ruminação estéril surgiu, obsessiva, uma velha melodia. Era uma canção alsaciana, que contava a triste história de Hans, um indeciso lunático: Der Hans im Sclmokeloch Ele tem tudo o que quer, Mas o que tem, não quer, O que quer, não tem. Vai aonde quer, Mas onde está, não fica, E onde fica, não se sente bem. Da mesma forma, Não poderia sobreviver, Mas não quer morrer.

É esse o caso que eu poderia desejar. É preciso, disse a Hans em sonho, que você faça análise, e o deitei no meu divã. Foi um belo caso, cuja lembrança, infelizmente, se desvaneceu quando acordei. Mas na verdade, Hans era tão diferente do sr. P., que vem regularmente ao meu consultório? O sr. P. é solteiro, tem quase quarenta anos e possui uma sólida formação obsessiva. Assim, ele afirma, às segundas e quintas: "Não tenho vontade", e declara, às terças e sextas: "O menor dos meus atos depende de um esforço de vontade." Como compreender essas duas afinnações complementares, e o que o sr. P. quer dizer com essas palavras é o que vamos tentar apreender. Quando ele diz "Não tenho vontade", comenta essa declaração com algumas observações do gênero: "Fico paralisado. Sinto-me tenso, bloqueado, imobilizado", ou ainda: "Não tenho nenhum vigor; minha impotência me arrasa; se ao menos eu pudesse encontrar um minuto de relaxamento." Quando afirma que o menor de seus atos necessita de um esforço de vontade, diz: "Só ajo voluntariamente, não tenho nenhuma espontaneidade; tenho que estar em estado de tensão constante, de vigilância perpétua, tenho que esforçar-me sem parar; não posso me pennitir nenhum descanso, nenhuma distensão." Como todos sabemos, a falta de vontade é acompanhada de um excesso de vontade. Como se pode compreender isso? A primeira imagem que vem à mente de quem tenta explicar e compreender nasce naturalmente das metáforas que o paciente usa para expressar suas dificuldades: paralisia, bloqueio, fixação, impotência, tensão constante, em suma, uma linguagem que evoca um problema de

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energética. Trata-se implicitamente de uma.força, de uma energia contida em algum reservatório, e que deve dar vida e movimento à máquina que a consome. Essa força é chamada de impulsão, ou pulsão, e seus destinos são diversos: ou ela se manifesta de modo explosivo, mal controlado, inoportuno - é a impulsão; ou, ao contrário, nunca consegue se manifestar, seja porque as reservas faltam, seja porque a força fica presa em algum estrangulamento, e temos então a abulia, a falta de vontade. Os analistas logo chamaram essa força de libido, estabeleceram a fónnula dinâmica da abulia, descrevendo alguns modos particulares de bloqueio, e fala-se então de investimento, de deslocamento de energia libidinal. O bloqueio pode assim resultar de processos variados nos seus detalhes, mas únicos em seu princípio: a energia é absorvida por uma função diferente da que ela deveria nonnalmente cumprir; assim, ela pode ser utilizada para manter o equilíbrio entre dois sentimentos contrários, o amor e o ódio, ou então ela permanece fixada num lugar da topografia imaginária do nosso corpo, ou ainda esgota-se ao manter uma luta "interna", ao manter um recalcamento, por exemplo, antes de chegar ao seu destino nonnal, destino que, diga-se entre parênteses, não parece ser duvidoso para ninguém: "oblatividade", "amor genital", "amor objetal", "nonnalidade" simplesmente! Seria preciso - e talvez seja isso que se espera de um analista que cu detalhasse para vocês as desventuras da libido nas engrenagens do aparelho psíquico? Vou decepcioná-los, se é que já não consegui, pois, além do fato de que é necessária uma longa experiência para conhecer as engrenagens desse aparelho, que se parece tão pouco com uma máquina, devo dizer que não estou certo de que essa maneira de encarar o problema seja a mais fecunda. Sei que Freud lançou mão largamente de metáforas energéticas para ilustrar os problemas que ele tinha e para levantar outros. Mas, mesmo nessa perspectiva, deve-se constatar que freqüentemente é esquecido que Freud distinguia, a partir dos anos 1920-1921, dois tipos de pulsões fundamentais: a libido e os instintos de morte. Penso, pois que no campo das metáforas energéticas, a respeito de questões como as dos investimentos, dos deslocamentos, das inibições, só poderemos nos aproximar de uma expressão conveniente quando tivennos elucidado a significação e o alcance do conceito de instinto de morte, que os analistas do nosso tempo apenas começam a redescobrir, quando não o negam pura e simplesmente. Mas isso não é fácil, pois nada se presta menos do que o instinto de morte a ser representado, figurado, ilustra-

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do. Entretanto, ele existe, não- energeticamente falando - como uma força contrária, mas talvez como o contrário de uma força. Lá vai ele de novo no seu cavalo de batalha, pensarão alguns: ele fala do instinto de morte - é o que lhe interessa - e acena com o espantalho do energetismo. Claro. Mas não é completamente por acaso, nem exatamente por preguiça. Com efeito, o sr. P. não pára de repetir: há nele uma força que oparalisa e o impede de agir; ele fica atado, bloqueado, paralisado, reduzido à impotência. A metáfora energética, como lhes lembrei, é o neurótico que a introduz, considerando que não é ele que age ou não age, mas uma força que está nele. Parece-me, pois, que é particularmente necessário, nessa situação, não entrar de modo algum no jogo do paciente e - na medida em que se pretende agir e pensar como analista- abster-se de pensar que há efetivamente nele uma força, que seria preciso descobrir, libertar ou dominar, pois isso seria confirmá-lo em sua maneira de imaginar que não se trata dele. Percebo que, até agora, dediquei-me principalmente a descrever o que não queria fazer hoje, a recusar as sugestões de Bernard, Colette e Daniel, a criticar o energetismo e rejeitar as explicações tópicas. Na verdade, seria justo aplicar a mim o que se diz de Hans: ele não sabe o que quer. Afinal, tenho de me explicar. Mas infelizmente não é culpa minha se o meu tema, a abulia, começa por um "a" privativo. Vou me limitar a comentar duas fórmulas, uma do sr. P.: "Não sou eu que ajo ou não ajo"; outra, que se aplica a Hans: "Ele nao sabe o que quer." Essas duas fórmulas têm como traço comum serem negativas (quase tanto quanto eu fui até aqui); do mesmo modo que o abúlico é aquele que não tem vontade, o que só o especifica negativamente, o sr. P. não é aquele que age, e Hans não sabe o que quer. Se nos detemos nessas considerações gramaticais, é porque Freud, num belo artigo sobre a denegação, nos convidou a refletir como analistas sobre essa maneira particular que o paciente tem de se expressar em muitas circunstâncias; assim, no primeiro exemplo que ele nos dá: "Você se pergunta quem poderia ser essa pessoa do sonho. Não é a minha mãe." Retificamos, diz Freud, é então sua mãe. Esse mtigo, 1 de que temos agora um excelente comentário por Jean Hyppolite, tennina, depois de uma análise minuciosa, com esta reflexão: "não existe nenhum 'não' proveniente do inconsciente, e a aceitação do conteúdo do inconsciente por parte do eu se exprime por uma fónnula negativa".

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Estamos pois diante de duas fónnulas negativas. O que significam elas? "Não sou eu", diz o sr. P. Não sou eu, mas uma força que age em mim. Duas perguntas podem ser feitas, a respeito dessa afinnação negativa. A primeira se refere ao tenno "eu", que nosso paciente usa para se eximir da responsabilidade. Em que medida ele atribui a esse eu uma função de sujeito, em que medida, ao contrário, ele o usa como uma representação imaginária daquilo que ele acredita ser? É uma primeira pergunta que os seus estômagos me convidam a deixar aberta à discussão, que desejamos. A segunda, que é apenas um aspecto particular da questão que acabamos de lembrar, refere-se ao termo "força", usado pelo sr. P. Abstraindo-se o aspecto metafórico do tenno e seu caráter certamente imaginário, de que se trata quando ele nos diz que essa força o paralisa? Antes de conduzi-los outra vez por desvios imaginários, reconheçamos simplesmente, e logo de saída, que não sabemos, assim como ele também não sabe. O que caracteriza essa força, além do seu caráter imaginário, é que, precisamente, é desconhecida, não-mensurável, não-detectável, nãoformulada, indetenninada, mas apesar de tudo "isso não a impede de existir"; certamente, para dizer a verdade, ela também evoca o inconsciente. O que nos diz então o sr. P.? Ele nos diz: não sou eu que ajo ou fico paralisado, mas algo em mim de indeterminado, de impreciso, de desconhecido, de não formulado. É certo que essa fónnula do sr. P. nos introduz aos problemas do eu, do narcisismo, da identificação, ao problema do sujeito ou, se quisermos, à questão do quem sou eu?, oposta à do onde está o meu eu? Por outro lado, a questão de Hans se refere ao saber: "Eu não sei o que quero." É claro, Hans é um psicastênico, um hesitante, alguém que duvida, não sabe escolher. Não farei aqui uma nova análise da função imaginária da dúvida, que apenas nos mostraria novamente que a pergunta que Hans nos faz através da isca problemática da sua dúvida é um apelo que não se situa no nível de uma hesitação entre um sim e um não, mas no nível de um engajamento no campo humano desconhecido mas vivo da palavra, campo em que se articulam o sim e o não. Não se pode dizer que essa ausência de engajamento seja uma recusa - pois não se expressa em tennos de sim ou não; é apenas uma expectativa, à qual, como terapeutas, somos convidados a pôr um termo.

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A história de Hans resume, muito mais simplesmente do que acabo de fazer, a pergunta imóvel que ele nos faz com estas poucas palavras (da última estrofe): Ele não poderia sobreviver, mas não quer morrer. Estamos outra vez nessa espécie de no man 's land da indeterminação. Como sair disso ... a não ser empurrados, como nós, pela fome? Resta-nos então saber de que se alimenta o homem. Se o homem se diverte com imagens, creio que ele se alimenta de palavras. Essa hipótese deve lhes parecer absurda, tanto quanto sibilina. Vou explicar. O que é exatamente esse inconsciente, essa força desconhecida não-detectável, imprecisa, essa no man'.5 land povoada de fantasmas, em que se perde o abúlico? É dificil falar com pertinência desse mundo encantado, pois é próprio dele desvanecer-se à luz de uma palavra verdadeira. Isso significa que nele não se fala, que é um mundo mudo? Certamente que não. Mas fala-se por sinais, e cada palavra, como um rótulo, tem o rigor de um signo unívoco. Ora, se a análise nos lembra uma verdade primeira, é a de que aspalavras não são rótulos, e que o cavalo, objeto de fobia do pequeno Hans, evoca outra coisa diferente do quadrúpede, e significa tanto Papai quanto Mamãe-que-espera-um-filho, o próprio parto ou o prazer de mover-se. Essa no 111a11 '.5 /aml do abúlico, onde reina a indeterminação de uma expectativa perpétua, é povoada de rótulos precisos colados em sombras. Afas a sombra não alimenta, e o abúlico que nos procura quer reencontrar a presa. Certamente, não é simples devolver-lhe essa presa. Ao sr. P., que procura nomear a força que o paralisa, detenniná-la, dar-lhe um nome, antes de combatê-la, é preciso primeiro explicar que essa força só aparece na medida em que ele vive repetindo sem parar, para quem quiser ouvir, não sou eu. Ao nosso amigo Hans, que procura saber se a direita é preferível à esquerda, enquanto ele ainda não as distingue uma da outra, é preciso, por uma expectativa mais obstinada que a sua, mostrar-lhe a sua própria expectativa. Aos rótulos da sombra é preciso responder com o silêncio, antes de poder devolver-lhes a espessura de um co1po e o peso da palavra. É preciso, pelo nosso silêncio, ensinar-lhe ajàlar, ensinar-lhe adizer sim e não, de outra maneira que não seja em eco.

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Talvez, nessa mesma ocasião, ao mesmo tempo que aprender a falar e a medir o seu desejo, ele também descubra o que, para ele, é querer. Mas, na verdade, o que é querer? Ce1tamente, não sou a pessoa indicada para responder a essa pergunta, pois acabo de tratar do que era "não querer", e assim falei principalmente da neurose, no seu conjunto. É precisamente essa incapacidade de discriminar a questão do querer da questão do ser do neurótico que me levou a comunicar-lhes essas poucas reflexões muito gerais sobre a maneira de compreender, na psicanálise, as queixas do neurótico, e sobre a maneira particular que temos de responder a elas, o essencial sendo, para o analista, nunca entrar no jogo do paciente, mas fazer com que este o reconheça. Como Armand, Bernard, Yves e Zoé, vocês devem estar pensando, com razão, que evitei o problema que lhes interessa. Talvez. Mas, se me pergunto o porquê dessa divergência, vejo principalmente duas razões, com as quais vou concluir. A primeira, e menos boa, é que o sujeito do querer, tal como ele se apresenta a nós, não encontra o seu análogo durante o curso da análise. Ele só poderia situar-se no momento da decisão que detennina a realização de um tratamento, isto é, antes da análise. A questão do querer parece apresentar-se no nível do engajamento na análise, nível em que se podem apresentar as questões referentes, segundo uma expressão comum, à vontade de curar-se, à aceitação do contrato analítico, à submissão de princípio à regra fundamental. A segunda, e melhor razão, é de ordem completamente diferente, mais dificil de fonnular, porque se poderia crer que ela é impertinente. Trata-se, diremos, de um problema de contratransferência, problema especificamente analítico, como sabemos. Se Armand me aconselhou a me interessar pelo desejo, é porque ele é analista, assim como se Colette me falou do querer é porque ela é filósofa. Assim, todos eles sabiam do que se tratava e se expressavam com segurança. Da mesma forma, vocês que levantam a questão do querer certamente sabem, por sua arte, sua função ou sua missão, o que é querer, pois vocês sabem quem quer e o que convém querer. Talvez vocês estejam na verdade, e eu esteja aqui para me aproximar dela; mas como analista eu não poderia entrar no jogo e viver de certezas ou de postulados: nossa regra profissional de humildade é lembrar-nos de que não sabemos.

O aspecto psicanalítico da sexualidade infantil*

"Sinto que os senhores estão fazendo um esforço para não me interromper e gritar: basta de horrores! Afirmar que a defecação é uma fonte de satisfação sexual, já utilizada pelo lactente, que os excrementos são uma substância preciosa e o ânus uma espécie de órgão sexual! Nunca acreditaremos nisso; mas compreendemos muito bem por que pediatras e pedagogos não querem saber da psicanálise e dos seus resultados. Tranqüilizem-se ... "' Assim se expressava Freud em 1917, diante de um auditório culto, e certamente era desse modo que convinha, em tempos ainda próximos, anunciar o tema da sexualidade infantil. Que um tal artifício não seja mais necessário, sabemos todos aqui a que mestre, entre outros pioneiros, devemos agradecer. Não duvido de que é a ouvintes perfeitamente bem infonnados sobre as aventuras da libido que me dirijo hoje; todos sabem, efetivamente, que, antes de chegar ao seu pleno desenvolvimento genital, o erotismo da criança culmina em momentos sucessivos na oralidade, e depois na analidade. Mas não me furtarei à obrigação, imposta pelo título da minha fala, de lembrar as diferentes etapas do desenvolvimento libidinal da criança. Mas esse será o segundo tempo desta curta exposição, cujo terceiro momento se referirá apenas ao complexo de Édipo.

* Neuropsychiatrie

in.fantile et d'hygiene menta/e de l'e11fance, nº 1-2, janeiro-fevereiro de 1959. 124

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Na primeira parte, desejo indicar como Freud foi levado a se interessar pela sexualidade infantil. Foi a partir do estudo da histeria, em cuja expressão, pela voz de um sintoma, ele reconhecera que se levantava uma questão de natureza sexual. Assim, a "tosse nervosa" de Dora, a histérica descrita na primeira das Cinco psicanálises, constitui a evocação sintomática da impotência sexual de seu pai e das relações per os que remediaram esse "infortúnio" (palavra que utilizo como eco ao termo alemão Vermogen, fortuna e poder, que permitiu essa interpretação).2 Já nesse primeiro exemplo, vemos surgir aquilo que fez das pesquisas psicanalíticas um motivo de escândalo: a perversão sexual, no caso, a felação. Apresentava-se assim também a questão de saber a extensão que convinha atribuir ao "sexual". A resposta veio naturalmente desse estudo das perversões, em que o elemento especificamente genital se encontra freqüentemente relegado a segundo plano, sem que se possa por isso contestar sua natureza essencialmente sexual. Certas práticas sádicas, por exemplo, só implicam o aparelho genital propriamente dito de modo absolutamente marginal, sem perder em nada o seu caráter sexual. Assim, escreve Freud, "é justamente graças à sintomatologia da histeria que chegamos à concepção segundo a qual todos os órgãos do corpo, além de sua função nonnal, desempenhariam um papel sexual, erógeno, que se torna às vezes predominante, a ponto de perturbar o funcionamento normal. Inúmeras sensações e inervações que, a título de sintomas da histeria, se localizam em órgãos que aparentemente não têm nenhuma relação com a sexualidade, nos revelam assim sua verdadeira natureza: elas constituem satisfações de desejos sexuais perversos, em vista dos quais outros órgãos assumiram o papel de órgão sexual". 3 O campo próprio da sexualidade, indo além da genitalidade bem-comportadamente procriadora, se estende então até o extremo da inconsciência ou da aberração. Para ter a demonstração e adquirir a convicção daquilo que propunha, Freud se dedicou, com seu método terapêutico, a superar a amnésia histérica, que vem tão oportunamente apagar as lembranças dificeis de confessar. Foi assim que ele percebeu a importância sintomática daquilo que todo mundo conhecia: a amnésia habitual que recobre a maioria das experiências infantis dos pacientes que tratava. Notava principalmente como, pelo tratamento, certos elementos esquecidos remontavam à luz da consciência.

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Assim, o estudo da histeria levou Freud a se interessar pela criança por duas razões maiores: a amnésia, tal como as perversões tinham ali os seus modelos. Sobre esse último ponto, não há dúvida possível; em 1905, os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade4 iniciavam o estudo da sexualidade infantil com um capítulo sobre as "aberrações sexuais" e, em suas Conferências introdutórias sobre psicanálise, Freud, de hábito tão prudente em suas afinnações, escreveu: "Em resumo, a sexualidade perversa não é outra coisa senão a sexualidade infantil aumentada e decomposta em suas tendências particulares." É assim que, segundo sua própria confissão, "a pesquisa psicanalítica se viu obrigada a dirigir sua atenção para a vida sexual da criança". 5 Essa modesta evocação da história das idéias freudianas que levou ao estudo da sexualidade infantil nos pareceu necessária. A teoria do desenvolvimento da libido, que vamos agora abordar, tem efetivamente a marca desses primeiros interesses; poderíamos compreendê-la mal ao esquecer que o estudo das tendências parciais, pré-genitais, da sexualidade infantil, tinha como fim principal explicar o interesse exclusivo que o neurótico adulto e perverso pode dedicar a uma delas. A teoria psicanalítica da organização sexual infantil se baseia numa distinção fundamental entre a organização genital, por um lado, e os elementos parciais que a constituem, considerados sob o ângulo genético de organizações pré-genitais, por outro. Logo voltaremos aos caracteres próprios da fase genital, cuja primazia deve ser reconhecida, mesmo quando falta; é o momento do complexo de Édipo, aquele em que se elaboram a estrutura e o modelo de um tipo de relação interpessoal completa. A hipótese das organizaçõocs pré-genitais repousa, diz Freud, "na análise das neuroses e só pode se justificar pelo conhecimento destas". 6 É relativamente fácil - talvez até demais - explicar de modo formal a teoria da organização pré-genital. Na verdade, basta distinguir teoricamente uma.força e objetos aos quais ela se aplica. Essa força é a libido, sobre a qual podemos dizer simplesmente, como Freud, que, "análoga à fome em geral, a libido designa a força com a qual se manifesta o instinto sexual, como a fome designa a força com a qual se manifesta o instinto de absorção de alimento". Entre os objetos aos quais se dirige essa força chamada libido, convém distinguir o co1po próprio do sujeito em suas diferentes partes, e os objetos exteriores a ele, ou, mais exatamente, as pessoas do seu ambiente. É em função da parte do corpo eletivamente investida pela libido que se designaram as fases da evolução sexual. Assim, em virtude da satisfação obtida pela atividade primeira de sucção, a libido se volta

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primitivamente para a zona bucolabial, que merece então o nome de zona erógena; esse momento é designado como estádio oral. Na fase seguinte, o prazer mais vivo sentido pelo sujeito na sua atividade se situa no nível da região anorretal, e a libido se fixa ali eletivamente durante o estádio sádico anal. Pode-se observar que ambas as zonas investidas sucessivamente pela libido, assim "erogeneizadas", constituem o lugar das trocas digestivas: elas podem, como tal, ser consideradas sob o ângulo de órgãos de relação, essenciais nessa idade, com o mundo exterior. Aliás, é realmente como órgão de relação ( em potência) que é investido, num último estádio evolutivo, o órgão genital. Lembremos aqui rapidamente a primazia absoluta dessa fase, para a qual converge, ou ela qual procede, tudo o que merece o nome de sexual. A libido encontra no órgão genital o lugar escolhido, em que a sexualidade, liberada das fixações perversas parciais, deve encontrar sua realização na função de procriação. Mas umafàse de latência, que se estende da idade edipiana (três-cinco anos) até a puberdade e à adolescência, marca essa defasagem entre a prematuração libidinal da criança e sua maturação fisiológica. A sexualidade só pode, assim, perfazer o seu desenvolvimento e o seu pleno sentido pela realização acabada da fase genital, que a prefigura na evolução da libido. Isso pode parecer muito simples e até um tanto ingênuo. Tudo já foi dito a respeito do mau uso que se pode fazer de uma tal esquematização: separação rigorosa dos estádios evolutivos, mitologia do desenvolvimento, aplicações e interpretações abusivas, entre outros excessos de discípulos zelosos ou de críticos cáusticos. Não nos alongaremos nesse ponto, pois estamos mais preocupados em discernir o valor fecundo desse ponto de vista, que fica confirmado pelos elementos de observação clínica e também por sua eficácia terapêutica. Como já dissemos, a libido não se dirige apenas para o corpo próprio, em um movimento auto-erótico cujo desenvolvimento complexo fundará a problemática do narcisismo, mas também visa, por meio das zonas erógenas, aos objetos exteriores e principalmente às pessoas do ambiente. Não podemos detalhar aqui os progressos desse investimento dos objetos exteriores pela libido: ele passa do seio materno à mãe na sua integralidade, e depois ao indivíduo, enquanto assume o seu controle muscular e sua coerência de pessoa, antes de chegar à eleição de um verdadeiro objeto de amor. Mas o que convém notar é que, numa perspectiva mais ampla, certo tipo de caráter parece responder a cada um desses estádios. Às situa-

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ções relativas da libido em cada fase, co1Tesponde um certo modo específico de relações do sujeito no modo exterior. É K. Abraham que, além de uma subdivisão minuciosa dos estádios (em primeiro estádio oral e estádio oral "canibálico", em primeiro e segundo estádios sádico anal, em genital fálico e genital verdadeiro), precisa três "caracteres", doravante clássicos: - o oral, ávido, curioso, brilhante e generoso; - o anal, ativo e obstinado, ordenado, no fundo cético; - o genital, realizador e dialético. Como observam, em trabalho recente, G. Rosolato e D. Widlocher, Abraham "constata no caráter normal, hannoniosamente desenvolvido, a presença de resíduos infantis pertencentes aos três estágios e dando as possibilidades conjugadas de absorver (oral), elaborar (anal) e criar (genital)". 7 Finalmente, existe um aspecto dessa pesquisa que não pode deixar o clínico indiferente: a correspondência de certas síndromes e sintomas psiquiátricos com um estádio do desenvolvimento libidinal. Penso que outras pessoas tratarão disso aqui, e limito-me a citar as correspondências orais dos distúrbios da série melancólica, sádico-anais da sintomatologia obsessiva e genital-fálicas da histeria. Mas sabemos até que ponto, para sintomas como a onicofagia, a cnurese, os tiques, por exemplo, as referências sumárias desse tipo tendem a encobrir a complexidade clínica do problema pmiicular que eles apresentam. Vemos assim que, através do esquema cômodo dos estádios de organização libidinal da criança, apresentam-se múltiplos problemas, que interessam primordialmente ao clínico. Convém darmos agora uma atenção particular ao elemento fundamental do ponto de vista psicanalítico, o complexo de Édipo. Já enfatizamos fortemente que nada se poderia conceber de psicanalítico a respeito da sexualidade infantil que não tivesse o seu ponto de partida nesse enigma da "genitalidade". A situação edipiana é criada pela atração de natureza sexual sentida pela criança em relação ao genitor do sexo oposto, fato de observação clínica que Freud distinguiu claramente. Assim, nessa fase em que são os órgãos genitais que se tornam a zona erógena predominante, o objeto exterior para o qual se dirige a libido é o genitor do sexo oposto. É claro que tal situação só pode ter uma saída conflituosa. Sem nos determos no caráter basicamente prematuro desse desejo, constatamos sobretudo que ele se refere a um objeto que, em tese, não pode nem deseja responder a ele no plano do desejo. Teoricamente, a mãe, por exemplo, deve ver no seu marido o pai, o objeto e o agente do seu pró-

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prio desejo. Enfim, se acontecesse que os pais caíssem nesse jogo, o pai só poderia ver no seu filho, o apaixonado precoce, um rival cujo compo1tamento seria preciso vigiar. Já vemos claramente o que especifica a situação edipiana: é a instauração de relações complexas, exatamente semelhantes às que constituem as paixões das pessoas que chegaram à idade da razão. O conflito edipiano nasce de um desejo que não pode obter nenhuma satisfação adequada às necessidades que lhe subjazem. O menino não pode possuir a mãe, objeto eleito pelo seu desejo. Também não pode suprimir o seu suposto ri vai (com o que sonha, às vezes), nem consegue escapar do temor de se ver punido por tais sentimentos. Nada mais aparente, a esse respeito, nas fantasias da criança, do que o medo da castração, que sancionaria sua culpa. Aliás, alguns concluem inconscientemente que seria uma solução para sua angústia aceitar essa perda simbólica do membro viril, causa de tantas preocupações. "Como ficaríamos tranqüilos", suspiram ainda alguns adultos, que se atrasaram nesses sonhos. Essa é uma das múltiplas saídas neuróticas para o conflito edipiano, uma das que propiciam a homossexualidade. Aceitação da castração e, ao extremo, identificação regressiva com a mãe, marcam o fracasso desse momento crucial. Inversamente, a renúncia razoável à posse do objeto amado, a sublimação do desejo, a identificação com o genitor do mesmo sexo, marcam a saída favorável do conflito. Correlativamente, no plano da teoria tópica da personalidade, é o momento do aparecimento do Supereu e da confirmação do ideal do Eu, cujo importante papel formador queremos sublinhar. Ao contrário de outras questões analíticas, o problema do complexo de Édipo não aceita simplificações excessivas. Dizemos mais uma vez: é o lugar de convergência, o tenno de referência da maioria dos aspectos da pesquisa psicanalítica. Surge então a questão: o que significa essa ilustração mítica? Pelo complexo de Édipo, a criança, emergindo do plano do instinto e da necessidade, tem acesso, como indicamos, ao nível do desejo. Se a mãe, no estágio oral, é aquela que responde à necessidade, e por ocasião do estágio anal, aquela em função de quem se organizam os instintos, ela se torna, para o menino, no momento do Édipo, objeto não mais de uma necessidade, mas de um desejo. Ora, o desejo é coisa complexa na sua natureza, principalmente no sentido de nunca coincidir com o desejo de outrem, daquele que é o seu objeto. Aqui, a questão não é saber se um dia ou outro o desejo, tal como aparece nessa fase, pode, na idade adulta, encontrar plena e completa satisfação; antes, tenderíamos, como analistas, a acreditar no contrário. Mas o que nos importa é

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ver que, logo que aparece enquanto tal, o desejo sexual genital se refere a um objeto que ele não pode atingir, e que, além disso, esse objeto vive em outro lugar o seu próprio desejo. O acesso à sexualidade genital é realmente essa experiência de uma espécie de excentricidade radical do desejo, e da sua inadequação básica ao seu objeto. Também queremos enfatizar que não é mais propriamente em termos de necessidade ou instinto que convém tratar da vida sexual genital, mas em termos de desejo, com tudo o que essa palavra implica de complexidade e humanização. Mas, se concebemos de bom grado que estudar a sexualidade genital é confrontar-nos com o problema do desejo, esquecemos facilmente que essa promoção da idade edipiana é também e principalmente o encontro com a Lei. hnpo1ta sublinhar que o pai não é apenas, na tríade edipiana, um homem de desejo, violento, terno ou ciumento. É o personagem simbólico por excelência, cuja presença pode aceitar todas as ausências reais. O poder do recurso a esta frase: "Vou contar ao teu pai!" resume de modo excelente essa situação privilegiada do pai, cujo nome basta invocar. E muitas vezes é essa discordância entre a fraqueza de um pai real e a força necessária desse pai simbólico que caracteriza a confusão na qual se desenvolve a neurose. O que a psicanálise nos dispõe a entender por meio do mito de Édipo é que a Lei revela ao homem a verdadeira dimensão do seu desejo. A sexualidade il!fantil só pode ser compreendida psicanaliticamente como uma d([lcil abordagem dessa realidade.

2. PSICOSES

Em busca dos princípios de uma psicoterapia das psicoses*

Na segunda metade dos anos 50, era necessário dar mais consistência à corrente dita "psicogenética ", que, no mundo psiquiátrico, se insinuava na dominância tradicional do ponto de vista "organogenético "; entre as duas tendências, o organodinamismo e principalmente Henri Ey reuniam a nova psiquiatria Jiw1cesa. A tese de Jacques Lacan sobre "a psicose paranóica em suas relações com a personalidade "fora publicada 25 anos antes; hoje, ela é um marco histórico. Mas esses anos também/oram os da renovação da terapêutica psiquiátrica, com adescoberta e a utilização na prática corrente das drogas psicotrópicas, dando apoio ao postulado dos "organicistas ". Nos meios psicanalíticosji·anceses, pode-se dizer que a Sociedade Psicanalítica de Paris e o seu Instituto ainda reinavam absolutos, no seio da ortodoxia pós-ji·eudiana. Nos Estados Unidos, a psicanálise preparava-se para encerrar o apogeu do seu poder e da sua glória: era de lá que chegavam até nós os testemunhos de experiências já confirmadas de tratamento dos psicóticos por clínicos formados em psicanálise. Ao mesmo tempo, na França, nasciam ou desenvolviam-se experiências originais, tanto no setor público quanto no privado. Minha tese, da qual o presen-

* L'Évolutionpsychiatrique, nº 11, 1958, p.377-419. Retomado em Le Bloc-Notes de la Psychanalyse, n2 8, 1988. Este trabalho constitui o "ensaio teórico" que anunciáramos por ocasião de uma publicação precedente (L 'Évolution psychiatrique, 1956, nº 2, p.515-40) [S.L.]. 131

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te texto é a versão "pública", se inscrevia nessa corrente; mas ela se especificava pela preocupação de experimentar e de pôr em prática categorias e conceitos que Lacan f01java nesse tempo, ocupado como sempre esteve na elaboração de um pensamento que.fosse adequado ao seu objeto, isto é, a "realidade psíquica", para retomar um termo freudiano. Assim, encontrar-se-á neste trabalho o recurso talvez um tanto sistemático - admito -à "robusta trilogia" real, simbólica, imaginária, à do signo, do significante e do sign(ficado, àquela in statu nascendi do sujeito (ainda não barrado: S), do pequeno outro (a) e do grande Outro (A), e enjim ao conceito lacaniano -senão freudiano -deforac/usão. "Palavras-chave" que hoje poderiam figurar como conclusão de um "abstract" standardizado, disponível na memória morta do computador. Creio, entretanto, que se a redação do Bloc-Notes desejou republicar este texto, não foi depois de consultar seu arquivo eletrônico, mas porque continuava viva no seu inconsciente a lembrançafl.utuante de ter encontrado ou descoberto nele os fragmentos de "uma palavra por outra", de Jean Tardieu, ou lido, com um sorriso, a.fantasia do inclassificável delírio ornitológico. Por isso, eu lhe sou grato.' A respeito da gênese das formações delirantes, certas análises nos revelaram que nelas o delírio é como um remendo aplicado sobre um rasgão ocorrido primitivamente na trama das relações entre o cu e o mundo cxtcrior. 2

Nosso próposito aqui é formular alguns princípios que possam servir de fundamento racional para uma psicoterapia dos distúrbios psicóticos de evolução prolongada. Entretanto, no espaço limitado deste trabalho, não poderíamos fazer, como seria desejável, um "estudo histórico", seguido de um "estado atual" da questão da psicoterapia das psicoses. H. Ellenberger 3 e P.C. Racamier 4 quanto à esquizofrenia, H. Ey e R. Pujol 5 quanto aos delírios crônicos, nos deram excelentes e recentes atualizações sobre esse tema, às quais nada poderíamos acrescentar. Mas são esses trabalhos que, reunidos à nossa jovem experiência, nos conduziram às reflexões que nos servirão hoje de introdução. Efetivamente, parece-nos que, depois da época histórica, em que o conteúdo das manifestações psicóticas fascinava os pioneiros da ciência psicanalítica, depois dos esforços de Fedem para explicar sua ação terapêutica, a tendência contemporânea é inteiramente pragmática; e cada um, arregaçando as mangas à moda de Rosen, enfrenta à sua maneira o psicótico. Tentativas pacientes muitas vezes ousadas, às vezes

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coroadas de sucesso, nos são relatadas em detalhe pelas publicações recentes; as precisões técnicas são numerosas, atitude, distância, ritmo e protocolo das sessões, ambiente terapêutico, mas procura-se em vão nesses trabalhos alguma tentativa de conceitualizar verdadeiramente a experiência de uma ação eficaz; _no máximo algumas expressões como "princípio de realidade", "força do eu" (ou qualquer outra qualidade do mesmo Eu enigmático), "regressão", tomadas por empréstimo à teoria psicanalítica das neuroses, são "coladas" ao acaso sobre um dos tempos da experiência, mas deve-se reconhecer que essa prótese não resistiria à prova da reflexão. Assim, pois, consideramos sempre pertinente e atual esta observação de L. Kubie, em conclusão a 250 páginas de trabalhos sobre a psicoterapia dos esquizofrênicos: 6 "Não esclarecemos o que pensamos ser a essência do processo esquizofrênico nem propusemos nenhuma fonnulação téorica como base de trabalho." A isso, P.C. Racamier, que o cita, acrescenta: "É preciso convir que ele não se engana." No momento, basta-nos lembrar rapidamente o que implicam em essência os dois termos em causa: "psicoterapia" e "psicose". O tenno "psicoterapia" supõe a necessidade fundamental de poder explicar racionalmente a experiência que se desenvolve entre o paciente e seu terapeuta. Mas parece justo dizer que o uso de um método nascido do estudo particular das neuroses não poderia ser tão-somente transposto e sumariamente adaptado ao campo da psicose; ora, pensamos que o fenômeno psicótico constitui uma estrutura profundamente original, irredutível às fonnas neuróticas conhecidas. Nessa perspectiva (aliás de acordo com o pensamento freudiano sobre as psicoses, tão apaixonadamente contestado por alguns), a psicose se liga a um modo de psicoterapia particular, que deve deduzir seus princípios de um estudo da natureza própria do distúrbio psicótico. Quanto ao conceito de psicose, lembremos à exceção dos distúrbios agudos e clemenciais, ele recobre essencialmente dois grandes grupos de doenças mentais: as esquizofrenias e os delírios crônicos. Ora, é o grupo das esquizofrenias que constituiu o objeto da maioria dos trabalhos consagrados até hoje à psicoterapia das psicoses; e continua sendo a melhor indicação do ponto de vista do prognóstico. Mas, se aceitamos renunciar provisoriamente à satisfação imediata do sucesso terapêutico, é preciso reconhecer que a abordagem dos delírios crônicos pennite um estudo mais completo da natureza própria do distúrbio psicótico, propondo à nossa observação uma estrutura estável mais facilmente acessível e mais seguramente "analisável". Assim, foi esta a via que es-

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colhemos para tentar detenninar os fundamentos de uma psicoterapia racional das psicoses. Não é necessário lembrar também até que ponto a oposição entre a "saudável" clínica e a teoria "abstrata" nos parece hoje em desuso, dela tratando apenas aqueles que ignoram as duas. Duas observações - que lamentamos ter de resumir muito aqui foram para nós a ocasião de desenvolver nossa reflexão sobre a natureza própria da psicose. A primeira é a de Pierre, motorista de táxi de 33 anos que se queixa de idéias obsessivas de ciúme em relação à sua mulher e se sente invadido pelo desejo de interpretar em função das suas preocupações os menores acontecimentos que presencia. Sem querer entrar nos detalhes da sua história e da sua observação, 7 notemos que seu caso se situa nos confins da neurose e da psicose, e levanta o problema da interpretação do sintoma maior, a dúvida, que se pode chamar de obsessão da confiança ou delírio de ciúme; na verdade, foi a análise dos caracteres próprios da nossa experiência clínica que nos pennitiu concluir pela natureza psicótica do distúrbio, evidenciando a equivalência significativa de todos os pontos do seu discurso. Aliás, esse fato será o único sublinhado por alguns exemplos extraídos dessa observação, citados no presente trabalho. A segunda observação, a que recorreremos amplamente, é a de Bernard, que não deixa de lembrar, em muitos traços, a do presidente Schreber. Trata-se de um professor de 42 anos, que apresenta um delírio de interpretação de grande riqueza, cuja gênese, progressos, desvios e florescimento ele anotou numa interessante auto-observação (diário, notas, ensaios). Fato notável, encontramos em seus escritos o relato em dupla versão de um episódio agudo, dito "delírio místico", que durou cerca de uma semana; por um lado, vinte folhas escritas dia a dia, por outro lado, uma versão retrospectiva, em que tenta explicar a posteriori a sua experiência "fabulosa". Vamos nos referir principalmente ao texto escrito pelo doente, para melhor situar os problemas que Bernard nos propôs, como tantos outros delirantes, mas talvez melhor do que qualquer um deles. 8 Mas é certo que a experiência clínica só toma seu sentido pleno na medida em que somos capazes de ordená-la racionalmente. Como uma matéria bruta, muitas vezes abundante e por demais generosa, a observação clínica do delirante nos propõe intenninavelmente os mesmos problemas e às vezes nos cansa com a unifonnidade das mesmas questões. É natural tentar então "reduzir" a alguns mecanismos elementares a expressão profusa do delírio e, afinal, tentar dar-lhe uma "fórmula",

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cujo valor é na maioria das vezes contestável. Ao contrário de um "clinicismo" impenitente e invasor - se nos perdoam a introdução desse neologismo-, encontramos assim o teórico que pretende tudo reduzir à sua fórmula abstrata, e nada se presta melhor do que a experiência clínica a esse exercício de redução explicativa a qualquer preço, cujos excessos entusiastas também são praticados por psicogenctistas e organicistas. Sem defender por isso uma posição eclética, tentaremos, na medida do possível, evitar os obstáculos que se apresentam naturalmente no caminho do teórico. Isto significa que tentaremos evitar a tentação de elaborar urna teoria fechada, que atualmente só poderia ser prematura, para propor à atenção do clínico apenas alguns conceitos 9 tão racionalmente transmissíveis quanto naturalmente utilizáveis no nível da experiência cotidiana. Momento necessário de uma pesquisa clínica, a conceitualização da experiência só poderia ser um fim em si na medida em que continua aberta ao movimento dialético que promove. Centraremos nossa reflexão sucessivamente em tomo de quatro temas fundamentais, os mesmos que em geral são utilizados por todos os que se ocupam de psicoterapia das psicoses. Em uma primeira parte, baseando-nos na opinião comum, que faz do psicótico um doente que perdeu, de algum modo, o contato com o real, indagaremos a natureza da experiência da realidade. Partiremos, na segunda parte, da fónnula que diz que, para ter acesso ao mundo psicótico, é preciso saber/à/ar a sua própria língua, e tentaremos compreender o que é próprio da linguagem, à luz do estudo sumário do signo lingüístico. Na terceira parte, detendo-nos no estudo da "comunicação" tão difícil com o psicótico, vamos nos dedicar a situar melhor o seu "eu", do qual se diz habitualmente estar perturbado e até deslocado. Enfim, na última parte, tentaremos abordar os problemas dinâmicos específicos da psicose, e o que faz com que as noções de conflito e recalcamento que se encontram no centro da gênese de uma neurose não bastem, de modo algum, para elucidar o fenômeno psicótico em sua irredutível originalidade.

A experiência da realidade Essa questão nos é claramente apresentada por Bernard, logo nas primeiras páginas do seu diário (19 de janeiro de 1951): 10 "Terça-feira passada, o professor de desenho B. me mostrou uma pequena flecha de

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ponta aguda. Esse objeto fora lançado, na sua presença, por um aluno. Hoje de manhã, no refeitório, um aluno me mostrou uma agulha que achara no chão. Para qualquer espírito cartesiano, prossegue ele, evidentemente não há nenhuma correlação entre esses dois objetos que me foram mostrados e o incidente noturno relatado". 11 Comentaremos apenas um aspecto particular dos problemas que podem nos apresentar esse trecho do diário. Se a realidade dos objetos em questão, flecha, agulha, não parece suscitar a menor dúvida - não se trata de percepção alucinatória-, quais são os caracteres particulares da experiência que Bernard faz da realidade deles? Se essa é a pergunta que podemos legitimamente fazer, vamos abandoná-la por um instante, para melhor esclarecê-la, mas logo voltaremos a esse ponto. Entretanto, note-se bem, de passagem, que a pergunta assim fonnulada evita o problema puramente filosófico (mas não menos interessante) da realidade e do objeto, para considerar apenas o problema, submetido à nossa prática, da experiência da realidade. Assim, para tomar um exemplo mais divertido e muito conhecido, é claro que o guarda-chuva, em sua realidade objetiva de instrumento destinado a nos proteger das intempéries, só encontra nessa função sua realidade mais prosaica; cada um de nós sabe, se lhe aconteceu esquecer o guarda-chuva no consultório do psicanalista, em que esse mago transforma esse objeto. A partir de então, tão difundida foi essa história que não é mais possível perder o guarda-chuva ou simplesmente sonhar com ele, sem perguntar doravante o que está acontecendo com você, "na realidade". Mas, sem recorrer a esses artificias psicanalíticos deliberadamente perturbadores, vamos tomar como exemplo a experiência que podemos ter da realidade de um objeto. Tenho sobre minha mesa um cinzeiro de cobre em forma de almofariz com um pilão. Como é esse objeto real e a experiência que podemos ter dele? Um técnico em metais verá um objeto pesado em cobre maciço, distinguindo-o assim do bronze ou de outro metal dourado, atribuindo-lhe, caso ele tenha vindo para comprar metais velhos, maior ou menor valor. O apreciador de aite poderia ver um bibelô rústico, de confecção grosseira e, em sua opinião, pouco elegante. Mas, se além disso ele for antiquário, poderá reconhecer um objeto antigo, valioso pela idade, e que ele distinguirá, ao primeiro olhar, de um objeto semelhante, de fabricação moderna. Uma criança verá um brinquedo que produz um som. Um homem prático, enfim, verá apenas um cinzeiro, que julgará nada funcional.

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As experiências assim constituídas da realidade desse objeto são, pois, muito diversas quanto ao seu valor e sua fonnulação: cobre, bibelô, antigüidade, brinquedo e cinzeiro podem explicar igualmente a sua realidade. Para não complicar essa análise, não indicarei a proveniência que, para mim, dá valor a esse objeto efetivamente antigo, carregado, por isso, de uma realidade suplementar de testemunho. Parece que continua aberta a questão daquilo que constitui os caracteres de realidade da experiência que se pode ter desse objeto. Não poderia ser o testemunho dos nossos sentidos, pois esse objeto que evoco toma um caráter de realidade aos olhos do leitor, pelo menos na medida em que este acredite na minha palavra; ninguém também pensaria, hoje, em fazer da sua "materialidade" o critério da sua realidade na nossa experiência. Importa notar que nenhum nome poderia, sozinho, evocar a realidade do objeto em questão: nem "cobre", nem "bibelô", nem "antigüidade", nem "brinquedo", nem mesmo "cinzeiro", pois cinzeiro pode evocar um pires de porcelana pintada, um quadrado de vidro, a parte do fogão onde caem as cinzas ou até o operário que retira a cinza das caldeiras. É apenas na medida em que associo uma descrição fonnal a esse nome, na medida em que descrevo sua forma em tronco de cone invertido, fechado numa extremidade, mais largo na outra, tendo um diâmetro exterior maior no centro, como ce1io tipo de almofariz de farmacêutico, que posso pretender explicar claramente minha experiência da realidade desse objeto. Pois, inversamente, se eu pudesse apenas descrever sua fonna, a realidade do objeto nos escaparia, ele seria para nós como um fragmento irreal de uma fotografia sem nome. Parece então que, para termos a experiência da realidade desse objeto, é preciso que sejamos capazes de distinguir nele uma fonna específica, contorno, peso e cor, que façamos dele uma imagem e, simultaneamente, que possamos dar-lhe um nome, isto é, que possamos situá-lo num mundo convencional, simbolizando-o. De fato, qualquer que seja o nome que escolhamos para simbolizá-lo, bibelô ou cinzeiro, fazemos com que entre num universo de linguagem. Veremos depois o que constitui propriamente esse universo. Então, vamos dizer que a experiência da realidade de um objeto necessita de duas operações simultâneas mas diferentes: ele deve ser ao mesmo tempo imaginado e simbolizado. A extrema simplicidade dessa ilustração não poderia, em caso algum, autorizar-nos a fazer dela uma formulação exemplar. Assim, é certo que a "fonna" já é, em si mesma, altamente simbólica, que um

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"tronco de cone" não pode ser concebido sem referência a um sistema simbólico muito elaborado. É, antes, no sentido em que a fonna evoca a ausência de vida, como a imagem a falta de volume, que escolhemos, como Lacan, esse tenno tradicional para opô-lo ao símbolo. Assim, enfatizamos que é apenas nessa acepção, no nível desse valor sugestivo, que escolhemos a palavra imaginário para designar o que se situaria antes do lado da sombra e da imagem indistinta, do que do lado do poder de discriminação, de nomeação e de designação, propriamente "simbólico" e humano. Essas indicações nos parecem necessárias, pois nos chocamos, segundo toda verossimilhança, com o fato de que esses vocábulos "imagem" e "símbolo" já evocam idéias preconcebidas ou adquiridas sobre o imaginário e o simbólico; se o imaginário evoca a irrealidade do devaneio e se opõe comumente ao real, se o símbolo carregado de implicações poéticas, religiosas, místicas, muitas vezes desconhecido e mal definido, engloba o uso da metáfora e até da alegoria, propomos, ao contrário, encarar essas duas categorias do imaginário e do simbólico como constitutivas da experiência da realidade. Sem pretender resolver aqui um problema filosófico, é necessário que precisemos em algumas palavras o uso que fazemos habitualmente, com J. Lacan, desses dois termos, antes de voltar a nossa proposição. A experiência do real supõe o uso simultâneo de duas funções correlativas, ajimção imaginária e ajimção simbólica. É "imaginário" tudo o que, como a sombra, não tem nenhuma existência própria, e cuja ausência, entretanto, à luz da vida, não se poderia conceber; tudo o que, sem poder de distinção, afoga a singularidade, escapando assim a todo controle verdadeiramente racional; é imaginário o que se opõe irremediavelmente ou se confunde indistintamente, sem nenhum movimento dialético; é imaginário o sonho ... enquanto não for interpretado. É "simbólico" tudo o que não tem em si nenhum valor que não seja o de indicar a articulação, o laço (de acordo com o valor etimológico dessa palavra) e o "lugar"; é o signo mais, ou menos, a cifra, é o traço-de-união, a vírgula, a palavra, mesmo que nem seja um nome. A fórmula algébrica ilustra bem o nível simbólico de que se trata, aquilo que, em si mesmo, não tem nenhum sentido, mas dá sentido a todo o resto. Seria inútil acreditar por isso que o imaginário ou o simbólico pudessem evoluir por sua própria conta, que existisse algum plano imaginário ou simbólico em estado puro, a não ser talvez, precisamente, na psicose.

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Qualquer fonna e qualquer objeto podem ser investidos, em grau variável, de um valor simbólico, assim como mostra o objeto tomado como exemplo, e correlativamente nenhum símbolo pode dispensar um suporte imaginário. Assim, para o objeto real que consideramos, o cinzeiro, ele só tem, precisamente, esse caráter de realidade na medida em que se inscreve para nós, simultaneamente no plano imaginário, tronco de cone tendo a forma de um almofariz feito de cobre polido, forma sem nome, com a qual outro objeto inominado pode se assemelhar ou da qual pode diferir por algum detalhe; e, simultaneamente na medida em que ele se inscreve no plano simbólico, graças ao qual, qualquer que seja o sistema convencional que tomannos como referência, podemos nomeá-lo: cobre, bibelô, brinquedo ou cinzeiro. É porque nossa experiência de um tal objeto pode se inscrever, e se inscreve efetivamente, ao mesmo tempo, nesses dois planos, que podemos com razão dizer que o experimentamos como real e pretender, a partir de então, à comunicabilidade dessa experiência. É muito dificil encontrar um exemplo de experiência explicável que escape a essa regra constitutiva, senão, talvez, precisamente no mundo do psicótico - e é isso que nos importa. O objeto não simbolizável, que não entra em nenhum sistema simbólico, é justamente o monstro estranho do sonho indistinto e da fantasmagoria parafrênicos; quanto àquele que não se pode imaginar, àquele que só tem valor de símbolo, que articula tudo, significa tudo e nada, plana sobre um mundo sem forma, podemos reconhecê-lo como objeto-símbolo, o neologismo do mundo esquizofrênico. Sem mesmo nos referinnos ao mundo da psicose, a distinção que fazemos, com J. Lacan, já nos prestou apreciáveis serviços no nível da prática cotidiana da psicoterapia das neuroses. Até nos parece que é de uma confusão habitual entre o imaginário e o simbólico na apreensão do real que resultam muitas dificuldades técnicas e teóricas encontradas na psicanálise; nós nos consagramos a esse problema particular no ensaio crítico precedente. Para resumir em poucas palavras o que essa distinção nos pennitiu entrever no nível da estrutura das neuroses e das psicoses, diríamos que: - A neurose indica, de certa fonna, uma perturbação do "metabolismo interno" entre os três pólos, imaginário, simbólico e real; assim, o obsessivo imagina obstinadamente o simbólico como que para se defender dele, enquanto o histérico simboliza o imaginário para recusar qualquer forma e mudá-la como fala. Mas se trata apenas, no nível da neurose, de um desequilíbrio interno que favorece tal uso da função

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simbólica ou imaginária, à custa da outra, e dá seu caráter particular à apreensão do real assim constituído em tais pacientes. - Mas a perturbação é de outra ordem no nível do fenômeno psicótico: é o uso parcial ou total de uma dessas funções que parece.faltar radicalmente; não como na neurose, à maneira de uma inibição funcional mais ou menos localizada, mas à maneira de uma falta de outra ordem, que evoca a falência orgânica, sem poder encontrar nisso sua explicação última; é a falta radical de uso de uma dessas funções, imaginária ou simbólica, que explica o caráter muito particular da realidade para o psicótico, daquilo que se chama sua perda da realidade. Assim, o esquizofrênico, como indicamos, parece viver num mundo simbólico que constitui sua realidade desprovida de todo laço imaginário, sem forma, sem limite e sem peso. Ao contrário, o delirante paranóico experimenta a realidade num registro puramente imaginário, lógico e tão-somente formal, sem abertura propriamente simbólica, pois não há nada a articular daquilo que é imaginariamente ligado. É assim que voltamos, depois de um longo desvio, à pergunta de que partíramos: quais são os caracteres particulares da experiência que Bernard faz da realidade da flecha ou da agulha? Nossa resposta poderá, agora, ser breve. Bernard escotomiza o valor simbólico da flecha como "brinquedo" de criança; só retém a fonna "ponta acerada", semelhante ao alfinete e correlativa à sensação de picada aguda. O laço lógico se estabelece assim a partir do caráter puramente fonnal, "imaginário" do objeto real, tal como o definimos, para constituir uma espécie de "sintaxe imaginária". Assim, podemos dizer que, para Bernard, a experiência da realidade do objeto é constituída pela dominância exclusiva do fator imaginário e a recusa quase completa, no campo em questão, de qualquer apoio simbólico. Por quê? É o que tentaremos abordar por outros caminhos. Sabemos o que tais formulações têm de incompleto e de parcial. Não ignoramos o risco que corremos ao tentar simplificar para melhor nos fazer entender, pois é certo que se, como é natural, decidíssemos usar essas referências, imaginário e simbólico, como um sistema bom para tudo, logo ficaríamos tentados a reduzir a ele toda experiência, numa fónnula que só poderia se obscurecer cada vez mais. Lembremos, pois, que se trata aqui de introduzir uma distinção necessária na confusão da irrealidade, que opomos à realidade, de que tanto se fala no "contato com o psicótico". Essa distinção no campo da irrealidade consiste em discriminar o imaginário e o simbólico, mas considerando-os como constitutivos e correlativos da realidade.

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Assim substituídos em suas dimensões relativas, nossos exemplos podem ilustrar a necessidade de uma teoria que explique a experiência da realidade no psicótico e indicar um estilo de pesquisas que nos pareça capaz de fundar uma abordagem terapêutica racional desses doentes. É com esse mesmo espírito que vamos abordar agora os problemas da língua.

O uso da linguagem "27 estudou muito no ano passado; 59 continua a estudar junto com 66 ... 46 continua sendo um anjo ... 102 está muito pálido, pobre 102, se eu pudesse fazer alguma coisa por ele!" 12 Esse discurso nada tem de delirante, e não nos surpreende, pois tornou-se muito comum numerar os indivíduos. Entretanto, aqui se trata de algo diferente de um simples sistema de identificação numérica substituindo a identificação nominal; Bernard nos diz que o número 66 é detentor de um poder particular, e não seria equivalente designar o sujeito em questão pelo seu nome ou por 66, assim como não é indiferente chamar alguém pelo sobrenome ou pelo nome. Assim, não bastaria, se quiséssemos "falar a mesma linguagem" que o nosso paciente, que tivéssemos o código pelo qual ele enumera os seus alunos, mas ainda seria preciso, principalmente, que compartilhássemos e conhecêssemos toda a simbólica dos números e sua interpretação particular pelo doente. Mas talvez isso ainda fosse insuficiente, pois em outro setor da sua linguagem, a palavra "árvore" evoca antes de tudo "personagem", 13 enquanto que, para nós, essa ligação só se estabelece, em geral, metaforicamente, e "árvore" remete mais geralmente a "bosque", "floresta" ou "alameda", por exemplo. Já podemos ver, da maneira mais clara, que a língua é composta de signos que se evocam uns aos outros e cujas ligações suportam a significação. Acredita-se que a palavra constitui um signo específico - a árvore é uma árvore e o personagem é um personagem - , mas é facil constatar que, mesmo fora de qualquer linguagem delirante, as coisas não são assim, que nada é mais contingente e relativo do que a palavra, que o mesmo signo muda a todo instante de valor e de significação, de acordo com o contexto que o suporta; por exemplo, a palavra "observação" muda de sentido segundo dizemos que nos dedicamos à "observação" de Bernard, ou fazemos alusão à "observação" que o diretor de Bernard lhe fez um dia.

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Melhor ainda, tudo parece indicar que, se é fácil substituir uma palavra, ou até um nome, por outro signo, um número, por exemplo ("46 continua sendo um anjo"), é igualmente fácil substituí-la simplesmente por outra palavra. Nada é mais adequado para nos introduzir nos problemas específicos da língua do que a obra do saudoso professor Froeppel, da qual Jean Tardieu recolheu alguns preciosos fragmentos. Assim, Uma palavra por outra 14 é uma "comédia em um ato", com o seguinte preâmbulo: Por volta do ano de 1900- época estranha entre todas - uma curiosa epidemia se abateu sobre a população das cidades, principalmente sobre as classes abastadas. Os coitados atingidos por esse mal subitamente começavam a tomar as palavras umas pelas outras, como se as tirassem, ao acaso, de dentro de um saco. O mais curioso é que os doentes não se davam conta de sua enfermidade e, aliás, continuavam sãos de espírito, embora proferissem coisas aparentemente incoerentes. Mesmo no auge da praga, as conversas mundanas continuavam sem nenhum problema; cm suma, o único órgão atingido era o "vocabulário". Esse fato histórico - infelizmente contestado por alguns estudiosos motiva as seguintes observações: Muitas vezes falamos para não dizer nada. Se, por acaso, temos algo a dizer, podemos dizê-lo de mil maneiras diferentes ...

Mas vamos à comédia: (Madame, na sua sala de visitas, se prepara para receber Mme. de Perleminouze, que a empregada, Irma, acabou de a11unciar.) MADAME - (Jecha11do o piano e indo ao e11co11tro da amiga) Boa parte, formiga! Como cai? Há pias, há reses que eu não almejo! Mme de PERLEMINOUZE (muito afetadamente) - Bois é, ferida. Tenho andado tão amputada! Os dois pepinos pegaram democracia, o maior traiu da estaca, quebrou o traço e teve que ser onerado para alocar um primo na estruturação; senão, ia perder os mantimentos, seja só! Passei moitas inteiras adornada, tomando horticultura, aplicando inspeção, dando intcrn1édio. Do fim de carneiro até princípio de anil, não tive um só charuto de ambigüidade! Só saí de casta para ir à falácia ou levar enxames ao dénnico. MADAME-Ah, foi por isso que você não encareceu na decepção do Abafador, nem foi à testa do Perfeito ...

Não vamos reproduzir aqui o texo integral dessa comédia, mas lembramos que o conde de Perleminouze é surpreendido pela presença da esposa, ao apresentar-se para fazer uma visita galante à "madame". O

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conde fica teuivelmente embaraçado, sente-se vítima de uma verdadeira "transpiração" e retira-se com dignidade: O CONDE (abrindo a porta e saindo, de J,-ente para o público)- Oh, me encurtem! Mil tendões! Não quero acomodar! Estou de caída. (Inclinando-se para a madame) Tara penhora ... Meus condimentos. (Depois, para a esposa) Até lago, meu trem. (Pausa) Mme. de PERLEMINOUZE - Onde estalávamos? (Entra /rma com a bandeja do lanche: café, suco, uma torta) MADAME - (mostrando a mesa) Vamos trombar um ganchinho? (As duas sentam-se à mesa) Aceita um rapé, um sulco? Mme. de PERLEMINOUZE - (sorridente e amável, como se nada tivesse acontecido) Um rapé, por pavor. MADAME - Duas mulheres de alcaçuz? Mme. de PERLEMINOUZE - Turco bem. MADAME- Uma bacia de porca? Mm':. de PERLEMINOUZE - Lero sim, abrigada ... Hum ... está uma pelúcia ...

Nada mostra melhor do que essa fantasia poética até que ponto o signo lingüístico, a palavra, não tem especificidade rigorosa no seu valor significativo, pois todos compreenderão que "transpiração", em certo contexto, é equivalente a "conspiração". Mas esse jogo só é possível - e é isso que importa sublinhar - na medida em que todo o resto do discurso oferece uma sintaxe correta e clara. Ele só pode ser jogado por um poeta que não escolhe "ao acaso" essas palavras substitutas, muito pelo contrário. Agora, para levar mais à frente nosso estudo da língua e do signo, devemos nos referir ao Curso de lingiiística geral de Ferdinand de Saussure, que nos propõe considerar a lingüística como um ramo da semiologia ou ciência dos signos. Saussure observa (p.101): "A língua é o mais complexo e o mais difundido dos sistemas de expressão; é também o mais característico de todos; nesse sentido, a lingüística pode tornar-se o padrão geral de toda semiologia, embora a língua seja apenas um sistema particular." Não se pode ignorar que uma parte maior da semiologia psiquiátrica, isto é, dos signos que observamos em nossa prática psiquiátrica, se

* Adaptação livre. (NT.)

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situam no nível da fala, aspecto singular da língua, e é no nível dessa semiologia que, clinicamente, estamos situados. O que é, pois, o signo, elemento de qualquer semiologia? É isso que a semiologia lingüística, melhor que qualquer outra, pode nos dizer. Com isso, não pretendemos assimilar pura e simplesmente os signos da vida psíquica e os signos lingüísticos; entretanto, nada tem um parentesco maior do que a vida psíquica e a vida da língua, no sentido saussuriano do tenno; é precisamente o que nos aparecerá no breve estudo que faremos do signo. O signo não é apenas um rótulo colado sobre um objeto de modo específico e definitivo; para nos convencennos disso, basta considerar que a palavra "assento" [= siege] só acessoriamente poderia ser colada sobre um objeto, pois se ela pode se colar sobre uma "cadeira" [= dzaise], devemos admitir que poderíamos simplesmente preferir o rótulo "cadeira". Mas esse mesmo signo chaise pode, como rótulo, ser colado no suporte da árvore de transmissão que, em mecânica, se chama assim, e além disso indica, na técnica dos nós, um nó que não desliza. Inversamente, a palavra siege, de que partimos, poderia, como rótulo, servir para designar uma poltrona, um tamborete, um peitoril de janela, um tronco de árvore coberto de musgo, ou também a parte do nosso corpo que pousamos sobre o assento, sem falar no cerco prolongado de uma cidade. Assim, se o signo lingüístico não poderia ser, como diz Saussure, aquilo que liga um nome a uma coisa, signo-índice ou signo-rótulo, então, o que é ele? É o que Saussure nos ensina, considerando inicialmente o aspecto mais elementar e menos contestável do signo na língua falada, um fragmento de cadeia sonora. Assim vamos tomar, por exemplo, o.fragmento de cadeia sonora que articulo como "palan": é um significante. Tomado assim de modo isolado, foneticamente, esse fragmento de cadeia sonora ou sign(ficante não quer dizer absolutamente nada, porque não sabemos exatamente, entre outras coisas, se há uma cesura entre "pa" e "lan". Esse significante ou fragmento de cadeia sonora só toma um sentido, isto é, valor de signo, a paitir do momento em que o contexto evoca a lentidão de uma marcha, a pas lents [=passos lentos]; um problema geográfico, pas laon [= "não Laon", cidade cujo nome se pronuncia "lan"], em Aisne, mas Caen [pronúncia "can"], em Calvados; o "pai en" [= estaca em] fincado no chão, em vez de no corpo do torturado, ou ainda o "palan" [= guindaste] de um carro-guincho.

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As idéias ou conceitos assim evocados, marcha, cidade, suplício, sistema de levantamento, são chamados por Saussure de "significados", por oposição à cadeia sonora ou "significante", que tem múltiplas possibilidades. O signo é então, segundo Saussure, o que une o significante ao significado, o fragmento de cadeia sonora "passo" ao conceito de "momento da marcha" ou o significante Laon ao conceito da cidade, por exemplo. Essa é a natureza própria do signo."juntar o significante ao sign(ficado. Percebe-se imediatamente que o signo só pode tomar seu pleno valor de signo juntando um significante a um significado, no contexto mais vasto de um conjunto de signos, tal como uma frase, por exemplo. De todas as comparações que poderíamos imaginar, escreve Saussure, a mais demonstrativa é aquela que se estabeleceria entre o jogo da língua e uma partida de xadrez. Em ambos os casos, trata-se de um sistema de valores e assistimos às suas modificações. Assim, o cavalo, cm sua materialidade pura, fora da sua casa e das outras condições do jogo (as regras), não representa nada para o jogador, e só se torna elemento real e concreto quando revestido do seu valor e fazendo corpo com ele. Suponhamos, continua Saussurc, que durante uma partida, essa peça venha a ser destruída ou perdida; podemos substituí-la por outra equivalente? Sem dúvida alguma. Não só um outro cavalo, mas até mesmo uma figura desprovida de qualquer semelhança será declarada idêntica, desde que se lhe atribua o mesmo valor.

Era assim que o conde de Perleminouze declarava sentir-se vítima de uma "transpiração" e nós o compreendíamos perfeitamente. Do mesmo modo que no jogo de xadrez o cavalo nos remete, apenas por sua presença, à consideração atenta das outras peças aliadas e adversárias, presentes e ausentes, e dos seus lugares, assim também, na língua, todo signo lingüístico nos remete da maneira mais clara a todos os outros signos presentes e ausentes. Na língua, há por toda parte e sempre, esse mesmo equilíbrio complexo de termos que se condicionam reciprocamente; isso aparece com evidência particular se se considera o simples fato do lugar da palavra. Não é indiferente dizer com os elementos: Terra, gira, em torno e Sol, "a Terra gira em torno do Sol" e o inverso. Porém, o mais importante a compreender é que cada termo, em toda frase, só toma o seu sentido na medida em que nos remete a uma infinidade de outros signos, para associar-se a eles ou excluí-los: assim, terra

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exclui terra opondo-se a mar, ou Terra na expressão ambígua "volta à Terra"; Terra remete aqui ao planeta, e por isso exclui "Lua" ou "Marte", mas evoca gravitação e assim por diante quanto aos tennos da frase tomados em si mesmos e em suas relações recíprocas: "gira" mudará ligeiramente de sentido, segundo seja seguido de "em tomo" ou de "sobre" (seu próprio eixo). Podemos agora fonnular a proposição fundamental da lingüística - e, aliás de toda semiologia digna desse nome: O signo é sempre signo de uma ausência e remete a outro signo; ou ainda, o signo é apenas signo da ausência dos outros signos e remete a eles. Observemos, entretanto, que esse princípio (que nunca deveríamos esquecer) exige, logo que é formulado, que se faça nele alguma atenuação. Assim, não é exato dizer que, no jogo de xadrez, o cavalo possa ser substituído por qualquer outra figura, mesmo desprovida de qualquer semelhança; sem dúvida, o fato de lhe atribuir o mesmo valor permite jogar apesar de tudo, mas essa peça substituída se integrará mal ao conjunto do jogo, ficando muito em destaque ou muito pouco, para o jogador e para seu adversário; efetivamente, nada seria mais perturbador para os jogadores do que convir, em um dos jogos, que uma torre ou um peão fizesse papel de cavalo. Ocorre o mesmo com a palavra, e observávamos, a respeito de "Uma palavra por outra", o laço específico- poético que fosse - que ela conserva com sua significação. Agora, devemos precisar em que esses princípios de scmiologia e de lingüística são não apenas úteis, mas necessários, no nível da nossa prática psiquiátrica cotidiana. Duplamente, e é isso que vamos tentar detalhar. Primeiro, é preciso notar que, em nossa experiência clínica, estamos sempre preocupados com significação. Convém observar aqui que temos uma tendência exagerada a nos interessar exclusivamente pelo valor específico do signo, precisamente no nível em que ele constitui um sintoma, ou um conjunto simbolizado, uma síndrome. Mas o erro freqüente é fazer de um elemento qualquer do discurso ou da observação um valor sintomático que ele não tem, como elemento. Entretanto, fora dos sintomas que, em boa regra clínica, devem ser submetidos a uma crítica vigilante, devemos também reter os outros elementos que se tomam, a pai1ir do momento em que nos detemos neles, um signo, ainda bruto, de certa fonna. É no nível da consideração desses signos elementares que nossas reflexões podem e devem ser úteis.

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Freud nos mostrou que, na vida psíquica, nada é sem interesse, e nos ensinou a prestar atenção a todos os elementos que a constituem, signos variados, diversos, reveladores, enganadores. Lembrou-nos a utilidade de retomar assim todos os elementos, tal como eles se apresentam, sem pretender operar, logo de saída, alguma redução ou transmutação, mas considerando-os, em suma, como signos, no sentido saussuriano do tenno. Em nossa experiência clínica, dirigimos constantemente nossa atenção - é o que Freud ensinou - para o valor significativo dos elementos, embora não-sintomáticos à primeira vista; o que dissemos sobre o signo lingüístico vale, certamente, para esse nível da rrática. Assim, a locução "fogo de artificio", usada por ceita paciente' no fio do seu discurso, por menos sintomática que seja, não deixa de remeter-nos a outros elementos do mesmo discurso, a saber "obsessão" (pelo fogo) e "gosto" (pelo artificio). Foi assim que descobrimos o sentido verdadeiro da frase que compreendia a locução "fogo de artificio", deixando-nos levar por esta a outros pontos fragmentários do discurso. É correto dizer, então, que a significação deduzida resulta do SENTIDO escolhido numa rede de signos. O sentido, ou significação, que com Freud pretendemos reconhecer nos discursos neuróticos e de que devemos nos ocupar, pode ser compreendido, antes de tudo, como uma direção particular numa rede de signos, e usamos para explorá-la o princípio de livre associação, que assume assim o seu pleno valor. Tem sentido ou significado aquilo que se inscreve numa rede de signos, rede cujo caráter próprio é ser complexa, pluridimensional e não unívoca. Em segundo lugar, podemos, como psiquiatras, interessar-nos pela lingüística, não só pelo que ela nos lembra sobre o valor relativo do signo, mas também e principalmente pelo que ela nos diz sobre a constituição própria do signo lingüístico, em sua função de ligar o significante ao significado. Esses são conceitos relativamente novos na psiquiatria, mas a familiaridade do seu uso no exercício cotidiano permite a quem se dedica a ele compreender melhor esta declaração de Claude Lévi-Strauss: "A categoria do significante é a mais alta maneira de ser do racional" (e ele acrescenta, perfidamente:" ... mas nossos Mestres nem mesmo pronunciavam o seu nome"). 16 Ora, é precisamente 110 nível do.fenômeno psicótico que vemos esse signo lingüístico, a palavra enquanto tal dissociar-se em seus elementos constitutivos, significante e significado. Mas o signo assim dissociado continua a ser enganosamente utilizado pelo psicótico como signo, em-

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bora profundamente desnaturado. O psicótico utiliza então o signo amputado ora da sua função de significante, ora do seu valor de significado. Para compreender melhor, poderíamos tomar como exemplo de palavra reduzida ao seu valor de significante um detalhe engraçado que marcou uma das entrevistas que tivemos com Pierre, o ciumento. Um dia, ele veio ao consultório com um impermeável novo e me disse que doravante chamava essa roupa de "beaujolais". Não me dando tempo de colar um rótulo sobre esse sintoma, ele comentou: quando comprou esse impem1eável junto com sua mulher, esta lhe disse, aprovando a escolha, que ele era ''joli" [ = bonito]. Pierre ficou satisfeito, mas logo foi invadido por uma dúvida: se a roupa era bonita e sua mulher notou isso, por que ela não notava que também ele, Pierre, era um belo homem? E foi tomado pela idéia de que a palavrajo/i aplicada à roupa evocava, na verdade, um amigo de juventude de sua mulher, um dos que provocava o seu ciúme, um certo "Jo". Doravante, o impermeável não podia mais serjoli; tinha que ser beau [= belo], como ele queria ser aos olhos de sua mulher. E "Jo", incidentemente evocado na história, só podia, por comparação, ser laid [= feio]. O conjunto, eu sou heau, e .lo é laid, associado à idéia de que a roupa agradava à mulher, dá assim como nome ao seu impermeável Beaujolais. Isso pode nos parecer uma brincadeira, mas para Pierre era muito sério, e foi com o tom mais grave que ele continuou contando que, logo, e apesar do som alegre da evocação de "Beaujolais", ele não pôde conservar esse nome para o impermeável, porque ainda havia muitos problemas. Assim, teve a idéia de associar mais intimamente à sua própria pessoa a admiração que sua mulher dedicava à roupa, e chamou-a e simultaneamente chamou-se "Apolloche". Esse nome evocava, primeiro, a beleza lendária de Apolo, e ele teria gostado que a esposa lhe dissesse, espontaneamente e sem ironia, que ele era tão belo quanto Apolo; mas, por outro lado, exatamente como tinha acontecido comjoli, essa palavra continha, cm seus meandros, o seu segundo nome, Paul, semelhante ao de um outro suposto rival: "Polo". Assim, decidiu que a ironia e a falta de seriedade do te11110 Apolloche, substituindo Apollon, indicava simplesmente que, em comparação com ele, Pierre, Polo era moclze [= feio], e o verdadeiro Paul continuava aparentado com Apolo. Foi assim que, no momento da nossa entrevista, o impenneável, fo1iemente ligado à sua pessoa, se chamava Apolloclze. Se se tratasse de um simples jogo de palavras, o que todos nós fazemos às vezes, nosso paciente teria se servido dele de outra forma; ele te-

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ria surgido na forma de lapso ou teria sido utilizado, como fazemos habitualmente, como piada. Em resposta, tentaríamos até aproveitar a ocasião para levantar de novo, sob uma fonna nova, a questão da dúvida ou do ciúme, recomeçando assim o diálogo a partir de uma fonnulação nova, surgida dessa ocorrência. Jogos de significantes, diríamos, que, ao contrário dos verdadeiros jogos de palavras, não oferecem nenhuma brecha para nossa interpretação. Para um neurótico, poderíamos traduzir "Apolloche" por "sou belo como Apolo e Polo é feio"; mas não podemos fazê-lo para o nosso psicótico, que parece incapaz de unir de modo estável, eletivo e utilizável um conceito significado ao significante, com o qual ele joga, para fazer dele um signo de múltiplas possibilidades, mas equivalentes. Assim, o significante Apolloche evocaria posteriormente tanto um espetáculo no teatro Apollo quanto o polochon [= travesseiro] do leito conjugal; mas Apollo, como polochon ou Polo est moche remetem, de modo equivalente à interrogação dubitativa e estereotipada sobre o amor de que ele pode ser objeto. Bernard nos dá, no seu diário, um exemplo ao mesmo tempo mais simples e mais despojado de signo reduzido ao seu valor puramente significante. A 28 de abril de 1951, ele escreve que encontrou num café um louco que "dizia conhecer o hino suíço. E berrava: 'tudo bem, tudo bem, tudo bem.' Refleti muito quanto a esse hino esvaziado de todo o seu conteúdo. 17 Ele tinha um enorme significado". 18 Esse hino esvaziado de todo o seu conteúdo é efetivamente o signo reduzido ao seu valor de significante e esvaziado de todo significado; ele tem um significante único: "tudo bem". Mas, para Bernard, é justamente essa ausência de todo elemento significado que o fascina, pois esse vazio parece agir à maneira de uma entrada de ar. Imediatamente, ele lhe atribui toda uma série de significações benéficas - de acordo com o significante "tudo bem"-, significações que ele especifica apenas por esta observação: "ele tinha um enonne significado". Mas, doravante, tudo que tem alguma ligação com esse significante que é o "hino suíço esvaziado de todo o seu conteúdo" toma, por uma espécie de jogos de associação entre significantes, um igual e igualmente obscuro valor benéfico. Assim, a 1O de outubro de 1951, ele anota um encontro com o "louco pedalando": "Ele tinha o rosto alegre e segurava com o braço erguido, louco sublime, um pequeno escudo vennelho tendo no centro a cruz branca suíça." 19 O significante da cruz suíça "lhe alegrou subitamente o coração, e lhe lembrou esse louco ... que cantava tão desafinado o hino suíço". Conclui então, melhor do que nós faríamos: "O meu louco

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pedalando me mostrava realmente, com a insígnia suíça, que tudo ia bem."2 "Cheguei ao pátio da escola animado, com o olhar alegre, e dei de cara com o meu inspetor, o sr. L., que foi a pessoa mais simpática do mundo comigo. Tudo ia muito bem." Agora, podemos tentar fonnular de modo simples o que pode caracterizar a psicose em função do signo, do significante e do significado, e distingui-la da neurose. Assim, quanto à neurose, é fácil compreender que se trata principalmente de uma perturbação que se situa no nível do uso das relações significativas, isto é, das relações entre os signos cuja função, como vimos, é evocar-se reciprocamente; o obsessivo usa até essa propriedade fundamental do signo para construir sua rede obsessiva, cujo efeito é, pelo menos, diminuir a livre circulação do sentido. Esse distúrbio no nível das relações entre os signos é a própria evidência na observação das neuroses: curtos-circuitos, relações privilegiadas, relações proibidas, relações por desvio, são habituais e facilmente reconhecidas. Agora, devemos acrescentar, para embaralhar um pouco as cartas, que uma perturbação dessas acarreta forçosamente uma repercussão no nível da constituição de certos signos, pelo menos para reforçar o valor de uma dessas faces, significante ou significada. Mas na psicose, se as relações entre os signos estão assim perturbadas, isso é apenas um aspecto menor de um distúrbio muito mais fundamental: a alteração primeira se situa no nível da própria constituição do signo. Essa alteração pode, logicamente, tomar duas formas, constituindo ambas um signo patológico, monstruoso, de certa maneira: Signo feito de um sign{ficado sem significante, e principalmente Signo feito de um sign{ficante sem sign{ficado. Signo monstruoso, pois não corresponde mais à sua própria natureza e então une qualquer coisa, forma ou conceito, ao elemento que falta. Assim, podemos indicar, a título de referência, que o uso principalmente significante do signo só especifica insuficientemente o fenômeno psicótico, mas responde à opinião corrente, segundo a qual o psicótico faz uso das palavras "num sentido dele mesmo", isto é, nos fornece signos com ausência de conceito. Mas essa correspondência entre a opinião comum e nosso ponto de vista não deve nos impedir de constatar que essa mesma dissociação na constituição do signo pode ser menos aparente, e até passar despercebida, desde que o significante em causa, mesmo esvaziado de todo o seu conteúdo, conserve no discurso um lugar aparentemente nonnal. Assim, quando Bernard nos fala da carteira verde do seu amigo Guy, 21 o significante "verde" conserva aqui a aparência de um signo normal, de uma palavra que se encontra no seu

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lugar certo; entretanto, sabemos pelo relatório das experiências delirantes que o significante ou fragmento de cadeia sonora "ver" se encontra indiferentemente, com o seu poder maléfico, aparentemente ligado a conceitos muito diversos, fora do conceito de cor: ver de terre [= minhoca], a letra V, e como fragmento significante no interior de outros significantes: verlseau [= Aquário], verltebre [= vértebra], e principalmente o aforismo: "l'intro/verlsion c'est !e ver solitaire" [= a introversão é o venne solitário]. 22 Ora, em todo esse encadeamento delirante, o que importa, sob todas essas formas, é o significante "ver", independente de todo conceito, mas ligado a um valor elementarmente maléfico, ao contrário do significante "suíço", por exemplo, carregado de valor benéfico. Do mesmo modo, em um nível de análise menos literal, pode-se dizer quanto a Schreber - se considerarmos, com J. Lacan, que para ele a questão da procriação é primeira, assim como a função do pai na procriação - que o significante "pai" não parece responder, para Schreber, a nenhum significado, a nenhum conceito, o que não impede que ele possa empregar essa palavra de maneira aparentemente pertinente. O significante "pai" toma então indevidamente o valor de signo quando posto em circulação no discurso, mas seu verdadeiro valor, no caso, é indicar a ausência, a falta do significado ou conceito "pai": é assim que conviria compreender a linguagem do delirante em sua dimensão propriamente patológica. Se quise1mos praticar, por nossa vez, o jogo das comparações sugestivas, poderemos dizer que esse uso do signo no seu aspecto puramente significante funciona, para o sujeito, mais ou menos à maneira de um pisca-pisca, que, em vez de indicar a intenção do motorista, indicaria para si mesmo a direção que deve tomar. Inversamente, nos distúrbios da série mais puramente esquizofrênica, parece que os conceitos, os significados, não conseguem se constituir como signo por associação estável com um fragmento de cadeia sonora ou significante. O signo, assim amputado de todo laço estável com um significante, introduz o valor próprio do significado, isto é, o valor próprio do ou dos conceitos em toda fonna que ele investe. Toda palavra, toda coisa, toda fonna, todo devaneio se toma significante de um conceito sem nome. Desejaríamos agora, antes de concluir esse breve estudo sobre o uso da linguagem pelo delirante, dar uma indicação sobre o valor preeminente dessa categoria do significante, pois a cadeia sonora, falada ou escrita, está aqui conosco, antes de nós, nos textos sagrados, em toda a literatura, nas leis e também- é o que queríamos indicar - no incons-

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ciente. Depende de nós, aqui e PC?r toda a parte, conservar a sua letra ou recuperar o seu espírito. Parece-nos, pois, que é por um estudo atento da língua que poderemos detectar o que, no psicótico, produz sua alteração específica e reconhecer ao mesmo tempo o modo eficaz de tratá-lo; assim, numa primeira abordagem, pareceu-nos que para o delirante a verdadeira significação de ce11as palavras era justamente indicar, pelo uso de um significante "desligado" de qualquer junção, a ausência, a falta do significado que pudesse lhe corresponder. Uma vez mais, devemos reconhecer a extrema perspicácia dos doentes e citaremos aqui, antes de abordar a questão mais precisa da comunicação, esta observação de Schreber, no capítulo XV de suas Memórias: "Os pássaros miraculados não compreendem o sentido das palavras que dizem; em compensação, eles dispõem de uma suscetibilidade natural para a consonância dos sons."

Os modos de comunicação com o eu psicótico Nada melhor para introduzir a questão de que vamos tratar agora do que esta observação de Schreber, cuja penetrante intuição marcou, para todo psicotcrapeuta, o mundo da psicose: "Dizem que sou um paranóico e dizem que os paranóicos são pessoas que referem tudo a si próprias; nesse caso, eles se enganam, pois não sou eu que refiro tudo a mim, é esse Deus que fala sem cessar no meu interior, por seus diversos agentes." Lembremos também como Bernard fonnulava implícita e explicitamente a questão da sua própria subjetividade: 23 "Por que me escolheram, quem sou eu, quais são os projetos de Deus para mim?" Se, por um lado, ele tem o sentimento muito vivo da sua própria subjetividade e se afinna como testemunha irredutível "incômoda por sua moralidade", é preciso reconhecer que tanta segurança esconde mal a inquietação profunda, verdadeiramente metafisica, que se encontra no centro da maioria dos delírios desse tipo, e que a pergunta "quem sou eu?", que acabamos de citar, só traduz muito pouco. É ele uma testemunha de Deus, um ser excepcional, plenamente responsável, ou, pelo contrário, como toda a sua experiência poderia fazer com que ele admitisse, é ele apenas um objeto que se rebaixa, que se humilha, que se persegue, para reduzi-lo verdadeiramente? O "plano geral" 24 do seu delírio indica bem essa preocupação:

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Objetivo: abaixamento da consciência do sujeito; inspirar o complexo de inferioridade nele; tomá-lo tímido, rebaixá-lo. Sempre se ataca na fraqueza do morto.

Aliás, a rigor, é de reduzi-lo ao estado de cadáver que se trata. Toda essa série de experiências, inauguradas pela cena humilhante imposta pela mãe na confeitaria, 25 tornou-se o alimento preferido dos temas delirantes persecutórios. Mas é claro que a pergunta subjacente sobre o modo de afirmação da sua própria subjetividade permanece única. Mas, correlativamente a essa interrogação quase metafisica sobre a sua própria subjetividade, levanta-se a da qualidade própria de outrem; logo fica evidente que o sujeito delirante pode apenas reconhecer um único outro, um único sujeito verdadeiro. Todos os outros sujeitos não são verdadeiros sujeitos responsáveis; são apenas instrumentos nas mãos de um mestre. A maioria, senão todos os indivíduos encontrados são apenas, a partir de então, como diz Bernard no começo do seu diário (30 de novembro de 1950), 26 "agentes provocadores", "fanáticos subvencionados", e todas as experiências se tornam "cenas planejadas". Logo só restam no mundo dois sujeitos verdadeiros, o delirante e seu perseguidor, um único eu e um único outro, em tomo dos quais tudo gravita; ele, Bernard, testemunha do lado de Deus, em direção ao qual, embora descrente como Schreber, ele se sente chamado; do outro lado, à sua frente, as potências que querem destruir a única testemunha. Pode-se dizer que encontramos essas constantes estruturais na maioria dos delírios de tipo paranóico. Como explicar essa subjetividade inquieta e sua produção delirante, como compreender essa dualidade subjetiva inexorável, que marca o resultado do delírio e, principalmente, como responder quando o paciente nos interroga? É isso que nos leva a considerar, em seu conjunto, os problemas de comunicação e de intersubjetividade. Quem/à/a a quem e de quê?: essa poderia ser nossa questão liminar. Antes de tudo, o problema assim levantado, "quem fala a quem?" não poderia ser concebido sem o suporte de um estudo visando a situar mais precisamente as relações do sujeito com a comunicação por excelência que são a linguagem e a fala. Essa preocupação, fundamental a nosso ver, constitui a própria essência do trabalho que se efetua sob o impulso e a direção de J. Lacan. É a esses trabalhos mais recentes 27 que devemos remeter o leitor que deseje reconhecer o progresso que constitui, no estudo das relações do sujeito com a linguagem, a distinção, no

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seio desse mundo de significação, dos seus elementos: o significante e o significado. Em última análise, o problema da comunicação só poderá esclarecer-se em relação com um estudo aprofundado da estrutura do significante, cuja cadeia simbólica centra verdadeiramente todo diálogo. Mas, para voltar à nossa questão, observemos que a intersubjetividade se tornou um lugar-comum nos discursos sobre a psicanálise; por isso, o que essa noção encerrava como verdade necessária logo se desvaneceu numa confusão velada por essa palavra sugestiva. Tentaremos pois, com J. Lacan, retomar o estudo da relação entre dois sujeitos, com o que ela comporta de irredutível e de ambíguo, pois é certo que, fora do mundo psicótico, a relação nunca se estabelece verdadeiramente entre dois, mas entre três sujeitos; é a alma do complexo de Édipo e o fundamento racional da relação edipiana, mas não poderíamos estender-nos aqui sobre esse ponto, que se liga mais particulannente ao estudo das neuroses. Para simplificar as coisas e até usar um esquema cuja enganosa simplicidade não deve nos fazer esquecer essas poucas observações liminares sobre a verdadeira dimensão da relação edipiana, vamos representar por S e A os dois sujeitos (o sujeito e o outro) da relação intersubjetiva. Mas há outro elemento, que devemos introduzir logo nessa relação; é o eu. Hoje, não se tende mais a confundir teoricamente o "cu", conceito psicológico, com o "sujeito". Entretanto, é preciso reconhecer que, na prática, a confusão que faz do eu o sujeito em questão ainda é freqüente. Mas é claro que nenhum sujeito poderia reduzir-se ao seu cu mais próximo do personagem, da aparência ou do papel do que da consciência ou da subjetividade propriamente dita, daquela que, a rigor como ponto central e virtual, participa essencialmente da ordem simbólica, tal como a definimos acima; o eu parece, pois, no mesmo sistema de referência que adotáramos para situar a experiência do real, situar-se muito facilmente do lado da ordem imaginária. Sem querer entrar aqui em discussões mais propriamente psicanalíticas sobre a concepção do eu, nos proporemos adotar, na perspectiva que escolhemos, esta definição do eu: O eu é o lugar das ident(ficações imaginárias do si1jeito. Nossa intenção é principalmente indicar com isso a função imaginária do "eu" (fonnação, defonnação, infonnação), por oposição ao caráter simbólico do "sujeito". Assim, em nosso esquema, designaremos por a o eu do sujeito Se a' o eu do sujeito A, pois é sob as fonnas do eu que aparece, para cada um, a subjetividade própria do outro ("a" por referência a "outro").

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Podemos agora esquematizar a comunicação, tal como ela se estabelece usualmente entre dois sujeitos, por uma linha sinuosa em fonna de Z. Z que vai de S para a, de a para a', e depois para A, ou vice-versa. O que queremos indicar com esse esquema é o desvio necessário por a e por a', pelos "eu", para juntar os dois sujeitos Se A; esse é o modo habitual, "de você para mim", da comunicação intersubjetiva, que não poderia ter um caminho mais direto, a não ser em alguns casos muito particulares. Chamaremos então o eixo que une a-a' de eixo imaginário, na medida em que une os dois "eu", cuja função imaginária sublinhamos, e chamaremos a diagonal virtual S-A, representada em pontilhado, de eixo simbólico, pois efetivamente ele chega ao centro virtual, puramente simbólico, de uma subjetividade in-edutível por natureza. Graças a esse esquema simplista (e como todo esquema, parcialmente falso), podemos agora indicar mais comodamente em que ponto se acha perturbada a via de comunicação que deve nos dar acesso ao mundo da psicose. Para que uma comunicação se estabeleça entre S e A, é necessário que os diferentes segmentos do desvio em forma de Z se juntem integralmente. Ora, se existe um fato clinicamente certo, como acabamos de lembrar, é que o psicótico se encontra no maior embaraço quanto à sua própria subjetividade e quanto à subjetividade do outro. Com efeito, a comunicação só é possível na medida em que, quando eu falo (pelo órgão do meu eu), reconheço que sou eu que falo como sujeito, na medida em que assumo as palavras pronunciadas por mim; do mesmo modo, quando presto atenção ao discurso do meu interlocutor, sem tomá-lo em geral ao pé da letra, ajusto suas palavras à medida da subjetividade que eu lhe atribuo, esforçando-me para reconhecer a intenção mais QU menos controlada que o anima. Ora, é justamente isso que não podemos mais fazer com o psicótico; é esse ajuste da sua palavra à medida da sua subjetividade que não conseguimos mais realizar, e isso por boas razões. De fato, não apenas, como afirma a linguagem comum, ele nem sempre sabe o que diz, mas

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principalmente ele não reconhece o que diz e, segundo ele próprio confessa, "isso fala" ele; mas que ele não saiba ou não reconheça o seu dizer não significa que não compreenda o que é assim articulado. Da mesma forma, também não pode reconhecer verdadeiramente como seu o seu discurso, que ele afirma lhe ser sugerido, imposto, transmitido à distância, por exemplo; não pode, também, fora de qualquer interpretação projetiva desse tipo, assumir simplesmente, como sujeito, certas palavras que articula; não pode ajustar à medida da subjetividade do outro as palavras que lhe são dirigidas por seu interlocutor. 28 Referindo-nos ao nosso esquema, é como se a comunicação se encontrasse, de certa fonna, interrompida entre S e a, entre o sujeito e seu eu, e como se o delirante se comportasse ora como uma subjetividade radical participando da essência divina como testemunha irredutível, ora como um personagem, um eu, vivendo de uma dialética imaginária mas incapaz de se referir ao seu centro subjetivo simbólico; esse eu, excluído de qualquer referência subjetiva, torna-se então presa de um pseudo-racionalismo puramente imaginário, aberto às influências e manobras à distância, vítima designada de todas as intenções imaginárias de outrem, que tomam então corpo e realidade, poderíamos dizer, nesse meio imaginário cortado de toda referência simbólica. Correlativamente, como vimos, o interlocutor é geralmente reduzido a um fantoche, a esse "fanático subvencionado", ou seja, ao personagem a', que é seu eu em sua aparência na verdade puramente fonnal. Ou então, desprezando todas as aparências, o delirante só vê no outro essa subjetividade alternada, a manifestação desse Mestre que dirige a maioria dos outros "fantoches" ou, como diz tão adequadamente Schreber, essas "sombras de homens atamancados". Poderíamos então representar no nosso esquema esse estado de coisas por uma ruptura entre Se a, e também entre A e a', de modo que a única via de comunicação restante seria a-a', que constitui, segundo nossa definição, o eixo imaginário da comunicação intersubjetiva. É assim que somos levados a figurar o tipo de relação delirante paranóica que se estabelece entre dois "eu", entre dois imaginários, e destinada, a paiiir de então, a todos os excessos e todas as contradições flagrantes inerentes a essa ordem imaginária, patologicamente separada do seu correlativo necessário a uma sã apreensão da realidade, isto é, a ordem simbólica. No plano imaginário, que é também de uma certa maneira, porém diferente, o do obsessivo, é o reino do espelho da dialética especular, da miragem, da dúvida, de uma dualidade sem recurso, de uma oposição dual irredutível; é também o lugar de eleição de todas as elaborações pseudo-racionais, das construções obsessivas de mórbido ra-

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cionalismo da lógica paranóica de causalidade delirante; nesse mundo da imagem e da fonna, cm que toda combinação se torna possível oposição, fusão, comparação, jogos de significantes principalmente as razões se imbricam indefinidamente umas nas outras para atingir no delírio a exuberância de uma imbricação de células cancerosas; a perda de toda referência verdadeira e solidamente subjetiva parece explicar esse "descentramento" simbólico fundamental. É assim que, no mundo imaginário - o da relação paranóica - só pode haver dois seres, o bom e o mau, que se enfrentam eternamente, irredutivelmente, numa luta de morte: "O mundo, diz Bernard como tantos outros, está dividido entre as potências do Bem e do Mal: há duas correntes, a da esquerda, a má, a da direita, a boa. Estou na interseção das duas ... " 29 Como observamos acima, é também o tipo de relação que, em comparação com a relação ternária do Édipo, chama-se, em psicanálise, relação pré-edipiana; mas essa relação puramente dual assume no delírio um caráter absoluto e um desenvolvimento desconhecido no nível da neurose. Assim, essa parece ser a situação, representada pelo nosso esquema da comunicação, do psicótico delirante; limitado ao eixo imaginário a-a', ele se acha confinado numa relação dual tipicamente imaginária, em que o confronto agressivo se perpetua num jogo indefinido de espelhos. Incapaz de reconhecer o centro simbólico da sua subjetividade, ele usa, como todo mundo, a linguagem comum; mas vimos que essa linguagem logo se tornava a testemunha eloqüente desse exílio subjetivo, por meio do deslocamento dos seus elementos constituintes, transformando em signos significantes aberrantes sem significado. Doravante, podemos dizer que o sujeito não controla mais o sentido da linguagem que fala, e que, em vez de conduzi-lo e escolhê-lo, é possuído por ele. Assim acontece com Bernard, quanto à palavra "verde", e com isso ele sofre o que deveria assumir. Numa fórmula mais breve, poderíamos dizer, com J. Lacan, que o delirante "é falado", mas não fala mais. Nosso esquema, ilustrando de modo simples dois eixos de comunicação, o eixo imaginário e o eixo simbólico, nos convida acessoriamente a considerar esse eixo S-A, do qual pouco falamos até agora: tudo indica que ele também não poderia ser utilizado tal qual, fora do desvio imaginário necessário. Se é indispensável que o sujeito que usa habitualmente o eixo a-a' para suas comunicações saiba e se lembre a todo instante que se trata, na verdade, não de uma via autônoma, mas de um segmento do caminho que leva de S para A, é não menos necessário que aquele que pretende explicar alguma relação intersubjetiva privilegiada se lembre da indispensável mediação imaginária. Também, nesse pon-

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to, é só no mundo da psicose que podemos encontrar essas tentativas de comunicações diretas, rigorosamente intersubjetivas, escapando a qualquer formulação racional; evocadora, por alguns de seus aspectos, de experiências místicas de altíssima qualidade simbólica (mas que se ligam a uma subjetividade reconhecida e controlada como tal), a relação delirante intuitiva se distingue justamente pelo fato de que ela é imposta, ou no máximo imaginariamente controlada. Existe aqui um fato que não podemos ignorar: o delirante, cativo do seu mundo imaginário, excluído do seu próprio valor subjetivo, tenta a qualquer preço encontrar em outro lugar a possibilidade simbólica fundamental que perdeu; este surge da maneira mais inesperada e mais desordenada em qualquer ponto do seu mundo e nada poderia resumi-lo melhor do que a conclusão que Bernard nos dá para uma tentativa deracionalização delirante: "o ESPÍRITO YIGIA". 3 Mas se Deus ou o diabo surgem de todos os lados, ao apelo velado desse mundo delirante, é, apesar de tudo, sempre imaginariamente, e de um modo falsamente racional, que o psicótico tenta explicar esse surgimento simbólico que ele próprio provoca sem cessar. Assim, podemos talvez tentar explicar com mais eficiência as inesgotáveis contradições do mundo delirante, de onde surgem, às vezes sem ligação e sem significação, as verdades mais fulgurantes e as intuições mais profundas. Nada poderia ilustrar melhor, ao mesmo tempo, o mecanismo do processo delirante e aquilo que ele nos oferece assim a compreender, o tema da /ínguajimdamental de Schreber, fonna acabada do projeto de reencontrar a organização imaginária de um plano simbólico, desligado de qualquer "encarnação" fonnal; 31 mas não poderíamos aqui dedicar-nos a esse estudo, que se afasta demais do nosso objetivo, embora sejamos levados a citá-lo. Entretanto, antes de concluir esse esquema da comunicação intersubjetiva, desejaríamos indicar como ele pode nos ajudar a representar, muito imperfeitamente mas de modo cômodo, o estilo de relação esquizofrênica no qual é o eixo S-A que é enfatizado, em detrimento do desvio contingente a-a'; como indicamos brevemente no momento de examinar a questão da experiência da realidade, parece que o esquizofrênico despreza o seu aspecto imaginário e fonnal, para ver apenas valor simbólico em todas as coisas. É realmente à maneira de uma subjetividade resguardada numa negação primitiva de toda ident{ficação imaginária controlada que o esquizofrênico vive sua relação com o "outro", que não merece, no seio da sua subjetividade radical (do seu autismo), nem mesmo o nome de "outro". Terapeuticamente, todo o trabalho consistirá, por qualquer meio, em lhe restituir o uso da sua fun-

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ção imaginária (do desvio a-a'), em dar-lhe acesso a alguma identificação por natureza imaginária, ou seja, dar-lhe um "eu". O conjunto dessas considerações sobre o problema da subjetividade e a fórmula figurada da comunicação intersubjetiva que propusemos não devem nos fazer esquecer aquilo que uma tal simplificação tem de artificial, reduzindo a dois sujeitos os pólos da comunicação. Entretanto, se utilizamos essa esquematização, é porque nos pareceu necessário mostrar o que uma tal conceitualização dos problemas propostos pela experiência clínica pode e deve acanctar como conseqüências para nossa ação. De fato, é muito claro que nossa fórmula figurada pode, na confusão do diálogo com o psicótico, ajudar-nos a reconhecer a todo instante quem fala, de quem e a quem; que ela pode nos ajudar a distinguir o plano totalmente imaginário, em que nossos raciocínios se esgotariam, da relação puramente narcísica, em que o delirante se mantém, do seu recurso desordenado ao simbolismo de uma subjetividade perdida. Isso pode nos ajudar a compreender os princípios que deverão guiar nossa ação, quando tentarmos devolver ao delirante o uso da sua subjetividade e centrá-lo de novo em torno do seu próprio valor simbólico. Sem detalhar o que esses princípios impõem à nossa ação, observemos até que ponto uma tal concepção pode permitir ajustar nossas palavras ao nível de uma justa prudência, que, sem participar em nada da relação dei irante imaginária, saibam testemunhar uma subjetividade autônoma "terceira", única a poder fazer com que, pela sua permanência e pela sua independência, o doente volte a um modo de comunicação mais aberto ao processo dialético verdadeiro e ao progresso terapêutico.

Problemas dinâmicos Um dia ou outro, Pierre, Bernard, qualquer delirante nos faz esta pergunta angustiada, que marca sua perplexidade e seu desânimo: "Por que sou atormentado assim? Eu sempre tentei agir da melhor maneira, ser um homem honesto." Apesar de tudo que essa fórmula contém deresposta explícita à maneira paranóica, isto é, "são os outros, ou um outro, que fizeram de mim isso", continua abe1ia a questão de uma ce1ia gênese dos distúrbios, e até da.força, suposta exterior, que levou o sujeito ao estado em que se encontra. É esse aspecto dinâmico do distúrbio delirante que desejamos abordar agora. Sempre tivemos o cuidado de marcar bem, no estudo dos problemas estruturais, o caráter profundamente original, inedutível aos aspectos neuróticos comuns, dos processos psicóticos.

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Nossa intenção continua a mesma, na abordagem dos processos dinâmicos, pois pensamos que os conceitos habitualmente utilizados no estudo das neuroses não poderiam explicar fenômenos psicóticos, e isso por duas razões de ordem diferente: a primeira é que os conceitos de regressão, de recalcamento, por exemplo, estão insuficientemente elucidados no próprio uso que se faz deles na teorização da neurose; a segunda é que esses conceitos, mesmo elucidados, não poderiam ser utilizados no estudo da psicose, sem implicar o risco de uma atitude a priori, que seria, como diz H. Ey, a neurotização da psicose. Mas existe uma dificuldade suplementar intrínseca à abordagem dos problemas dinâmicos em geral, para os quais a imagem, por mais matizada que seja, sempre trai a esfera de influência própria à coisa em questão: isso ocorre com o conceito de regressão, por exemplo, cuja imagem sugerida vela o seu sentido. É por isso que temos o hábito, mesmo quanto aos problemas referentes à neurose, de fonnulá-los em termos de pergunta. Nunca perdemos de vista que o neurótico, pelo próprio fato de nos procurar,faz uma pergunta, ce1iamente velada, mas sempre interrogação, mesmo que se apresente sob a fonna de uma afinnação que se pretende perfeitamente lúcida. E devemos ouvir bem essa pergunta, cuja maneira e cujo estilo variam, segundo se trate, por exemplo, de uma histérica ou de um obsessivo; em outra ocasião, 32 insistimos no traço próprio da pergunta da dúvida: "isca problemática e interrogativa" e, num trabalho mais recente, 33 arriscamo-nos a formular simplesmente o que opunha a interrogação fundamental da histérica: "Sou homem ou mulher?" à do obsessivo: "Sou ou não sou?", que se apresenta efetivamente sob a forma de uma negação dupla, mesmo assim dubitativa: "Não sou nem homem nem mulher, nem objeto nem sujeito." Não nos deteremos nessa maneira que temos de observar o caráter interrogativo da sintomatologia neurótica, para tentar, em cada caso, saber quem interroga, sob que fonna e a quem se dirige essa pergunta sempre velada; mas é certo que usamos de um instrumento conceituai mais eficaz, pois muito menos mítico do que o da seqüência frustração-agressividade-regressão, cujo uso clarividente exigiria um sólido conhecimento da significação real dos três tennos que a constituem. Assim, se nos parece certo que a característica do neurótico é fazer uma pergunta - aliás, não só ao terapeuta, mas a todo mundo-, o psicótico faria o mesmo? E será que se pode dizer que ele faz uma pergunta? Sobre esse ponto, a experiência pode nos dar impressões diversas: se é evidente que certos psicóticos não fazem nenhuma pergunta, mas vivem e se expõem precisamente sem interrogar verdadeiramente o outro, há alguns cuja perplexidade ansiosa, cuja repetição estereotipada de

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certas fónnulas e cuja tagarelice insistente dão toda a aparência de pergunta feita. Ora, todos sabemos que não basta responder-lhe, como fazemos com o neurótico, introduzindo-o até, com o seu pleno consentimento, num longo diálogo psicoterápico; em geral, nossa resposta não basta e é isso que motiva praticamente nossa interrogação sobre a natureza da pergunta psicótica: como ouvi-la e como responder a ela? Ora, nossa impressão, fundada em nossa experiência clínica, é que o psicótico não faz mais verdadeiras perguntas. A característica do psicótico é - sem que ele saiba, é claro - já ter respondido, por sua entrada na psicose, à pergunta particular que se apresentava a ele, e que ele poderia outrora (ou talvez nunca) ter-nos feito. É a sua própria resposta à pergunta por ele sustentada quanto a uma falta vivida, é sua própria resposta que ele nos propõe com a sua vida delirante, que ele nos expõe assim, sem mais questioná-la, mas servindo-se dela como do fruto de uma experiência valiosa. Como diz J. Lacan: "A pergunta psicótica não está aberta a nenhuma composição dialética propriamente dita", ou ainda: "A pergunta é feita por nós mesmos, por nossa própria perplexidade diante da resposta que o psicótico nos propõe", para retomar uma formulação de F. Perrier. 34 O problema de saber como responder à pergunta psicótica muda então de sentido e se torna: como retraduzir em pergunta a resposta

psicótica, como .fàzer voltar a um movimento dialético aquilo que se apresenta justamente como estando fora de toda dialética? Estou persuadido de que essa é a verdade mais aparente que, se sabemos utilizar, deve pennitir-nos projetar uma luz salutar no mundo da psicose, e guiar verdadeiramente nossa ação terapêutica. É um fato dificilmente contestável que a experiência psicótica se apresenta como que cortada de toda composição dialética, vivendo de si mesma, exatamente como a experiência obsessiva, mas com um grau a mais, uma espécie de dialética interna, autônoma, imaginária. Mas o próprio fato da constatação de uma experiência de existência cortada do movimento dialético propriamente humano nos apresenta um problema de ordem especificamente dinâmica, a gênese ou a origem de um talestado. Não desconhecemos o paradoxo inerente a essa pergunta, que questiona, de certa fonna, a gênese e a estrutura temporais de um modo de existência que se pode afinnar, com razão, excluído do tempo da nossa experiência comum. Trata-se de um problema fundamental, que propomos retomar sob o ângulo da "psicogênese" e da temporalidade, num estudo que não poderia ser feito aqui.

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Deixando assim pendente o problema mais propriamente metafisico da temporalidade que encontramos, parece-nos todavia necessário, para não cair na confusão, ilustrar o que pode ser a experiência psicótica fundamentalmente excluída de qualquer dialética, recoITendo a um conceito freudiano habitualmente ignorado, mas cuja indicação maior se encontra no estudo da alucinação do dedo coitado do Homem dos Lobos, o conceito de Ve111 e1ji111g, rejeição,foraclusão, como o traduziu J. Lacan, distinto do conceito de recalcamento neurótico, ou Verdran1

gung. O que se deve entender por essa "foraclusão" que, ao contrário do recalcamento gerador de neurose, conteria em si o germe da evolução psicótica, alucinação e delírios? Se o recalcamento se concebe facilmente como a colocação entre parênteses ou a ocultação astuta de uma experiência já virtualmente estruturada, se também é fácil compreender que o que foi assim velado possa novamente, graças a circunstâncias favoráveis, ser desvelado e re-integrado à corrente dialética da experiência, a foraclusão, ao contrário, marca um acontecimento que é mais dificil de descrever em seu advento e em suas conseqüências, pois não é fácil descrever um acontecimento que ocoJTe precisamente no nível dos fundamentos de qualquer estrutura, no nível do próprio sign(ficante. Se imaginarmos a experiência como um tecido, isto é, ao pé da letra, como um pedaço de pano constituído de fios entrecruzados, poderíamos dizer que o recalcamento seria representado por algum furo ou rasgão, mesmo importante, sempre passível de ser costurado ou detido, enquanto a foraclusão seria representada por alguma abertura causada pela própria tecelagem; a foraclusão seria uma espécie de buraco origina 1incapaz para sempre de recuperar sua própria substância, pois esta nunca teria sido mais do que substância de buraco; esse buraco só poderia ser preenchido, sempre imperfeitamente, por um "remendo", para retomar o termo freudiano que citamos no início. Entretanto, parece-nos necessário, antes de formular provisoriamente a originalidade do conceito de foraclusão, precisar em algumas palavras o nível específico do seu surgimento, isto é, o plano do significante. É literalmente no nível do significante, considerado sob o seu duplo aspecto, que esse fenômeno pode ser concebido. Nisso ele difere também do recalcamento, que se exerce no nível mais completamente estruturado (e mais complexo) das sign(ficações integradas na coJTente dialética. Podemos dizer agora, de modo muito aproximativo, que:

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Aforaclusão (Venve,_fimg) designaria assim uma experiência marcada com o selo indelével de uma falta radical, de um "BURACO NO SIGNIFICANTE" anterior a toda possibilidade de negação, logo de recalcamento. Apesar de ser quase impossível, tentaremos dar uma ilustração mais completa, mais sugestiva do que demonstrativa, desse processo; trata-se, pois, de um artificio para o qual peço antecipadamente desculpas pelo seu caráter de fantasia aparentada ao delírio e pelo tom de brincadeira, que é a sua segunda justificativa. A título de comentário ilustrado do conceito de "foraclusão", que tentamos, com J. Lacan, introduzir na compreensão do fenômeno psicótico, eis a história de um americano em Paris que, durante uma noitada, conseguiu evitar os perigos da carne (prndência mortal), mas contraiu o germe de uma doença do espírito. Esse homem sabia francês, mas ignorava os costumes do país. Para ele foi uma experiência nova, logo que desembarcou em Orly ao cair da tarde, visitar o "Gay Paris", acompanhado de um velho amigo francês. Depois das tradicionais "Folies Bergere" e de um jantar na "Lipp", a festa tenninou num cabaré de Montpamasse, de madrugada. Que horas seriam quando nossos dois amigos, alegres e midosos, se viram - se posso dizer assim - no Boulevard Raspai!, ao lado do Lutétia? Ninguém jamais saberá. Não preciso dizer que, segundo todas as probabilidades, eles se perderam na cidade por causa de uma intoxicação etílica aguda, num estado que, para maior comodidade, chamarei de "dissolução parcial da consciência". Foi então que apareceu um par de "andorinhas" (as "andorinhas" são os guardas que circulam de bicicleta durante a noite, em Paris), com sua silhueta bem conhecida dos parisienses; essas andorinhas foram assim chamadas e alegremente interpeladas pelo velho parisiense, enquanto seu companheiro imitava o grito agudo dessas aves. Os ditos pássaros tiveram então que remediar, com certo vigor, os efeitos da dissolução passageira da dupla consciência dos festeiros, para fazê-los reencontrar o hotel Lutétia. Esse encontro, que pôs fim à alegre farra, teria sido uma lembrança desagradável, caso lembrança houvesse; mas não houve lembrança nenhuma. Foi o porteiro que contou a história e nossos animados aventureiros, acreditando estar ainda no cabaré, se viram - desta vez de verdade - lá pelo meio-dia, com algumas contusões, no quarto do hotel. Como é que eles foram do cabaré até ali? Sua dignidade os impediu de esclarecer esse mistério.

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Foi só oito meses depois, voltando a Chicago após uma longa ausência, quando nosso americano sofria com dificuldades familiares, mulher, sogra e patrão, que o drama estourou. Todos pensaram ter sido por causa do medo e do barulho agudo provocado pelos aviões fazendo acrobacias e atravessando a barreira do som, durante um show aéreo, que eclodiu bruscamente um curioso delírio ornitológico: nosso amigo acreditou que era uma águia. Constmiu um viveiro no jardim, criou espécies raras, fez gravações de Messiaen· e partiu periodicamente para longas migrações. Estava louco. Essa fábula ilustra o que pode ser o objeto da foraclusão, essa "experiência não-dialetizada", cujo papel patogênico na história de um delírio supomos. Evidentemente, é a cena do encontro com os guardas de bicicleta (as andorinhas) que constitui essa experiência brutal, mas absolutamente não integrada à trama das lembranças, experiência vivida, mas não temporalizada, não memorizada. Dela só restam vestígios, aliás enigmáticos para os sujeitos: algumas contusões e o fato de estarem no hotel. Ora, o que reaparece na realidade fantasística do delírio é justamente o pássaro, isto é, de certa maneira a "andorinha" que constituíra o centro da experiência não integrada, o significante escamoteado, o símbolo recalcado, independentemente das suas correlações imaginárias. Segundo uma fórmula de J. Lacan, podemos dizer que é o que foi lançado para fora da ordem simbólica, isto é, o significante- entretanto conhecido - "andorinha", que reaparece durante o delírio, no real, ou pelo menos à maneira de experiência da realidade, tal como a definimos no nosso primeiro parágrafo, a saber, uma realidade marcada pelo selo do imaginário e privada de toda dimensão verdadeiramente simbólica. Assim, ao contrário do recalcamento, que se referiria a um elemento "associativo", podemos dizer, numa primeira aproximação, que a foraclusão se refere a um dado simbólico primeiro, ou seja, a um significante como tal, enquanto o recalcamento se referiria a um elemento do discurso constituído. O que queríamos indicar dessa maneira e a propósito desse exemplo fantasista é que o conceito de foraclusão deve nos permitir aproximar-nos mais, e de modo mais adequado, da dinâmica própria ao fenômeno psicótico, pois ele indica melhor que qualquer outro os caracteres específicos dessa "falta", cujo apelo todo clínico sente, em seu

* Compositor francês que registrou cantos de pássaros em notação musical e inspirou-se neles em sua obra. (N.T.)

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contato com o psicótico. Clinicamente, esse elemento foracluído não é evidentemente detectável, como no exemplo fantasista que escolhemos; pois o que caracteriza essa experiência não-dialetizada é precisamente a impossibilidade de recuperá-la por completo. Ao contrário do elemento recalcado que se encontra no núcleo da neurose e que sempre se pode reconhecer por algum signo ou substituto, e perseguir antes de desvelá-lo por trás de suas defonnações e de seus disfarces, o elemento foracluído é, por natureza, inacessível como tal. Mas, em contrapartida, ele se assinala pela falta que constitui; manifesta-se à maneira de uma profunda depressão, de uma espécie de entrada de ar que centra e organiza do modo mais inesperado o conjunto daquilo que se acha ao redor. O signo clínico da foraclusão é uma espécie de convergência irresistível, desordenada mas imperiosa, em direção a um centro que parece ser apenas o vazio. Ao contrário do núcleo de uma neurose, cuja convergência sintomática por ele ordenada pode ser decifrada racionalmente depois de um trabalho de restituição contrário ao da censura, do deslocamento ou da projeção, a convergência sintomática da foraclusão é desordenada, total, como um reflexo vazio do símbolo rejeitado, do significante abandonado, constituindo uma espécie de estrntura própria, original, em cujo interior se organiza um novo microcosmo de questões ilusórias, e até de neuroses císticas. Nesse aspecto, nada é mais demonstrativo do que o primeiro caso que relatamos, o de Pierre: a equivalência significativa de todos os pontos do seu discurso, a sua convergência para um tema único mas inacessível a qualquer abe1iura dialética ilustra de modo mais ou menos fantasista porém mais concreto os caracteres próprios assim deduzidos da experiência psicótica. 35 Poderíamos ir mais longe, e tentar, apesar de tudo, imaginar o que constitui, nesse ou naquele caso, a natureza do elemento foracluído? Deve-se reconhecer que não há nenhum meio racional de chegar a isso; no máximo podemos, pela própria análise do mundo da convergência que constatamos, situar aproximativamente o campo de significação no qual se produziu a foraclusão. Assim, para Bernard, parece que é em tomo de um significante que evoca o problema do sujeito, da identidade, do eu e talvez mais precisamente naquilo que um tal significante pudesse manter de relação com o pai, que se situa, muito provavelmente, o objeto da foraclusão; mas é certo que nunca poderemos afinnar nem demonstrar isso com certeza. Entretanto, há um caso privilegiado, com o qual desejaríamos levar avante nossa pesquisa: é a observação do Homem dos Lobos de Freud que, como sabemos, é constituída pelo estudo de uma neurose infantil, através da análise do adulto neurótico; ora, a essa observação acrescen-

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ta-se a análise, por R. Mack Brunswick, de um episódio psicótico que tomou a forma de um delírio de estrutura paranóica, apresentado pelo mesmo doente; tudo indica que esse episódio psicótico nasceu do fato de a análise conduzida por Freud não ter terminado, assim como de uma atitude "contratransferencial" que Freud tomou, depois da gue1Ta que arruinara e exilara o seu ex-paciente. Estamos, pois, com o "Suplemento à história de uma neurose infantil", diante do estudo e da análise de uma verdadeira psicose experimental. Parece que o estudo desse caso, que fizemos em outra ocasião, 36 poderia ilustrar de modo mais detalhado não só o mecanismo da foraclusão, mas também desvelar, de modo mais preciso, a natureza do elemento foracluído nesses casos. De fato, é pela análise da "cena primitiva" a propósito do estudo da neurose infantil feito por Freud que podemos, com mais probabilidade, reconhecer no mesmo contexto a natureza do elemento foracluído; é também pelo estudo dos efeitos do "forçamento" criado por Freud ao fixar um fim para o tratamento que podemos apreciar as conseqüências de uma perturbação imposta ao tempo próprio de cada sujeito, em psicoterapia. Enfim, permanece aberta a questão de saber por que tal experiência de foraclusão pode se tornar, e se torna, patogênica, pois é ce1to que cada indivíduo pode ter passado por experiências desse gênero, em seus primeiros anos. Aqui, a resposta seria certamente da mesma ordem que aquela que indica o que torna um recalcamento neurótico um elemento patogênico: é a experiência posterior, muitas vezes renovada, mas com alguma relação com o elemento foracluído, que reativa, retroativamente, os problemas conexos sempre não-resolvidos. Assim, para Bernard, é claro que os dois roubos de alimento 37 devem ter alguma relação com o elemento de problemática narcísica que tinha sido foracluído, e com isso reativaram o seu poder de atração. Apesar de todas as questões que deixamos abertas aqui, parece-nos que a abordagem que propomos dos problemas estruturais e dinâmicos próprios à psicose deve fazer-nos compreender melhor e guiar com mais eficiência nossa ação terapêutica. Efetivamente, temos indicado, a propósito de cada uma das questões teóricas abordadas, alguns princípios simples de trabalho terapêutico, e vamos limitar-nos aqui a lembrar os seus elementos. Identificar primeiramente o modo particular ao doente de apreensão da realidade, segundo a sua dominante imaginária ou simbólica, a fim de responder de modo oportuno, evitando reforçar, por ignorância, a defonnação patológica; ajustar também a nossa linguagem ao estilo da linguagem psicótica e, distinguindo o tipo de alteração da sua estrutura em beneficio

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do significante ou do significado, tentar restituir aos signos trocados o seu pleno valor significativo, em vez de usar ao acaso as palavras que se apresentam; saber também a cada instante quem fala, de quem e a quem, parece-nos ser uma regra essencial para uma abordagem psicoterápica racional; tal prática implica uma distinção clara entre o sujeito e seu eu, assim como uma justa apreciação de suas relações recíprocas; saber reconhecer, enfim, no seu justo nível, a questão psicótica na sua ambigüidade, é encontrar-se diante do problema dinâmico fundamental da foraclusão, que indica a atitude terapêutica: tentar simbolizar - no sentido que definimos - a qualquer preço, mas tão precisamente quanto possível, a "falta" resultante dessa foraclusão. Em resumo, essas parecem ser as poucas regras, práticas e simples, que certamente só assumem o seu pleno sentido e sua total eficácia na medida em que são o testemunho da elaboração racional dos princípios que tentamos elaborar.

Discussão Dr. Koeclzlin: A conferência de S. Leclaire é o tipo de conferência que joga com conceitos excessivamente abstratos para que se possa, sem reler longamente o texto, tomar parte na discussão. Mas isso não impede que se perceba imediatamente que a via tomada para a abordagem dos problemas da psicose e da esquizofrenia é original e parece rica em possibilidades. S. Leclaire abordou os problemas levantados pelo psicótico por meio de um estudo sobre o imaginário, o símbolo e a ligação dinâmica entre o significado e o significante, utilizando esses termos num sentido um pouco diferente daquele adotado por outros. O estudo que fez da ruptura do laço entre o significante e o significado é de natureza a nos trazer novos elementos semiológicos particulannente úteis. Todavia, pergunto-me se assim ele não descreveu apenas em outros termos a Spaltung do esquizofrênico, o automatismo mental, ou um ce1io grau de dissolução de consciência própria ao delirante; tudo isso reunido numa unidade que seria o problema fundamental dessas psicoses. Tenho certeza de que ele apreendeu uma via de abordagem preferencial da psicopatologia. Entretanto, S. Leclaire não se deteve um tanto excessivamente no plano descritivo, não fez uma obra excessivamente fenomenológica? A noção de foraclusão, à qual ele voltou, parece corresponder a uma realidade objetiva. O trajeto entre o sujeito e o eu é indiscutivelmente cortado, ou antes detido; mas resta fazer um estudo dialético desses fatos.

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Pensamos que não é possível dizer exatamente que, no psicótico, não há laços entre o significado e o significante, não há signo; isso é talvez mais verdadeiro no esquizofrênico do que no delirante, e é o estudo do signo no primeiro que, com uma terminologia um pouco diferente, tentei considerar brevemente em minha conferência "A propósito do simbolismo esquizofrênico" ("Entretiens psychiatriques", 1953 ). O que parece dominar a afetividade do esquizofrênico seria uma angústia de caráter particular, uma "insegurança abissal", segundo as palavras de Sullivan. Esta nos parece determinar a modalidade segundo a qual se estabelece o laço entre o significado e o significante, o que chamamos de simbólica esquizofrênica. O símbolo se toma a realidade e a própria expressão do esquizofrênico. Ele permite um isolamento (c01te) da realidade angustiante; mas a característica própria do símbolo esquizofrênico é pennitir a expressão da realidade sob a forma de uma imagem não-ansiogênica, desculpabilizada e de ressonância afetiva purificada. Em outros termos, os símbolos permitem transpor, situar em outro plano a angústia e transfonná-la num sentimento de natureza um pouco mais manejável. Poderíamos dizer que a iniciativa dos neologismos criados por Pierre para designar o seu impermeável têm, ao mesmo tempo, a marca da dissociação e são uma expressão progressivamente despojada de ressonância afetiva penosa de uma realidade angustiante. É claro que os símbolos esquizofrênicos apenas raramente têm uma significação unívoca, e são também vizinhos, nisso, da maioria dos símbolos estéticos. De qualquer forma, parece que é graças à sua compreensão (que, evidentemente não se faz no plano cartesiano) que o psiquiatra entrará em contato com o esquizofrênico e será capaz de conduzir sua psicoterapia. Dr. Green: A tentativa de Leclaire é daquelas que, durante encontros ou debates, oferecem a possibilidade de fonnular, se não um manifesto, pelo menos uma profissão de fé. A amplitude da sua perspectiva tende a recobrir tão perfeitamente quanto possível a totalidade do campo da
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