Escrita erótica
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Escrita erótica...
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EGON SCHIELE/PAIREMBRACING 1917/REPRODUÇÃO
CON TI NEN TE
CAPA
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A ESCRITA
ERÓTICA Impulsionado pela imaginação de cada um, o prazer da leitura de textos licenciosos evidencia muito mais o que é esse tipo de literatura do que classificações de gênero TEXTO Priscilla Campos
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CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO
Com o intuito de articular uma circunscrição precisa da temática obscena em escritos literários, tomemos como exemplo os títulos de dois capítulos presentes na análise ensaística Esses livros que se leem como uma só mão – leitura e leitores de livros pornográficos do século 18, assinada
pelo acadêmico francês Jean-Marie Goulemot. São eles: Os efeitos de uma literatura furtiva ou a arte de mostrar o que se é ; e Dos poderes da imaginação literária. O conteúdo textual que
aparece em cada uma dessas partes não será, necessariamente, citado. A proposta é demonstrar a força de uma titulação bem-feita: nesses dois elementos editorais, podemos encontrar o impulso para iniciar abordagem crítica sobre aspectos da literatura erótica, pornográfica. De acordo com a psiquiatra, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM–USP) e fundadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex), Carmita Abdo, o prazer proporcionado pela leitura de obras licenciosas tem como origem o estímulo do pensamento, da imaginação. “Na medida em que a narrativa avança, o leitor tende a dar vazão a uma fantasia erótica. O quanto ela vai ser rica e detalhada depende do quanto ele se permite. Os detalhes apresentados naquela determinada obra e a capacidade inventiva do leitor é que vão construindo, em menor ou maior frequência, a sensação de prazer”, explica. Uma forte característica de epifania é associada, então, às obras obscenas. Ao estabelecer vínculos com a libertinagem de Sade ou com os poemas lésbicos e fúnebres de Swinburne, o sujeito processa uma inversão no posicionamento do seu desejo. O canto da sereia, que sempre esteve no mar, agora se transpõe em direção à terra (afinal, há sempre uma sereia cantando para naufragares, garante-nos o Radiohead). Unidades ocultas de nosso imaginário erótico estabelecem novo perímetro na superfície, na qual podem, enfim, urdir a tal arte de mostrar o que se é . “Existe um consenso tácito, em nossa sociedade,
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de que o erótico e o pornográfico prestam-se, em diferentes graus, a produzir a excitação sexual. Assim, os produtos eróticos – sejam eles filmes, brinquedos, livros, sites – são associados a esse fim. O entusiasmo erótico pode se dar na literatura enquanto a narrativa consiga sustentar uma suposta fantasia sexual do leitor, mas não ao tentar desmontá-la”, afirma o escritor, crítico literário e professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Wilson Alves-Bezerra. No enfoque na troca entre escritor e leitor, Alfredo Cordiviola, professor titular em Teoria da Literatura na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), destaca os pormenores
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que envolvem esse processo de receptividade. “A definição do que seja erótico ou pornográfico não depende do gênero em si, não é algo intrínseco (se mostra mais ou menos genitália, se tem ou não enredo etc.). Depende da recepção desses textos, do ponto segundo o qual são observados e das expectativas e pressupostos que são gerados na sua recepção.” Em seu ensaio, Goulemot escreve que “Por meio da escrita, da leitura e da censura do romance erótico, questiona-se o funcionamento da imaginação, e, em particular, o imaginário literário”, e continua, ressaltando o teor proibitivo dos impressos lascivos: “Tudo se passa como se, sob o ponto de vista
1 VÊNUS DE WILLENDORF
Achado arqueológico é considerado a primeira representação do nu na arte 2 KHAJUHARO
Templo indiano tem parte de sua fachada revestida com esculturas de erotismo ligado ao sexo tântrico
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deste guardião da moral pública (censor), o livro fosse investido de uma força de convicção contra a qual nada poderia prevalecer. Há, deste modo, em toda censura, sem dúvida, uma exaltação dos poderes do livro e uma degeneração, totalmente extraordinária, das capacidades de resistência do espírito humano a estas formas de subversão”. Ao longo dos séculos, o conteúdo erótico e pornográfico foi tido pela Igreja e governantes como “uma coisa rota e sagrada, que nossa ociosa imaginação pode enriquecer irresponsavelmente”, definição de Borges para a escultura da Deusa Gálica, que está exposta no museu de Genebra.
“A definição do que seja erótico ou pornográfico depende da recepção desses textos” Alfredo Cordiviola LABIRINTOS OCIDENTAIS No encalço da pista deixada pelo Atlas de Borges, os parágrafos a seguir pretendem ser “monumentos dessa vasta aventura” que engloba a história da pornografia, do erotismo e os seus entrelaçamentos com a literatura. Em História da literatura erótica, o filósofo francês Sarane Alexandrian afirma
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que o berço do moderno erotismo literário foi a Europa. Mas, antes de apresentarmos os contraventores responsáveis por novos rumos filosóficos, temos representações femininas ancestrais importantes para a formação do entendimento ocidental sobre o corpo e a volúpia. O arqueólogo Josef Szombathy foi o responsável pela descoberta, em 1908, da Vênus de Willendorf , estatueta considerada a primeira representação do nu na arte. Esculpida em calcário, a obra foi encontrada na Áustria e data de 2.500 a 2.000 a.C. Com proporções exageradas, a Vênus seria uma espécie de símbolo do culto à fertilidade. Na Grécia Antiga, houve a misteriosa figura de Safo, poetisa nascida entre
CON CAPA TI NEN TE JOHN WILLIAM GODWARD/ IN THE DAYS OF SAPPHO
630 e 612 a.C., na ilha de Lesbos, que teria assumido o papel de líder local e intelectual. Sua família, sua sexualidade, seus poucos escritos sobreviventes ao fogo, à poeira e à Igreja permanecem na pauta de pesquisadores e curiosos. Neste ano, um novo manuscrito com alguns fragmentos atribuídos a Safo foi descoberto, de acordo com a revista norte-americana e New Yorker. Vários dos seus versos ligam paixões, amores e componentes sensuais ao divino: “Pareceme ser igual dos deuses/aquele homem que, à tua frente/ sentado, tua voz deliciosa, de perto,/ escuta, inclinando o rosto,// e teu sorriso luminoso que acorda desejos – ah/ eu juro,/ o coração no peito estremece de pavor,/ no instante em que te vejo: dizer não posso mais/ uma só palavra”. De acordo com o historiador e professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Daniel Wanderson Ferreira, essa simetria com o olímpico é intrínseca ao limiar do erotismo. “Entendo que a exaltação do sexo no âmbito das artes depende, em sua origem, de uma dimensão sagrada. Isso porque não há como separar a ideia de erótico de Eros ou Cupido, quer pensemos no mundo grego ou no romano. É a partir dessa relação com o sagrado e com essas divindades que se estabelecem elementos de definição do erótico como força que, de um lado, advém do Caos, e de outro, comporta a noção do intercurso sexual e dos encontros com o outro, os quais envolvem o conceito de beleza, e o conflito alma versus corpo”, explica. A perspectiva da paixão como sofrimento e, ao mesmo tempo, como êxtase, permitiu à cultura ocidental alimentar uma rica produção artística para pensar o erótico, conforme observa Ferreira. “Já a noção de pornografia é bem posterior ao que entendemos por erotismo. O termo aparece como um neologismo para se referir à prostituição. A dimensão da mercadoria e do corpo como objeto de desejo a ser comprado ganham destaque e ligam
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a pornografia ao contemporâneo. Nesse sentido, a pornografia é filha da modernidade e já coloca o corpo no mundo com o enfraquecimento dos elementos mágicos, sagrados e essencialistas”, completa. Cordiviola lança um olhar acerca da utilização da palavra:“Em muitas épocas, houve representações que
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poderiam de alguma forma ser consideradas pornográficas, se entendemos esse vocábulo no sentido de representar da forma mais realista possível um encontro sexual (os vasos gregos, os templos indianos, as imagens fálicas) e textos que explicitavam o assunto, como o mais famoso de todos, o Kama Sutra,
3 SAFO DE LESBOS
Representação da poetisa grega pelo pintor pré-rafaelita John William Godward, datada em 1904
escritos obscenos na sociedade em seu total. “Mas a popularização do material licencioso dificilmente teria se consolidado, não fosse também o aparecimento de novas formas de representação da atividade sexual que, pautadas pela intenção realista, implicavam uma transgressão deliberada da moral”, escreve a crítica literária e doutora em filosofia Eliane Robert Moraes (confira entrevista com ela nas páginas 32 e 33), em seu artigo intitulado O efeito obsceno .
A BARCA DOS LIBERTINOS
ou os romances filosóficos franceses. Mas, por outro lado, teríamos que ver que lugar tinha a sexualidade nessas sociedades, para poder considerar essas representações como ‘pornográficas’. De outra maneira, seria incorrer em um anacronismo, julgando diferentes culturas e tempos a partir dos nossos critérios”.
Na compilação A invenção da pornografia, organizada por Lynn Hunt, vários artigos tratam sobre o tema. Num deles, a historiadora norteamericana Paula Findlen fala da importância do Renascimento como momento histórico propício (novas tecnologias de impressão, circulação aberta) para o espalhamento dos
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“Descobrir o desconhecido não é uma especialidade de Simbad, de Érico o Vermelho ou de Copérnico. Não há um único homem que não seja um descobridor”, diz Jorge Luis Borges, em um dos prólogos mais bonitos da literatura latinoamericana. Na navegação turbulenta por uma Itália religiosa e imersa na suspensão da estrutura medieval surgem as narrativas satíricas de Aretino, desprovidas de qualquer tipo de compostura. Os efeitos de uma literatura furtiva explodem pelos quatro cantos do Império Bizantino, através dos conselhos das prostitutas criadas pelo poeta: “Fale claramente e, se você quiser alguém, diga ‘foda’, ‘pau’, ‘boceta’, ‘cu’; só os sábios da Universidade de Roma não vão entendê-la”. Por meio do comércio clandestino de seus sonetos, Pietro Aretino foi responsável por reverter a Atlântida do desejo no coletivo. Moraes grafa: “Antes de Aretino, esse tipo de literatura – marcada pelo emprego dos nomes técnicos – ficava restrito a um seleto círculo de patronos e amigos doutos dos escritores licenciosos. Foi o criador dos Sonetos luxuriosos quem a tornou acessível a um público mais amplo, muitas vezes inovando seu conteúdo para atender às demandas desses leitores”. Nascido na cidade de Arezzo, o então pintor encontrou em Roma e na convivência com o papa Leão XX motivos catalisadores para sua escrita.
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Publica e escandaliza os católicos com seus sonetos, parte para Veneza e constrói, naquela terra com geografia ainda incompreensível, uma vida de festas, cortesãs e obscenidades literárias, que resultam, também, em um mecanismo manipulador da nobreza em decadência. “Divertime (…) escrevendo os sonetos que podeis ver (…) sob cada pintura. A indecente memória deles, eu a dedico a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem ver o que mais os deleita.” Do outro lado do Mediterrâneo, a França transformava-se numa paisagem cintilante nas esferas culturais e sociais. “Existe uma importância que reside na própria centralidade da cultura francesa para o Ocidente. Assim, desde a ideia da cristandade ocidental, refundada por Carlos Magno no Império Carolíngio, ou na ideia de amor apresentada por Abelardo (importante filósofo tomista, professor da Sorbonne), a concepção de corpo cristão, alma, pecado, da interdição ao prazer e tantos outros aspectos relacionados ao corpo foram enunciados em língua francesa”, ressalta o historiador Daniel Ferreira. Do centro do Iluminismo, manifestou-se a maior violência transgressora discursiva da história moderna. “Tudo permite a natureza, por suas leis assassinas:/ O incesto e o estupro, o furto e o parricídio./ Todos os prazeres de Sodoma, os jogos lésbicos de Safo, / Tudo aquilo que destrói e envia os homens para o túmulo.” Nesses versos, Donatien Alphonse François de Sade atira uma flecha no desamparo humano. Escreve o doutor em História Social Eduardo Valadares, na introdução de Discursos ímpios , publicado pela editora Hedra: “Para Sade, não havia esperança alguma para humanidade. A extinção da espécie era considerada inevitável, devido ao poder autodestrutivo dos homens, e não havia sequer motivos para lamentar tal fato. A satisfação de todos os caprichos inimagináveis, através do mais amplo delírio erótico, era o único consolo antes da destruição terminal da raça humana”. Na filosofia libertina, o marquês aniquilou categorias da moralidade, subverteu definições políticas,
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4 MARQUÊS DE SADE
Gravura de Donatien Alphonse François 5 PIETRO ARETINO
Seus escritos satíricos foram os primeiros a nomear explicitamente partes eróticas do corpo 6 GEORGES BATAILLE
Autor estabelece em sua obra a relação entre erotismo, sagrado e transgressão
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sociais, religiosas e afetivas, além de aproximar, com veemência, o obsceno e a morte. Sade e sua literatura ultrapassam qualquer metáfora encantadora que envolva tridentes, sereias e castelos submersos. Para ele, a arte de mostrar o que se é dói de forma enlouquecedora, lateja, porque o desejo é tão cruel quanto a bestialidade descontrolada de certos demônios.
MARES INTRANQUILOS Na conclusão de Esses livros que se leem como uma só mão – leitura e leitores de livros pornográficos do século 18, Jean-
Marie Goulemot questiona-se sobre a real existência de um livro pornográfico diante de tantos tipos de “confusões”. As obras seriam, então, “uma espécie de projeto impossível, um horizonte jamais alcançado, uma virtualidade hesitante”. Nessa linha do que está acaçapado, de algo que merece toda atenção que se possa dedicar, justamente por não sabermos delimitar sua presença, encontra-se Georges Bataille. Funcionário da Biblioteca da França, ele estreou na literatura com A história do olho , em 1928. “A urina, para mim, está associada ao salitre, e o relâmpago, não sei por quê, a um penico antigo de terracota, abandonado num dia chuvoso de outono sobre o telhado de zinco de uma lavanderia de província.” Para Bataille, o estímulo sexual seria uma busca psicológica pelo inútil, pelo “gasto de energia”, em vez de armazená-la, axioma difundido pelo regime econômico. Desse modo, o erotismo estaria no meio do interdito (trabalho, identidade, conservação) e da transgressão (de acordo com o escritor, substantivo que atinge, ao mesmo tempo, o humano e a coisa). Em O erotismo , o francês amarra o termo por todos os ângulos: morte, reprodução, sacrifício religioso, cristianismo. A respeito do último, ratifica: “O erotismo caiu no domínio profano ao mesmo tempo que se tornou objeto de uma condenação radical. A evolução do erotismo é paralela à da impureza”. Na opinião do crítico literário Wilson Alves-Bezerra, o desprezo e a marginalidade associados aos textos eróticos estão inseridos na nossa cultura ocidental cristã. “O frei espanhol Luis de León (1527–1591),
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“A concepção de corpo cristão e da interdição ao prazer foram enunciados em língua francesa” Daniel Ferreira por exemplo, foi perseguido e preso por traduzir do latim, no século 16, o Cântico dos cânticos . Um crime e tanto: traduzir um texto bíblico à língua corrente. Seu contemporâneo, Juan de Yepes (depois conhecido como San Juan de la Cruz, 1552–1591), foi muito influenciado por aqueles versos e depois também foi obrigado a explicar o sentido espiritual de seus poemas eróticos… A vida na cultura, diz Freud, se dá à custa da repressão de muitas pulsões, agressivas e sexuais. Com isso o vienense está
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afirmando tanto o poder transgressor da sexualidade – que pode colocar em crise as instituições – quanto o tamanho da repressão social. Assim, o território das experiências libidinais será sempre potente e transformador, quando não for reduzido à mera mercadoria”, arremata. Tanto nos seus livros lascivos quanto na construção teórica de seus estudos, Bataille consegue manter em prolongamento as questões que este texto procurou responder. A literatura erótica, pornográfica, converge a uma das ações mais difíceis de descrever: o ímpeto de alguém diante do mundo e do gozo. Nessas escritas,terreno fértil e movediço, o que fica para além do imaginário e da contínua revelação é um senso de mapeamento caótico. Narrativas e desejos formam esse atlas que não é atlas; um conjunto literário – e, por sua vez, também imagético – de elementos em mortífero regojizo.
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O EROTISMO OCIDENTAL No vórtice temporal que parte dos fragmentos da poetisa grega Safo de Lesbos e vai até os diários e contos da francesa Anaïs Nin, a produção literária erótica encontra o seu elemento comum na busca pela sensação de autonomia. O que une essas obras, tantas vezes censuradas, proibidas e motivadoras de escândalos, é o simples desejo de ruptura. Ao promover, por meio da linguagem obscena, a quebra de padrões ligados ao corpo, à sociedade e ao comportamento, escritores estiveram em confronto com conceitos filosóficos, políticos. A criação na literatura erótica remete à dinâmica do turfe (esporte que envolve corridas de cavalo) – a beleza da velocidade dos corpos convive, ao mesmo tempo, com o êxtase físico e com a constante possibilidade de violação, de uma queda mortífera em qualquer parte da pista, como indicam obras clássicas do gênero reunidas a seguir.. PRISCILLA CAMPOS
Poemas e fragmentos (Safo de Lesbos) A antologia foi resultado do que restou da obra da poetisa grega. Com uma biografia controversa e carregada de pontos incertos, Safo produziu uma poesia erótica considerada sublime. Por Platão, foi chamada de a “décima musa”. Por meio de seus versos, transformou avassaladoras paixões por mulheres em bonitas construções estéticas.
Sonetos luxuriosos (Pietro Arentino) A sátira e o despudor dos escritos de Arentino renderam-lhe a alcunha de “O flagelo dos príncipes”. A divulgação de Sonetos luxuriosos revelou seus inimigos e, forçado a abandonar a corte papal, o poeta mudou-se de Roma para Veneza. No Brasil, o livro foi traduzido pela primeira vez em 2011, pelo poeta e ensaísta José Paulo Paes.
Fanny Hill ou Memórias de uma mulher de prazer (John Cleland) Censurado nos Estados Unidos até 1966, Fanny Hill foi considerado o primeiro romance
erótico moderno. Ao narrar a iniciação sexual da jovem Fanny, que se muda para Londres aos 15 anos, Cleland empreende uma escrita elegante. O livro causou tumulto na época, principalmente entre a parcela religiosa da população. O resultado foi a prisão do escritor, dos editores e impressores, acusados de obscenidade.
Justine ou os infortúnios da virtude (Marquês de Sade) Preso há cinco anos na Bastilha, Sade constrói Justine como uma protagonista do sofrimento. A obra traz a essência da filosofia libertina: as ideias do Marquês sobre política, amor, igreja e sexo, discutidas com afinco séculos depois, estão todas ali. O virtuosismo também é analisado ao longo da narrativa, a partir da relação entre a personagem e seus torturadores.
A Vênus de peles (Leopold von Sacher-Masoch) O sadomasoquismo e a figura feminina dominadora, centrada na personagem de Wanda von Dunajew, são a base temática dessa novela austríaca. O nobre europeu Severin von Kusiemski encontra em Wanda a oportunidade de realizar seu maior desejo, que envolve a completa submissão às crueldades de uma mulher. O livro ficou em evidência quando a palavra masoquismo (que deriva do sobrenome de Leopold) entrou como vocábulo no debate psiquiátrico.
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JANIO SANTOS
Trópico de Câncer (Henry Miller) Por meio de um relato autobiográfico, o terceiro livro do nova-iorquino traz a temática erótica entrelaçada ao exílio. O personagem deixa os Estados Unidos rumo ao ambiente caótico e libertino da capital francesa, na década de 1930. Com ritmo urgente e um trabalho de linguagem ansioso,
Ada ou ardor – crônica de uma famí lia (Vladimir Nabokov) Neste romance, Nabokov trabalha a convergência entre sexo, incesto e referências literárias. Citações a Freud, Flaubert e Proust são algumas das que aparecem ao longo da história, focada na paixão de Van Veen por sua irmã, Ada. De acordo com o escritor, a temática incestuosa foi escolhida porque ele gostava do som bl em siblings , bloom , blue , bliss (irmãos, floração, azul, glória).
Trópico de Câncer
tornou-se exemplo da ideia de anarquia nos escritos eróticos.
O amante de lady Chatterley (D. H. Lawrence)
Delta de Vênus (Anaïs Nin) O total de 15 narrativas, escritas na década de 1940 sob encomenda feita por uma figura misteriosa, compõe o livro mais famoso da escritora francesa. A decadência social e a novidade em torno de experimentos sexuais e emocionais estão presentes em todos os contos. Entre os personagens, prostitutas, modelos e artistas em busca do culto ao corpo e à beleza.
Último romance do autor britânico, O amante de lady Chatterley também foi banido após o seu lançamento. Em 1960, o texto ainda sofria na Inglaterra com processos por obscenidade. A história evidencia transições sociais e políticas através da relação tórrida entre a personagem principal, Constance Chatterley e o guarda-caças Oliver Mellors.
A história do olho (Georges Bataille) O trio formado pelo jovem narrador, Simone e Marcela conduz um dos mais belos e perturbadores clássicos da literatura erótica. Objeto de estudos filosóficos, literários e psicológicos, A história do olho apresenta o erotismo através do conceito transgressor duplo (a ideia de ser coisa e, ao mesmo tempo, ser humano) defendido por Bataille.
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Entrevista
ELIANE ROBERT MORAES “VERTIGEM, EXCESSO, DESMEDIDA É O QUE DISTINGUE O TEXTO LICENCIOSO” Nesta entrevista, a doutora em Filosofia e professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Eliane Robert Moraes, analisa o poder de
transformação filosófica presente na literatura erótica e na obra do Marquês de Sade. Nos escritos licenciosos, nada permanece inocente e neutro: o leitor está submetido a uma conversão que envolve excesso e deslocamentos sociais, psicológicos. Autora de diversos ensaios sobre o imaginário erótico nas artes e na literatura, além de livros como Sade – a felicidade libertina e O corpo impossível – a decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille , Eliane
esteve em centros universitários dos Estados Unidos, França e Portugal para discutir a temática. CONTINENTE Como e quando a cultura erótica surgiu na história moderna?
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ELIANE ROBERT MORAES O ponto
de partida dessa tradição foi dado pela nova tecnologia de impressão do século 16, que colocou em circulação reproduções baratas, criando um próspero mercado para o obsceno. Mas a popularização do material licencioso também deve muito ao aparecimento de novas formas de representação do erotismo que, pautadas pela intenção realista, implicavam uma transgressão deliberada da moral. Ou seja, os elementos decisivos para a formação dessa cultura foram dados pela literatura. Ou, se quisermos, pelos escritos licenciosos de Aretino, como os Sonetos luxuriosos (1525) ou os Ragionamenti (1534-1536), textos que conferiram a certidão de nascimento à moderna
ficção erótica ocidental. Ao adotar a forma do diálogo entre mulheres – que se inicia interrogando as melhores profissões femininas para afirmar a superioridade da prostituta sobre a freira e a esposa –, o livro pretendia expor “a coisa em si”. CONTINENTE O escritor norte-americano eodore Schroeder escreveu que “não existe livro ou quadro pornográfico, existe é um olhar diante daquilo”. Em seu artigo O efeito obsceno, você traz para a análise um ensaio de Henry Miller no qual ele defende:“Não é possível encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tãosomente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha”. A linha entre o erótico e o não-erótico parece tênue e as discussões, abrangentes. Como podemos definir esse gênero literário? Quais as diferenças entre pornografia e erotismo? ELIANE ROBERT MORAES Para o senso
comum, o pornográfico é o que “mostra tudo”, enquanto o erótico é “o velado”. Contudo, para o estudioso do erotismo literário, essa distinção é falsa, senão moralista. A rigor, livros como os do marquês de Sade, de Georges Bataille, de Glauco Mattoso ou de Reinaldo Moraes são muito mais obscenos do que a pornografia comercial de uma Bruna Surfistinha ou de uma E. L. James. A diferença entre eles não está no grau de obscenidade, mas na composição formal: o valor de um texto nunca se mede por sua moralidade, mas por sua qualidade estética. Acredito que a particularidade da fabulação sexual está no inesgotável poder de multiplicar as imagens do desejo, tal qual um espelho que transforma, deforma e sobretudo amplia tudo o que nele se reflete. Vertigem, excesso, desmedida – não importa que nome se dê a tal capacidade –, esse é por excelência o traço que distingue o texto licencioso. Talvez por isso, trata-se de uma literatura que jamais se aprisiona num só gênero literário. A rigor, um “gênero erótico” teria que se definir pela reprodução de certos critérios formais, o que supõe, necessariamente, a obediência a determinadas normas de composição. Contudo, salvo algumas exceções, as obras obscenas participam do movimento geral da literatura, sem implicarem um conjunto próprio de convenções.
A tese de Henry Miller vem reforçar a impossibilidade de se fixar o estatuto literário da erótica, na medida em que, para ele, nada existe que seja obsceno “em si”. A se crer no escritor, a obscenidade seria fundamentalmente um “efeito”. Daí a dificuldade de delimitá-la neste ou naquele livro, nesta ou naquela convenção literária, o que seria confirmado não só pela diversidade de obras consideradas pornográficas em tal ou qual contexto, mas ainda pelas divergências históricas acerca do que seria efetivamente imoral. CONTINENTE Você poderia falar sobre a filosofia libertina? Como a produção de Sade encaixa-se na ideia apresentada por Lucienne Frappier-Mazur: “(…) a palavra obscena não só representa, mas é a própria coisa”? ELIANE ROBERT MORAES Quando o marquês de Sade, em 1795, escreve La Philosophie dans le boudoir – afirmando a
“Para o senso comum, o pornográfico é o que ‘mostra tudo’, enquanto o erótico é ‘o velado’. Essa distinção é falsa” alcova libertina como lugar para onde convergem a filosofia e o erotismo –, ele está, antes de mais nada, realizando uma notável síntese de toda uma tradição de pensamento. Tradição essa que, embora encontre na literatura licenciosa setecentista a sua expressão mais bem-acabada, remonta ao final do século 16, com os pensadores que opõem aos ensinamentos da fé as constatações da experiência cotidiana e da percepção sensorial, e se mantém viva durante todo o século seguinte. Porém, se aos romancistas libertinos do século 18 cabe o mérito de reunir a libertinagem erudita e o deboche de conduta, ao marquês cabe uma glória ainda maior: a de deduzir, dessa síntese, tal ordem de consequências até então jamais concebida, e sobretudo de propor, a partir daí, seu próprio sistema filosófico. Ao transportar a filosofia para a alcova, Sade não só coloca em prática as teorias do primado das sensações
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no homem, tão em voga entre os simpatizantes do materialismo na época, como também demonstra que a experiência da crueldade é a única consequência lógica a ser tirada dessas teorias. E, assim, funda um sistema em que pensamento e corpo unem-se para realizar a experiência soberana do mal, tendo como força motriz a relação entre prazer e dor. A isso seus libertinos dão o nome de “filosofia lúbrica”. Desnecessário dizer que uma tal filosofia vai se expressar por meio de uma linguagem igualmente lúbrica. Representação privilegiada da atividade erótica, a palavra pornográfica acaba subvertendo sua função abstrata de signo para ganhar um corpo próprio que, para Sade, opera em paralelo ao corpo material. CONTINENTE Por que existe uma sensação de perigo quando se associam sexo e pensamento? Que tipo de subversão inconveniente os escritos eróticos despertam? ELIANE ROBERT MORAES Gosto
de lembrar a escritora e ensaísta norte-americana Susan Sontag, que caracteriza a “imaginação pornográfica” como uma forma particular de consciência que transcende as esferas sociais e psicológicas. A ficção erótica, diz ela, aciona estados extremos do sentimento e da consciência humana, visando desorientar o sujeito, deslocálo mental e fisicamente. Por isso os textos obscenos seriam portadores de certo princípio de conversão do leitor, semelhante ao que encontramos nas literaturas de cunho eminentemente religioso. O erotismo literário coloca um problema estético particular, na medida em que privilegia as formas do excesso e, assim, viabiliza a passagem de uma consciência “social” para outra, perturbadora. Eu diria ainda mais: trata-se de uma forma de conhecimento que coloca certa questão filosófica maior, posto que abre ao pensamento a possibilidade contínua de alargar a escala humana para além da vida em sociedade. O repertório de subtemas que o erotismo aciona – bestialização, violência, perda de si no outro etc. –, seja de forma trágica ou cômica, aponta para essa constante problematização da noção de ser humano e de humanidade. P.C.
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BRASIL Boca do Inferno, o precursor Fragmentos de uma literatura obscena nacional indicam a presença de autores que usam o erótico para a crítica social
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A produção de escritos eróticos e pornográficos no Brasil traz como referência geográfica inicial as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro. Ambas configuravam importantes centros urbanos durante o período colonial, imperial e primeiros momentos da República. Na terra de Iemanjá, nasceu Gregório de Matos, poeta barroco responsável, no século 17, por uma significante mostra de poesia satírica e erótica em língua portuguesa. Seus versos, muitas vezes denominados de “profanos”, tinham como temática a dualidade, espírito versus matéria, questões sexuais versus ascetismo. Nessa mesma linha de pensamento, as musas dos poemas possuíam duas personalidades: anjo e demônio; pureza e corrupção. Por meio da galhofa obscena, o Boca do Inferno redefinia conceitos amorosos ainda tão conservadores: “O amor é finalmente/ um embaraço de pernas,/ uma união de barrigas,/
1 HILDA HILST
Em suas obras de escárnio, a escritora aponta para o estudo que empreendeu da tradição erótica
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um breve tremor de artérias./ Uma confusão de bocas,/ uma batalha de veias,/ um reboliço de ancas,/ quem diz outra coisa, é besta.” De seu lado, o resplendor social carioca fundamenta-se nas múltiplas influências francesas – arquitetura, moda, arte, comportamento; tudo tem um quê de belle epóque parisiense durante a Primeira República. Em tal cenário, a disseminação de impressos cresce e surgem jornais voltados para sátira e construções narrativas libidinosas. O Rio Nu foi um deles. “Tendo surgido em 1898 como despretensioso jornal de humor ‘cáustico’, e apresentando o programa de ‘passear com seus sapatos trocistas por sobre as conveniências sociais’, o Rio Nu em pouco tempo afirmou-se com um estilo peculiar de humor malicioso”, analisa a historiadora Cristiana Schettini Pereira, na pesquisa Um gênero alegre – imprensa e pornografia no Rio de Janeiro (1898 – 1916). Outras publicações como o
Sans dessou e a coleção Contos rápidos , do próprio Rio Nu, fizeram parte da escrita
lasciva da época. No Brasil contemporâneo, destacamse João Ubaldo Ribeiro, com A casa dos budas ditosos , os poemas eróticos de Drummond, no livro póstumo O amor natural (“Quero sempre invadir essa vereda estreita/ onde o gozo maior me propicia a amada”), o paulista Reinaldo Moraes, devido a seus recentes livros Pornopopeia e O cheirinho do amor: crônicas safadas , além da sólida e discutida obra de Rubem Fonseca. Mas é nas poesias, contos, romances de Dalton Trevisan e Glauco Mattoso que o erotismo perdura. Lançada em 2013, pela editora Record, a antologia Novos contos eróticos inclui 30 textos do recluso escritor curitibano. No trecho de Amor, amor, abre as asas – “Fique de quatro. Licença poética ou não: abra a perninha. Faça gostoso. Olhe pra mim, bem aberto. (…) Devagarinho. Agora mexa. Tudo a
Na historiografia literária licenciosa brasileira, as cidades do Rio de Janeiro e Salvador são referências iniciais que tenho direito. Quer mais? Minha Modigliani nua de bolso. Do que você gosta, mãe santíssima dos Gracos?” – os leitores estão diante de exemplo do “impulso linguístico propulsor” abordado por Maurice Blanchot. Em O livro por vir , o ensaísta fala sobre o “salto” que é a literatura, do ponto de vista da linguagem. “Sabemos que só escrevemos quando o salto foi dado, mas para dá-lo é preciso primeiro escrever, escrever sem fim, escrever a partir do infinito.” Valendo-se de uma espécie de “performance do olhar” (o susto do leitor quando apreende, de forma inesperada, determinado discurso), Trevisan salta da sordidez, do grotesco, para a linguagem poética. O lirismo é instalado na narrativa. O Vampiro de Curitiba pratica a chamada “transformação assustadora” na esfera linguística, defendida por Blanchot. Já uma sensação plena de autonomia está presente nos escritos do paulista
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Glauco Mattoso. Nascido em 1951 e detentor de um imponente projeto poético, ele se diferencia da “escrita comum” não só porque desenvolve o erotismo ligado a estranhas obsessões (um dos fetiches de Mattoso é direcionado aos pés), mas também por concentrar-se em um universo tão codificado como o dos sonetos. Em entrevista à Continente, Glauco avalia a relação escritor versus linguagem em sua obra erótica: “Para mim, não se trata de mero jogo de palavras, como frequentemente utilizo em minha poesia (tipo ‘língua suja’, para me referir ao chulismo e àquilo que lambo fisicamente em termos de falta de higiene, como pés suados ou solas de botas empoeiradas), mas, sim, de verdadeiro fetiche que transita entre o verbal e o oral. O ambiente típico da poesia tende a ser erudito, por isso saboreio com voluptuosidade cada vocábulo culto, quando misturo aos palavrões mais vulgares que caracterizam o discurso erótico. Acho que a ‘narração do jogo’ é tão afrodisíaca quanto o jogo em si, dado que, ao descrever o ato sexual, o autor se excita tanto quanto o leitor e ambos copulam mentalmente sem estarem juntos no mesmo espaço, concretizando assim o ideal de toda fantasia masturbatória”, afirma. GOZO & TRALHAS Talvez, o intervalo de tempo que compreende duas passagens do Sol pelos equinócios de primavera/outono e pelos solstícios de verão/inverno corresponda aos limites da obra pornográfica realizada por Hilda Hilst. Sua trilogia obscena, formada por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio – textos grotescos e Cartas de um sedutor, além de outros textos eróticos como Bufólicas, encaixam-se na proposição feita por Lucienne FrappierMazur acerca da palavra obscena: “ao contrário das outras palavras, a palavra obscena não só representa, mas é a própria coisa”. Para o doutor em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Johnny Martins, a escritora paulista subverteu tal premissa, pois pesquisou, com profundidade, a literatura de temática sexual para, então, fazer com que o erotismo e a pornografia dialogassem com seu projeto estético. “De fato, a pornografia
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busca o fetichismo envolvido na representação do sexo através da palavra, mas, na verdade, Hilda Hilst não pretendia escrever pornografia como a compreendemos atualmente. A pornografia de Hilda Hilst é equivalente à de um Marquês de Sade, cuja obra tinha mais passagens filosóficas do que descrições de atos sexuais. Aqui, a chave de tudo poderia ser colocada no termo ‘sedução’. Hilda usou o sexo para chamar a atenção para sua crítica à mediocridade dos leitores e às relações ‘obscenas’ com que o mercado editorial oprime os escritores, assim como Sade usou o sexo para incutir nos leitores questionamentos filosóficos”, pontua. Alcir Pécora, crítico literário e professor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que, para entender a questão do obsceno em Hilda, é essencial associá-la ao humorismo de Luigi Pirandello. “O dramaturgo italiano afirma uma quebra de representação do cômico que se sustenta no paradoxo em que os contrários coexistem e produzem um riso próximo da aporia, da perplexidade, da incapacidade de eliminação do equívoco.” Uma amostra interessante da opinião explicitada por Pécora é Corina: a moça e o jumento , história que configura algo próximo ao segundo capítulo de Lori Lamby. Após colocar uma criança narrando, com displicência e excitação, sobre pedofilia, abuso – “Eu deitei com minha boneca e o homem que não é tão moço pediu para eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu para eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele começou a passar a mão na minha coxa que é muito fofinha e gorda, e pediu que eu abrisse as minhas perninhas. (…) Daí o homem disse pra eu ficar bem quietinha, que ele ia dar um beijinho na minha coisinha” – Hilda arquiteta uma história marcada pela comicidade desesperada. Tem início o relato das aventuras sexuais do jovem Edenir. A relação lasciva (e machista) com a garota Corina é marcada por penetrações em animais, embaraços familiares e religiosos, além de passagens nas quais a descoberta do sexo é muito mais entrega que conflito. O riso, contido
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“Na indústria do livro, a mulher não escapa de ser representada sob um olhar machista” Johnny Martins por certo acordo ético e moral velado durante a primeira parte da publicação, acaba saltando para fora do leitor. No panorama da literatura erótica, a mulher, muitas vezes, possui um lugar ambivalente: ela é submissa e dependente de uma contemplação masculina, mas também é estrela em alguns contextos, em que os homens tornam-se quase irrelevantes. Aqui, Hilda destrói mais um padrão, segundo Johnny. Para o pernambucano, no erotismo hilstiano , a figura feminina pretende anular ideias estanques de gênero. “Mesmo quando a mulher é colocada no centro da indústria de livros eróticos, geralmente, ela não escapa de ser representada sob um olhar machista, sobretudo no âmbito do Brasil. O posicionamento da mulher na literatura de uma sociedade tão machista sempre vai ter influência, em maior ou menor grau, da ideologia patriarcal dominante”, observa.
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2 GLAUCO MATTOSO
Projeto poético do escritor traz erotismo ligado a obssessões
Contudo, ele afirma concordar com a crítica feminista Elaine Showalter, quando ela ratifica que a literatura produzida por mulher é um discurso de duas vozes: uma dominante (machista) e outra silenciada (feminista). “Em outras palavras, as obras de autoria feminina, mesmo que reafirmem arquétipos, sempre vão revelar, nas entrelinhas, a opressão social de que as mulheres são vítimas. No erotismo de Hilda, a figura feminina ocupa um lugar de subversão de estereótipos sobre a mulher, sobretudo enquanto escritora. Entretanto, a paulista não imprimiu um feminismo panfletário sobre suas personagens. Muitas delas possuem a mesma liberdade sexual de que o homem goza em nossa sociedade, e isso bastou para chocar o pudor de muitos leitores e leitoras”, conclui. No ano trópico, convencionado pelo calendário ocidental, o período de estio dura apenas três meses. Na obra obscena hilstiana, a atmosfera solar permanece (sem data para mudanças naturais significativas), acompanhada por possibilidades de queimaduras definitivas e mergulhos no abismo. PRISCILLA CAMPOS
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COMPORTAMENTO Gente que é louca por (discutir) sexo Clubes de leitura, fãs clubes e fanfics são alguns dos sintomas do interesse de públicos heterogêneos pelo gênero literário
“Livros, putaria, chá e gatos.” Assim é descrito o Clube do Livro Erótico , projeto criado pela dupla paulista Isadora Sinay, crítica cinematográfica, e Lívia Furtado, jornalista. O vlog (tipo de blog que utiliza o vídeo como plataforma) literário começou em outubro de 2014, a partir de uma lista de obras eróticas divulgada num site norte-americano. “A Lívia deu a ideia e eu topei, meio por impulso. Mas também porque sexo, desejo e literatura pareciam um bom ponto de partida para discussões relevantes. Além disso, percebemos que, misturado
a tantos vlogs e blogs literários, era um gênero meio esquecido. A lista do Flavorwire serviu para aguçar a nossa curiosidade e fazer a gente pensar além dos clichês esperados”, explica Sinay. Um vídeo novo por semana mobiliza o canal do projeto no YouTube . Na lista de obras analisadas: O amante , de Marguerite Duras; Chéri , de Colette, e História de O , de Pauline Réage, entre outras. Na adolescência, Isadora acumulou na sua lista de leitura clássicos eróticos como Lolita. Durante o mestrado em Ciências da
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Religião descobriu a importância de Sade como filósofo e pensador. Mas foi após a leitura de A vida sexual , de Catherine M., e dos diários de Anäis Nin que surgiu a vontade de discutir literatura erótica com mais afinco. “Esses dois livros trouxeram, pela primeira vez, uma perspectiva feminina da sexualidade, algo que eu não tinha encontrado em nenhum outro lugar. Ainda hoje penso que o que mais me interessa na literatura erótica e nas discussões do Clube , é trazer para o debate o olhar feminino sobre o desejo, que me parece sempre (ainda) tão raro”, relata. Assim como aconteceu com a crítica paulista, Anäis Nin foi o encontro literário cativante que estava faltando entre Cristiane Olímpio, estudante de Design, e o erotismo. “Aos 14 anos, li Escrito nas estrelas , de Sidney Sheldon. Lembro que o livro, a partir de sua protagonista, fala um pouco da descoberta da sexualidade, o que coincidia com questões que estavam passando pela minha cabeça na época. Isso me despertou o desejo de encontrar uma literatura direcionada ao erótico. Buscando obras que falassem sobre sexualidade de maneira mais sofisticada, tive a sorte de conhecer aquela que, para mim, é a maior e melhor referência no gênero,
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Anäis Nin. Delta de Vênus e A fugitiva são os meus preferidos”. Já o jornalista Breno Pessoa, assíduo leitor de narrativas libidinosas, lembra a espontaneidade presente na obra da francesa. “Embora eu tenha começado por Sade, não me senti tão fisgado. Em alguns momentos, achava tudo muito visceral ou soando panfletário demais na questão da libertinagem; acho que muitas vezes o sexo soa pouco natural em seus escritos. Gosto de Nin pois, em seu texto, tudo me parece crível e natural”, compara. TONS DE CINZA
O programa do Clube do Livro Erótico mais comentado até o dia da nossa entrevista foi o de Cinquenta tons de cinza , de acordo com Lívia. “Nós nem íamos falar dele, mas vimos tantas questões surgindo, porque o filme seria lançado, que resolvemos aproveitar a oportunidade e fizemos um especial. Os comentários me ajudaram a indagar o livro de maneira mais crítica e aconteceram debates ricos sobre abuso, amor, obsessão, BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) e, claro, literatura.” Derivada de uma fanfiction da série Crepúsculo , a trilogia de Cinquenta tons de cinza vendeu mais de 5,5 milhões de exemplares no Brasil, segundo dados da editora Intrínseca, responsável pela publicação dos livros por aqui. “Não encaramos a série como um produto erótico – E. L. James conta, essencialmente, uma história de amor. Acho que talvez essa tenha sido a contribuição da trilogia para o mercado erótico: romances palatáveis, sensuais, que alcançaram milhões de leitores e, com isso, trouxeram a atenção para outros produtos na mesma linha, ou, de fato eróticos”, avalia a editora Danielle Machado. A conjectura parece certeira, no que diz respeito ao aquecimento do mercado editorial erótico brasileiro. Segundo Jorge Sallum, editor da Hedra – um dos catálogos que mais investem em livros libidinosos do Brasil –, o selo Sexo, lançado em 2014, foi também “uma reação à diluição cheia de tons de cinza que essa literatura enfrentou recentemente”. Entre os títulos da série, estão O outro lado da moeda , de Oscar Wilde e um clássico moderno,
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ensaístico, sobre o tema, Perversão , do psiquiatra americano Robert Stoller. Para o jornalista Breno Pessoa, Cinquenta tons de cinza trouxe um acréscimo positivo no comportamento social diante dos hábitos de leituras alheios. “Agora, algumas pessoas parecem encarar com maior naturalidade alguém com um livro erótico por perto”, observa. O conservadorismo travestido de obscenidade selvagem converte-se num dos elementos mais irritantes em Cinquenta tons de cinza . Como defende Danielle Machado, os livros possuem um enredo romântico. Porém, também voltado para a ostentação do consumo. A professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Eliane Robert Moraes, estranha que o livro seja, às vezes, comparado às melhores produções da ficção sexual. “A meu ver, não há nada mais equivocado que tal associação: entre o desejo de absoluto que preside a erótica de Sade ou de Sacher-Masoch e o desejo de inclusão que orienta o imaginário da tola trilogia. Não há um
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só ponto em comum. Bem adequados à sensibilidade contemporânea, os romances da autora inglesa, e seus congêneres, criam um mundo sexual autônomo, onde prevalecem os desregramentos da imaginação, mas antes preferem conformar suas fantasias ao que está na ordem do dia, sejam os signos mais óbvios do consumismo, sejam as bagatelas do ‘politicamente correto’”, detalha. Sobre o comportamento da protagonista do romance, Anastasia (padronizado e normativo), o historiador e professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Daniel Wanderson Ferreira, constrói uma análise comparativa entre o conto Barba Azul , de Charles Perrault, e o quarto de jogos de Grey (o dominador de Anastasia). “No primeiro caso, a interdição ao quarto e a curiosidade da mulher conduzem ao suplício feminino, afinal, a lição moral de Perrault é que a mulher deve se manter em seu papel definido, submissa ao marido e resguardada por ele do universo masculino. Há uma ideia do
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1 TONS DE CINZA
Adaptado de livro de E. L. James, filme mobiliza fãs no cinema Nestas páginas
2 CLUBE DO LIVRO ERÓTICO Vlog criado por
Lívia Furtado e Isadora Sinay discute sexo, desejo e literatura 3 ANAÏS NIN
Autora francesa cativa o público com o célebre Delta de Vênus
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homem como livre, como chefe e como dirigente. A mulher fica em um papel submisso para ser protegida da violência masculina. É uma visão tradicional, produzida num esquema de dominação que é complexo e ambivalente, porque, em Charles Perrault, está claro que o Barba Azul quer sua mulher feliz, libera-a para festejar com amigos, desde que não entre no quarto interdito. Já em Cinquenta tons , a perspectiva aparentemente é outra, afinal Anastasia é convidada a entrar no quarto, o que nos faz pensar se estamos em uma nova dimensão do corpo feminino. Haveria mesmo nos Cinquenta tons uma ideia libertadora e emancipadora da mulher? – essa é a questão”, pontua. De acordo com Ferreira, a personagem de E. L. James entra no quarto por convite e por vontade, mas sem assumir as rédeas de si mesma e do jogo erótico. “Não vejo, no filme, uma proposta para se ‘refazer’ a sociedade e as hierarquias de gênero, nem mesmo a ordem romântica do amor, tal como ela passa a ser vista desde o século 18.” Para Eliane, o que sobra é pouco: uma sexualidade conformada
Diferente do pornôchic dos adeptos de E. L. James, o pornoterrorismo propõe feminismo e guerrilha erótica às exigências da ordem social; um erotismo reduzido às demandas da utilidade. “Impossibilitados de recorrer ao absoluto de seus imaginários, os sádicos e masoquistas de plantão devem se dar as mãos para formar um par e, de quebra, serem felizes para sempre. Eis a promessa do casal Christian e Anastasia: perfeitamente adaptados ao jogo dos papéis sociais, eles enfim brindam o ‘sadomasoquismo’ com seus portavozes ideais. Não por acaso, isso ocorre justo num momento em que a prática da transgressão vem sendo cada vez mais normalizada pelo mercado”, reflete. Na direção oposta a qualquer algema ou chicote, está o movimento pós-pornô e seus derivados, como o pornoterrismo . Numa espécie de manifesto, escrito
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pela psicóloga e pesquisadora Fabiane M. Borges, estão expostos os conceitos feministas e de guerrilha erótica que catalisam a vertente. “O movimento tem uma intenção real de inovação do imaginário pornográfico em geral, no qual se utilizam as ferramentas da sexualidade promovidas até agora, mas renovadas a partir da perspectiva de fêmeas fortes, poderosas, agressivas, inventivas, propositivas, que trazem consigo a linguagem da violência também. A ideia é incluir novos recursos sexuais performativos dentro da sexualidade cotidiana”, afirma Borges, que este ano pretende lançar, junto com Carola Gonzáles e Ana Girardello, uma tradução do livro Pornoterrorismo , realizado pela espanhola Diana Torres. Sentinelas de um pressuposto narrativo sempre escorregadio e catastrófico à sua maneira, os leitores de escritos licenciosos estão sujeitos a “toda surpresa, deleite ou terror”, parafraseando declaração de T.S.Eliot sobre Ulisses . Afinal, Joyce ficaria mesmo feliz de ter sua obra associada a enigmas, apuros e intensas tentativas de discutir o delírio do corpo na literatura. P.C.
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