Escrevencias desinventosas

May 2, 2019 | Author: Carla Diogo | Category: Natural Language, Semiotics, Linguistics, Languages
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10º ano

DISCIPLINA DE PORTUGUÊS

A propósito dos processos de formação de palavras 1. Leia o seguinte texto de Mia Couto e descubra os neologismos nele presentes. Escrevências desinventosas

Estava já eu predisposto a escrever mais uma crónica quando recebo a ordem: não se pode inventar palavra. Não sou homem de argumento e, por isso, me deixei. Siga-se o código e calendário das palavras, a gramatical e dicionárica língua. Mas ainda, a ordem era perguntosa: "já não há respeito pela língua-materna?" Não é que eu tivesse intenção de inventar palavras. Até porque acho que palavra descobre-se descobre-se,, não se inventa. Mas a ordem me deixou desesfeliz. desesfeliz. Primeiro: Primeiro: porquê meter a mãe no assunto? Por acaso sou filho de língua, eu? Se nasci, mesmo inicialmente, foi de duplo serviço genético, obra inteira. Segundo: sou um homem obeditoso aos mandos. Resumo-me: sou um obeditado. Quando escrevo olho a frase como se ela estivesse de balalaica, respeitosa. É uma escrita disciplinada: levanta-se para tomar palavra, no início das orações. Maiusculiza-se deferente. E, em cada pausa, se ajoelha nas vírgulas. Nunca ponho três pontos que é para não pecar de insinuência. Escrita assim, penteada e engomada, nem sexo tem. Agora acusar-me de inventeiro, isso é que não. Porque sei muito bem o perigo da imagináutica. Ás duas por triz basta uma simples letra para alterar tudo. Um pequeno «d» muda o esperto em desperto. Um simples «f» vira o útil em fútil. E outros tantíssimos, infindáveis exemplos Afinal de contas, quem imagina é porque não se conforma com o real estado da realidade. E nós devemos estar para a realidade como o tijolo está para a parede: a linha certa, a aresta medida. Entijole-se o homem com tendência a imaginescências. Voltando à língua fria: não será que o português não está já feito, completo, made in e tudo? Porquê esta mania de usar os caminhos, levantando poeira sem a devida direcção? Estrada civilizada é a que tem polícia, sirenes serenando os trânsitos. Caso senão, intransitam-se as vias, cada um conduzindo mais por desejo que por obediência. Estraga-se a decência, o puro sangue do idioma. E porquê? Por causa dessas contribuições dispérsicas que chegam à língua sem atestado nem guia de marcha. Devia exigirexigir-se, se, à entrad entrada a da língua língua um boleti boletim m de inspec inspecção ção.. E montav montavam-s am-se e postos postos de controlo, vigilanciosos. Se forem criados tais posto eu mesmo me voluntario. Uma espécie de milícia da líng língua ua,, co com m braç braçad adeir eira, a, a ma mand ndar ar para pararr fala falant ntes es e escr escreve event ntes es.. A revi revist star ar-lh -lhes es o vocabulário, a inspeccionar-lhes o saco da gramática. -Vem de onde essa palavra? E mesmo antes da resposta, eu, arrogancioso: -Não pode passar. Deixa ficar tudo aqui no posto. Os queixosos, nas cartas dos leitores, reclamando. E eu, abusando dos abusos, rindo-me deles. Mas não me divertindo de alma inteira, não. Porque a vida é uma grande fábrica de imagineiros e há muita estrada para poucos postos vigilentos. Mas, em escrevendo «deter gente» eu me lembro de «detergente». Sim, escrevo sério. Um produto que lavasse a língua de sujidades e impurezas. Pegava-se no idioma, lavava lavava-se -se bem, bem, desinfe desinfecta ctava-s va-se. e. Depois, Depois, para para não apodrec apodrecer, er, guarda guardava-s va-se e no gelo, gelo, frigorificado. Porque isto de falar ou escrever tem de ser dentro das margens. Como um rio manso e leve, tão educado que não acorde poeiras do fundo. Um rio que passe com essa eterna transparênci transparência a que, verdade autografada, autografada, só a morte possui. Seja então a pureza pela morte trazida e por ela conservada. Mia Couto, Cronicando

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