Erich Neumann - Psicologia Profunda e Nova Ética
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Em sua busca da perfeição, a velha a ética, sustentada principalmente pela cosmovisão judaico-cristã, chegou a um beco s...
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Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Neumann, Erich. Erich. Psicologia Psicologia profunda profunda e nova nova ética /Erich /E rich Neumann; [tradução João Joã o Rezende Costa; revisão Ivo Ivo Stomiolo], Stomio lo], — São Paulo: Edições Paulinas, 1991 — (Coleção amor e psique) ISBN 85-05-01183-X 1. Bem e mal — Aspectos psicológicos 2. Ética — Aspe As pecto ctoss psico ps icoló lógic gicos os 3. Psic P sican anál álise ise I. Títu T ítulo lo.. II. Série. 90-1805
CDD — 150.1954 150.1954 — 111.84 — 170 — 616.8917
índices para catálogo sistemático: sistemático: 1. Bem e mal: Metafísica 111.84 2. Ética: Filosofia 170 3. Psicanálise: Medicina 616.8917 4. Psicologia analítica junguiana 150.1954 Coleção AMOR E PSIQUE • Uma busca interior em psicologia e religião, J. Hillman • sombra A som bra e o mal ma l no s c o n tos to s de fada, Marie-Luise von Franz • indivi A in dividua duação ção nos no s c o n to s de fada, Marie-Luisc von Franz • psiqu A psi quee c o m o sacra sa crame mento nto — C.G. G. Jung e P. P. Tillicli, J. P. Dourley • o inco Do D in cons nsci cien ente te a Deus, Ema van de Winckel • Contos de fada vividos, H. Dicckmann • Caminlio para a iniciação feminina, S. B. Perera • Os mistérios da mulher anti antiga ga e contemporânea, contemporâ nea, M. E. Harding • Os parceiros invisíveis, J. A. Sanford • Menopau Men opausa, sa, tempo tem po de renasc ren ascime imento nto,, A. Mankowitz • doe A d oenç nça a que qu e so s o m o s nós, J. P. Dourley • l, o lado so m brio Mal, Ma br io da realidad realidade, e, J. A. Sanford • ditaçõ Medit Me ações es sobr s obree o s 22 arcan ar canos os maiores maio res d o Tarô Tarô,, Anônimo • Os son ho s e a cura da alm alma, a, J. A. Sanford • Bíblia e psiq ps ique ue —Simbolismo Simb olismo da individuação no AT, AT, E. F. Edinger • prosti A pr ostituta tuta sagrada sagrada,, N. Q.-Corbett • in teqn A te qn etaç et ação ão dos do s co c o n to s de d e fada, Marie-Louise von Franz • deusa As de usass e a m u lh er — Nova Nov a psico ps icolog logia ia das mulheres, m ulheres, J. S. Bolen • Psicologi Psico logia a profunda profu nda e nova no va ética, E. Neumann • Meia-idade e vida, vida, A. Brennan e J. Brewi
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índice 5 7 9 16 41 56 80
Introdução à coleção “amor e psique’ Prefácio 1. Introdução 2. A velha ética 3. Fases da evolução ética 4. A nova ética 5. Fins e valores da nova ética
Impresso na Gráfica de Edições Paulinas - 1991 Via Raposo Tavares, Km 18,5 - 05550 SÃO PAULO
Erich Neumann
PSICOLOGIA PROFUNDA E NOVA ÉTICA
Edições Paulinas
Título original Tiefenpsychologie und neue Ethik
Fischer Taschenbuch Verlag, 5°. ed., 1985 © Kindler Verlag GmbH, München Tradução João Rezende Costa
Revisão Ivo Storniolo
Coleção AMOR E PSIQUE dirigida por Dr. Léon Bonaventure Pe. Ivo Storniolo Profa. Maria Elci S. Barbosa
g r ) EDIÇÕES PAULINAS ^ TELEX (11) 39464 (PSSP BR) FAX (011) 575-7403 Rua Dr. P into Ferraz, 183 04117 SAO PAULO - SP END. TELEGR.: PAULINOS
© EDIÇÕES PAU LINAS — SÃO PAULO — 1991 ISBN 3-596-42005-9 (Alemanha) ISBN 85-05-01183-X (Brasil)
INTRODUÇÃO À COLEÇÃO AMOR E PSIQUE
Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço interior toma-se novo lugar de experiência. Os viajantes desses caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas para nossas feridas e sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer que essas feridas e sofrimentos nasceram de falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realização de nossa totalidade. Assim, a nossa própria vida porta em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, e' sim o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a mão à teologia. Essa perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a alma da dominação da psicopatologia, cio espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si 5
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle xões durante a prática psicoterápica, e está começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimen sões diferentes de nossa existência para podermos reen contrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos os que são sensíveis à necessidade de colocar mais alma em todas as atividades humanas. A finalidade da presente coleção é precisamente restituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geração de sacerdotes capazes de entenderem novamente a lingua gem da alma”, como C. G. Jung o desejava. Léon Bonaventure
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Prefácio
Este livro, elaborado durante a segunda guerra mundial e sob sua pressão, é publicado em época obscure cida pelo surgir do fantasma da terceira guerra mundial. Pergunta-se: num período de dança dos mortos, de que o nazismo na Alemanha não passou de mera antecipação, é afinal confiável levantar-se a questão de uma ética ou mesmo de uma “nova ética”? Os povos, que ainda ontem se blasonavam de uma luta ombro a ombro em prol da liberdade do homem, continuam a apostar entre si na produção de bombas atômicas uns contra os outros, e quem haveria de duvidar que o incrível de hoje é a evidência de amanhã? O que quer nesta situação do mundo a pergunta ridícula acerca da ética e a resposta, ainda mais ridícula, de que se trata do indivíduo? Pode parecer que pergunta e resposta sejam ultra passadas e que não passem de angústia de uns poucos indivíduos moribundos aos quais então se tenta respon der. Tudo fala contra este parecer. Uma consciência histó rica que lança uma visão global sobre a evolução da humanidade haverá de reconhecer que a gênese do indi víduo, desde sempre, foi tida como o mais elevado empenho da espécie. A comunidade de indivíduos livres, eis a fina lidade próxima da evolução — se bem que ainda distante — mas que já surge no horizonte. Comunidade e liberdade 7
não se proclamam, com bombas atômicas, liberdade e in dividualidade não se estabelecem por obra e virtude de Estados colossais. Supera-nos a todos o lado sombrio da humanidade, que escurece o céu com os raios da morte e com as bombas atômicas. Quase sempre o grande aniquila o pequeno; mas este sempre sobrevive. Sempre Davi vence Golias. O pequeno é sempre portador de um prodígio, porque ele é um indivíduo criativo com o qual a humanidade palmilha o seu caminho histórico Assim o pequeno permanece grande, e a psicologia, que considera a individualidade como um problema cen tral da comunidade, está apenas aparentemente em po sições perdidas. Sempre ocorre ser a perda de posições um ponto decisivo para a humanidade. Israel, Tel-Aviv, maio de 1948 Erich Neumann
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1 Introdução “Deus está perto, porém é difícil entendê-lo. Mas quando há perigo cresce também a salvação”.
Hõiderlin
O problema do mal é um dos problemas mais cen trais do homem moderno. Nenhum apelo a velhos valores e paradigmas nos impede de reconhecer que vivemos num mundo em que o mal no homem, que se levanta gigante das profundezas, nos coloca a todos sem exceção diante da pergunta: como poderemos haver com esse mal? A modernidade é a era da humanidade em que ciência e técnica demonstram a capacidade da consciência de se haver com a natureza física e de dominá-la em larga escala, em maior medida do que qualquer outra época da história da humanidade. E também o período em que a incapacidade de se haver com a natureza psíquica, a alma humana, manifesta-se tão terrível como nunca antes. O lodo de sangue, que tragou a Europa e ameaça engolir o mundo todo — as guerras mundiais não passam de um sintoma deste estado de coisas — , é a conseqüência dessa incapacidade. 9
O fenômeno, que marca o nosso tempo, é a irrupção coletiva do mal no homem, o que jamais se revelou na his tória universal antes, em semelhante medida. As várias explicações ideológicas, políticas, sociológicas e outras, como consta da psicologia profunda, jamais captaram a verdadeira causa de um acontecimento. Além disso, não poderiam negar o fato de que o mal pudesse aprisionar centenas de milhões de seres humanos. A velha ética judeu-cristã mostrou-se incapaz de exorcizar as forças destruidoras do homem. A ruína da denominada “velha ética”, como se pode comprovar, é um fenômeno necessário na história da humanidade. Mas ela nos coloca diante da pergunta: se já existem orientações e esquemas básicos de uma nova ética, pois a humanidade está em perigo de aniquilar-se pela moral insanity, que dela tomou posse como sintoma de um período transitório sem ética. Na luta hodierna da humanidade, só aparentemen te estão claros os frontes. A luta contra o mal difere do próprio mal, mas a invasão dos homens pelo mal extrapola os frontes políticos e militares, atingindo-nos a todos, onde quer que estejamos. Culpados não são apenas os assassi nos, mas também os assassinados. Vincula-se com o mal todo aquele que viu e não fez, todo aquele que deixou de ver porque não queria ver, todo aquele que não viu se bem que poderia ver, mas também todo aquele cujos olhos não podiam ver. Culpados somos todos nós, culpados são todos os povos, todas as nações, todas as religiões, todas as classes — culpada é toda a humanidade. O mal, que irrompeu na pretensão imperialista dos nazistas, é o que impediu até hoje a solução da questão social e da igualdade jurídica dos povos de cor do mundo civilizado e tenta com todas as forças aniquilar a unidade da humanidade e minar a consciência de um destino único da humanidade e da cultura. 10
O homem contemporâneo vê-se numa situação abje ta de poder opor à aniquilação dos valores pelo mal apenas uma ética que perdeu sua eficácia anímica. A insegurança interna do indivíduo, que continua apelando à velha ética judeu-cristã sem perceber intimamente sua eficácia, cada dia experimentando sua invalidade, converte-se com muita facilidade em vítima da infecciosa do mal. Todos temos visto que para “o bem” mão alguma se levanta, ainda que a mão faça parte de um corpo elemen tarmente em perigo. Isso significa, porém, que não é o bem que determina o homem ou o povo, ainda que estes colo quem o bem acima das ideologias, mas somente o impulso de autoconservação ativado pelo perigo. Enquanto o mal não ameaçar a existência individual, se camufla com belos mantos, que somente são rasgados quando ele se volta, com ataque devorador, contra a própria pessoa, a própria casa e o próprio país. Não é a luta contra o mal — e essa é a verdade amarga de nossa experiência —, mas, na melhor das hipóteses, a luta contra a ruína causada pelo mal é que põe em movimento o homem moderno. Está-se inclinando a admitir que essa reação é geral mente humana e atitude básica da humanidade. Mas deixa-se, de ver que houve tempos em que a iniciativa dos homens na luta contra “o mal” era inquestionavelmente mais eficaz e que até levou a movimentos de massa. Uma análise dessas iniciativas e desses movimentos de massa poderá mostrar não só cruzamentos com forças contrárias, mas também chegará à comprovação de forças que apenas se utilizaram da máscara do bem. Mas, indubitavelmente, para a consciência desses homens o mal era ruim e a luta contra ele era uma “luta santa”. Enquanto foi válida a velha ética, os seus valores tiveram força eficaz, mas desde a irrupção do lado escuro de sua cosmovisão, o homem moderno tomou-se tão cético e inseguro dos valores, que não mais pôde-se perceber como um lutador contra o mal e em favor do bem. Ele 11
perdeu a ingenuidade de lutador, e a pergunta secreta, que torna insegura sua posição interna, diz: Quem luta contra quem, e luta contra o quê? Enquanto a orientação religiosa constituiu o fundo da orientação ética, sabia-se que Javé ou Ormuzd, Cristo ou Alá ordenou a luta e, conseqüentemente, os valores. A questão, porém, é se a “indústria” ou a “classe”, o “imperi alismo”, a “nação” ou a “raça” constituem o fundo condutor da luta, se o indivíduo é enganado nessa luta, se ele é inconsciente, porque as forças condutoras no fundo são camufladas, se ele luta sem saber do que afinal estas forças constituem na verdade um sintoma — essa pergunta, aparentemente insolúvel e à qual são dadas milhares de respostas de diversas formas, está na consciência de todo lutador como expressão da situação caótica do nosso tempo. A absoluticidade com que as diversas ideologias mutuamente contrárias se oferecem como solução, de fato “ajuda” a consciência do indivíduo que consegue deixar-se impregnar por semelhante ideologia. Mas há uma lei psicológica, segundo a qual, todo fanatismo consciente é compensado por uma dúvida igualmente forte no incons ciente. Isto explica por que essas ideologias contribuíram tanto para a confusão do nosso tempo e tão pouco para sua nova orientação. A velha ética determinou, em sua forma judeucristã, a estrutura da humanidade ocidental. O fato do mundo ter-se tornado ineficiente foi a causa, efeito e expressão de uma catástrofe, na qual se tornam visíveis as forças contrárias aprisionadas pela velha ética. Mas tam bém em toda parte podem-se detectar os inícios de uma nova ética que manifesta uma mudança na constelação psíquica básica do homem moderno. O problema do mal apresenta-se ao homem moderno de forma coletiva e individual, esse irrompeu na humani dade ocidental há 150 anos em lugares diversos, aluiu e 12
destruiu o cunho da velha cultura, mas também pode ser acompanhado até em pormenores na história psíquica do indivíduo. O desenvolvimento do indivíduo, mediante o prisma da psicologia profunda, no qual se manifesta o problema do mal, permite, mais do que o pode fazer uma pesquisa do evento coletivo, detectar os novos enfoques sintéticos, ou seja, os elementos básicos de uma nova ética. Esta observação relaciona-se com o fato de que a evolução externa coletiva acompanhando com atraso de decênios a evolução dos indivíduos que, como tropa de reconhecimento, já se ocuparam antes dos problemas que mais tarde atingem o coletivo como massa. Entende-se facilmente que se podem detectar antes e mais claramente os ensaios individuais de solução no processo de desenvolvimento individual do que no do coletivo. O indivíduo defende-se da ruína ao se debater com o problema do mal, sendo por ele abalado e não raro atirado à beira do abismo. Para continuar a sobreviver, ele carece, não por vontade arbitrária, mas por neces sidade urgente, das forças profundas do inconsciente a fim de, a partir delas e de si mesmo, encontrar novos caminhos, novas formas de vida, novos valores e símbolos condutores. Mas a realidade do mal, que atinge o indivíduo, nasce não só de uma realidade individual, mas também da conformação individual de uma situação do coletivo. As sim como as forças criadoras do seu inconsciente, que apontam novos caminhos, não são apenas forças individu ais, mas também a figura individual da dimensão criadora do inconsciente coletivo e universal. Tanto o problema quanto a sua solução tornam-se visíveis no indivíduo, pois ambos estão coletivamente fundados. É isso que precisamente torna tão importante a experiência individual do homem. O que nele ocorre é 13
exemplar para o todo, e os enfoques de solução, que lhe trazem solução e salvação, são os inícios de valores e símbolos futuros para o coletivo. O futuro do coletivo vive no presente dos indivíduos acabrunhados por seus problemas, que representam como que os órgãos desse coletivo. Os homens sensíveis, animicamente doentes e criativos, são sempre os precurso res. Sua capacidade de serem mais penetrados pelos con teúdos do inconsciente coletivo, da camada profunda que determina a história do evento grupai, os faz receptíveis aos novos conteúdos que surgem, conteúdos que ainda não foram percebidos pelo coletivo. Também a esses homens, os problemas se tomam pessoalmente agudos cinqüenta anos antes que o coletivo tenha tomado conhecimento da presença desses problemas. Assim como a questão das mulheres foi percebida pelas mulheres do romantismo, também a crise moral do século XX foi antes percebida por Nietzsche, apenas para mencionar dois exemplos. O que vale para os homens criativos, vale em menor escala também para os homens sensíveis e para uma parte dos neuróticos. Não raro uma pessoa sensível fica doente pela impossibilidade de se haver com um problema que não foi percebido como proble ma pelo mundo em que vive, mas é um problema futuro da humanidade que se propõe nele e o leva à luta. Assim se explica que esses homens são extem porâneos, afastados do seu tempo e caminhantes solitários, mas também se explica o seu pioneirismo profético. O seu destino e a sua luta não raramente trágica com a proble mática são de decisiva importância para o coletivo, que recebe e assume, preparados precisamente por esses in divíduos, não apenas os problemas, não apenas a crítica destruidora do passado, mas também a síntese que cons trói o novo. A relação da problemática do indivíduo com a proble mática do coletivo é muito mais estreita do que se percebe 14
no geral da humanidade. Ainda que nem sempre se perce ba a constelação de totalidade, na qual cada indivíduo é um órgão do coletivo, cuja estrutura interna comum ele traz consigo no seu inconsciente coletivo, e na qual o coletivo não é nenhum abstrato, mas a unidade de todos os indivíduos, representada por ele. A tragédia matrimonial do indivíduo é o palco onde o coletivo faz valer o problema da mudança das relações homem-mulher, problema que é significativo e ativo tam bém para além dos conflitos matrimoniais do indivíduo. Igualmente o problema moral, que leva o indivíduo a adoecer neuroticamente, é ao mesmo tempo palco e ex pressão de que o coletivo não está se saindo bem com o problema do mal, que nele se põe em discussão. Enquanto determinados valores do coletivo são for ças vivas e eficazes, o indivíduo, quando não se trata de homem excepcional, não tem nenhuma problemática de valor. Ele não adoece pelo problema desses valores, pois existem formas institucionais de se haver validamente com o problema do valor. Enquanto e à medida que existe o sacramento do matrimônio, não existe nenhuma neurose dos problemas matrimoniais, mas sim adultério e pecado, castigo e perdão. A orientação é válida, ainda que o indivíduo se comporte invalidamente. Mas, quando o coletivo não mais possui o valor, isso significa que se introduziu uma crise de valor, e falta ao indivíduo a orientação coletiva. Ele adoece levado por um problema para o qual não existe mais uma resposta cole tiva e uma forma coletiva de solução. Ele entra então numa situação de conflito, de que nenhuma instituição não mais o pode livrar, conflito no qual ele deve sofrer e experimen tar a solução individual no evento do seu destino pessoal.
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2 A velha ética É muito vasta a abrangência do que chamamos de “a velha ética”. Ela abarca os ideais mais diversos do homem e implica em si graus de perfeição de ordem diversa. Mas se trata sempre da absolutização de valores que são postos como “devidos” pela velha ética. A velha ética ocidental tem muitas fontes, das quais as mais vigorosas são as judeu-cristãs e gregas. Não é nossa tarefa apontar as origens, as funções e mudanças dessa velha ética e acompanhar sua evolução. O paradigma do santo ou do sábio, do nobre ou do bom, do herói ou do sóbrio pode estar no centro da velha ética. Quer se trate do kalòs kai agathós — belo e bom — dos gregos, quer da postura de cavaleiro do inglês, quer da piedade de Francisco ou da fidelidade à lei do fariseu, sempre se trata de um bem que se pode conhecer como valor absoluto. Esse valor pode ser tido como lei revelada ou imanente, como idéia teórica ou como mandamento da razão, sempre é um valor codificável e comunicável, que determina “geralmente” o modo de se comportar do homem. O ideal de perfeição pode e deve se realizar pela di luição dos traços que contradizem essa perfeição. A “nega ção do negativo”, sua exclusão vigorosa e sistemática, é o traço fundamental dessa ética. Por mais variáveis que possam ser os seus paradigmas, a formação é apenas possí vel por meio de uma tendência consciente à unilateralidade, pela absolutização do valor ético, que sempre exclui os gru pos de propriedades que contradizem esse valor. 16
Não temos de pesquisar a legitimidade dos valores, cuja relativização é um dos resultados da evolução espiri tual ocidental, nem de estabelecer sua hierarquia. Nossa tarefa consiste em pesquisar as conseqüências psíquicas que a velha ética teve sobre o homem ocidental. Ao compreendê-la, podem-se perceber dois princípios funda mentais, e até se poderia dizer dois métodos fundamen tais, que possibilitaram a imposição da velha ética. Esses métodos fundamentais são a supressão e a repressão. A “negação do negativo”, como princípio fundamen tal da velha ética, fica mais clara na supressão, ou seja, no desligamento, realizado pelo ego consciente, de todos os traços e tendências da personalidade que não correspondem ao valor ético. Disciplina e ascese constituem as formas mais conhecidas dessa maneira de supressão, em que, por exemplo, os santos judeu-cristãos, bem como os hindus e maometanos excluem as exigências do corpo e da sexuali dade de sua realização, o homem fiel à lei elimina todas as tendências que contradizem a lei, e gentleman o não ad mite em si qualquer traço que se oponha a essa cosmovisão do homem. A supressão é uma ação consciente do ego que em geral se desenvolve e se cultiva sistematicamente. E importante notar que na supressão se faz um sacrifício que leva ao sofrimento. Tal sofrimento é aceito e por isso os conteúdos e partes da personalidade excluídos mantêm permanente vinculação ao ego. Uma proibição moral que requer a supressão de uma tendência impulsiva, como, por exemplo, o exercício da sexualidade, exclui, com efeito, de sua realização esta tendência impulsiva suprimida, mas a tendência impulsi va recalcada desempenha papel importante na cosmovisão do ego consciente abafado. Vamos nos ocupar com a econo mia psíquica da súpressão ao analisar os efeitos psíquicos da velha ética. Em contraste com a supressão está a repressão com 17
a forma mais freqüente pela qual a velha ética impõe os seus valores. Na repressão, os conteúdos reprimidos e excluídos, as partes da personalidade que contradizem o valor ético, perderam a relação com o sistema da consciên cia, são inconscientes ou esquecidos, ou seja, o ego nada sabe de sua presença. Por isso os conteúdos reprimidos, diversamente no caso da supressão, são retirados do con trole da consciência, funcionam independente dela e, como o mostrou a psicologia profunda, levam subterraneamente uma vida autônoma e eficaz, que é fatal tanto para o indivíduo como para o coletivo. O que o estudo das neuroses demonstrou quanto ao indivíduo, nós o mostraremos agora quanto ao coletivo; os complexos do inconsciente, impedidos pela repressão de virem à luz do dia da consciência, minam e destroem o mundo da consciência. A insanidade e impenetrabilidade da situação anímica, que surge pela repressão, levam a conseqüências que superam de longe a periculosidade da ascese com sua clara atitude consciente de supressão. A instância de que se valeu a velha ética para se impor ao indivíduo é a “consciência” (Gewissen), no que esta instância da consciência (Gewissen), comojá Spitteler expôs no seu “Prometeu e Epimeteu”, está em constraste com a “voz” como a expressão individual do psíquico. Freud na verdade revisou1 mais tarde sua afirmação de que a consciência é em sua origem “medo social” e “nada mais”2 mas se partirmos da distinção de consciência (Gewissen) e voz interior, sua afirmação tem razão de ser3. Uma parte essencial da instância moral no homem Zeitgem ãsses über Krieg und Tod. 1. Freud, S., Das Unbehagen in der Kultur. 2. Freud, S., 3. Nota do tradutor: O termo “consciência” em português é ambíguo para traduzir o alemão “Bewusstsein” (o estado anímico em que o sujeito sabe dos conteúdos) e “Gewissen” (a instância moral psíquica que acolhe os valores para o indivíduo). Para evitar essa ambigüidade na tradução, todas as vezes em que aparece o termo “consciência” neste segundo significado- se acrescenta ao português a palavra alemã: consciência (Gewissen).
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está condicionada pelo ambiente, pela sociedade e pelo tempo. Estar de acordo com o cânon dos valores, que domina na comunidade e constituir a “cultura do superego”, significa ter uma “boa consciência” (gutes Gewissen), o nãoacordo com ele é a “má consciência” (Schlechtes Gewissen). A consciência (Gewissen) é a representante da norma co letiva e com ela muda de conteúdo e pretensão. A mesma instância, que do homem médio na Idade Média exigia coletivamente o total acordo com a cosmovisão do Antigo Testamento e condenava e recalcava o aspecto científico como “heresia”, exigia no século XIX o total acordo com a cosmovisão científica e condenava tendências religiosas como engano dos padres. A mesma consciência (Gewissen) proíbe na casta dos guerreiros o pacifismo e num grupo pacifista o impulso de agressão. Uma vez que a consciência do indivíduo desenvolvese primeiramente com a ajuda do coletivo e recebe dele a comunicação dos “bons valores”, o ego como centro dessa consciência normalmente se torna também o portador e representante dos valores eventualmente válidos do cole tivo. É a instância que, em identificação mais ou menos perfeita com esses valores, representa as exigências do coletivo no âmbito individual e rejeita as tendências con trárias existentes. O fim que o coletivo se coloca é sempre produzir uma vida e um modo de viver em comum que sejam o menos possível perturbados pelas forças ativas do indivíduo, pouco importando que estas forças tenham valores baixos ou altos. Tudo o que está em contraste com o equilíbrio do coletivo é convertido em tabu e proibido o seu desenvol vimento no indivíduo, sendo que os valores, que produzem esses equilíbrios nem sempre são fixos quanto ao conteúdo. O que significa valor para uma sociedade, para um grupo de determinada época ou comunidade, pode significar para outros um desvalor. O acordo com os valores do coletivo é a linha diretiva 19
ética do indivíduo que faz parte do grupo, e a consciência ( Gewissen) é a instância do sistema psíquico que, reagin do, tenta produzir esse acordo. A explicação de Freud, que diz ser o superego a autoridade externa introjetada, tem razão neste ponto. O acordo com os valores eventualmente dominantes do coletivo é, porém, uma tarefa inatingível. Uma vez que os valores da velha ética são “absolutos”, ou seja, não referidos à realidade do homem individual, a adaptação a esses valores constitui uma das tarefas mais difíceis da vida de todo indivíduo. Ela faz parte de sua adaptação ao coletivo. Vimos que a supressão e a repressão são os métodos principais de que se vale o indivíduo para adaptar-se ao ideal ético. A formação de dois sistemas psíquicos na personalidade é o resultado natural de semelhante ten tativa: um deles permanece em geral inteiramente in consciente, e o outro se forma para ser uma parte essencial com a participação do ego e da mente consciente. O sistema que geralmente permanece inconsciente é a sombra4, e o outro é a personalidade aparente ou persona5. A formação da personalidade aparente é operação essencial da cons ciência (Gewissen). Só com sua ajuda é que se tornam afinal possíveis o costume e a convenção, uma vida social da comunidade e uma ordem moral da sociedade. A formação da persona é tão necessária quanto universal. A persona, a máscara, aquilo pelo qual alguém é considerado e pelo qual aparece em contraste com o seu ser real individual, corresponde à adaptação às exigênciasdo tempo, do entorno e da comunidade. A persona é a veste e a cobertura, a couraça e o uniforme, por trás da qual e na qual o indivíduo se esconde, e com muita freqüência não só do mundo, mas de si próprio também. É a “atitude”, atrás da qual permanece invisível o incontrolado e o 4. Jung, C. G., Die Beziehungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten. 5. Ibidem.
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incontrolável, a aparência considerada, detrás da qual permanecem invisíveis o que é escuro e singular, desviante, secreto-misterioso. Uma parte essencial da educação dedica-se sempre à formação de uma persona, que torna o indivíduo “puro” e “capaz de sociedade”, e contribui não com o que ele é, mas com o que é preciso considerar como real; formação em que uma maior parte cabe ao aprendizado do que é preciso deixar de ver e passar por cima, em cada sociedade e em cada tempo, mais do que aguçar o olhar para o desenvol vimento da vigilância e do amor pela verdade. Quer se trate de um tabu dos primitivos, de uma convenção da sociedade ou de uma proibição moral, quer se trate de não se falar de determinados conteúdos, de não se ver determinados fatos ou se comportar como se deter minadas coisas, que não existem, existissem, quer se trate de dizer coisas que não se pensa ou de não pronunciar coisas de que se pensa de fato — em cada um desses casos a exigência do coletivo está orientada por valores que são urgentemente necessários para o seu desenvolvimento e para o desenvolvimento da consciência, e sem os quais o coletivo não poderia existir ou crê que não poderia existir. O ego recebe a recompensa do reconhecimento ético coletivo justamente à medida que consegue a identificação com a persona, a personalidade aparente coletivi-zada, pois essa personalidade aparente é a expressão do acordo com os valores do coletivo. O processo da formação da persona ocorre sempre de acordo com a abrangência e a índole do indivíduo e do tempo em diversos níveis. Nesse processo, não importa que essa personalidade-persona, na qual o ego se identifi ca com as exigências e valores da sociedade, do status ou do grupo popular, seja a de um médico ou de um advogado, de um cacique ou de um funcionário do partido, de um rei ou de um artista. Também pouco importa que a sociedade, 21
que coloca no indivíduo a máscara coletiva da persona, seja primitiva ou civilizada, democrática ou fascista. O contraste da “consciência” (“Gewissen”) com a “voz interna”, de que nos ocuparemos mais tarde de modo mais abrangente, pode confirmar o que afirmamos sobre a relação da ética com a formação da persona. Temos mais claro esse contraste no caso do fundador de uma nova religião ou de um movimento ético: este é sempre conside rado “criminoso” e é inevitável que seja considerado como tal. Abraão que quebrou os ídolos do seu pai, os profetas que dissolveram a mentalidade nacionalista-religiosa do povo judeu, Jesus que dissolveu a velha lei, Lutero que revolucionou o catolicismo, todos foram considerados como criminosos, assim como Sócrates que introduziu “novos deuses”, ou Marx e Lenin que começaram a aniquilar a velha ordem social. O revolucionário de toda ordem sempre está do lado da voz interior e contra a consciência (Gewissen) do seu tempo, que sempre é expressão dos velhos valores domi nantes, e a execução de tais revolucionários acontece sempre em obediência a motivos “éticos” bons. O curso da história reconhece com muita freqüência — não absoluta mente sempre, como o ensina a história dos hereges — os “criminosos da voz interna” como precursores de uma nova ética. Mas isso em nada muda no fato de que a consciência ( Gewissen) dos novos tempos, se bem que formada também pela ação de muitos revolucionários da voz interna, volte contudo a construir um cânon de valores dominantes e exija a adaptação a esse cânon mediante o processo de sua personalidade aparente. A persona exclui, sob a autoridade da consciência (Gewissen), um bom número de componentes psíquicos. Em parte eles são reprimidos no inconsciente, mas em parte são controlados pelo ego e conscientemente manti dos afastados da personalidade. Todas as propriedades, capacidades e tendências que não estão de acordo com os 22
valores coletivos, tudo o que teme a luz da opinião pública torna-se agora a sombra, a parte escura do ego, a parte não conhecida e não reconhecida da personalidade. A infinita série das figuras de sombra e figuras dúplices na mitolo gia, nos contos de fada e na literatura vai de Caim e Edom, passando por Judas e Hagen, até ao Mr. Hyde Stevenson e o homem mais feio de Zaratustra; ela sempre se apresen tou de maneira nova à consciência, mas o significado psicológico dessas contra-imagens até o momento não se tomou perceptível para a humanidade. A sombra é o outro lado. É a expressão da própria imperfeição e terrenidade, é o negativo que não se harmo niza com os valores absolutos. Ela é a corporalidade em contraste com a absoluticidade e eternidade de uma alma que não pertence “a este mundo”. A sombra representa a unicidade e transitoriedade de nossa natureza, é o condi cionamento e o limite próprio, mas constitui assim um sistema nuclear de nossa individualidade. A velha ética conhece duas reações à situação psíqui ca criada pela consciência ( Gewissen). Ambas são, com efeito, fatais, mas o são em diversa medida e com diversas conseqüências para o indivíduo. A situação mais freqüente e mais corrente para o homem médio é que o ego se identifique com os valores éticos. Essa identificação cavalga sobre uma identificação do ego com a persona. O ego confunde-se com a personalidade aparente, que é, com efeito, apenas a parte coletivamente medida da personali dade, e se esquece de que possui dimensões que estão em contradição com a persona. O que, porém, significa que o ego reprimiu o lado da sombra, e não existe nenhum contato com os conteúdos escuros, que são afastados da zona da consciência como negativos. Pela identificação do ego com os valores coletivos, o ego tem então uma “boa consciência” (“gutes Gewissen”). Ele se forma para estar de acordo com os valores positivamen te reconhecidos de sua cultura e não mais se sente apenas 23
como portador da luz da consciência do conhecimento humano, mas também como portador da luz moral do mundo dos valores. O ego cai então numa inflação perigosa, ou seja, na ofuscação da consciência por um conteúdo inconsciente. A inflação da boa consciência ( Gewissen ) consiste na injustificada identificação de um valor muito pessoal, a saber, do ego, com um valor suprapessoal, identificação que leva o indivíduo a esquecer a sua sombra, isto é, sua limitação e corporalidade de criatura, pelo que o inevitável não-acordo do ego com os valores coletivos é postergado. A repressão da sombra e a identificação com os valores positivos são dois lados de um só e mesmo processo. A identificação do ego com a personalidade aparente possibilita a repressão, e a repressão é a base da identifi cação pessoal do ego com os valores coletivos, através da persona. As formas com que se expressa a atitude aparente ética vão da ilusão genuína, passando por uma vida “como se”, até o farisaísmo e a mentira aparentemente santos. Essas reações falhas do homem à exigência ética não se limitam a determinado tempo histórico, mas o ocidente desses últimos cento e cinqüenta anos apresenta com muita freqüência essa pseudo-atitude. Em nenhuma época a iden tificação com valores, ilusionista e camufladora da realida de, dos homens ocidentais, foi tão grande como na época da precedente era burguesa. Ao contrário, porém, com tempos anteriores, ela se tornou consciente na autocrítica do ho mem moderno a partir de muitas perspectivas. A fé positivista no progresso é um precursor da primeira guerra mundial, e o estabelecer-se do homem moderno como sentido e cume da evolução criativa é o início do estabelecimento bestial da raça dos senhores arianos no nazismo. O iluminismo e o engano do coletivo na guerra e na paz é causa e resultado do iluminismo e do engano dos 24
indivíduos que em todas as esferas manifestam sua atitu de pseudocristã, pseudo-humanística, pseudoliberal e pseudo-humana. A inflação do ego significa sempre uma inundação por um conteúdo maior, mais forte e mais cheio de energia do que a consciência, e que, por isso, causa uma espécie de possessão da consciência. Tal possessão é perigosa, não importando o conteúdo que lhe subjaz, porque ela impede o ego e a consciência de uma genuína orientação para a realidade. Toda infação e possessão é acompanhada por uma limitação da consciência. Sua forma mais clara está na idéie fixe, ou seja, na situação em que o ego é acossado e preso por uma idéia fixa e em razão disso deixa de ver partes essenciais da realidade. O predomínio do conteúdo de que está possuída a consciência leva à repressão dos elementos da realidade que contradizem o conteúdo que exerce a possessão, e a negligência desses fatores leva à catástrofe. Como a história mostra sobejamente, todo fanatismo, todo dogma, toda unilateralidade forçada, são levados à ruína pelos elementos que tinham reprimido, suprimido e ignorado. A inflação do ego por sua identificação com os valores éticos coletivos não é tão fatal pelo fato de esses valores serem perigosos em si, e sim pelo fato de o indivíduo limitado enquanto ego pessoal identificar-se com o suprapessoal na figura dos valores coletivos, ele perde os seus limites e se toma desumano. A não-identidade do indivíduo com o impessoal é a base da sua vida. Somente distinguindo-se a criaturalimitada do criador-ilimitado é que se torna real a singu laridade e individualidade do homem. Pela inflação, essa situação básica é descurada, e o homem vira quimera, mero espírito e fantasma. Tal constelação se manifesta psicologicamente, en tre outras coisas, em sonhos de voador ou sonhos em que 25
se fica invisível, e termina depois também com freqüência como o vôo de ícaro, que é a representação simbólicomitológica dessa situação psíquica básica. As asas, coloca das apenas com cera, do ego inflacionado não se mantêm, no seu vôo demasiado alto, à força de derreter sob o sol do suprapessoal. A queda no mar, o ser tragado pelo incons ciente, a aniquilação do ego, que se imaginava imortal, é o fim. E o elemento inferior, invadido pela hybris, a ímpia soberba do homem, que provoca a queda; o que fora reprimido e se deixara de ver no orgulho de voar, agora se vinga. Conhecemos o mar, que traz a simbologia da mito logia e dos sonhos, como imagem do inconsciente. A lei, segundo a qual, na mitologia, a hybris do homem é casti gada pela vingança dos deuses e pela queda por ela causada, é projeção de uma lei psicológica. Toda inflação, todo identificar-se do ego com um conteúdo suprapessoal — e tal é o significado da hybris, em que o homem se ima gina igual aos deuses — leva à ruína, na qual o conteúdo impessoal, os deuses aniquilam o ego que não é capaz de reconhecer que o poder deles é superior. A imagem mitológica representa a conseqüência da inflação para o ego individual. Contudo, vamos nos ocupar mais com as catástrofes coletivas que resultam do com portamento que a velha ética exige. A inflação dos valores é a forma que o homem médio escolhe com mais freqüência para realizar a velha ética, mas não é a única forma. A velha ética era originalmente uma ética de elite. Era a solução de naturezas fortes que queriam, com a ajuda da supressão, resolver o problema ético com a consciente negação do negativo. A situação psicológica desse grupo de elite o expõe a outros perigos diversos da repressão e da inflação do ego, pois para ele é típica outra constelação psicológica. A desumanização como conseqüência da inflação do ego é 26
impedida por um fenômeno, que se vincula com a supres são e o sacrifício, a saber, pelo sofrimento. A tendência ascética da velha ética sempre se faz acompanhar pelo sofrimento consciente do indivíduo por causa de sua divisão em “duas almas”, a divisão entre a parte que deve ser rejeitada e suprimida e a parte que quer os valores e é consciente. É de importância secundária se tal sofrimento adquire a forma da renúncia ascética, da superação heróica, da adoração da fé ou da fiel observância da lei. No sofrimento, acolhe-se e realiza-se a situação humana básica de ser limitada. A impossibilidade de uma identificação do ego pessoal com o suprapessoal é expe riência viva no sofrimento do homem por causa de sua dupla natureza, no sofrimento pelo sacrifício do lado rejeitado. A finalidade da velha ética consiste na exigência de que “o homem deve ser nobre, disponível a servir e bom”, ou exprimindo de outra forma esses valores éticos: piedo so, fiel, corajoso, ativo, devoto a Deus, racional. Os métodos para atingir tal finalidade eram, como já acentuamos várias vezes, a repressão ou a supressão de todos os componentes “negativos”. Sendo assim, a concep ção básica da velha ética é dualista. Reconhece um mundo contrário de luz-treva, divide a existência em dois hemis férios de puro e impuro, bom e mau, Deus e Diabo, e aponta ao homem o seu dever nesse mundo dualisticamente dividido. A função do ego é a de se tornar representante do lado da luz. São possíveis formas ativas e passivas, extroverti das e introvertidas, políticas e religiosas, filosóficas e artísticas dessa atitude básica. O ego pode identificar-se na luta com o lado da luz e buscar representá-lo. Mas também pode lutar por ele e sofrer por ele. Em todo caso, o mundo dualisticamente dividido em luz e treva apanha também o homem. 27
O indivíduo acha-se agora fundamentalmente divi dido num mundo de valores, com que se deve identificar, e num mundo de valores inferiores, que dele faz parte e até pode dominá-lo e que se contrapõe, como treva, à luz do mundo da consciência e dos valores. O dualismo da velha ética, que está especialmente claro em sua versão irânico-judeu-cristã e gnóstica, divide o homem, assim como o mundo e a divindade, em duas partes, um homem superior e um inferior, um Deus e um Diabo. Essa divisão em duas partes é eficaz para além de todas as declarações de unidade ideológica e filosófica, religiosa ou metafísica. A realidade do homem ocidental está até hoje determinada basicamente por essa divisão em duas partes. A velha ética repousa sobre o princípio do conflito de opostos. A luta entre bem e mal, luz e treva é um problema fundamental. Se bem que no particular o conteúdo do bem e do mal podem mudar, o princípio da contrariedade dos opostos e sua luta e conflito permanecem como conteúdo da ética. A figura principal desta ética, sempre é o herói, quer como santo seja tido por idêntico com o princípio da luz — uma ilusão que se simboliza na auréola do santo — quer esmague, como são Jorge, o dragão. O outro lado é sempre erradicado ou decisivamente vencido e se lhe tira a vida. Mas a luta dos opostos — o que corresponde à concepção ética básica irânica da luta da luz contra as trevas — é infinita, pois a treva reprimida, suprimida e vencida sempre volta a se levantar, sempre de novo crescem à hidra as cabeças cortadas. A humanidade acha-se perante o estranho e, para a velha ética, o paradoxal problema de que mundo, natureza e alma são o palco de um inesgotável renascimento do mal. Assim como a luz não é eliminável por nenhuma força superior da treva, assim também não há sinais de que a treva possa ser eliminada por uma força superior da luz. 28
Ao passo que para o homem médio a velha ética repousava sobre a inflação do ego e na repressão, e sua solução aparente consistia na identificação do ego com os valores coletivos, tal situação é mais complicada no caso da elite ética. Nela encontramos também uma constelação contrária, a saber, uma deflação do ego. Essa deflação, uma identificação com o desvalor, o mal, expressa-se numa consciência dominadora de pecado, tal como encon tra sua forma mais clara na doutrina do pecado original, o “ser mau do homem desde criança”. Aí a desvalorização do ego pode ser tão forte, o sentimento de inferioridade com respeito ao suprapessoal tão catastroficamente acentuado, que não permaneça mais nenhum espaço propriamente significativo para uma nova ética. A queda no mal é experimentada aí tão decisivamen te que, perante ele, somente a redenção pelo ato da graça de Deus, e não por um agir ou ser do homem, pode segurar o braço da balança. Partindo dessa posição extrema e unilateral de identificação com o mal, muitos graus de consciência do pecado, que se vivência de imediato como certo incômodo mais ou menos sem esperança perante o terreno-material, corpóreo e animal, levam a uma posição intermediária. Chega-se nela pelo menos à experiência da própria natu reza dupla, que a um só tempo é boa e má. Mas então tambi.' :n prepondera o sofrimento por causa do próprio ser que é mau e que se deve suprimir, e “a vida neste mundo” adquire assim — como no puritanismo e no farisaísmo — um cunho severo, enrijecido e inimigo da vida. E característica então que, ao lado da depressão causada pela consciência do pecado, pode-se tomar ativa simultaneamente a inflação do ego e da identificação com os valores. A soberba da inflação de saber do bem e a segurança presunçosa de “possuir” o bem no seu próprio agir podem coexistir com a humildade de uma consciência contrita de pecado. 29
Nessa psicologia encontram-se todas as misturas, desde o ilusionismo moral e narcisismo do cumprimento da lei, passando pela estrada do combate em prol do bem, até o sofrimento por causa do dualismo do mundo, do desespero pela má índole do próprio coração e da consciên cia autodevoradora do pecado. Em todo caso, porém, a vida adquire, pela experiên cia do sofrimento, um fundo escuro, onde retorna indire tamente o elemento suprimido e atinge a consciência. Ao passo que na repressão o contato causador de sofrimento com os seus conteúdos pouco inteligíveis vem-a ser excluído pela ruptura com os elementos inconscientes, o sofrimento permite ao recalcado uma vida relativamente sã. Não é, como o repressor, acossado e vencido pelo lado escuro do inconsciente. A limitação espontânea da vida pelo sacrifí cio e pela supressão constitui uma forma de vida que não torna o indivíduo incondicionalmente doente. As conse qüências dessa supressão para o coletivo, porém, são funestas, mesmo quando o indivíduo não é prejudicial. O método da supressão comunga com o método da repressão usado pela velha ética quando o coletivo paga pela falsa virtude do indivíduo. A supressão, e ainda mais a repressão, leva a um estacionamento dos conteúdos omitidos ou reprimidos na consciência. Sob o aspecto de economia da energia, no caso da supressão a situação volta a ser mais favorável. O elemento supresso desempenha sempre o papel e a tarefa de inquietar a consciência. O embate do mal assume espaço essencial na consciência. Acresce que se sacrifica ao elemento omisso um acervo significativo de energia psíquica a partir do ego. A energia usada para a supressão age em parte como equivalente psíquico da não-realização do conteúdo anulado. A energia, se deveria investir na realização do conteúdo, agora é sacrificada a esse conteú do, na figura da energia que se requer para sua supressão. O equivalente dessa energia permanece vinculado ao 30
conteúdo rejeitado e vem a ser causa de inibição, de bloqueio e de mecanismos comportamentais que são ins trumentos da supressão. Tal forma de embate com o consciente tem em parte sua justificação na história evolutiva. Mas nem a forma do sacrifício de um equivalente de energia, nem a ocupação consciente com a supressão, nem o sofrimento causado por ele são suficientes para dominar o problema psíquico que surge da supressão de partes eticamente rejeitadas, ou seja, partes más da personalidade. Na repressão, ao invés, faltam também as elabora ções parciais, equivalentes a válvulas, que aparecem na supressão. As forças e conteúdos que são totalmente repri midos, não tendo nenhum acesso à consciência, não ficam inalterados no inconsciente com o seu caráter original, mas se transformam. Os conteúdos reprimidos tornam-se “re gressivos” e negativamente se revigoram. Sem podermos tratar aqui do processo da repressão6, podemos dizer que mediante ele vivificam-se formas mais primitivas de rea ção. Um golpe mortal por afeto constitui, por exemplo, uma reação humana mais primitiva do que a que foi superada pelo desenvolvimento da consciência na figura da instância da consciência (Gewissen) e da formação do direito. A cons ciência mais elevada se dissolve no processo da regressão e novamente entra em seu lugar a reação primitiva anterior. De acordo com uma experiência geral, que não pode mos esclarecer com mais detalhes no momento, os conteú dos capazes de chegar à consciência, mas aos quais se fecha o seu acesso, tornam-se malignos e destrutivos. Sabemos pela vida diária que a incapacidade e falta de vontade de se tomar conhecimento de um fato ou de um conteúdo ou de se “reagir” a algo faz de uma mosca um elefante ou uma serpente venenosa. O conteúdo reprimido fica regressivo, associa-se no inconsciente a outros com 6. Jung, C. G., Uber die Energetik der Seele.
conteúdos primitivos e negativos, e no caso dos psiquica mente instáveis, por exemplo, não é um fato raro que uma pequena raiva, que não se deixa entrar na consciência, converta-se em acesso de furor ou de depressão. Pode-se dizer, de maneira muito geral, que forças reprimidas se estancam e formam no inconsciente uma forte tensão que tende à sua destruição. Surge agora a pergunta: O que ocorre com as partes da personalidade — tendências, forças e impulsos — que, pela velha ética, foram excluídos da vida? Essa exclusão é tanto mais radical, a divisão e cisão entre a consciência que se identifica com os valores e o inconsciente ético é tanto maior quanto mais dogmaticamente se impõe a velha ética ao grupo ou ao indivíduo, isto é, quanto mais forte é o exercício da consciência ( Gewissen). O viver da consciência ( Gewissen) manifesta-se na supressão do sentimento de culpa consciente, e, na repres são, do sentimento de culpa inconsciente. O sentimento de culpa corresponde à constatação da sombra, que, em caso de supressão, expressa-se em sofrimento, e, em caso de inflação e repressão, porém, permanece inconsciente. O afastamento desse sentimento de culpa, que repousa na presença da sombra, realiza-se, individual e coletivamen te, de maneira semelhante, ou seja, no fenômeno da projeção da sombra. A sombra, que está em contradição com os valores, não pode ser aceita como parte negativa da própria estrutura projetada, ou por isso colocada para fora e experimentada como algo externo. E combatida, punida e extirpada como “estranho fora” em vez de um “próprio interno”. A forma da velha ética de eliminar o sentimento de culpa e de excluir as forças negativas proibidas constitui um dos maiores perigos para a humanidade. Estamos pensando no expediente psicológico do bode expiatório. Essa tentativa de solução, que se pode constatar em tods
a humanidade7, é mais conhecida no ritual do judaísmo: a purificação do coletivo era feita reunindo o mau e impuro sobre o bode expiatório, que em seguida era expulso para o deserto de Azazel. Com a ajuda desse ritual, o mal era expulso da comunidade e de sua consciência para o campo do desconhecido e do inconsciente. Os conflitos psíquicos inconscientes dos grupos e das massas exteriorizam-se sobretudo em irrupções epidêmi cas, em guerras e revoluções violentas, nas quais as forças inconscientes coletivamente acumuladas tomam-se do minantes e fazem história. Deparamos na psicologia do bode expiatório uma tentativá primitiva, se bem que in suficiente, de se solucionar os conflitos inconscientes. A psicologia do bode expiatório determina quer a vida inte rior, quer a vida em comum
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