Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas

April 2, 2017 | Author: Oliveira Alberto | Category: N/A
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ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

Textos on-line de Eric Voegelin ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ERIC VOEGELIN ** A Idade Média - Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch • A . O Crescimento do império • 1 Estrutura Geral da Idade Média • 2 Os Povos Germânicos Migrantes • 3 O Novo Império • 4 A Primeira Reforma • B. A ESTRUTURA DO SÉCULO • 5 Introdução • 6 João de Salisbúria • 7 Joaquim de Fiora • 8 S. Francisco de Assis

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ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

• 9 Frederico II • 10 O Direito • 11 Sigério de Brabante • C. O CLÍMAX • 12 S. Tomás de Aquino • D. A IGREJA E AS NAÇÕES • 13 Carácter do Período • 14 Ultramontanos e Egídio Romano • 15 Monarquia Francesa • 16 Dante • 17 Marsílio de Pádua • 18 Guilherme de Ockham • 19 Política Nacional Inglesa • 20 Da Cristandade Paroquial à Cristandade Imperial • 21 A Área Imperial • 22 O Movimento Conciliar

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Capítulo 7

ERIC VOEGELIN ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ** A época medieval Capítulo 7. Joaquim de Fiora 1. O progresso na história Era geral na época o sentimento de que o crescimento das ordens significava um progresso da espiritualidade, inaugurando uma nova fase da vida cristã. A experiência revelatória de Joaquim accionou estas potencialidades e criou uma nova configuração da história. O passo decisivo foi a concepção do Terceiro Reino não como um sabbath eterno mas como a idade derradeira da história da humanidade que se segue à eleição do filho. O decurso de um reino abrange um período preparatório (de Adão a Abraão, 21 gerações) seguido pela initiatio, (Abraão a Uzias, 21 gerações) e a fructificatio (Uzias a Zacarias, 21 gerações) a última das quais é ao mesmo tempo o período preparatório para o próximo reino. Os reinos têm, pois, 42 gerações; e como a duração das gerações para o reino de Cristo é de 30 anos, o segundo reino terminaria em 1260. A data é antecedida para 1200 porquanto o próprio Segundo Reino é precedido por um curto período preparatório das duas gerações precursoras de Zacarias e João Baptista de modo que Joaquim está no final do Segundo reino e pode ser o profeta do Terceiro. O começo de cada reino é marcado por uma trindade de dirigentes, dois precursores e o dirigente do próprio reino com os seus doze filhos (Abraão, Isaac, e Jacob com os seus doze filhos carnais; Zacarias, João Baptista e Cristo o homem, com seus doze

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Capítulo 7

filhos espirituais). O Terceiro Reino, a seguir a Joaquim, começará, portanto, com dois precursores a serem seguidos na terceira geração por um novo dirigente, um Dux e Babylone, que será o fundador do Reino do Espírito.

2. O significado da história O primeiro símbolo “é a concepção da história como uma seqüência de três eras, das quais a última é claramente o terceiro reinofinalw.[1] Entre as variantes de notória relevância política, estão a partição da história em épocas antiga, do cativeiro e dos santos na terra que marcou a revolução puritana; a doutrina Iluminista da sucessão de fases teológica, metafísica e enciclopédica marca a revolução de 1789; a dialéctica marxista com os três estádios de liberdade inconsciente, alienação e reino da liberdade findou em 1989; o ciclo formado por santo império, império do Kaiser e terceiro império inspirou o Reich nacional-socialista dos mil anos que findou em 1945.[2] 3. Os elementos constantes da nova especulação política. a. A concepção de Joaquim resultou num conjunto de elementos formais para a interpretação do saeculum que, desde então, permanecerá, isolado ou em combinação, parte integrante da especulação política ocidental. b. A Função do Pensador Político O terceiro símbolo é o do profeta da nova Era, que pode surgir confundido com o dirigente. O próprio Joaquim de Fiora representa o primeiro modelo do intelectual que presume ter uma visão do curso da história como um todo acessível ao conhecimento. Sucessivas vanguardas iluminadas irão reclamar-se de idêntico conhecimento da marcha do tempo e propor as suas especulações como a lógica da história.

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Capítulo 7

c. O dirigente do terceiro Reino O terceiro símbolo é o de dux, o dirigente cuja erupção é constante em todos os movimentos revolucionários. Este dirigente desdobra-se por paráclitos agnósticos e ateus conforme a sensibilidade e as categorias de análise da época em que se faz anunciar. O símbolo ressurge nos príncipes novos da Renascença, nos iluminados do século das Luzes, nos revolucionários de 1789, nos génios do Socialismo e nos dirigentes totalitários do século XX. d. A irmandade das pessoas autónomas O quarto símbolo é o da irmandade ou fraternidade que se estabelece entre os que participam no Espírito. A noção de uma comunidade de perfeitos que vivem sem autoridade institucional e sem a mediação da Graça presta-se, segundo Voegelin, a inúmeras variações históricas. Ressurgiu nas Igrejas puritanas dos santos e em numerosas ideologias da modernidade em cujos autores a razão se incarnara tão perfeitamente que consideram a própria mente como critério de verdade; alguns, como Lenine e Hitler, desceram à arena política para canalizar os movimentos de massa para a acção destrutiva. Nos três reinos predominam sucessivamente a lei, a graça e o espírito. No primeiro reino desenvolveu-se a vida do leigo, no segunda a vida do sacerdote, no terceiro a contemplação espiritual perfeita do monge. No nível da história espiritual a intelligentia spiritualis irá proceder do Velho e do Novo Testamentos, tal como o Espírito procede do Pai e do Filho. O Espírito irá manifestar-se socialmente através de uma nova ordem. A perfeição da vida é dada através dos três elementos de contemplação, liberdade e espírito. O novo aparecimento do Espírito está fora da história dos Evangelhos que constituem o segundo reino; os quatro evangelhos serão seguidos por um quinto, o evangelium eternum anunciado em

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Capítulo 7

Apocalipse, 14, 6. Não será um evangelho escrito mas o Espírito na sua actualidade, transformando os membros da Ordem em membros do Reino, (evangelium regni Mateus, 4,23) sem mediação sacramental. A Igreja deixará de existir no Terceiro reino porque os dons carismáticos necessários para a vida perfeita, alcançarão o homem sem administração sacerdotal de sacramentos. Estas construções simbólicas criam uma evocação de uma nova ideia do homem como uma pessoa espiritual autónoma e livre, capaz de formar uma comunidade de solidariedade fraterna, independente da organização eclesiástica e feudal da sociedade. O homem, dotado de poderes espirituais amadurecidos surge como o organizador potencial da comunidade. Podemos ver a linha que liga o protestantismo intelectual dos York Tracts, com o individualismo tiranicida de João de Salisbúria como a ideia joaquimita de libertação do homem de formas sociais, eclesiásticas ou profanas, e uma época que está morrer. Podemos ainda reconhecer as camadas sociais portadoras do novo sentimento; cresceram para além da população urbana da Pataria e de intelectuais isolados da população rural; Joaquim talvez fosse de origem rural. Mas também são óbvias as limitações da ideia. O terceiro reino é constituído por uma elite religiosa. Perdeu-se o compromisso civilizacional que confere eficácia ao cristianismo. O novo reino não tem lugar para as fraquezas do homem nem para a variedade dos seus dotes naturais. A riqueza humana da ideia de corpo místico perde-se no igualitarismo aristocrático de pessoas espiritualmente maduras. A evocação de Joaquim pode originar um seita mas não um povo. A sua construção é a fórmula mais geral para o problema da era porque emana do centro espiritual mas o conteúdo social restrito deixa a ideia a flutuar. O homem espiritualmente maduro de Joaquim segue-se ao indivíduo político de João de Salisbúria e ao intelectual

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independente dos York Tracts. O leque de possibilidades intramundanas está a crescer mas não existe uma síntese à vista. A concordância tradicional entre os dois numa sequência a exigir um terceiro momento, o da plena manifestação do Santo. Às três pessoas da Trindade correspondem três fases da humanidade. Na era do Pai com temor e tremor, até ao nascimento de Jesus Cristo. Na era do Filho, anunciada por Uzias, em fé e humildade, desenvolveu-se A terceira era, a do Espírito Santo, já anunciada por S. Bento trará a Perante esta nova escatologia tornava-se secundário que, conforme especulações numerológicas correntes, Fiora calculasse que a “terceira era” principiaria em 1260 ao manifestar-se o dux ex Babylone, dirigente apocalíptico da nova época.[6] 34 A re-interpretação do saeculum cristão Para Huizinga a inserção de Joaquim de Fiora como grande precursor da Renascença assenta numa corrente de ideias definida com precisão. Para Spengler, ele foi "o primeiro pensador de estatura hegeliana a abalar a configuração mundial dualística de Agostinho, um formulador da Nova Cristandade com o seu intelecto essencialmente gótico". Norman Cohn descreveu Fiora como"inventor do novo sistema profético que haveria de ser o mais influente de todos os conhecidos na Europa até ao aparecimento do marxismo". Embora as edições críticas destes textos estejam ainda hoje incompletas, os materiais historiográficos são abundantes graças a uma sequência de estudiosos como Denifle, Renan, Fournier, Grundmann, Benz, Buonaiuti, Tendelli e Taubes, activos desde finais do século passado. Mas, lembrava Friedrich

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Heer em 1953 "ainda estamos longe no início de uma interpretação de Fiord'. Voegelin seleccionou Joaquim de Fiora como criador do "conjunto de símbolos que preside, até hoje, à auto-interpretação da sociedade moderna".[3] Compostos nos fins do séc. XII, os escritos joaquimitas foram publicados pela primeira vez em Paris em meados do séc. XIII, tendo o editor escolhido para título da colecção das obras principais a expressão nelas frequente "um novo Evangelho Eterno''. Reconhecidas como obras autênticas são a Concordia Novi ac Veteris Testamenti (1184-89), Expositio in Apocalypsim (1184-1200) e Psalterium decem Chordarum (1184-1200). Entre as obras menores depois coleccionadas encontram-se Tra,ctatus super Quatuor Evangelia, De Articulis Fidei, Adversus Iudeos e o tratado perdido De Essentia seu Unitate Trinitatis. É ainda relevante o Liber Figurarum, atribuído a um discípulo, cujos diagramas representativos - três círculos enleados e parcialmente sobrepostos e cruzados pelo Tetragrammaton - correspondem a cada uma das épocas da Trindade e acrescentam um dinamismo temporal à ênfase habitual na revelação do Deus uno e trino.[4] A originalidade resulta mais evidente se confrontada com os escritos do seu tempo e com as respostas às interrogações filosóficas sobre as características do ser divino.[5] Seguindo esta via, Voegelin atribui a Fiora o símbolo culminante da imanentização do eschaton: "O primeiro símbolo é a concepção da história como uma sequência de três era,s, da,s quais a última é claramente o terceiro reino final".[7] Entre as variantes notórias, contam-se a partição da história em antiga, medieval e moderna; as doutrinas iluministas e positivistas acerca da sucessão de fases teológica, metafísica e científica; as dialécticas hegeliana e marxista com três estádios de liberdade inconsciente, alienação e reino da liberdade; e enfim, o ciclo formado por Santo Império, Império do Kaiser e

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Capítulo 7

Dritte Reich nacional-socialista.[8] Nesta leitura voegeliniana entrelaçam-se motivos positivos e negativos que revelam uma relação muito complexa que quase poderíamos classificar de edipiana. Voegelin denuncia a falsificação fiorita do carácter trinitário numa gnose que rebate o ser divino sobre o tempo histórico. Rejeita que a idade do espírito, identificada por símbolos como consummatio, renovatio, reformatio, recreatio e ressurrectio seja a de uma nova era da humanidade. Rejeita o primado do futuro sobre as idades do presente e passado, expresso na preferência concedida a símbolos tais como proficere, ascendere, progressio, mutatio, processus, sucessio. Rejeita que o alvo final da história humana na terra seja a liberdade do mútuo reconhecimento trazida por uma nova fraternidade, baseada na comunidade de monges. Rejeita que tenha qualquer sentido, pura e simplesmente, falar de um desenlace terreno da existência humana. A censura é radical. Mas até que ponto esconde Voegelin as diferenças profundas entre o pneumatismo de Joaquim e o imanentismo moderno que afirma ser sua consequência obrigatória ? Como se comprova pela movimentação dos franciscanos espirituais em ordem à terceira era, tal visão não conduz necessariamente às construção imanentistas da modernidade. Acresce que, ao anunciar o advento de um mundo novo, Fiora interpreta o seu tempo como época de colapso e desarticulação apocalíptica. Poder temporal e poder espiritual combatiam-se sem tréguas corrompendo a ordem cristã que se deveria reger pelo equilíbrio entre os dois poderes. Está a acabar o período do Filho e o momento é propício para pregar o abandono do mundo velho. A desarticulação da ordem cristã imperial viabiliza o anúncio de uma nova ordem, sem Império nem Igreja e com uma religião desmundanizada. Donde o anúncio da terceira era a ser instaurada pelos monges, os santos cidadãos da cidade de Deus. O que levou Voegelin a este nexo entre profetismo e imanentismo ? Por que razão

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Capítulo 7

pensou que a Idade Média floresceria contra a auto-interpretação cristã ? Porque concebeu a tensão medieval entre o “reino de Deus” e a sociedade dessacralizada seguida pela mais grave das quedas? E que civilização poderia desenvolver-se contra a sua própria ideia directiva ?

[1] NSP, p.115. [2] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em obra com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira Roma. A sua intenção claramente nacionalista mas romântica era incompatível com a ideologia nacional-socialista que se apropriou do termo. [3] NSP, pp.110-113. Lembre-se o verso que Dante lhe dedica na Divina Comédia , Paraíso, XII, 139-141: "...e lucemi da dato/ Il Calabrese abate Gioacchino/Di spirito profetico dotato". Na sua interpretação, Voegelin tem presente TAUBES 1947, em particular pp.192-4, para o qual a história espiritual do Ocidente é a da dinâmica e dialéctica da alienação existencial; cita ainda LÕWITH 1949, GRUNDMANN 1927 e BUONAIUTI 1931. [4] Cf. bibliografia joaquimita in RUSSO 1954. [5] Para MURRAY 1970, pp.102-104, a consciência historiográfica no séc. XII, depende da interpretação da restauratio ou reformatio, tratadas quer como retorno a um passado modelar quer como criação de um futuro inaudito. [6] Cf. LÕWITH 1949,pp.148-9:"The first dispensation is historically an order o f the married, dependent on the Father; the second an order o f clerics, dependent on the Son; the third an order o f monks dependent om the Spirit o f Truth The first age is ruled by labor and work, the second by learning and discipline, the third by contemplation and praise, The first sta.ge possesses scientia, the second sapientia ex parte, the third. plenitudo intellectus". [7] NSP, p.115.

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Capítulo 7

[8] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em livro com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira Roma. A sua intenção nacionalista não coincide com a ideologia nacional-socialista que se apropriou do termo.

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Francisco de Assis

Estudos de Ideias Políticas - II. A Idade média - Capítulo 8. São Francisco de Assis Como figuras simbólicas da sua época, as personalidades de São Francisco de Assis e de Joaquim de Fiora estão intimamente ligadas. São Francisco não teria sido visto pelos Espirituais como a figura decisiva que inaugurava uma época nova na história cristã, se as profecias de Joaquim não fornecessem o padrão simbólico para a sua interpretação; e as profecias de Joaquim não poderiam ter exercido a sua forte influência no séc. XII, e em Dante, a menos que a aparecimento de São Francisco confirmasse a previsão do Dux de uma nova era. Tal como no caso de Joaquim, na interpretação de São Francisco, temos de atentar na peculiar relação dialéctica entre as suas ideias e as suas acções. A doutrina de São Francisco é um evangelho de amor fraterno, de pobreza, obediência e submissão. A acção de São Francisco é revolucionária; dimana de uma vontade auto-afirmadora, inflexível e dominante, e cria um estilo de vida para o simples leigo, o idiota, sem grau feudal nem eclesiástico, mas equiparado às duas grandes ordens da autoridade temporal e espiritual. O denominador comum da acção evocativa neste tempo é o impulso de forças humanas para encontrar o seu lugar num mundo cristão preocupado com os poderes estabelecidos. A necessidade trágica da criação de uma Ordem, mesmo de amor, e que exige uma dureza daimoníaca de acção que ofende os circunstantes, matiza a página franciscana do Louvor das Virtudes. A virtude da obediência tem como função a completa submissão do corpo à lei do espírito; o homem está submetido aos seus companheiros e mesmo aos animais selvagens: O pacifismo radical de não-resistência em São Francisco parece ser o oposto da violência tiranicida em João de

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Francisco de Assis

Salisbúria. Afinal, as virtudes têm a função militante de confundirem os vícios do mundo. É impossível compreender a atitude franciscana se as categorias éticas de virtude e vícios forem referidas apenas ao carácter individual. No contexto dos escritos, virtudes e vícios são forças que emanam dos poderes supremos do bem e do mal, de Deus e do satã e que se apoderam dos homens. A luta das virtudes contra os vícios é uma empresa colectiva. Sem alcançar a rigidez maniqueísta, existe aqui uma matiz de imanentismo maniqueísta. A simplicidade tem que confundir a sabedoria deste mundo; a pobreza luta contra os cuidados mundanos; a humildade contra o orgulho. Possuir as virtudes exige atacar o mundo e as instituições de família, propriedade, herança, autoridade governamental e civilização intelectual. O ataque reveste-se da forma social de uma pregação das virtudes. Ao sentir-se demasiado doente para pregar, São Francisco utilizou a forma da carta aberta divulgando a sua mensagem aos fiéis. A mais importante destas cartas, e a mais notável pela sua dignidade é a carta de 1215 ”A todos os Cristãos” (Opusculum commonitorium et exhortatorium (epistola quam misit omnibus fidelibus).

2. O estilo da pobreza O ataque ao mundo em nome dos conselhos evangélicos parece revigorar a expectativa escatológica de um reino que não é deste mundo. Contudo, é uma força e uma fraqueza de S. Francisco a criação da ideia de uma vida em conformidade com Cristo como modo de existência. Tentou realizar o que Joaquim de Fiora projectara; estabelecer uma nova ordem do espírito no mundo. A sua atitude e linguagem sofrem desta dualidade. Quando ataca o mundo (mundus ou saeculum ) utiliza o

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Francisco de Assis

vocabulário evangélico mas com um novo significado evangélico. O homem não é chamado a arrepender-se porque o reino de Deus está próximo ( Mateus, 3, 2) mas porque a vida de pobreza e obediência é aconselhada como a constituição permanente do mudo em conformidade com a vida do Salvador. Os escritos de São Francisco apresentam assim elementos que se contradizem flagrantemente. A primeira Regra delineia a "vita evangelii' para a qual São Francisco obteve permissão oral de Inocêncio III; aconselha a romper com pai e mãe e à quebra rude com a família e as suas obrigações, a fim de tomar a cruz e seguir o Senhor. Retoma-se a dureza escatológica de Cristo não só nas palavras dessa regra como na sua atitude para com os pais. Por outro lado, aceita incondicionalmente a existência da Igreja sacramental como única evidência corpórea mundana do Filho de Deus. Não só pretende basear a vida de perfeição evangélica directamente no Evangelho como mantém um sentimento para com a Igreja a lembrar o dito de Santo Agostinho de que não acreditaria em Cristo se não fosse a Igreja.

3. A submissão à Igreja. Estes conflitos profundos ajudam-nos a determinar de modo mais preciso a posição e a função de São Francisco. O espírito de revolta contra os poderes estabelecidos espalhava-se por todo o mundo ocidental, dos intelectuais, aos burgueses e camponeses. O movimento era cada vez mais dirigido contra a organização feudal da sociedade, incluindo a Igreja sacramental. Quando o movimento encontrava apoio de massas, adoptava a forma de seitas fundamentalistas, desenvolvendo fricções com a Igreja, quer intencionalmente quer por pressões circunstanciais; o regresso ao ideal evangélico de perfeição era o único simbolismo revolucionário disponível para a civilização cristã desse tempo.

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Francisco de Assis

Não temos que nos preocupar demasiado com a questão de saber se a glorificação franciscana da Irmã Pobreza foi ou não influenciada pelo conhecimento dos ideais dos Pobres de Lião. Em qualquer caso, o ideal de pobreza, juntamente com outros conselhos evangélicos, estava destinado a ser o símbolo da revolução. O que separava São Francisco de dirigentes sectários, e o tornou um santo em vez de um heresiarca, era a sua sinceridade convincente, a sua realização exemplar dos ideais que ensinava, o seu encanto, a sua humildade, uma ingenuidade que não era deste mundo. Para a sua submissão à Igreja e para a sua crença de que a fraternidade dos pobres em Cristo poderia persistir sem institucionalização, não temos outra explicação senão uma cegueira para as vias do mundo, originada pela grande pureza do seu coração. Os desapontamentos inevitáveis que experimentou podem ser fortemente sentidos nas admoestações aos irmãos no Testamento: manter a simplicidade da Regra, não a acrescentar nem diminuir, não fazer glosas nem interpretar o Testamento como uma nova regra e não procurar privilégios de qualquer tipo da Cúria. O mundo não cedeu ao seu ataque mas por seu turno, penetrou a sua irmandade. A santidade do seu carácter teve consequências de grande alcance no domínio da política. Ao mesmo tempo que conduzia a cruzada contra os Albingenses, Inocêncio III confirmava a Regra de São Francisco. Se considerarmos o apelo de São Francisco, a rápida difusão da Ordem e em particular, o influxo maciço na Ordem Terceira, é difícil imaginar que formas a revolução social teria adoptado, se a Igreja não captasse o movimento através da pessoa de São Francisco, e a integrasse na sua organização graças, sobretudo, à acção do Cardeal Ugolino de Ostia, futuro papa Gregório X.

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Francisco de Assis

4. A Igreja dos leigos A vida de São Francisco permite diagnosticar a doença que afligia o corpo místico da Igreja. O império cristão transferira o cristianismo do ambiente urbano para a sociedade rural. A dinâmica da vida cristã passou das comunidades para as hierarquias, espirituais e temporais. O surgimento do idiota, desde o sec.XII é uma força nova que assinala a reentrada da comunidade urbana como força social no mundo cristão. O significado original de ecclesia é de comunidade-Igreja. No império romano a ecclesia local era uma ilha do populus christianus num mar de paganismo. No império carolíngio, a autoridade temporal fora integrada no sistema dos carismas cristãos de modo que as duas ordens do corpo único de Cristo cooperavam na tarefa difícil (e que hoje seria considerada totalitária) de criar um povo cristão uniforme com base em hierarquias pré-existentes. Agora, no séc. XII, a ecclesia corre o risco de se reduzir a uma organização sacerdotal enquanto os idiotae, os leigos, formam uma comunidade que tenta viver em paz com o clero. Na linguagem de S. Francisco (Testamentum,3) o leigo vive em conformidade com Cristo e o sacerdote em conformidade com a Igreja Romana. Assim nasce uma nova necessidade de ajustamento da ecclesia. A ecclesia Franciscana é apenas um começo. Os problemas reaparecerão quando novas ecclesiae nascerem de cidades, classes e nações e tiverem que lutar por um lugar no sistema dos velhos poderes.

5. A conformidade com Cristo e a natureza A pessoa e a religião de São Francisco constituíam forças intramundanas em oposição ao imperium, dotado de princípios gelasianos, facto obscurecido pela linguagem

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Francisco de Assis

do ideal de vida em conformidade com Cristo. A religiosidade franciscana poderá parecer apenas um retorno às ideias do cristianismo primitivo. Mas não é assim. Os fiéis das primeiras comunidades seguiam o Messias e queriam o reino de Deus para participar na Sua glória. São Francisco imita o homem Jesus a partir de uma nova compreensão do sofrimento sacrificial e da humildade na terra. Trata-se de um novo entendimento da dignidade do sofrimento e da criação sem voz. São Francisco é espantosamente sensível à criação divina onde ela é mais “criada” e menos auto-afirmativa: sofredores, pobres, doentes e moribundos, animais, flores e a ordem silenciosa do cosmos. É uma nova atenção que agora floresce a um reino de ser já observada nos York Tracts, a penetração do Espírito no reino da natureza. Francisco utiliza fórmulas escatológicas duras mas o sentimento que o move não renega o mundo; pelo contrário, adiciona-lhe uma dimensão até então silenciada no cristianismo. A alegria da existência das criaturas e a expansão alegre da sua alma, alcançando em amor fraterno essa parte muda do mundo que glorifica Deus apenas pela humildade de ser criado, a alegria simples na comunidade recém-descoberta da criação divina, torna São Francisco o grande Santo. Através da descoberta e aceitação do estrato mais baixo da criação como parte significante do mundo, tornou-se uma das figuras relevantes da história ocidental. Tomou os humildes pela mão e conduziu-os à sua dignidade, não para um reino de Deus no outro mundo, mas num reino de Deus que é deste mundo. Conferiu à natureza a sua alma cristã e com ela a dignidade que a torna objecto de observação. A expressão sublime deste sentimento são os Louvores das criaturas. O cântico abre com o louvor de Deus, depois louva os corpos celestiais, os elementos, a terra que cria frutos e flores, os humildes que perdoam e

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Francisco de Assis

vivem em paz, e a morte corpórea; encerra com o aviso de que todos sirvam a Deus “com grande humildade”.

§6. O Cristo intramundano A preocupação com estas novas descobertas resultou, porém, numa limitação da experiência cristã. São Francisco alargou o nosso mundo mas a sua tónica na nova dimensão negligenciou outras dimensões. Traz a irrupção de novas forças intramundanas; não traz a síntese; a espiritualização da natureza é um naturalismo. A fórmula da vida em conformidade com Cristo é conformidade com o sofrimento de Cristo, não com Cristo-rei em sua glória. Na conformidade com Cristo o homem alcança a eleição suprema através dos estigmas na noite de La Verna. Mas como se conformar com o Messias? A evocação de São Francisco criou o símbolo do Cristo intramundano que absorve a parcela pessoal do salvador que se conforma com os humildes e sofredores. Mas o Cristo dos pobres não é o Cristo da hierarquia sacerdotal e régia, nem a cabeça do corpo místico de Cristo e da humanidade. A evocação de São Francisco desestabiliza o compromisso com o mundo, característico do período imperial ocidental e a diferenciação dos homens e o estabelecimento das duas ordens como funções do corpo místico. O mundo rompe-se quando Cristo deixa de ser a cabeça do corpo diferenciado da cristandade e se torna o símbolo de uma sua parte. A evocação de São Francisco é o símbolo mais impressionante da desintegração do sacrum imperium. Enquanto o Santo atingia o seu clímax com os estigmas, subia a estrela do imperador que era considerado o Anticristo, e que pela primeira vez desde a Antiguidade se apresentava como a lei animada, nomos empsychos, fora da ordem carismática do corpo místico.

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ERIC VOEGELIN

ERIC VOEGELIN ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ** A época medieval

Capítulo 9 Frederico II

Dominus Mundi

1. A deslocação do império 2. A constituição de Melfi 3. Cristandade Cesárea

1. A deslocação (Peripateia ) do império O último imperador medieval foi o fundador do primeiro estado moderno. Em ordem a compreender o seu papel e o seu desempenho consciente, tem que se observar a estrutura política em mutação do mundo Ocidental que foi o horizonte da sua vida e perceber que a crise da época encontrou nele um símbolo estupendo. O factor que determinou a transformação e a desintegração da ideia imperial foi o surto de unidade políticas periféricas. No séc. XI essa franja de principados ganhara importância suficiente para inspirar a Gregório VII com a visão de uma comunidade de reinos nacionais, dependentes da autoridade semi-feudal e semi-espiritual do papado como contrapeso ao próprio império. Entre

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esses eventos, conta-se a expansão normanda dos séculos X e XI, a fundação dos reinos ilhas da Sicília e da Inglaterra e a expansão dos poderes insulares para o continente, A expansão normanda para Sicília, Itália do Sul e Inglaterra adicionou dois poderes consideráveis; a conquista permitiu aos duques normandos organizar o poder como uma grande racionalidade até então desconhecida. Basta mencionar que Guilherme o Conquistador e os seus sucessores desenvolveram uma administração régia centralizada, e puderam manter à distância os poderes e os senhores feudais e a concentração do poder nas mãos do rei foi a base de desenvolvimento da gentry inglesa e da classe média, e consequentemente da evolução recente das formas constitucionais de governo. Na Sicília Frederico II aperfeiçoará o Estado de Rogério II (1130-1154) facilitado pela tradição da administração muçulmana e bizantina.

Este escrutínio dos factos principais é extremamente incompleto mas serve para mostrar a modificação completa da cena política. A importância relativa do sacrum imperium diminui porque os novos poderes surgem na periferia e fazem inflectir o centro da política para Ocidente e para Sul. A ascensão destes poderes desintegra a ideia imperial e suplanta-a com novas evocações adaptadas a um mundo de poderes rivais: o princípio Gelasiano como evocação dominante do Ocidente decresce e emerge o problema do equilíbrio do poder, no sentido moderno. A irrupção de forças intramundanas no campo da evocação imperial exprime-se através de três formas principais: o aparecimento da arte do Estado, o aparecimento do estadista e o crescimento da consciência nacional como factor determinante na política. O aparecimento da razão de estado nota-se nas conquistas normandas. A situação de conquista teve um efeito semelhante entre o séc. XI e XIII semelhante ao da revolução no período posterior ao

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dos estados nacionais; varridos os interesses dominantes estabelecidos, tornava-se possível uma reconstrução racional da organização governamental. A melhoria da administração financeira e militar aumentou enormemente o poder político. A Sicília era cobiçada porque tinha um sistema de impostos que fazia do seu monarca o mais rico da Europa. A racionalização militar permitiu a derrota da cavalaria feudal pela infantaria burguesa ou o triunfo da cavalaria profissional e da milícia burguesa de Filipe II de França como as forças feudais em Bouvines (1214). Frederico II apoiava-se em tropas mercenárias sarracenas. Em segundo lugar, surgem os mestres do poder político. Mesmo o imperador Henrique VI e o papa Inocêncio III são representantes dos velhos poderes são homens de estilo novo. Significativo é o Testamento do Imperador Henrique VI que abandona as suas pretensões imperiais sobre todo o Ocidente reconhecendo-se como o Império como uma unidade política entre outras. (Testamentum, Monumenta Germaniae Historia, Constitutiones et Acta Publica Imperatiorum et Regum, vol. 1, n° 397). e finalmente, a consciência nacional é a pressão colapso ao império Angevino com a formação das nacionalidade francesa e inglesa. A consciência nacional espanhola cristaliza rapidamente sob o esforço da reconquista; em 1135 Afonso VII de Castela é coroado imperador, título sem efeito prático mas indicativo do sentido de igualdade em grau como a cabeça do sacrum imperium.

2. A constituição de Melfi. A posição de Frederico II tornou-o um Salvador para os amigos, um Anticristo para os inimigos O título de dominus mundi, atribuído pelos seus cortesãos, oscila entre o significado de senhor imperial do orbis terrarum e de príncipe satânico deste mundo. O fascínio luciferino do imperador ainda dificulta actualmente a sua imagem.

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A tentação é grande de o ver à luz do renascimento de um governante clássico ideal e pré-cristão; e também é possível vê-lo como o primeiro homem moderno; alguns consideram-no um espírito forte que não acreditava na imortalidade da alma; outros descreveram-no como um bom católico; enalteceram-no como herói; historiadores nacionalistas alemães condenaram-no pela sua falta de empenho na germanização do império; uns admiraram a sua majestade imperial; outros a sua evocação de um colégio de príncipes europeus. Não tencionamos adoptar como definitivo qualquer destes retratos. A grandeza do Imperador não reside nem na força de um carácter firme e claro, nem nos méritos de uma política, nem na consistência com que a empreende. Reside, antes, na força e vastidão de uma alma igual às tensões da época. Reaparece a expectativa entre a evocação antiga e a irrupção de forças intramundanas característica das teorias de João de Salisbúria, agora com a escala e a responsabilidade da acção imperial. A experiência da plenitude dos tempos que determinou a construção apocalíptica de Joaquim de Fiora exprime-se no jogo de Frederico com o símbolo de Augusto, o iniciador da Idade de Ouro. É uma figura da história profana em paralelo com Crist; a Quarta Écloga de Virgílio parece ter sido aplicada pela primeira vez na história cristã, não a Jesus, mas a um governante. E a conformidade franciscana ao Cristo sofredor tem paralelo na conformidade do Imperador ao Messias vitorioso, a um ponto tal que confina com a evocação do Deus feito homem. Quando tentamos recuar até aos papéis desempenhados, em busca da qualidade da pessoa que os reúne, encontramos uma vitalidade e sensualidade abundantes, uma capacidade sempre pronta a desempenhar o papel sugerido pelas circunstâncias da situação; uma vontade alegre de investigar, até aos limites, a estrutura da realidade tal como esta se apresenta; seja nos problemas

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empíricos da caça ao falcão, nos problemas intelectuais das Questões Sicilianas, na técnica dos procedimentos da corte, ou em contra-manifestos apocalípticos às acusações papais. Ele, é impossível traçar uma linha entre o homem de acção e o actor, entre a selvajaria da sua vontade e a ironia do seu jogo. Liga-se aos seus actos a qualidade da representação; na pompa barroca da linguagem, no seu sentido do ritual, na representação plástica e arquitectónica do culto da Justiça na porta de Cápua e na consciência representativa da sua majestade. Também é impossível demarcar a sua curiosidade intelectual da sua descrença dogmática. Quando na Carta a Jesi se refere-se ao seu local de nascimento em termos de Belém e à sua mãe como uma theotokos, não sabemos quanto seja um jogo com símbolos representativos e quanto seja conformidade ao Messias com a finalidade política, e quanto talvez apenas ingenuidade. Quando o papa o designa de Besta apocalíptica oriunda do Mar e ele dá o troco, chamando o Papa de “corcel vermelho do Apocalipse” não podemos saber até que ponto a réplica seja política, convicção religiosa ou pura brincadeira. Temos de atender a estas tensões na alma em ordem a compreender a impressão que o imperador exerceu sobre os contemporâneos. Estavam assustados porque ninguém poderia prever o que um homem desta capacidade faria a seguir e a que extremos o conduziria um temperamento duro e selvagem. A visão nietzscheana de Cesare Borgia como Papa está perfeitamente dentro das possibilidades da alma de Frederico II. Abundam os materiais para a interpretação de Frederico II. O mais importante documento para o presente propósito é o Proemium das Constituições de Melfi, de 1231, o acto conclusivo da reorganização política da Sicília. Proclamadas pelo imperador, codificam o direito constitucional, administrativo, penal e processual para a Sicília. Estamos no início da transformação das categorias políticas imperiais em categorias políticas

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modernas O imperator in regno suo é uma transição entre o imperador e o príncipe soberano. Também importante é a mistura de categorias cristãs e romanas imperiais, para transformar a lei da humanidade cristã na lei do estado secular. Os princípios orientadores são a paz e a justiça cristãs mas rodeadas dos símbolos de Augusto e Justiniano. As constituições fora chamadas Liber Augustalis e o próprio Proemium imita a introdução do Corpus Juris, no estilo imperial de Justiniano. Os símbolos romanos servem a descrição do sacro império, instituindo para uma província do império categorias que deveriam ficar reservadas para a totalidade. O Proemium teoriza a função régia da legislação, segundo uma interpretação decorrente do símbolo cristão da origem do poder após o pecado. Com a criação, Deus fez do homem a criatura máxima, impondo-lhe tão só a observância da lei. A transgressão foi punida com a perda de imortalidade. Para não destruir a ordem da criação, a perda da imortalidade foi compensada com o dom da fertilidade e os governantes foram providenciados para preservar a ordem da humanidade. Esta descrição não é a narrativa do Génesis mas antes uma selecção de elementos nela presentes e fundidos numa nova unidade. Desapareceu o problema moral da Queda, bem como a redenção através de Cristo. A Queda é apenas uma ofensa legal que continua a ter que ser punida, como se não houvesse redenção. Ademais o mundo tem uma enteléquia quando o resto do mundo perde a sua forma A comunidade de homens mortais substitui o homem imortal e este tipo de criação atinge o seu pleno com a figura do governante. A alma deste desce da necessitas rerum; as suas acções resgatam o significado da criação. Sem dúvida que existe um apelo entre esta teorização e certas correntes da primitiva filosofia cristã do direito natural. Mas enquanto esta abordava o problema da comunidade humana em ligação com a história sagrada, o proemium usa o símbolo

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cristão ao serviço de uma doutrina naturalista do poder, derivando a função de governar das estruturas da realidade intramundana. A necessitas rerum é uma primeira forma da futura raison d’état. Enfim surge o elemento averroístico. O casal do paraíso foi substituído pelas gerações humanas. A imortalidade colectiva sucedeu à imortalidade individual. Embora o Proemium não elabore as implicações desta posição, certo é que a interpretação colectivista da humanidade se opoe à ideia cristã do corpo místico. A ideia colectivista absorve a personalidade homem no espírito de grupo. O homem e individuação de um intelecto genérico e a morte é apenas a despersonalização. Tal como Averróis colocou a teoria da alma segundo Aristóteles A antropologia averroísta pode tornar-se em síntese, a base filosófica de uma organização colectivista da sociedade . No caso do Proemium não vai tão longe. É pouco provável que a doutrina averroísta tenha sido conscientemente incorporada porque o averroismo só surge consciente em meados do séc. XIII. Mas é importante perceber que as Constituições de Melfi representam um estádio avançado da situação política que permitiu a receptividade das ideias averroistas. A consciência da unidade espiritual do povo surgiu em ligação com heresias populares. A primeira legislação civil contra heresias surgiu com a Assize de Clarendon (1166). A questão tornou-se premente com o pontificado de Inocêncio, a cruzada contra os Albigenses e o estabelecimento da Inquisição. O processo inquisitorial culminava com a selecção de ........ e julgamento sem queixa privada. Melfi faz desaparecer a linha entre heresia religiosa e insubordinação política. O artigo 1° trata da perseguição de heréticos e patarenos. A protecção da fé e integrada na guerra contra as ideias lombardas dominadas pelo Patarenos; a guerra contra os heréticos faz parte da campanha contra os movimentos populares que desafiam

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o Príncipe. Acusa-se os patarenos de romperem a “indivisível unidade da fé” como muito mais tarde se falará da “indivisível soberania da nação” da revolução francesa. A queixa de que os Patarenos destróem-se a si mesmos ao terem que ser queimados pelos governantes faz lembrar Hobbes e Hitler. O Artigo IV estabelece que a discussão das leis, decisões e nomeações régias seria sacrilégio, pelo que devem ser proibidas. Esta medida que datava já de Rogério II mostra a nova dignidade sacramental de que se pretende revestir o governo secular. A receptividade crescente das ideias colectivistas deve-se a factores diversos. Primeiro, a desintegração do corpo místico. através da emergência das novas comunidade heréticas. Os movimentos populares heréticos acarretam uma contracção da substância da fé por parte das forças tradicionais que elaboram posições ortodoxas, processos inquisitoriais e estrita obediência a critérios. Em segundo lugar, a tensão crescente entre hierarquias espiritual e temporal que agudiza a respectiva luta pelo poder. Terceiro é o crescimento das nações como subdivisões organizadas do populus christianus. Este três factores apontam para uma ecclesia política intramundana. Uma comunidade de seres mortais reúne-se pela evocação da continuidade das gerações assegurada por um governante. A substância espiritual é fornecida pelo rei; a fé deriva a sua validade de uma autorização estatutária; os ditames régios equivalem a um credo religioso; qualquer dissensão é sacrilégio. A humanidade divide-se em massa e governante. Esta irrupção da força intramundana do governante no reino do cristianismo; este corpo místico de mortais sob a direcção do governante teria de precipitar uma crise, como veio a suceder quando Frederico II passou aos actos. 3. Cristandade Cesárea

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Assim designou den Steinen a tendência do imperador em assimilar a sua função imperial ao de Messias. Francisco transformou Cristo humilde em Jesus sofredor com a consequência de que as hierarquias ficaram decapitadas da cabeça messiânica. Frederico II representa a tentativa de criar uma imagem de governo em conformidade com o Cristo cosmocrator, com o Messias em sua glória.

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ERIC VOEGELIN - São Tomás de Aquino Compactação e tradução de Mendo Castro Henriques A publicar em "Estudos de Ideias Políticas" ** A Idade Média" 2001 C . O clímax. São Tomás de Aquino §1 História a. Verdade e Ser A obra de São Tomás de Aquino (1225-1274) absorveu-o literalmente - morreu exausto antes de perfazer 50 anos e absorveu-o existencialmente porque foi a expressão de uma vida ao serviço da investigação e ordenamento dos problemas da sua época. Afirmar que foi um grande pensador sistemático é uma meia-verdade. Sabia aplicar a sua mente imperial à multiplicidade de assuntos que o atraíam e distinguia-se por ter uma personalidade rica em sensibilidade, magnanimidade, energia intelectual e espírito sublime. A exclusiva vontade de ordenamento poderia produzir um sistema que fosse mais notável pela coerência do que pela captação da realidade. A grande receptividade poderia ter originado uma enciclopédia. Mas as duas faculdades combinaram-se num sistema que assinala o impulso dinâmico de Deus para o mundo através da causalidade criadora, e do mundo para Deus através do desiderium naturale: A origem desta combinação deve-se ao sentimento que fez de Tomás um santo: a experiência da identidade entre a verdade de Deus e a realidade do mundo. "A ordem das coisas na verdade é a ordem das coisas no ser". Esta frase da Summa Contra Gentiles significa que o intelecto divino está impresso na estrutura do mundo; que a descrição ordenada do mundo resultará num sistema que descreve

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a verdade de Deus: que cada ser tem a sua razão e sentido na hierarquia da criação divina; que cumpre a finalidade da existência ordenando-se ao fim último que é Deus. A frase tambem se aplica ao homem individual. Ontologicamente, o intelecto humano veicula a marca do intelecto divino. Metodologicamente, o uso do intelecto revela a verdade de Deus manifesta no mundo. Praticamente, a tarefa do pensamento significa a orientação da mente para Deus. b. O intelectual cristão O melhor dos auto-retratos do Santo surge nos capítulos de abertura da Summa Contra Gentiles. São Tomás de Aquino concebe a filosofia como arte de ordenar as coisas para um fim. Entre todas as artes, a filosofia é a superior porque contempla a finalidade do universo, ou seja Deus, e apresenta os conteúdos do mundo a Ele ordenados. Ora Deus é Intelecto. A finalidade da filosofia é o bem do intelecto, que é a verdade. No termo veritas fundem-se os três sentidos da verdade: a fé revelada pela incarnação (João, 18,37); a auto-manifestação da Deus na criação; o trabalho intelectual que é a manifestação do intelecto divino. Ao invés do intelectual averroista, Tomás dignifica a autoridade intelectual porque o intelecto humano é a ratio da existência humana criada por Deus. Através da vida intelectual o homem aproxima-se da divindade. O intelectual sabe mais que o homem comum mas este não é um vilis homo. ao qual se aplica o termo idiota ou então rudis homo. com o duplo sentido de leigo cristão e leigo no saber. Tudo o que o filósofo sabe através da actividade do intelecto, o leigo sabe através da revelação de Deus em Cristo. A manifestação sobrenatural da Verdade em Cristo ao homem comum identifica-se à manifestação natural da verdade no sabedor. c. Fé e razão Fé e razão não entram em conflito porque o intelecto humano veicula a marca do intelecto divino. Deus não

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decepciona o intelecto com resultados que contradigam a fé revelada. O intelecto pode errar mas consegue alcançar verdades como a existência de Deus, deixando para a fé revelada verdades inacessíveis à razão, tais como o carácter trinitário da divindade. Este dinamismo teórico separa as esferas da teologia natural e sobrenatural. A esfera sobrenatural está removida do debate intelectual e pertence à revelação e às decisões dogmáticas da Igreja. A parte natural fica livre para ser integrada num sistema de conhecimento humano sob a autoridade da razão. Esta magnífica harmonização de fé e razão influenciou decisivamente o destino da ciência no mundo ocidental, resultado tanto mais admirável quanto, na época, a evolução da ciência estava nas mãos de clérigos e as célebres Condenações de 1277 ainda consideravam heréticas algumas teses tomistas. O avanço da compreensão empírica e intelectual do mundo requer uma permanente redifinição da separação entre verdade sobrenatural e natural, problema difícil para a Igreja e para os intelectuais, mas a que Tomás deu a melhor formulação e solução possível no seu tempo. O retrato do Santo que emerge da sua metafísica é o do descobridor de uma síntese das forças intramundadas que poderiam destruir o cristianismo, se ficassem entregues a si mesmas. O intelecto não é uma autoridade independente. A orientação transcendental do intelecto torna-se uma expressão legítima do homem natural e não uma rival intramundana da fé. O seu sentimento de valor intelectual não é inferior ao de um Sigério de Brabante como se depreende da descrição da filosofia como arte ordenadora e da justaposição do filósofo em que se manifesta a verdade natural com o Cristo que é a verdade incarnada espiritualmente; mas é um sentimento de valor temperado pela espiritualidade que aceita a revelação. d. Propaganda intelectual A mesma vontade de harmonia é patente na síntese

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tomista dos problemas suscitados por Fiora, S.Francisco e pelos Espirituais franciscanos. S.Tomás pertence a uma Ordem mendicante que louva o esforço missionário e pregador. Mas o seu Cristo não é apenas para os pobres em espírito e em bens; é um Cristo que expande o Seu reino através da propaganda intelectual. A Summa Contra Gentiles foi escrita para que as missões dominicanas em Espanha enfrentassem a influência intelectual muçulmana. Tomás afirma no Proemium que é possível argumentar com os Judeus com base no Antigo Testamento, e com heréticos com base no novo Testamento; com os maometanos, contudo, é preciso apelar à autoridade do intelecto, tal como os pagãos nos estádios da lei segundo S. Paulo. E o intelecto que produz resultados cristãos torna-se o instrumento da propaganda inter-civilizacional, fundando a pretensão que a civilização ocidental é racionalmente obrigatória para a humanidade. Tal pretensão sobreviveu à perda de conexão com a espiritualidade cristã e tornou-se agressiva na Idade da razão secular. As raízes da dinâmica internacional da civilização ocidental residem no tomismo cuja força duradoura resulta da harmonia das operações intelectuais com a espiritualidade Cristã. Quando se esquecem estas raízes, perde validade a pretensão de validade da razão autónoma e a razão fica enigmática. E sempre que declina o ímpeto Cristão do intelecto, a revolta contra a razão clama insensatamente por uma nova espiritualidade qualquer. e. As hierarquias A abordagem tomista da relação entre os dois poderes é mais ampla que a franciscana. O retrato do príncipe em De Regimine Principum - desenvolvido com o aparato da Política de Aristóteles - mostra a impressão causada por Frederico II e a importância de que se reveste o fundador e governante de uma comunidade. Já quanto ao poder espiritual, a posição é muito semelhante à franciscana. A Igreja é uma instituição que ministra sacramentos; na

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hierarquia de poderes, tem o primado sobre o temporal. Contudo, Tomás não escreveu um tratado sobre a Igreja. A Summa Theologica tem uma parte volumosa sobre governo temporal (ST I,ii,qq.90-114) mas não explicita uma doutrina da Igreja e menos ainda do Direito Canónico. Sendo possível apresentar uma doutrina tomista da Igreja - como fez Grabmann - é significativo que a falta de ênfase tomista se deva à época de interregno em que vive: o Sacrum Imperium está a desaparecer, crescem múltiplos poderes políticos com estrutura natural imanente e o poder espiritual está a tornar-se a super-estrutura espiritual da multidão de civitates. f. Evangelium Aeternum - Imperialismo Ocidental A adaptabilidade de Tomás às exigências da realidade histórica é patente no modo como distribui as tónicas espirituais e políticas do seu tempo. Condena como insensata a ideia de um terceiro reino do Espírito -stultissimum est dicere quod Evangelium Christi non sit Evangelium regni (ST, I, ii, quaestio 106, art.4). A vida sob a lei nova é a mais perfeita que se pode conceber. O Evangelium foi todo anunciado ao universo de uma só vez, sendo necessária a pregação até que a Igreja se estabeleça em todas as nações.(ST I-II 106 4 ad.4 ). A era de Cristo diversifica-se conforme o espaço, o tempo e as pessoas, e conforme a presença da graça do Espírito. Tomás vive entre duas épocas: morreu a unidade medieval do Império mas ainda não nasceu o mundo dos estados nacionais. Talvez tenham razão os que o acusam de não possuir uma filosofia da história, caso estiverem a considerar a história política. Mas o seu sentido histórico permitiu-lhe exprimir a vontade imperial da civilização cristã. Em vez de simbolizar o cumprimento da história cristã por uma nova descida do Espírito numa irmandade elitista, abraça todo os conteúdos naturais do mundo e do intelecto humano e da sociedade, organizada numa pluralidade de comunidades. A sua filosofia da

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história contempla a expansão da Cristandade em todo o orbe através das actividades de missionação. Neste sentido, Tomás representa a vontade de domínio imperial do homem maduro, intelectual e espiritualmente. Esta evocação permaneceu uma componente do imperialismo no período do estado nacional. Reaparece no sec. XVI em Espanha com Francisco de Vitória; reaparece na Inglaterra Elizabetina; reaparece no sec. XVII em combinação com o imperialismo comercial de Grócio; e reaparece nas lutas subsequentes por impérios coloniais que impliquem uma ideia providencial do domínio do Ocidente sobre o resto do mundo. g. O espírito histórico Se por teoria entendermos a ordenação sistemática de uma problemática não-histórica, Tomás não era um teórico. Para ele, a relação entre fé e razão é uma harmonização de forças históricas. A verdade de Deus manifesta-se num mundo cheio de dinamismo das forças históricas. O trabalho da filosofia não se esgota em especulaçãos aprioristas; deve recrear num sistema a unidade do mundo historicamente concreto. A forma das Questões da Summa Theologica é ideal para executar esta tarefa porque permite organizar o material num enquadramento estável e oferece oportunidades de descer ao detalhe histórico em notas polémicas que precedem e prosseguem o corpo da quaestio. A Summa não é um tratado sistemático: contém transições frequentemente obscuras ou omissas e, por vezes, digressões excessivas. Este sistema muito pouco rígido é o símbolo perfeito de uma mente que não é apriorista nem empirista e que exprime um indivíduo que experimenta a sua harmonia com a manifestação de Deus no mundo histórico. §2. Política Na apresentação da política tomista topamos, pela primeira vez desde a recepção de Aristóteles, com a

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maldição da teoria política ocidental - a maldição de não sabermos exactamente o que os nossos símbolos significam. As categorias aristótelicas reportam-se evidentemente à polis helénica dos secs. VI a IV a.C. A sendo que a sua adopção posterior é um exercício humanista com escassa relevância para os novos problemas políticos. Por exemplo, Tomás traduz polis por civitas, mas também por gens, regnum, provincia. Gens e regnum são organizações políticas muito diversas. Provincia provém do vocabulário imperial romano. Todo este suspense em relação ao tipo de organização política contemplada mostra que a teoria tomista do governo não é suficientemente geral para captar os elementos de todas as formas políticas nem suficientemente específica para se aplicar a uma unidade política concreta. E ainda hoje não ultrapassámos a vagueza humanística que atribui validade geral às categorias intermédias resultantes da recepção de Aristóteles. b. A dedicatória ao rei de Chipre Muita da força da teoria política helénica resultou do facto de que as poleis mais antigas se empenhavam em fundar novas cidades e colónias. A possibilidade de selecção do espaço, do planeamento da cidade e do esboço da constituição são o pano de fundo para a construção de Estados ideais, em Platão e Aristóteles, tal como a partir do sec.XVI , a descoberta da América e o estabelecimento de colónias abriu horizontes semelhantes. No sec.XIII uma situação algo comparável resultou das migrações normandas e do movimento das Cruzadas. Em particular, a fundação de novos principados nos domínios bizantinos e arábes invadidos pelos Cruzados foi uma tentativa de expansão da civilização ocidental entre as gentes, tentativa cujo fracasso não era ainda previsível na época de Tomás. Este escreveu em 1265-66 o De Regimine Principum, dedicando-o precisamente a Guy de Lusignan, rei cruzado de Chipre, e não a um poderoso monarca ou

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imperador do Ocidente. c. O Príncipe como análogo divino. No teoria política de Tomás, a ideia de fundação substitui o lugar da evolução da família para a aldeia e para a polis em Aristóteles, regressando assim à ideia platónica da cidade fundada pelo espírito. A série de analogias entre Deus como criador e governante do universo, a alma governante do corpo, e o príncipe como fundador e governante da civitas (RG, I,13) subvertem a visão aristótelica de que a cidade tem uma evolução estritamente natural. Perde sentido a sequência obrigatória de comunidades - família, aldeia, polis. A sequência é traduzida por familia, civitas, provincia, interessando sobretudo o chefe de família e o rei que pode ser de civitas ou provincia. A função régia é de ordem natural e não espiritual. O dom da regia virtus recebido por um indivíduo (RP,I,9) não é a autoridade espiritual de Platão nem a arete de Aristóteles; é apenas uma virtú mas sem o elemento demoníaco de tipo maquiavélico. Mantém-se a evidência natural da sociedade porque o homem isolado não poderia desenvolver as suas capacidades ("Naturale autem est homini ut sit animal sociale et politicum, magis etiam quam omnia alia animalis; quod quidem naturalis necessitas declarata /(I,1); mas permanece indeterminada como seria uma comunidade perfeita que satisfizesse as carências naturais e a vida intelectual. d. A comunidade de cristãos livres A grande novidade em relação a Platão e Aristóteles é de que o rei funciona como governante da comunidade dos livres (liberorum multitudo R.P. I,1). Liberdade e servidão tornam-se critérios do bom e mau governo, Se os membros da comunidade cooperam livremente nas tarefas da existência comum, o governo é bom, tenha forma de monarquia, aristocracia ou politeia. Se um ou alguns homens exploram os restantes em proveito

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próprio, o governo é mau. Aliás, mesmo o bom regime de Aristóteles seria mau porque continha escravos. A antropologia tomista opera com a ideia do homem cristão livre e maduro, ideia magnânima semelhante à do igualitarismo aristocrático de S. Francisco. Tomás experimenta a liberdade do cristão mas não coloca o homem numa comunidade natural com obrigações próprias. Os livres são apenas uma multitudo resultante da livre cooperação criadora. Não apresenta uma teoria do contrato social que institui obrigações nem uma teoria da organização política do povo. Interessa-lhe apenas o populus christianus. Na Summa Contra Gentiles quando ainda não adoptou as categorias de Aristóteles, apresenta o homem como naturaliter animal sociale, e vive inclinado para o amor mútuo e a solidariedade (SCG, III 117,). Mas a finalidade social não reside a esfera natural; o que constitui a comunidade humana é a finalidade comum de amor a Deus e a ordenação da vida para a felicidade eterna. Os laços de afeição que que têm que existir entre os que se estimam (III,117) exigem regras de comunidade dadas por Deus (III,111-146). Na Summa Theologica (ST I ii 90,2) em que desenvolve a mesma posição, Tomás deixa cair do céu a citação de que a polis é a comunidade perfeita porque conduz à felicidade. Contudo, para Aristóteles, a polis histórica é um absoluto em que se insere a acção contemplativa; na Summa a felicidade é o absoluto que atrai a si uma vida de comunidade sem qualificação política. Também a recepção do termo de Aristóteles animale politicum não significa adopção do sentido. O homem de Aristóteles realiza-se na polis e nada mais é do que politikon enquanto o homo christianus está orientado para a finalidade transcendental espiritual, sendo tambem político. A figura central da política tomista é o homo christianus (RG,I,14) e não o zoon politikon. A sequência de analogias - Deus no universo, príncipe na civitas, a alma no corpo - não é a palavra final na politica tomista porquanto a multidão de cristãos tem que viver sob

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Cristo, rei espiritual. O ministério deste reino espiritual é confiado aos sacerdotes - separados dos assuntos mundanos - e em particular ao pontífice romano, ao qual todos os reis e povos estão subordinados (RP I,14). Assim, a velha dicotomia de poderes - espiritual e temporal - é substituída pela dicotomia moderna de religião e política. A esfera política no sentido moderno ainda está completamente orientada para o espiritual; mas começa a evolução para a privatização de religião (à maneira de Locke), o monopólio da esfera pública pela política e a possibilidade de uma integração totalitária da espiritualidade intramundana na esfera pública da política. e. Teoria do governo constitucional Tão forte é o carácter humanístico da teoria de São Tomás de Aquino que mal refere a existência de um sistema da instituição do governo, sendo que os princípios desenvolvidos com referência às instituições israelitas e helénicas são pouco adaptados ao sec.XIII. Cada comunidade perfeita tem que ser estruturada nos três reinos de optimates, populus honorabilis, populus vilis, (ST I 108, 2), modelo inspirado na nobilitá, popolo grasso, popolo minuto das cidades italianas. A partir da liberdade cristã, é possível desenvolver instituições governamentais para o homo christianus enquanto homem político. Não sabemos o que Tomás pensaria sobre a evolução nas cidades italianas onde as revoltas dos Ciompim em Florença, e dos Patarenos, em Milão, exigiam a integração do terceiro estado no governo; nem sabemos como aplicaria o seu princípio na Iglaterra que atingia então o Parlamentarismo, e menos ainda na França, feudal e comunal. No Regimine Principum, que permaneceu incompleto, a teoria do governo constitucional surge em ligação com o problema da tirania (II,6). O tiranicídio é condenado, sendo da responsabilidade da auctoritas publica a deposição do governante injusto. O melhor seria a prevenção da tirania através da delimitação do poder régio. Na ST I ii q.95,4 o regimen conmixtum é

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apresentado como a melhor forma de governo. A propósito das instituições do povo Hebreu (I ii 105,1) afirma Tomás que a monarquia (análoga da divinidade) é a melhor forma de governo mas está mais sujeita à tirania. Esta nonchalance na definição da melhor forma de governo parece provir da democracia primordial de Israel, em que o Senhor recebeu com desagrado o desejo popular de ter um rei como as demais nações(loc. cit. ad.2). Tomás adopta o princípio orientador de que cada um deve ter a sua parte no governo. A politeia deveria ter por magistrados o rei, a nobreza e os representantes dos povos, contribuindo assim para a prevenção da tirania, provocada pela compra de votos, pela eleição de personalidades indignas, (I,ii, 97,1) e pela expoliação dos proprietários. As fontes principais do pensamento politico tomista são a teoria aristotélica da política, a constituição romana, a democracia original e monarquia de Israel, a democracia das cidades italianas e o sentimento da liberdade cristã. Estes elementos não estão integrados; co-existem no estilo harmonizador do pensamento tomista. A síntese possível é a ideia de governo constitucional baseada em dois princípios: a estabilidade de governo que depende da participação do povo e o princípio espiritual cristão da liberdade do homem maduro. A evocação é humanistica porque as operações intelectuais com a terminologia de Aristóteles ainda não penetrara suficientemente nos problemas concretos da política. Esta síntese de natureza e espiritualismo cristão dominou a evolução da política ocidental, até hoje. § 3. Os quatro tipos de Direito a. A teoria do Direito Uma compreensão adequada da teoria do direito, tem que atender ao lugar em que ela é tratada na ST. A primeira parte da Summa trata de Deus e da Sua criação, a segunda do Homem e a terceira de Cristo. A Prima Secundae (I,IIae) trata das acções humanas.

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Primeiro aborda a beatitude como a finalidade da vida humana (qq.1-5) e depois os meios para a atingir; os meios consistem em acções humanas que se subdividem em acções voluntárias especificamente humanas (qq.6-21) e as paixões que são tipos de acção comum aos animais (qq.22-48). Os princípios internos da acção humana são subdivididos em poderes e hábitos (qq.48-89). O princípio externo que move o homem para o bem é Deus, operando através do Direito (qq.90-108) ou com a assistência da Graça (qq.109-114). A teoria da lei é a instrução dada por Deus ao homem para motivar os seus actos para a beatitude. Este esboço da teoria da direito aplica princípios ontológicos. O mundo é uma criação de Deus e, como tal, portador da marca do divino intelecto; o significado da existência criada é o movimento de retorno a Deus. A regra que motiva a acção humana de retorno a Deus é a ratio da criação no intelecto do próprio Deus. A criação imprime no homem esta ratio divina que é a Lex aeterna, pelo que o direito natural é o ditame da razão que vive no homem. Como o homem é imperfeito, a adaptação da lei natural às contingências humanas é chamada de direito humano. Como o homem não é apenas um ser natural mas orienta-se para o espírito transcendente é necessária uma revelação especial que constitui a direito divino, apresentado no Antigo e Novo Testamento. b. Definição de Direito O direito é definido como ordenamento da razão para o bem comum, feito pelo governante e promulgado (90.4). A definição soa como uma definição do direito positivo mas pretende ser uma definição dos quatro tipos de direito. A tónica recai sobre a comunidade politica e os órgãos de legislação mas a problemática da autoridade legislativa não está ainda separada da autoridade da ordem por virtude da justeza dos seus conteúdos. Os elementos da razão e bem comum são especulativos e comuns aos quatro tipos de lei. O elemento de

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promulgação pode adaptar-se à manifestação da lei divina na lei natural (90,4,ad 1) a lei divina é promulgação da lei eterna, e lei humana é promulgação pelos governantes. As dificuldades surgem com a feitura da lei pelo representante da comunidade. O elemento refere-se a Deus, e ao príncipe (91,1) Mas a analogia quebra porque a lei eterna não pode ser feita mas existe desde a eternidade na mente divina. Por outro lado, (90 art. 3) Tomás refere apenas a feitura da lei em comunidade nacional perfeita. Tomás está a tentar criar uma teoria do direito positivo que leva a conflito com a teoria dos conteúdos da ordem jurídica dada na classificação das quatro variedades. Toda a lei é criada por Deus com excepção da lei eterna incriada. Os homens participam nessa criação através da feitura da lei humana. Mas esta feitura humana consiste em encontrar os elementos rectos da lei de acordo com lei divina e natural. A lei feita faz parte do retorno do homem a Deus. A feitura da lei tem a estrutura dialéctica de fazer lei por Deus através do instrumento da acção humana, ou orientação do homem para Deus através de regras de acção conforme a vontade legislativa divina. A dialéctica da lei positiva resultante da posição ontológica nunca é tratada adequadamente. Em vez disso encontramos identificação da lei posta com a essência da lei (90, 4) e com lei humana em 95, 1 e 2) A confusão neste ponto corresponde a falha no sistema: a comunidade perfeita a constituição e acção legisladora são recebidas factualmente no sistema mas Tomás não criou um enquadramento teórico satisfatório para elas. c. A teoria do direito natural A força da filosofia jurídica tomista reside na teoria dos conteúdos da lei natural. A lei eterna induz nas pessoas uma inclinação para as acções justas. É esta participação da criatura racional na lei eterna que se chama de lei natural. A luz da razão natural que distingue o bem do mal é reflectido na refracção da luz

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divina em nós. (91,2). Toda a lei é derivada da lei eterna (93,3) Os princípios gerais são auto-preservação. Preservação da espécie através de procriação e educação, preservação da natureza racional através do desejo de conhecimento de Deus, e inclinação para a ideal da vida em comunidade (94,2). A construção assemelha-se a teoria estóica de lei natural, koinos nomos e participa nela atrrvés de apospasme, a centelha do nomos no homem individual. Mas a antropologia é cristã. A concepção estóica poderia conduzir a teoria da iluminação como em Santo Agostinho ou a teoria colectivista da anima intellectiva como em Averroes. A participação tomista é objectiva na medida em que não depende da iluminação individual (Agostinho) e confere peso à singularidade da pessoa porquanto concebe a comunidade como o esforço cooperativo de homines Christiani livres. A fundamentação tomista é talvez a única sustentável posição para uma filosofia do direito. Caso não existir uma fundação ontológica temos a seguinte alternativa: ou não ter fundação ontológica e aceitar como válida qualquer ordem jurídica positiva que possa compelir à submissão ou erigir como absolutos elementos intramundanos tais como instintos, desejos, carências, razão secular, vontade de poder, ou sobrevivência dos mais aptos. A primeira opção é niilista a segunda positivista e não permite integrar a experiência transcendental religiosa na filosofia da Direito. A clássica solução tomista fornece uma fundação religiosa e uma ordem jurídica que respeita a estrutura ôntica da existência humana; harmoniza a personalidade espiritual cristã com a comunidade natural perfeita que pode corresponder a povos ou federações, desde que dotados de identidade espiritual. A solução tomista surge quando instituições tradicionais estão a desaparecer, sendo depois absorvida pela teoria da interpretação natural do período dos estados nacionais. d. Lei humana - lei positiva

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Tanto a lei humana como a lei divina possuem conteúdos contingentes. O debate na q.95 identifica a lei humana com a lei positiva. A confusão resulta de Tomás não distinguir suficientemente entre o conteúdo da ordem jurídica e a autoridade legislativa e o poder de sanção. Enquanto lex ab hominibus adinventa (91, 3) a lei humana cria detalhes e regras que aplicam a lei natural a situações concretas. Tomás segue o conselho de Isidoro (Etimologias, 5, 21) de que os princípios de direito natural não devem exigir o que é humanamente impossível nem contradizer as tradições locais; devem servir o bem comum e ser claros e adaptados ao tempo e ao espaço. Enquanto lex humanitus posita (q.95) a lei humana é corpo de regras feitas pelos órgãos legislativos e garantida pela sanção governamental. Trata-se da generalidade e da obrigatoriedade da lei. É preferível providenciar regras gerais redigidas de modo desinteressado e competente e genérico. A obrigatoriedade é necessária porque a natureza humana é fraca; força e temor ajudam a virtude a agir correctamente. e. A Lei Antiga A sociedade de proprietários A lei divina surge porque a finalidade sobrenatural do homem exige uma orientação que o juiz incerto humano não encontra sozinha. A lei humana não abrange intenções, já que a proibição do mal também destruiria o bem da vida comunitária e porque a lei divina lei que regula e sanciona o mal escapa à regulamentação humana (91, 4). A lei divina, no Antigo e Novo Testamento, é uma só, correspondente a dois estádios espirituais da humanidade, infância e maturidade. O Antigo Testamento ordena o homem a bens terrenos, regulando actos externos e compelindo à obediência por temor do castigo. O Novo Testamento dirige o homem para bens celestes, ora regulando actos intrínsecos induzindo obediência através de amor divino que a Graça instila nas criações humanas. Esta relação

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entre conteúdo de uma ordem jurídica e estádio civilizacional de um povo é uma filosofia da cultura. A discussão do Antigo Testamento permite tratar Israel numa monografia abrangendo a análise da ordem cerimonial política e civil (qq. 98-205) o que, segundo Dempf, é o primeiro tratado sobre uma civilização antiga concebida no espírito humanístico. Na teoria da propriedade privada, Tomás distingue dois tipos de relações: a relação entre príncipe e súbditos, e as relações privadas e civis entre os próprios súbditos. A autoridade governamental sobre súbditos manifesta-se em compelir à ordem jurídica. (105,2 ) As relações privadas entre súbditos resultam da autoridade do cidadão sobre os seus bens privados, res possessae. A teoria pode, hoje, parecer trivial mas, na época, era revolucionária; punha de parte a estrutura feudal dos direitos de propriedade, e promovia a sociedade de proprietários e suas relações comerciais. Tal teoria tem um toque intemporal de humanismo e teve portentosas consequências na evolução futura do pensamento político. f. A Nova Lei Justificação pela fé O tratamento da Nova Lei é surpreendentemente curto (qq. 106-108), ocupando cerca de um quinto da Antiga. A lei Nova é inscrita pela Graça do Espirito nos corações dos fiéis; apenas secundariamente é lei escrita. Sem mencionar a Igreja, a essência da Cristandade é colocada na "lei da fé" no sentido paulino. Para excluir qualquer outro princípio de justificação, Tomás cita Romanos 3, 27 (I, IIae, 106, 1) passagem que precede "porque cremos que o homem é justificado pela fé, e pelas obras segundo a lei". Dentro do quadro da teologia católica esta é talvez a expressão mais forte do princípio da livre espiritualidade Cristã. Tomás está a salientar o espiritual elemento de fé a expensas da mediação institucional da Igreja mas não pretende fazer inovações doutrinárias. Temos que

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atender ao espiritualismo independente de Tomás para compreender a força dos sentimentos que se exprimem na concepção do comunidade dos cristãos livres e amadurecidos, da sua participação no governo através do sufrágio geral e na constituição de uma sociedade livre de proprietários. Na história do pensamento político, Tomás de Aquino divide duas eras: os seus poderes de harmonização foram capazes de criar um sistema espiritual que absorveu os conteúdos do mundo em transição: o povo revolucionário, o príncipe natural e o intelectual independente. O seu sistema é medieval enquanto manifestação do espiritualismo cristão: é moderno porque expressa as forças que vão determinar a história política do Ocidente até aos nossos dias - o povo organizado com constituição, a sociedade comercial burguesa, espiritualismo da Reforma e o intelectualismo da ciência. Alcançou esta espantosa concentração do passado e do futuro mediante o milagre da sua personalidade. Absorveu e manteve em equilíbrio sentimentos muito distintos. Tinha algo da receptividade de Frederico às forças da época, mas ultrapassa-o em espiritualidade. Realça o individualismo de carácter de João de Salisbury pelo personalismo espiritual cristão; o seu humanismo digere Aristóteles e cria o estudo das instituições israelitas; o individualismo espiritual de S. Francisco aparece ainda mais radical no espiritualismo de Tomás; o populismo franciscano é continuado pela evocação da comunidade do homens politicamente livres enquanto a limitação de Cristo aos pobres é ultrapassado pelo reconhecimento das funções do príncipe; a consciência secular de Fiora é traduzida nas ideias da expansão da Igreja no mundo. O horizonte estreito da irmandade monástica é alargado à visão imperial de um mundo de comunidades perfeitas cristãs; o intelectualismo de Sigério é equilibrado por uma orientação mas com uma espiritualidade igualmente forte. Através destes equilíbrios\ São Tomás de Aquino tornou-se figura única que pôde dar voz à Cristandade

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medieval imperial na linguagem do Ocidente moderno. Ninguém como ele poderia ter representado no estilo grandioso o homem ocidental espiritual e intelectualmente amadurecido.

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ERIC VOEGELIN ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ** A época medieval

Capítulo 16 Dante §1. Isolamento do pensador político

§2. A separação entre espírito e política Desde a época de Dante que o realista espiritual se enfrenta com o problema de que a realidade política circundante do mundo ocidental já não absorve adequadamente o espírito nas instituições públicas. Podemos discernir três fases principais no processo de separação entre espírito e política. O início da primeira fase é marcado por Dante e pela sua descoberta da nova solidão espiritual. A segunda fase é marcada pelo surgimento de reformadores religiosos e de realistas espirituais seculares. A terceira fase traz um novo nível. Aos primeiros reformadores corresponde o activista político-religioso, representado por Marx, que tentou unir o espírito e as instituições sociais através de destruição revolucionária da sociedade existente, para dar lugar ao novo homem, o proletário. Aos realistas espirituais dos sécs. XVI e XVII corresponde o espírito livre isolado de Nietzsche cuja análise do niilismo europeu é o último juízo do mundo ocidental pós-medieval, tal como a Divina Comédia era o primeiro.

§3. Realismo espiritual - o paraíso terreno

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Esta perspectiva mais ampla permite uma melhor compreensão dos problemas de Dante. As suas abordagens ao problema de uma humanidade ocidental que está perdendo a unidade espiritual, por um lado, e a tentativa de encontrar a relação adequada do indivíduo espiritual à estrutura política da sua época, por outro lado, ainda estão indiferenciadas. Ele acalenta esperanças numa nova Igreja espiritual de tradição joaquimita, tal como expressa na Divina Comédia, o mesmo tipo de esperança de Lutero e dos revolucionários do séc. XIX. Mas a experiência de Dante da realidade profunda do espírito determina a sua atitude pessoal negativa face ao campo da política que vê dominado pelas paixão do poder material. Este negativismo ressurge em Maquiavel, Espinoza e Nietzsche. §4. Forma literárias e símbolos de autoridade Para as afirmação pública de um indivíduo, Dante teve que desenvolver as formas literárias e os símbolos de autoridade adequados à nova função. Na primeira fase adoptou as Cartas, tal como desenvolvidas por Frederico II e usadas por São Francisco. A Carta Aberta, ou Manifesto Político, torna-se o instrumento de expressão para o indivíduo que não tem público institucional mas que apela à opinião pública. A questão é da autoridade com que escreve estas cartas. o papel que assume. Na Carta V, endereçada aos príncipes e povos de Itália, designa-se a si mesmo como humilis Italus. Na Carta VI endereçada aos Florentinos exprime-se como o Florentius. Na Carta VII, ao imperador Henrique VII, é o Florentinus, acompanhado pelos toscanos que desejam a paz. Nas três cartas considera-se imerecidamente no exílio. Na Monarchia, regressa à forma convencional do tratado político. E finalmente na Dvina Commedia consegue a grande inovação de um poema político em lingua volgare, dirigido ao povo italiano em geral. Os símbolos de autoridade são simultâneos em três fontes.

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A primeira fonte é designada pelas auto-designações nas Cartas e pelo uso da língua vulgar na Divina Commedia. Dante fala como italiano e florentino; apesar da retirada de grupos políticos mantém um estatuto político; como membro da comunidade política, tem a função representativa de um porta-voz. A segunda fonte de autoridade é o espiritualismo joaquimita. Como espiritualista cristão assume em relação ao reino de paz futura uma função semelhante a Joaquim. E enfim, Dante fala em nome do seu génio poético, que constitui uma fonte de autoridade mais problemática mais pessoal. Mas problemática porque a ordem cristão o poeta não tem autoridade divina específica para falar como vidente. Consciente do problema, Dante evoca Virgílio e quatro outros poetas pagãos no limbo que o recebem por companheiro, (Inferno, IV, 64-105)

5. As Cartas

§6. O De Monarchia A construção de Dante já não é aceitável porque a antropologia moderna enriqueceu-se com a visão da estrutura histórica da mente humana. Já não é possível identificar a essência do homem com um intelecto sem história, embora exista quem pratique isto frequentemente. A unidade da humanidade não é intelectualmente estática; é um campo aberto em que as possibilidades da mente humana se desdobram historicamente e se manifestam na sequência de civilizações e nações. É cientificamente insustentável parar a história num ponto do tempo e declará-lo

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absoluto como a natureza humana, precisamente o que sucede com a ideia de uma organização estática que seria a resposta política à ideia de homem. O drama da história humana não pode ser retido numa organização de poder governamental, imperial e não pode ser submetido às regras de um tribunal. O defeito da teoria de Dante é o intelectualismo, que reserva ao monarca mundial as funções de árbitro. Os planos de organização mundial de Pierre Dubois e Sully originados na vontade de poder de uma nação particular, sendo hegemónicos, estão mais de acordo com as forças da história. Mas o intelectualismo continua na moda. Os nossos planos modernos de organização mundial são, por regra, hegemónicos. São historicamente realistas na medida em que se baseiam no princípio de que as concepções políticas de uma ordem particular deveriam ser preponderantes, em geral, no mundo ocidental e no globo. Mas são intelectualistas na medida em que uma ideia particular de ordem é universalizável de modo a que todos os homens devem submeter-se-lhe. O conflito político entre a hegemonia organizada e o sonho da universitas hominum - politicamente personificada no séc. XIII por Dante - está longe de estar resolvido. c. O mito da Italianidade O Livro Segundo da Monarquia, trata de saber se o povo romano tem o direito de assumir a monarquia mundial. Os detalhes da investigação não são aqui relevantes, embora sejam um modelo de análise religiosa e filosófica dos sintomas pelos quais a vontade de Deus pode ser conhecida. O importante é que Dante não visa defender o imperador contra o poder espiritual mas sim o populus romanus, ou seja, o povo italiano contra os adversários e competidores. O povo italiano é o povo por excelência em virtude da obra de civilização e de paz que realizou e pela virtude de Cristo se ter deixado julgar por um tribunal romano. Não se trata de nacionalismo. A imaginação de Dante ainda não visiona o estado nacional italiano.

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Enquanto aguarda o fim da intervenção estrangeira, a regeneração deve preparar os italianos para assumir as funções de povo imperial. Dante aguarda por um imperador da Casa de Luxemburgo. Este mito da Italianidade permanecerá na moderna história italiana. Com Maquiavel é o estado nacional, e para Vico a Itália é a única nação ocidental que tem um ciclo antes das migrações dos povos bárbaros. O fascismo irá explorar este ressentimento contra a barbárie anglo-saxónica, considerando-a atrasada em relação à Itália. O livro III retoma a relação da autoridade imperial com a eclesiástica. O argumento imperialista da derivação directa da autoridade de deus contra a construção hieràrquica

§7. A visão em Purgatório 29-33 Numa economia da história das ideias políticas, podemos concentrar-nos na visão apocalíptica decisiva de Purgatório 29 e 32-33. A visão está expressa em símbolos espirituais e consenso é difícil. As linhas principais foram clarificadas pelo trabalho de séculos de comentadores. A evocação de Dante utiliza as raízes joaquimitas através da distinção entre a Igreja feudal corrupta e a Igreja espiritual pobre e a expectativa joaquimita de que o período de iniquidade será seguido por uma Igreja purificada e a ser inaugurado por uma personalidade salvadora. A visão não é simples repetição do sonho joaquimita do Terceiro Reino do Espírito. O elitismo espiritualista de Joaquim era uma fuga à unidade temporal espiritual do Império; a redução da história ao processo espiritual aniquila a vida secular da humanidade, na acepção de irmandade dos perfeitos ser incompatível com a ideia de povo cristão. Dante vive no horizonte mais amplo do poder imperial. Vê a decadência da Igreja em paralelo

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com a decadência do império como poder secular: miséria do papado em Avignon e predominância da França no Ocidente. A reconstrução do imperium tem de se estender ao poder temporal e espiritual. Mas como o velho Império morreu, o problema sai do tempo presente e vai para as eras simbólicas de história Os símbolos básicos são joaquimitas. O império será inaugurado por um Dux, que, contudo. é uma figura imperial e temporal. Apenas em segundo plano aparece uma figura espiritual dirigente designada como Veltro. (Inferno, verso 100 e ss.) Mas esta dupla liderança do império do futuro não será levada a cabo pelo incumbente do trono pontíficio e imperial; não será realizada por acção política no sentido mundano, porque o Império é dado por Deus no devido tempo. Reaparece o elemento de fatalismo típico de uma filosofia da história que procure evocar uma drã fixo no deuros dos ventos futuros. O fatalismo de Dante ainda é mais forte que o de Joaquim porque Dante não assume o papel de simples profeta existencial; é fatalismo de tipo intelectual e aproxima-se mais da submissão à história sob uma lei eterna, típico de Sigério de Brabante e dos Averroístas. Noutro sentido, a evocação de Dante pode ser comparada com a de Santo Agostinho. Dempf afirmou bem que a visão de Dante é a contrapartida da Civitas Dei, na medida em que completa a evocação do reino cristão esboçada em Santo Agostinho. A comparação pode ser levada da esfera dos conteúdos para a esfera dos sentimentos. A Civitas Dei assinala o fim do período romano-cristão porque aceita a derrota da ideia de um império cristão. O saeculum é senescens; não existe esperança na história do mundo e temos que aguardar pela segunda vinda de Cristo que porá fim ao curso insensato dos acontecimentos humanos. A situação de Dante é semelhante. De novo o Império falhou e não existe esperança de restauração no futuro imediato; existe um tempo de espera comparável ao saeculum

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senescens. O indivíduo mais não pode fazer do que retirar-se para atitude contemplativa. Pode julgar as iniquidades do seu tempo mas o tempo passará sobre ele. O saeculum chegará ao fim por intervenção divina. A diferença importante é de que este fim não será o advento de um reino celestial mas uma nova época imperial na história da humanidade cristã. Pela primeira vez surge o sentimento do esperança desesperada de que o deus ex machina abolirá as tendências destrutivas das forças intramundanas e estabelecerá um reino perfeito cristão. As categorias de Dante são medievais, a sua imagem do império perfeito medieval: mas o seu sentimento é moderno na medida em que absorveu a construção do saeculum que esteve a actuar nos séc. XII e XII. A esperança é desesperada porque as forças intramundanas habitam legitimamente o mundo cristão mas têm que ser dobradas às finalidade da ordem espiritual cristã. Mas o sonho da sua abolição deste fins é a força do mundo moderno .

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ERIC VOEGELIN ** A Idade Média -

Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch -

Capítulo 17 Marsílio de Pádua §1.Os primórdios do desenvolvimento constitucional germânico A interferência papal após a eleição de Luís IV como imperador (1313-1347) constituiu a ocasião para ajustar as relações entre o papado e o império. A recusa pontifícia em reconhecer Luís IV despertou o sentimento nacional dos príncipes alemães que se movimentaram para obter a independência constitucional do imperador perante do papa. Em 1338 a Kurverein de Rense declarou válida a eleição do imperador sem confirmação papal; a Dieta de Frankfurt declarou os eleitores competentes para escolher o imperador; e a Bula de Ouro de 1357 regulamentou as eleições imperiais segundo fórmulas que permaneceram até 1806. Esta actuação substituiu a velha ordem política gelasiana de equilíbrio entre os dois poderes, e a evolução constitucional alemã tomou a forma de uma federação de príncipes que durou até fundação do II Reich em 1870, descrita por Lanband como uma república aristocrática de príncipes sob a presidência do imperador. §2. O Defensor Pacis No meio da torrente de literatura partidária que o conflito então produziu, de há muito que se reconheceu que o

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Capítulo 17 Marsílio de Pádu

Defensor Pacis emerge como o primeiro tratado que evoca a ideia da organização secular do Estado, do mesmo modo radical que o De Eclesiastica Potestate de Egldio Romano evoca o supremo poder papal. É habitual levantar a questão do autor. Editado o Defensor Pacis em 1324, Marsílio de Pádua fugiu de Paris em 1326 com o seu colega João de Jandun, acusados de serem os co-autores da obra perseguida pela censura papal. Algumas diferenças estilísticas entre a primeira e segunda partes da obra, sugerem a possibilidade de que os originais não pertencessem ao mesmo autor. Mas como na obra definitiva predomina o entrosamento de estilos, o conhecimento indiscutível do autor não aumentaria a nossa compreensão da obra. Das incompreensões que até recentemente obstavam à compreensão da obra permaneceram três ou quatro obstáculos sérios. Primeiro, a mais importante passagem de todo o livro - a secção I,12,3 - surgia incompleta nas edições primitivas fazendo crer que Marsílo se inclinava para a teoria da soberania popular. Tal incompreensão desaparece perante o texto restaurado da edição crítica de 1928, por C.W. Previté-Orton, Cambridge, 1928. A segunda causa de incompreensão é a tendência para ler ideias modernas num tratado medieval; o intérprete progressista realça a grandeza do antecipador porque tem ideias posteriores que considera mais avançadas. A prevalência da atitude hermenêutica que pede para situar as ideias de autor no contexto do tempo, vem destruir estas veleidades. A terceira fonte de confusão é a dificuldade de situar as ideias de Marsílio. O Defensor Pacis utiliza a Política de Aristóteles. Recepção, contudo, não significa adopção mas, neste caso, uma selecção de teorias isoladas de Aristóteles enquadradas num sistema com princípios totalmente distintos. Uma comparação das citações marsilianas de Aristóteles mostra que a relação é muito menos intensa do que é sugerido pela massa de citações. Outro obstáculo era o conhecimento

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insuficiente do averroismo latino seguido por Marsílio e João de Jandun. Para quem conhece Sigério de Brabante e Boécio, o modernismo do Defensor Pacis o já não surpreende; é antes o culminar de um desenvolvimento intelectual com mais de setenta anos e que nesta obra atinge o impasse. §3. A relação com Aristóteles O tratado está organizado em três partes designadas Dictiones. A segunda é a maior e contém a polémica contra o poder sacerdotal em geral, e pontifício em particular. Reduz os poderes coercitivos do sacerdócio a uma subdivisão da política secular. A Dictio Prima expõe os princípios donde são derivadas as regras da Dictio Secunda. A Dictio Tertia é uma curta enumeração de quarenta e duas regras que resumem o argumento das partes precedentes. Ao longo da obra sucedem-se referências ao “divino Aristóteles”. Mas em vez da polis como a communitas perfecta, Marsílio utiliza civitas ou regnum, a comunidade territorial nacional. Aristóteles abordava a polis centenária como forma política inquestionada, e centrava-se nos problemas da eudaimonia como portadores do significado da vida humana e da arete como a atitude adequada do cidadão. Ora a comunidade política secular de Marsílio corresponde ao novo tipo de organização política que se está a separar do império. Enquanto a Política de Aristóteles é a derradeira palavra de uma polis moribunda, o Defensor Pacis é a primeira palavra do Estado secular: não aborda a concepção da eudaimonia e da arete, nem na ética nem na antropologia. O tópico central é a existência do Estado secular através dos esforços do monarca com a ajuda de peritos legistas e financeiros, regulando os grupos sociais do reino em devida proporção, e reduzindo o clero a uma posição subalterna no corpo político. O título adverte que o estabelecimento da paz e da tranquilidade será obtido pela subordinação do sacerdote ao poder secular

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monopolista. (III,3, De titulo huius libri) §4. Analogia orgânica O Defensor Pacis começa por comparar a communitas perfecta a um animal saudável, remetendo para Aristóteles, Política, 1254b e 1302b. A civitas tem uma natureza animal (I,2,3) e cada parte deve estar ordenada. Mas em Política 1302b, a analogia aparece no contexto das revoluções causadas pela desproporção de ricos ou de pobres. Em Política 1254b após comparar a estrutura da polis à relação entre alma e corpo de um ser vivo em que a alma é parte dominante, Aristóteles conclui que, também na cidade, a parte melhor deve dominar a pior; ou seja, a teoria marsiliana da cidade como organismo está artificialmente associada à Política de Aristóteles. Os antecedentes da teoria estão, sim, no Policraticus que constrói o poder governamental intramundano como representativo de uma comunidade particular. A analogia orgânica era usada por Salisbury para evidenciar a estrutura interna da comunidade. Marsílio retoma esta imagem da entidade política para passar à solução do problema de como um indivíduo ou grupo dominantes, a pars principans, exercem a sua autoridade representativa. §5. O problema de autoridade intramundana representativa. O legislador A analogia orgânica ajuda a evocar a comunidade como um todo mas não ajuda a resolver o problema da autoridade representativa. Se a autoridade do governante não provém de Deus, mas antes se localiza na comunidade intramundana, o governante deriva a sua autoridade dos membros que deve regular. A fonte tem que estar no todo que antecede os partes. Marsílio é o primeiro pensador político do Ocidente a enfrentar o problema de que por detrás da constituição, está o poder constituinte do povo que se reúne em assembleia.

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A solução encontrada é perfeita para o tempo. A fonte de que o governante deriva autoridade é o legislator. Este legislador (o nomothetes de Aristóteles) é o agente intramundano que autoriza a ordem constitucional sob a qual o governante exerce as suas funções, incluindo a legislativa. Diz a mais famosa passagem do Defensor Pacis, I,12, 3: “Definimos conforme a verdade e a opinião de Aristóteles em Política II,6 (II,11 na contagem actual) que o populus ou civium universitas ou a sua parte socialmente relevante pars valentior) é o legislator ou primeira e propriamente causa efectiva da lei através da sua escolha ou vontade expressa (per sermonem) numa assembleia geral dos cidadãos, comandando ou determinando que algo seja ou não feito acerca das acções civis dos homens mediante castigo temporal ou punição. Quando digo ‘valentior pars’ significo relevante pela quantidade bem como pela qualidade das pessoas na comunidade para a qual a lei é dada; assim será, quer a supramencionada universitas civium ou a sua parte socialmente relevante se tornem a lei, quer confiem a feitura da lei a uma ou mais pessoas que não podem evidentemente ser o próprio legislator mas que actuam para um fim definido num tempo definido e de acordo com a autoridade que lhes foi conferida pelo legislator" (I,12,3). Tudo depende do significado dos termos pars valentior e universitas civium. É inaceitável que universitas signifique o eleitorado no sentido moderno e pars valentior a maioria. A primeira versão do texto define valentior como consideratae quantitate, e a edição emendada acrescenta et qualitate. Como parte prevalecente ou dominante não é esclarecedor, usei a tradução de Max Weber, como abrangendo todos os membros da comunidade que causam perturbações caso fossem negligenciados. É esta a intenção de Aristóteles na Política e de Marsílio no cap.13 do Defensor Pacis. Os membros pobres da comunidade são relevantes devido ao número, os que possuem mais carácter, educação e

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propriedade são-no devido à qualidade. Por isso Marsílio distingue os indocti (I,13,9) camponeses, artesãos e mercadores, da classe superior de sacerdotes, capitães e legistas. Este equilíbrio entre a iniciativa dos poucos que são educados e o apoio da massa dos indocti reflecte a estrutura das comunas italianas da época e vale genericamente para a sociedade medieval tardia. O legislator é afinal a sociedade medieval estratificada, aspecto tanto mais de salientar quanto Marsílio não precisava conceber nestes termos o todo da comunidade. Poderia defender uma teoria do governo democrático popular. As forças sociais que favoreciam este desenvolvimento existiam na Itália e em cidades do norte da Europa. Mas nem Marsílio se interessava pela força espiritual destes movimentos nem nele existe traço do homem cristão livre e espiritualmente amadurecido definido por São Tomás de Aquino. O elemento populista no Defensor apenas resulta da descrição da estrutura institucional das comunas. Em suma, a teoria do legislator é a primeira construção consistente da unidade política intramundana, criando a autoridade de um todo da comunidade anterior às partes. A finalidade só é idêntica à teoria do governo popular, na medida em que também visa instaurar uma unidade política intramundana; é genuinamente medieval porquanto mantém os equilíbrios da sociedade estratificada. §6. Governo limitado - Italianismo Na época de Marsílio, no que refere às relações entre os dois poderes tradicionais os problemas comuns eram cada vez mais escassos e os problemas nacionais particulares cresciam em importância. Na época da Querela das Investiduras, alinhava-se a favor do papa ou do imperador; nos meados do séc. XIV, a linha de choque deslocara-se para o frente entre o papa e a pluralidade de

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poderes nacionais, neste particular, o poder italiano. O governante é instituído pelo legislator e submete-se-lhe, até ao extremo de suspensão e deposição do cargo, em caso de abuso de autoridade (I,18). João de Salisbúria estabelecera a correcção do poder pelo tiranicídio é agora substituída pela acção legal por parte da comunidade, e em nome do governo limitado. Para construir a unidade política intramundana, é precisa uma função limitadora. A solução constitucional moderna associa a universitas à limitadora. Mas Marsílio substância imaterial da comunidade de modo que governante se torna seu representante directo sem povo, como na Rússia e Alemanha totalitárias. Não é por acidente que foi um cidadão plebeu de Pádua que desenvolveu a ideia de governo limitado por universitas e Marsílio poderia ter sido o primeiro a estabelecer um paralelo entre a polis descrita por Aristóteles e a cidade-estado medieval. A sua teoria de substituir a polis pelo regnum ou civitas ganhava sentido no contexto das comunas italianas e dos reinos nacionais transalpinos. O tratado não prometia antecipações sobre governo limitado e constitucionalismo, até porque a corrente ia, pelo contrário, no sentido do reforço do poder do monarca absoluto. §7 Naturalismo averroista As tendências averroistas do Defensor surgem em partes decisivas do livro mas não formam um sistema explícito, deixando ao leitor a tarefa de completar uma teoria esotericamente sugerida. Ao ler I,4,1 tem-se a impressão de que o autor adopta a teoria aristótelica da vida boa: os homens associam-se em comunidades para melhor fruir das ocupações prática e contemplativa da alma. Mas em Marsílio não

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existe teoria do homem justo nem do cidadão virtuoso. Conforme a sua filosofia naturalista da sociedade, a natureza dotou os diferentes homens de diferentes inclinações e hábitos, em ordem a fornecer matéria para uma sociedades perfeita.(I,7) Desaparecida a unidade do homem, a filosofia colectivista do homem natural que se evidencia se a compararmos com passo paralelo de Aristóteles na Política, 1328a-1329a. Aristóteles contempla a diversidade de inclinações naturais mas também atende ao ideal da personalidade perfeita. O cidadão perfeito tem que exercer em sucessão as funções de guerreiro, governante e sacerdote porque a polis está organizada em torno do ideal personalista, pelo menos os melhores da classe já que escravos, periecos, e artesãos não se qualificam para a cidadania e através de sua qualidade formam a substância da comunidade. §8 A pars principans Uma civitas nasce, mas não cresce, a partir da diversidade humana. Para Marsílio, os hábitos são causas materiales do Estado mas não são causas formales nem eficientes. A causa formal da ordem social são as leis emanadas do legislator. A causa eficiente é o próprio legislator. O Estado é uma organização cujas partes constituem officia que obedecem a uma autoridade (I,7,1). Assim cabe ao governante ser a pars principans coordenadora das outras partes da cidade. A sua função é judicia.lis et consiliativa (I,5,1) e executiva (I,15,4) e tem ainda o poder de legislar, praecipere (I,15,6). Cabe-lhe regular o número e qualificações dos grupos sociais de modo a manter as proporções entre eles. (I,15,10) O governante é pars prima porque institui, determina e conserva todas as outras partes (I,15,14). A civitas apenas fica estável quando o governante adquire o monopólio do poder. Uma multidão apenas se torna civitas se tiver um governante com autoridade secular suprema (I,17,11). Esta ênfase no poder supremo do governante mostra bem que a universitas não pode

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ser considerada soberana. O ênfase está na organização governamental que tem à sua frente o trabalho de unificação nacional. §9 A pluralidade de Estados em guerra Marsílio condena a organização política da humanidade sob um só governante por motivos complexos (I,17,10). Louva a existência de uma pluralidade de Estados correspondendo a diferenças regionais, linguísticas e culturais; mas adianta que parece intenção da natureza moderar por guerras e epidemias a propagação do homem, de modo a que o espaço limitado seja suficiente para processo de eterna geração. Uma paz munida. Uma vez mais se nota um argumento averroista, neste caso a geração eterna como princípio definitivo de organização política, mesmo que a expensas da paz entre os estados. §10 O Direito Marsílio apenas aceita o sentido do termo lei relevante para o Estado secular. O direito é uma doutrina sobre o justo e útil e seus opostas em assuntos civis e donde se derivam regras coercivas sancionadas por penas e recompensas. (I,10,3 e 4). Reconhece a possibilidade de uma ciência do justo e do injusto mas não aceita um direito natural. A verdadeira cognitio do justo não origina uma lei, (I,10,5) mas uma falsa cognitio pode ser lei desde que dotada de sanção (I,10,5). A potestas coactiva domina todas esta teorização de que está ausente o direito natural. §11 Cristandade e Igreja Embora seja o objectivo principal do livro, o argumento contra o poder do sacerdócio na segunda parte é um anti-clímax, após a exposição da primeira parte. Marsílio é averroísta: reconhece a verdade da fé mas trata os conteúdos com indiferença. Não procura reconciliar razão e fé: o significado da vida boa é assunto de filósofos, sendo Aristóteles guia nesta matéria. As

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questões sobre a vida eterna não permitem consenso e situam-se para além de razão (I,4,3). O cristianismo é, simultaneamente, uma “seita” entre outras e a verdadeira religião. E Marsílio chega ao ponto de resumir os artigos da fé cristã, como se o leitor da época não os conhecesse sobejamente; age como alguém para quem o cristianismo fosse numa curiosidade intelectual. Esta suposição parece confirmar-se quando diz que a religião incute um sagrado terror das penas infernais para fortalecer a conduta moral dos homens vulgares (I,6,11). Mas o cristianismo é uma religião de um outro mundo que não se deve institucionalizar numa Igreja com potestas coactiva sobre seus membros; a existência do castigo eterno não permite atribuir poder aos sacerdotes. Cristo é um “médico” que informa e prognostica sobre as vias mundanas que conduzem à salvação ou à danação; não é juiz nem rei em que os sacerdotes se possam apoiar. Marsílio utiliza mesmo a expressão averroísta de que Cristo perdoa “usque ad extremum cuiusque periodum”, aceitando a teoria de que existem ciclos sucessivos da humanidade. A partir destes princípios, é fácil adivinhar as relações entre Igreja e poder secular. A Igreja está submetida à autoridade do supremo legislador que ordena a vida do homem para a felicidade mundana (II,4 e 5). O clero deve responder em tribunais seculares; a actuação da Igreja deve ter a permissão de leis seculares; a organização hierárquica da Igreja deve ser abolida; a preeminência do papa tem razões apenas históricas e não espirituais; só a escritura deve ser acreditada, sendo a sua interpretação função de Concílio Geral da Igreja. Os delegados do Concílio devem ser escolhidos na comunidade dos fiéis, leigos e sacerdotes pelos governantes seculares. §12 O credo esotérico As doutrinas do Defensor Pacis não são redutíveis a uma só fórmula devido à multiplicidade de problemas práticos e teóricos que surgem misturados com afirmações de

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princípios devidamente encobertas para eludir a censura papal. Mas apesar do carácter esotérico da obra, é possível encontrar no âmago uma teoria política averroísta. Sigério de Brabante apresentara a humanidade como colectividade dotada de uma anima intellectiva, em que cada indivíduo participa através do processo de geração eterna. A anima intellectiva presta-se à evocação de um império mundial, a universalidade de organização política que corresponde à universalidade da mente como em Dante. Se o processo natural é determinante, pode evocar-se a ideia de um fluxo de comunidade política com pluralidade de estados em guerra entre si. A opinião prevalecente sobre o sistema político de Marsílio aponta para a incompatibilidade entre a dictio prima e a política eclesial da dictio secunda. Se já o fideísmo diminui a capacidade do cristianismo como força anímica da sociedade, para Marsílio que considera a religião como ópio do povo, e Cristo como figura cíclica da história, o cristianismo é ilusão que não se integra na política secular. Por outro lado, se os filósofos árabes alcançaram uma atitude de tolerância para com o Islão, a política eclesial do Defensor também pode ser tolerante e condescender que os vulgares tenham convicções ilusórias e mesmo uma forma de expressão institucional através de concílio geral, sem contudo conceder um poder sacerdotal. Entre a leitura da incompatibilidade e a da tolerância não e fácil decidir porquanto falta parte do doutrina sobre a questão da substância da comunidade. É como se uma mancha escura escondesse o que lá está escrito. As escassas referências à vida boa, ao justo e ao útil e a evocação da almas não chegam a formar um código de ética nem um ideal de vida. Uma vez que o autor não aceita o cristianismo como substância da comunidade, podemos suspeitar que era um intelectual naturalista, que queria fruir do seu conhecimento superior e deixar a

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massa entregue a um credo utilitário. §13 Tecnicismo político No ponto de vista político, como a atitude central de Marsílio é niilista, a sua abordagem dos problemas políticos torna-se técnica no sentido de que procura compreender os problemas do poder sem participação pessoal nas lealdades da comunidade. O tópico que mais interessa a Marsílio é o tratamento e a prevenção das revoluções, pese embora o seu tratado não ter alcançado a grandeza e a notoriedade do Príncipe. Mas os problemas essenciais da política secular pós-medieval e os traços de averroísmo estão já no Defensor pelo que boa parte da fama de Maquiavel deveria ser restituída a Marsílio. Em todo o caso, a fama permaneceria na teoria política de Itália, onde o confronto directo com a Igreja criou um clima favorável a uma abordagem tecnicista e autónoma da política, desde o longínquo sec.XIV de Marsílio até ao séc. XX, com Mosca e Pareto.

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ERIC VOEGELIN

ERIC VOEGELIN ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ** A época medieval

Capítulo 21 - A área imperial

Introdução Na área europeia entre a França e zona eslava, não houve um reino nacional como em Inglaterra. nem monarquia carismática como em França. A unidade política e o continuum de ideias política desde o séc. X é nessa área preenchida pelos cargos do Sacrum Imperium assente no Papa e Imperador. O Sacrum Imperium não é um reino alemão mas apenas um domínio de forte base militar e eclesiástica na zona intermédia germano-italiana. Esta estrutura é habitualmente mal compreendida por diversos motivos. 1) A Querela das Investiduras e o surto dos Hohenstaufen obscurecem processos regionais. Assim, o interregno de 1254-1273 não foi tão importante como convencionalmente se pensa. 2) As unidades políticas regionais não evoluíram para a forma de estado-nação. Os símbolos evocativos da zona imperial não atingem expressão literária em pensamento político sistemático. Ora onde não existem doutrinas, é preciso analisar as instituições. 3) A historiografia alemã oitocentista e nacionalista falou de obsessão italiana, de erros de Hohenstaufen e Habsburgos, deformando o período medieval como época das oportunidades perdidas para a criação do estado nacional alemão.

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§ 1 Política sub-imperial

§ a Política imperial e sub-imperial. A Alemanha não tem datas decisivas na sua história equivalwntes a 800, 1066, 1143, sendo significativo que a fórmula termo “império alemão” foi usada pela primeira vez em 1871.

§ b Reino Franco Oriental e Itália Em 911 o Duque da Francónia sucede ao ultimo carolíngio como rei das tribos do reino Franco oriental. Coexistiam na Alemanha uma pluralidade de Stammesherzogtume, o que determinou o particularismo alemão. Os ducados alemães constituíam um Hinterland do Império. Era vital manterem abertas as vias para Mediterrâneo e Império Bizantino para não caírem fora do comércio mundial. Donde, Império alemão empreender uma política Italiana. Otão o Grande renova em 962 o Império de Carlosmagno sendo os monarcas alemães reis francos orientais. Mediante a expedição a Itália, de 952, conquista as passagens alpinas e partes de Lombardia: na expedição de 962 conquista o resto, sendo coroado rei de Itália em Pavia, e assinando tratado comercial com Veneza uma vez que os impostos italianos eram essenciais. Apenas a região lombarda estava sob o controle do Papado

§ c Concentração do poder real Os Imperadores Otões concentraram na família os feudos vagos e controlaram a Itália a partir do reduto alemão a Norte dos Alpes. Só a Saxónia resistia A partir de 1046 surgem quatro papas germânicos que iniciam a reforma cluniacense do Papado. Após o imperador Henrique III

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morrer prematuramente, o Interregno da regência foi fatal. Henrique IV, ao encontrar as terras redistribuídas, tenta criar base territorial na Saxónia e procura controlar as terras da Igreja através da prática de simonia. Mas o prestígio do Papa crescera com as reformas de Cluny. A Querela das Investiduras foi o conflito iniciado entre Henrique IV e Gregório VII. Após um segundo interregno que causou danos irreparáveis, reinaram Henrique V 1106-1125 - e Frederico I - 1152-1190. Outras casas principescas na Alemanha - tais como Guelfos e Babenbergs - eram igualmente importantes. A política dos Hohenstaufen foi muito diferente; procuraram controlar a Alemanha a partir do reduto italiano. 1) A consolidação da Lombardia com governos de podestà nas cidades. Apesar de derrotados em Legagno, em 1172, fizeram cair o pretendente saxão, em 1180. A aquisição de Toscânia e o casamento siciliano de Henrique VI coroaram a construção do reduto italiano. Mas Henrique VI morre aos 32 anos, em 1197. O filho, o futuro Frederico II, tem apenas 3 anos. Começa o terceiro interregno. Na história alemã o Grande Interregno é o de 1254-1273, entre o último Hohenstaufen e a eleição de Rudolfo de Habsburgo. A tradição medieval imperial morrera e cresciam os principados da renascença e os estados nacionais. Mas os factores de crise acumulavam-se. Entre 1197-1273 existe interregno no nível sub-imperial (não nacional). Foi então que emergiu Frederico II. Não era propriamente um príncipe alemão e desistiu de controlar a Alemanha. O Papa controla a Igreja alemã pela Bula de Ouro de Egger, de 1213. Mediante o estatuto de 1220, os príncipes eclesiásticos são independentes. Os príncipes leigos dominam os seus respectivos territórios, segundo o estatuto de 1231. A política de Hausmacht dos Habsburgos reconhece os particularismos alemães. Os velhos ducados já não serviam como base de apoio político, nem sequer na

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Itália após a perda da Sicília para Aragão.

§ d. A colonização do Leste A nova solução - dos imperadores Habsburgos - foi a criação de um núcleo de poder a leste do território alemão, aproveitando a expansão germânica contra os eslavos. Enquanto os reinos da Europa fixavam fronteiras nacionais, os alemães estavam em movimento a partir do Elba e do Saale nos sécs. XII ao XIV, num movimento comparável à expansão atlântica dos europeus. Este movimento deixou ficar uma diferença entre civilização metropolitana ocidental e civilização colonial oriental que, só no séc. XVIII, se aproximam com o movimento Sturm und Drang como assinalou Josef Nadler[1]. A integração institucional da Alemanha ficou ainda mais dificultada com os novos particularismos dos municípios do Leste.. E até hoje [1941] os padrões de co

1 Política sub-imperial A dificuldade de integração institucional agravou-se devido aos particularismos alemães. As comunas, os municípios, a pequena nobreza e o terceiro estado da Alemanha não produziram dirigentes, porque não existia um enquadramento nacional que permitisse acumular a experiência política. Até hoje, os padrões de comportamento políticos não resultam de um pretenso carácter nacional alemão mas da ausência de instituições estabilizadoras nacionais. Ademais, a expansão para Leste, atingiu território totalmente eslavo e criou problemas de minorias. A fronteira política alemã ficou sempre em suspenso, até ao Volga. A iniciativa da expansão não foi uma iniciativa imperial. Em 1140, Adolfo de Schaumburg funda Lubeck, primeiro

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posto no Báltico. Em 1144, Alberto o Urso funda Brandenburgo. A Cruzada de Wendos ocorre em 1147 com Henrique o Leão, a leste do Elba. No séc. XIII , é conquistada Riga em 1230, e a Livónia em 1225. A Ordem Teutónica na Prússia atinge a Estónia em 1346. Do Holstein ao Lago Peipus; só a conquista da Silésia se deve a imperador Frederico I, em 1163. A consolidação de Polónia e Lituânia unidas em 1386 sela o destino do Báltico alemão. Tannenberg é perdida em 1410. A perda de Samogitia corta ligação com Prússia e Livónia. Na Prússia Ocidental, Danzig fica polaca em 1466. Só reentra em Império alemão em 1815 e no Bund alemão em 1866. A família dos Premyslid domina a Boémia em séc. XI e XII. Venceslau I acolhe a imigração alemã e funda um principado semi-alemão. Caríntia, Estíria e Áustria separam-se do Ducado de Baviera. Todo o peso político alemão deslocou-se para Leste. Após 1300, os grandes senhores vêm de Áustria, Boémia Brandenburgo e Prússia. As comunas determinaram a formação de Inglaterra e a monarquia formou a França. A colonização e a articulação territorial do leste determinou a estrutura política alemã cuja escassa articulação nacional contrasta com a sistematicidade das ideias políticas alemãs. § e Sumário da política das três dinastias imperiais alemães: 1a Saxão-sálico: coexistência entre velhos ducados e concentração de poder real. 2a Hohenstaufen: concentração de poder real na Sicília e Itália

3a Habsburgos: concentração na Hausmacht e nos territórios de Leste.

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§ 2 A Bula de Ouro

§ a Carlos IV Em 1356, Carlos IV toma a iniciativa de reconhecer e formalizar a estrutura política alemã através da Bula de Ouro. Seja quem for o respectivo autor, a Bula surgiu na sua Chancelaria após negociações com os Eleitores. Carlos IV não era um carismático, mas antes um cristão devoto, sem ilusões sobre papado, e um bom europeu. Do nome original de Venceslau, rei da Boémia, passou para Carlos, rei dos Francos, Rei de Borgonha e Imperador romano. Administrador cuidadoso, tinha a intuição de que quase todos os homens têm um preço. A complexidade da figura torna-o pouco conhecido mas criou uma solução que durou mais de quatro séculos.

§ b Forma da Bula de Ouro A Bula de Ouro foi promulgada na Dieta de Nuremberga, 1355, e na Dieta de Metz, 1357. É um estatuto solene que regula a eleição do Rei, o estatuto dos príncipes eleitores, do Rei da Boémia e outros assuntos. O processo eleitoral segue a Constituição de Melfi.

§ c. As variantes na terminologia da designação imperial - christianum imperium, sacrum imperium, sacrum imperium romanurn, sacro-sanctum imperium Romanum revelam a complexidade da questão. O sacrum edificium tem sete candelabros. A cabeça é rex romanorum imperatorem promovendus e outros termos que reflectem a estrutura histórica de constituição do império. A dignidade do reino alemão sobre domínios alemães, regnum teutonicum, implica funções de administração imperial em Borgonha e Itália, regiões de imperium. O rex electus era um imperador. Existe um imperium estatal e

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administrativo e um império mundial. Os Hohenstaufen tentaram que o império estatal fosse coextenso com o império mundial. Frederico I chamou reguli aos reinos independentes dos governantes. Henrique VI transformou em feudos imperiais os reinos cristãos de Inglaterra, Arménia e Chipre. E Frederico II atribui-se a designação de dominus mundi. Ademais com a chefia temporal do sacrum imperium, o imperador acumulava funções de protecção do mundo cristão, promoção de cruzada e missionação, reforma da Igreja e influência na eleição papal, atribuições de poder espiritual. O rei-imperador acumula funções de: 1) Reinado no regnum teutonicum; 2) Funções imperiais face a império estatal que inclui Itália e Borgonha 3) Pretendente a império mundial futurus imperator;4) Poder temporal sobre o populus christianus e protectorado sobre a Igreja. Na prática, tais jurisdições coincidiam na mesma pessoa. O cargo tem um dinamismo complexo que inclui eleição secular, aprovação papal e coroação, o que se tornará fonte de conflitos entre príncipes e papas e exige negociações preliminares com eleitores seculares e eclesiásticos. Segundo a lei romana e canónica, a dignidade imperial vem directamente de Deus e não carece de aprovação papal, tal como estatuído por Luís o Bávaro, em 1338. O documento Licet Juris considera que os príncipes eleitores criam o verus imperator. A Bula de Ouro não menciona o aprovação do papado, deixando o caso em aberto para a técnica legal e a diplomacia. Carlos edita-a logo após a sua coroação. A transformação do reino numa federação oligárquica de príncipes com cabeça eleita exprimia o surto do sentimento nacional alemão. Contudo, tratava-se de uma solução politicamente pacífica de um problema delicado. O silêncio no ponto crítico não prejudicava o papado e tornava desnecessário que o Papa recorresse a protestos oficiais.

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§ d O Colégio Eleitoral A eleição é feita em Francoforte por sete eleitores, o que criou os problemas de representação e de maioria. " Talis electio perinde haberi et reputari debebit, ac si foret an ipsis omnibus nemine discrepante concorditer celebrata." (Bula, II, 4). A maioria de quatro eleitores (entre sete) tem o carácter de quorum porquanto são precisos quatro votos eleitorais para eleger o rei. Transforma-se em regra de maioria pela coincidência de que colégio de eleitores tem sete membros. Assim, a fórmula da Bula transforma em eleição o que antes fora escolha. Os procedimentos de elevação ao trono formam um processo extraordinariamente complicado que, nalguns casos, durava anos. A escolha de um candidato era o primeiro passo; depois vinham as negociações com o candidato; depois a eleição, ou seja, a concordância dos príncipes eleitores: depois a nomeação seguida de louvor, o agrément de pessoas menores e a a,clama,ção do povo; depois a entronização e a coroa.ção ainda interrompida por actos de louvor e aclamação; a aquisição do consentimento das tribos; o tomar posse das insígnias; a imposição de funções face a dissidentes. Este processo complicado em que se atinge o pleno consenso de reino e rei é reduzido no séc. XIII quando as Regras do Sachenspiegel seleccionam a eleição como momento central. O voto é acto formal que sanciona uma concordância substancial antes de começar a votação. Existe, pois, um voto de prestígio e um voto eleitoral. Em 1273, o desinteresse por eleição leva o Papa a insistir em eleição por quorum. Na bula de Ouro a representação por consenso é reduzida à ficção da concórdia. O prestigio dos votos eleitorais formaliza-se na instituição do colégio eleitoral.

e. Oligarquia dos Príncipes

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As provisões para a eleição do rei-imperador determinam a influência dos Príncipes do Palatinado, Boémia, Saxónia e Brandenburgo e dos Bispos de Mogúncia Colónia e Trier. Constitui-se o Gabinete imperial com os Príncipes. São admitidas as Ligas de Paz Landfriedensbünde entre príncipes e cidades. Outras associações são estigmatizadas como conspirações como por exemplos ligas inter- e intra-urbanas.

f. Lupold de Babenberg Como mostrou Dempf, a literatura sobre o zelo fervente pela pátria germânica é vasta, destacando-se em particular o De juribus regni et imperii Romani, escrito por um canonista, provavelmente o Bispo de Bamberg. Para este, o reino dos francos livres é anterior ao império. Descendentes de Troianos fugitivos, os Francos são tão antigos quanto os romanos. Após translatio imperii de Gregos para Francos, por vontade do povo romano e acção do papa, a questão gira em torno da relação do regnum germânico com o imperium. A doutrina tem cinco artigos principais: Por jus gentium, o povo sem rei tem direito a eleger um. Mesmo que a eleição seja in discordia, por maioria os direitos do rei são iguais. O voto de maioria produz concórdia no caso de uma universitas como é o Colégio eleitoral. Os eleitores formam um collegium, não são sete sujeitos soltos. Os príncipes são representantes do povo e a eleição é um acto do povo alemão através de seus representantes Como noutros reinos ocidentais, também o rei-imperador é imperator in regno suo; direitos como o de legitimação de filhos e reabilitação de pessoas não lhe advêm do facto de ser imperador.

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A eleição dispensa a aprovação papal. O juramento de lealdade ao Papa não constitui feudo mas lealdade à defesa de Igreja e Papa. Lupold separa claramente o império estatal do império mundial. Para o governo do regnum, bastam os princípios de jus gentium. A aprovação papal só é requerida para o império mundial. Apesar de não atingir a posição do licet juris que declara irrelevante a aprovação e a coroação pelo papa, a doutrina de Lupold pode ter influenciado neste ponto a Bula de Ouro embora a tonalidade seja mais populista do que oligárquica.

§ 3 AS CIDADES-ESTADO

§a Área das cidades-Estado. O que Arnold Toynbee designou por cosmos das cidades-Estado [2]estende-se da Toscânia e Itália Superior através da Suíça, Alemanha do Sul e Vale do Reno, Holanda e Flandres; da área de Colónia ramifica-se para Vestefália e Báltico e até à Estónia. Cobre as grandes vias comerciais da Idade Média. Permite a passagem do Próximo Oriente, através de Itália, para as regiões a Norte dos Alpes e de Novgorod para a Europa Ocidental. Na intersecção das duas estradas encontramos o rico núcleo de cidades na Holanda e Flandres. A posição nas vias comerciais era a condição económica para comércio e indústria. Politicamente, era uma terra de ninguém entre poderes territoriais fortes. As cidades italianas desenvolvem-se no vácuo de poder entre papados Bizâncio, Império transalpino e mundo muçulmano entre a Borgonha e os principados alemães e franceses. A Liga Hanseática no ângulo entre principados germânicos do Norte e reinos escandinavos e eslavos. A localização nestas áreas de

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transição é condição para evolução de cidades Estado com poderes menores. E, finalmente, esta área entre poderes maiores é idêntica a área de Lotaríngia estabelecia em 843 por Tratado de Verdun. E apenas no séc. XIX partes dela foram incorporadas nos estados nacionais de Itália e Alemanha, enquanto Suíça, Bélgica e Holanda mantém-se como poderes menores e a Alsácia-Lorena oscila ente França e Alemanha. A costa báltica foi terra colonial gradualmente integrada na órbita dos poderes vizinhos, e apenas o regime nacional-socialista integrou as cidades livres de Hamburgo, Lubeck e Bremen.

ib. Cidades e mundo feudal.

A partir de agora encontramos um sistema de relações directas entre os cidadãos e as autoridades municipais. As comunas representam a substância do novo tipo. A cidade é a representante de uma nova fase da civilização ocidental e o estilo civilizacional das cidades que entra em competição com o estilo dos estados primitivos e que acabará por dominar a nossa civilização.

§c. Vias comerciais e alimentos As cidades ultrapassaram os limites e tornaram-se centros para os território circunvizinhos. A guerra de Chioggia (1378-1381) revelou a vulnerabilidade de Veneza devido a falta de controle de abastecimentos alimentares. durante a primeira metade do séc. XV, Veneza prossegue uma vigorosa política de extensão para o Hinterland, adquirindo Padua, Bassano, Vicenza, Verona, Brescia, Bergamo, e Cremona.

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d. A Quarta Cruzada.

§e. A organização da conquista Veneziana Se a expansão das cidades Estado revelou a respectiva força, a ordem constitucional das suas conquistas revelou as suas limitações.

§f. Borgonha Veneza é uma cidade-estado que integra territórios rurais. Em Borgonha, a integração da rede urbana dos Países Baixos no reino da Borgonha. Um senhor feudal integra feudos sobrepondo uma administração central. Começa com Filipe II, Duque de Borgonha em 1363, casado com herdeira de Flandres e Artois. Através de compras e cessões, Filipe o Bom adquire Holanda, Zelândia, Brabante, Limburgo Luxemburgo, Hainault, Namur, Antuérpia e Nechlin. O seu sucessor, Carlos o Temerário (1467-1477), acrescentou Guelders e Flandres. Criou-se um Grande Conselho sob a presidência do Chanceler de Borgonha e com representantes de todas as províncias. Existia uma Câmara de Justiça desde 1473 que depois se separou como Parlamento de Malines e tornou-se um Tribunal de Recurso Supremo. A administração financeira do reino era organizada por três Câmaras de Contas, situadas em Lille, Bruxelas, e Haia. Criou-se um exército permanente organizado em Compagnies d’Ordonnance. Em 1463 são convocados para os Estados Gerais do Reino os representantes dos estados locais que se ocuparam da racionalização do sistema financeiro. A criação da Ordem do Tosão de Ouro em 1430, mostra a intenção de formar uma nobreza do reino, distinta da nobreza local. Uma área feudal foi transformada em monarquia com administração central

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racionalizada mas moderada por instituições locais e congresso federal, e em que o senhor está equidistante de todos.

§g. A Liga Hanseática No espaço báltico formou-se uma organização de cidades para a protecção do comércio, protecção mútua e aquisição e exploração de privilégios em regime de monopólio sem a pretensão de conquistar e organizar territórios. O impressionante florescimento hanseático não teve consequências para a organização da nação alemã. Quando desapareceu as cidades decaíram e integraram-se nos principados alemães. Dentro do particularismo germânico do séc. XIV, a Liga foi uma forma adequada de protecção política; no período pós-colonial de desenvolvimento nacional. Este ponto é decisivo para compreender a interpretação do problema alemão no séc. XIX e mesmo depois, tal como a interpretação do carácter nacional inglês que geram e complicam o crescimento institucional de longa duração. Nos séc. XII e XIV a integração alemã foi prejudicada por: 1) Destruição do papel régio de integração devido aos longos interregnos; 2) Obstáculos à articulação nacional devido à existência de principados territoriais; 3) Dispêndio de forças na colonização do Leste em vez de as aplicar na ordem interna; 4) Desvio das energias políticas das cidades para políticas de Ligas efémeras. A Liga foi favorecida pelos objectivos limitados das cerca de 160 cidades que se associaram em número variável ao longo dos tempos, dispondo como arma eficaz do boicote comercial. Entre 1350 e 1450 a pertença aumentara muito, atingindo o maior número após esta data quando já começava a declinar o poderio da Liga. É possível distinguir duas fases neste processo. A Liga

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principia por ser uma associação de mercadores alemães no estrangeiro. Após meados do séc. XII os mercadores têm auto-administração em Gothland ou Londres. Antes de 1220 estavam em Novgorod, com delegações em Pskov, Plotsk, Vitebsk e Smolensk, e em meados do séc. XII em Wisby, Londres, Bruges, Bergen. Geralmente aponta-se o ano de 1241 como o início formal da Liga Hanseática mediante a aliança de Hamburgo e Lubeck; mas tratava-se de uma aliança entre os mercadores de ambas as cidades e não entre duas civitates, que apenas surgirá formalmente na segunda metade do séc. XIV por ocasião da guerra da Liga contra a Flandres. Os Estatutos de 1347 revelam uma organização ternária: o primeiro terço é o dos Wendos e Saxões sob a liderança de Lubeck; o segundo grupo é da Vestefália e Prússia, sob liderança de Colónia; o terceiro é de Gothland e Livland, lideradas por Wisby. Existiam sessões da Dieta da Liga desde meados do séc. XI. As agendas comerciais eram previamente discutidas por dietas regionais, sendo Lubeck o centro executivo. O apogeu da Liga Hanseática é marcado pelo Tratado de Stralsund, de 1370, após guerra com a Dinamarca e que permitiu adquirir o controle de pescarias e alfândegas do estreito da Dinamarca, fortalezas na Scania, e privilégio de confirmação do rei da Dinamarca. O declínio veio com a consolidação dos poderes bálticos. Lituânia e Polónia unem-se em 1386, os países escandinavos com a União de Kalmar em 1397. O declínio da posição internacional foi seguido pela desintegração, porque a Liga não assegurou hinterland agrícola. Na segunda metade do séc. XV as cidades prussianas e saxónicas retiram-se da Liga Hanseática. O desvio do comércio dominante para o Atlântico foi a machadada final. A decadência da Liga apenas poderia ser evitada se organizasse o hinterland rural alemão e incorporasse os Países Baixos, ganhando acesso ao Atlântico, o que, aliás, não teria sido impossível como mostrou a guerra com a Dinamarca.

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§ h As Ligas do Sudeste alemão Na Alemanha do Sul e Ocidental, as Ligas são produto do longo interregno de 1247, surgido para protecção do comércio e defesa contra príncipes. Após a Bula de Ouro que proíbe a jurisdição a não residentes e ilegaliza ligas urbanas, ocorre em 1381 a aliança das Ligas Renana e Suábia que se aliam em 1386 a cidades suíças. Os Príncipes atacam primeiro mas os suíços resistem vitoriosos na vitória de Sempach. Em contrapartida, as Ligas suábias e renana foram derrotadas, sucessivamente, em 1386 e 1388.

§ i. Confederação Suíça A Suíça foi a única sobrevivente das Ligas do Sudoeste, com um processo original de formação nacional. Veneza foi a cidade que organizou um território; em Borgonha, o senhorio feudal organizou as áreas urbanas em reino; na Suíça, as comunas rurais tiveram a iniciativa. Uri e Schwyz e Unterwalden faziam parte do Ducado da Suábia, sendo autonomizadas por Frederico II. Arnulfo de Habsburgo tentou recuperar os cantões. Este núcleo associou-se às cidades de Lucerna, 1322 e Zurique, 1351. O tratado com Zurique permaneceu modelar até 1848, quando a nova constituição incorporou lições americanas. A aliança de 1351 concede mútua protecção, autonomia local e jurisdição limitada, tribunais e dieta. Com a adição de Glarus, Zug e Berna em 1353 reúnem-se os oito cantões mais antigos. O êxito excepcional dos suíços relaciona-se com a aquisição de um hinterland para as cidades. Na solução federal do problema das cidades, o ardor e proezas da infantaria camponesa combinou-se com a astúcia diplomática dos mercadores urbanos.

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§ j Estrutura interna das cidades Apesar da diversidade de escala, é importante referir que os problemas das cidades-estado italianas antecipam os problemas dos estados territoriais futuros. As cidades italianas tinham uma estratificação social complexa com uma escala completa de alta nobreza, alta burguesia, baixa classe média e proletariado. O popolo grasso era composto por mercadores, banqueiros e empresários, industriais, o popolo minuto por artesãos. Para além destes núcleos, também presentes na área germânica. existiam os grandi e os popolani, proletariado industrial. A divisão da classe superior em nobreza e burguesia é a causa principal da luta fratricida nas cidades italianas. Os grupos aristocrático e capitalista estão sempre em fricção e ambos buscam ascendente através da ajuda das classes inferiores. As Ordenanças de Justiça, de 1293, em Florença, assinalam a redução política dos grandi através dos popolani. Apenas os membros da Guilda poderiam participar no governo da cidade e só os profissionais poderiam ser membros. Uma segunda consequência era o enfraquecimento da espírito comunal. Cada indivíduo pertencia a uma associação especial - as Arti dos popolani, as Consorterie dos grandi. A rivalidade entre associações na captura do poder fazia perder valor representativo às magistraturas comunais e tornavam-nas instrumentos dos poderosos do momento. As cidades não tinham instituições integradoras como o rei como representante do reino. O crescimento da signoria acima da luta partidária era destruidor da autonomia. Florença em meados do séc. XV, por exemplo, teve que se submeter a senhores feudais para sustentar as campanhas militares. A terceira consequência era a incapacidade do proletariado em controlar ou ter influência permanente no poder. As comunidades dependiam economicamente das delegações internacionais e dos conhecimentos

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bancários de minorias; a simples resistência passiva destes membros manobrava os operários até à derrota. Os ganhos democráticos dos Ciompi na revolta de 1378, em Florença, foram liquidados logo em 1382. Estas três características mostram a incomensurável importância da monarquia representativa nos reinos nacionais para a evolução do governo constitucional. A comuna - ou cidade-estado sem rei - não tem força de coesão para se tornar unidade política. O crescimento das signorie apenas mostra que o governo absoluto aniquila a iniciativa cívica e tem um efeito paralisante do desenvolvimento económico

§ k Constituição de Veneza No conjunto dos estados italianos, Veneza tem um papel comparável ao de Inglaterra entre os estados nacionais europeus. A situação periférica permite estabilidade; não tem os problemas de sobre-extensão dos grandes estados: o comércio é tão forte que as artes e ofícios não destabilizam a cidade governada pela oligarquia comercial. Por tudo isto, criou uma constituição oligárquica que entusiasma a Europa. Após o desastre de 1172, os Venezianos transformaram a assembleia popular originária num Conselho de 480 cidadãos, eleitos por um ano pelos sestieri para tratar dos negócios públicos. O poder do Doge é limitado por seis conselheiros. Em 1297 o Grande Conselho tem 1500 membros hereditários; a legislação é feita pelo Senado de 120 membros; o conselho dos 40 é o tribunal. O Colégio é o executivo com o Doge e mais 26 membros. O Conselho dos Dez é adoptado em 1310 para órgão supremo desta oligarquia.

4. Cola di Rienzo

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a. Estado da questão A comuna de Roma representa um problema complicado da política no nível sub-imperial. A revolta e ascensão ao poder de Rienzi no dia de Pentecostes de 1347 foi, aparentemente, uma revolta mais de popolani contra os barões. Mas quando Rienzo assume as funções de Signore vêm à superfície novos aspectos específicos, tais como o renacimento das antigas formas constitucionais romanas e o reformismo espiritual visando a Igreja. Convocadas por Rienzo, as cidades italianas enviaram emissários e os soberanos europeus ficaram surpreendidos “ vedendo comme Roma era rinata” na expressão de Maquiavel nas Histórias Florentinas I, 31 em que pela primeira vez associa o termo ‘renascimento’ a um evento político, reconhecendo Rienzo como o precursor da ideia de Príncipe que sacode o jugo de tiranos estrangeiros. O mundo simbólico de Rienzo é medieval mas os seus sentimentos impelem-no para o futuro. Os progressos realizados na compreensão de Rienzo - em particular com a obra de Konrad Burdach, Rienzo und die gestige Wandlung seiner Zeit, Berlin, 1913-1938 - já dissiparam a imagem do tribuno sonhador, romântico, e conservador. Um passo em frente para compreender a sua actuação exige que se afaste o simbolismo renascentista com que a sua figura é interpretada e se reverta às Cartas em que expôs a sua política como base da sua auto-apresentação e auto-interpretação retrospectivas.

b. As cartas às cidades italianas Após a conquista de poder, Rienzo enviou cartas circulares às cidades italianas, convidando-as a equipar soldados para o auxílio na libertação da Itália, a enviar embaixadores para o futuro parlamento romano, e a

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nomear um advogado para o futuro Consistorium de juízes. A primeira destas cartas enviada à comuna de Viterbo em 24 de Maio de 1347, ( cf. Epistolario di Cola di Rienzo, a cura di Annibale Gabrielli in Fonti per la Storia d’Italia, Roma, 1890, n°2) contém as fórmulas iniciais da concepção política. Rienzo apresenta-se como emissário do dom do Espírito Santo que Jesus decidiu estender a todo o povo de Roma, a cabeça do corpus mysticum constituído pelas outras cidades de Itália. Este novo corpo místico não se confunde nem com a Roma pagã nem com a Roma papal. Rienzo intitula-se Nicolau severus et clemens, sugerindo a visão césaro-papista da concentração dos dois poderes de severidade temporal e da clemência espiritual. E sugere a tradição de lex regia, na medida em que a vinda do Espírito criou unidade e concórdia no povo romano, na cidade e na província romana. As missivas seguintes elaboram e ampliam a formulação da primeira carta. Na segunda missiva enviada a Florença surge a expressão “sacra Italia”, que depois se tornará central. A carta de 8 de Julho ao papa Clemente VI fala da república libertada que nasceu do Espírito Santo e que apenas se submete a Deus, à Igreja e ao Papa. A carta de 9 de Julho a Mântua alarga as funções de Roma a cabeça de todas as cidades do “orbis terrarum” e anuncia a promoção do tribuno a cavaleiro do Espírito Santo.

c. O tribunus augustus A coroação de Rienzo é acompanhada de numerosos actos simbólicos. Mencionemos aqui apenas a imersão de Rienzo na pia baptismal de pórfiro no Baptistério de San Giovanni, a mesma em que fora baptizado o imperador Constantino, evocando a purificação e a reforma

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espiritual do imperador como a renovação e reforma da Cristandade imperial. A festa de 1 de Agosto em que Rienzo aceita o título de tribunus augustus enfatiza a renovação do império sobre toda a humanidade. O grau de cavaleiro do Espírito Santo é recebido em louvor da Santíssima Mãe de Cristo, da Igreja romana, e do Pontífice e para a prosperidade de Roma, a sacra Italia, e toda a comunidade de fiéis. Nas convocatórias que nessa data envia aos imperadores, príncipes e eleitores do Santo Império, Rienzo sustenta que o povo romano retomara o seu antigo pleno poder, autoridade e jurisdição sobre o orbis terrarum. A cidade de Roma tornara-se a cabeça do orbe e todas as cidades italianas são declaradas livres e recebem a cidadania romana; a eleição do imperador romano e a jurisdição e monarquia do sacrum imperium pertencem a Roma e ao seu povo. Os imperadores Luís o Bávaro e Carlos IV, os eleitores e outros príncipes são convocados a vir a Roma no próximo Pentecostes a fim de receber a decisão sobre a nova ordem imperial. A carta a Florença de 19 de Setembro revela a intenção de que será eleito imperador aliquem Italicum, um “determinado italiano”.

d. Sentimentos nacionais e imperiais No centro da actuação de Rienzo está decerto a reformatio e renovatio do estado de Roma, ou seja a libertação e unificação da Sacra Italia. Mas os símbolos utilizados não são uniformes nem compatíveis e talvez tenham sido usados com fins tácticos. Em memorando de 1350 ao Arcebispo de Praga, Rienzo escreverá que jamais acreditara que os príncipes alemães viessem a Roma, mas que contava com a vinda dos tiranos de Itália, o que lhe permitiria “enforcá-lo a todos igualmente como lobos num só dia e à luz do sol”. Rienzi confessa que agiu ora como louco ora como digno, ousado e hesitante,

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ingénuo e astuto, conforme a situação exigia, tendo sempre em vista “abolir o erro da divisão e reduzir os povos à unidade”. O jogo com símbolos políticos, presente nos manifestos de Dante, transferiu-se agora para o contexto da acção política. As confissões de Rienzo revelam-no como um técnico político para quem os símbolos são instrumentos de poder, sendo possível que também sejam instrumentos para convencer o Arcebispo e o Imperador das novas intenções políticas de 1350, “mais movido pelo amor da república do que pelo amor do impérid\ É preciso reconhecer que, na área imperial, não é fácil transferir a ideia do corpus mysticum para os corpos nacionais. Na Itália e na Alemanha, a ideia de corpo místico nacional está sobrecarregada com a tradição imperial romana e germânica. As experiências de renovação espiritual nestes países tende a transferir-se para toda a Europa. É certo que a ideia imperial cristã também está presente noutras nações, ressurgindo na ideia francesa da validade universal dos valores civilizacionais franceses e na convicção anglo-saxónica da validade universal das formas políticas da Inglaterra e dos EUA. Mas, no Ocidente, o sentimento imperial e a consciência missionária sobrepõem-se ao sentimento nacional separatista que é contrário à construção imperial tradicional, enquanto na Itália e na Alemanha o sentimento imperial vive em continuidade com a ideia medieval imperial. Cola de Rienzo é um político da área imperial que se sente obrigado a utilizar símbolos imperiais para exprimir sentimentos nacionais.

e. O emissário dos Fraticelli Após o fim da signoria em Roma, Rienzo retira-se em 1348 para um convento dos Fraticelli nos Abruzzi. Reaparecerá depois em 1350 na corte do imperador Carlos IV em Praga, inaugurando a sua segunda e

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derradeira fase política. Se procurarmos sistematizar a variedade de fórmulas conflituosas que ocorrem nas seus documentos deste período, vemos que Rienzo se apresenta como um místico na tradição de Fiora mas que tem o novo programa político pós-medieval de unificação e devolução da Itália ao Império. Em memorando então apresentado, compara-se a Cristo pois ascendera ao tribunato aos 33 anos. Devido a erros cometidos afastou-se voluntariamente do poder e a penitenciar-se durante 33 meses em reparação da blasfémia dos 33 anos. Em 15 de Setembro de 1350, Rienzo regressava à vida política para cumprir, com a ajuda de Cristo, o programa imperial. Tivera entretanto uma revelação que o compelira a abandonar um projecto autónomo, a entregar-se ao imperador de modo a empreender a libertação de Itália como operarius et mercenarius Cesaris. Quando terminasse a sua nova tarefa de unificação de toda a península incluindo Veneza, Sicília, Sardenha e Córsega, entregaria toda a Itália pacificada ao Imperador, totam Italiam obsequentem Cesari et pacificam. A unificação seria feita pelo espírito através do instrumento humano. (Epistolario, carta °32 de Agosto de 1350). Rienzo defende-se de não ser um enviado directo do Espírito, uma incarnação. Referindo a oração Veni Creator Spiritus, assinala que precisamos da evocação do Espírito “sempre que endurecemos e envelhecemos no pecado”. O saeculum senescens de Agostinho tem que ser ultrapassado por uma renovação do Espírito, na senda da filosofia joaquimita. A intervenção pessoal de Rienzo teria sido revelada por um Fra Angelo, eremita dos Abruzzi, (Epistolario, n°30). Segundo esta profecia Deus planear a reforma universal da Igreja. A instâncias de S. Domingos e S. Francisco, o fim da Igreja foi adiado. Os males agravados da residência dos pontífices em Avignon, trariam grandes convulsões. As revoluções viriam com a restauração da

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santidade da Igreja e a inclusão dos Sarracenos na comunidade dos fiéis. Um homem santo seria o instrumento destas revoluções e operaria conjuntamente com o imperador. A substância da profecia de Fra Angelo não difere da visão de Dante de uma nova era sob um dux e um dirigente espiritual. 4. Na segunda carta a Carlos IV (Epistolario, n°31) Rienzo deixa na sombra a profecia como fonte de seu estatuto e projecto e assume de novo o tribunato como a fonte de autoridade para precursor da nova era. O império carecia de um milagre para ser renovado e parece um milagre que um homem pobre e obscuro, virum pauperem et novum, venha salvar o império, tal como S. Francisco salvou a Igreja romana. A reforma do império é acima de tudo obra espiritual, opus spiritualis. A comunidade institucional do orbe cristão quebrou-se com o interregno e deslocação dos papas para Avinhão. Que novo corpo místico tomaria o lugar da cristandade imperial em desintegração? Na zona imperial, a sombra da forte tradição imperial não permite criar estados nacionais como no Ocidente. Uma solução abrangente seria o aparecimento de uma figura paraclética, um dux joaquimita como cabeça de um corpo místico europeu. Rienzo adopta esta ideia mas rejeita o conflito com a Igreja. O Terceiro Reino e o Evangelho Eterno de Fiora não podem ser levados a sério. Através das profecias de Fra Angelo, Rienzo ainda joga com a ideia da grande reforma com que o pastor angelicus completará a reforma e construirá o templo do Espírito Santo. Mas aproxima-se da realidade ao comparar-se a S. Francisco, crendo que a reforma da Igreja deveria ser complementada pela reforma do império. E, finalmente, a sua ideia política concentra-se na reforma nacional e unificação da Itália. De qualquer modo, todos estes sentimentos e ideias não formam uma sequência cronológica nem sistemática. Coexistem e são utilizados por Rienzo conforme as circunstâncias.

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f. Nacionalismo espiritual e unificação militar Os projectos de Rienzo não se concretizaram. O imperador enviou-o para Avignon. Em 1352 regressou a Itália com o cardeal Albornoz e estabeleceu-se de novo em Roma, sob os auspícios do papa. Em 1354 foi morto pelos opositores. O fracasso político obscureceu a importância dos elementos que soubera reunir; joaquimismo, espiritualismo franciscano, a visão de Dante, a ideia do corpo mysticum da sacra Italia. O seu problema político será o mesmo de Maquiavel que desespera da renovação espiritual tal como empreendida pelo fracassado Savonarola, “profeta sem armas” em Florença. Mas se as armas são necessárias à libertação, mesmo um Maquiavel é capaz de ver que o Espírito é essencial, como se depreende das suas observações sobre o renascimento espiritual conseguido por S. Francisco (Discorsi, III, 1) Na área imperial, as nações crescerão através do espírito nacional e, quando o tempo estiver maduro, a acção militar ultrapassará os particularismos políticos.

[ Binder VI ] pp.427-589

[1] Die Berliner Romantik 1800-1814, Berlin 1921 [2] (A Study o f History, vol.III, pp.341 e ss)

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