Epistemologia Das Ciencias Humanas

November 11, 2018 | Author: Fabi Cruz Medina | Category: Max Weber, Émile Durkheim, Science, Sociology, Contradiction
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Domingues, Ivan - Tomo I...

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Ivan Domingues EPISTEMOLOG1A DAS CIÊNCIAS HUMANAS T O M O 1: P O S I T I V IS M O E H E R M E N Ê U T IC A

Durkheim e Weber

Edições Loyola

P repa raçã o : P r o je t o

Maurício B. Leal

g r á f ic o :

So

Wai Tam

Edições Loyola Rua 1822 na 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP ( £ : (11) 6914-1922 (11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@ loyola.com.br Vendas: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma elou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN : 85-15-02960-X © EDIÇÕ ES LO YO LA , São Paulo, Brasil, 2004

Para Telma, Julia e Leticia

A ciência que hesita esquecer seus fundadores está perdida Whitehead

Sumário

A p re se n ta ç ã o ...........................................................................................................

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- Paradigmas e m odelos das ciências hum anas no século XX: das hum anidades às ciências do hom em — As duas grandes b ifu rc aç õ es......................................................................

15

In t r o d u ç ã o g er a l

PR IM EIRA PARTE

FO R M A S DE R A C IO N A LID A D E E E ST R A T É G IA S D ISC U R SIV A S D A S C IÊ N C IA S H U M A N A S N A CO N T EM PO R A N EID A D E

1

O argum ento do conhecim ento do criador e as ciências h u m a n a s.................................................................................

33

2 Paradigm as e m odelos nas ciências h u m a n a s .....................................

49

3 Padrões de cientificidade nas ciências hum an as — Formas de explicação (com preensão) da realidade hum ano-social ............

85

4 Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão): problem as, paradoxos e co n trov érsias....................................................

103

5 As ciências hum anas e a exigência de objetividade: as vias de D urkheim , M arx, Freud e W e b e r.......................................

137

SE G U N D A PARTE

O PO SITIV ISM O E A SO C IO L O G IA : DURKHEIM

1 O positivismo e as ciências h u m a n a s....................................................

167

2 Durkheim e a fundação da sociologia com o ciência em pírica autônom a: o método sociológico, suas aplicações e suas inflexões

187

3 A fundação da sociologia da fam ília: o caso d ’0 s u ic íd io ..............

215

4 A fundação da sociologia da religião: o caso d ’As form as elem entares d a vida r e lig io s a ................................

243

5 As dualidades fundadorasto S u ic íd io e as F orm as elem entares d a vida re lig io sa .......................................................

281

6 O im pacto da obra de D urkheim e seus críticos: a exigência de verificação em pírica dos fenôm enos sociais — Reform ulação, enfraquecim ento e a b a n d o n o .....................................

293

T E R C E IR A PARTE

A H ERM EN ÊU TIC A , A SO C IO L O G IA E A H IST Ó R IA : WEBER

1 A herm enêutica e as ciências h u m a n a s ...............................................

345

2 Weber, as ciências hu m an as e a h istó ria ..............................................

375

3 W eber e a fun dação da sociologia com o ciência com preensiva objetivante: d ’A é tica protestante e o espírito do c ap italism o aos ensaios sobre as seitas e as religiões m u n d iais..............................

439

4 O m étodo das ciências histórico-sociais e a decifração do sentido: a quebra do círculo herm enêutico, a aplicação dos esquem as com preensivos ao real em pírico e a instauração das grandes d u a lid a d e s...............................................................................

507

5 As ciências com preensivas, a herm enêutica e a história: im pacto, obstáculos e lim ite s......... ..................................

595

C O N C L U SÃ O

As ciências h um an as diante do Tem plo de Delfos: do C onhece-te a ti m esm o ao desconhecim ento de si m esm o — As form as objetivadas e o fim da ilusão ob jetiv ista...........................

627

Referências b ib lio g rá fic a s...................................................................................

651

Apresentação

Este primeiro volume de Epistemologia das ciências humanas. Po­ sitivismo e Hermenêutica, de Ivan Domingues, apresenta o resultado parcial das pesquisas que o filósofo mineiro vem há tempos realizando sobre a epistemologia das ciências humanas. Completando os estudos, deve seguir-se um segundo volume dedicado a Marx e Lévi-Strauss. As vias percorridas compõem o que poderíamos chamar de “o círculo matricial” do discurso sobre a sociedade na modernidade tardia. Se di­ vidíssemos o círculo em quatro zonas de coordenadas, teríamos Durkheim ao norte, ocupando o espaço da positividade instauradora da ciên­ cia sociológica, segundo o modelo de uma física social centrada na expli­ cação; ao sul, Max Weber, de quem a leitura do Autor faz ressaltar a via hermenêutica, sobretudo no que diz respeito aos estudos sobre a sociolo­ gia da religião. Na linha horizontal, à esquerda, teríamos Marx, e é claro a dialética, ao qual viriam contrapor-se Lévi-Strauss e o estruturalismo, no último lugar disponível. Situados desse modo os pontos cardeais, res­ tava ainda descobrir a pulsão latente e central da psicanálise freudiana, da qual o Autor não descura, a soprar em todas as direções, como o vento 11

Epistem ologia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

que não se sabe de onde vem nem para onde vai. O esboço traçado permite compreender toscamente o vulto do empreendimento. Com o primeiro ponto, é bom que se diga que não se trata de uma exposição histórica, como é comum entre nós. Mais do que isso, esta­ mos diante de um exame crítico rigoroso, que vai direto à matriz racio­ nal dos textos estudados, melhor dizendo, ao assunto que neles se pre­ serva. Segundo ponto, a perspectiva adotada evita as motivações indi­ viduais de cada autor sem perder-se em abstrações. São todos convoca­ dos a responder a uma pergunta precisa: Com o é possível articular o discurso das ciências humanas na contemporaneidade? Pois, de quem e de onde falamos, senão de nós mesmos, do ponto de vista que sempre nos é presente? Tal perspectiva permite escapar aos infortúnios da diacronia histórica, quer dizer, quem vem antes, quem vem depois? Que modo de vida explica a explicação? Nesse sentido, o livro de Ivan Domingues aproxima o que o tempo se encarregou de dispersar, e exige da razão a clareza dos princípios. Dir-se-ia que Chronos, o tempo medido do calendário, é suplantado por Kairós, o tempo propício à indagação dos caminhos, no qual a história dos eventos parece coagular-se por um instante, ao menos em seu horizonte teórico. As épocas de crise, com efeito, não se transpõem sem prestar contas ao preceito délfico do “co­ nhece-te a ti mesmo”, que ressoa sempre mais forte nas ciências do homem do que nas da natureza. Não é à toa que a abordagem sobre a pretensão científica das ciên­ cias humanas começa, na primeira parte, com Durkheim, do qual o Autor analisa de preferência o estudo sobre o suicídio (baseado, como se sabe, em medidas estatísticas) e o tratado sobre as formas elementa­ res da vida religiosa. A originalidade da análise consiste em resgatar o lado kantiano de Durkheim, bem mais interessante do que o lugarcomum que faz dele quase um discípulo de Comte. Esse enfoque, ao mesmo tempo sutil e corajoso, permite estender as exigências da filo­ sofia crítica ao conhecimento da realidade social. A partir daí levantase o problema que dirige o restante do livro, que vem a ser a busca do paradigma racional cumprido pelas ciências humanas no século XX. A segunda parte, dedicada a Weber, retoma principalmente os es­ tudos sobre a sociologia da religião e procura explicitar os procedimen­ 12

A presentação

tos metodológicos nela presentes. Também aqui cabe ressaltar o cará­ ter renovador da pesquisa, que busca enquadrar a teoria dos “tipos ideais” do sociólogo alemão nas teses da hermenêutica desenvolvidas no últi­ mo quartel do século XX. A leitura que Ivan Domingues faz dos clássicos da sociologia cria perspectivas e impõe desafios. Não será nada mal que levante controvér­ sia e suscite discussão, sempre necessárias, especialmente em épocas de crise. Este primeiro volume faz-nos aguardar com impaciência o segun­ do, dedicado à dialética marxista e ao estruturalismo de Lévi-Strauss. J o s é H e n r iq u e S a n t o s

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Introdução geral

Paradigmas e modelos das ciências humanas no século XX: das humanidades às ciências do homem — As duas grandes bifurcações

Este livro, oriundo de uma tese de habilitação para professor titular apresentada ao Departamento de Filosofia da U FM G em 20021, é um acerto de contas comigo mesmo. Tendo-me ocupado nos últimos 25 anos da epistemologia das ciên­ cias humanas, com vários artigos publicados, uma dissertação de mes­ trado e uma tese de doutorado defendidas, além de um livro consa­ grado ao assunto (O grau zero do conhecimento, publicado pela Edi­ ções Loyola, em sua origem a tese de doutorado), eis-me de novo vol­ tando aos mesmos temas e aos mesmos problemas. Volto, porém, com um novo olhar e a desconfiança de que a filosofia não tem fundo, por viver da eterna recorrência de suas perguntas e da constante insuficiência de suas respostas. ]. O título da tese é Paradigmas e modelos das ciências humanas no século XX: as vias de Érnile Durkheim e M ax Weber. Sua transformação em livro implicou alterações de conteúdo e de forma, por vezes de monta, em razão da inevitável revisão conceptual, ocorrida depois da defesa. Todavia, em sua concepção, composição e natureza, são um só e mesmo trabalho. 15

Epistem ologia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

Tanto isso é verdade que eu — depois de me concentrar por mais de dez anos nas pesquisas que redundaram na tese de doutorado e en­ fim no livro, experimentando após o término dos trabalhos a sensação de plenitude e a impressão de ter esgotado o assunto —, de repente, passado um certo tempo, experienciei invadir-me a impressão de vazio, junto com a idéia de deficiência irretorquível nos resultados apresenta­ dos. A razão dessa impressão e dessa idéia prende-se ao fato de a tese, bem como o livro, ao pensar a questão da fundamentação das ciências humanas, ter se detido no século XIX e, portanto, na pré-história das ciências humanas. Contudo, era preciso chegar ao século XX e pergun­ tar pelo fundamento no interior dos paradigmas vigentes na atualida­ de. Foi então, não podendo simplesmente ignorar a constatação e vol­ tar minha atenção para outros assuntos, que decidi partir do zero e, com os olhos na contemporaneidade, propor ao CN Pq um projeto de pesquisa inteiramente dedicado ao tema. Precedido de um estágio de pós-doutorado na França, em 1997-1998, que abriu o caminho, além de um conjunto de cursos oferecidos na pós-gradução, nos quais diversos tópicos ligados ao tema foram tratados, o projeto em apreço tem por âmbito o que chamei — ao submetê-lo ao C N Pq — de Para­ digmas e modelos das ciências humanas na contemporaneidade e por objeto quatro vias ou caminhos por elas seguidos no curso do século XX, a saber: 1) Durkheim, o positivismo e a sociologia; 2) Weber, a hermenêutica e as ciências histórico-sociais; 3) Lévi-Strauss, o estruturalismo e a antropologia, 4) Marx, a dialética e a economia. O ponto em que a pesquisa se encontra hoje, passados mais de cinco anos, é a conclusão parcial dos trabalhos iniciados, permitindo vir a lume — antes como tese, agora como livro (primeiro tomo) — duas de suas quatro principais colunas: 1) Durkheim, o positivismo e a sociologia, 2) Weber, a hermenêutica e as ciências histórico-sociais. Quanto às duas outras colunas, serão concluídas na seqüência, ao tér­ mino da pesquisa, e fora do contexto da tese, quando seus resultados virão a público como segundo tomo do livro. Tendo feito para os quatro autores a mesma pergunta (como cada um pensa a questão da fundação das ciências humanas), e encontrado mais de uma resposta (embora não tenha concluído os trabalhos sobre 16

Introdução geral

Marx e Lévi-Strauss, os resultados parciais das pesquisas indicam que as vias seguidas por eles discrepam entre si, bem como relativamente a Weber e a Durkheim), procurei ainda assim fixar os parâmetros epistemológicos gerais que permitissem dar conta tanto da unidade de pro­ pósitos quanto da diversidade dos métodos empregados. Tal preocupação deu ensejo à primeira parte do livro, intitulada “Formas de racionalidade e estratégias discursivas das ciências humanas na contemporaneidade”. A idéia de tratar a ratio das ciências huma­ nas no plural, a exemplo da via ou da estratégia adotada, igualmente múltipla e variada, se prende à ênfase concedida aos diferentes usos da razão, em vez de fixá-la numa essência ou congelá-la numa razão subs­ tancial, vista como única e universal. Esta, porém, uma vez fixada, logo se deparará com a dificuldade de sua pluralidade de empregos e de di­ versidade de vias ou de caminhos, de sorte que a razão científica moder­ na, do mesmo modo que o logos grego e a ratio medieval, é mais uma questão de criação ou de invenção, e como tal obra da liberdade, do que de uma emanação ou de algo co-natural aos homens e às coisas (essência ou substância, luz natural ou divina), e, como tal, fruto da necessidade. Essa idéia já tinha sido explorada ao longo da tese de doutorado e do livro correspondente (O grau zero do conhecimento); entretanto, agora ela viu-se enriquecida pela introdução de um novo elemento. Esse ele­ mento, o primeiro, é a tipologia das formas de racionalidade, distingui­ da segundo as diferentes modalidades ou estratégias de tratar a diferen­ ça e a diversidade do social, redundando 1) em Durkheim, num pen­ samento de tipo dicotômico, 2) em Weber, num pensamento que com­ bina, como um emaranhado, as dicotomias ou dualidades com esque­ mas triádicos e tipologias ramificadas, partidas e difusas, 3) em LéviStrauss, num binarismo de estrita observância que combina a análise diferencial da matemática com a taxinomia dos símbolos,.4) em Marx, nos esquemas triádicos da dialética que tanto podem levar à reconcilia­ ção das contradições, quanto à explosão dos pólos contraditórios, além da vertigem da história (as revoluções) e da suspensão do devir2. 2. Ao tratar do problema da diferença e seus correlatos (contradições, oposições, díades, tríades etc.) nas obras de Marx, Lévi-Strauss, Weber e Durkheim, estou ciente de

E pistem ologia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

O segundo elemento, também ausente da tese de doutorado e do livro que se lhe vincula, e desta feita incorporado para dar sustentação seja às tipologias das formas de racionalidade, seja às estratégias dis­ que o lugar de sua solução ou de seu equacionamento não é exatamente a lógica ou a epistemologia, mas a metafísica ou a ontologia, em cuja origem vamos encontrar o velho problema do uno e do múltiplo. A exemplo dos filósofos, a via percorrida pelo cientista varia, dependendo a escolha de seu temperamento, de seu gosto ou de sua inclinação: haverá aqueles que ficarão mais à vontade com o uno (como Lévi-Strauss), bem como aqueles que preferirão o múltiplo (como Weber, seguindo Em pédocles, que dizia que o real é uma “mistura”). Qualquer que seja a via, a solução do problema guardará alguma similitude e encerrará dificuldades parecidas ou equivalentes, ainda que inversas. O pro­ blema do monista é mostrar que o uno é múltiplo ou que um é dois e gera a díade. O problema do pluralista é mostrar que o múltiplo é uno, enquanto o do dualista é que dois são um só ou levam ao uno. Por fim, associado ao problema do uno e do múltiplo, aparecerá um outro igualmente importante para o tratamento das diferenças, oposições e contradições, a saber: a questão do contínuo e do discreto, podendo levar seja à intro­ dução de elos intermediários entre as díades e as oposições, se prevalece o contínuo, seja às disjunções e cisões dos pólos opostos, se prevalece o discreto ou o descontínuo. E , pois, no plano ontológico, mediante a articulação da dupla dialética do uno e do múltiplo e do contínuo e do discreto, que tratarei nas páginas que seguem, ao ocuparme dos quatro autores, do problem a tanto das diferenças sociais com o das identidades coletivas, quando mostrarei que no social a identidade não tem nada de tautológica. Uma boa idéia das dificuldades que nos esperam nos dá Robert M usil ao falar n’0 homem sem qualidades da identidade nacional da Kakânia e dos kakanianos. Especifi­ camente, refere-se à região e aos povos da Aústria, em sua origem germânicos e dividi­ dos no início do século X X em sua dupla pertença, sem poder decidir, ao império austríaco e ao reino húngaro, que os acasos da política reuniram num só, chamando-o Império Austro-Húngaro. M usil se diverte, como bom nominalista, ao dizer que o nome do duplo império em realidade não designava nada, nem do lado dos húngaros, com­ postos de povos germânicos, ciganos e eslavos (acrescentaria eu), nem do lado dos aus­ tríacos, que se viam com o “poloneses, tchecos, italianos, friulanos, réticos, eslovenos, croatas, sérvios, eslovacos, rutenos ou valacos”. Quer dizer: tanto o Império AustroHúngaro, que abrigava os húngaros, como o Conselho do Reino, onde os austríacos e, por extensão, os kakanianos estavam representados, não passavam de um nome feito de nomes, designando reinos que não existem mais, como os reinos shakespearianos da Lodoméria e da Ilíria. A situação dos kakanianos nesse quadro é comparada por Musil ao “porquinho-da-índia, que não sabe se é porco ou roedor, portanto um ser que não tem nenhum conceito sobre si m esm o”; da mesma forma os kakanianos que, sem ne­ nhuma identidade certa, num continuum de primos-irmãos e de parentes além frontei­ ras, desconfiavam uns dos outros e com um horror pânico “impediam uns aos outros de serem qualquer coisa”. Sobre a questão dos kakanianos, ver M U SIL , R. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, 321-323. 18

Introdução geral

cursivas, tendo por eixo a questão fundacional, é o argumento do co­ nhecimento do criador ou do criador do conhecimento. Esse argumento, formulado por V icõ e presente tacitamente em Hobbes, dará ensejo, junto com a instalação do sujeito construtor ou do sujeito epistemoló^ico, à instauração de diversas epistemologias, como o realismo episteinológico em Marx e Durkheim, modalizado segundo sua fusão com o positivismo e a dialética, bem como o construtivismo epistemológico em Weber e Lévi-Strauss, modalizado conforme sua fusão com a herme­ nêutica e o estruturalismo. O terceiro elemento, introduzido igualmente para tipificar as estra­ tégias discursivas e as formas de racionalidade, são os paradigmas e os modelos, tomando aqueles como elemento da teoria, e entendendo estes como aspecto do método, em Durkheim levando ao paradigma da biologia e aos modelos da solidariedade orgânica e mecânica, em Weber ao paradigma da ação e ao modelo do tipo ideal. O quarto elemento é a introdução das categorias de descrição, de explicação e de interpretação (compreensão), com cuja ajuda espera-se precisar importantes aspectos epistemológicos dos diferentes métodos e das diversas estratégias adotados por uns e por outros, permitindo-me avançar a hipótese que deverá conduzir sua avaliação global na conclu­ são de nossos estudos, no segundo tomo do livro. A hipótese é a idéia segundo a qual o chamado esvaziamento dos paradigmas clássicos nas ciências humanas passa fortemente por esse tripé metodológico, e par­ ticularmente pela dificuldade de lidar com a base descritiva, nem sem­ pre ajustada às coerções do discurso e da teorial O quinto e último elemento incorporado, também para caracteri­ zar as formas de racionalidade e as estratégias discursivas, é o exame das ciências humanas e a exigência de objetividade: as vias de Durkheim, Weber, Freud e Marx. Tendo-me, antes, ocupado de Lévi-Strauss, a inclusão de Freud se justifica por sua própria envergadura e condição de um dos heróis-fundadores das ciências humanas, bem como por minha intenção de mostrar que a categoria de estrutura não é cativa 3. E o que procurarei mostrar ao trabalhar as obras de Durkheim, Weber, Marx e Lévi-Strauss. 19

1 Epistem oJogia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

dos estruturalistas, podendo ser localizada tanto no economista alemão quanto no médico vienense. A segunda e a terceira partes do livro, conquanto dependa sua ela­ boração dos resultados da primeira, têm uma estrutura diferente. Seu intuito é afunilar em profundidade os resultados obtidos, aplicando-os às obras de Dürkheim e Weber. E seu eixo é a questão fundacional, centrada no argumento do criador e tendo como pontos de apoio o par paradigma/modelo e o tripé descrição/explicação/interpretação (com­ preensão) da realidade humano-social. Em Durkheim, segunda parte do livro, está em jogo demonstrar que seu construtivismo social deverá acomodar-se de algum modo a seu realismo epistemológico. Essa discrepância (Durkheim admite o construtivismo social, não o construtivismo epistemológico) me leva a trabalhar uma segunda, a saber: a idéia de que por trás do positivista esconde-se o kantiano, que no caso do sociólogo francês nos remete à visão da sociedade como potência das normas, de tal forma que a cons­ ciência coletiva da sociedade e suas coerções ficam no lugar da razão universal e do imperativo categórico do solitário de Königsberg. Outros pontos enfatizados são: 1) o projeto fundacional durkheimiano de ins­ taurar a sociologia como ciência empírica autônoma, que me levou a precisar o método sociológico, sua base indutiva, suas aplicações e suas inflexões, 2) a questão das dualidades fundadoras, à luz das obras O suicídio e As formas elementares da vida religiosa. Por último, examinase o princípio de verificação empírica, avaliado a partir de sua aplica­ ção a essas duas obras, evidenciando sua reformulação, seu enfraqueci­ mento e mesmo seu abandono, ao se confrontar com as injunções (teó­ ricas) do discurso e as perturbações da empiria. Em Weber, terceira parte do livro, está em jogo demonstrar que seu construtivismo social se ajusta a seu construtivismo epistemológico (tanto o conhecimento como a sociedade são construções), levando-o a pensar a construção social nos quadros de uma espécie de prometeísmo e de uma verdadeira demiurgia (o agente social é o artífice da socieda­ de, da cultura e da história); entretanto, sem que, junto com o sujeito construtor (social), seja instalado em sua autonomia o sujeito episte­ mológico no limiar do conhecimento. Essa discrepância conduz a uma 20

f Introdução geral

segunda: a idéia de que por trás do kantiano está o positivista, patentea­ da pela adesão mais ou menos tácita ao ideal de ciência de Mill, que era também o ideal de Ranke e ainda de Comte, a quem Weber julga­ va um pedante, e que o leva a romper com as cisões epistemológicas dos neokantianos da escola de Baden, que dicotomizam as ciências naturais e as ciências humanas — coisa que Weber nega terminantemen­ te. Adesão e recusa que o conduzem a adotar o ideário unitário da Escola de Marburgo, assim como o modelo positivista da ciência unifi­ cada, o princípio da causalidade e a exigência de verificação empírica. Outros pontos abordados nessa parte do livro são: 1) a relação entre a hermenêutica, as ciências humanas e a história, cuja análise permitiu evidenciar que em Weber a história comparece não como objeto, mas como meio de conhecimento, devendo a este título fertilizar a sociolo­ gia, a economia e o direito; 2) o projeto weberiano de fundação da sociologia como ciência compreensiva objetivante, para cujo exame procurei restringir-me à sociologia da religião (Ética e ensaios), seja pa­ ra não perder o foco (ao ampliar demasiadamente o ângulo da análise), seja por considerar a Ética sua obra mais bem-sucedida, ou em que o método de fundação se revelou mais fértil. Acrescente-se ainda, ao me voltar para o núcleo duro de. sua epistemologia, o exame do método das ciências histórico-sociais e a questão da decifração do sentido, ten­ do por escopo a aplicação dos esquemas explicativo-compreensivos (im­ putação causal, tipos ideais) ao real empírico, a quebra do círculo her­ menêutico e a instauração das grandes dualidades. Por último, avaliase, à luz de Weber, a relação entre as ciências compreensivas, a herme­ nêutica e a história: impacto, obstáculos e limites. Ao abordar esses pontos, volta-se novamente à questão do sentido, introduz-se sua perspectivação temporal e espacial, e examina-se sua metamorfose, seu es­ vaziamento e sua cisão ou seu esfacelamento, à luz de exemplos histó­ ricos (o caso de São Luís, rei de França, analisado por Le Goff), bem como sociológicos (pois o sentido se reparte segundo grupos e classes sociais, como mostra Weber). Na conclusão, sistematizando os resultados, procuro avaliar o per­ curso histórico do conhecimento do homem à luz do preceito délfico do conhece-te a ti mesmo, colocando em evidência duas coisas: a via 21

Epistem ologia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

das filosofias do sujeito ou da consciência que tratam do conhecimento de si pivoteado pelo sujeito; a via das ciências empíricas do homem, distinguidas em ciências naturais e ciências humanas, que tratam do conhecimento de si pivoteado pelo objeto. Tendo constatado o fracas­ so das duas alternativas, procurei então apontar a solução. A tese sustentada ao longo do trabalho me veio à mente ao ler uma pequena e instigante passagem de Lévi-Strauss, segundo a qual o gran­ de desafio das ciências humanas é pensar a diferença. Retendo essa idéia, procurei então mostrar que — contrariamente à identidade, a qual é uma tautologia e não encerra nenhum pensamento, a despeito de ser a condição do pensar — a diferença tanto pode levar ao pensa­ mento, que deverá pôr-se em marcha para operá-la e expressá-la, como poderá bloqueá-lo pura e simplesmente, ao se explodir em contradi­ ções e enredar-se em aporias. Ao aplicar tal idéia ao domínio do social, sem negar de todo a via usual de distinguir nas contradições níveis e aspectos e nas diferenças o dissímil e o mesmo, como na queda dos graves e no movimento das marés em física, que são a um tempo algo distinto e idêntico, regulado pela mesma força de atração, fui então levado a estabelecer duas postulações: 1) a postulação de que a diferen­ ça é primitiva e a contradição derivada, não sendo outra coisa que seu desenvolvimento e seu aspecto, e podendo dar lugar seja à explosão e ao conflito das polaridades, seja à combinação e à complementaridade dos pólos opostos; 2) a postulação de que os princípios da identidade e da diferença são correlativos, não sendo as ações sociais reguladas — nem massiva nem exclusivamente — pelo princípio da identidade, po­ dendo dar abrigo a toda sorte de oposições e conflitos, e sendo a própria crise que as polaridades provocam o fator regulador ou de resolução delas. Com base nessas postulações, tratei de evidenciar que as formas de tratamento da diferença, da oposição e da contradição no terreno do social são muitas, dando ensejo às mais variadas formas de racionalida­ de e de estratégias discursivas. E o que ocorre, conforme será mostrado adiante, com o positivismo, a exemplo de Durkheim, que, a par da identidade, retém a diferença, afasta a contradição e cliva o pensamen­ to em dicotomias e dualidades, bem como com a hermenêutica, que em Weber, além da retenção das dualidades e das formas de transição, 22

Introdução geral

dá lugar à intensificação das polaridades, sem nenhuma possibilidade de combinação ou síntese e conduzindo ao pensamento trágico. E o que ocorre, como mostrarei no segundo tomo, com a dialética, que em Marx, além da inter-relação das polaridades, leva ao acirramento das contradições e sua absorção em sínteses reconciliadoras, em contraste com o estruturalismo, que em Lévi-Strauss, além do mapeamento das identidades, conduz à incorporação das diferenças e oposições, à ex­ clusão das contradições e à associação das identidades, das diferenças e das oposições em estruturas. Além da tese principal, procurei desenvolver uma segunda, fundada na hipótese auxiliar segundo a qual todas essas vias, em seu esforço por instaurar um conhecimento objetivo da realidade histórico-social, fo­ ram conduzidas a instalar os fenômenos sociais como um conjunto de formas objetivadas, tais como as instituições sociais, as mercadorias, o dinheiro, o capital, os mitos, as relações de parentesco, as ações sociais, o ethos econômico, e assim por diante. A contraparte desse privilégio foi a condenação das vias introspeccionistas, como a intuição e a entropatia, rejeitadas por Weber, bem como de toda consideração de aspectos ou fatores subjetivos, como os sentimentos, as volições, as idealizações e os valores, tidos como indignos da ciência ou estranhos ao seu esquadro. E nesse contexto, com o intuito seja de instalar, seja de operar as formas objetivadas do real, que entra todo o aparelho conceptual da teoria, as­ sim como o corpus dos modelos, das descrições, das explicações e das interpretações, além da exigência de comparação, de demonstração e de verificação empírica, a funcionar como meios ou instrumentos de objetivação, porém considerados eles mesmos como formas objetivadas do pensamento. O resultado dessas démarches, ao ressaltar as formas objetivadas da realidade histórico-social, pivoteadas pelos objetos, foi o esquecimento dos princípios e meios de objetivação, resultantes do tra­ balho do pensamento e dependentes do sujeito — donde o paradoxo do conhecimento-construção sem sujeito construtor ou sujeito epistemológico (como em Durkheim, no qual o realismo epistemológico, embora dissociado do construtivismo, está vinculado ao argumento do conheci­ mento do criador — a sociedade, no caso, que, segundo o sociólogo, gera as categorias com cuja ajuda ela própria é conhecida).

Epistem ologia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

Tendo por escopo esse conjunto de problemas que remonta seja à visão de ciência, seja ao exame do método e dos resultados de sua apli­ cação ao real empírico, em que os aspectos históricos do percurso da ciência moderna e os expedientes de comentários de texto dos autores escolhidos, conquanto necessários, não ocupam o primeiro plano, a tese que deu origem ao livro é pois, em sua índole, uma tese de idéia ou de doutrina, afastando-se tanto do gênero historiográfico (história das idéias) como do gênero hermenêutico ou exegético (comentário de texto). E mais: a despeito da forte interlocução com a ciência, a tese e o livro são antes de tudo uma obra de filosofia, tendo por núcleo duro a teoria do conhecimento e por campo de aplicação a epistemologia (epistemologia das ciências humanas), vista como extensão da teoria do conhecimento ou epistemologia aplicada. Nasceu da interseção da filosofia com a ciência, numa época em que a filosofia em sua relação com a arte, a religião, a educação, a téc­ nica e a própria ciência perdeu certamente toda função tutelar, mas não o direito ou a prerrogativa de examinar com seus próprios meios e em vista de seus próprios fins as manifestações da cultura, os desafios da realidade material e os grandes enigmas do universo, e caberá ao epistemólogo, em interação com o cientista, a tarefa de elucidar o que foi feito. Todavia, as perguntas e as respostas, no tocante ao conhecimento, assim como relativamente à arte, à técnica e a outros campos, são per­ guntas e respostas filosóficas. Tal é, portanto, o lugar de onde se fala: a filosofia. Ao ocupar esse lugar, ficará o epistemólogo, ao examinar o que foi feito pelos cientistas, com o ofício ingrato de chancelar ou não o factum (discursos, procedimentos, resultados — pois a ciência é mais do que o discurso) que se apresenta diante dele, não tendo como meio senão o instrumento do pensamento, e como bússola ou guia a história da ciência, tanto para elucidar de onde veio o que se oferece a seus olhos na atualidade do presente como para perspectivar para onde irá, se logo não cair no esquecimento, ao se expor às forças corrosivas do tempo. Foi nesse contexto, para armar a tese, agora o livro, e abrir o cami­ nho das investigações epistemológicas, que formulei o argumento do criador do conhecimento ou do conhecimento do criador, que deve ser visto como o núcleo duro da teoria do conhecimento e ponto de pas­ 24

Introdução geral

sagem para a epistemologia especial ou aplicada, ao se enlaçar com as ciências particulares. Graças ao argumento, é fornecida não certamen­ te uma teoria geral do conhecimento, mas uma teoria particular talha­ da para um segmento das ciências e circunscrita a uma porção do tem­ po, ou seja, a epistemologia construtivista moderna, com suas variantes instrumentalista, operacionalista, pragmatista e realista. E mais: uma teoria epistemológica formulada não só em concorrência com outras, mas como alternativa às epistemologias especulares (conhecimento = reflexo ou cópia do real), tão bem caracterizadas por Rorty, bem como às epistemologias materialista, racionalista, empirista e idealista — to­ das igualmente modernas e gestadas com os mesmos objetivos. Por fim, as investigações epistemológicas levadas a cabo ao longo da tese e do livro, e conduzidas com toda a atenção aos aspectos norma­ tivos, conceptuais e históricos que recobrem a práxis das ciências em seu esforço por vencer a opacidade do real empírico, têm elas mesmas um atestado de nascimento e um local de origem. Seu atestado e sua origem são a chamada escola francesa. Os dois grandes expoentes — como se sabe — são Bachelard e Canguilhem, que concentraram suas investigações no terreno das ciências naturais. Menos ortodoxo, seu mais ilustre representante no campo das ciências humanas é Foucault — de cuja obra, encantado e num surdo embate, me aproximei na tese de doutorado, e de quem hoje, passados quinze anos, estou mais distanci­ ado, procurando outros caminhos —, ainda que n’As palavras e as coi­ sas, seu livro mais importante nesse domínio do conhecimento, ele as impugne e não faça exatamente epistemologia, mas arqueologia. Que me seja permitido, antes de concluir esta introdução, tecer algumas considerações a mais sobre as relações entre a epistemologia, a história das ciências e a sociologia do conhecimento. Tendo reserva­ do à epistemologia, fiel à sua índole justificacionista, os aspectos teóri­ cos e normativos do conhecimento, a história e a sociologia ficariam então com os aspectos factuais ou empíricos, de modo que — eis a idéia que tacitamente procurei testar em alguns tópicos do presente trabalho —, em vez de se excluírem e concorrerem entre si, as três abordagens terminariam por cooperar e fecundar umas às outras. G os­ taria pois, na seqüência, de precisar um pouco mais esse ponto, tendo 25

Epistem ologia das ciências hum anas —Tom o 1: positivism o e herm enêutica

em vista esclarecer — como eu disse — certas pressuposições mais ou menos implícitas assumidas ao longo do livro. Começarei pela idéia de historicidade da ciência, presente no con­ traste das visões weberiana e durkheimiana de ciência, contraste que em verdade remonta, quanto às suas bases históricas e suas fundações conceituais, ao início dos tempos modernos, fato que um historiador versado na matéria poderia facilmente testemunhar, ao apontar as gran­ des bifurcações que estão na origem da constituição das ciências hu­ manas nos novos tempos. Por fim, numa abordagem típica da sociolo­ gia da ciência, tratarei da estratégia de conquista de espaço institucio­ nal empreendida por Durkheim e seu grupo, que cedo procuraram dominar as instituições francesas de ensino, do liceu às universidades, em contraposição à ausência dessa estratégia em Weber. Ausência em parte devida à doença, em parte à sua índole de intelectual solitário, cuja presença institucional junto com o lastro de sua obra ficou a de­ pender dos azares da difusão das idéias e dos saraus em suas casas de Heidelberg e de outras cidades alemãs. E óbvio que, conquanto não os aborde em primeira mão, nem tenha a competência para fazê-lo, o epistemólogo não poderá deixar de levar em consideração esses aspec­ tos, buscando nos trabalhos de terceiros, sociólogos e historiadores, aquilo que ele e seus pares não possuem e não podem fornecer. Se não, será forçado a atribuir às virtudes intrínsecas das idéias, ao examinar seu lastro e sua exemplaridade, algo que tem a ver com as contingências da história e a ação concertada de grupos qualificados, como a intelligentsia ou o estamento dos intelectuais. E mesmo algo ligado à ação de gran­ des fundações privadas, como a Ford e a Rockfeller, cujo impacto para a instauração do paradigma funcionalista na França, como no caso da Rockfeller, ao financiar a École Normale, deve ser estimado mais forte do que o legado de Durkheim. Dito isso, passarei a considerar o primeiro ponto: a historicidade da ciência, e mais precisamente a historicidade das ciências humanas. Tendo circunscrito as investigações ao século XX e simplesmente abs­ traído a história, para melhor delimitar o espaço abstrato da teoria em que as análises epistemológicas vão incidir, o epistemólogo não poderá ignorar o peso da variável histórica na constituição e delimitação desse 26

f Introdução geral

espaço. Admitido isso, poderá então mostrar que os contrastes das vi­ sões de ciência de Weber e Durkheim sofreram certamente seu efeito, do mesmo modo que se converterão depois em forças históricas que vão conformar o que se passará posteriormente no domínio das ciên­ cias humanas. Essas afirmações, com efeito, não passam de um truísmo, não sendo todavia um truísmo, para uma história das ciências sociais ainda por ser feita, a tarefa de mostrar os fios históricos invisíveis que ligam o percurso das ciências humanas, da renascença à modernidade, a Weber e a Durkheim. Não me podendo alongar sobre esse assunto, vou limitar-me na seqüência a apontar alguns traços e episódios dessa história tão rica e apaixonante quanto desconhecida e mal estudada, com o intuito de evidenciar as metamorfoses das visões de ciência no campo das chama­ das humanidades, bem como as grandes bifurcações que marcaram o estudo deste objeto que muitos ainda acreditam “intratável” em ciên­ cia — o homem. Se se toma como divisor de águas a renascença, pe­ ríodo em que se considerava ciência tudo aquilo que podia ser ensina­ do, à diferença de nossa época, para a qual é ciência aquilo que pode ser aprendido nos laboratórios, bibliotecas e trabalhos de campo, independemente do ensino, tem-se que os estudos dos assuntos e negócios humanos eram feitos nos quadros do que foi chamado naquela época de Studia Humanitatis. Integravam o ciclo desses estudos, como mos­ tram os especialistas, ao assinalarem as profundas mudanças introduzi­ das no sistema medieval do trivium e do quadrívium, a gramática, a retórica, a história, a poética e a filosofia moral, tendo por disciplina paradigmática, ao lhes fornecer o método, a filologia, e por objetivo a formação do novo homem — letrado, ético e universal —, talhado à imagem dos tempos novos. Paralelamente a tais estudos, conduzidos por intelectuais humanistas e eruditos, havia o direito, conduzido em bases parecidas, porém mais “técnicas”, assim como a medicina e a história natural, que se ocupavam de um segundo aspecto do homem, aspecto que os estudos dos humanistas deixavam de lado ao se entrega­ rem às letras, às artes e à educação moral do bom cidadão, a saber: o corpo. Vencidas as barreiras morais e religiosas, sua estrutura e seus órgãos foram estudados em profundidade, depois de dissecado, por 27

Epistem ologia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

médicos como Vesalius, conforme bem nos mostra seu De humani corporis fabrica libri septem, publicado em 1543, onde refuta as teorias fisiológicas de Galeno, fornece uma descrição precisa e extensa do corpo humano e estabelece os fundamentos da anatomia moderna. Esses estudos paralelos e independentes, que reclamavam da anti­ guidade de Hipócrates, além da de Galeno, ganharam impulso notável no início dos tempos modernos, com a descoberta dos mecanismos da circulação do sangue por Harvey, que publicou em 1628 De motu cordis, e em decorrência da difusão do Tratado do homem, de Descartes, escrito em 1632 e editado em 1644, dando ensejo à constituição de uma nova disciplina científica: a fisiologia moderna. Foi nessa época, cuja data no entanto é incerta, por não depender de um único episódio, mas de vários, e espaçados no tempo, que se consumou a primeira gran­ de bifurcação do estudo ou, antes, da ciência do homem, constituída de dois ramos. O primeiro, englobando o corpo e os elementos materiais, entregue à medicina, à história natural, à arqueologia, à anatomia, à fisiologia e a inúmeras outras disciplinas, reunido depois (o conjunto) na biologia como uma das seções da ciência da vida. O segundo, que engloba a mente ou o espírito, abrigando os diferentes elementos da ação, da vontade e de outras faculdades da alma, objetivadas na cultura e na história — ramo que deu ensejo à constituição daquilo que S. Mill, fiel ao projeto do newtonianismo moral do século XVIII, chamará de “ciências morais”, e que será retomado no curso do século XIX, em solo alemão, por Droysen, ao se referir ao mundo da história como mundo moral e à ciência da história como ciência moral, por se ocupar da ação, da vontade e da liberdade dos homens ao longo do tempo4. Assinale-se que é justamente a expressão cunhada por Mill em sua Lógica dedutiva e indutiva (Moral Science) que está na origem do ter­ mo alemão Geisteswissenschaften, vertido em português por “ciências do espírito”, cuja fortuna imensa, ao ser retomado por Dilthey, dispen­ sa-me maiores comentários. Seu grande concorrente vai ser o francês Sciences humaines, a que hoje se está mais habituado, tendo prevaleci­ 4.

L a k s , A., N e s c h k e , A. L a naissance du paradigme herméneutique. L ille , PU L,

1990, 377-378.

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Introdução geral

do em quase todos os países. A esses dois vocábulos devem ser acrescen­ tados outros equivalentes em várias línguas cultas, com esta ou aquela restrição ou ênfase de detalhe, como “ciências sociais”, “ciências histó­ ricas” ou “ciências culturais”. Foi então, achado o nome, sem que im­ porte se o fato ocorreu antes, consecutiva ou paralelamente, pois se trata de uma tópica, que se consumou a segunda grande bifurcação no estudo do homem e das coisas humanas, aprofundando a dicotomia entre as ciências e as letras, celebrada por Charles Perrault em sua querela dos antigos e dos modernos, porém desta feita no interior dos antigos Studia Humanitatis, a saber: a bifurcação entre ciências huma­ nas (ou ciências morais) e humanidades (ou erudição). Ficando as pri­ meiras com a história, a filologia, a economia, o direito, a sociologia, a antropologia etc., as segundas vão reter o que sobrou, como a retórica, a crítica literária e a própria filosofia, que passaram a dividir com as artes (como a arquitetura, a música, o teatro e outros domínios) aqui­ lo que não cabia no esquadro das ciências. Essa situação permanecerá até que um dia elas próprias, as letras e as artes, como tinha ocorrido na época de Leonardo ao aproximar a pintura da geometria e da anato­ mia, passassem a despertar na segunda metade do século XX a cobiça da ciência e a receber seus lustros e prestígios. Ora, as obras de Weber e de Durkheim são fruto exatamente dessa segunda grande bifurcação, podendo ser consideradas herdeiras tanto do Projeto Iluminista dos modernos como dos Studia Humanitatis dos renascentistas, de que conservam as exigências morais (reforma da humanidade, em Durkheim; a ciência, a ilustração e a liberdade como “bens” da civilização, em Max Weber — a outra escolha, segundo ele, é o sacrifício do intelecto, como na religião). E mais: exigências que se conservaram até o dia em que a recepção e seus herdeiros fizeram de Durkheim um positivista e mesmo um funcionalista, do mesmo modo que transformaram Weber, sob os auspícios de C. Schmitt e Parsons, num decisionista e num estrutural-funcionalista. E um pouco o percurso desses dois heróis-fundadores das ciências humanas, a um tempo restituídos, transformados e desnaturados pela história, que será relatado em seguida. A esses dois heróis deverão ser acrescidos depois, sem que sejam os únicos nem os últimos, dois ou­ 29

Epistem ologia das ciências hum anas - Tom o 1: positivism o e herm enêutica

tros: Marx e Lévi-Strauss. Uma condição todavia deverá ser cumprida para que a investigação epistemológica se instale: nada menos do que se livrar da aura do herói e do calor dos acontecimentos históricos para ficar com o núcleo duro da teoria e a análise fria do conceito. Só então o epistemólogo poderá averiguar se está mesmo diante de quatro para­ digmas, e assim desmentirá Thomas Kuhn. Ou se está, em vista de seu esgotamento, ante quatro curiosidades históricas, e assim, sem poder negar sua persistência, dará razão a Whitehead, ao lamentar aquelas ciências que não puderam esquecer-se ainda de seus fundadores. #£# Ao terminar esta Introdução, algumas palavras de agradecimento a todos aqueles que de alguma forma contribuíram para que o livro pu­ desse vir a lume: ao CN Pq, pelo apoio institucional-financeiro, ao con­ ceder-me a bolsa de produtividade em pesquisa; aos meus alunos de pós-graduação, com os quais tive a oportunidade de discutir seus primei­ ros esboços em meus cursos e seminários; aos professores que fizeram parte da banca examinadora (José Henrique Santos, Carlos Roberto Cime Lima, Nelson Gonçalves Gomes, Danilo Marcondes de Souza Filho e Marcelo Fernandes Aquino), pela acolhida dispensada e pelas sugestões apresentadas quando da realização do concurso de titular; aos colegas Paulo Henrique Ozório Coelho, Newton Bignotto, Edgar Marques, Carlos Antônio Leite Brandão e Paulo Margutti, pela leitura e pelo comentário de diferentes partes do material; ao professor Robson Jorge de Araújo e a Alexandre de Assis, pela ajuda na elaboração de diagra­ mas; ao professor Hennio Morgan Birchal, pela revisão do vernáculo.

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PRIMEIRA PARTE

FORMAS DE RACIONALIDADE E ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DAS CIÊNCIAS HUM ANAS N A CONTEMPORANEIDADE

Capítulo 1

O argumento do conhecimento do criador e as ciências humanas

O objeto da primeira parte do livro são as “Formas de racionalida­ de e estratégias discursivas das ciências humanas na contemporaneidade”. Ao longo dela, o leitor encontrará um conjunto de capítulos rela­ cionados com os diferentes aspectos do objeto em apreço, recortados segundo as necessidades globais da pesquisa. O âmbito dessa extrapola os resultados ora apresentados neste primeiro tomo, dedicado ao estu­ do das obras de Weber e Durkheim, devendo mais tarde os materiais em elaboração integrar o segundo tomo que pretendemos publicar, consagrado a Marx e a Lévi-Strauss. Entre esses aspectos, organizados sob a forma de capítulos, encontram-se os temas “Paradigmas e mode­ los”, “Padrões de cientificidade nas ciências humanas — formas de explicação (compreensão) da realidade humano-social”, “Sobre a des­ crição, a explicação e a interpretação (compreensão): problemas, para­ doxos e controvérsias” e “As ciências humanas e a exigência de objeti­ vidade: as vias de Durkheim, Marx, Freud e Weber”. Ao situar o problema das formas de racionalidade e das estratégias discursivas, tomaremos como fio condutor de nossas análises um argu­ 33

Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

mento extremamente caro àquelas ciências, modalizado segundo suas variantes e restituído mediante a construção de uma tipologia fina, com cuja ajuda pretendemos enquadrar as obras de Weber, Durkheim, Marx e Lévi-Strauss, dos quais nos ocuparemos em seguida. Também com sua ajuda, procuraremos tratar os temas acima elencados (paradigmas e modelos etc.), conforme mostraremos ao longo da primeira parte, bem como abordar outros aspectos direta ou indiretamente associados ao argumento, referidos aos dois primeiros pensadores e a ser conside­ rados respectivamente na segunda e na terceira partes do livro. O argumento em questão é o chamado argumento do conhecimento do criador ou, antes, do criador do conhecimento. Segundo esse ar­ gumento — para o qual não há em verdade uma fórmula canônica, mas um conjunto de idéias e proposições mais ou menos implícitas —, do real só podemos conhecer efetivamente aquilo que nós mesmos cria­ mos. Quer dizer: aquilo em cuja origem nos encontramos nós mesmos e que foi gerado, feito ou construído por nós, e não aquilo que existe de fato e não foi criado por nós, com a ajuda de nossas mãos e de nossas mentes, cujo conhecimento será declarado impossível ou, então, será enfraquecido ao modo de conjecturas, analogias e ficções^ Daqui a pouco vamos voltar ao argumento e introduzir outros elementos com 1. Ao introduzir o argumento, gostaríamos de chamar a atenção do leitor para as barreiras teológico-religiosas que tiveram de ser superadas, de modo a permitir a entrada em cena do ser hum ano com o criador: afinal, o homem era a “criatura”, só D eus era o “criador” — da natureza e do próprio homem. Vencida a barreira, num processo irresistível, o homem se verá na tríplice condição de criador da sociedade (cultura), do conhecimento e de si mesmo (de seu corpo, quiçá de sua mente), a última condição tendo sido assumida mais recentemente, na esteira da engenharia genética. N as páginas que seguem vamos ocupar-nos de diferentes tópicos vinculados à idéia de conhecimento-construção ou conhecimento-criação, visando-a com o uma epistemologia especial ou um a teoria particular do conhecimento (pois — vimos na Introdução — há outras). Dois são os paradigmas que modelaram o conhecimento-criação e nuclearam o argu­ mento do conhecimento do criador: o paradigma da tecnologia, tendo por protótipo o engenheiro; o paradigma da arte, tendo por protótipo o pintor (Leonardo). Além de mostrar que no fundo não há dicotomia entre os dois paradigmas (pois, antes de se converter em técnico, o engenheiro é um artista e cria algo ao engenhar, do mesmo modo que o verdadeiro artista, ao criar, engenha e molda algum a coisa), todo o nosso esforço consistirá em superar a dicotomia invenção/descoberta, bem como em pensar uma idéia de verdade condizente com o conhecimento-criação, a saber: a verdade-obra. 34

O argum ento do conhecim ento do criador e as ciências hum anas

vistas a precisá-lo e infleti-lo para as ciências humanas. Antes disso, vamos avançar a tipologia e apontar as variantes. Tal tipologia, elaborada com vistas ao argumento, para operacionalizá-lo, e às ciências humanas, ao tomá-las como ponto de aplicação, envolve um conjunto de cinco variantes, recobrindo um gradiente que vai do realismo epistemológico, passando pelo operacionalismo, pelo instrumentalismo e pelo construtivismo, até chegar ao pragmatismo. Ao que parece, quem pela primeira vez analisou o dito argumento e seu aparecimento mais ou menos elíptico na história da filosofia e das ciências foi o espanhol Pérez-Ramos em seu livro consagrado a Bacon, publicado originalmente em inglês e intitulado A idéia de ciência de Francis Bacon e a tradição do conhecimento do fazedor (makers knowledge)1. Outro lugar onde ele aborda o mesmo assunto é o artigo dedi­ cado a Vico e que veio a lume um pouco antes5. O mesmo argumento foi retomado recentemente numa tese de doutorado em filosofia, pos­ teriormente transformada em livro4, de autoria de Bernardo Jefferson de Oliveira, também dedicada a Bacon, e portanto fora do contexto da epistemologia das ciências humanas. Um pouco antes, com base em Pérez-Ramos e outras fontes bibliográficas, o argumento foi abordado no âmbito da teoria do conhecimento por Danilo Marcondes, em instigante artigo intitulado “O argumento do conhecimento do criador e o ceticismo moderno”5. Os interessados no assunto têm então nos livros e nos artigos uma referência atualizada do estado da questão, especial­ mente o livro e o artigo de Pérez-Ramos, autor que com acuidade não só renovou os estudos baconianos, como também explicitou um argu­ mento caro a Vico, a Hobbes e às próprias ciências humanas em suas diferentes vias ao longo da modernidade. 2. PÉREZ-RAMOS, A. Francis Bacorís idea o f Science and the makers knowledge tradition. Oxford, Alden Press, 1988. 3. Id., “La emergencia dei sujeto en las ciências humanas: Giambattista V ico”, in L a crisis de la razón. Murcia, Publicaciones de la Universidad de Murcia, 1986. 4. OLIVEIRA, B. J. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia. Belo Horizonte, Editora U FM G , 2002. 5. SOUZA F i l h o , D. M. “O argumento do conhecimento do criador e o ceticismo moderno”, in CHAUÍ, M. e ÉVORA, F. Figuras do racionalismo — Conferências da AN PO F, 1998. Cam pinas, Edições A N P O F/C N Pq, 1999. 35

Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

De nossa parte, já tínhamos trabalhado o argumento, ainda que implicitamente e sem empregar o nome, seja a expressão “conhecimento do fazedor”, seja a fórmula “conhecimento do criador”, em nossa tese de doutorado, que gerou mais tarde o livro O grau zero do conhecimen­ to: o problema da fundamentação das ciências humanas. Na tese, assim como no livro, tivemos a ocasião de trabalhar aspectos do argumento em Hobbes, Dilthey, Marx e no idealismo alemão. Ao fazê-lo, eviden­ ciando seu lastro, fomos conduzidos a associar o tema do conhecimen­ to como obra e criação à questão do prometeísmo moderno. Por vezes, fomos levados ora a nos restringir à questão da verdade (verdade-obra) e sua fundamentação, ora a tomar o idealismo alemão como a versão mais radicalizada do argumento, pondo em relevo a existência de uma espécie de hiperativismo teórico em Hegel e em Fichte. A par do idealis­ mo alemão, remontamos o argumento ao racionalismo clássico e à teoria da produtividade originária da razão, em alternativa ao inatismo carte­ siano, tendo como expoente (a teoria) o nome e a obra de Espinosa. Mais recentemente, voltamos ao tema em nosso último livro, O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, ao tratarmos da vérdade-obra e do conhecimento-produção (narração) na historiografia moderna e contemporânea. Posteriormente, tivemos a ocasião de voltar a um elo ou aspecto do argumento, mais uma vez sem empregar o nome, num artigo publicado recentemente na revista Interações, de São Paulo, ten­ do por título “A filosofia no 3o milênio: o problema do niilismo abso­ luto e do sujeito-demiurgo”. Nesse artigo, cuja versão mais alentada apareceu num ensaio publicado pouco depois na revista Cadernos de história e de filosofia da ciência, da Unicamp6, tratamos da variante “tecnológica” do argumento. Tal variante aparece em ambas as publi­ cações quando abordamos, associando-a à questão do niilismo, a expe­ riência da nova demiurgia gerada pela ciência e pela técnica na última década, tomando como referência a biotecnologia. Ao situá-la, ressal­ tamos tanto as esperanças quanto os perigos da experiência do homem como criador radical de si mesmo, e mostramos que lá onde o niilismo 6. DOMINGUES, I. “A filosofia no terceiro milênio: legados e desafios”, Cadernos de história e filosofia da ciência, Cam pinas, série 3, v. 9, n. 1-2 (jan.-dez. 1999). 36

O argum ento do conhecim ento do criador e as ciências hum anas

campeia o sujeito-demiurgo aético reina, quando, impotentes, ficamos à mercê dos doutores Faustos e dos Frankensteins de nossos dias. Final­ mente, desta feita com o nome, porém fora do âmbito da epistemologia das ciências humanas, pudemos tratar de outros aspectos do argu­ mento, evidenciando seu extraordinário poder irradiador, numa época em que todo mundo quer ser artista e não hesita dar às suas obras e criações os lustros das artes, em nosso artigo recentemente publicado na obra comemorativa dos 80 anos de Pe. Vaz, onde figura com o título “A crise da verdade e o sujeito ético”7. Tendo feito essas incursões, nossa tentativa agora é explicitar e siste­ matizar o argumento e estendê-lo às ciências humanas. Segundo Pérez-Ramos, o argumento do conhecimento do “faze­ dor”, formulado pela primeira vez, de uma maneira explícita e com­ pleta, por Vico (Ciência nova), constitui uma das correntes subterrâ­ neas mais poderosas do pensamento ocidental, recebendo, antes e depois de Vico, um conjunto de formulações paralelas mais ou menos elípticas da parte de uma plêiade de pensadores ilustres, como Bacon, Kant, Hobbes e Boyle. Sua origem mais remota é a teologia, ou, antes, a religião (o cristia­ nismo, no caso), a qual patenteou a figura do Deus onisciente que co­ nhece tudo e criou o universo com base num ato de vontade estampa­ do no famoso “Fiat” da doutrina da criação. Ausente da filosofia grega, ao menos em suas versões platônica e aristotélica, dependentes demais da figura da vita contemplativa ou do bios theoretikòs, assim como do ponto de vista do consumidor, não do produtor ou do “fazedor” (segun­ do Aristóteles, quem conhece bem uma casa não é o pedreiro que a construiu, mas o seu habitante ou morador), a idéia do conhecimento como criação, no entender de Pérez-Ramos, só mais tarde vai aparecer no campo das ciências. Especialmente, no domínio das matemáticas, quando Proclo no fim da Antiguidade trata da obra de Euclides e subli­ nha os aspectos construtivistas do conhecimento naquela ciência, so­ bretudo na construção das figuras (é o próprio homem no uso de suas 7. M a c D O W ELL, João A., SJ (org.). Saber filosófico, história e transcendência — Homenagem ao Pe. Henrique Cláudio de Lim a Vaz, SJ, em seu 80° aniversário. São Paulo, Loyola, 2002, 247-258. 37

1 Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

faculdades racionais que cria as figuras e tem pois acesso à sua ratio constructionis, podendo pois dar-lhes razão — estima Proclo, assim como, mais tarde, no início dos tempos modernos, Thomas Hobbes). Já no tocante à física e a outras disciplinas das ciências naturais, a extensão do argumento viu-se obstaculizada no início, uma vez que para elas durante muito tempo prevaleceu a idéia de que só Deus, criador do mundo, podia conhecer o que se passava nos recessos pro­ fundos das coisas. Não os homens, cujo conhecimento estava fadado a ser algo hipotético e conjectural, devendo eles se contentar, no tocante às essências íntimas e disposições secretas das coisas, com um conheci­ mento indireto ou analógico, baseado em implicações lógicas ou infe­ rências dialéticas. Sob esse aspecto, portanto, quanto às ciências natu­ rais, o argumento do conhecimento do criador e sua invocação ao Deuscriador funcionavam negativamente, servindo para fixar um limite para as vãs pretensões do intelecto humano. Essa situação só vai ser alterada nessas ciências — pode-se dizer — no início da modernidade, quando Kepler, Descartes, Boyle e outros pensadores criaram a figura do mundo-máquina e mesmo do corpomáquina (Descartes), se não do homem-máquina (La Mettrie). Foi en­ tão, com a ajuda dos modelos de relógios mecânicos, engenhos hidráu­ licos e de autômatos de toda sorte, como os de Vaucanson, que as novas ciências estabeleceram a analogia entre o conhecimento dos mecanis­ mos dos autômatos e o dos dispositivos profundos da natureza em seus diferentes domínios, estendendo-se primeiro ao domínio das coisas, e por fim ao próprio homem como organismo vivo. Foi então — na es­ teira da associação entre a ciência (episthéme) e a técnica (téchne), dando ensejo ao surgimento das tecnociências modernas, bem como ao apa­ recimento do novo Prometeu junto com o Homo faber, com suas cria­ ções e produções, gerando a figura do sujeito construtor moderno ou do sujeito epistemológico — que toda uma nova perspectiva para o conhecimento se anunciou no campo das chamadas ciências naturais, acarretando um a revolução tecnológica e científica sem paralelo na história da humanidade. No rastro da passagem do ideal da vita con­ templativa para a vita activa, o homem, qual um alter deus, depois de franquear os limites em que se encontrava encerrado, valendo-se dos 38

f O argum ento do conhecim ento do criador e as ciências hum anas

“artifícios” que ele mesmo criou (modelos, laboratórios, experimen­ tos), passa a agir diretamente na natureza, e se vê na condição de cria­ dor, se não do mundo das coisas, pelo menos de uma segunda nature­ za, a saber: o mundo da instrumentalidade e do aparato técnico. Mas não é só: posteriormente, vencida a barreira do mundo das coisas, quando os físicos se descobriram com o poder de gerar eles mesmos processos naturais inteiros, com seus supercondutores e outros engenhos, o pró­ ximo passo das tecnociências foi conquistar o mundo dos organismos vivos em toda a sua extensão. Isso ocorreu depois que os biólogos, ten­ do aprendido com os físicos a brincar de Deus no mundo da matéria, passaram a brincar de Deus (ou será de diabo?) no mundo da vida, com a descoberta do código genético, no início reconstruindo e sintetizan­ do artificialmente em laboratório os processos naturais, no fim agindo diretamente nos organismos com a ajuda dos meios e dispositivos gera­ dos pelas próprias tecnociências, levando-os a falar da criação da vida e da fabricação do próprio homem. Resultado: ao fim dessa epopéia, o argumento do conhecimento do criador, impedido que estava de se estender à natureza, vê removido o obstáculo e a ela se aplica por in­ teiro, sem nenhuma restrição, no tocante tanto ao mundo das coisas quanto ao mundo dos seres vivos, deixando de ser um privilégio do mundo dos homens e das próprias ciências humanas. Quanto às ciências humanas, que são o nosso escopo, e que não receberam um tratamento mais detido por Pérez-Ramos, tendo-se ele limitado a evocar Hobbes e a se referir mais enfaticamente a Vico, gostaríamos de chamar a atenção do leitor para alguns pontos, os quais devidamente examinados nos levaram a corrigir a leitura que faz nosso autor dos antigos, inclusive em relação a certos aspectos das ciências naturais. A se acreditar em Pérez-Ramos, os gregos pouco ajudaram na epopéia do conhecimento do criador, visto que, como foi salientado, eles se colocavam na perspectiva da vita contemplativa, e não na da vita activa. Não bastasse, os gregos falavam do mundo das obras, das ações e dos feitos dos homens, relacionado com as atividades da póiesis, da práxis e da téchne, a partir do ponto de vista do consumidor, e não do “fazedor” (criador). Depois de refletir sobre esses pontos, passamos a julgar algo equivocadas as considerações de Pérez-Ramos a respeito das 39

Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

ciências naturais e humanas (ou, antes, acerca do mundo das coisas e dos homens, na perspectiva dos antigos e do argumento do criador). A começar por Platão e pelo Timeu, citados por ele. Ora, no Timeu, relativamente à questão da criação do mundo, tema que com certeza interessa à física e à cosmologia, Platão afirma que “o Demiurgo realizou o mundo moldando-o conformemente ao vivente em si, modelo (paradeigma) único, completo e imutável”8. Há de se acrescentar, no que concerne ao problema da criação, que Platão se limita no Timeu ao mundo das coisas, reservando ao Crítias a tarefa de estender a demiurgia ao mundo dos homens. Com o o Crítias ficou inacabado, é na República e nas Leis que se podem encontrar os ele­ mentos demiúrgicos relativos ao mundo humano, especialmente na Re­ pública, quando o filósofo da Academia trata das figuras do fundador e da cidade ideal. Todavia, antes de Platão, a tópica da demiurgia e da fundação é tratada por Sólon, que distingue a figura do oikistés, referida ao fundador das cidades e das colônias, da figura do nomothetés, que designa o “dador de Leis” ou o Legislador. Mais tarde, à época de Platão, vamos encontrar, se não a idéia do conhecimento do criador, pelo menos as idéias da sociedade como construção e da lei como artifício humano, em sofistas como Protágoras e Trasímaco, que dão ensejo, junto com Platão e Sólon, ao construtivismo social e político, todavia sem tratarem da figura do fundador e do tópos da fundação9. Por fim, fora do contexto da fundação, há Aristóteles, autor de uma frase enigmática que desde que a lemos pela primeira vez muito nos obcecou, ao dizer, referindo-se à ética, mas podendo ser estendida à póiesis e à téchne, que “aquilo que somos forçados a fazer para aprender, só o aprendemos fazendo”10. Nesse sentido, por todas essas razões, é preciso corrigir Pérez-Ramos no tocante aos antigos. Quanto aos modernos, relativamente às ciências humanas, consideramos acertada a linha geral de sua argumentação, e também quanto à inclusão de Hobbes, Dilthey e Vico, especialmente 8. Apud DELATTRE, P. “Teoria/M odelo”, Enciclopédia Einaudi (v. 21). Lisboa, Im­ prensa N acional/Casa da M oeda, 268. 9. Devemos as observações relativas a Platão e a Sólon a Newton Bignotto. 10. ARISTÓTELES. Éthique à Nicomaque (tradução de Tricot), II, 1, 1103 a 33. Paris, Vrin, 1979, 88. 40

O argum ento do conhecim ento do criador e as ciências hum anas

Vico, o verdadeiro formulador do argumento. Essa lista poderia ser consideravelm ente aum entada com a inclusão da nebulosa dos contratualistas em política, além dos próprios Marx, Weber e Lévi-Strauss. Contudo, Pérez-Ramos não o faz, e esta lacuna poderia ser justificada com a alegação, como aliás ele mesmo sugere, de que o campo de sua pesquisa é o início dos tempos modernos, particularmente a obra de Bacon, a que é consagrado seu livro. Por isso, na seqüência tentaremos, por nossa própria conta e risco, introduzir outros elos no argumento, com o intuito de estendê-lo a diferentes disciplinas das ciências huma­ nas, em busca de uma perspectiva mais dilatada que nos permita ir além de Bacon e seu tempo (séculos XVI-XVII), visto que àquela época e naquele autor essas ciências mal existiam na feição que elas têm hoje. Tomemos o argumento de Vico: do real só podemos conhecer aqui­ lo que criamos; ora, no real o único mundo que criamos não é a nature­ za, que é obra do Deus-criador, mas o mundo das instituições e dos negócios humanos; logo, as ciências humanas, que se ocupam dos ob­ jetos e dos negócios dos homens, conhecem-nos efetivamente e, enquan­ to tais, são superiores às ciências naturais, as quais devem contentar-se com um conhecimento indireto das coisas da natureza/ Tal é o argu­ mento de Vico, ou melhor do Vico “histórico”, uma vez que na Ciên­ cia nova o pensador napolitano está se referindo às humanidades e pensando na filologia como modelo delas, antes que a grande bifurca­ ção ocorrida no século XIX tivesse produzido a clivagem entre as ciên­ cias humanas, de um lado, e as humanidades, de outro, reservando a estas últimas as disciplinas da erudição, nelas incluída a filologia, que depois vai converter-se em ciência positiva. Ocorre que o argumento do Vico histórico é por demais pobre, além de elíptico, e está longe de recobrir o conjunto das possibilidades, bem como as vias efetivamente percorridas pelas ciências do homem nos séculos XIX e XX. Por isso, vamos propor em seguida a incorporação de certos elos, não exatamen­ te para melhorar o argumento, mas para transformá-lo em vista das necessidades da pesquisa que estamos desenvolvendo. A começar pela necessidade de introduzir uma tipologia mais fina, como dizíamos, com o objetivo de estendê-lo às ciências humanas tais como elas se nos afiguram hoje. 41

1 Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

Antes de mais nada, conforme antecipamos no início do capítulo, propomos um conjunto de cinco tipos ideais ou modelos que especifi­ cam certas modalidades ou variantes do argumento, as quais estão (ou poderiam estar) presentes tanto nas ciências naturais quanto nas ciên­ cias humanas. As variantes ou modalidades são: 1) o realismo epistemológico, 2) o construtivismo, 3) o instrumentalismo, 4) o operacionalismo, 5) o pragmatismo. Ao elencar essas cinco formas, temos em mente um conjunto de pressuposições mais ou menos implícitas que as tornam possíveis. Uma das pressuposições é tomar o conhecimento e a ação — e na extensão da ação as idéias de produção, de construção, de opera­ ção e de criação — como rigorosamente simétricos e em relação de dependência recíproca, pois, como diz Vico, “conhecimento de Deus e criação são uma só e mesma coisa”. Outra pressuposição é a possibi­ lidade de decompor o conjunto da ação, que resulta em conhecimento e criação de realidade, em termos de agentes, atos, idéias, processos, antecipações, operações, instrumentos, elementos e objetos, com cuja ajuda se poderá pensar os atos de criação ou de produção de alguma coisa. Outra pressuposição, enfim, é a possibilidade de decidir a ques­ tão da verdade do conhecimento, reconduzindo o conhecimento à ação e localizando nesta os critérios da verdade/falsidade daquele. Ao examinar as cinco modalidades ou variantes do argumento do criador, é-nos impossível não constatar um progressivo empobrecimento do argumento quando se passa do construtivismo ao instrumentalismo e deste ao pragmatismo. Com o em nenhuma outra modalidade, o cons­ trutivismo envolve a relação de um sujeito cognoscente, o emprego de instrumentos (modelos etc.), um conjunto de operações dirigidas ao objeto e a própria pergunta pela verdade do conhecimento obtido. Ora, tanto no pragmatismo como no instrumentalismo alguns elos impor­ tantes dessa cadeia são amputados e deixados de lado, substituindo o pragmatismo a pergunta pela verdade pelo êxito da ação, e perguntan­ do o instrumentalismo não pela verdade do conhecimento, mas pelo modo como ele funciona. Um pouco é o que ocorre com o engenheiro quando ele deixa de engenhar e pensar, ao se converter em técnico, transformando-se o conhecimento do criador, antes compartilhado pelo engenheiro e pelo artista, em conhecimento do “fazedor”. 42

O argum ento do conhecim ento do criador e as ciências hum anas

Deixemos de lado o engenheiro, voltemos ao argumento e suas va­ riantes, e reparemos como as coisas se passam relativamente a suas visões de conhecimento e de verdade. Assim, para o realismo epistemológico, ao ser reinterpretado pelo argumento do conhecimento do cria­ dor, o valor-verdade do conhecimento se decide por sua referência ao mundo que existe independentemente de nós, e pouco importa se tal mundo é uma criação de nós, como o mundo dos homens, ou é um dado ou algo anterior a nós, como o mundo das coisas, pois tanto um co­ mo o outro são reais, e, sem realidades a se aplicar, o conhecimento seria simplesmente impossível. Por isso, o realista indaga do real ou da realidade, e se dá por satisfeito quando a realidade é apontada e é esta­ belecida a conveniência entre o conhecimento e a coisa. Por sua vez, as perguntas do operacionalista e do pragmatista são diferentes, como bem viu Kaplan". Para o operacionalista, que lida com o significado dos enunciados sem perguntar pela natureza da realidade, a indagação é “o que devemos fazer para verificar o significado de um enunciado e decidir se ele é verdadeiro?”12. Ao dar a resposta, procura descrever os comportamentos dos usuários da linguagem, bem como dos protago­ nistas do conhecimento, reduzindo o agir ao fazer e trocando a análise do discurso do conhecimento pelo protocolo de conduta e registro de discussão, como Bruno Latour em Ciência em ação. Para o pragmatista a questão é “que faríamos se acreditássemos no enunciado”15 e naquilo que ele diz da realidade, deslizando em sua resposta da ação à crença e vice-versa. Por último, a pergunta do instrumentalista e do construtivista é completamente distinta. O instrumentalista indaga que instru­ mentos devemos empregar se queremos conhecer alguma coisa, e para ele não faz sentido perguntar pela verdade do conhecimento, da mes­ ma forma que não faz sentido perguntar se uma ferramenta é verdadei­ ra (um martelo, por exemplo); quando se trata de instrumento, cabe apenas averiguar se ele funciona, o mesmo valendo para uma teoria ou um enunciado, nem mais nem menos. Já o construtivista, que distin11. mento. 12. 13.

KAPLAN, A. A conduta na pesquisa: metodologia para as ciências do comporta­ São Paulo, Herder, 1969, espec. cap. 2, seç. 5. Ibid., 46. Ibid. 43

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gue o conhecimento da realidade, e pensa o conhecimento como uma construção, que envolve instrumentos e operações, além do emprego de idéias, métodos e constructos ou modelos, indaga como seria a rea­ lidade se o modelo construído fosse verdadeiro14, e pode mesmo abrir mão, ao procurar a resposta, da coincidência do modelo com a realida­ de, em suas variantes convencionalista ou nominalista. Todas essas possibilidades tiveram amplo acolhimento em teoria do conhecimento e nas epistemologias especiais consagradas a diferen­ tes disciplinas das ciências da natureza. A exceção do instrumentalismo e do operacionalismo, de todo ignorados em ciências humanas, porém virtualmente possíveis (há quem tenha feito de Weber um operacionalista, como Tragtenberg), o construtivismo, o pragmatismo e o realismo tiveram amplo acolhimento, experienciando distintas fortu­ nas em diferentes momentos dos séculos XIX e XX. Um grande repre­ sentante do pragmatismo foi Peirce, que abriu caminho para a semió­ tica e a análise dos signos, porém enxertando naquela abordagem ele­ mentos da filosofia transcendental de Kant, com o que o pragmatismo adquire um viés construtivista e mesmo idealista. Dois representantes do realismo são Marx e Durkheim — Marx, conferindo ao realismo um viés materialista, abrindo-o à dialética e nela incorporando ele­ mentos construtivistas, a exemplo d’0 capital, que se refere ao modelo da concorrência perfeita e lida com hipóteses conjecturais; Durkheim, conferindo ao realismo um viés positivista, porém ajustando-o ao kantismo e a seus aspectos morais (a idéia de sociedade como potência das normas, a qual faz lembrar em mais de um aspecto a razão prática de Kant). Um grande representante do construtivismo é Lévi-Strauss, em cuja obra Ricoeur viu, com o acordo do autor, uma espécie de kantismo sem eu transcendental, isto é, um sistema de categorias sem o su­ jeito pensante. Outro representante do construtivismo é Max Weber, para quem, por um lado, os homens são o demiurgo do mundo da 14. O leitor encontrará em Kaplan uma formulação parecida, porém atribuída ao positivismo lógico: “Para chegar ao significado de um enunciado o positivista lógico pergunta: ‘C om o seria o mundo se o significado do enunciado fosse verdadeiro?’” (ibid.). D e nossa parte, preferimos aproximar o positivismo do realismo epistemológico, bem como a indagação acim a do construtivismo, distanciando-nos das posições de Kaplan.

O argum ento do con hecim ento do criador e as ciências hum anas

cultura e da história e, portanto, artífices do sentido de suas obras e senhores de suas ações; por outro, é preciso empregar toda sorte de constructos mentais para a operação (análise) dos elementos empíricos e a decifração (captação) do sentido. E então que seu construtivismo ganha um viés compreensivo ou hermenêutico, aproximando-o de Dilthey e nos levando a Vico, a quem Isaías Berlin vê na origem da hermenêutica e da escola histórica alemã. Tendo mapeado o terreno, além de distinguir o construtivismo social do construtivismo epistemológico (é o caso de Durkheim, por exemplo, que compartilha o primeiro, não o segundo), ao longo da pesquisa pro­ curaremos elucidar a questão da verdade, da realidade e do sujeito nos quatro autores. E aí que aparece, sem que a formulação seja a mesma, menos ainda o teor, a polêmica do realismo e do anti-realismo de que nos fala Dummett15, que, como se sabe, se coloca no terreno da filosofia da linguagem. Diremos que a polêmica reaparece no domínio da teoria do conhecimento e da epistemologia das ciências humanas, porém de tal forma mitigada, ao se abrir a um conjunto de variantes e combina­ ções, que a sua simples consideração nos leva a recusar a pertinência da dicotomia neste campo do conhecimento, como veremos na seqüência. Antes de mais nada, embora todos compartilhem o argumento do conhecimento do criador em diferentes planos e níveis do mundo humano (até mesmo Durkheim, que nas Formas elementares da vida religiosa mostra que a religião tem um papel crucial na edificação da sociedade e que as categorias do espaço e de tempo têm origem social), todos serão levados, por diferentes motivos, a mitigar suas posições. A mitigação se dará por meio da associação de elementos realistas e antirealistas no interior de uma mesma teoria ou de um mesmo método, bem como mediante a distinção da ordem do conhecimento em frente da ordem do ser, as quais — estima-se — estão em relação, porém não de correspondência biunívoca. No tocante à verdade, Weber, que é um “ficcionista” e coerencialista, concede grande espaço à verificação. Marx e Durkheim, que são realistas e chegados à verdade-correspondência, 15.

DUMMETT, M. Truth and Other Enigmes. Cam bridge (M as.), Harvard Univer-

sity Press, 1978. 45

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concedem bastante aos elementos coerencialistas e ficcionais. LéviStrauss, que é um construtivista e atento à idealidade do símbolo, apóia toda a estrutura do espírito humano no córtex e na química do cérebro. No tocante à realidade, todos eles são levados a alargá-la: uns, incorpo­ rando o simbólico (Lévi-Strauss) e o sentido, além do fático (Weber); outros, as normas, as representações e as ideologias (Durkheim e Marx). No tocante ao sujeito, Durkheim estabelece que o sujeito é a sociedade e sua natureza é coletiva; Marx pretende que 0 sujeito é o capital (substância-sujeito), os indivíduos são seu “suporte” e sua natureza, reificada; Weber pulveriza o sujeito social em uma infinidade de atores ou agen­ tes, sustenta que o modo de compreendê-los é uma idealidade (tipos ideais do empresário capitalista, do protestante asceta etc.) e estabele­ ce que a compreensão depende do sujeito e do ponto de vista do sujeito (sujeito epistemológico); Lévi-Strauss acredita que pode dispensá-lo (este enfant gaté da filosofia — escreve) e passar sem ele (“o mito não tem autor” — acrescenta). De modo que, dos quatro, Weber é o único que incorpora o sujeito epistemológico ao processo de conhecimento, po­ rém sem instalá-lo em sua soberania, limitando os outros três, se não a suprimi-lo (caso de Lévi-Strauss), ao menos a neutralizá-lo (Durkheim) ou a esvaziar seu papel em favor das formas coletivas, objetivas e reificadas: ponto de vista de classe (Marx). Caberá então perguntar se essas diferentes modalidades ou varian­ tes do argumento do conhecimento do criador, ao mitigarem e associa­ rem os elementos realistas e anti-realistas, estarão em condições de se livrar da aporia de Platão, que na República introduz na ação os pontos de vista do produtor e do consumidor, e pergunta: quem conhece mais um instrumento musical — aquele que o produziu (o fabricante) ou quem se serve dele (o músico)? Poder-se-ia acrescentar: quem conhece mais a música — quem canta uma ária ou quem a escuta, se quem a canta não é quem a ouve? E ainda: quem conhece mais — o armador que faz o navio em terra ou seu comandante que o dirige em alto-mar? Pode-se dizer que, ante tais perguntas, o pragmatista e o operacionalista não saberão o que responder, ficando embaraçados, ao recorrerem à ação, em suas tentativas de decidir o significado das sentenças com o deslocamento da mesa do centro para o canto da copa, e mesmo acerca 46

O argum ento do conhecim ento do criador e as ciências hum anas

da existência ou não de um E T invisível no meio da sala. Caberá então averiguar, com o alargamento da idéia de realidade, assim como do campo da ação, a qual é mais do que um behavior maquinal ou um mero “fazer” sem consciência e intenções, se Marx, Durkheim, Weber e Lévi-Strauss se safaram ou estão em melhores condições de se safar da dificuldade apontada por Platão. E o que procuraremos mostrar nos dois tomos do livro.

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Capítulo 2

Paradigmas e modelos nas ciências humanas

Neste capítulo vamos tratar dos paradigmas e dos modelos empre­ gados por diferentes disciplinas das ciências humanas em seu esforço por conhecer a realidade humano-social, abarcando desde a economia e a sociologia até a antropologia e a história. Antes de abordar esses tópicos, vamos tentar estabelecer o que en­ tendemos por cada um dos termos, os traços que os distinguem e as relações que os envolvem. Tal consideração preliminar é absoluta­ mente necessária, em nosso entendimento, na medida em que vários são os estudiosos que tomam um termo pelo outro, como se fossem sinônimos, bem como não são poucos aqueles que, ao procurar distin­ gui-los, o fazem mal ou imperfeitamente, embaralhando-os e confun­ dindo as coisas. Ao nos ocupar desses pontos, procuraremos abrir um caminho di­ ferente do de Thomas Kuhn, que emprega paradigma numa acepção sociológica e fica muito a depender, ao credenciar algo como paradig­ mático, de uma visão de ciência na qual o acordo e o consenso de

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procedimentos prevalece sobre o desacordo e o dissenso1. Tal visão, como se sabe, leva muitos estudiosos a desqualificar as ciências huma­ nas (pois lá impera a discórdia de métodos, a anarquia dos conceitos e o vale-tudo das teorias). Todavia, este expediente desqualificatório, le­ vado às últimas conseqüências, com base no mesmo critério, poderia muito bem ser aplicado às próprias ciências naturais e mesmo às cha­ madas ciências exatas, a julgar pelo que se passa na física, na biologia e na própria matemática. Nessas disciplinas, com efeito, não são meno­ res as clivagens teóricas, os dissensos metodológicos e as anarquias con­ ceituais, sem que ocorra a ninguém a idéia de impugnar seus procedi­ mentos e menos ainda seu status de ciência. Tendo restringido nossa análise aos aspectos epistemológicos, pro­ curaremos, ao considerar as ciências humanas, “desinflacionar” o ter­ mo paradigma. Com o já tinha ocorrido com outros termos e expres­ sões, entendemos que nos últimos tempos ele foi vítima de uma verda­ deira inflação (vide o paradigma da linguagem), ao expandir desmesu­ radamente sua significação, naquelas ciências assim como nas ciências naturais, quando entrou em concorrência com, e por fim abarcou, outros vocábulos vizinhos, já desgastados pelo uso, como visão de mundo, concepção filosófica ou doutrina científica. Da mesma forma, viu in­ flar seu núcleo significativo em razão do prestígio ou da sedução das belas palavras, gerando modismos e convertendo-se em peça de retóri­ ca, bem como deu lugar a empregos desenfreados, por ter caído no 1. Sobre a fortuna do vocábulo “paradigma” em Th. Kuhn, houve quem tenha inven­ tariado, com seu acordo, diga-se de passagem, na ocasião de um colóquio entre o autor e popperianos ingleses, mais de vinte significados do termo, sugerindo sua imprecisão, se não sua inflação, não sem antes reconhecer sua fertilidade. Por seu turno, dando ouvido aos críticos, Kuhn, em edição posterior da Estrutura das revoluções científicas, abandonou o vocábulo, substituindo-o no Posfácio pela expressão “matriz disciplinar” . Todavia, a sorte já estava lançada, a posteridade reteve o vocábulo paradigma, descobriu meios de empregá-lo em novos e inusitados domínios e inflacionou mais ainda o termo. Quem inventariou o emprego do vocábulo em Th. Kuhn foi Margaret Masterman, numa com unicação posteriormente transformada em artigo, onde ela acusa um total de 21 sentidos (o próprio Kuhn precisará depois 22 sentidos). O artigo, intitulado “A natu­ reza de um paradigma”, integra uma obra coletiva oriunda do colóquio, cuja tradução mais tarde foi publicada no Brasil com o título A crítica e o desenvolvimento do conhe­ cimento (São Paulo, Cultrix, 1979). Devemos essas observações a Ricardo Fenati. 50

Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

senso comum e ser usado indiscriminadamente na linguagem corren­ te, autorizando até mesmo falar de paradigmas de bolos, de futebol, dos negócios e coisas parecidas. Além de distinguir, em sua acepção epistemológica, o paradigma-objeto do paradigma-disciplina e do paradigma-teoria, teremos o cuidado de evitar as confusões correntes entre paradigma e modelo, como em Raymond Boudon, que distingue três tipos de paradigma: paradigmas téoricos ou analógicos, paradigmas for­ mais e paradigmas conceituais. Preferimos, como veremos na seqüên­ cia, reservar os aspectos conceptuais para os paradigmas enquanto par­ te integrante de seu corpus teórico, restringir os elementos formais aos modelos (como os modelos matemáticos) e compartilhar seus aspectos analógicos com os modelos, como uma de suas variantes, ao entrarem nas simulações de diferentes estados de coisas e nos contrastes com o real empírico. Assim procedendo, depois de definir o que é paradigma e o que é modelo, em suas diferentes acepções e em seus diversos usos epistemológicos em diferentes disciplinas das ciências humanas, pode­ remos então discutir a questão delicada e difícil do esgotamento (ou não) dos chamados paradigmas clássicos que moldaram aquelas ciên­ cias — tema de que nos ocuparemos na conclusão de nossa pesquisa. Nessa ocasião, incorporando algo da idéia de Lakatos ao distinguir o núcleo duro da teoria e seu cinturão de proteção, decidiremos se as obras de Marx, Lévi-Strauss, Durkheim e Weber, ao se exporem às forças corrosivas do tempo e à concorrência de abordagens rivais, ainda assim resistem e conservam seu status de paradigma para um conjunto signi­ ficativo de suas disciplinas. Dito isto, passemos então a nossas considerações acerca dos para­ digmas e dos modelos em ciências humanas. O termo “paradigma” vem do grego paradeigma e significa, em sentido próprio, modelo ou exemplo. Em seus múltiplos usos, pode ser empregado com a acepção de algo que por sua exemplaridade deve ser imitado ou seguido, bem como com o significado de provar e de­ monstrar algo com a ajuda de outra coisa que serve de guia ou modelo. Nessas diferentes acepções, o termo pode ser usado tanto num sentido ético-religioso (algo que por sua excelência ou santidade deve ser imi­ tado ou seguido pelo agente moral e pelo crente), como num sentido

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intelecto-científico (algo tido como exemplar, cujo princípio ou proce­ dimento pode ser estendido de um campo de saber para outro ou de uma disciplina para outra). Em nosso caso, propomos restringir o termo a seu uso intelectocientífico e distinguir o termo “paradigma” da palavra “modelo”, aproxi­ mando o paradigma da teoria no sentido lato e integrando o modelo ao método propriamente dito. Tal distinção se impõe em virtude da necessidade de fazer jus a um estado de coisas que caracteriza as ciências em geral e as ciências hu­ manas em particular, segundo o qual o campo das atividades científicas comporta: 1) uma dimensão teórica em cujo interior se formula o proble­ ma a ser investigado, se postula algo a respeito da realidade, se elege uma parte ou segmento do real como elemento ou princípio explica­ tivo — uma força, um ente, um objeto; 2) uma dimensão metódica, instalada pela teoria e guiada por ela, a qual se encarregará, entre ou­ tras coisas, de contrastar a teoria em relação à realidade, servindo-se de técnicas e de procedimentos apropriados. Ora, num tal quadro ou estado de coisas, o paradigma aparecerá do lado da teoria e consistirá: 1) seja naquele segmento do real que aloja o princípio das coisas ou o ente tido como a realidade por excelência que, enquanto tal, dá a chave do mundo dos homens e das coisas (é assim que se fala do paradigma cosmológico, do paradigma teológico, do paradigma da natureza ou do mundo-máquina, do paradigma da história etc., em que o Cosmo, Deus, a Natureza, a História aparecem respectivamente como princípio unificador e ordenador); 2) seja na­ quela disciplina que, por ser mais bem fundada e mais bem-sucedida em seu esforço por conhecer o real (portanto mais científica), funciona como arquétipo ou exemplo a ser seguido pelas outras, tidas como mais atrasadas em relação a ela (é assim que se fala do paradigma da cosmo­ logia, da teologia, da geometria, da física, da biologia, da história, da lingüística etc., sendo o paradigma, no caso, menos o objeto a que se reportam do que a teoria que instalam). A assinalar que nos dois casos o paradigma, mais do que a teoria, é uma espécie de guarda-chuva capaz de abrigar várias teorias. Assim, por exemplo, o paradigma mecânico, fundado na idéia de uma natu­ 52

Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

reza mecânica auto-regulável, abriga: 1) seja a mecânica clássica de Newton, que se estende ao mundo sublunar e ao mundo supralunar, dando-nos uma visão unificada da realidade e tendo por princípio unificador a teoria da gravitação universal; 2) seja a mecânica relativística de Einstein, que estabelece a conversão mútua entre a massa e a energia e opera com um elemento ausente da mecânica clássica, que é a velocidade da luz; 3) seja, enfim, a mecânica quântica de Heisenberg, que é levada a abandonar as mecânicas clássica e relativística, ao trabalhar as subpartículas e os quanta de energia numa escala micros­ cópica, abrindo-se em seu esforço por deles se acercar ao aleatório, porém mantendo a idéia de regularidade (os fenômenos quânticos, em que pese sua aleatoriedade, são previsíveis dentro de uma certa faixa ou de um certo espectro, tido como determinável). Outro exemplo é o paradigma evolucionista da biologia, que num certo momento abri­ gou a teoria da evolução de Darwin e a teoria da transformação das espécies de Lamarck — a primeira ulteriormente considerada vence­ dora; a última, perdedora. Já o termo “modelo” significa três coisas, ainda que intercambiáveis e não exclusivas: 1) o arquétipo de alguma coisa, o protótipo de uma série, o original de uma espécie qualquer; 2) a simulação, a abreviação, a simplificação, o resumo da própria realidade; 3) a construção ou a criação de algo pelo espírito que serve de instrumento para conhecer alguma coisa ou conduzir uma pesquisa, sem necessariamente referirse à realidade ou a algum de seus aspectos. E mais: em seus diferentes usos na linguagem corrente, o termo modelo pode ser empregado seja numa acepção ético-religiosa, seja numa acepção tecnológico-científica. Numa acepção ético-religiosa, ao designar quer um estado ótimo ou perfeito da realidade (arquétipo) irremediavelmente perdido (o pa­ raíso adâmico, por exemplo), quer algo que por sua excelência deve ser imitado ou seguido pelos agentes morais e pelos crentes (uma determi­ nada pessoa como exemplo de honestidade e santidade). Numa acep­ ção tecnológico-científica, ao designar seja um artefato que permite dar uma idéia de alguma coisa que se pretende executar, a exemplo da maquete de uma casa, do molde de um vestido ou do protótipo de um engenho, seja uma ferramenta teórica ou um instrumento analítico de 53

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que o cientista se serve para orientar suas pesquisas, assim como para contrastar o real empírico e o que se pensa sobre ele. Integra os mode­ los científicos, em sua qualidade de ferramentas de conhecimento, todo um conjunto de esquemas, de diagramas, de tipologias e de outros tan­ tos artifícios por meio do qual (conjunto) os cientistas simulam o que poderia ocorrer se um elemento do real varia ou se as condições previs­ tas in abstracto não se alteram, ainda que o real varie — simulações que lhes permitem controlar a teoria, verificar suas hipóteses e submeter suas predições a testes precisos. Tais “esquemas”, em seu uso científico, podem ser ou bem meras construções do espírito, sem qualquer refe­ rente no real, a exemplo da superfície plana sem nenhum atrito de Galileu, que só existe na teoria, ou bem uma simples abreviação do real, como na primeira e na segunda tópicas de Freud, as quais, embora construídas pelo espírito, se referem à estrutura do aparelho psíquico. Ademais, em sua qualidade de instrumento de conhecimento, o modelo tem a ver não com a teoria, embora a pressuponha, nem com a realidade enquanto tal, ainda que se refira a ela (nunca ninguém viu ou tocou um modelo no real empírico), mas com o método. Emprega­ do metodicamente, sua extensão pode ser mais ou menos reduzida, e sua natureza pode ser mais ou menos complicada — pouco importa, contanto que aquele que o emprega saiba utilizá-lo. A exemplo do paradigma, que pode abrigar várias teorias, uma mesma teoria pode ter vários modelos. Uma boa ilustração disso nos dá a teoria da luz. Com o tal, ela pode ser formulada tanto em termos de onda como em termos de partícula. O modelo ondulatório postula que a luz é uma onda, vale dizer, energia e não matéria. O modelo corpuscular pressupõe que a luz é um corpo constituído de pequenas partículas, vale dizer, matéria (corpúsculo) e não energia. Outra boa ilustração são as tópicas de Freud, a primeira delas (Inconsciente — Pré-consciente — Consciente) visan­ do ao aparelho psíquico de um ponto de vista estático; a segunda (Id — Ego — Superego), de um ponto de vista dinâmico. Tais exemplos nos mostram que, com respeito ao método, o modelo é mais uma interpre­ tação da teoria do que uma tradução da realidade, podendo, quanto ao real, consistir numa construção do espírito que, além de não correspon­ der exatamente a nada no real empírico, se erige em padrão em relação 54

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ao qual os objetos concretamente existentes são considerados “desvios” e explicados por ele, como no modelo do cristal ideal da cristalografia. A assinalar que, além dos modelos, as ciências operam com outras “ferramentas” de conhecimento, a exemplo dos laboratórios, dos reati­ vos químicos e dos instrumentos de precisão, oriundos de diferentes segmentos da tecnologia e confeccionados com a ajuda da própria ciên­ cia. A diferença dessas ferramentas, que se revelam em diferentes cam­ pos das ciências poderosos meios de objetivação, de descoberta e de justificação (prova), os modelos não se constituem diretamente como meio de demonstração ou de prova, mas propriamente como meio de conhecimento, seja ao orientar a pesquisa e ensejar uma descoberta, seja ao objetivar aspectos da realidade e ao formalizar (ou mesmo es­ quematizar) os vaticínios do pensamento sobre ela. Compreende-se, pois, o imenso valor heurístico dos modelos, cuja fertilidade cedo foi reconhecida pelos cientistas de diferentes campos do saber, a ponto de hoje não haver nenhum sábio que não se sirva deles, salvo os positivis­ tas que, mais ingênuos ou arrogantes, acreditam se relacionar direta­ mente com a realidade, et pour cause... Feitas estas considerações preliminares, passaremos agora a abor­ dar como se dá o uso dos paradigmas e dos modelos no campo das ciências humanas. A esse respeito, já demos uma pista ao leitor ao alu­ dirmos ao emprego de modelos por Freud no âmbito da psicanálise. Agora, é hora de estender nossas reflexões a outras disciplinas das ciên­ cias humanas, em vista de elucidar, de uma maneira menos tópica ou pontual, como se dá o uso de tais paradigmas e de tais modelos, em que eles consistem e com que fim ou escopo são empregados. Para tanto, vamos considerar na seqüência quatro paradigmas, as­ sim como um elenco de modelos de uso bastante corrente na sociolo­ gia, na história, na antropologia e na economia. Em primeiro lugar, na economia, o paradigma da produção e os modelos da economia mer­ cantil simples e da concorrência perfeita empregados por Marx (O capital). Em segundo lugar, na sociologia, o paradigma do corpo (orga­ nismo) e o modelo das formas elementares da vida religiosa utilizado por Durkheim (As formas elementares da vida religiosa). Em terceiro lugar, na história e na sociologia, o paradigma da ação e o modelo (tipo 55

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ideal) do protestantismo usado por Max Weber (A ética protestante e o espírito do capitalismo). Em quarto lugar, na antropologia, o paradigma da linguagem e o modelo fonológico empregado por Lévi-Strauss (An­ tropologia estrutural). Em todos esses casos, estamos diante de autores e de obras considerados autoridades e exemplares (“paradigmáticos”) em seus respectivos campos do saber, merecendo pois que lhes dedi­ quemos a mais viva das atenções. Isto, mesmo que não estejamos de acordo com eles, que de uma maneira ou de outra constituíram escola e são olhados até hoje como exemplos a ser seguidos tanto pela exce­ lência de sua personalidade (modelo de dedicação à ciência) como pela excelência de sua própria obra. A começar por Marx, de todos o mais desafortunado, o mais incom­ preendido, o mais citado e talvez o menos lido. Autor de horizontes largos e de espírito ousado, com destemor freqüentou as mais diferentes disciplinas das ciências humanas — a economia, a política, a história etc., para não falar da filosofia, que era outra de suas ocupações, impri­ mindo em todas elas as marcas de seu gênio. No caso da economia, que é a disciplina a que mais se dedicou, deixando essa obra genial que é O capital, Marx se serviu do paradigma da produção e de um conjunto de modelos com vistas a conferir inteligência às suas matérias. De tal pa­ radigma e desses modelos pode-se dizer que sua fertilidade foi reconhe­ cida mais tardiamente mesmo pelos inimigos de sua doutrina, ainda que algo embaralhada (a fertilidade) pela força dos acontecimentos que minaram suas idéias no curso do século XX, particularmente de­ pois da queda do muro e do colapso da ex-União Soviética. Na seqüên­ cia tentaremos, algo esquematicamente, dar uma idéia do paradigma seguido e dos modelos empregados por Marx n’0 capital. Dizíamos há pouco que o paradigma seguido em suas análises n’0 capital é o da produção. Cabe acrescentar que este paradigma não é exclusivo de Marx e, como todo paradigma, é um guarda-chuva que abriga outras teorias e outros autores, a exemplo de Ricardo e Smith, que sob ele expuseram suas teorias do valor-trabalho. Além do mais, embora seja partilhado por outros autores e abrigue outras teorias ri­ vais, é o uso de tal paradigma que distingue os procedimentos e a obra de Marx de outros economistas, que abordam as matérias econômicas 56

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do ponto de vista não da produção, mas do consumo e da distribuição, a exemplo dos marginalistas e mesmo de Ricardo, que no entender de Marx não é coerente a este respeito. Para se ter idéia do que a adoção desse paradigma significa, basta ter em mente a Introdução de 1857 e o capítulo V do livro I d’0 capital. Na Introdução de 1857, Marx mostra que a economia é uma tota­ lidade composta das esferas da produção, da distribuição, da troca e do consumo. E mais: que estas esferas se condicionam reciprocamente, que a produção é a condição do consumo e o consumo, a condição da produção, e que a primazia cabe à produção, pois sem a produção nenhum objeto pode ser distribuído, trocado e consumido, até mesmo o mel que o apicultor se limita a recolher — pode-se dizer —, na me­ dida em que, no caso, é a própria natureza que trabalha e o produz no lugar do homem. No capítulo V d’0 capital, Marx nos dá o esquema desse paradigma em sua forma mais elementar, esquema de resto comum a todos os modos de produção, e como tal abstraído dos elementos específicos que o particularizam no interior das sociedades históricas. Este esquema é o do trabalho ou do processo de trabalho, a envolver três elementos: o trabalho mesmo, o objeto de trabalho e o instrumento de trabalho. Segundo Marx, o que caracteriza o processo de trabalho em sua forma mais elementar é o fato de os elementos que o integram exerce­ rem funções diferentes, complementares e intercambiáveis, determi­ nando-se cada um deles menos pela sua positividade de coisa do que pelas funções que desempenha ou pelos lugares (posições) que ocupa no interior do dito processo: 1) o trabalho, definido como uma ativida­ de orientada, dispêndio de energia aplicada às coisas e metabolismo entre o homem e a natureza; 2) o instrumento de trabalho, como ter­ mo médio entre o trabalho e o objeto de trabalho, o qual canaliza o trabalho e modifica a coisa ao agir sobre ela; 3) o objeto de trabalho, por suas virtualidades, pela possibilidade de se converter em produto, num objeto apto para o consumo (valor de uso), e ainda de ser reposto num novo circuito produtivo como meio de produção. E, pois, o esquema do trabalho que especifica o paradigma da pro­ dução e dá a Marx, ao ser desenvolvido, tudo o de que ele precisa para 57

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efetuar a análise das diferentes sociedades históricas e seus respectivos modos de produção: 1) dá-lhe o objeto da análise, as esferas que o constituem, .os elementos que o compõem e suas infinitas formas de combinação: (a) a esfera da produção, e também a do consumo, da distribuição e da troca; (b) o produto (resultado e finalidade interna do processo de trabalho), seja na forma de valor de uso (ao ser consu­ mido diretamente por quem o produz), seja na de valor de troca (ao ser cambiado); (c) os meios de produção (pela combinação do instru­ mento e do objeto de trabalho); (d) as forças produtivas (pela combi­ nação da força de trabalho e do instrumento de trabalho); (e) as rela­ ções de produção (ao incorporar a figura de outrem: o parceiro das penas e das fadigas, o x anônimo a que o produto se destina, o Bourgeois e o Sieur que vivem das penas e das fadigas alheias, o capataz e seu chicote etc.); (f) o modo de produção (pela combinação das forças produtivas e das relações de produção); 2) dá-lhe o espaço abstrato da teoria e o princípio ordenador do discurso: a teoria do valor-trabalho (princípio ordenador: o trabalho como fonte da riqueza) e suas diver­ sas especificações em diferentes modos de produção e no interior de um mesmo modo de produção (corvéia, mais-valia, lucro, juro, renda etc.); 3) dá-lhe, enfim, o método de análise e as categorias com que operar o objeto da investigação: (a) a dialética (pois o objeto, ele mes­ mo é “dialético”: a economia e suas esferas); (b) as categorias de con­ tradição, determinação recíproca, mediação (a contradição valor de uso/valor de troca e forças produtivas/relações de produção; a intera­ ção trabalho/instrumento/objeto de trabalho ou produção/distribuição/ troca/consumo; o trabalho como mediação homem/natureza, o ins­ trumento de trabalho como mediação trabalho/objeto de trabalho, a troca como mediação produção/consumo). Tendo, portanto, o paradigma e seu esquema: o paradigma da pro­ dução e o esquema do processo de trabalho, Marx poderá estendê-los ao real empírico e preenchê-los com o conteúdo desse mesmo real empírico: questão de método, quer dizer, observação da realidade eco­ nômica, de trabalho das fontes históricas, de elaboração conceituai dos dados coletados e compilados, de verificação das hipóteses, de demons­ tração dos teoremas e de justificação das teorias. E aqui que entram os 58

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modelos — tanto para orientar a pesquisa como para validar os resul­ tados obtidos (pois, visando às essências das coisas, Marx concede aos modelos e a seus correlatos o status de meios de prova, conforme vere­ mos na seqüência). No caso da sociedade burguesa e do regime capi­ talista de produção, que são a única sociedade e o único modo de pro­ dução que Marx de fato tratou de conhecer a fundo, oferecendo-nos esta obra-prima do pensamento, ainda que inacabada, que é O capital, esses modelos (com a ressalva de que Marx nunca empregou o vocábu­ lo) são dois: 1) o modelo da economia mercantil simples, fundado na reprodução simples dos fatores de produção, sem alterar sua base física ou lhe acrescentar um valor adicional; 2) o modelo da concorrência perfeita, fundado no equilíbrio da oferta e da demanda e na identidade do valor e do preço. Tais modelos não são meros “decalques” do real, mas construções do espírito que só existem na teoria e que têm por função, não descrever o real empírico, mas justificar (dar razão) o que se pensa dele ou sobre ele (teoria). Assim, quanto ao modelo da concorrência perfeita, Marx escreve: “Em economia política está subentendido que elas [a oferta e a deman­ da — ID] coincidem. Por quê? Para estudar os fenômenos em sua for­ ma normal, adequada ao seu conceito, vale dizer, para considerá-los fora das aparências produzidas pela oscilação entre a oferta e a deman­ da; ademais, para poder descobrir e, por assim dizer, fixar a tendência real do movimento”2. Isso quer dizer que tal modelo é uma conjectura admitida ex-hypothesis pelo pensamento, e seu status, uma idealidade que só faz sentido na teoria e no interior do discurso em que é figurada. Para nos convencer disso, basta-nos ter em mente que, com base neste modelo, Marx postula que na economia capitalista não somente os produtos do trabalho se trocam contra seu valor, mas que nenhuma rotação de valor se dá nos elementos do capital produtivo. Esta postu­ lação se dá in abstracto e apesar da realidade, estando ele ciente de que ao nível do real empírico a todo momento o preço descola do valor, o preço de mercado dá lugar ao preço de monopólio e rotações hetero­ gêneas e assimétricas do capital ocorrem a todo instante. Contudo, em 2. M a rx , K. Le capital (livro III, tomo 1). Paris, Ed. Sociales, 1971, 205. 59

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teoria tudo se passa como se não fosse assim, e nela é o modelo ideal que explica o desvio, e não o inverso. Quanto, enfim, ao modelo da economia mercantil simples, sua natureza conjectural e seu status ideal ficam evidenciados no livro II, onde Marx, como viu Godelier, após examinar a hipótese da reprodu­ ção simples que o nucleia ao longo das cem páginas a ela consagradas n’0 capital, mostra que a economia mercantil simples é incompatível com o capitalismo e, ainda, que tal economia nunca existiu! Compreende-se, pois, que esta hipótese tenha sido abandonada na seqüên­ cia por Marx, e a razão invocada não poderia ter sido mais forte: incom­ patível com o capitalismo! Contudo, tal abandono não significa que Marx lhe tenha reservado uma função puramente negativa na econo­ mia do discurso ou que tenha esvaziado ou diminuído seu papel (por­ que subjetiva e ficcional): simplesmente Marx lhe confere o papel, relevante sem dúvida, de mostrar a forma de reprodução compatível com o sistema capitalista: a reprodução ampliada3. D aí seu valor heu­ rístico e sua função epistêmica na economia do discurso: não é nada, não é nada, serve ao menos para “dar razão” às ilações do pensamento e justificar nossos vaticínios sobre o real empírico ele mesmo. Tendo esclarecido esses pontos, cabe acrescentar que, a par do paradigma-objeto e do paradigma-teoria, há bem um paradigma-disciplina, segundo Marx: fundada com a ajuda da história e da dialética, a própria economia (ou economia política) se converterá em ciência paradigmática, assumindo, junto com esta credencial, no quadro do materialismo histórico, o papel de disciplina-piloto das ciências huma­ nas. Tal é sua proeminência, que dará margem às conhecidas acusa­ ções de economicismo, além de reducionismo (redução da práxis ao trabalho), devido ao primado da infra sobre a superestrutura e das for­ ças produtivas sobre as relações de produção. Passemos a Weber e ao paradigma que abriga a sua teoria: o para­ digma da ação. Para aquilatar o que vem a ser tal paradigma, sua exten­ são e seu alcance, basta ter em mente que ele recobre toda a obra de Weber, desde a economia e o direito até a sociologia e a história. Por 3. GODELIER, M . Rationalitéetirrationalitéenéconomíe (v. 2). Paris, M aspero, 1983, 39.

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ação entende ele não o trabalho à maneira de Marx, que é apenas um aspecto dela, nem sequer um comportamento não motivado pela cons­ ciência, a exemplo das pulsões em Freud e do estímulo/resposta dos behavioristas, mas uma ação dotada de sentido e orientada teleologicamente. A ação é o paradigma (mais precisamente a ação racional orien­ tada por fins e ajustada aos meios), o paradigma por excelência segun­ do Weber, na medida em que ela lhe dá tudo de que ele precisa para levar a cabo suas investigações: 1) dá-lhe o princípio ordenador do dis­ curso (teoria) que recobre todas as estruturas, instituições e atividades do mundo dos homens, os quais são ao mesmo tempo, como diz Julien Freund, “o seu obreiro e o dono das suas significações”: a ação; 2) dálhe o objeto em seus múltiplos aspectos sobre o qual vai recair a inves­ tigação: a atividade afetiva, de interesse do psicólogo e do criminalista; a atividade racional por valor, de interesse do filósofo e do moralista; a atividade racional por finalidade, de interesse do sociólogo e do econo­ mista — todas afetas a cada um deles, economistas, juristas, psicólogos etc., embora não exclusivamente; 3) dá-lhe, enfim, o método de análi­ se e as categorias com que operar, consoantes à natureza do objeto da investigação: o método da interpretação ou hermenêutico, que cuidará de captar o sentido da ação, combinando os elementos da compreen­ são (entropatia, revivescência, intuição, cujos componentes deverão ser elaborados) aos elementos da explicação (a imputação causal, por exem­ plo), bem como identificando o sentido que os agentes conferem à ação, os motivos que a deflagram, os meios por eles mobilizados e os fins a que eles visam. Já por modelo ele entende o tipo ideal. Trata-se, no caso, não de um decalque, de um resumo, de uma abreviação do real, mas de uma “construção” do espírito, de um “quadro mental” que o cientista ela­ bora para orientar sua pesquisa e co-validar os resultados obtidos em sua investigação. A necessidade da criação do tipo se impõe, por um lado, em virtude da natureza mesma do método das ciências culturais (nem exclusivamente generalizante, nem exclusivamente individualizante, mas uma combinação dos dois: é necessário, pois, elaborar es­ quemas para ajustá-los); por outro lado, em função da exigência de maitriser ou controlar o próprio objeto de análise, o qual em sua singu­ 61

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laridade irredutível, em sua dispersão infinita e em sua profusão de significações, sem nenhum trabalho do pensamento para ordená-lo, simplesmente se desintegraria e levaria a investigação à ruína (é neces­ sário, pois, um quadro mental homogêneo para pensá-los). Quanto ao modo de elaborar os tipos ideais, não sendo um resumo ou um arqué­ tipo, eles serão obtidos menos traçando a média ou fixando o estado ótimo do que acentuando, diminuindo e variando os diferentes aspec­ tos de uma multidão de fenômenos e acontecimentos do mundo dos homens, até estabilizá-los num quadro mental homogêneo. E o que afirma Weber numa passagem de seus estudos consagrados à metodo­ logia das ciências culturais, a qual não deixa a menor dúvida a este respeito: “Obtém-se um tipo ideal”, escreve Weber, “mediante a acentua­ ção unilateral de um ou de vários pontos de vista e mediante o enca­ deamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de formarem um quadro ho­ mogêneo de pensamento”4. Na obra de Weber vamos encontrar dezenas de tipos ideais elabo­ rados segundo os procedimentos que acabamos de evocar: o tipo ideal da burocracia, da dominação, do capitalismo etc. Outros tantos pode­ riam ser criados: o tipo da civilização teocrático-religiosa dos persas, o tipo da civilização laico-republicana dos helenos, o tipo da república dos romanos e dos florentinos etc. Em todos esses exemplos, os tipos ideais consistiriam numa espécie de esquema racional que se recuaria em relação ao real empírico, pondo-se ao abrigo de suas flutuações e de suas contingências perturbadoras, para melhor dominá-lo intelec­ tual e cientificamente. Em todos igualmente, os tipos não desempe­ nhariam a função nem de fins do conhecimento, nem de meios de pro­ va ou demonstrações propriamente ditas, mas de instrumentos de conhecimento, em si mesmos nem verdadeiros nem falsos, porém, 4. WEBER, M. “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência política” , in M etodologia das ciências sociais (parte 1). C am pin as/São Paulo, Ed. UN ICAM P/Cortez, 1993, 137-138. 62

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como toda ferramenta, úteis ou inúteis, a depender do escopo e da habilidade do operador. Para termos uma idéia do uso concreto de um tipo ideal por Max Weber, tomaremos como ilustração um exemplo emblemático que apa­ rece em sua obra genial A ética protestante e o espírito do capitalismo, cuja fertilidade cedo foi reconhecida pelos especialistas, salvo pelos positivistas e marxistas, que preferiram ver nesse expediente uma som­ bra de idealismo. O exemplo em apreço é o tipo ideal do protestantis­ mo, que Weber define como “ascetismo secular”. Tal tipo, em seu entendimento, não se realiza no luteranismo, por causa da centralidade que ocupa na doutrina de Lutero a idéia de fé, por demais subjetiva e impalpável. Porém, manifesta-se enquanto “variações” desse tipo ideal em quatro representantes do protestantismo ascético: 1) o calvinismo; 2) o pietismo; 3) o metodismo; 4) as seitas batistas. Quanto à qualifica­ ção de “ascetismo secular”, este traço definidor se justifica porque o protestantismo enquanto doutrina e enquanto práxis implica um ideal ascético e uma opção pelo “mundano” (de século = tempo = mundo): 1) ideal ascético, porque contrário aos prazeres, guiado por uma disci­ plina do corpo é da mente; 2) opção pelo mundano, porque sua esfera de ação é o mundo, o mundo do trabalho, e não a “saída do mundo” e a “recusa do mundano”, como no caso dos monges. Por fim, esclarecido o modelo (tipo ideal) e evidenciado o paradig­ ma (paradigma-objeto e paradigma-teoria), concluiremos nossas consi­ derações dizendo que não há exatamente um paradigma-disciplina ou uma disciplina-piloto em Max Weber. Procurada a disciplina paradig­ mática do lado da história (historiografia), ela não será encontrada, ainda que o pensador se reconheça como membro da escola histórica alemã: simplesmente, a história é um campo do conhecimento, antes de ser uma disciplina ou algo exclusivo de uma disciplina; não é visada como objeto, mas como meio de conhecimento, integrando ao método co­ mo um de seus componentes, cujo complemento vai ser justamente as considerações anti ou a-históricas da sociologia, da economia e do di­ reito, com seus aparelhos conceptuais e seus tipos ideais. Procurada a disciplina-piloto do lado da sociologia, lá não será encontrada, visto que a sociologia não está fundada, terá de ser fundada, devendo ampa­ 63

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rar-se em sua fundação sobre um corpus de disciplinas das ciências sociais e, no fim do processo, figurar na arquitetônica das ciências hu­ manas, não como sua base ou seu alicerce, mas como o topo do edi­ fício e seu arremate. Quanto a Durkheim, o paradigma é o corpo, não o corpo físico (a matéria), mas o corpo-orgânico (organismo), que ele toma de emprés­ timo da biologia e o adapta às necessidades da sociologia. A exemplo da ação em Weber e da produção em Marx, o paradig­ ma do corpo dá a Durkheim tudo o de que ele precisa para levar a cabo suas investigações em diferentes âmbitos da sociologia, desde a sociologia do trabalho até a sociologia da religião: a condição é que nele se introduzam alguns elementos específicos do organismo so­ cial, tais com o a consciência coletiva, os valores comunitários e as normas morais. Satisfeita esta condição, o dito paradigma dá-lhe o princípio ordenador da teoria: o organismo, vale dizer, o órgão e suas funções (a so­ ciedade é um organismo, seus órgãos são as instituições: família, Igreja, Estado etc.) e a função desses órgãos é satisfazer as necessidades do organismo social: assegurar a permanência da sociedade, a coesão do to­ do social, a solidariedade das partes que o compõem. Dá-lhe também o objeto da investigação: o organismo social, que é uma “coisa” sui generis (dotada de exterioridade, de coercitividade e de heteronomia, como as coisas naturais, e também de, interioridade, de plasticidade e de autonomia, como a consciência coletiva, que é introjetada pelo indivíduo, como a solidariedade social, que de me­ cânica se converte em orgânica, e a norma moral, que obriga in foro interno, depende do assentimento do indivíduo, pode ser transgredida por ele e simplesmente não se adequar às necessidades sociais, gerando a anomia). E mais: uma coisa cujas partes são solidárias (não um agre­ gado de partes extrapartes) e cujo conjunto é irredutível à soma dos indivíduos que o compõem (segundo Durkheim, as propriedades da sociedade são distintas das propriedades dos indivíduos que se combi­ nam para formá-la, da mesma forma que as propriedades da água são diferentes das propriedades do hidrogênio e do oxigênio considerados isoladamente: dois gases, ao passo que a água não é um gás, e que a

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dureza do bronze não está nem no cobre, nem no estanho e nem mesmo no chumbo, que são seus ingredientes e se caracterizam por sua malea­ bilidade, mas na mistura5). Dá-lhe enfim o método de análise, as categorias com que operar e as regras a seguir, a saber: 1) o método de observação objetiva e de coleta de dados; 2) as categorias de grupo, de função e de causação que vão elaborá-los, classificá-los e ordená-los; 3) as regras: (a) de tomar os fatos sociais como coisas, afastando as idéias prévias e concepções a priori, visando-os como matérias da observação e da experiência (dados de fato ou de realidade) e agrupando-os segundo suas características exteriores comuns; (b) de determinar o sistema de necessidades e de coerções dos fatos, agentes e instituições sociais, fixar as funções que eles exercem nas coletividades humanas, afastar o móvel e o motivo que os acompanham e subsumi-los às leis gerais que os regulam ou os governam. Quanto ao emprego de modelos por Durkheim, se é que tem sen­ tido falar de uso de modelos em sua obra, ele, que é um positivista, com certeza não há de ser o modelo-constructo ou o modelo-ideal, mas o modelo-decalque ou o modelo-arquétipo, visto que o sociólogo oscila, pensando-o seja como cópia do real, seja como sua expressão abreviada, seja como o original ou o protótipo de uma série qualquer da realidade. Tal é o caso das “formas elementares da vida religiosa”, figura que Durkheim elabora a partir do sistema religioso das tribos australianas — o totemismo —, a julgar pelo que ele afirma na introdução e na conclu­ são do livro. Na introdução, onde observa que as religiões primitivas, cujos elementos de doutrina e práticas ritualísticas ele visa elucidar, “são rudimentares e grosseiras; portanto, não poderia ser o caso de fazer delas modelos que as religiões ulteriores se limitariam apenas a repro­ duzir. Mas sua própria grosseria as torna instrutivas; pois elas consti­ 5. Encontramos implícito nas considerações e nos exemplos de Durkheim um tema especialmente caro às ciências contemporâneas: as propriedades emergentes. Conside­ ramos, todavia, que o paralelismo do bronze e da água não é perfeito: enquanto a água não guarda as características dos componentes (estes não estão reunidos, mas combina­ dos), o bronze as conserva (trata-se de um a reunião de propriedades, dependendo a consistência da proporção dos componentes, além da mistura referida pelo sociólogo). Caberá então decidir qual é, com efeito, o paradigma da sociedade, considerada do prisma das propriedades emergentes: o bronze ou a água? 65

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tuem assim experiências cômodas, onde os fatos e suas relações são mais fáceis de perceber. O físico, para descobrir as leis dos fenômenos que estuda, procura simplificá-los, desembaraçá-los de seus caracteres secun­ dários. No que concerne às instituições, a natureza faz espontaneamen­ te simplificações do mesmo gênero, no começo da história. Nós apenas queremos tirar proveito disto”6. Na conclusão, onde sentencia que, como se sabe, “até um momento relativamente avançado da evolução, as re­ gras da moral e do direito não se diferenciavam das prescrições rituais. Portanto, pode-se dizer, resumindo, que quase todas as grandes institui­ ções sociais nasceram da religião. Ora, para que os principais aspectos da vida coletiva tenham começado por aspectos variados da vida religio­ sa é preciso evidentemente que a vida religiosa seja a forma eminente e como que uma expressão abreviada da vida coletiva inteira. Se a reli­ gião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é porque a idéia de sociedade é a alma da religião”7. D e modo que nessas duas passagens ficam evidenciados a natureza do modelo da forma elemen­ tar da vida religiosa e seu caráter ambivalente, cuja ambigüidade Durkheim não soube ou não pôde afastar: por um lado, trata-se de um modelo-real, por se referir ao real e por ser um “resumo” do real; por outro, trata-se de um arquétipo, a expressão de um estado ótimo ou de uma forma eminente, o original de uma série do real, a expressão abreviada da vida coletiva inteira, e também a expressão de um estado mínimo ou elementar que o estado mais avançado não poderia limitar-se a repro­ duzir nem a imitar, bem como não poderia ser explicado por ele, por conta da introdução de novidades de todo tipo no decurso da evolução das coisas8. Ou seja: numa acepção, prevalecendo a idéia de arquétipo, de eminência, de estado ótimo; noutra, enfraquecendo o arquétipo, diminuindo a eminência e prevalecendo o decalque (cópia), que deve­ rá ser ampliado para dar conta das formas mais complexas. 6. DURKHEIM, E . “As formas elementares da vida religiosa”, in Durkheim. São Pau­ lo, Abril Cultural (col. Os Pensadores), 1978, 210. A referência do original francês, também consultado, é DURKHEIM, E . Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, Librairie Générale Française, 1991, 50. 7. Ibid., 224; 697 para a edição francesa. 8. Ib id ., 2 1 0 ; 51 p a r a a e d iç ã o fra n c e sa .

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Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

Para dar ao leitor uma idéia do que vem a ser a forma elementar da vida religiosa, forma presente em todas as religiões — das mais primi­ tivas, em que aparece em estado puro, às mais desenvolvidas, em que aparece modificada e mesclada com outros elementos, novos —, vamos citar uma passagem, que vem logo no primeiro parágrafo da conclusão do livro, na qual Durkheim assinala seus traços fundamentais: “Por mais simples que seja o sistema que estudamos [o totemismo - ID], nós re­ encontramos nele todas as grandes idéias e todas as principais atitudes rituais que estão na base das religiões mais avançadas: distinção das coisas entre sagradas e profanas, noção de alma, de espírito, de persona­ lidade mística, de divindade nacional e mesmo internacional, culto negativo com as práticas ascéticas que são sua forma exasperada, ritos comemorativos, ritos de expiação. Aqui nada falta de essencial”9. A assinalar que tal modelo, sendo um decalque e um arquétipo, vale como meio de prova e de demonstração. Nisso consiste sua prin­ cipal diferença com respeito ao modelo-constructo ou ao modelo-ideal empregado por Weber. Tanto é assim que Durkheim logo depois, no segundo parágrafo, em que pese reconhecer que sua base indutiva é algo estreita, por apoiar-se em um só caso, assevera que tal forma pode ser estendida a todas as religiões e nos ajudar a compreender o que é a religião em geral. Afinal — argumenta o sociólogo —, “quando uma lei foi provada por uma experiência bem feita, esta prova é universal­ mente válida”, e conclui: “uma indução desta natureza, tendo por base uma experiência definida, é menos temerária que tantas generaliza­ ções sumárias que, tentando atingir de uma só vez a essência da reli­ gião sem apoiar-se na análise de nenhuma religião em particular, arris­ cam-se muito a perder-se no vazio”10. A exemplo de Max Weber, na seqüência de nossas investigações voltaremos a examinar o emprego dos paradigmas e dos modelos por Durkheim, quando aprofundaremos a análise e faremos um balanço dos resultados a que o sociólogo francês chegou no Suicídio e nas For­ mas elementares. O ponto que falta esclarecer, tendo reconhecido o 9. Ibid., 221; 691 para a edição francesa. 10. Ibid., 221; 692 para a edição francesa. 67

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paradigma-teoria e o paradigma-objeto em sua obra, é se há uma disciplina-piloto ou paradigmática. Diremos, antecipando tópicos que serão tratados mais à frente, que há, sim, e de uma dupla maneira: antes da fundação da sociologia, há o paradigma da física e, melhor ainda, da biologia, ela mesma fundada na física; depois da fundação, é a sociolo­ gia que se converterá em disciplina-piloto das ciências humanas, levan­ do à anexação de outras disciplinas e dando margem às acusações de sociologismo e imperialismo. Por fim, o paradigma de que se serve Lévi-Strauss é o paradigma da linguagem, que ele busca na lingüística e o estende à antropologia. Tal paradigma foi criado pela chamada lingüística estrutural com base na obra de Saussure (Cours de linguistique générale) e também em um conjunto de trabalhos no campo da fonologia, desenvolvidos especialmente por Troubetskoy e Jakobson. Da obra de Saussure, Lévi-Strauss retém a famosa distinção intro­ duzida pelo Cours segundo a qual a linguagem se compõe de dois níveis distintos e sobrepostos: 1) a esfera da língua (langue), que é da ordem do sistema e está afeta ao código lingüístico (estrutura) e, en­ quanto tal, intemporal, a-histórica e irreversível; 2) a esfera da fala (pa­ role), que é da ordem do evento e refere-se à sua execução pelos falan­ tes e, enquanto tal, temporal, histórica e reversível. Da fonologia, a par da noções de sistema e de inconsciente, que também se encontram em Saussure (afinal o código lingüístico não depende da consciência e do pensamento dos indivíduos), Lévi-Strauss retém a idéia de que a linguagem é constituída de um conjunto de unidades discretas (os fonemas: vogais e consoantes), porém agrupa­ das e inter-relacionadas, de sorte que na análise dessas unidades devese considerar não os termos, mas as relações entre os termos e as rela­ ções das relações11. Contudo, a extensão dessas idéias à antropologia não se deu de modo mecânico e imediato, visto que seu objeto, a exemplo do mito e das relações de parentesco, não tem uma existência puramente lingüís­ 11. Para o m odelo fonológico, ver LÉVI-STRAUSS, C . “Prefácio”, in JAKOBSON, R. Seis lições sobre o sentido. Lisboa, Moraes Editores, 1977. 68

Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

tica, mas também sociológica — daí a necessidade de modificar alguns elementos do paradigma e introduzir outros, novos, para adaptá-lo às necessidades da antropologia. A primeira dessas modificações consistiu em introduzir um tercei­ ro nível da linguagem, para além da distinção entre a língua e a fala postulada por Saussure. Este nível veio a ser, ainda que Lévi-Strauss não o formule explicitamente, a instância do discurso, onde se aloja o mito, por exemplo (pois o mito é uma narrativa) — instância que com­ bina as propriedades do pensamento e da linguagem, da língua e da fala, do temporal e do atemporal (segundo Lévi-Strauss, o valor intrín­ seco atribuído ao mito provém do fato de que os acontecimentos nar­ rados, que supostamente se desenvolvem no tempo, formam uma es­ trutura permanente que se relaciona simultaneamente com o passado, o presente e o futuro). A segunda dessas modificações consistiu em tomar os elementos do discurso não como signos ou imagens acústicas, mas como símbo­ los, nos quadros de uma semiótica geral, da qual fariam parte a econo­ mia, a lingüística e a própria antropologia. No caso do mito e das rela­ ções de parentesco, tal proposta implica tomá-los não como meros ter­ mos lexicais, mas como símbolos dotados de sentido, cuja mensagem e cujo conteúdo cabe ao analista decifrar. A terceira dessas modificações, desta feita no nível do plano da análise e das unidades distintivas, consistiu em postular: Io) que o nível próprio da análise do discurso ou da narrativa mítica não é nem o signo nem a palavra, mas a frase (uma frase ou uma combinação de frases) ou mesmo o discurso (mito) inteiro; 2o) que as unidades distintivas do discurso (mito) não são nem os fonemas, nem os morfemas, nem os semantemas, mas os mitemas, no caso dos mitos, obtidos a partir da combinação de frases em que se dão suas ocorrências (alto/baixo, natu­ reza/cultura, céu/terra, animais/plantas, homens/deuses, relações de parentesco sobrevalorizadas/relações de parentesco subvalorizadas etc.). Feitas essas adaptações, o paradigma da linguagem dá a Lévi-Strauss tudo de que clc precisa para levar a cabo suas investigações nos mais diferentes âmbitos da antropologia, recobrindo desde as relações de parentesco, passando pelo sistema de classificação dos selvagens, até as 69

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diferentes modalidades do mito. Dá-lhe, em primeiro lugar, o princí­ pio ordenador do discurso (teoria): a linguagem (o homem é um ser de linguagem e suas produções são símbolos). Dá-lhe, em segundo lugar, o objeto da investigação: o mito, as relações de parentesco, o totemismo, o sistema de classificação (todos são linguagem: símbolos, termos, totens, taxinomias). Dá-lhe o método de análise e as categorias com que operar o objeto: o método é a lógica binária dos pares opostos, que associa a álgebra das relações à combinatória dos símbolos; as catego­ rias são da ordem da conjunção, da disjunção e da mediação, que vão elaborar as conexões, as oposições e as sínteses no nível do discurso (a lembrar que os elementos do mito, mais do que unidades distintivas, são unidades opositivas: alto/baixo, céu/terra, homens/deuses, homem/ mulher, cru/cozido etc., e todo o esforço a ser feito consistirá em intro­ duzir as mediações que permitam resolver as contradições: o assado e o defumado como formas intermediárias entre o cru e o cozido; o as­ sado pela mediação do fogo, o defumado pela mediação do ar). Quanto aos modelos empregados por Lévi-Strauss, pode-se dizer que eles são antes de tudo os modelos-ideais ou os modelos-constructos, entendidos como criações do espírito, e não os modelos-arquétipos ou os modelos-decalques, pensados como o original de uma série ou a cópia da realidade. Para a sua construção, quatro condições devem ser satisfeitas12: 1) a sistematicidade: os elementos que os compõem devem estar de tal forma articulados entre si, que a modificação de qualquer um deles acarreta a modificação de todos os outros; 2) a pertença a um grupo de transformações: devem ser capa­ zes de abarcar as variações e as transformações dos elementos (variantes); 3) a previsibilidade quanto à forma pela qual reagirá o modelo, em caso de modificação de seus elementos; 4) a exaustividade: o modelo deve ser construído de tal forma que possa dar conta de todos os fenômenos estudados. 12. Cf. F a g e s , J. B. Comprendre Lévi-Strauss. Toulouse, Edouard Privât Éditeur, 1972, 55-56.

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Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

Com o todo artefato (ferramenta), o modelo é construído mediante o emprego de objetos, o uso de instrumentos e sob os auspícios (dire­ ção) de um artífice: os objetos são os elementos da realidade (dados empíricos), os instrumentos são os esquemas lógicos do pensamento e o artífice, o espírito (homem). A sua função é contrastar o real e a teoria; o seu escopo, revelar as estruturas do real. Cabe perguntar — como de resto o faz Lévi-Strauss —: qual é então a relação entre o mo­ delo, a estrutura e a realidade? Para ter uma idéia dessa relação, vamos apresentar na seqüência um diagrama proposto por Yvan SimonisB, que é um grande especialis­ ta da obra de Lévi-Strauss e que melhor do que ele nos ajuda a com­ preender a relação entre o modelo, a teoria e a realidade:

Onde14: 1) o eixo O E representa o nível da realidade empírica observável; 2) as setas apontadas para o pólo N representam a construção ló­ gica do modelo sob o estímulo dos fatos observados; 3) a seta N S designa a experimentação e a reflexão estruturais. Obs.: No caso, a experimentação (verificação) consistirá em re­ montar do ponto S à linha O E, e será considerada bem-sucedi­ da a operação em que N (modelo) e S (estrutura profunda) coincidem. Dito isso, cabe acrescentar que Lévi-Strauss distingue dois tipos de modelos de largo uso pelas ciências, sejam elas naturais ou humanas: 13. Ibid., 56. A obra de Y. Simonis é Claude Lévi-Strauss ou la “Passion de l’inceste”. Paris, Aubier-Montaigne, 1968, na qual o diagrama e os comentários abaixo, n. 14, aparecem respectivamente nas pp. 175 e 176. 1 4 .Ibid. 71

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1) os modelos mecânicos, que operam por dedução e na escala dos fenômenos, como — pode-se dizer — no modelo mecânico do movi­ mento da física teórica; 2) os modelos estatísticos, dos quais se pode dizer — a despeito de falta de precisão de Lévi-Strauss ao caracterizálos e de sua reserva em relação à estatística — que operam por amos­ tragem, com a ajuda da indução e mediante um corpus mais reduzido, por exemplo uma amostra de 1.000 narrativas míticas para uma escala de centenas de milhares15. Tal seria o caso das Mitológicas, obra em que Lévi-Strauss analisa mais de 800 mitos das Américas do Norte e do Sul, para uma escala evidentemente muitas vezes maior, em cuja análise o leitor não encontrará nem tabelas nem cálculos estatísticos, mas que o autor chama de variantes do modelo topológico de estrutu­ ra, que, como o modelo mecânico, nos permite operar na escala dos fenômenos em sua totalidade. Além do mais, Lévi-Strauss emprega nas análises dos mitos ameríndios, como em O cru e o cozido e nas Maneiras sobre a mesa, um conjunto de modelos forjados em analogia com os modelos fonológicos, a exemplo do triângulo culinário cru/ cozido/podre, que é uma derivação dos triângulos vocálico e consonântico de Jakobson.

Normal (Não elaborado) (Não m arcado)

/ \

NATUREZA

CULTURA

Estado do Material (Grau de elaboração)

CRU

\ / Transportado (Elaborado) (Marcado)

COZIDO

TRIÂNGULO CULINÁRIO (LÉVI-STRAUSS)

15. Ib id ., 57.

72

PODRE

Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

Compacto

GRAVE / (BAIXA _ FREQÜÊNCIA) \

INTENSIDADE

->

AGUDA (ALTA FREQÜÊNCIA)

A (K)

Volume (Energia do ruído)

\ / Difuso

U (P)

I (T)

TRIÂNGULOS PRIMÁRIOS VOGAL-CONSOANTE (JAKOBSON)

Por fim, Lévi-Strauss emprega na análise do mito de Édipo, numa obra escrita antes (Antropologia estrutural) e com uma amostragem bem menor (uma versão apenas!), outra variante do modelo fonológico, desta feita sem qualquer menção ao triângulo de Jakobson, mas a jogos de cartas e partituras musicais, que de per si não têm nada a ver com os fonemas. Contudo, é bem o modelo fonológico que orienta a análise, ainda que implicitamente, a julgar pelo método utilizado, cujo escopo é fixar as unidades distintivas do mito famoso: os mitemas. Por isso, pode-se dizer que o modelo fonológico, entendido quer como variante do modelo estatístico, quer como variante do modelo topológico da estrutura, é o modelo empregado por Lévi-Strauss na análise do mito, como observa Thomas Pavel16. Contudo, não tal qual, mas adap­ tado e retificado, pois o nível em que Lévi-Strauss se coloca e o plano da linguagem a que o aplica não é propriamente fonológico, porém semântico, onde o importante é menos o som ou a matéria fônica que a sua significação (sentido). Para compreender como Lévi-Strauss efetua suas análises, vamos nos reportar ao mito de Édipo trabalhado por ele no capítulo XI da Antropo­ logia estrutural, que tem por título “A estrutura dos mitos” 17. Com o se sabe, qualquer que seja o objeto a que se aplica — o apa­ relho psíquico, a linguagem, o mito etc. —, o objetivo da análise estru16. PAVEL, Th. A miragem lingüística. Cam pinas, Pontes Editores, 1990, especial­ mente 45-58. 17. LÉVI-STRAUSS. Anthropologie structurale, v. I. Paris, Plon, 1974. 73

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hiral é o mesmo: descobrir as estruturas profundas, para além da super­ fície manifesta em que se dão as ocorrências e se dispõem os fenômenos. Para se chegar a essa estrutura que se encontra escondida — estru­ tura profunda —, é preciso antes de mais nada imaginar o que ela seja e elaborar um método que nos leve até ela. Uma boa figuração da estrutura e de seu acesso nos dá o alvéolo de uma colméia (o exemplo é nosso): 1) encontra-se escondido dentro da casca que o envolve e não estampado e manifesto; 2) para se chegar a ele e ver como ele é, deve-se partir a casca e seccioná-la; 3) sua figura­ ção é de uma superfície contínua e segmentada por sulcos. Outra boa figuração da estrutura, desta feita mais abstrata, e do método de nos levar até ela — método este mais indireto, por meio de laboratórios e instrumentos especializados —, são as estruturas do dia­ mante e da grafita (exemplos nossos). No caso, placas de carbono em que um mesmo elemento (carbono) é combinado de diferentes manei­ ras e gera estruturas diferentes: estrutura tetraédrica para o diamante; placas hexagonais sobrepostas para a grafita.

Diamante

Algo ao mesmo tempo parecido e diferente ocorre com a estrutura do mito — estima Lévi-Strauss. Parecido quanto ao modo de figurá-la, porque também ela se aloja em algum lugar escondido, situado num nível abaixo da superfície ma­ nifesta da narrativa, povoada de ocorrências arbitrárias, de eventos con-

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Paradigmas c m odelos nas ciências hum anas

traditórios e de ações aleatórias, e desde logo não pode ser seu lugar. Este lugar, não sendo a letra ou a palavra, só pode ser o espírito — acre­ dita Lévi-Strauss — .espírito, vale dizer pensamento, que a comandaria desde dentro e seria, pois, o princípio ordenador da narrativa nos mais variados planos que ela recobre ou abarca (cosmológico, sociológico etc.), conferindo suas coações inteligência às ocorrências e necessida­ de às ações que nela se desenvolvem. Diferente, porque sua figuração não se dá à maneira de uma su­ perfície contínua e segmentada em sulcos, nem ao modo de camadas paralelas ou tetraédricas, mas pela combinação dos elementos e sua disposição em pares de oposição (pois todo mito trabalha com os mes­ mos elementos, combina-os de diferentes maneiras e os dispõe em um sistema de oposições: “no princípio era o caos, o céu não estava sepa­ rado da terra, nem o sol da lua, não havia noite, não havia dia, e os deuses viram que assim não podia ser” — eis a forma canônica dos mitos cosmogônicos). Tal foi, portanto, a hipótese de Lévi-Strauss: por trás das aparências contraditórias do mito há uma estrutura lógica, e essa estrutura é a do próprio espírito humano. Já o fato que o levou a suspeitar, primeiro, a julgar plausível, depois, e a postular, enfim, a existência desta estrutura se enraíza na constatação por demais eviden­ te de que, em que pese sua aparente arbitrariedade, os mitos se asseme­ lham de um canto a outro da terra — dos bororós do Brasil aos aborí­ gines da Austrália. Parecido quanto ao método de nos levar até ela, porque o caminho a ser percorrido consistirá em introduzir um recorte (seccionamento) no real, em recuar mais aquém da superfície lisa dos fenômenos, em fazer um inventário das ocorrências, em reduzir os dados aparentemente arbitrários a uma ordem profunda, em construir quadros (modelos) que revelem essa ordem e traduzam a estrutura que lhe subjaz. No caso do mito, que não tem a exterioridade da colméia, nem a objetividade do diamante e da grafita, o modo de se chegar à sua estrutura, embora análogo à modalidade do apicultor e à do químico, será um tanto dife­ rente, devido à natureza de seu objeto. Da mesma forma, conforme viu Lepargneur, o modo de interpretá-la será distinto das diversas aborda­ gens das diferentes disciplinas e correntes da filosofia e das ciências

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Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

humanas, ao se ocuparem do mito, como: 1) a abordagem da psicolo­ gia social, que acredita que os mitos seriam reveladores dos sentimen­ tos profundos de uma dada sociedade; 2) a da fenomenologia e da her­ menêutica, para as quais os mitos seriam tentativas de explicação de certos mistérios da realidade e evocariam a presença do sagrado no mundo; 3) a dos marxistas e funcionalistas, segundo os quais os mitos refletiriam a estrutura da sociedade e seriam uma espécie de cimento das relações sociais, contribuindo para a coesão do todo; 4) a da psico­ logia jungiana, que acredita que os mitos emanariam de sentimentos recalcados e de arquétipos primitivos. Simplesmente, sendo as ocor­ rências do mito da ordem do discurso (narrativa) e seu elemento pró­ prio o símbolo, o qual de resto tem mais densidade ontológica do que os objetos da realidade que ele designa, a estrutura deverá ser procura­ da no interior do discurso e sua interpretação deverá dar-se segundo as coações do próprio discurso — estima o antropólogo. Para ser levada a cabo, a primeira condição requerida consistirá em tomar as diferentes narrativas míticas tais como elas aparecem e analisálas tais quais, em si, por si e entre si, segundo suas organizações inter­ nas e suas transformações recíprocas, sem qualquer alusão às motiva­ ções que elas patenteiam, aos mistérios que evocam, aos sentimentos que carregam, às funções sociais que exercem. A segunda condição consistirá em decompor as narrativas em unidades de base: as frases, segundo a ordem das ocorrências, as unidades distintivas e opositivas, as conjunções e as disjunções, as mediações e as sínteses efetuadas. A terceira condição consistirá em edificar o quadro dos elementos paradig­ máticos, das variantes e das permutações. E então que se chegará à estrutura do mito e a seu algoritmo (lei), quando finalmente ele será explicado e seu sentido, interpretado. No caso do mito de Edipo, que Lévi-Strauss analisa na Antropologia estrutural, o caminho percorrido é bem a via da decomposição do mito em mitemas, de que falamos antes, e do qual ele vai distanciar-se nas Mitológicas, que quase não fala daquelas unidades elementares. Para tanto, na Antropologia, ao se ocupar do mito famoso, ele trata de segmen­ tar a cadeia sintagmática em que aparecem os incidentes e os persona­ gens do mito numa seqüência de frases redigidas do modo mais curto e 76

Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

simples possível. Esses segmentos, familiares a todo mundo que conhece o mito, são oito, distribuídos segundo Leach18 na seguinte ordem: 1) Cadm o procura sua irmã Europa, raptada por Zeus; 2) Cadm o mata o dragão; 3) Os Spartói se exterminam mutuamente; 4) Édipo mata seu pai, Laio; 5) Édipo imola a Esfinge; 6) Édipo esposa Jocasta, sua mãe; 7) Etéocles mata seu irmão Polinice; 8) Antígona enterra Polinice, seu irmão, violando a interdição. Estabelecidos os episódios, Leach chama a atenção, seguindo os passos do ilustre antropólogo, para as peculiaridades da significação dos nomes de três personagens e trata de incorporá-las à trama do mito: 9) Lábdacos — pai de Laio —, “Coxo”; 10) Laio — pai de Édipo —, “Canhoto” (ou antes “Torto”, que não é retido por Leach); 11) Édipo — Oidipus —, “Pé inchado”. Cabe assinalar, como mostra Leach19, que tais personagens e tais incidentes foram extraídos por Lévi-Strauss da obra de Homero (Odis­ séia) e das tragédias de Sófocles, que nos dão o contexto em que eles aparecem e nos ajudam a compreender o significado das ocorrências referidas nos oito segmentos. Assim, no segmento n° 1 (Cadmo procura sua irmã Europa, rapta­ da por Zeus), o contexto é a fundação de Tebas, que ocorre depois da morte da mãe de Europa, Telefassa, ocasião em que Cadm o é instruído a seguir uma vaca e fundar a cidade onde a vaca parar, tendo antes de sacrificar a vaca a Atena. No segmento n° 2 (morte do dragão), o contexto ainda é a funda­ ção de Tebas: quando procurava água para o sacrifício, Cadm o encon­ 18. LEACH, E . As idéias de Lévi-Strauss. São Paulo, Cultrix, 1973, 61. 19. N a reconstrução do mito de Édipo, seguimos de perto o capítulo 4 de Leach, op. cit., onde o leitor encontrará preciosas informações contextuais, remediando o relato de Lévi-Strauss, o qual é um tanto seco e deixa o leitor desarmado. 77

1 Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

tra um dragão montando guarda em um poço sagrado; Cadm o e o dragão travam duelo; Cadm o mata o dragão. No segmento n° 3 (Spartói), Cadm o semeia os dentes do dragão depois de matá-lo e a safra resultante é a de homens sem mãe (Spartói); os Spartói matam-se uns aos outros, mas um punhado deles se salva e ajuda Cadm o a fundar Tebas. No segmento n° 4 (Edipo mata seu pai Laio), o elo que liga Cadm o a Laio (pai de Edipo) é Lábdacos, neto de Cadm o, pai de Laio e avô de Edipo; Laio é uma criança e o trono que herdara é usurpado por Lykos, o irmão do pai da mãe de Lábdacos; após seu retorno ao trono de Tebas, Laio esposa Jocasta, mas evita dormir com ela por causa da profecia de que um filho de ambos o mataria; Edipo é concebido durante um acesso de luxúria do pai, quando Laio se embriagou num festim religioso; depois de nascido, Edipo é enviado a uma montanha para ser sacrifica­ do, onde fica exposto ao tempo, atado a uma árvore; sobrevive; numa encruzilhada, Edipo encontra Laio, que ele não sabia que era seu pai, há um incidente entre eles e Edipo mata-o. O segmento n° 5 (Edipo mata a Esfinge) se passa no período que se segue à morte de Laio, quando Creonte era regente e Tebas é asse­ diada por um monstro, a Esfinge; a mão da rainha Jocasta é oferecida em casamento a quem livrar a cidade do monstro, respondendo a seu enigma (o enigma: qual é o animal que de manhã anda com quatro patas, de tarde com duas, de noite com três?); Edipo decifra o enigma (a resposta: o animal é o homem — criança, adulto e velho —, que engatinha na infância, anda sobre dois pés quando adulto e usa benga­ la ao ficar velho); a Esfinge suicida-se. O segmento n° 6 (Edipo casa com sua mãe, Jocasta) relata que Edipo, ignorando que Jocasta era sua mãe e ela que Edipo era seu filho, se casa então com Jocasta e com ela tem quatro filhos: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismênia; uma peste assola Tebas; para saber a causa, Edipo-rei convoca o adivinho Tirésias e este lhe diz que a origem da desgraça era um a punição dos deuses pelo fato de o rei e a rainha estarem vivendo uma relação incestuosa; Jocasta então se suicida, Edipo vaza os olhos, abandona a cidade e vai para Colona (na versão de Homero, Edipo não vai para Colona, mas fica em Tebas). 78

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Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

O segmento n° 7 (Etéoeles mata seu irmão Polinice) diz respeito ao desdobramento da tragédia, que começa antes de Édipo, com seu pai (jurado de morte pelos deuses), e termina com sua descendência, que deve ser aniquilada: tendo Édipo abdicado, seus filhos Etéoeles e Polinice deveriam ocupar o trono alternadamente; Etéoeles o assume primeiro e recusa-se a cedê-lo; Polinice e Etéoeles combatem corpo a corpo e matam-se. O segmento n° 8 (Antígona enterra Polinice, seu irmão) tem a ver com o fato de Polinice ter atacado a cidade, em disputa com Etéocles; Antígona, à revelia de Creonte, seu tio, que era o regente e jul­ gava o ato de Polinice uma ofensa aos tebanos, decide sepultar o ir­ m ão; em castigo por sua desobediência, Antígona é emparedada viva num túmulo, onde se suicida, junto com o noivo, primo seu e filho de Creonte, Haimon. Por fim, quanto ao significado dos nomes de Lábdacos, Laio e Édipo, listados em 9, 10 e 11, respectivamente “Coxo”, “Canhoto” (“Torto”) e “ Pé Inchado”, tais significações não são destacadas por Homero e por Sófocles, mas por Lévi-Strauss, com base em vários mitos cosmogônicos que representam os homens nascidos da terra (seres ctônicos), mostrando que no momento da emergência eles eram seres ainda in­ capazes de andar ou andavam desajeitadamente. Tal seria o caso de Édipo, por exemplo, cujo nome expressa de algum modo o fato de ele, depois de seu nascimento, ter tido seus pés deformados, após terem sido amarrados numa estaca no alto de uma montanha. Feitos estes esclarecimentos indispensáveis, com a ajuda de Leach, vejamos como o antropólogo organiza os incidentes e os respectivos personagens listados nos onze segmentos do mito. Segundo ele, os segmentos poderiam ser inseridos num quadro dividido em quatro colunas verticais, cada qual agrupando inúmeras relações pertencen­ tes a um mesmo “feixe” (traço comum), e o conjunto devendo ser lido da esquerda para a direita, uma coluna após a outra, em sua tota­ lidade. Tais feixes (mitemas), no entender de Lévi-Strauss, são os se­ guintes: 1) relações de parentesco sobrevalorizadas ou superestima­ das (coluna I); 2) relações de parentesco subvalorizadas ou depre­ ciadas (coluna II); 3) a negação da autoctonia do homem (coluna III); 79

1 Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

4) a afirmação da autoctonia do homem (coluna IV). Donde o quadro que se segue20: 1

II

III

IV

Cadmo procura sua irmã Europa, raptada por Zeus

Cadmo mata o dragão Os Spartói se exterm inam m utuam ente Lábdacos (pai de Laio) = "coxo" (?) Édipo mata seu pai

Laio (pai de Édipo) = "canhoto" ou

Laio

"to rto " (?) Édipo imola a Esfinge Édipo esposa Jocasta, sua mãe

Édipo = "pé inchado" (?)

Etéocles mata seu irm ão Polinice

Antígona enterra Polinice, seu irmão, violando a interdição

Explicando tal quadro, pode-se dizer com Lévi-Strauss que as rela­ ções de parentesco abarcadas na coluna I são ditas sobrevalorizadas porque concernem a parentes consangüíneos, cujas relações de proxi­ midade são, por assim dizer, exageradas e dão origem a interditos estri­ tos, conduzindo sua não-observância a delito ritual de natureza inces­ tuosa (mãe/filho), e como tal condenado. Por sua vez, os incidentes da coluna II são, como diz Leach, delitos de natureza fratricídia/parricídia, implicando relações de parentesco infravalorizadas e permitindo o 20. LÉVI-STRAUSS, C ., op. cit., 236. Sobre o quadro, há uma discrepância na tradu­ ção brasileira (feita pela Tempo Brasileiro) da obra de Lévi-Strauss em relação à tradu­ ção do livro de Leach no tocante ao significado do nome de Laio, que aparece na coluna IV: em vez de “canhoto” (obra de Leach), “torto” (obra de Lévi-Strauss) — discrepância que se explica pelo termo francês gauche, que recobre am bas as significa­ ções. Caberia verificar a particularidade física de Laio para decidir, coisa que não pu­ demos fazer no tocante a Homero (em algumas edições consultadas, seu nome não aparece no index). Em todo caso, vários dicionários gregos registram laiós, á, ón como adjetivo comum, na acepção de “esquerdo”. 80

Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

afrouxamento do laço e a generalização de atos delituosos ou condená­ veis (os Spartói que se matam mutuamente; Edipo que mata o pai; Polinice que mata o irmão). Já os incidentes da coluna III são ditos “negação da origem autóctone do homem” (autóctone vem do grego autos, dentro, e khthón, da terra), porque envolvem a destruição de seres anômalos (monstros), de modo que os homens nasçam da união dos sexos, como os animais, e à diferença das plantas (os monstros, que sáo seres ctônicos, implicam uma doutrina da origem autóctone do homem: os Spartói são filhos do dragão e nasceram da terra, como as abóboras — semeadura dos dentes do dragão, sem ajuda humana). Por fim, os incidentes da coluna IV são ditos “afirmação (persistência) da autoctonia do homem” porque envolvem homens que são eles pró­ prios, como diz Leach, monstros anômalos, a julgar pela figura de Edipo, que, tendo sido amarrado ao solo numa estaca (foi esta a origem de seus pés inchados), vem a ser aquele que, embora nascido de uma mulher, não estava inteiramente separado de sua terra natural. Dito isso, podemos perguntar pelo tipo de relação que guardam entre si as quatro colunas e interpretar o significado exato do mito, expondo o seu sentido profundo. Segundo Lévi-Strauss, a coluna II é o inverso da coluna I, da mesma forma que a coluna IV é o inverso da III: a subestimação das relações de parentesco está para a supervalorização assim como a afirmação da origem autóctone do homem está para a sua negação. Donde a equação: I/II : : III/IV21. Todavia, segundo Lévi-Strauss, expor a álgebra do mito e mostrar as relações que envolvem seus personagens e incidentes, embora impor­ tante, não é tudo: é preciso ainda decifrar o sentido do mito, elucidar o problema a que ele visa responder e a natureza das contradições que ele procura resolver. Ora, o grande problema que está em jogo e que é o aguilhão do mito e da sua maquinaria lógica é a questão de saber se os humanos nascem realmente da união do homem e da mulher, como mostra a experiência, ou se o homem é autóctone e nasce diretamente da terra, como quer a religião. Tal problema gera uma contradição intolerável para o espírito (nascido de um ou de dois? Nascido do mesmo 21. L e a c h , E ., op. cit., 63.

81

1 Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

ou do diferente? Se nascido do mesmo pai e da mesma mãe, como no mito de Adão e Eva, então, no limite, todas as relações são incestuo­ sas!). Daí a contradição entre a supervalorização/subvalorização das relações de parentesco, de um lado; entre a afirmação/negação da autoctonia do homem, de outro, vivenciada esta última como uma tentativa de escapar à autoctonia e à impossibilidade de consegui-lo. Ao procurar dar uma resposta ao problema e resolver a contradição intolerável, o mito de Edipo terminou por dar razão à religião, ao dizer que o homem era autóctone e que o primeiro homem era metade ser­ pente e nasceu da terra, como as plantas. Da mesma forma que — pode-se dizer, ainda que Lévi-Strauss não o diga — terminou por rea­ firmá-la, ao sacrificar aqueles personagens que, por uma maldição, in­ fringiram a tradição e as leis da cidade, se insurgiram contra os laços de sangue e cometeram o delito de incesto. Tal é o quebra-cabeça a ser resolvido e o sentido da resposta do mito, segundo Lévi-Strauss. Finalmente, quanto à natureza de modelo conjectural do mito de Edipo, para se convencer disso basta ter em mente quatro coisas: Ia) do mito de Edipo em sua origem, tal como era conhecido dos gregos, apenas nos restaram alguns fragmentos, oriundos de Homero e dos trágicos, especialmente Sófocles; 2a) na versão de Homero, era outro o nome da mãe e esposa de Edipo, Epicasta e não Jocasta, bem como era outro o destino de Edipo, que depois de vazar os olhos fica em Tebas e não vai para Colona, diferentemente do que ocorre na peça de Sófo­ cles; 3a) numa das versões do mito, Haimon, noivo de Antígona, se suicida com ela, enquanto noutra versão é morto pela Esfinge; 4a) conforme o próprio Lévi-Strauss reconhece, além da variante tebana, seria preciso ainda traçar o quadro de outras variantes, como a atenien­ se — coisa que ele não fez. Donde a impressão não só de insuficiência de suas análises, em razão das lacunas, mas igualmente de artificialidade, ao introduzir a quarta coluna, explorando significados de nomes próprios, como que a contrapelo de Homero e Sófocles, que parecem ignorar a importân­ cia desse expediente (não o mito, que acredita que o nome define o destino de quem o porta). Dir-se-á que Lévi-Strauss, por sinal, estaria de acordo com essas impressões, pois ele mesmo via no modelo do 82

Paradigm as e m odelos nas ciências hum anas

mito de Édipo por ele analisado coisa de camelô, comparando sua ati­ tude às ações do vendedor nas ruas das cidades ao procurarem passar adiante um artigo, quando tratam de exibi-lo ante os olhos dos curiosos e cuidar de mostrar suas virtudes especiais. Tendo vendido sua merca­ doria e mostrado as virtudes do método estrutural, ele poderia então concentrar-se numa amostragem mais vasta e aplicar com mais rigor o método da ciência, esperando colher resultados mais sólidos e mais fecundos — o que ele fez depois, com paciência e afinco, trocando o camelô pelo bricoleur, nos quatro volumes das Mitológicas, de que fa­ laremos no segundo tomo do livro. Concluindo nosso exame dos modelos e dos paradigmas nas ciên­ cias humanas, cabe indagar, como o fizemos com respeito a Weber, Marx e Durkheim, se há uma ciência paradigmática ou uma disciplina-piloto para o antropólogo francês. Diremos, em analogia com Durk­ heim, que há, sim, e de uma dupla maneira. Antes da fundação da antropologia ou, melhor, da etnologia, a ciência paradigmática — vimolo — é a lingüística. Depois da fundação, a disciplina-piloto ou a ciên­ cia candidata a ser piloto é a antropologia, em substituição à sociologia durkheimiana e disposta no quadro mais amplo de uma semiótica ge­ ral. Todavia, o autor das Mitológicas considera que as ciências huma­ nas encontram-se ainda em sua pré-história, devendo a antropologia, nucleada pela etnologia, ter pela frente uma longa rota até chegar ao estado da arte comparável com outras disciplinas das ciências naturais. Só então, com seu espírito sinóptico e seus vastos horizontes, sendo-lhe reconhecida a proeminência, figurará na tópica das ciências humanas como disciplina-piloto e paradigmática22.

22. Sobre o estado da arte e as tendências da pesquisa nas ciências humanas e so­ ciais, ver o artigo de Lévi-Strauss publicado em 1964, atendendo solicitação da U N E SC O , e republicado m ais tarde na Anthropologie structurale II com o título “Critères scientifiques dans les disciplines sociales et hum aines”. Paris, Pion, 1973, 339-364. 83

Capítulo 3

Padrões de cientificidade nas ciências humanas — Formas de explicação (compreensão) da realidade humano-social

No ensaio “Ciências da natureza e ciências do homem”, publicado no Brasil como capítulo do livro A ciência e as ciências', Gilles Gaston Granger lembra com propriedade que “aplicar o qualificativo de ‘ciên­ cia’ ao conhecimento dos fatos humanos será (...) considerado por alguns um abuso de linguagem”2. Tal idéia, pouco favorável ao conjunto das disciplinas das ciências humanas, está amparada na constatação mais ou menos difundida de que “os saberes sociológicos ou psicológicos, econômicos ou lingüísti­ cos não podem pretender, em seu estado presente e passado, ter a so­ lidez e a fecundidade dos saberes físico-químicos, ou até biológicos”?. Daí a pergunta — fundada na ordem dos fatos — formulada por Granger e compartilhada por um número expressivo de historiadores, epistemó-

1. G r a n g e r , G .- G . A ciência e as ciências. São Paulo, E D U SP , 1994. 2. Ibid., 85. 3. Ibid.

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Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

logos e estudiosos das ciências: em que sentido seria lícito, de direito, atribuir aos saberes supracitados o nome de ciência?4. O obstáculo fundamental invocado por quase todos que suspei­ tam, se não impugnam, a condição de cientificidade das ciências hu­ manas reside, segundo Granger, na própria natureza dos fenômenos - humanos: portando, mais além dos fatos em que se expressam, “uma carga de significações” atinentes ao sujeito, tais fenômenos resistem “à sua transformação simples em objetos, ou seja, em esquemas abstratos lógica e matematicamente manipuláveis”5. Dificuldade nada desprezível, com efeito. De um lado, as ciências humanas vão estar marcadas, desde sua origem, pela natureza refratária de seu objeto, relacionada com “as características cientificamente nega­ tivas dos fatos humanos, e em especial seus elementos de liberdade e de imprevisibilidade”6. De outro, elas vão dar lugar, em associação íntima com a significação dos fatos, à simbiose jamais inteiramente desfeita, e como tal ausente dos fenômenos naturais, entre o descritivo e o norma­ tivo, bem como entre o realizado e o desejável (ideal), cujos elementos — numa escala que vai desde os sentimentos, passando pelas ações e pelos valores, até o pensamento e a linguagem — dificilmente, no en­ tender de Granger, podem reduzir-se a esquemas objetivos e abstratos7. Não bastasse essa dificuldade, propriamente científica, há também outras — acrescente-se —, cujos obstáculos talvez sejam ainda mais po­ derosos. Entre elas, há as barreiras de cunho religioso e as de cunho filosófico. Quanto às primeiras, temos por exemplo a idéia, que vem da tradição judaico-cristã, da origem pecaminosa do homem, ou ainda, em íntima relação com seu ser decaído, a idéia de que sua natureza íntima é um mistério, e seu fim último, neste mundo ou fora dele, insondável, a depender do desígnio da providência divina — queda, mistério e desíg­ nio que, em seu conjunto e em sua significação profunda, escapam da razão e das ciências, e só são acessíveis à religião e à fé. Quanto às segun­ das, presentes na tradição filosófica da Antiguidade clássica aos nossos 4. 5. 6. 7.

Ibid. Ibid. Ibid. Ibid., 86.

86

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dias, temos o recobrimento, com o véu da ignorância, de inúmeros fenô­ menos, inclusive os fenômenos humanos, ignorância atribuída aos mis­ térios do mundo ou à ordem das coisas, a que se soma a própria deficiên­ cia da razão (logos) ou seu modo de funcionamento. Assim, Sócrates, que, ao indagar da natureza humana, não podendo responder cabal­ mente à pergunta “que é o homem?”, se contenta em ficar com a busca, convidando-nos a examinar atenta e indefinidamente nossas vidas, sem a preocupação com o estabelecimento de um ponto de partida ou de chegada em que pudesse apoiar-se ou a que pudesse recorrer, localizado no corpo ou na alma. Assim também, entre os antigos, Aristóteles, que, ao se referir à história, depois de constatar que é o domínio do indivi­ dual, do único e do irrepetível, vai dizer que a história não é uma ciên­ cia, mas uma arte do discurso (narrativa), ao lado da retórica e da poé­ tica, e como tal menos filosófica e “científica” do que a poesia tout court. Assim, enfim, em plena modernidade, Goethe, ao afirmar que individuum est ineffabile, e mesmo Kant, que sentencia na Crítica do juízo que ja­ mais vamos conhecer a natureza íntima dos processos naturais, inclusive dos processos humanos — poder-se-ia acrescentar. Há outras barreiras filosóficas e religiosas, porém não vem ao caso examiná-las. Ficaremos só com as chamadas dificuldades científicas, como as assinaladas por Granger, envolvendo as formas de objetivação da significação dos fatos sociais, os modos de o cientista social operar com o normativo (regras/valores) em associação com o descritivo, e as tentativas de lidar com o real (realizado = ser) em sua relação com o ideal (visto como algo virtual almejado pelos agentes sociais = poder ser/vir a ser) e vice-versa. Tão logo essas dificuldades se apresentaram às mentes, os estudiosos dos fatos humanos tomaram consciência delas, de sorte que as mais diferentes disciplinas das ciências humanas procu­ raram elaborar estratégias para contorná-las, como aliás o próprio Granger o reconhece. As estratégias, quanto aos padrões de explicação e de compreensão dos fatos humano-sociais, podem ser reconduzidas, segundo nosso au­ tor, a alguns poucos esquemas, cujo conjunto, com vistas às necessida­ des da nossa pesquisa, vamos reduzir a quatro tipos. Esses esquemas são: 1) o esquema causal, como o que encontramos em Durkheim em sua 87

Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

análise do suicídio como fenômeno social; 2) o esquema hermenêutico (ou compreensivo), como na análise empreendida por Max Weber a respeito da correlação entre a ética protestante e o espírito do capitalis­ mo; 3) o esquema dialético, como em Marx, ao analisar o golpe de Es­ tado de Luís Bonaparte no 18 Brumário; 4) o esquema estrutural, como em Lévi-Strauss, ao analisar na Antropologia estrutural o mito de Édipo8. Com base num trabalho de Berthelot9, Granger patenteia e descre­ ve os pontos fortes dessas quatro modalidades de explicação. Vejamos o que ele assinala e o que pensamos de seus comentários referentes aos esquemas causal, hermenêutico, dialético e estrutural. 1) Esquema causal - Granger explicita que o esquema causal supõe “uma dependência entre o fenômeno A que explicaria o fenômeno B, tal que suas variações são concomitantes e que não se pode ter B sem A”. E mais: segundo ele, “a explicação dada por Durkheim ao suicídio é essencialmente deste tipo. O sociólogo empenhava-se em afastar as causas aparentes (a hereditariedade, a imitação), para mostrar a correla­ ção efetiva do suicídio e do relaxamento dos laços sociais do suicida”10. Consideramos tal esquema, em linhas gerais, justo. Porém, sua hi­ pótese, a saber, o afrouxamento da solidariedade social, dá conta ape­ nas da metade do esquema explicativo durkheimiano, pois, a par da variável “integração”, responsável por certos tipos de suicídio, há a “re­ gulação”, responsável por outros. Além disso, a hipótese só poderá ser posta à prova com a ajuda de um conjunto de determinações que vão dar mais carne e substância à ossatura algo esquálida do esquema abs­ trato proposto pelo autor. Com o exemplo desse conjunto de determi­ nações, poderíamos citar: a informação, oriunda da empiria, a respeito 8. Granger inclui entre seus esquemas o funcional e o actancial. Decidimos não os incorporar, por extrapolarem nosso campo de estudos. Quanto aos esquemas retidos, resolvemos dar-nos am pla liberdade em sua reconstituição. Tal resultou em nosso sig­ nificativo distanciamento do autor, em razão de uma certa confusão que recobre seus esquemas, como veremos mais à frente no tocante ao estruturalismo, levando à inclusão de Saussure na hermenêutica. Dos exemplos citados nos esquemas supra, o primeiro é de Granger, os restantes são nossos. N o fim do capítulo vamos reformular sua termi­ nologia relativamente ao esquema causal. 9. BERTHELOT, J.-M. Uintelligence du social. Paris, PUF, 1990. 10. G r a n g e r , G .-G , op. cit., 90.

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dos comportamentos suicidas dos católicos e dos protestantes; ou ainda a distinção entre suicídio anômico, altruísta e egoísta etc. A dificuldade a ser vencida na delimitação do suicídio como fenô­ meno social, de interesse do sociólogo, é a de compreender a decisão de Durkheim de considerar o suicídio egoísta como integrante das cor­ rentes sociais do suicídio, e deixar de lado, por sua vez, os suicídios por imitação, como os relacionados com o Werther, de Goethe, cuja publi­ cação, segundo consta, provocou uma legião de suicídios na Alemanha da época. Por que deixá-los de fora, junto com a psicologia coletiva e os fenômenos psicológicos de massa? E mais: por que computar apenas os suicídios consumados e deixar de lado as tentativas de suicídio? O es­ tudo e a comparação dos dois casos não teriam relevo científico, a me­ recer a atenção do sociólogo, além do médico e do psicólogo? Todavia, deixando de lado essas e outras dificuldades, a necessida­ de de introduzir as explicações causais para a compreensão de fenôme­ nos como o suicídio deve-se ao fato de a simples descrição (observa­ ção), conquanto necessária, não ser suficiente na explicação dos fenô­ menos sociais. Há de se discriminar entre os fatos ou fenômenos descritos, aqueles que ocorrem antes e aqueles que ocorrem depois; como também a coexistência aleatória de uns, como a subida da maré no Rio de Janeiro e a queda da Bolsa em São Paulo, e o nexo de necessidade de outros (tipo o calor e a dilatação dos corpos); há de se discriminar, enfim, as formas de variação e os esquemas de repetição dos fenômenos, segun­ do suas proporções e suas correlações. Foi, em suma, o que fez Durkheim em seu estudo famoso, ao evi­ denciar o liame do suicídio com as variáveis integração e regulação, vistas como aspectos (forças) da solidariedade social. Integração: o afrou­ xamento do laço social leva ao aumento da taxa de suicídio egoísta, ao passo que a força excessiva do laço, a ponto de sacrificar o indivíduo (que simplesmente não emerge e desaparece no social), conduz ao aumento do suicídio altruísta. Regulação: variando segundo a maior ou menor força coercitiva da norma (lei) que vincula o indivíduo à sociedade, sua ausência ou seu enfraquecimento leva ao suicídio anô­ mico, enquanto seu aumento ou peso excessivo conduz ao suicídio

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fatalista. Esses pontos serão retomados no capítulo V e desenvolvidos em diferentes aspectos na segunda parte de nosso estudo, onde questio­ naremos a pertinência das duas variáveis, bem como as modalidades de suicídio que as acompanham. 2) Esquema hermenêutico — Segundo Granger, com base em Berthelot, integram tal esquema a lingüística saussuriana, a psicanálise freudiana e certos aspectos da abordagem econômico-social do marxis­ mo; entretanto, não esclarece em que consiste o esquema; apenas in­ dica que está associado à idéia de interpretação, e como tal — pode-se dizer — atrelado à noção de sentido ou de significação. Consideramos um equívoco tanto a aproximação das três aborda­ gens como sua inclusão no esquema hermenêutico. Primeiro, porque a lingüística saussuriana, como aliás Granger o reconhece ao falar do esquema estrutural, é de índole estrutural e sistêmi­ ca. Trata-se portanto de um erro histórico e doutrinal, uma vez que Saussure é tido, se não como o pai, ao menos como o avô do estruturalismo. Segundo, porque, embora dê indícios em sua obra de ter aprendi­ do bastante com a arte de ler e interpretar os textos sagrados e profanos, Freud busca suas ferramentas analíticas menos na hermenêutica (exe­ gese) do que na ciência propriamente dita (a lembrar que o vienense nunca cansou de buscar apoio, para seus vaticínios em psicanálise, na biologia e na própria física, a exemplo da termodinâmica, ao trabalhar a idéia de energia). Terceiro, porque Marx, ao interpretar os fatos econômico-sociais, simplesmente ignora a tradição hermenêutica, seja ela bíblica, filológica ou jurídica. Por isso, consideramos injustas histórica e doutrinariamente as aproximações de Berthelot e Granger, ainda que haja mais de uma semelhança entre as abordagens de Freud, Saussure e Marx, especial­ mente no tocante às idéias de sentido e de interpretação, reconduzidos todavia ao objeto. Entretanto, nem o sentido nem a interpretação são idéias cativas da hermenêutica, mas noções compartilhadas por outras correntes do pensamento. Mais pertinente seria aproximar a herme­ nêutica das obras de Dilthey, Simmel, Rickert e Max Weber, que prefe­ rem falar de “compreensão” e referem o sentido ao sujeito. 90

i

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No caso de Dilthey, que se coloca explicitamente no terreno da hermenêutica, ele simplesmente opõe o dado (fato) ao sentido (signi­ ficação), contrapõe invariavelmente à explicação a compreensão, afas­ ta-se da via descrição dos fatos/explicação causal das coisas e fica com a via da decifração do sentido/compreensão intersubjetiva dos proces­ sos e das obras dos homens. No caso de Weber, que nos interessa mais de perto, embora não fale explicitamente de uma sociologia hermenêutica, mas de uma “so­ ciologia compreensiva”, podemos dizer que é bem o vocabulário her­ menêutico que ele emprega, como o termo “sentido”, que percorre toda a sua obra. E ainda a própria categoria de “compreensão”, distinta desta feita da comprehensio da lógica, em que não era senão a operação de inclusão, de integração ou de subsunção dos casos ao universo de uma asserção, e como tal distinta da figura da extensão: maior a exten­ são, menor a compreensão. Weber, ao falar da compreensão, retém as idéias de apreensão e de inclusão; porém, em vez de capturar e subsumir objetos (fatos), procura apreender e incluir o sujeito (agente), ao esta­ belecer o laço entre a compreensão e o sentido. Podemos dizer, tam­ bém, que Weber compartilha mais de uma afinidade com Dilthey, Simmel e Rickert no que se refere à tradição hermenêutica, pensada agora não como arte, mas como ciência. Em especial, e tal é a índole da sociologia compreensiva weberiana, a necessidade de voltar-se não tão-só para “fora” (observar os fatos), como o fazem Durkheim, Comte e Spencer, mas também para “dentro”, objetivando investigar as inten­ ções, os motivos, os valores e os fins que acompanham os fenômenos sociais e os deflagram ou os provocam. A necessidade de introduzir os esquemas hermenêuticos (compreen­ sivos) radica na própria insuficiência da descrição como instrumento de análise (coisa que Durkheim viu), bem como nas deficiências dos esquemas causais em sua versão fisicalista (coisa que Durkheim não viu), que apenas detectam o que se passa no exterior, enquanto dado objetivo, ignorando o que se passa no interior dos agentes, enquanto aspecto subjetivo. Consideração que leva Weber não só a restabelecer o laço entre causalidade e motivo, permitindo compreender a ação por 91

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seus móveis, como também a incluir na análise causal o exame das relações entre condutas, valores, fins e meios. A semelhança de Dilthey, é difícil apreender o que Weber entende por compreensão. Mais difícil ainda é achar um bom exemplo. Dispo­ mos, todavia, de uma ilustração fecunda, citada por Weber em Econo­ mia e sociedade, sem no entanto tirar do exemplo as conseqüências. O exemplo é o ato de cortar lenha. Ante tal ato ou ação — o acréscimo é nosso —, o fisiólogo reteria (e trataria de descrever) as operações de pegar o machado, os golpes de força e o movimento de baixar e levan­ tar o braço. Poderia, além do mais, descrever o suor e até mesmo medir o dispêndio de energia (trabalho). E é só. O economista, por sua vez, reteria do ato o valor de uso obtido (o feixe de lenha, para alimentar o fogo) e eventualmente o valor de troca, ao se destinar ao mercado, seja ao cambiar-se diretamente com outros produtos do trabalho, seja em troca de uma determinada soma de dinheiro. Já o sociólogo, à diferen­ ça do fisiólogo e do economista, perguntaria pelo sentido social da ação. Para tanto, na impossibilidade de nos fornecer uma descrição direta das intenções, dos valores e dos fins que acompanham a ação (o ato) de cortar lenha, deverá limitar-se a imputar-lhe um sentido e a operá-lo indiretamente a fim de capturá-lo, voltando-se para fora, mediante a análise de suas formas de objetivação no mundo das coisas e nas insti­ tuições sociais. Deverá também esforçar-se em reconduzir essas formas para dentro, visando ao que se passa na mente dos indivíduos, aos mo­ tivos que os impulsionam e aos fins que eles perseguem. Entretanto, essa dupla operação só é possível se uma condição é satisfeita, dois operadores são introduzidos e uma decisão é tomada: 1) a condição é que o sentido, independentemente da via ou da finalida­ de da ação11, seja socialmente compartilhado: se não, referido apenas ao indivíduo, é coisa não da sociologia, mas da psicologia; 2) os operado­ res metodológicos (hermenêuticos) do sentido são, de um lado, os esque­ mas causais, que não podem ser monocausais, mas abertos a uma rede 11. C om o o intuito de ficar rico, ao cortar com sua família mais e mais lenha ou ao contratar uma legião de lenhadores; dar sustento aos filhos, ao se ocupar o próprio lenhador do corte de lenha em sua propriedade ou ao roubar o feixe na mata vizinha; pagar uma dívida ou cumprir uma obrigação (corvéia). 92

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ou a uma pluralidade de causas12; de outro, os tipos ideais (a economia agrária ou camponesa, por exemplo), cuja função consiste em afastar as perturbações da empiria e guiar a análise dos fenômenos, recondu­ zindo-os aos esquemas causais e explicativos; 3) a decisão reside em escolher se o sentido, ao ser imputado à ação, é o sociólogo que o encontrou lá, tal qual, no mundo dos fenômenos e na mente dos agen­ tes sociais, ou se está na mente do próprio sociólogo ao imputá-lo ou postulá-lo (coisa que a obra weberiana nem sempre deixa clara). Diremos então, para concluir, que o esforço de apreensão e deci­ fração do sentido é o objetivo de Weber na Ética protestante e o espírito do capitalismo, obra cujo esquema interpretativo é o que ele chama de “processo de racionalização do Ocidente”, e na qual ele mostra que a ética protestante é o espírito do capitalismo, se não é um de seus veto­ res ou com ele se coaduna — daí nossa decisão de mantê-lo no campo da hermenêutica (voltaremos a este ponto mais à frente). 3) Esquema dialético — Segundo Granger, o intuito deste esque­ ma seria o de propor formas de “resolução efetiva de contradições in­ ternas descobertas na realidade humana individual ou coletiva”. Toda­ via, nosso autor apresenta para a dialética (a de Marx, no caso; não a de Hegel, que não é examinada) a seguinte ressalva: seu esquema no mais das vezes reduz-se “a constatar depois do fato consumado o resul­ tado de certos conflitos, sem de modo algum fornecer os meios de prever seus desenlaces”13. Consideramos um tanto restrita e parcialmente equivocada a des­ crição de Granger. Um tanto restrita, porque não nos mostra onde reside a novidade da explicação dialética ensejada por Marx, ao falar das contradições das coisas e ao constatar que as ações dos homens, especialmente a ação política, não obedecem ao princípio da (não) contradição estabelecido pela lógica formal ou clássica. 12. U m a n ecessidad e im periosa — fom e, pobreza ou greve — pod e levar alguém a roubar len h a, em vez de com prá-la; u m a proibição governam ental pod e levar a u m a revolta popu lar, co n d u zin d o u m a m ultidão de indivíduos a abater as m atas; a própria base tecn ológica incipiente ou rudim en tar de u m a co m u n id ad e pode estar por trás da ação: pred om in ân cia de fogão a len ha/au sên cia de fogão a gás ou elétrico. 13. G r a n g e r , G . G ., op. cit., 92.

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Parcialmente equivocada, porque sugere que seria possível esque­ matizar os eventos históricos de uma maneira puramente a priori, coisa que Kant, antes de Marx, já tinha mostrado ser absolutamente impos­ sível — a menos que aquele que fizesse as predições a priori se encar­ regasse ele próprio de realizar as predições e de gerar as ações condi­ zentes: quer dizer, só seria possível se a história fosse uma teodicéia (lugar da manifestação de Deus) e se os homens se convertessem em Deus ou em deuses, controlando totalmente as coisas e sabendo tudo de antemão, antes mesmo de as coisas ocorrerem. A necessidade de introduzir os esquemas dialéticos, tanto na eco­ nomia como na sociedade ou na história, é experienciada por Marx (além das insuficiências das explicações causais usuais, que clivam os fenômenos em um antes e um depois, deixando de lado as interações e os conflitos que os acompanham) à luz da própria natureza do real, e em especial da sociedade dos homens, repleta de tensões, contradi­ ções e conflitos a reclamarem formas próprias de resolução. Essas for­ mas, por sua vez, estão longe de ser fixas ou unívocas e passam ao largo das modalidades conhecidas e operadas pela lógica formal. Integram essas modalidades: 1) a lei do terceiro excluído (Sócrates não pode estar sentado e levantado ao mesmo tempo: ou está sentado ou levantado; uma terceira alternativa está excluída); 2) o expediente, para evitar o choque dos contraditórios e restabelecer a unidade (identidade) do sis­ tema, de introduzir a distinção de aspectos, planos e níveis (plano tem­ poral, por exemplo: Sócrates num momento está sentado; noutro le­ vantado). Sem negar essas vias, Marx procura, com Hegel, erigir uma outra canônica que, tendo reconhecido a existência de contradições reais (mais do que contradições nas ilações do pensamento ou nas re­ lações entre as proposições), trata seja de introduzir mediações entre as polaridades, seja de fundir e articular as diferenças e as oposições, seja de tipificar a complementaridade dos opostos, seja de patentear os conflitos (com a vitória de um dos pólos) e as próprias crises (com ou sem solução de continuidade) como meios de resolver as contradições das coisas. No 18 Brumário, obra escrita paralelamente aos acontecimentos, a tese forte que Marx busca demonstrar, com o objetivo de explicar o 94

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golpe de Estado de Luís Bonaparte (“um raio no céu azul”), é a idéia segundo a qual a necessidade e o papel histórico de Napoleão III só podem ser compreendidos à luz das contradições reais da sociedade francesa de então, envolvendo os embates de classes e frações de classe. E mais: Marx procura mostrar que o golpe contou com o apoio dos camponeses franceses, em cujo imaginário — como viu Paul-Laurent Assoun — sua figura imperial lhes aparecia ao modo de um pai primevo ou de um deus que os protege e do alto lhes manda sol e chuva. Os esquemas explicativos empregados por nosso autor foram traba­ lhados e revistos posteriormente na obra Lutas de classe na França, na qual, mais distanciado dos acontecimentos, corrige algo da perspectiva do 18 Brumário, que rebaixara muito o significado de Luís Napoleão (conhecido como Napoleão o falso ou o pequeno) e previra um curto tempo de governo, quando este de fato foi longo, tendo durado vinte anos. Tais esquemas são simplesmente refutados por um conjunto de estudiosos que sustentam a tese de que foram na realidade não os pe­ quenos camponeses, mas os grandes comerciantes e os proprietários fundiários que apoiaram Luís Bonaparte no golpe de 1848, pondo em xeque, portanto, tanto a base factual como o esquema interpretativo trabalhados por Marx14. 4) Esquema estrutural — Desfeito o equívoco de incluir Saussure no esquema hermenêutico e tendo reconhecido, com Granger, o cará­ ter sistêmico do esquema estrutural, incluiríamos neste: a) Saussure, que em sua obra prefere o vocábulo sistema e emprega o termo estru­ tura apenas duas vezes; b) Marx, que visa à economia e à história como uma totalidade, que em muitos aspectos é correlata da estrutura, bem como distingue nesta última a infra e a superestrutura; c) Freud, que toma o psiquismo humano como uma estrutura e em sua tópica orga­ niza a estrutura em instâncias ou camadas, como as instâncias do idego-superego; 4) Lévi-Strauss, que no mito de Edipo, conforme vimos no capítulo precedente, não só aplica o esquema estrutural à sua aná­ lise, como também reduz o mito famoso a um conjunto de quatro 14. Cf. STINCHCOMBE, A. L a comtrucción de teorias sociales. Buenos Aires, Nueva Vision, 1979, 65. 95

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mitemas, emparelhando-os em pares dicotômicos e analisando-os se­ gundo suas oposições binárias, ao combinar a álgebra das relações e a taxinomia dos símbolos. Ao trabalhar o esquema estrutural, introduziremos a distinção en­ tre estrutura e estruturalismo, com o objetivo de mostrar que a estrutu­ ra não é cativa dos estruturalistas, bem como de incluir outros parâme­ tros na categoria de estrutura, de modo a torná-la compatível com a abordagem estrutural tal como é levada a cabo pelo estruturalismo, especialmente por Lévi-Strauss. Tal distinção é tanto oportuna quanto necessária, uma vez que, como é sabido, entre aqueles que comumente são situados dentro daquela corrente não faltam pensadores que não escondem seu desconforto e preferem distanciar-se. Tal é o caso de Gueroult, em quem muitos vêem o grande representante do estrutura­ lismo dentro da filosofia, e que no entanto em mais de uma ocasião repudiou sua inclusão, de medo de ver seu nome identificado a uma moda, preferindo dizer que em suas exegeses fazia análise estrutural tão-somente. Outro autor que num primeiro momento não via maiores problemas de ser assimilado e que depois, mais desconfortado, resol­ veu tomar distância, foi Michel Foucault, ao dizer que não fazia nem mesmo análise estrutural, mas análise genealógica ou genealogia. Há ainda Marx e Freud, já mencionados, que se referem à estrutura sem, todavia, integrarem-se à corrente do estruturalismo. Quanto aos parâ­ metros a serem incorporados para transformar a estrutura em suas múltiplas acepções na estrutura dos estruturalistas, devemos incluir sem dúvida o binarismo ou a idéia de que os termos da estrutura devem ser dispostos dois a dois; a primazia da estrutura sobre os elementos ou a idéia de que a estrutura é um conjunto fechado e finito, sendo maior do que a soma das partes ou de seus elementos; a exaustividade da análise, mediante a inclusão do exame de protótipos bem como de variantes, com a ajuda de modelos topológicos. E nessa última via, junto com os parâmetros acima elencados, que vamos encontrar Lévi-Strauss. Ambicioso, integra ao programa estruturalista em antropologia a determinação da estrutura da sociedade, das relações de parentesco e do sistema dos mitos. Em suas análises na Antropologia estrutural e nas Mitológicas, tendo encontrado a estrutu­ 96

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ra, não hesitou autorizar membros de sua equipe, ou ele próprio a partir, na busca da fórmula canônica do mito. Nessa empreitada, será tomado como modelo, na Antropologia, o mito de Edipo, enquanto nas Mito­ lógicas o mito de referência, sem todavia dar-lhe o status de protótipo, será o mito bororó do ninho das araras, tomado como uma das tantas variantes do mito do “dénicheur d ’oiseaux”. Donde a impressão de um programa não só ambicioso, mas consistente e dotado de um enorme poder irradiador, a tal ponto que foi capaz de criar uma corrente de pensamento, o estruturalismo, do qual Lévi-Strauss é considerado o pai e até hoje mantém-se fiel ao programa. Donde nossa decisão de corri­ gir Granger e destacar o nome do antropólogo. Apresentados os quatro esquemas, na seqüência chamaremos a atenção do leitor para dois problemas ligados às formas de explicação dos fenômenos humano-sociais no âmbito das ciências humanas: 1) o emprego das matemáticas, visando conferir maior objetividade, além de rigor ou exatidão, à análise dos fenômenos humano-sociais, exami­ nados por Granger; 2) a necessidade de articulação dos níveis descriti­ vo, explicativo e interpretativo (compreensivo) na análise dos ditos fe­ nômenos, associada ou não ao emprego das matemáticas. O emprego das matemáticas, corriqueiro nas ciências exatas, se deu de modo um tanto rarefeito quando do surgimento das ciências humanas, e ainda assim algo restrito à economia, a ponto de muitos estudiosos de outras áreas julgarem ser dispensável ou até mesmo inde­ sejável sua extensão aos objetos e negócios humanos. Todavia, o em­ prego das ferramentas daquelas ciências ganhou livre curso depois que elas se consolidaram, como o ilustra a obra As estruturas elementares do parentesco de Lévi-Strauss, ao utilizar os esquemas da álgebra e as téc­ nicas dos grafos, conforme assinala Granger15. Outro exemplo emble­ mático, além dos grafos, foi o emprego da análise infinitesimal, intro­ duzida na economia marginalista por St. Jevons (1871), Walras (1873) e explorada, com maestria, segundo Granger, por Pareto (1896), A. Marshall (1890) e uma plêiade de sucessores. Outro exemplo, mais recente, foi o emprego da teoria dos jogos, introduzida por um mate15. G

ranger,

G . G ., op. cit., 95-96.

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mático (J. von Neumann) e por um economista (O. Morgenstern). Se­ gundo nosso autor, o economista e o matemático propuseram, no campo da matemática das probabilidades, porém distintas dos métodos esta­ tísticos, que são mais estáticos, um conjunto mais dinâmico, que de­ pois se mostrará extremamente fértil na análise dos fenômenos huma­ nos. O que caracteriza seu método é a presença, como mostra o epistemólogo, de “modelos abstratos de comportamento de jogo ou de conflito nos quais cada um dos protagonistas tem várias táticas conhe­ cidas, sendo os ganhadores de cada um resultantes da conjunção das táticas dos adversários, também conhecidos por todos, apesar de cada jogador ignorar, evidentemente, a cada lance, a tática que vai ser ado­ tada por seu adversário”16. Entre as disciplinas das ciências humanas beneficiadas pela teoria dos jogos, podem ser citadas as ciências polí­ ticas e a própria economia, desmentindo mais uma vez a idéia de que as ciências humanas são alheias às matemáticas ou de que para elas mais valem a erudição histórica e a imaginação criadora do estudioso de suas matérias (qual o poeta) do que os teoremas da geometria ou as operações da álgebra. Por fim, quanto aos quatro heróis-fundadores das ciências huma­ nas (Marx, Lévi-Strauss, Weber e Durkheim) que integram, sem ne­ nhum direito de exclusividade (há Saussure, Freud e outros pensado­ res ilustres), o campo de nossas investigações, não citados por Granger a este título ou não reconhecidos por ele como tais, cabe mencionar: 1) no tocante a Durkheim, o emprego da estatística na análise do sui­ cídio, sugerido pelos trabalhos de Quételet (teoria do homem médio), os quais estão na origem da criação da chamada estatística social, tam­ bém conhecida no século XIX como estatística moral, de uso corrente por criminalistas e sociólogos de diferentes linhagens, até mesmo pelos marxistas; 2) com respeito a Marx, o emprego da matemática nos três livros de O capital, emprego ali abundante e de fundo, e não simples­ mente tópico e de superfície, porém de todo ausente no 18 Brumário; 3) da parte de Lévi-Strauss, como já salientado, um grande apreço pela análise matemática em toda a extensão de sua obra, em contraste com 16. Ibid., 96. 98

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uma certa reserva em relação à análise estatística, a qual nunca chegou realmente a praticar, reserva que vai junto com o reconhecimento da importância do modelo estatístico para a compreensão dos fenômenos humano-sociais, sem todavia precisar — vimo-lo — em que consiste tal modelo; 4) quanto a Weber, sua indiferença relativamente aos métodos matemáticos e estatísticos, seja na Ética (em que as tabelas estatísticas aparecem no início, para ser abandonadas depois), seja em outras obras, ainda que reconheça nas matemáticas um poderoso ins­ trumento de objetivação, além de potente meio de racionalização no Ocidente moderno. A articulação entre a descrição, a explicação e a interpretação (com­ preensão), associada ou não à prescrição, dissociada ou não das mate­ máticas, vai ser trabalhada por nós no próximo capítulo. Ao nos ocupar desses tópicos, a par da atenção usual concedida à descrição e à expli­ cação, procuraremos mostrar a compatibilidade, com os métodos ditos científicos, de abordagens que introduzem em seus esquemas interpretativos um conjunto de elementos prescritivos, e conseqüentemente ideativos, em vista de pensar o social. Assim, as normas morais e jurí­ dicas, bem como as utopias, cujo caráter “u-tópico” (fora do espaço) e “u-crônico” (fora do tempo) não impede que elas sirvam de métron para avaliar os fenômenos histórico-sociais, e enquanto tais, em sua condição de fenômenos empíricos, situados no espaço e no tempo. O fundamento da introdução desses elementos reside nos próprios fenô­ menos sociais, em que os fatos vão junto com os valores e as significa­ ções, o real vai pari passu com o ideal, o consumado com o desejável (ou não-desejável) e o necessário e o impossível (por já ter ocorrido e não poder ser cancelado) com o contingente e o possível (ainda por se fazer ou podendo ser de outra maneira). Indo além de Granger, diremos que a incorporação das matemáti­ cas nos esquemas das ciências humanas se justifica tanto por seus im­ portantes serviços, como ferramenta analítica, na montagem e no tra­ tamento da base empírica (nível descritivo) quanto por seu papel de poderoso meio de objetivação das conexões causais e funcionais dos fenômenos (nível explicativo e, por extensão, interpretativo). E o que nos ensina Durkheim, que, sem a estatística, ficaria privado, em sua 99

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obra famosa, do meio para agregar os indivíduos e, conseqüentemente, não teria como mostrar ou acessar o suicídio como fenômeno social. E mais: um instrumento tão mais importante e poderoso que uma sim­ ples fórmula matemática — como bem viu Merton — vale para nosso assentimento e nossa convicção mais do que uma torrente de palavras e quilômetros de discurso (veja-se a famosa fórmula E = m c2). Porém, como certos expedientes de retórica, a própria matemática pode ser­ vir de peça de retórica e de uma verdadeira maquinaria de guerra, ao modo de um argumento ad hominem, e como tal destinada em seu emprego mais a esconder nossas fraquezas e aquilo que pensamos mal e obscuramente do que a expor a força de nosso raciocínio e a potência do pensamento. Tal seria o caso das correlações estatísticas (chamadas algumas delas de espúrias) entre certas doenças e certos hábitos ali­ mentares, tão ao gosto dos americanos, e também o caso de muitos economistas ao se referirem à relação entre o chuchu (que ficou caro) e a taxa de inflação (que aumentou — logo o chuchu é o vilão), como no Brasil em passado recente. Todavia, tanto em sua fraqueza como em sua força, a fertilidade e a esterilidade da matemática, como de resto ocorre com todo instru­ mento, vão depender da capacidade ou do engenho do artífice, além do fim visado em seu uso ou de seu escopo. A condição requerida para tal é, por um lado, sua pertinência ao objeto; por outro, o emprego de técnicas condizentes com o material empírico a nosso dispor. E o que têm em mente os quatro pensadores estudados ao invoca­ rem mais ou menos tacitamente o argumento do criador, a partir do qual eles pensam a articulação entre a descrição, a explicação e a inter­ pretação dos fenômenos sociais, conferindo à matemática a condição de ferramenta do conhecimento. Além de sua função cognitiva, houve quem reconhecesse nas matemáticas, junto com seu papel extraordiná­ rio no processo de racionalização do Ocidente, o status de poderoso instrumento para a elaboração de tecnologias sociais. Foi o que mos­ trou Weber em sua análise da burocracia, ao ressaltar sua fusão com a ratio econômica e o direito. Na seqüência, tendo corrigido as deficiências das propostas de Berthelot e Granger, procuraremos desenvolver os esquemas explicativos

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acima elencados, reformulando parcialmente a terminologia e incor­ porando novos aspectos. A reformulação da terminologia aparecerá no tocante ao esquema causal, reservado por Granger a Durkheim: na nossa investigação ele será substituído, ao retermos Durkheim e a cau­ salidade durkheimiana, que associa causa e lei, pela expressão “esque­ ma positivista”, que abriga em seu esquema explicativo os esquemas causais e funcionais (outro argumento em favor da mudança de termi­ nologia é o fato bastante conhecido de que a causalidade aparece em Weber, Marx e Lévi-Strauss: por que então restringi-la a Durkheim ou dela se servir exclusivamente para nomear a via do sociólogo?). Entre os novos aspectos incorporados, entram no esquema explicativo, além da causalidade, as explicações funcional, genética, histórica e teleológica. Com o novos aspectos entram ainda, além das diferentes formas de explicação, as diversas formas de descrição e interpretação dos fe­ nômenos humano-sociais, resultando no tripé metodológico da des­ crição, da explicação e da interpretação, cujo conjunto será analisado no próximo capítulo. Por fim, entra a chamada tipologia das formas de pensamento ou dos esquemas mentais, presentes na descrição, na explicação e na interpretação dos fenômenos humano-sociais. Tal ti­ pologia nos conduzirá, em diferentes momentos da investigação, a privilegiar 1) no esquema do positivismo funcionalista, as dicotomias e dualidades, 2) no esquema da hermenêutica weberiana, seja o tensionamento das díades, seja suas cisões ou conjunções, seja a inclusão de elos partidos ou mesmo a reversão pura e simples dos elementos, resultando o conjunto num emaranhado, 3) no esquema da dialética, as oposições e contradições, associadas tanto ao conflito dos opostos como à sua reconciliação por meio da inclusão dos elos intermediá­ rios, 4) no esquema estrutural, o mapeamento das diferenças e das oposições, organizadas em pares diversos e associadas a relações de conjunção e disjunção. A tais esquemas, recobrindo esse conjunto de aspectos, chamamos justamente de padrões de cientificidade das ciências humanas, cujo exa­ me mais detido será efetuado nas páginas que seguem, ao nos ocupar­ mos das obras de Durkheim, Weber, Marx e Lévi-Strauss — Durkheim e Weber, no primeiro tomo do livro; Marx e Lévi-Strauss, no segundo.

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Capítulo 4

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (compreensão): problemas, paradoxos e controvérsias

Diante da necessidade de articular num mesmo método os níveis descritivo, explicativo e interpretativo (compreensivo) para empreen­ der a análise científica dos fenômenos humano-sociais1, já comentada por nós, destacaremos cada um deles, apontando os problemas, os pa­ radoxos e as controvérsias. 1. Ao nos ocuparmos do tripé metodológico da descrição, da explicação e da inter­ pretação, enfatizando seus aspectos epistemológicos, em vista de trabalharmos as obras de Weber e Durkheim (tomo 1), assim com o dc Lévi-Strauss e Marx (tomo 2), longe de nós pretender sua exclusividade. D e tal tripé não falta quem diga não se tratar de fato de um a tríade, mas de um a díade, haja vista a redutibilidade da interpretação à expli­ cação e vice-versa. D a mesma forma que não faltam estudiosos que pretendem ser pos­ sível acrescentar à lista, com ou sem o tripé, a predição e a prescrição. Assim, a predição aparecerá tanto na extensão da interpretação como na da explicação (explicar para prever), ao passo que a prescrição, além de ser encontrada no objeto, nas diferentes formas da ação humana, estará presente no coração do método ao prescrever condutas (passos), descrições e explicações (mapear antecedentes e conseqüentes), bem como na própria tecnologia, que é um conhecimento com a característica de prescrever condu­ tas relativamente a objetos e processos. Sem desconhecer essas possibilidades, diremos a favor da nossa abordagem que a prescrição e a predição são menos abrangentes do que 103

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1. Descrição Toda ciência, exceto a matemática, depende de uma base empíri­ ca, montada com a ajuda de descrições, a partir das notas da observa­ ção e da experiência. A descrição, por sua vez, envolve recortes, seleções e abstrações do real, podendo operar seja no nível do micro e do detalhe (afunilamento/verticalização), seja no nível do macro e do global (generalização/ horizontalização). Um bom exemplo dos recortes, seleções e abstrações nos dá o es­ tudo do som: 1) um físico, ao se ocupar do som, dele reterá seu aspecto acústico e o descreverá em termos de amplitude, freqüência ou vibra­ ção; 2) um fisiólogo descreverá os mecanismos de sua produção, pon­ do em relevo os órgãos fonadores (língua, palato etc.) e seu modo de agir ou de operar; 3) um lingüista reterá apenas a capacidade do som de produzir a significação (sentido) e descreverá os aspectos fonético, sintático, semântico e pragmático envolvidos no processo. A física, em suas descrições, muitas delas feitas com a ajuda da matemática, e por isso mesmo consideradas precisas e objetivas, há algum tempo está familiarizada com a linguagem do ponto de vista e da perspectiva, quando descobriu para certas classes de fenômenos que um mesmo objeto pode ser descrito de maneiras não só diferentes, mas opostas e mesmo contraditórias, como no caso da luz, que pode ser descrita em termos de onda e de partícula. No terreno dos fenômenos histórico-sociais, a exemplo dos natu­ rais, a descrição pode dar-se numa escala espacial, temporal ou numa combinação das duas. Um bom exemplo dessas possibilidades é fornecido pela cidade de Paris. Mais do que qualquer outra metrópole do Ocidente (hoje talvez o tripé, havendo ciências pouco afeitas à predição, como a história, a paleontologia, a anatomia e a cosmologia (ao descrever a origem do cosmo), e existindo na prescrição a restrição maior de afastar em ciência a moral e os juízos de valor. M ais adiante nos ocuparemos tanto da articulação dos elementos prescritivos com o tripé como da distin­ ção entre explicação e interpretação (compreensão) na análise dos fenômenos socioculturais. Tais considerações serão, entretanto, pontuais, um a vez que nosso intuito é en­ fatizar o tripé e estendê-lo, a título de aplicação, aos quatro autores. 104

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

com a concorrência de Nova York), suas características despertaram a curiosidade de intelectuais, artistas, filósofos e cientistas sociais de dife­ rentes períodos da modernidade, colocando em relevo um ou outro aspecto da capital dos franceses, donde resulta um quadro cujos ele­ mentos nem sempre são compatíveis ou ajustáveis. Assim, no século XVI, Montaigne, em seus Ensaios, se referirá a Paris como o lugar de repouso e de retiro para a velhice2. Rousseau, nascido em Genebra, com um espírito hípercrítico corrosivo, e profundo conhecedor da Fran­ ça, por cujas terras muito circulou, diz de Paris, no Emílio, que não há outra cidade na face da terra onde o gosto geral seja tão mau ou detes­ tável, e também o lugar onde o bom gosto seja tão bem cultivado, re­ sultando num refinamento intelectual sem concorrente em outros can­ tos do planeta e na própria Europa: “Se tiverdes uma centelha de gê­ nio, passai um ano em Paris; logo sereis tudo o que podeis ser, ou jamais sereis nada'”3. Montesquieu, por sua vez, nas Cartas persas, nos oferece um outro ponto de vista de Paris: o do estrangeiro experimentando o chamado choque de cultura, com o conhecido estranhamento que o acompanha, e ao mesmo tempo sofrendo os efeitos do processo de aculturação que o leva a adotar os valores de uma outra civilização e a esquecer-se dos seus. Tal é o caso de dois persas que, em pleno século XVIII (os personagens e as datas são fictícios), se instalam na cidade do Sena, abandonando suas mulheres e seus haréns na velha capital da Pérsia (Isphahan), com o objetivo de instruir-se nas ciências do Ociden­ te4. Uma outra perspectiva e um outro ponto de vista encontraremos em Michel Foucault, que em Vigiar e punir, citando um autor anôni­ mo do século XIX, se referirá a Paris como a “cidade carcerária”, onde as pessoas se vêem presas ou atadas ao poder e às relações de poder, gerando a guerra encarniçada de todos contra todos: de um lado, o comércio com suas fraudes e bancarrotas, a indústria e suas lutas furio­ sas, a imprensa e seus sofismas, os ricos sem coração; de outro, o povo com suas misérias chafurdando na lama, as prisões, os patíbulos e os 2. MONTAIGNE, M . Ensaios. São Paulo, Abril (col. Os Pensadores), 1972, 442-443. 3. ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou D a educação. São Paulo, Martins Fontes, 1999,471-472. 4. MONTESQUIEU. “Lettres Persannes”, in Oeuvres complètes. Paris, Seuil, 1964; çf. p. ex. cartas 63, 100 e 106 (p. 95, 114-115 e 118). 105

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pelourinhos para os grandes e pequenos delitos, os hospitais para as doenças geradas pela cidade, os locais de trabalho forçado de homens, mulheres e crianças5. Uma perspectiva diferente e mesmo oposta nos dá Walter Benjamin, ao falar de Paris como a cidade do espelho e a capital das artes, com suas vitrines enfeitadas e seus cafés cheios de espelhos para clarear o ambiente e as mulheres se mirarem, cortada ao meio pelo Sena, que é o espelho da cidade, fragmentando suas imagens em mil pedaços6. Outra, enfim, será a descrição de Pierre Bourdieu ao falar, nas Regras da arte, dos personagens da Educação sentimental, de Flaubert, a partir da perspectiva da sociologia. A seu modo, colocará em relevo o espaço social habitado por classes sociais, esquadrinhando os movimentos de ascensão e queda dos indivíduos em suas trajetórias pelos bairros da cidade-luz e mapeando os quartiers chics, os cortiços operários, os bairros boêmios, as mulheres fáceis (lorettes e grisettes), os aristocratas aburguesados, os intelectuais, os artistas e os frustrados7. Dir-se-á dessas diversas descrições de Paris que elas nos dão diferen­ tes perspectivas do mesmo objeto, perspectivas que variarão segundo o ponto de vista e o aspecto selecionados (estético, político, sociológico, histórico, cultural etc.), podendo redundar, como em toda descrição, tanto numa melhora como numa piora do objeto descrito, e podendo resultar de diferentes combinações de escalas espacial e temporal do fenômeno. Assim, dir-se-á que o olhar de Montaigne é temporal (Paris = local de repouso e de retiro para os tempos da velhice), enquanto o de Foucault é espacial (aponta no mapa da cidade os círculos que a constituem: no primeiro círculo ou círculo central, os hospitais, os asilos e os hospícios; no segundo círculo ou círculo intermediário, os quar­ téis, as prisões e os tribunais; nos quatro cantos, a câmara de deputados, o senado e o palácio do rei; na periferia...). Já o olhar de Benjamin, diferentemente, é espácio-temporal (Paris = cidade dos livros, das biblio­ tecas e dos quais desnudos do Sena onde se deitou há séculos a hera de folhas eruditas = tempo/Paris = cidade nos e dos espelhos = espaço). 5. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977, 268. 6. BENJAMIN, W. Obras escolhidas (v. 2). São Paulo, Brasiliense, 195-198. 7. BOURDIEU, P. “Apêndice 3 — A Paris de ‘A educação sentimental’”, in As regras da arte. São Paulo, C ia. das Letras, 1996, 56-59. 106

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

Contudo, bem pesadas as coisas, tanto em Foucault como em Montaigne, a descrição temporal é também espacial (Montaigne: Paris = lugar) e vice-versa (Foucault: Paris = cidade carcerária * da cidade dos suplícios e do corpo político do rei do início da modernidade, bem como das punições exemplares = reeducação sonhada pelos reforma­ dores cinqüenta anos antes). Da mesma forma, na descrição de Bourdieu há a reversão do espaço e do tempo, sendo as coordenadas de um coextensivas às do outro (estratificação espacial = mobilidade tempo­ ral): a predominância de um ou outro aspecto é uma questão de ênfase, a depender da escolha ou seleção do sujeito (observador), não podendo uma ocorrer sem os elementos da outra. No plano da ação social, além dos aspectos objetivos dos compor­ tamentos dos homens, a descrição deverá incidir sobre um conjunto de elementos subjetivos, tais como as intenções, os sentimentos, a cons­ ciência, os valores e os fins visados pelos agentes. Um bom exemplo da descrição das ações intencionais nos dá Anscombe na obra Intenção, publicada originariamente em inglês e tra­ duzida para o castelhano em 19918. Senão, vejamos: “23 — Perguntemo-nos: existe uma descrição que seja a descrição de uma ação inten­ cional, se se admite a existência de uma ação intencional? E conside­ remos uma situação concreta. Um homem está bombeando água po­ tável para a cisterna de um edifício. Alguém descobriu uma maneira de contaminar sistematicamente o manancial com um veneno cumulati­ vo mortal, cujos efeitos não são percebidos até que resultem incuráveis. O edifício é habitado por um pequeno grupo de dirigentes políticos e suas famílias, o qual controla uma grande nação; estão co-implicados no extermínio de judeus e possivelmente planejam uma guerra mun­ dial. O homem que contaminou o manancial supõe que se essas pes­ soas forem destruídas indivíduos honestos assumirão o poder e gover­ narão apropriadamente, ou inclusive poderão instaurar o reino dos céus na terra e assegurarão o bem-estar de todo o povo. Essa pessoa tem confessado suas suposições, além do assunto do veneno, ao homem que está bombeando. Demais, a morte dos habitantes do edifício acar8. ANSCOM BE, G. E. M. Intención. Barcelona/Buenos Aires/México, Paidós/ICE, 1991. 107

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retará muitos outros efeitos; entre eles, certo número de pessoas, desco­ nhecidas para estes dois homens, receberão heranças (das vítimas), que não sabem de nada” . Acrescenta Anscombe em seguida que “O braço deste homem sobe e baixa, sobe e baixa. Alguns músculos, cujos nomes em latim os mé­ dicos conhecem, se contraem e se relaxam. Certas substâncias se ge­ ram em algumas fibras nervosas, substâncias cuja secreção durante um movimento voluntário interessa aos fisiólogos. O braço em movimento projeta uma sombra entre as rochas, donde, em um ponto e a partir de uma certa posição, produz um efeito curioso, como se um rosto se insinuasse entre as pedras. Além do mais, a bomba emite uma série de ruídos estridentes que seguem um ritmo definido”. Pergunta-se então Anscombe: “Que está fazendo este homem? Qual é a descrição de sua ação?” E responde: “Primeiro, de saída, qualquer descrição do que está ocorrendo, que inclua o homem como sujeito e que seja verdadeira. Por exemplo, é um assalariado, está mantendo sua família, está gastan­ do a sola de seus sapatos, está contaminando o ar. Transpira, secreta essas substâncias em suas fibras nervosas (...)”9. Nesse nível da descrição, em que se volta ao “quê” alguém está fazendo, atendida a condição de se reportar a coisas que ocorreram realmente e de o observador se limitar a catalogá-las ou a registrá-las, e por mais variadas que sejam as formas de fazê-lo (alguém reterá o suor; outras pessoas reterão o movimento dos braços; outras, o gasto da sola dos sapatos; outras, tudo isso e mais um pouco), todas em princípio são válidas. E desde então não há a descrição ou uma descrição única. Para reduzir o âmbito ou o espectro das descrições e chegar ao ponto que interessa — a descrição das ações intencionais —, Anscom­ be propõe então que, em vez de nos limitarmos ao “quê”, pergunte­ mos: “por que” o indivíduo está fazendo isso? Segundo ela, ‘“ está fazendo X ’ constitui a descrição de uma ação intencional se a) é verdadeira e b) existe uma resposta dentro da ca­ tegoria definida para a pergunta ‘Por que está fazendo X?’”. Destarte, 9. Ib id ., 85.

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Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

ficariam descartadas por exemplo, por falta de pertinência, descrições para perguntas do tipo “Por que está contraindo os músculos?” ou “Por que está secretando essas substâncias em suas fibras nervosas?”, por não se tratar de ações voluntárias e propriamente intencionais. As coisas se passariam dessa forma, a menos que o indivíduo em questão, com conhe­ cimentos em anatomia e fisiologia, se propusesse consciente e delibe­ radamente a empregar esses conhecimentos e procurasse intencional­ mente obter certos efeitos ou intensificar certos resultados. Em contra­ partida, atenderiam às duas exigências acima, devendo ser considera­ das, além de pertinentes, verdadeiras descrições para perguntas do tipo “Por que está subindo e baixando o braço?” e que tivessem como res­ posta: “Estou bombeando”. Atenderiam, igualmente, à seqüência de perguntas a elas ligada, bem como às respostas: “Por que está bombean­ do?” “Estou bombeando para suprir água para o edifício.” “Por que desta maneira, com este ritmo?” “Porque acho divertido.” “Por que está bombeando água?” “Porque precisam dela no edifício”, e em voz bai­ xa: “Para eliminar as pessoas que moram lá”. “Por que está envenenan­ do essas pessoas?” “Para ficarmos livres delas e um outro grupo tomar o poder e ficar no seu lugar.”10 Delimitados os objetos e as perguntas/respostas pertinentes, evi­ dencia-se mais uma vez, ao nos referirmos ao “porquê” das ações inten­ cionais, que não há uma descrição única ou a descrição (no sentido de uma descrição completa). Seja por exemplo (o exemplo é nosso) a ação de alguém ir a Londres. Tal ação poderá ser motivada e intentada pelas razões mais diferentes, pela mesma pessoa ou por outras diferen­ tes. Solicitado a responder à pergunta “Por que você foi a Londres?”, o indivíduo em questão poderá responder “Fui a Londres para fazer com que meu tio altere seu testamento” ou “Fui a Londres para ver minha namorada”. Quer dizer, uma mesma ação recebe uma significação di­ ferente, em função das diferentes intenções, motivos e fins que a acom­ panham ou a deflagraram. Assim, pergunta-se Anscombe: “Que devemos dizer acerca dessa diversidade de descrição de uma ação intencional? Teremos de afirmar 10. Ib id ., 86 -8 7 .

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que existem tantas ações distintas quantas descrições possamos fazer, tomando X como ponto de partida?” Perguntamos: “por que está fazen­ do X?”. Respondemos: “para Y” . Donde a seqüência: ‘“Por que está mo­ vendo o braço de cima para baixo?’ ‘Para acionar a bomba.’ ‘Por que está bombeando?’ ‘Para reabastecer o depósito de água.’ ‘Por que está reabas­ tecendo o depósito de água?’ ‘Para envenenar os inquilinos.”’ —o que de fato está fazendo, já que eles em verdade estão se envenenando11. Se a descrição da intenção se interrompesse aqui, junto com a seqüência de perguntas “por q u e...” e de respostas “para isso ou aqui­ lo”, poderíamos dar-nos por satisfeitos, e concluir então que há tantas ações quantas descrições possíveis? Ou será tantas descrições quantas ações possíveis, ou tantas descrições quantas intenções possíveis? Anscombe não responde, nem sequer formula a pergunta, nem mesmo se, em se tratando de um mesmo agente, temos uma mesma ação (ação de envenenar), ou aspectos diferentes de uma mesma ação, ou simples­ mente ações diferentes. Contenta-se ela em mostrar que, ao se chegar a esse ponto, introduz-se nas descrições uma inflexão da maior importância, já que a resposta para a pergunta “por que está bombeando?”, além da explica­ ção “para envenenar os inquilinos”, concorre, no nível das intenções, com outras respostas possíveis. Consideradas em conjunto, em sua dupla referência a expectativas futuras e a fatos transcorridos na atualidade, as descrições se desnivelam e se encavalam, sem que seu conteúdo e sua adequação aos fatos sempre possam ser verificados'2, de modo que possamos dizer: está salvando os judeus, está instaurando o reino dos céus, está dando o poder a homens honestos — a mesmo título, com a mesma extensão (alcance) e com o mesmo grau de realidade que dizemos “está envenenando os inquilinos”. Daí, com base numa cons­ tatação tida como certa, a pergunta, paradoxal, com que Anscombe encerra suas reflexões sobre a descrição das ações intencionais: “já que encontramos quatro descrições distintas que satisfazem nossas con­ dições, a saber, mover o braço de cima para baixo, acionar a bomba, 11. Ibid., 89. 12. Lembremo-nos da primeira exigência metodológica de Anscombe: a descrição deve ser verdadeira = corresponder aos fatos — mas quais são os fatos relativos ao futuro?

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Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

reabastecer o fluxo d’água e envenenar os ocupantes do edifício, temos diante de nós quatro ações?”1J Para responder à pergunta embaraçosa, a autora julga que algumas dificuldades preliminares têm de ser afastadas (o que ela faz ao longo do parágrafo 24). Uma delas concerne à articulação entre bombear e envenenar (nem todo bombear é envenenar — depende do contexto, das circunstâncias e, também, da intenção dos agentes co-implicados). Uma outra envolve a articulação entre 1) a intenção de envenenar, 2) a persistência da intenção e dos atos que a acompanham na seqüência temporal, 3) o resultado efetivo a que ao fim e ao cabo se chega (como o veneno é cumulativo, nenhum ato isolado de ministrar veneno cons­ titui por si mesmo um envenenamento, e o envenenamento só se con­ suma com a morte dos envenenados, não antes). Uma outra, enfim, no tocante à responsabilidade moral pelo envenenamento (Quem enve­ nenou? Não foi uma outra pessoa que verteu veneno na água, com quem o envenenador estava conversando?). Assim, pergunta-se nossa autora: supondo então que o processo de envenenamento foi cumula­ tivo e dependeu da ação do próprio tempo, ‘“ Quando envenenou o homem os inquilinos?’. Poderíamos responder: durante todo o tempo em que resultaram envenenados. Não obstante, nesse caso, poder-se-ia replicar: ‘O fato de os envenenar não foi o único ato [impetrado pelo envenenador - ID], pois talvez, quando estas pessoas bebiam o veneno, ele não tivesse feito nada relacionado com isso’ [tinha ido ao cinema, por exemplo - ID]. Por acaso, seria preciso responder à pergunta de quando os envenenou exatamente, mediante a enumeração dos distin­ tos momentos em que verteu o veneno? Sem embargo, nenhum desses momentos pode ser chamado por si mesmo de envenenamento dos inquilinos; como podemos dizer então que o bombeamento presente de nosso homem é um ato intencional de envenenamento? Ou deve­ mos chegar à conclusão de que não os envenenou em nenhum mo­ mento, porque não se ocupava disso durante o período em que eles estavam se envenenando? Não nos é possível afirmar que, porquanto em algum momento os envenenou, deve haver ações que possamos 13. A n s c o m b e , G . E. M , op. cit., 90.

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denominar ‘envenená-los’, e nas quais encontremos algo que signifique isto. Pois nos atos de bombear água envenenada não ocorre nada em particular que não pudesse ocorrer com a mesma exatidão se tivessem sido atos de bombear água sem veneno [ou seja: não há um ato espe­ cífico que corresponda à descrição, e do ponto de vista dos atos envol­ vidos bombear água com ou sem veneno é a mesma coisa; o que os distingue é a intenção de envenenar e a decisão de verter veneno na água - ID ]. Inclusive se supomos que na mente do homem se sucedem imagens dos habitantes já falecidos, e que isso lhe provoque prazer, poderiam apresentar-se as mesmas imagens na mente de outra pessoa que não estivesse envenenando-os, e não é necessário que elas ocorram em nosso homem. Aparentemente, a diferença se radica nas circuns­ tâncias, não no que ocorre neste momento”14. Quer dizer: a descrição, no tocante ao tempo, depende do todo (seqüência temporal), não de um momento isolado. Examinados esses aspectos, Anscombe indaga da intenção do in­ divíduo que verteu veneno no manancial e bombeava a água, levando em conta o fato decisivo de que ele o fez por solicitação de um tercei­ ro, com quem estava conversando justamente sobre o assunto. Pode­ ria ele ser co-implicado e responsabilizado moral e juridicamente pelo crime (ato de envenenar)? Suponhamos que ante a pergunta “Por que você encheu a cisterna do edifício com água envenenada?” ele respon­ da: “Queria apenas receber meu pagamento; apenas realizei meu tra­ balho habitual” . No caso, seria legítimo falar de ato intencional quan­ to à ação de bombear água envenenada para o edifício, não no tocante à ação do executante de envenenar (ao bombear a água letal) os in­ quilinos do edifício, mas à ação do terceiro, que contratou seu serviço e a quem deve ser imputada a responsabilidade por tal ato — poderse-ia acrescentar. Donde a conclusão de Anscombe15 a respeito da justeza de suas análises, que por um lado mostram que seus critérios são corretos, par­ ticularmente — pode-se dizer — quanto à necessidade de correlacio14. Ibid., 90-91. 15. Ibid., 91

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Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

nar os agentes, as intenções, os atos, os segmentos temporais e a própria realidade (se não, de que vale a intenção dos agentes, sem o ato que a acompanha e a sua consecução no real?); por outro, evidenciam como é difícil, com base neles, identificar o ato intencional de envenenar as pessoas em questão (qual é esse ato, em que ele consiste, como se deu ele, quando ocorreu, com que intenção ou intuito?). De nossa parte, reconhecendo os problemas em apreço, acrescen­ taríamos a dificuldade de a autora deixar de ser empirista (por ficar presa ao nível perceptivo, identificado com o plano descritivo) e propor uma abordagem mais adequada, se não da descrição, ao menos da in­ terpretação e seus elementos descritivos, envolvendo os agentes, as ações, os atos, as intenções, os valores e os fins que a integram. Na seqüência vamos ilustrar parte das dificuldades relacionadas com a descrição, tomando como referência a história — num primeiro mo­ mento, com base num exemplo tirado de Marrou, no qual a descrição é acompanhada da exigência de matematização; num segundo, com base em exemplo extraído de Gusdorf, em que a descrição vem dissocia­ da daquela exigência e se atém à observação empírica dos fenômenos. Com ecem os pelo exemplo de Marrou, ao qual nos referimos em nosso livro O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história, e de cujo resumo nos serviremos em seguida. O contexto em apreço é a indaga­ ção acerca do que aconteceria com a narrativa histórica, estando suben­ tendido o nível descritivo da análise, “se examinássemos os fatos his­ tóricos sob a ótica do preceito positivista de voltar às coisas mesmas e dar uma configuração objetiva do tempo histórico, com a ajuda das matemáticas”. Vejamos então o que ocorreria: “ Segundo o eminente historiador francês, teríamos a respeito de um acontecimento histórico bem conhecido um relato como o que segue: ‘Num instante t do devir do universo (o qual se poderia designar referindo-se à precessão dos equinócios e aos movimentos aparentes da lua e do sol), num ponto da superfície terrestre definido pelas coordenadas x° de Lat. Norte e y° de Long. Leste de Greenwinch, no interior de um espaço fechado tendo a forma de um paralelepípedo retângulo, onde se encontravam quase 300 indivíduos da espécie homo sapiens, um novo indivíduo perten­ cente à mesma espécie penetrou [o recinto - ID], descrevendo uma 11?

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trajetória retilínea. No instante t+n, enquanto os outros indivíduos os­ cilavam ligeiramente em torno da sua posição de equilíbrio, 12 se pu­ seram em movimento, descrevendo numa velocidade acelerada traje­ tórias convergentes, que se juntaram no ponto m à trajetória do prece­ dente. Na extremidade apreensível dos membros superiores retos [mãos - ID] dos 12 se encontravam pirâmides afiadas de aço que, graças à força viva, produziram feridas penetrantes no corpo do dito primeiro indivíduo, acarretando sua morte’. Sabemos a que fato se refere este relato esquisito: simplesmente ao assassínio de César, apunhalado por doze homens, sob o comando de Brutus, no Senado de Roma, no dia 15 de março do ano 44 a.C., quase 11 horas da manhã” 16. Ora, tal relato, por mais preciso que ele seja e por mais correto que seja o emprego da matemática, de fato não dá conta das coisas que es­ tão em jogo: a intenção de Brutus e seu grupo, o fim de sua ação (de­ fesa da República), o contexto da história romana, e assim por diante. Sem essas informações adicionais, de pouca serventia será a descrição, ainda que exata e mesmo que completa: simplesmente, na falta de informações contextuais, intencionais e motivacionais dos agentes e seus atos, o nível interpretativo da análise ficaria desguarnecido, e nem mesmo saberíamos, no nível descritivo, que se trata da descrição da morte de César. Da mesma forma que o ato de bombear água, que é compatível com mais de uma descrição, com mais de uma intenção e com mais de um sentido, o relato do assassínio de César e seu signi­ ficado é compatível com mais de uma descrição, e o sentido do ato variará com o ponto de vista dos grupos e dos indivíduos envolvidos, sendo motivo de escárnio para uns (“Até tu, Brutus!”) e de júbilo para outros (“ Era a defesa da República que estava em jogo”). D aí a neces­ sidade de se passar do nível descritivo aos planos explicativo e interpre­ tativo de análise, sem os quais (na falta da hipótese sobre o sentido dos acontecimentos a guiar a descrição) não teremos jamais história (história-ciência), mas crônica ou lenda. 16. Cf. DOMINGUES, I. O fio e a trama — Reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo/Belo Horizonte, Iluminuras/Ed. U FM G , 1996, 211. 114

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

O segundo exemplo também foi comentado em nosso livro O fio e a trama, ao nos referirmos a Gusdorf, que alude a um certo historia­ dor contemporâneo, sem contudo citar seu nome, o qual se pôs a estu­ dar a política alemã de Napoleão Bonaparte, com base no método po­ sitivista, pretensamente mais rigoroso do que os outros, e cujos resulta­ dos (um verdadeiro fiasco) receberam um ataque demolidor de um crítico impiedoso: “Querendo evitar generalizações precipitadas — escreve o crítico —, ele começou por restringir seu tema ao estudo de um só dos Estados alemães da época: a Bavária. Desta Bavária que observava, queria tudo conhecer. Tinha trabalhado mais de 20 anos, acumulando documentos de todos os tipos. Tinha analisado os orça­ mentos do Estado (pays), capítulo por capítulo; contado o número de estabelecimentos comerciais (boutiques) de cada corporação (corps d ’état) de sua capital; enumerado os professores de cada estabeleci­ mento de ensino; levantado (dressé) a lista dos jornais, com o nome de todos os seus redatores; e tinha estudado até a forma pela qual se fazia então o chucrute. Ele chegou a reunir uma documentação tão formi­ dável que ficou completamente submerso nela. Finalmente, entregou [para publicação - ID], em 1942, um enorme volume de 750 páginas in octavo, carregado de notas e referências, no qual a política de Napo­ leão estava perdida no meio de sua barafunda (fatras). Seu livro, que ninguém podia 1er, não servia para nada. Quanto a ele, esgotado por seu esforço, ficou por lá”17. Sobre esse modo de descrever as coisas, diremos que se trata de um exemplo emblemático, com efeito. Não bastassem as dificuldades de descrever as intenções de indivíduos, assinaladas por Anscombe, aqui somam-se outras, relacionadas com as intenções de coletividades intei­ ras (a Bavária, a França etc.), porém escamoteadas pelo autor ao desli­ zar sua análise para as formas objetivadas (sistema de ensino, estabele­ cimentos comerciais, estamento dos professores, meios de comunica­ ção, política de Estado do governo de Napoleão etc.). Nesse contexto, à diferença da história romana da época de César, que padece de falta de documentação, a descrição da Bavária à época napoleônica enfren17. Ib id ., 2 1 2 -2 1 3 .

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tará as dificuldades de seu oposto: o excesso de informação. Diante do dilema (ou a documentação é excessiva ou é lacunar), o historiador deverá suprir as lacunas e cortar o excesso. Para tanto, sem poder con­ tar com a empiria, não terá outro meio ou remédio senão valer-se da teoria, ou seja: apelar ao nível interpretativo, a partir do qual (com a ajuda de suas hipóteses e postulações de sentido) estabelecerá os recor­ tes do real, selecionará a base documental, introduzirá as unidades sig­ nificativas de análise e preencherá as lacunas do real empírico median­ te a incorporação de conjecturas. Donde, mais uma vez, a necessidade de articular os níveis descritivo e interpretativo, mediante a incorpora­ ção do plano explicativo de análise, sem o que a história não é ciência, mas crônica ou lenda, e a sociologia — na falta dos grupos e das clas­ ses, com cuja ajuda se faz a descrição, devendo eles ser construídos (“interpretados”) como termos teóricos antes mesmo de ser descritos ou observados — simples opinião ou senso comum.

2. Explicação Uma vez delimitada a base descritiva, que se atém ao “quê” dos fenômenos observados (“descritos”), a próxima tarefa vai consistir em organizar (ordenar) tal base, com a ajuda de coordenadas espácio-temporais (envolvendo um conjunto de relações de coordenação e de su­ bordinação — no espaço: ordem da simultaneidade; no tempo: ordem da sucessão) —, e indagar não o que os fenômenos (descritos) são, mas como eles se comportam, à luz de uma origem, de uma estrutura ou de um fim (teleologia). Entre as formas de explicação possíveis (genéticas, estruturais, fun­ cionais, finais etc.), há uma que sobressai a ponto de ocupar toda a cena (ou quase), e muitos considerarem que é a forma de explicação por excelência ou a explicação, a saber: a explicação causal. No plano da explicação causal, a pergunta pelo como dos fenôme­ nos leva o observador a adotar dois procedimentos. Por um lado, quan­ do é possível, leva-o a isolar os termos antecedentes e os termos conse­ qüentes, bem como, uma vez percebida a existência de um laço cons­ tante a ligar uns aos outros, a estabelecer que um deles funciona como 116

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

causa e o outro como efeito. Por outro lado, quando não é possível a constatação direta (como é o mais freqüente ou comum), leva-o a ima­ ginar, além da ordem visível observada e conseqüentemente descrita, uma ordem invisível (em analogia com a visível) em que se localizaria a causa profunda dos fenômenos observados, que enquanto tais seriam o efeito dela, bem como a atestação de sua existência. A particularidade da explicação causal é que a causa não pode ser descrita com a ajuda da observação, nem demonstrada com o concurso da razão. Trata-se, antes, de uma postulação ou de uma inferência da razão (no sentido de que atribuímos algo a algo ou de que supomos algo de alguma coisa), com cuja ajuda organizamos a experiência e demonstramos uma propriedade de um objeto qualquer. E mais: algo que vem antes da experiência (se admitimos que a mente funciona assim, com base na experiência), porém nunca junto com a experiên­ cia ou em meio dela. D aí a idéia de a pergunta pelo como levar não só a um distanciamento em relação ao quê dos fenômenos, mas tam­ bém a um desnível, por implicar a passagem da ordem do visível à ordem do invisível, com base na postulação de que ambas as ordens se coordenam entre si e, mesmo, de que uma se subordina à outra, como o ímã (visível) à força da gravitação (invisível), havendo portanto algo de análogo ou comum entre elas. Outra particularidade da explicação causal é sua associação (ou não) à idéia de lei. No caso da física e das ciências naturais, a lei é pensada como uma relação constante entre termos variáveis, um deles funcionando como causa (variável independente), o outro como efeito (variável dependente). No caso das ciências humanas, dois autores que associam a explicação causal à lei (lei-relação) são Marx (lei da tendên­ cia decrescente da taxa de lucro/causa: aumento da composição orgâ­ nica do capital) e Durkheim (a lei do suicídio como função variável do grau de solidariedade social). Um bom exemplo de autor que dissocia a causalidade da lei (lei-relação) é Weber, ao aproximar a idéia de causação à noção de possibilidade (possibilidade objetiva), e não à de necessidade, como na idéia de lei da física. Outra particularidade, no tocante à causalidade em seu uso cien­ tífico, que se atém ao modus operandi dos fenômenos e indaga como 117

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eles se comportam, discriminando os antecedentes e os conseqüentes e organizando-os em relações de coordenação e de subordinação, é a dissociação da pergunta pelo como da pergunta pelo por quê. Ora, a pergunta pelo por quê das coisas, associada à causalidade, invariavel­ mente levava a uma regressão ao infinito, ao modo de uma série de causas, até a causa de todas as causas e que não é causada por nenhuma outra, vale dizer, Deus, que é a causa de si mesmo (causa sui) e a causa de todas as coisas. Tal causa incondicionada (não-causada) podia inte­ ressar ao filósofo bem como ao teólogo, que perguntam pelo modus essendi das coisas (o que as coisas são em sua essência e a natureza do ser que as criou), não ao cientista, que indaga pelo seu modus operandi (como os fenômenos se comportam). A razão argüida pelo cientista é que não podia exercer o menor controle sobre ela (porque longínqua demais, além de demasiadamente dependente de um ato de fé), de­ vendo pois ater-se às causas mais próximas e mais empíricas. Porém, mesmo no nível das causas mais imediatas e empíricas, não é nada fácil a tarefa de imputar causas aos fenômenos observados, pior ainda controlá-las. Para dar uma idéia dessa dificuldade no terreno dos fenômenos histórico-sociais, propomos o exame de um caso histórico bem conhecido: a queda do Império Romano. Esse caso, relatado por Marrou, também foi analisado em nosso livro O fio e a trama, e por isso mesmo nos limitaremos a transcrevê-lo na seqüência. Ei-lo: “Tome­ mos, a título de exemplo, um problema que desafiou os especialistas de diferentes épocas: qual foi a causa da decadência e ruína do Império Romano? — perguntam Gibbon, Maquiavel, Montesquieu, Marx, Max Weber e outros não menos ilustres. A resposta a que chegaram não poderia ser mais desconcertante: ao invés de assinalarem a mesma causa, como era de esperar, eles discre­ param profundamente, cada um apontando a ‘sua’ causa, sem chegar a um denominador comum. Se não, vejamos: perda da virtù e da liberdade com o fim da Repú­ blica (Maquiavel); triunfo do cristianismo e da barbárie (Gibbon); lei do ciclo/ambição desmesurada (Montesquieu); eliminação da elite (Seeck); degenerescência física (Kaphahan) ou racial (T. Frank); seca prolonga­ da (Huntington); degradação do solo (Liebig); luta de classes (Marx); 118

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

declínio do escravismo e retorno à economia natural (Weber); invasões bárbaras conjugadas com a insatisfação das massas (Toynbee) etc. Ante tamanha diversidade de respostas, os historiadores não se de­ ram, porém, por vencidos, e trataram logo de contornar a dificuldade. Há aqueles que, em vez de abandonar a causalidade histórica, pre­ feriram acreditar que a falta de unanimidade era devida não à insufi­ ciência do princípio, mas à deficiência do próprio analista, que não soube sopesar a rede das causas para assinalar a causa profunda ou, mesmo, não soube combinar a pluralidade de causas para dar uma explicação total, como Montesquieu no Espírito das leis. Mas há também aqueles que, ainda que sem terem em vista esse exemplo, propõem o abandono puro e simples da causalidade históri­ ca. E o caso de Paul Veyne, que diz que esta não passa de um princípio pré-histórico ou proto-histórico da epistemologia da História”18. Desse exemplo perturbador, gostaríamos de reter a idéia de que a mesma base factual é compatível com mais de uma explicação causal, ficando a escolha da causa a depender de um contexto mais amplo, que se decide em outro nível de análise. Esse contexto é a ordem da interpretação, e como tal da alçada da teoria, que deverá encarregarse tanto da compatibilização da base factual à explicação causal, deci­ dindo por exemplo que tipo de causalidade está em jogo, como do ajuste da descrição e da explicação à interpretação, ao introduzir as unidades significativas de análise, como as hipóteses, os modelos (tipos ideais), as postulações de sentido, e assim por diante. É o que mostra­ remos em seguida.

3. Interpretação (Compreensão) Há quem pretenda (e não são poucos) que a interpretação, junto com a compreensão, já se decide no nível da explicação, e não é senão um de seus aspectos. Tanto é assim que, uma vez descrito e explica­ do um fenômeno, ele já está interpretado e compreendido, bem como está saciada a curiosidade do espírito, que se cala e não pergunta mais 18. Ib id ., 1 8 4 -185.

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nada. Para nos convencermos disso, basta examinarmos o que fazemos quando procuramos entender o fenômeno prosaico do arco-íris. A ex­ plicação da física é que se trata da refração da luz do sol ao propagarse em meio das gotículas esféricas de água, pulverizadas nas nuvens. Uma vez descrito e explicado o fenômeno, ele estará assim interpreta­ do e conseqüentemente compreendido. No caso, então, explicar é com­ preender, e compreender, explicar — nem mais nem menos. Acreditamos todavia, embora reconheçamos que muitas vezes ex­ plicação e interpretação (compreensão) se encavalam e atuam num mesmo nível, que é o caso de distinguir uma da outra, de vez que a ex­ plicação incide sobre os fatos (coisas), já a interpretação envolve a sig­ nificação (sentido) deles (fatos ou coisas). Tal é o que ocorre com o mito, a pintura e a poesia, que não vêem (“interpretam”) o arco-íris como um simples fenômeno ótico junto com o espectro das cores refratadas, mas como um ente fantástico que bombeia água, a encarnação do sublime na natureza e, mesmo, um convite à mulher amada para apreciá-lo a dois no canto de uma praia deserta de areias brancas... Pode-se dizer que o deslizamento dos fatos à significação, ao se passar do nível explicativo ao interpretativo, já ocorre, portanto, no plano da natureza ou do mundo das coisas. Isto porque, se é verdade que a explicação se volta para o modus operandi dos fenômenos e in­ daga como eles se comportam, uns funcionando como causa outros como efeito, em contrapartida a interpretação, mais descolada do empírico e se pondo num nível mais teórico ou mesmo mais “subjeti­ vo”, se volta para o modus significandi dos fenômenos (vale dizer: o modo como nós os significamos, bem como a forma como eles nos interpelam ou nos afetam) e pergunta não pelo como, mas pelo por quê e para quê das coisas ou seu sentido. Tal sentido, mais do que os obje­ tos, incide sobre os sujeitos, e é correlativo a eles. Primitivamente, envol­ via uma relação antes de tudo espacial, como quando alguém procura orientar-se no centro de uma cidade desconhecida guiando-se pelas setas e placas de tráfego. Essa acepção é retida por Kant no famoso escrito sobre “O que é se orientar pelo pensamento?”, ao aludir aos movimentos intentados por alguém, que pode ser cada um de nós, ao procurar orientar-se dentro de um quarto escuro. Por metáfora e ex-

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Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

pansão de sua significação primitiva, o sentido passou a designar, além do espaço, o próprio tempo, cuja expressão mais emblemática é a fa­ mosa indagação — típica das religiões, assim como da filosofia e de certas disciplinas das ciências — sobre a origem e o fim das coisas: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? E este esquema origem-fim, onde o “porquê” se associa ao “para quê” e o espaço se funde com o tempo, incidindo mais sobre os sujeitos do que sobre os objetos, e operando um deslocamento quase imperceptível dos fatos à significa­ ção dos fatos, que torna a interpretação algo mais do que a explicação, embora vá junto com ela e a pressuponha. Foi um pouco assim, com o intuito menos de descrever ou de ex­ plicar cada caso e cada fenômeno em sua particularidade, e mais de interpretar o conjunto dos fenômenos do universo e de reuni-los num sistema unificado de explicação (interpretação), que Newton postulou a teoria geral da gravitação e procedeu à fusão da física terrestre e da física celeste. Foi também assim, para responder não ao como (pois neste nível bastava descrever e expressar em linguagem matemática a trajetória da queda dos corpos ou a curva de um projétil, pouco impor­ tando se o sistema de referência em questão era o sistema de Ptolomeu ou o de Copérnico, de vez que as medidas e observações são as mes­ mas), mas ao porquê das coisas, que Newton invocou (postulou) a exis­ tência de uma força única que funcionava ao modo de um ímã e atua­ va tanto na queda dos graves como no movimento das marés ou dos próprios planetas, a saber: a força da gravitação. Tão adstringente ela é e tão amplo é seu raio de ação, que a gra­ vitação funciona em seu sistema como aquele princípio dinâmico que, de dentro, age sobre as coisas, faz com que elas sejam o que são e se comportem como se comportam, afetando umas às outras e se conver­ tendo (funcionalmente) umas nas outras. Se não, como integrar fenô­ menos tão díspares como a queda de um corpo, o lançamento de um projétil, o movimento das marés e o percurso de um cometa? O come­ ta, por exemplo, ao cair sobre a superfície da terra estará sob o efeito da atração terrestre, poderá mover-se nas águas do mar como um barco e até mesmo afundar, como uma lasca de pedra ou um pedaço de ma­ deira. Demais, os corpos podem estar em movimento ou em repouso,

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a uma ação segue-se uma reação e a atração vem junto com a repulsão. E a teoria da gravitação, ao interpretá-los em termos de força e de sis­ tema de forças, que confere sentido a isso e torna coerente tudo isso. Todas essas considerações têm um fundo de verdade, com efeito, e patenteiam a simbiose dos fatos e das significações no nível das coisas mesmas. A ressalva é não nos esquecermos de que quem pergunta pelo sen­ tido das coisas e do mundo é o próprio homem ou o sujeito, o qual em seu esforço de entender os enigmas do universo é levado a inquirir o “porquê” e “para quê” das coisas, pela origem e pelo fim, fim que pode ser interno ou externo ao mundo. Tal foi, aliás, o caso de Newton, conduzido em sua resposta a interpretar seu sistema mecânico em ter­ mos providencialistas ao invocar o Deus bíblico, pondo-o na origem e no fim do universo. E também de Laplace, ele mesmo um newtoniano, porém que não vê nenhuma necessidade de invocar a Deus e acredita que para explicar as coisas e interpretar o mundo, conferindo-lhe sen­ tido, basta a idéia de uma natureza mecânica auto-regulável (a lembrar que Laplace, instado por Napoleão a dizer qual era o lugar de Deus na economia de seu universo, respondeu-lhe simplesmente: “Je ríai pas besoin de cette hypothèse” ). Outra ressalva é que a natureza e o cosmo, abstraído o homem, são em última análise indiferentes ao sentido ou à falta de sentido, e se o físico, o astrônomo e o biólogo podem perguntar pelo sentido das coi­ sas, ao indagarem pelas três origens (do cosmo, da vida e da consciên­ cia) e pelo fim que nos aguarda (a morte térmica, a desaparição do homem, o fim dos seres vivos etc.), é para logo esbarrarem no limite assinalado por Tolstói. O limite é a impotência da ciência em respon­ der às duas questões que mais interessam em nossas vidas e de cuja resposta fica a depender a definição do sentido metafísico-existencial que emprestamos à nossa presença e missão no mundo, a saber: que devemos fazer? como devemos viver? No mundo dos homens, da cultura e da história, a pergunta pelo sentido e o deslizamento dos fatos à significação ganham um novo teor e alcance, em comparação com o mundo das coisas. Em linhas gerais, qualquer que seja o domínio, a peculiaridade da interpretação é que

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ela, ao indagar do “para quê” e do “porquê” das coisas, à diferença da causalidade (até mesmo da causa produtora, que também pergunta pelo “por quê”), volta-se não exatamente para o fenomênico e sua base factual ou empírica (como na descrição e na explicação), mas para o sentido — das coisas, das ações e do que quer que seja. E assim quando se volta para o grande livro do mundo, ao interpretar a natureza como força e um sistema de forças. É assim quando se volta para o grande livro do mundo da vida, ao interpretar tais sistemas de força como evo­ lução, pressão (do meio), luta (sobrevivência) e seleção (do mais apto). E assim quando se volta para o grande livro do mundo dos homens, ao interpretar a sociedade como fruto do contrato ou de uma associação (sociabilidade originária), o Estado como um instrumento de domina­ ção de classe, a linguagem como um sistema de código fundado numa convenção arbitrária (o signo) etc. Todavia, nesta transição do mundo das coisas ao mundo dos homens há uma particularidade: é que o sen­ tido, que em sua origem era algo factual, como que extrínseco às coisas e tinha um quê de espacial, além de temporal19, adere às coisas e aos negócios humanos, confundindo-se e fundindo-se com eles. Desde então, em sua completa pregnância aos objetos e total imanência a si, o sentido ganha densidade e passa a comportar um peso específico próprio, tornando-se algo psíquico (idealidade) ou mesmo espiritual, quando os homens passam a perguntar pelo sentido (metafísico-existencial) do mundo, da vida e da morte. Unido às coisas (fatos/fenômenos), elas próprias, de coisas que eram, tornam-se símbolos, os quais requerem uma interpretação (teoria), devendo ser decifrados com a ajuda de uma chave de leitura (método), um pouco como na pedra de roseta de Champollion. Com a diferença de que, agora, sabendo que quem indaga do sentido é o homem e que somos nós mesmos que o imputamos aos fatos, seja postulando-o, seja criando-o ou inventando-o, à pergunta pelo “porquê” e “para quê” das coisas, das ações coletivas e dos feitos (obras) dos homens soma-se a pergunta pelo “quem” das coisas, das ações e dos atos dos próprios 19. C om o na seta apontada para a frente, ao orientar o antes e o depois do espaço e do tempo, envolvendo um fim e um com eço ou uma origem e um destino = fim. 123

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agentes humanos, vale dizer, o sujeito. Donde as questões recorrentes, seu questionamento reiterado e sua interpelação contínua: quem as criou? quem lhes confere sentido? a quem imputar a responsabilidade pelas conseqüências dos atos, se nas ações coletivas os resultados des­ colam da intenção dos agentes individuais? Tendo feito do sujeito, isto é, do homem, a fonte do sentido (antes era Deus), imagina-se que, aliando o “porquê” e o “para quê” (motivo) ao “quem” (sujeito), com a ajuda de técnicas adequadas (questão de método), o sentido das coisas seria capturado e seu “mistério” decifra­ do — tal é a idéia de Dilthey, de Weber e de Simmel, e o ponto que os une. O ponto que os separa, não só eles, mas também Heidegger, Gadamer, Ricoeur e Betti, conhecidos (junto com eles) como ligados dire­ ta ou indiretamente à escola hermenêutica, incide tanto sobre questões de doutrina como sobre questões de método, pivoteadas em torno das relações entre a explicação, a interpretação e a compreensão. Assim, Dilthey dissocia explicação e compreensão, seguindo em sua primeira fase o caminho de uma hermenêutica subjetivante. Heidegger e Gadamer entendem que a compreensão vem primeiro, e a explicação = in­ terpretação, depois. Diferentemente de Dilthey, Gadamer pretende que explicação e compreensão são uma coisa só. Weber procura articu­ lar explicação e compreensão, assimila compreensão e interpretação e segue o caminho de uma hermenêutica objetivante. Ricoeur propõe a interpretação como abarcante e toma a explicação e a compreensão como seus dois pólos. Betti preconiza uma teoria geral da interpretação, indiferente à distinção entre compreensão e explicação. Contudo, é com Weber e Betti que a hermenêutica adquire o status de disciplina cientí­ fica, à diferença das técnicas exegéticas e das fdosofias hermenêuticas. Donde o privilégio da categoria de sentido e da idéia de interpretação em suas análises dos fenômenos jurídicos e histórico-sociais. Todavia, se examinamos as coisas mais de perto, logo vemos que nada é mais difícil do que capturar e decifrar o sentido, que por índole é flutuante e jamais se estabiliza no que quer que seja, nem nas coisas, nem nos homens. No mundo da natureza, a abertura, a equivocidade e a plurivocidade do sentido eram alimentadas pelo mistério do mun­ do, mistério que nunca foi inteiramente desfeito, malgrado os esforços 124

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

das ciências naturais. No mundo dos homens, tal abertura e flutuação é maior ainda, alimentada pelo enigma do próprio homem, que além de objeto é o sujeito das indagações, indagações que incidem sobre o sentido, sentido que é gerado pelo homem ou o sujeito, porém que, ao serem as perguntas respondidas e o sentido decifrado, dão lugar a ou­ tras perguntas, bem como a novas camadas de sentido a decifrar, e assim sucessivamente. Tendo abandonado, como as ciências naturais o fizeram e confor­ me tinha sugerido Tolstói, a questão do sentido em sua radicalidade à religião, à filosofia e mesmo às artes (literatura, especialmente), e fican­ do a depender em sua interpretação de postulações teóricas contrastá­ veis empiricamente, as ciências humanas imaginaram que metodolo­ gicamente a melhor forma de abordar o sentido seria atá-lo aos fatos e examiná-lo no terreno da empiria. Além da lingüística (Saussure), ao vinculá-lo ao signo e tomá-lo como significação, este foi o caminho da psicanálise (Freud), atando-o às forças do psiquismo (inconsciente), e da antropologia (Lévi-Strauss), via mito, parentesco e taxinomias. Esse foi, também, o caminho da sociologia (Max Weber), ao estabelecer seu laço com a ação social e distinguindo esta segundo seus vários tipos; da semiótica (Peirce e, mais ainda, Barthes), inquirindo-o no vasto campo do simbólico e dos signos não-verbais (moda etc.); da história (Braudel), ao inquirir seu liame com os acontecimentos, as estruturas e as escalas temporais no devir histórico. Contudo, tão logo as disciplinas das ciên­ cias humanas se puseram em seu encalço com a ajuda de métodos empíricos, o resultado foi uma embrulhada sem fim entre os fatos e as significações. Tão grande ela é, sendo no mundo dos homens os fatos significações e as significações fatos, que a simbiose acarretará toda sorte de dificuldades ao se procurar capturar o sentido dos fatos, seja pelo exame do sentido, seja pelo exame dos fatos, inclusive aqueles tidos como objetivos e bem estabelecidos. Para se ter uma idéia das dificuldades, propomos como ilustração a história (historiografia), por meio do exame de um caso bem conhe­ cido, analisado por Philipe Ariès e retomado por nós n’0 fio e a trama, a saber: o significado histórico de Joana d’Arc. Se não, vejamos: “Tome­ mos a título de exemplo os relatos acerca da história de Joana d’Arc, 125

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heroína francesa, nascida em 1412, queimada viva em 1431, por here­ sia, beatificada em 1909 e canonizada em 1920. Para tal, vamos apoiar-nos em Philipe Ariès. Em seu livro O tempo da história mostra ele com rara felicidade o que sucedeu com a figura da santa quando passamos dos relatos do século XVI aos dos séculos XVII-XVIII e por fim aos do século XIX. Os mesmos acontecimentos e episódios vividos pela heroína são diferentemente apreciados e rece­ bem cores e tons diversos em função dos gostos e atitudes próprios de cada época, como que a depender do espírito do tempo. Eis os fatos: as visões sobrenaturais que a engajaram a libertar a França do domínio dos ingleses; o reconhecimento do delfim em Chinon, no meio da multidão, como futuro rei da França; o milagre da espada, com cuja ajuda devia expulsar os inimigos e a qual devia levar consigo para sagrar-se em Reims; o cerco de Paris, a derrota, a venda de Joana aos ingleses por João de Luxemburgo, a prisão em Rouen, o interrogatório pelos teólogos, a condenação e morte em praça pública. Eis como foram lidos e avaliados estes fatos entre os séculos XVI e XIX pelos historiadores franceses que se ocuparam do assunto: 1) século XVI: a) Nicolas Gilles, que em suas Crônicas e Anais de França, publicados em 1520, nos dá um bom testemunho do espírito do século, ao pôr em relevo os elementos maravilhosos, como as apa­ rições de Vaucouleurs e o milagre da espada, deixando de lado os ele­ mentos relativos ao processo e à morte da heroína; b) Du Haillan, que nos dá uma versão bem diferente, acentuando a superstição de um povo por demais propenso a acreditar em milagres, zombando da figu­ ra de Joana (terá sido ela amante de João, o bastardo de Orléans, ou do senhor de Baudricourt, marechal de França?) e dizendo que seus pre­ tensos milagres foram inventados por obra da astúcia de um homem (João, o Bastardo) e de uma falsa religião; c) Jean de Serres, que nos dá um relato comovente de tom patriótico, destacando sua figura admirá­ vel, a forma cruel como foi tratada e seu papel histórico na libertação da pátria ocupada; 2) século XVII: a) Mézeray, em cujo relato não falta uma descrição atenta do milagre da espada, a menção à visão do príncipe da milícia celeste com uma espada flamejante à mão no cerco de Orléans e a 126

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

alusão à pomba que sai das chamas da fogueira e ao ‘fato’ de que o coração de Joana foi encontrado intacto depois de sua morte; b) Simon Guellete, cujo relato é algo seco e um tanto reservado a respeito dos elementos maravilhosos relacionados com a vida da santa e chega a censurar sua falta de disciplina por ter ido além do que lhe fora orde­ nado por Deus; c) Bossuet, historiador que talvez melhor represente o espírito do século, ao tratar da figura de Joana no seu Resumo da His­ tória da França, nos dá um relato curto e seco que, se reconhece sem rodeios a importância dos acontecimentos, esvazia os elementos sobre­ naturais, a ponto de não se encontrar nele nem uma palavra sobre as aparições ou o milagre da espada; 3) Século XVIII: a) Abade Velly, que, à diferença de Bossuet, não escamoteia o sobrenatural, porém trata de nos dar uma versão mais racionafizada dos acontecimentos relativos à vida da santa, de modo que cada milagre recebe uma explicação natural, ainda que algo força­ da no entender de Ariès. E o caso das visões sobrenaturais, para as quais Velly dá uma explicação psiquiátrica (disposição dos órgãos), do reconhecimento do delfim em Chinon, atribuído ao fato de ela já ter visto retratos do príncipe, assim como algumas efígies em moedas, e do caso da espada, que nada tem de milagroso, pois segundo Velly, ao ir a Chinon, Joana tinha passado em Fierbois, se detido numa igreja e lá deposto a espada na tumba de um cavaleiro; b) Abade Millot, que vê na raiz da morte de Joana uma religião desencaminhada, vítima que ela foi de cruéis ‘teólogos’, num processo ‘conforme ao gênio da Inqui­ sição’; c) Rossel, para quem o significado profundo da figura de Joana é o seu patriotismo, e não algo relacionado com sortilégios, milagres e invenções da corte; 4) século XIX: a) Anquetil, que destaca a enorme força moral de Joana, a sabedoria nos conselhos, a severidade nos costumes e a firme­ za nas resoluções, sem se preocupar em dar uma explicação naturalista aos acontecimentos; b) Fantin des Odoard, que permeia os fatos narra­ dos com um anticlericalismo visceral e sarcasticamente zomba da figu­ ra de Joana, dizendo que o verdadeiro herói da França é João, o Bastar­ do, e que a pretensa heroína não passava de ‘uma servente de hospeda­ ria em Vaucouleurs, robusta, montando cavalos em pêlo e realizando

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outras façanhas que senhoritas não costumam fazer’; c) Michelet, en­ fim, testemunha de um século mais atento aos aspectos locais da histó­ ria e à exigência de restituir o passado em sua integralidade, sintetiza a figura da heroína dizendo ‘sim, segundo a religião e a pátria, Joana d’Arc foi uma santa’. Face a essa profusão de Joanas que brota dessas diferentes narrati­ vas que se sucederam no tempo, umas destacando a figura da santa, algumas a da heroína, outras desconfiando de sua condição de mulher, como decidir (...) qual é a verdadeira Joana? Com o desatar o nó que liga a narrativa histórica à experiência do tempo e faz com que o sen­ tido da narrativa dos acontecimentos ocorridos no tempo dependa do próprio tempo em que ocorre a narrativa? Impossível. Talvez com a ajuda da categoria de Wirkungeschichte de Gadamer, segundo a qual o significado de uma obra histórica, Joana D ’Arc no caso, é tudo o que foi dito e escrito sobre ela, porém mais uma vez sem romper o círculo entre a narratividade e a temporalidade”20. Dir-se-á que, ante as inúmeras Joanas e suas figuras contraditórias, o historiador poderá valer-se da lógica para se desfazer das confusões da hermenêutica e seu círculo. Assim, poderá mostrar que a bruxa e a santa são contraditórias, ao passo que a santa e a heroína, não, havendo ainda a figura da impostora, incompatível com as três anteriores. Sem dúvida, tais distinções “lógicas” são possíveis, e o próprio Michelet as fez com rara maestria, ao distinguir (primeiro) e juntar (depois) a he­ roína e a santa, reunindo no mesmo todo histórico as diferentes pers­ pectivas da religião e da pátria (política). A dificuldade reaparece, toda­ via, ao se procurar decidir entre a bruxa, a impostora e a santa. Ne­ nhum círculo hermenêutico e nenhuma totalidade “lógica” poderiam acomodar essas figuras, levando virtualmente à explosão do sentido, junto com a necessidade de escolha, sem que adiantasse qualquer ape­ lo ao real para fundamentar a decisão. Mais do que o pensamento, é a própria realidade que é “contraditória” (ou, antes, foi percebida e sig­ nificada contraditoriamente) e gerou ao longo do tempo as várias e contraditórias Joanas, umas coexistindo e entrando em conflito com as 20 . D o m i n g u e s , I., o p . cit., 9 1 -9 3 .

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À

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outras no mesmo segmento temporal, como vimos nas narrativas dos séculos XVI ao XIX21. Voltaremos a esse ponto mais à frente (terceira parte), ao nos ocu­ parmos da obra de Max Weber, quando analisaremos a quebra do cír­ culo hermenêutico e abordaremos o exemplo de São Luís, trabalhado por Le Goff.

4. Conclusão Para concluir nosso exame da descrição, da explicação e da inter­ pretação (compreensão), gostaríamos de chamar a atenção do leitor para duas coisas, em vista da seqüência de nosso estudo. A primeira é que a descrição, a explicação e a interpretação (com­ preensão) o mais das vezes se encavalam e se confundem, desafiando toda tentativa de distinção e de separação (níveis/planos), e ao mesmo tempo gerando a necessidade de articulá-las e correlacioná-las. Na descrição, por exemplo, que nunca é completa e pode se dar de mais de uma maneira, o vocabulário empregado assim como os temas analisados por Anscombe pertencem tanto ao nível descritivo (o que o observador vê e descreve: a ação de envenenar e de bombear a água) como ao nível explicativo (a descrição da ação em termos de “como” e mesmo, em se tratando de intenção, de “por quê e de “para quê” etc.). Há ainda nas descrições do envenenamento aspectos que perten21 Assinale-se no círculo entre o tempo e a narrativa a dependência do sentido da figura de Joana da própria “experiência” do tempo em que se localiza o historiador, conforme anteriormente ressaltado, ao aludirmos ao “espírito do tempo” . Por um lado, há o tempo piedoso, marcado pela religiosidade e a propensão a acreditar em feitiçarias e sortilégios, com o o século XVI e tam bém , aliás, o século XV, em que Joana viveu e foi condenada; há o tempo ímpio e racionalista dos séculos XVII e XVIII, com sua propensão a “naturalizar” os acontecimentos; há o tempo romântico de Michelet, o século XIX, mais propenso a valorizar as grandes paixões dos homens e as cores locais da história, como diz Ariès. Por outro lado, há a coexistência no mesmo segmento tem­ poral de diferentes “vividos” e “experiências” da temporalidade, levando uns historiado­ res a escamotear e outros a destacar o sobrenatural (século XVII), assim como há a passagem do tempo e a mutação da experiência, conduzindo ao progressivo esvazia­ mento da figura da bruxa (século XV) em favor das figuras da heroína, da santa e da impostora (séculos XVI-XIX). 129

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cem ao nível interpretativo: a dificuldade de decidir se é uma ação individual ou coletiva; o embaraço de atribuir a mesma intenção aos atos do executante e do contratante; o problema de imputar responsa­ bilidade pelos atos; a questão tácita de se os fins santificam as ações e justificam os meios etc. Na explicação, que Anscombe assimila à interpretação, a descri­ ção (pergunta pelo “quê” das coisas) cede o lugar à causação (pergun­ ta pelo “com o” : como os fenômenos se ligam uns aos outros = cone­ xões causais = causas empíricas) e a causação, à interpretação (pergun­ ta pelo “porquê” das coisas, pelo “para quê” e pelo “quem” das ações = sentido), podendo ocorrer que um mesmo esquema explicativo, a operar sobre a mesma base factual, seja compatível com interpreta­ ções diferentes — donde a necessidade de distinguir a interpretação da explicação. Exemplo 1: Joana foi condenada por bruxaria = causa; ao interpretar o motivo de sua condenação poder-se-á, sem negar os fatos e o laço de causa e efeito: bruxaria e fogueira, seja afirmar sua condi­ ção de bruxa, como fizeram os inquisidores, seja simplesmente negála, ao considerá-la uma heroína, e a inquisição seu algoz e inimiga da pátria. Exemplo 2: ao descrever sua ação, invocar os motivos (causa) e justificá-los, o envenenador interpreta sua ação de verter o veneno na água = causa mortis dos inquilinos não como um crime passível de julgamento e de condenação, mas como um gesto nobre, motivado pela necessidade de livrar a humanidade daqueles indivíduos nefastos (uns nazistas!). Na compreensão (interpretação), indo além de Anscombe, a mes­ ma base factual-descritiva (invasão das tropas de Alarico/queda do Império Romano) é compatível com mais de um esquema causal-explicativo (triunfo do cristianismo/seca prolongada/eliminação da elite etc.) e leva a interpretações díspares e excludentes (caso de Joana d’Arc: impostora?/heroína?/bruxa?/santa?). Demais, a própria interpretação (compreensão) está presente na descrição de uma outra maneira, ao se referir o agente a seus atos, antes mesmo dos cientistas e historiadores. Assim, como mostra Anscombe, são os próprios agentes que interpre­ tam e dão sentido aos seus atos e às suas ações, tão logo passam a des­ crevê-los, como no caso do envenenador e seu cúmplice — sentido 130

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que, diga-se de passagem, está longe de ser o mesmo para um e para outro: um tem a intenção de envenenar; o outro de executar sua tarefa de bombear a água e receber o pagamento pelo serviço prestado. Além dos elementos elencados (descrição/explicação/interpretação), há um outro componente, não evocado até agora, nem por Anscombe, nem por nós, na caracterização das ciências humanas, a saber: o prescritivo ou normativo. Tal elemento — ausente do mundo das coisas (salvo no método de abordá-las, ao prescrever condutas e rotinas para conhecê-las com propriedade) — está presente em todas as ações hu­ manas e de uma maneira tal, que nada no mundo dos homens (na esfera da moral, do direito, da linguagem, da política e da economia) pode ser feito sem ele. Embora Anscombe não tenha feito uma menção direta e a esse elemento, acreditamos que boa parte da ação intencional em questão (bombeamento de água envenenada/morte dos inquilinos do edifício) pode ser re-descrita em termos prescritivos, a exemplo da ação do envenenador, cuja decisão de envenenar os moradores está motivada pela missão (sentimento de dever/chamado da consciência) de livrar a humanidade daqueles nazistas. O modo de introduzir o ele­ mento prescritivo não é exatamente por meio das perguntas pelo “quê”, pelo “porquê”, pelo “para quê” e pelo “como”, referidas às coisas, nem muito menos pelo pronome relativo “quem”, referida ao sujeito — to­ das elas voltadas para o ser das coisas e seus atributos ou qualidades, inclusive a função de sujeito. Quem o introduz é a indagação pelo “dever-ser”, cuja fórmula emblemática é a pergunta que a consciência faz a si mesma ao modo do imperativo categórico: que devo fazer? Coextensiva a outras indagações da mesma natureza (que fazer? que deve ser feito? que devo esperar?), tal pergunta encerra um aspecto descritivo, explicativo e interpretativo (compreensivo), pois a prescri­ ção é geradora de ações, e toda ação — vimo-lo — pode ser descrita, explicada e compreendida. Tal situação é verdadeira até mesmo quan­ do a base da ação é irracional (o estigma do leproso que acompanhou o louco no início da modernidade, ou da peste com que os nazistas marcaram os judeus etc.) e seu fim uma utopia ou uma simples quime­ ra (o novo milênio, o reino dos céus na terra, a nova Jerusalém etc.). E graças a esses elementos prescritivos, envolvendo intenções, volições, 131

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sentimentos e valores, que um conjunto de postulações de sentido ga­ nha espessura ontológica e coeficiente de realidade, balizando e orien­ tando as ações mais nobres e os fins mais santos dos indivíduos, as­ sim como as ações mais torpes dos criminosos mais vis, que sempre têm mais de um motivo para justificar seus crimes, conforme viu Rousseau. A segunda coisa a salientar é que nas análises empreendidas por Weber, Marx, Lévi-Strauss e Durkheim vamos encontrar um conjun­ to de procedimentos envolvendo a articulação desses aspectos descri­ tivos, explicativos, interpretativos (compreensivos) e prescritivos (nor­ mativos). Assim: 1) aspecto descritivo: a) Marx (18 Brumário): base factual coextensiva, virtualmente, a toda a França, porém concentrada (recorte) em Paris como palco e cenário dos acontecimentos (golpe de Estado de Napoleão III); b) Durkheim (O suicídio): base coextensiva a toda a Europa, porém concentrada (recorte) em um conjunto de países (França, Alemanha, Inglaterra etc.); c) We­ ber (A ética protestante e o espírito do capitalismo): coextensiva a todo o Ocidente, porém concentrada em alguns países da Euro­ pa e nos Estados Unidos; d) Lévi-Strauss (Mitológicas): coexten­ siva às Américas (salvo os sistemas inca, maia e asteca), podendo ser estendida virtualmente aos quatro cantos do planeta. 2) aspecto explicativo: a) Durkheim: explicações causais (associa­ das à determinação das leis) + análise estatística; b) Marx: expli­ cações dialéticas (conflitos/contradições/resoluções) + análise histórica (contexto, gênese) + análise causal (associada à deter­ minação da lei: luta de classes); c) Weber: explicações compre­ ensivas = tipos ideais + conexões causais (dissociadas das leis) + inter-relações funcionais (ethos protestante — espírito capitalis­ ta); d) Lévi-Strauss: explicações estruturais = modelos topológicos + análises causais (associadas a leis) + inter-relações funcio­ nais (tipo: a função do mito é...). 3) aspecto interpretativo (compreensivo): a) Durkheim: o suicídio como expressão do colapso das bases de sustentação (= colapso de sentido) da sociedade industrial (afrouxamento/solapamento/ruptura da solidariedade social); b) Marx: o golpe de Estado 132

â

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

de Luís Napoleão como expressão do estado da luta de classes na sociedade francesa de então (crise de hegemonia/crise do capital comercial/empobrecimento dos pequenos camponeses/ emergência de uma nova ordem burguesa etc.) e sua interpre­ tação como paródia ou farsa (voltar à época do tio, o sobrinho se fez coroar imperador e igualmente deu golpe, o novo gover­ no se dizia representar os camponeses pobres); c) Weber: a ética protestante e o espírito capitalista como expressão do processo de racionalização e do desencantamento do mundo no Oci­ dente moderno; d) Lévi-Strauss: o mito como expressão do es­ pírito humano e sua interpretação como tentativa de conferir sentido ao mundo das coisas, da vida e dos homens (aspectos cosmológico, biológico e antropológico). 4) aspecto prescritivo: desmentindo a idéia corrente de que a ciên­ cia não prescreve o que quer que seja e não opera com elemen­ tos normativos (a ciência não julga, não dá lições, nem estipula condutas — eis o mote conhecido), vamos encontrar em Durkheim, Marx, Weber e Lévi-Strauss um conjunto de aspectos prescritivos atinentes ao objeto, ao método e ao próprio cientis­ ta, associado ou não à sua condição de cidadão: a) Durkheim: a sociedade como potência das normas, a religião como siste­ mas de regras (ritos) e representações, aspectos que o cientista se limita a constatar e a registrar, a que se soma a necessidade do cidadão, instruído pela ciência, de remoralizar a sociedade, ameaçada de morte pela desintegração social ou anomia; b) Marx: a ideologia e o direito como sistema de normas e repre­ sentações que o cientista toma como objeto de análise, associa­ do ao chamado da classe operária ao intelectual engajado para a resistência e a luta, em vista de instalar o novo millenium (o comunismo); c) Weber: a conduta metódica e regrada do fiel protestante e do empresário capitalista (aquele visando à salva­ ção da alma; este, ao lucro) que o cientista constata e descreve, associada à neutralidade axiológica que o desobriga em moral e o desengaja politicamente, levando à resignação do cidadão como atitude mais conforme ao estado de coisas que o cerca ou 133

1 Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hu m anas na contem poraneidade

em que se encontra (“jaula de ferro”); d) Lévi-Strauss: os ele­ mentos prescritivos estão ausentes no plano social ou político, ao se dissociarem as perspectivas do cientista e do cidadão (coe­ rente com seu relativismo cultural, segundo o qual as comuni­ dades humanas em suas diferenças se equivalem e nenhuma deve ser preferível à outra, ainda que as escolhas piorem as coisas e levem algumas delas à ruína, conduzindo ao desaparecimen­ to dos povos primitivos, que em muitos aspectos são “superio­ res” aos povos ditos civilizados; todavia, os mitos prescrevem condutas, sancionando umas e estigmatizando outras: ritos, ta­ bus etc.), e presentes no plano metodológico (necessidade ou conveniência de seguir certas regras e observar certos passos na análise dos fenômenos socioculturais: por exemplo, proporcio­ nar longas estadas nas comunidades, familiarizando-se com suas línguas, seus costumes e seus valores, para melhor compreen­ dê-las e interpretá-las) — situação que não singulariza o antro­ pólogo, sendo compartilhada pelos demais. Entendemos que, ao se procurar analisar os múltiplos aspectos li­ gados às ações intencionais em sua imensa variedade (o suicídio, o golpe de estado, o empreendimento capitalista, os ritos e as condutas anódinas), o bom caminho é articular os elementos descritivo, explica­ tivo, interpretativo (compreensivo) e prescritivo a elas atinentes. Um pouco foi o que fizeram Marx e Durkheim nas obras O 18 Brumário e O suicídio. No plano político, além de Weber, a exceção — acabamos de ver — é Lévi-Strauss, que recalca os elementos prescritivos (salvo no método e na articulação do mito com o rito e outras condutas huma­ nas, tomando entretanto a norma como fato: ordem dos fatos ou do empírico), ainda que seja um crítico da civilização e um nostálgico do bom selvagem. Acreditamos que, entre os elementos envolvidos na abordagem dos fenômenos humano-sociais em seus aspectos descritivo, explicativo, in­ terpretativo (compreensivo) e prescritivo, o candidato com maior chance de ter a primazia no método e de conduzir a análise, tendo por fio o sentido, é o elemento interpretativo. O argumento é ele ser, de todos, 134

Sobre a descrição, a explicação e a interpretação (com preensão):

o mais abrangente e o único auto-referente ou auto-aplicável. Podemos interpretar as prescrições, interpretar as explicações, interpretar as des­ crições e interpretar as próprias interpretações. Não podemos, direta­ mente, fazendo economia do sentido e da interpretação, prescrever, explicar e descrever interpretações, nem prescrever prescrições, expli­ car explicações e descrever descrições: simplesmente, os elementos sobre os quais operam — os dados, as normas, as relações: causais, funcio­ nais, finalísticas — pressupõem o sentido, que é coextensivo à interpre­ tação e é por ela decifrado, ao perguntar pelo sentido da norma, da relação, do dado e do próprio sentido, em suas mais variadas situações: pregnância do sentido, colapso do sentido, falta de sentido etc. A condição é que a interpretação não opere com idéias ocas ou palavras vazias (sentido), qual uma máquina (lógica) de pensar ou (her­ menêutica) de interpretar.

Capítulo 5

As ciências humanas e a exigência de objetividade: as vias de Durkheim, Marx, Freud e Weber

O tema do capítulo é a articulação entre objetividade e método nas ciências humanas. O contexto é a máxima de Platão segundo a qual a verdade (e, junto com ela, a “objetividade”) é aquilo que, escondido, deve ser mostrado./lMo caso das ciências humanas, em sua condição de ciências empíricas, mostrado não só com os métodos da razão (ou método do logos), como a demonstração (prova “lógica”), mas com métodos empíricos (prova empírica ou experimental), associados à observação e à experiência. / Para tanto, vamos dividir nossa exposição em três partes. Na primeira, trataremos de situar o problema da objetividade e do método no campo das ciências humanas, com o intuito de mostrar em que consistem, como se articulam e quais são as vias percorridas por aquelas ciências para alcançar uma (objetividade) e regrar o outro (método). Na segunda, procuraremos trabalhar alguns exemplos emblemáticos de diferentes vias percorridas pelas ciências humanas para instaurar uma visão objetiva da realidade humano-social, apoiando-nos em autores e obras tidos como autoridades e paradigmáticas em seus campos de saber. 137

Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

Na terceira e última parte, depois de percorrer essas diferentes vias, concluiremos a exposição, tirando as conseqüências com respeito às concepções de objetividade de tais autores, aos pontos que eles têm em comum e às diferenças que os separam — num extremo Emile Durkheim, noutro Marx e Freud, no meio Max Weber. Com ecem os pelo primeiro tópico: a colocação do problema da objetividade e do método nas ciências humanas. Apesar da divisão de opiniões que caracteriza o exercício não só das ciências naturais mas também, e sobretudo, das ciências humanas, há um ponto pelo qual praticamente todos os estudiosos das matérias humanas passam e não vêem maiores dificuldades em admiti-lo sem maiores discussões: a idéia de que as ciências humanas são um conhe­ cimento metódico (regrado) e objetivo. Por metódico entendem eles um conhecimento que se obtém mediante certas regras e por meio de certos passos, como, por exemplo, proceder à critica das fontes e dos testemunhos dos acontecimentos, antes de dar-lhes assentimento e passar a analisá-los. Por objetivo entendem um conhecimento atinente à realidade das coisas, e não às opiniões, aos sentimentos e às idiossincrasias do sujeito que conhece as coisas (aspectos que não têm nada de objetivo, não sendo senão o fator subjetivo do conhecimento e como tal algo a ser regrado, neutralizado e mesmo afastado). Esse consenso, raro entre os cientistas, aparece também quando se procura explicar a necessidade do método e a exigência de objetividade. A necessidade do método se explica em primeiro lugar pela cons­ tatação mais ou menos difundida de que os sentidos freqüentemente nos enganam e de que nossos raciocínios muitas vezes nos induzem ao erro: é preciso, pois, um método para regrá-los. Em segundo lugar, pela verificação de que o real nem sempre é o que parece ser e de que nossas opiniões a seu respeito nem sempre coincidem com ele: é preciso, pois, um método para se chegar à verdadeira realidade e disciplinar nossos juízos sobre o real. Em terceiro lugar, pelo fato de que o ensaio e erro, a conduta espontânea e aleatória, a crença em nosso feeling e em nos­ sas intuições por vezes nos ajudam a conhecer a realidade, porém aci­ dentalmente, o mais das vezes nos levam a “quebrar a cara” e a desco138

As ciências hu m anas e a exigência de objetividade:

brir que estamos longe da realidade no momento mesmo em que sen­ timos tocá-la de perto e tê-la em nossas mãos: é preciso, pois, um mé­ todo para regrar nossa conduta e disciplinar nossos procedimentos. A exigência de objetividade, por sua vez, se impõe, antes de mais nada, pela necessidade de o sujeito cognoscente adequar-se ao real, submeter-se a ele e ater-se aos indícios que ele lhe fornece, devendo para tanto livrar-se das paixões que estorvam, dos preconceitos que cegam e da vontade que precipita (objetividade do cientista — questão de atitude do sujeito). Impõe-se, por fim, pela necessidade de a ciência ater-se em suas formulações ao real e apoiar-se em indícios do próprio real em seus vaticínios, sob pena de, ao não o fazer, perder o real, evadir-se em abstrações e tomar uma quimera pela realidade (objetivi­ dade da ciência — questão de parâmetro aplicado à coisa). Ambas as objetividades, a do cientista e a da ciência, nos reenviam ao método e são função do método: para ser objetivo, o cientista deve proceder com método; para ser objetiva, a ciência deve conduzir-se metodicamente. Tão estreito é o laço que as une, que de tais objeti­ vidades pode-se dizer que se condicionam reciprocamente: da objetivi­ dade do cientista depende a objetividade da ciência; da objetividade do método da ciência depende a objetividade do cientista. Contudo, a des­ peito de tal enlace, há uma pequena mas importante diferença entre elas. De um lado, a objetividade do cientista é condição necessária e não suficiente da objetividade da ciência: não bastam a reta intenção, a atenção constante e a permanente precaução do cientista para instau­ rar a ciência; é preciso adquirir a ciência, dominar sua téchne e conhe­ cer seus princípios. De outro, a objetividade da ciência depende do método, e o método independe do cientista. Mais precisamente: não só independe, mas está de certo modo “acima” dele e é dotado de um “automatismo” que permite sua aplicação ao objeto como que sem o concurso ou a participação do usuário. Esse deve simplesmente ater-se às suas regras, aceitar suas coações e entregar-se a ele: do ponto de vista do método, os motivos pessoais do cientista que dele se serve contam muito pouco — se não, podem “atrapalhar” . O ideal, aliás, no entender de muitos, seria um conhecimento sem “sujeito”, como no caso do reator em física, que fabrica as partículas, “lê” os resultados e os inter­ 139

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preta, ficando no lugar do sujeito ou funcionando como se fosse ele, com a vantagem de não “interferir” e, portanto, não confundir as coisas. Instaurando uma visão objetiva da realidade, o método instala a verdade e fornece os critérios de sua aceitação. No caso, uma verdade objetiva e uma criteriologia objetiva, tendo por index os “indícios” da própria realidade. Conquistada a verdade e fixadas suas credenciais, o método atinge sua mais alta excelência (a lembrar que a palavra méto­ do vem do grego méthodos, que significa caminho — caminho para a verdade), fechando o círculo do conhecimento, que começa pela per­ gunta pela verdade e termina com sua aquisição. Tal excelência é tanto mais notável que põe fim àquele estado de indigência inicial que deflagra a necessidade e mesmo a urgência do conhecer, a saber: quando al­ guém procura conhecer as coisas, nada lhe assegura de antemão que está no elemento da verdade, ou se ao contrário está enganado e foi induzido ao erro. D aí a necessidade do método. D aí sua excelência. Tudo isso é mais ou menos consensual entre os cientistas e os es­ tudiosos das ciências, os quais não poupam ocasião para celebrar as excelências ou virtudes do método científico e, também, para prestar reverência à objetividade da ciência. Contudo, tal consenso desapare­ ce quando está em jogo dizer qual é o método e qual é o critério da objetividade, tamanha é a profusão de métodos e de critérios. Isto com certeza não ocorreria se a realidade e a objetividade fossem algo que se pudesse apontar com as mãos e os dedos — mas se as coisas se passas­ sem assim não haveria necessidade nem de método nem de ciência (bastaria abrir os olhos e apontar a realidade). Ocorre, por sua vez, e se mostra problemático quando, para explicar o real, não se pode mais fiar-se na experiência comum e dar fé à realidade imediata cotidiana, depois que seus dados se revelaram insuficientes, contraditórios e enga­ nosos. Deve-se, então, ir além delas, em busca de um princípio de explicação e de uma região mais profunda do mundo das coisas que, uma vez encontrados, permitam determinar objetivamente qual é a verdadeira realidade — tarefa da ciência e do método da ciência. To­ davia, como chegar a essa região privilegiada do real e determinar objetivamente a verdadeira realidade? Com base em qual critério deci­ dir o que é real e o que não é real, que o real é o escondido e o não-real 140

As ciências hum anas e a exigência de objetividade:

o aparente, se o real nem sempre é o que parece ser? Com a ajuda de qual método? Nas ciências humanas pelo menos quatro caminhos foram percor­ ridos com o intento de chegar a essa região privilegiada e mais “profun­ da” da realidade humano-social, na qual supostamente se acharia a chave do homem e das coisas humanas, todos eles inscrevendo de uma maneira ou de outra um recorte no mundo dos homens, a envolver um nível manifesto e aparente, que afinal existe, e um nível latente e es­ condido, tido como mais “real” : 1) a determinação da essência por trás da aparência, associada à determinação da causa e da lei que regula os fenômenos (Marx); 2) a determinação da constelação de causas que subjaz ao mundo dos homens, dissociada da determinação da essência e da deter­ minação da lei (Weber); 3) a determinação da causa que subjaz aos fenômenos humanosociais, dissociada da determinação da essência e associada à determinação da lei (Durkheim); 4) a determinação da estrutura profunda da realidade humanosocial, além do seu nível aparente e manifesto, dissociada da determinação da essência e associada à determinação da causa e da lei (Freud)1. 1. Nessa via também poderia ser incluído Lévi-Strauss, pois se trata de uma tópica, e as tópicas podem ser preenchidas de mais de um a maneira. Nossa decisão de incluir Freud, em vez de Lévi-Strauss, prende-se ao nosso interesse de alargar as bases epistemológicas de nossa análise, ao mostrar que a categoria de estrutura não é cativa nem do antropólogo, nem do estruturalismo, estando presente no pai da psicanálise, como aliás o próprio Lacan se encarregou de mostrar depois, mantendo-se, ele, pelo menos num primeiro momento, dentro dos quadros daquela corrente de pensamento. Quanto a Lévi-Strauss, do qual tivemos a oportunidade de nos ocupar largamente, com abundân­ cia de detalhes, no capítulo II, e em menor escala nos demais capítulos, voltaremos a ele e à sua obra no segundo tomo deste livro. Por ora, sublinharemos, em analogia com Freud, que sua via é bem a determinação da estrutura, dissociada da determinação da essência e associada à determinação da causa e da lei. C om o exemplos desses três eixos temos: 1) a estrutura topológica do mito, organizada em estratos e disposta em camadas; 2) a causa eficiente na análise da magia e interpretada em termos de “eficácia simbó­ lica”, associada aos efeitos de feed-back e vinculada a estudos de funções; 3) a lei da interdição do incesto, que Lévi-Strauss põe no limiar da passagem da natureza à cultura. 141

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Na seqüência da exposição (segundo tópico) vamos procurar ilus­ trar cada uma dessas vias com exemplos extraídos de diferentes discipli­ nas das ciências humanas, com base — dizíamos — em autores tidos como autoridades e obras consideradas paradigmáticas em seus respec­ tivos campos de saber. Um bom exemplo da primeira via (determinação da essência asso­ ciada à determinação da causa e à determinação da lei) nos dá Marx no capítulo primeiro d’0 capital, onde procede à análise da mercadoria. O problema que lá está em jogo é como chegar à determinação do valor de um produto qualquer, estando dadas duas condições de fato (dados de realidade) que de direito não podem ser nem abstraídas, nem escamoteadas pelos estudiosos das matérias econômicas: 1) o fato de que, ao serem as mercadorias trocadas entre si, a forma de expressão do valor que elas comportam é múltipla (x merc. A troca-se contra y merc. B e z merc. C ); 2) o fato de que, para serem trocadas, as mercadorias devem ser, elas mesmas, diferentes (no mundo das mercadorias não faz sentido trocar inhame por inhame ou trigo por trigo; por necessidade, os produtos têm de ser diferentes). Donde as duas hipóteses que vão conduzir a análise de Marx, as quais se inscrevem não certamente num nível empírico da abordagem dessas matérias, como faz a maioria dos economistas, vítimas do posi­ tivismo, mas propriamente teórico, exigindo sua formulação um certo recuo em relação à empiria: 1) em que pese a diversidade da forma de expressão do valor das mercadorias, o certo é que uma mesma quanti­ dade de mercadoria troca-se contra quantidades diversas de outras mercadorias; sendo a mesma a quantidade deve haver, além da diver­ sidade da aparência fenomênica (a diversidade da expressão do valor: x, y, z etc.), uma mesma essência que se expressa de maneira diferente nas mercadorias cambiadas: essa essência é o valor, e a essência do valor é o trabalho; 2) apesar da diversidade das mercadorias concretas que entram na relação de troca (trigo, linho, ferro, faca), deve haver algo em comum entre elas que permita a troca e forneça o padrão a partir do qual seus valores respectivos são comparados e mensurados: este algo comum é o trabalho (trabalho abstrato) e o padrão é o tempo de trabalho (tempo de trabalho socialmente necessário). 142

As ciências hum anas e a exigência de objetividade:

A assinalar que, no caso, as duas hipóteses são uma só, na medida em que Marx postula uma mesma entidade (valor-trabalho) que fun­ ciona a um tempo como essência do valor (trabalho) e medida do valor (tempo de trabalho). Para chegar a essa entidade e fixar as proporções que regulam a troca das mercadorias, Marx combina o método da redução à essência, o método da imputação causal e o método da determinação da lei: 1) método da redução à essência, ao introduzir um recorte no real empí­ rico que o leva a distinguir a região da aparência da zona da essência, a postular que a zona da essência é ontologicamente superior à região da aparência, por sediar a verdadeira realidade, e a reconduzir (redu­ zir), mediante uma análise regressiva, a aparência à essência que se esconde atrás dela e em que ela, a aparência, se enraíza; 2) método da imputação causal, como na correlação entre a variação do valor e a produtividade do trabalho: a alta da produtividade é a causa, a baixa do valor o efeito; 3) método da determinação da lei, ao atribuir à relação entre a força produtiva do trabalho e a variação do valor a força de uma necessidade, a agir sobre os agentes econômicos malgrado eles, em vista de conferir-lhe sua expressão matemática segundo a linguagem do número e da medida: a quantidade de valor de uma mercadoria varia em razão direta do quantum de tempo de trabalho necessário à sua produção e em razão inversa da força produtiva do trabalho que nela se realiza. Por fim, depois de estabelecer essas generalizações indispensáveis nas investigações dos cientistas, Marx restringe o alcance de suas aná­ lises — e este ponto é da maior importância, pois constitui-se num dos elementos essenciais que distingue e ao mesmo tempo afasta Marx de economistas como Smith e Ricardo, e de sociólogos como Durkheim e Parsons. O ponto é o reconhecimento explícito do limite da exten­ são e da validade de suas análises à sociedade burguesa e ao regime capitalista de produção, existindo em outras sociedades históricas ou­ tros mecanismos de realização da troca, de regulação do valor e de fixação de suas proporções, como a corvéia, o escambo e mesmo — pode-se acrescentar — a troca cerimonial das chamadas sociedades primitivas (onde se troca inhame por inhame). 143

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Sobre a questão da objetividade e do método da economia política, a julgar pelo estabelecido na análise da mercadoria, análise que pode ser considerada paradigmática, tendo no trabalho a mercadoria para­ digmática, pode-se então dizer que a verdade (referida ao real) é bem o valor, porém o valor — que é a essência e a condição do mostrar — não pode ser mostrado, em si e por si mesmo, mas no fenômeno, vale dizer na mercadoria, ao se objetivar como preço, o qual a esconde ao mesmo tempo em que a revela. Já o trabalho, por seu turno, vem a ser o traba­ lho não-alienado, determinado independentemente das relações de troca entre as mercadorias e definido como essência ou, antes, como perten­ cente à ordem das essências (essência do homem), não pode ser mos­ trado nunca, sendo uma categoria metafísica, e não exatamente eco­ nômica. O que é uma categoria econômica e pode ser mostrado, na base das relações de troca, é o trabalho alienado, determinado como força de trabalho e, nesta condição, como mercadoria e elemento do capital (capital variável). E mais: o que é mostrável, bem entendido, não é todo o universo do trabalho alienado e vendido como força de trabalho, mas uma parte dele. Isto porque o trabalho mercantil, que tem a ver com o mundo das mercadorias, no regime capitalista de pro­ dução se cliva em trabalho abstrato e trabalho concreto — aquele da ordem da essência, este da ordem da aparência (fenômeno); aquele relacionado com o valor (valor de troca), este com o valor de uso. En­ tretanto, no mundo das mercadorias o que regula o valor e, por exten­ são, o preço das coisas (inclusive a mercadoria força de trabalho) é o trabalho abstrato, não o trabalho concreto, ainda que real e mesmo duramente real (com a exploração, a fome e a fadiga), que simplesmen­ te não conta na determinação do valor de troca e fica fora do processo. Finalmente, no aparelho demonstrativo da dialética, entram ainda a causalidade e a lei, estas últimas visadas, mais além do conceito, como formas de objetivação do valor e do preço, ao “mostrar” as relações que os regulam (causa e efeito) no mundo dos fenômenos, bem como as proporções das relações, e mesmo de relações de relações (direta ou inversa), segundo a linguagem do número e da medida (leis-relação). Por sua vez, um bom exemplo da segunda via (determinação da causa dissociada da determinação da essência e da lei) nos dá Weber 144

As ciências hu m anas e a exigência de objetividade:

em seus escritos consagrados à metodologia das ciências da cultura, especialmente nas considerações relativas à história. O problema que está em jogo na história desde os antigos é como imputar nexos causais aos acontecimentos históricos, sendo que a his­ tória é o terreno do particular e do fático, é avessa às leis deterministas (necessárias e universais) que regulam o mundo das coisas e é, além do mais, o cenário do contingente, do cambiante e do aleatório. Para tanto, Weber propõe um método de abordagem das matérias históricas tendo por vigas-mestras: 1) a construção de tipos ideais que, no caso, conforme vimos no capítulo II, são menos resumos ou abrevia­ ções das coisas do que esquemas criados pelo espírito com vistas a con­ ferir inteligência ao real empírico, pondo em relevo os desvios, os afas­ tamentos e mesmo as incongruências com respeito à tipologia ideada e com cuja ajuda são pensados (além do exemplo famoso da É tica: o par protestante ascético/empresário capitalista, várias vezes mencionado, os tipos ideais weberianos recobrem desde as diversas formas de buro­ cracia e de dominação, passando pelas várias modalidades de legitima­ ção, até os diferentes tipos de organização econômica das sociedades modernas: sua extensão à história obedece ao princípio metodológico segundo o qual — a fórmula é nossa — para apreender o devir histórico é preciso, antes, construir categorias anti ou a-históricas); 2) a imputa­ ção de causas adequadas às matérias históricas, fundadas sobre a cate­ goria de possibilidade objetiva, e enquanto tais despidas dos inconve­ nientes a) tanto do necessitarismo cientificista que, sob o pretexto de fazer ciência, funda a conexão causal sobre a necessidade e assimila a determinação da causa à determinação da lei, ignorando que ao proce­ der assim, subsumindo os acontecimentos históricos numa lei geral, anula-se o devir e desvirtua-se a história, que se compõe de uma suces­ são de acontecimentos singulares, b) como do contingencialismo dos cronistas que, sob o pretexto de a história ser uma arte (arte do discur­ so), fundam as conexões históricas sobre a contingência (conexão epi­ sódica), ignorando as regularidades históricas, abandonando as maté­ rias históricas ao aleatório e fazendo da história crônica e não ciência. Tal foi o esforço de Weber, e nesse esforço os dois métodos andam juntos, com efeito. A imputação causal (a lembrar que a causalidade em 145

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Weber é uma categoria de pensamento, como em Kant) integra o tipo ideal ao estabelecer os mecanismos reais de causação a envolver eventos antecedentes e conseqüentes singulares, a partir do desvio de uma cons­ trução mental em que “o que efetivamente é é avaliado pelo que pode­ ria ser”. Já o tipo ideal dá à imputação causal o recuo em relação à empiria que lhe permite sopesar a pluralidade de causas pela variação mental de seus componentes no e pelo pensamento, com base no prin­ cípio segundo o qual “para determinar as causas reais dos fenômenos deve-se construir antes as causas irreais e chegar às primeiras através das segundas” — estima Weber. Quer dizer: uma só e mesma coisa. Para se ter uma idéia da fecundidade do método weberiano que associa o tipo ideal à causa adequada, basta ter em mente que os fatos históricos não possuem uma causa única e nem sempre as causas que neles atuam têm o mesmo peso ou desempenham o mesmo papel. Assim, por exemplo, diz-se da batalha de Maratona que, fosse outro o rumo dos acontecimentos (a vitória dos persas), outro teria sido o desti­ no do povo grego (derrota da liberdade e da razão, e implantação de um regime teocrático-religioso, pois assim procediam os persas nos territórios ocupados). Da mesma forma diz-se da guerra de 1856 da Alemanha contra a Áustria: outra fosse a decisão de Bismarck, outro teria sido o rumo dos acontecimentos na Europa, em contraste com o que de fato ocorreu ou sucedeu. Diferentemente, contudo, não se diz da revolução de 1848 na Alemanha que, não tivessem sucedido os dois tiros de fuzil naquela noite fatídica em Berlim, a revolução não teria ocorrido, pois o clima reinante na capital prussiana era tal que a insur­ reição popular ocorreria forçosamente, mesmo sem os tiros de fuzil. Nos três casos, a pesagem das causas dos acontecimentos, com vistas a assinalar qual delas é a determinante, se dá graças a uma varia­ ção mental do curso dos acontecimentos que permite a introdução de uma desigualdade significativa entre os fatos antecedentes e leva à fi­ xação daquele que supostamente desencadeou o conjunto dos eventos que efetivamente sucederam no real empírico (causa adequada). Tam­ bém nos três casos a imputação causal se dá nos quadros de uma pro­ posição hipotética (se fossem outros os autores e outras as decisões, então ...) e, sendo apenas possível e não necessário o seu fundamento, 146

As ciências hum anas e a exigência de objetividade:

a natureza da certeza que a causação adequada instaura não é apodíc­ tica mas probabilística. Todavia, como é diferente o grau de probabilidade ou de certeza a que se chega nas três situações! Probabilidade forte no caso da vitória persa sobre os helenos desencadear uma civilização de tipo teocráticoreligioso, pois assim os persas procediam nos territórios conquistados, servindo-se da religião autóctone, a exemplo do que ocorreu com o povo judeu. Probabilidade menos forte — pode-se dizer — no caso de a guerra de 1856 ter um rumo diferente sem Bismarck, pois, por mais poderosa que fosse a personalidade do líder alemão, sua vontade não se exerceu nem no ar nem sozinha, sem nada a desencadeá-la ou a oporlhe resistência, mas sob circunstâncias concretas (situação), afetas a um mesmo povo (povos germânicos) e ao passivo dos dois países, que pelas mãos de Bismarck foram levados à guerra. Probabilidade fraca, ainda que não nula, no caso de a revolução de 1848 na Alemanha ter um rumo diferente sem os tiros de fuzil, pois, como diz Julien Freund, por mais favorável que fosse à insurreição o clima reinante em Berlim na época, ninguém pode afirmar com absoluta certeza que a revolução teria ocorrido — mesmo sem os tiros de fuzil2. Donde se conclui que, em Weber, a questão da objetividade e do método é vista a partir de um ângulo diferente do de Marx. Simples­ mente, não estamos diante de essências, mas de construções mentais. O real em estado bruto, apreendido como factum e considerado como da ordem dos fenômenos, não mostra nada, deve ser “mostrado”, e o que dele se mostra só é possível por meio de hipóteses contrafactuais, que não têm nada de real e instauram o reino do “como se”. Tal ficção, que es­ tá na raiz da ciência e leva Weber a falar de um hiatus irrationalis entre o real e o conhecimento, não o impede, entretanto, de manter as idéias de verdade e de objetividade do discurso: trata-se de uma construção mental, e toda construção depende de uin “artífice” (vale dizer, no caso do conhecimento, de um sujeito, que é o sujeito construtor ou o 2. Ver sobre a causalidade em Weber nosso livro O fio e a tram a..., op. cit., 187-190, que seguimos de perto em nossa análise. Voltaremos à causalidade weberiana na tercei­ ra parte de nosso estudo. 147

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cientista), sobre quem recai o ônus da prova. A prova, e junto com ela o valor-verdade das construções, que segundo Weber é função do juízo e da predicação, fica a depender tanto da demonstração (prova lógica) como da verificação empírica (quando se trata de ciências empíri­ cas, como a sociologia e a história). Integra o arsenal da verificação a própria causalidade, que no autor da Ética desempenha o papel de meio de objetivação, e portanto de prova — pode-se dizer (não o tipo ideal, que é um meio “heurístico” de descoberta). Contudo, tanto uma (prova lógica) como a outra (prova empírica) não são nada sem a teo­ ria, e a teoria instala uma relação de circularidade com o real, a qual não poderá jamais ser rompida pelo sujeito cognoscente. Desde logo, tal circularidade pode ser considerada um dos aspectos do círculo her­ menêutico, do qual falaremos na terceira parte deste livro, ao nos ocupar­ mos do pensador alemão. Um bom exemplo do terceiro caminho (determinação da causa dissociada da determinação da essência e associada à determinação da lei) nos dá Durkheim em sua obra famosa O suicídio. O problema que lá está em jogo é determinar as causas sociais do suicídio, bem como fixar suas leis, além das causas psicológicas, morais e individuais que igualmente o motivam (fim de um casamento, de­ pressão aguda etc.). Para chegar a tais causas sociais, assim como às leis que regulam o suicídio nas comunidades humanas, Durkheim serve-se do método da correlação estatística, que ele toma de empréstimo de Quételet e o adapta a seus fins. Assim, após proceder à distribuição das taxas de suicídio, tomando como parâmetro um conjunto de fatores extra-sociais (raça, distúrbios mentais etc.), ele mostra que esses fatores não-sociais não explicam por si sós algumas particularidades observadas na taxa de suicídio, a saber: 1) o fato de ela permanecer estável em diferentes sociedades de ano para ano, aumentando em períodos de instabilidade e de crise mais ou menos prolongada, diminuindo em períodos de estabilidade e de es­ tagnação: deve haver, portanto, influências sociais na composição des­ sa taxa, 2) o fato de ela ser menor em países católicos e maior em países protestantes, a despeito de o suicídio ser condenado com a mesma 148

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severidade tanto pela Igreja reformada como pela Igreja católica: deve haver, pois, uma causa social que explique essa diferença. Com base nesses indícios e particularidades, Durkheim parte em busca daquele fator social que explicaria a um tempo tal estabilidade e tal diferença. Este fator — a causa, segundo ele — não é senão a integração social ou o grau de solidariedade social: fraca nos países protestantes, que são de índole individualista (o que define o ethos do protestante é o indivíduo, o qual, sem nenhuma mediação, abandona­ do a si mesmo, está só diante de Deus); forte nos países católicos, pois, de índole menos individualista e povoada de mediações que se inter­ põem entre o crente e Deus (o clero, os santos), a Igreja católica é uma comunidade mais vigorosamente integrada que a protestante. Por fim, encontrada a causa (a ligação entre o suicídio e a solida­ riedade social), Durkheim trata de generalizá-la, ao estendê-la a todo tipo de suicídio, independentemente do grupo social e da comunidade a que o indivíduo pertence, seja ela laica ou religiosa, com vistas a subsumi-lo numa lei geral, bem como a conferir-lhe sua respectiva expressão matemática, quando fica estabelecido: 1) a taxa de suicídio de uma comunidade religiosa é inversamente proporcional ao nível de integração social da comunidade, diminuindo quando ela aumenta, aumentando quando ela diminui; 2) a taxa de suicídio de uma comu­ nidade laica como a família é inversamente proporcional ao tamanho da unidade: quanto maior for o número de filhos, tanto menor será a taxa de suicídio dos pais (suposto: o grau de solidariedade é maior nas famílias maiores do que numa família pequena e num simples casal); 3) a taxa de suicídio é diretamente proporcional ao grau de divisão do trabalho e ao nível de industrialização da comunidade enquanto tal (é maior na cidade do que no campo, na indústria do que na agricultura), visto que tais fatores solapam a base moral, levam ao individualismo e instauram o maior dos males sociais: a anomia. D aí a formulação da lei geral do suicídio, válida tanto para os suicídios “anômicos” como para os suicídios “egoístas”: o suicídio varia em razão inversa do grau de integração do indivíduo à comunidade de que faz parte. Vimos no capítulo III que Durkheim analisa a taxa de suicídio com a ajuda de duas variáveis, as quais podem atuar tanto isoladamen­ 149

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te como combinadamente: a integração e a regulação. À primeira va­ riável vinculam-se os suicídios egoísta e altruísta (caso do suicídio de velhos nas sociedades orientais); à segunda, as modalidades anômica e fatalista, que recebem atenção desigual do sociólogo (caso do suicídio fatalista, que é mencionado, sem contudo ser desenvolvida sua análi­ se). A consideração das duas variáveis e das quatro modalidades de suicídio leva à modificação da lei do suicídio, formulada acima: sua taxa variará em proporção direta para os tipos altruísta (variável integra­ ção) e fatalista (variável regulação), e em proporção inversa para os tipos egoísta (integração) e anômico (regulação). Merecendo toda a atenção de Durkheim, juntamente com as cor­ rentes egoísticas que arrastam as sociedades e levam o indivíduo a sa­ crificar sua vida, a anomia não deve ser entendida literal e exclusiva­ mente como a ausência total de normas, conforme a própria palavra parece sugerir (a-nomia: do grego nômos = leis = ausência de leis e de normas), mas como a inserção inadequada do indivíduo numa dada comunidade. No caso, motivada pela incongruência entre as antigas formas de regulação moral e as novas condições da vida econômica, sem que uma nova norma adaptada às novas condições tenha ocupado o lugar da antiga. Tal estado de anomia que mina o mundo moderno só desaparecerá, no entender de Durkheim, com a remoralização da sociedade industrial. Este último ponto (a remoralização da socieda­ de industrial) deve ser sublinhado com vigor. Tributário do positivis­ mo de Comte, do pensamento das Luzes e dos ideais republicanos, além de cientista comprometido com a verdade e a realidade das coi­ sas, Durkheim não hesita insurgir-se contra a realidade social, assumin­ do a condição de cidadão, moralista e reformador. E o que nos mostra sua biografia, tão rica em embates, seja no sistema de ensino, seja na arena política da sociedade francesa de então. Quanto à objetividade e à verdade do conhecimento, o sociólogo é partidário do positivismo de Mill e do criticismo de Kant. A matriz po­ sitivista de seu pensamento leva-o não só a recorrer aos dados da obser­ vação e da experiência para catalogar o suicídio (prontuários de hospi­ tais etc.), como também a tabelas ou quadros estatísticos, tanto para objetivar o fenômeno como para “mostrar” a verdade dele, a qual, se­ 150

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gundo o sociólogo, é seu fundo ou sua origem social (sem a estatística, com base apenas na observação dos suicidas e na descrição de seus atos, tendo ante si tão-só o indivíduo, este fundo simplesmente não poderia ser “mostrado”). Fazem parte da mesma matriz positivista o expediente de estabelecer os nexos causais bem como o procedimento de determi­ nar as leis do suicídio, ambos estabelecidos com o concurso da estatís­ tica, e todos entrando no aparelho demonstrativo como meio de prova e instrumento de objetivação. Já a matriz kantiana de seu pensamento encontra-se na postulação — como condição transcendental do mos­ trar, sem que esta condição por sua vez possa ser mostrada — da socie­ dade como potência das normas e sede da representação coletiva. E essa matriz que permite a Durkheim introduzir a anomia no aparelho de­ monstrativo, em sua qualidade de elemento da variável “regulação”, vem a ser, o poder da norma ou da lei (da sociedade, no caso). Ora, é justamente o solapamento desse poder ou sua ausência pura e simples que gera a anomia, que como tal, em sentido absoluto, é uma categoria “negativa” (falta ou ausência da norma), e por isso mesmo não pode ser “positivamente” mostrada, mas indireta e “dialeticamente” inferida5. Um bom exemplo do quarto e último caminho (determinação da estrutura dissociada da determinação da essência e associada à determi­ nação da causa e da lei) nos dá Freud em sua obra A interpretação dos sonhos, especialmente no capítulo VII, onde dedica particular atenção a seu método. O problema que lá está em jogo é encontrar uma chave de inter­ pretação dos sonhos que confira inteligibilidade ao material onírico e, assim, afaste a impressão persistente de que seu conteúdo é irracional, arbitrário, desconexo, cambiante, portanto refratário ao método da ciên­ cia, que exige justamente a existência de regularidades nas matérias a que se aplica. 3. Para uma exposição clara da obra O suicídio, de Durkheim, ver GlDDENS, A. As idéias de Durkheim. São Paulo, Cultrix, 1981, cap. 2, que nos foi particularmente útil — a despeito de o capítulo ser por vezes bastante esquemático, além de sucinto — na assi­ milação do problema do suicídio com o fenômeno social. A ressalva, já comentada por nós relativamente a Granger, é que Giddens não distingue as variáveis regulação e inte­ gração, acentuando esta última. A importância de articular as duas variáveis, referida supra, e a questão de sua pertinência serão enfatizadas na segunda parte de nosso estudo. 151

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Sabe-se que antes de Freud não faltaram tentativas para decifrar o sentido profundo dos sonhos, com o intuito de mostrar que as imagens oníricas não são tão despidas de significação e desconexas assim, mas comportam um significado próprio e dizem algo da realidade. Uma das mais conhecidas tentativas nos dá a própria Bíblia, ao aludir ao sonho de Nabucodonosor e à sua decifração por Daniel, com a ajuda de um método de interpretação baseado na alegoria, o qual, ao traduzir seu sentido latente como se fosse uma parábola, terminou por dar-lhe um significado religioso, tendo sido iluminado na ocasião pela revelação divina. A assinalar que o sonho do rei tinha sido tão horroroso que ele, como ocorre nessas situações, acabou por se esquecer de seu conteúdo. Sobressaltado, convocou magos e adivinhos para ajudá-lo a lembrar-se de sua visão noturna e lhe explicar sua significação. Nenhum deles conseguiu. Somente Daniel, um filho de Israel, depois de receber a ajuda de Javé, pôde fazê-lo. Eis resumidamente como as coisas se passaram. Primeiro, Daniel se apresenta ao rei e lhe relata o que ele sonhou. “Tu vistes, ó rei, uma grande estátua cuja cabeça era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e os quadris de bronze, as pernas de ferro, os pés em parte de ferro em parte de barro. Quando tu estavas olhando, uma pedra foi cortada sem o auxílio das mãos, feriu a estátua nos pés de ferro e de barro e os despedaçou, não ficando deles nenhum vestí­ gio. Tal foi o sonho.” Em seguida Daniel dá sua interpretação, ante o rei atento e sobres­ saltado. Ei-la: “Es tu que tens a cabeça de ouro e a quem Deus confe­ riu o reino, o poder, a força e a glória. Depois de ti, se levantará outro reino, de prata, inferior ao teu; um terceiro reino, de bronze, o qual terá domínio sobre toda a terra; um quarto, de ferro, que será forte tal qual aquele metal, que tudo quebra e reduz tudo a pedaços, porém que, tendo sido adicionada a argila a seus pés de ferro, terminará por ser um reino fraco e dividido. E então que Deus elevará um novo reino que jamais será destruído, consumará todos os outros e subsistirá para sempre”. Dito isso, conclui o profeta: “Como vistes que do monte foi cortada uma pedra, sem o auxílio das mãos, e ela reduziu a pó o ferro, 152

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o bronze, o barro, a prata e o ouro, o Grande Deus fez saber ao rei o que há de ser futuramente. Certo é o sonho e fiel a sua interpretação”4. Terminado o relato, um pouco como a gente faz com os psicana­ listas, diz-se que o rei deu assentimento à interpretação de Daniel e, reconhecido, ofereceu-lhe manjares e perfumes, e o fez governador de toda a província de Babilônia. Cabe observar que no caso de sua interpretação, afora o reino de Nabucodonosor, que é explicitamente designado (primeiro reino), fica aberto identificar quais são na história real o segundo, o terceiro e o quarto reinos, sobretudo o quarto, de todos o mais esperado, pois con­ forme sua decifração ele será destruído e dará lugar à instalação do reino de Deus, que perdurará para sempre. Consta que Daniel teve mais tarde uma visão, a qual lhe permitiu identificar como terceiro o reino dos gregos, vencedores dos persas. Sendo assim, logicamente, o quarto reino seria instalado, na seqüência, pelos vencedores dos gregos. Quanto ao povo que o faria, o profeta não o disse, e a opinião dos que lhe sucederam se dividiu a esse respeito, sendo a mais corrente a que identifica o quarto reino com o Império Romano. Tal é o caso de São Jerônimo, santo e doutor da Igreja, que retoma a interpretação de Daniel e propõe uma releitura do sonho de Nabucodonosor, a qual vai inspirar os exegetas e historiadores durante séculos, conforme lembra Pomian, cujo relato seguimos de perto5. Eis o comentário do santo a respeito do livro de Daniel e o que ele diz do quarto reino: “Este quarto reino, semelhante ao ferro que quebra e domina tudo, é evidentemente o dos Romanos. Mas os pés e os dedos são em parte de ferro e em parte de barro, o que se verifica em nosso tempo de maneira muito clara. Se não houve reino algum mais forte e mais duro que o Império Romano no seu começo, não houve também nada de mais fraco no seu fim, já que, nas nossas lutas intestinas e nas nossas guerras contra outras nações, temos necessidade da ajuda dos povos bárbaros. Ora, é após o fim de todos esses reinos de ouro, de prata, de bronze e de ferro que a pedra, que é Nosso Senhor e Salvador, 4. Daniel 2, in A Bíblia sagrada (trad. João Ferreira de Almeida). Brasília, Ed. Socie­ dade Bíblica do Brasil, 1969. 5. POMIAN, K. Lordre du temps. Paris, G allim ard , 1984. 153

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desprendeu-se da montanha sem o auxílio de nenhuma mão (...), e depois de ter destruído todos os outros reinos esta pedra tornou-se uma grande montanha e estendeu seu domínio a todo o universo”6. A assinalar que a interpretação de São Jerônimo é igualmente “ins­ pirada”, ainda que a chave da leitura não lhe tenha sido revelada dire­ tamente por Deus em pessoa, como no caso do profeta, porém ainda assim “inspirada”, pois busca seus elementos nos livros santos e nas verdades que lá se encontram, as quais foram reveladas por Deus. No caso de Freud, as coisas se passam de uma maneira a um tempo parecida e diferente em relação à interpretação de Daniel e da exegese de São Jerônimo. Parecida, porque também ele postula que o sonho tem um sentido e que podemos ter acesso a seu núcleo significativo se dispomos de um a chave de interpretação pertinente ou adequada. Diferente, porque o significado que ele confere ao sonho não é religio­ so, mas científico. Para chegar a esse núcleo de sentido, Freud elabora um método de interpretação que, conforme ele próprio reconhece, se assemelha ao método de decifração de criptogramas, a exemplo do que foi usado por Champollion na leitura dos hieróglifos egípcios, com a ajuda da pedra de roseta que lhe deu a chave deles; porém, no caso de Freud, adapta­ do a suas necessidades de psicanalista. A técnica empregada pelo vienense consistirá em reconduzir o material onírico manifesto a seu sig­ nificado latente que se oferece nas camadas profundas do psiquismo, significado que a camada manifesta expressa ao mesmo tempo em que esconde, em razão dos mecanismos de censura e de recalcamento, por se tratar de algo inconfessável. Essa camada profunda onde se acha o sentido latente do sonho teria uma sintaxe própria (estrutura), cuja trama seria tecida pelo inconsciente, tendo por princípio ordenador o desejo. Sendo a projeção disfarçada do desejo, que só se manifesta de maneira cifrada, pelos mecanismos da condensação e do deslocamento, o ma­ terial onírico passa a ser dotado de uma carga de simbolismo que muito faz lembrar as alegorias de Daniel (o ouro representa o primeiro reino, o ferro o quarto...). Com a diferença de que, no caso de Freud, não há 6. A p u d , ib id ., 10 6 -1 0 7 .

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uma revelação divina a “inspirar” o intérprete na decifração, a qual se dá de um só golpe, mas mediante um lento e por vezes claudicante trabalho de interpretação. Tal trabalho, da parte do intérprete, ao recolher seus instrumentos seja da ciência, seja da clínica (pois uma não vai sem a outra em Freud, sendo a psicanálise tanto uma ciência como uma arte ou téchne), con­ sistirá numa operação em que é possível identificar três passos articula­ dos entre si: 1) tomar o material onírico como um conjunto de pensa­ mentos (e não como meros devaneios da fantasia); 2) colocar-se no pla­ no da linguagem em que esses “pensamentos” se expressam, seja no estado de sono, seja no de vigília (quer dizer, tanto no plano da lingua­ gem verbal articulada como no nível da linguagem simbólica não-articulada: brancos de memória, indícios cifrados, atos falhos etc.); 3) ela­ borar constructos mentais (ou modelos, se se preferir) para se chegar àquele núcleo originário e recalcado do sentido: o desejo. Por sua vez, o constructo que dá a chave de interpretação é um modelo topológico (do grego tópos, “lugar”), segundo o qual o aparelho psíquico é uma estrutura constituída de três lugares ou instâncias: a) inconsciente-préconsciente-consciente, formulado na Interpretação dos sonhos e conhe­ cido como primeira tópica; b) ego-id-superego, esboçado em Além do princípio do prazer e conhecido como segunda tópica. Municiado do método, Freud julga estar em condições não apenas de conferir inteli­ gibilidade aos sonhos dos indivíduos normais, neuróticos e psicóticos, como também de fazer da psicanálise uma disciplina científica, e, enquanto tal, sem nada dever à física, à química e à biologia. O pai da psicanálise nos dá uma excelente ilustração desse proce­ dimento em seus estudos clínicos consagrados à histeria, principalmente naqueles em que relata vários sonhos de uma paciente de nome Dora e submete o material onírico a uma interpretação exaustiva, embora não conclusiva (simplesmente, a uma certa altura, Dora abandona o divã), servindo-se para tanto do instrumental da nova ciência. Eis o primeiro sonho reiteradas vezes sonhado por Dora: “Há fogo na casa. M eu pai chegou à minha alcova para despertar-me e está em pé ao lado de minha cama. Visto-me com toda pressa. Minha mãe quer salvar ainda o pequeno cofre onde guarda suas jóias. Porém, papai pro155

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testa: não quero que por causa de seu pequeno cofre ardam em fogo as crianças e eu. Descemos correndo. Ao sair para a rua, acordo”7. Com o não nos é possível seguir passo a passo, com toda a riqueza dos detalhes, o caminho percorrido por Freud ao interpretar o sonho de Dora, limitar-nos-emos a destacar alguns momentos ou pontos for­ tes de seu método de interpretação, bem como a assinalar alguns dos resultados a que o grande sábio vienense chegou. Guiado por sua teoria do aparelho psíquico (o inconsciente co­ manda a vida psíquica, o sonho é a projeção de um desejo inconfessado, o inconfessado é a relação edipiana dos filhos com os pais, a relação edipiana leva o filho a odiar o pai e amar a mãe, a filha a odiar a mãe e a amar o pai etc.), Freud aplica seu método de interpretação ao material onírico gerado por Dora, cujos passos fundamentais, fazendo abstração dos elementos incidentais surgidos ao longo do processo clí­ nico, são os seguintes: 1) Freud trata de decompor o material onírico em seus elementos simples (casa, fogo, cofre, pai, mãe, irmão); 2) procura verificar as circunstâncias do sonho (foi sonhado em Viena, na estância de repouso de L. etc); 3) investiga se o sonho tem alguma relação com algum aconteci­ mento recente ou anterior à primeira vez em que Dora o so­ nhou (descobre, por exemplo, que nunca houve incêndio ou ameaça de incêndio na casa onde Dora mora em Viena, nem na acomodação em que ficava na estância de repouso; descobre também que havia contudo um motivo que poderia ter suscita­ do a figuração do incêndio no sonho: ao chegar à estância, cho­ via torrencialmente, não havia pára-raio na casa, e seu pai tinha expressado seu temor de que um incêndio poderia ocorrer etc.). Feito isso, ele procura reconstituir a vida familiar e afetiva de Dora (o pai, a mãe, o irmão, um certo senhor K que a cortejava e ela repu­ diava, a mulher de K, que tinha encontros furtivos com o seu pai) e 7. FREUD, S. “Análisis fragmentário de una histeria (‘Caso D ora’)”, in Obras comple­ tas (t. I). Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1973, 967.

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trata, enfim, de captar o sentido do material onírico, apoiando-se em certos indícios, ainda que débeis, que ela deixava escapar a contragosto. O expediente de que Freud se serve a esta altura — já na etapa resolutiva do método — é a técnica de decifração que consiste em tomar os elementos do sonho (fogo, cofre, pai, mãe etc.) como símbo­ los ou alegorias a designar e ao mesmo tempo a encobrir alguma coisa, fazendo uma espécie de tábua de correspondência entre a imagem e a coisa. Assim, 1) o fogo designa por metáfora o amor; 2) o cofre, a geni­ tália de Dora, que devia ser guardada intacta e impoluta; 3) a figura do pai, o próprio pai e também o senhor K; 4) as jóias que a mãe guardava no cofre (“colares de pérolas”, no caso) designam a um tempo, quanto às “gotas” ou, antes, “às contas” dos colares, a evocarem o líquido e o úmido, referidos (ao que parece — Freud não é claro) ao meio “aquo­ so” de onde saíram, a) a incontinência urinária de que fora vítima Dora na infância, b) o desejo sexual da mulher (que fica “molhada” quando excitada), bem como o comércio sexual entre os pais (que uma noite ela presenciou quando criança), c) o “fluxo branco” (doença venérea adquirida pela mãe após relação com o pai, que era mulherengo e a contaminou), d) a atormentada mania de limpeza da mãe (pois, além do úmido, a “gota” evoca o limpo e o não-contaminado); 5) a fuga com o pai (pois Dora no fim do sonho sai da casa em chamas com o pai) indica ao mesmo tempo a fuga da casa em que corre perigo sua virgin­ dade e a busca de amparo em seu pai, motivada por seu temor do homem que a assediava e a perseguia (o senhor K). Decifrado o significado do material onírico em seus componentes, Freud propõe então a interpretação do sonho de Dora, pondo em re­ levo, com base em sua teoria do aparelho psíquico, o desejo primitivo (infantil) inconfessado, que as imagens e as palavras aparentemente inocentes simultaneamente indicavam e encobriam, deixando-o ocul­ to atrás do sonho, porém agora revelado graças à psicanálise: o sonho revela e esconde uma relação edipiana de Dora com o pai, um desejo incestuoso alimentado e recalcado desde a infância, desejo tanto mais firme que o sonho se repete noites e mais noites com o propósito de cumpri-lo e reaparece anos depois ao surgir uma nova ocasião para reanimar o mesmo e velho propósito. 157

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Para o leitor ter uma idéia do significado edipiano do sonho, do papel protagonizado pelo pai, da ambivalência do senhor K e da forma como Dora vive no sonho e também na realidade o triângulo, vamos citar a parte conclusiva da interpretação de Freud, na qual o drama da infeliz é condensado com rara maestria. Com efeito — escreve Freud — Dora “decide fugir com o seu pai. Na realidade o que faz é refugiarse no amparo de seu pai, em virtude do temor do homem que a perse­ gue. Reanima dentro de si uma antiga inclinação infantil por seu pai, destinada a protegê-la contra a inclinação atual por aquele homem [o senhor K, em cuja casa a família de Dora passava as férias — ID], O pai é responsável, em parte, pelo perigo que agora a ameaça, pois a deixou à mercê do pretendente para melhor lograr seus próprios interesses amorosos [o pai de Dora cortejava a mulher de K — ID]. Quanto teria sido melhor se tivesse querido só a ela e se tivesse se dedicado a salvála dos perigos que a ameaçavam!”8 Portanto, o culpado é o pai ou, melhor, a inclinação inconfessada de Dora pelo pai. Com o no cinema e nos romances policiais, com a descoberta do vilão e do enredo da história, o filme termina e o livro acaba. Um pouco é o que acontece com Freud em seu relato do sonho de Dora. Descoberto o vilão e esclarecida a trama, ele pode estabelecer qual é a causa ou a fonte geradora do sonho de Dora e a razão por que ele se repete ao longo dos anos: a energia geradora do sonho nada mais é do que o desejo infantil, inconsciente hoje, de Dora pelo pai, desejo tanto recalcado primitivamente como continuamente renovado na sua vida desperta e onírica atual, a ponto de se repetir noites e mais noites com o propósito secreto de cumpri-lo. Quanto ao problema da objetividade e do método, cabe assinalar, concluindo o segundo tópico de nossa exposição, que a análise de Freud termina com a determinação de uma estrutura — a estrutura do apare­ lho psíquico —, que no caso de Dora se revelará afinal neurótica, em cuja origem vamos encontrar uma relação edipiana mal resolvida com o pai e cuja expressão é o mal de que ela padece: a histeria. E, pois, por privilegiar a determinação dessa estrutura, que do método de inter­ 8. Ib id ., 9 8 0 .

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pretação de Freud pode-se dizer que é estrutural, e não propriamente hermenêutico, como na sociologia da compreensão de Max Weber. A exemplo de Marx, a determinação da estrutura vem associada à deter­ minação da causa, entendida como uma causalidade sobredeterminada e definida ela mesma como uma estrutura (a fonte ou a causa do sonho é o desejo, e a instância do desejo é uma estrutura: o inconscien­ te). Também como em Marx, a determinação da estrutura vem associa­ da à determinação da lei, ainda que não mensurável no campo da psi­ canálise, a saber: as leis do inconsciente que governam os mecanismos de deslocamento e de condensação dos sonhos, tendo como fonte o de­ sejo, levando seja a seu recalcamento, seja a seu afloramento, e deter­ minando-se como leis do desejo ou da libido9. Contudo, as semelhanças param por aí e inúmeras são as diferen­ ças. Não bastasse a dialética e a maneira especial com que cada um lida com as oposições, num dando lugar a sínteses (Marx), noutro a díades (Freud), a estrutura em Marx está associada à determinação da essência, ao passo que em Freud não: simplesmente, ao chegar ao fun­ do do poço o neurótico descobre que o poço é vazio. Ou seja: que o ente que habita o inconsciente na realidade é um “fantasma” e não uma essência, do qual (inconsciente), depois de decomposto em seus elementos fantasmais no processo de análise, a exemplo da cebola, uma vez descascadas todas as suas camadas, só sobra o nada ou o lugar vazio, estando o paciente pois “curado” (a acrescentar que para Freud a ciência não tem nada a dizer a respeito das essências, mesmo quando estão em jogo entes e processos à primeira vista mais “concretos” ou mais “reais” do que os fantasmas do inconsciente, como os instintos e as energias: tanto quanto a física em relação aos componentes essen­ ciais das energias e dos processos termelétricos, a psicanálise ignora a natureza deles). Voltando ao caso Dora, posteriormente Freud lança uma nova inter­ pretação, que será retomada por Lacan, ao colocar em relevo a relação de Dora com a esposa do Senhor K, quando, não sem penitenciar-se por 9. Sobre a mensuração de certos aspectos do aparelho psíquico, sabe-se que em várias partes de sua obra, como nas consagradas às pulsões em geral e à energia libidinal em particular, Freud assinala sua esperança de no futuro quantificar essas energias. 159

Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

suas falhas na análise inicial, levanta a hipótese de homossexualismo entre as duas mulheres10. Quanto à estrutura, patenteada pelas duas tópicas e pelo exemplo do caso Dora, temos que, como ocorre com Lévi-Strauss, ela é antes de mais nada uma construção, vem a ser uma construção teórica, e como tal inferida intelectualmente, e não algo a ser observado empiricamente. E mais: algo que é a condição do mostrar, não podendo ela mesma ser mostrada, em cuja construção entram tanto os dados em­ píricos, amealhados pela clínica, como as postulações do espírito, ao se deparar com os dados do real (ou da clínica) e procurar interpretá-los. Quanto à relação da estrutura com o real, ela é da mesma ordem da relação da essência com o fenômeno ou do latente com o manifesto: da ordem do latente e o correlato da essência (a estrutura), o manifesto e o 10. Agradecemos a Maria das Graças Murici por nos ter chamado a atenção para esse ponto, por ocasião de um seminário em que o capítulo em apreço foi discutido. A pista que levou Freud a rever sua interpretação foi a rejeição da paciente ao beijo de Herr K num de seus encontros, levando-o a formular a pergunta que mudou o rumo da análise: “Se Dora amava Herr K, por que o refutou quando este a beijou na cena do lago?” . A passagem em que Freud, em nota de rodapé, corrigindo-se, fornece a nova interpretação é a seguinte, conforme a edição brasileira: “Quanto maior o intervalo de tempo que me separa do fim desta análise, mais provável me parece que a falha em minha técnica esteja nessa omissão: não consegui descobrir a tempo nem informar à paciente que seu amor homossexual (ginecófilo) por Frau K era a corrente inconsciente mais poderosa de sua vida mental. E u devia ter imaginado que a fonte principal de seus conhecimentos sobre sexo só poderia ter sido Frau K — exatamente a pessoa que mais tarde acusou-a de interesse por estes mesmos assuntos. Seus conhecimentos sobre o assunto, e ao mesmo tempo, o fato de fingir sempre ignorar de onde os obtivera eram realmente notáveis. Era preciso que eu tivesse decifrado este enigma e procurado o motivo de tão extraordinário ponto de repressão. Feito isto, o segundo sonho teria for­ necido a resposta. O desejo implacável de vingança demonstrado neste sonho servia mais do que qualquer coisa como disfarce para o fluxo de sentimentos contrários a ele — a generosidade com que ela perdoou a traição da amiga a quem mais amava e ocul­ tou de todos o fato de ter sido esta amiga que lhe revelara os conhecimentos que mais tarde seriam a base de suas acusações contra ela. Quando não havia compreendido a importância da corrente homossexual de sentimentos dos psiconeuróticos, era amiúde obrigado a interromper o tratamento de meus casos, ou era tomado de total perplexida­ de”. Referências: FREUD. S. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905 [1901]), in E dição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1972, p. 116. Para o segundo sonho de Dora, que narra a morte de seu pai, referido por Freud supra e não incorporado por nós, no qual o fundador da psicanálise posteriormente viu o sinal de que a paciente estava pronta para libertar-se da figura paterna, ver p. 95 da edição brasileira. 160

As ciências hum anas e a exigência de objetividade:

fenomênico ao mesmo tempo a mostram e a escondem, cabendo ao intérprete, com a ajuda da estrutura que ele mesmo construiu (estruturamodelo = teoria + método) ou que ele emprega como instrumento de conhecimento, “mostrar” o real e “objetivar” sua ordem profunda (estrutura-realidade). Desde então haverá uma circularidade entre a estrutura e a realidade a denunciar a existência de duas estruturas nem sempre distinguidas por Freud, nem por Lévi-Strauss, nem por Marx: de um lado, a estrutura-realidade (ordem do real); de outro, a estrutura-modelo (ordem do conhecimento). Donde a acusação de a teoria, ao passar de uma estrutura a outra, ser ela mesma circular em sua relação com a realidade, ficando imunizada contra os desmentidos do real e da expe­ riência. Donde a acusação de Popper e dos popperianos de que a psica­ nálise e também o marxismo não podem ser falseados, e portanto não têm as credenciais da ciência. Donde, enfim, a acusação de dogmatismo que pesa sobre a psicanálise, como nos mostra a piada famosa a respeito de três situações clínicas: se a paciente chega na hora é obsessiva; se chega depois, é resistente; se não chega ou vai embora, é histérica... Concluindo nossa exposição, passemos para o terceiro e último tópico. A pergunta que deve ser respondida é saber, de um lado, o que de fato foi feito da objetividade em cada uma dessas vias e seus respectivos métodos de abordagem do real; de outro, se Marx, Weber, Freud e Durkheim dizem a mesma coisa quando falam da objetividade de suas teorias ou visões da realidade humano-social. Procurando resumir as coisas até onde é possível sumariá-las, dire­ mos que: 1) Em Durkheim a objetividade é questão de método e referida às coisas. Por isso, há quem pretenda que é por trabalhar com métodos de observação direta das coisas (para Durkheim o fato social é uma coisa) que a objetividade da ciência não é senão uma espécie de sofisticação do senso comum, algo que se pode apontar com as mãos e os dedos ou que se obtém mediante um olhar penetrante sobre as coisas mesmas. Contudo, o que o sociólogo francês nos mostra é que a coisa mais difícil é observar os fatos sociais, sendo poucas as situações em que o analista está face a face com os mesmos, devendo as mais das vezes lançar 161

Form as de racionalidade e estratégias discursivas das ciências hum anas na contem poraneidade

mão de observações indiretas, comparações, agregados estatísti­ cos, sem nenhuma condição de ter uma prova ostensiva e direta dos fenômenos sociais. 2) Em Weber a objetividade goza de um status diferente, em vir­ tude da ambivalência de sua empresa (o objeto da ciência é o individual; mas o método da ciência instaura generalizações, ainda que não-universais). Tal ambivalência o leva, por um lado, a tomar o objeto da investigação sempre em situação e a lidar com fatos e eventos singulares; por outro, a incorporar ao méto­ do os tipos ideais e uma causalidade mais intelectualista do que a de Durkheim (é o pensamento que a imputa às coisas). Em conseqüência, o métron da objetividade encontra-se menos nos fatos efetivamente ocorridos no real empírico e descritos segun­ do as notas da observação e da experiência, do que nos contrafatos da experiência em sua variação ideal no e pelo pensamen­ to. Logo, a objetividade do discurso é mais questão de método que se remete ao sujeito, imputa algo às coisas e as submete ao pensamento, do que função das coisas que o discurso espe­ lha e designa. 3) Em Marx e em Freud, para quem o sonho é mais real do que a realidade, a primazia cabe à teoria que funda o método e, por extensão, instaura os modelos que contrastam e fazem a ponte entre a teoria e a realidade. Além disso, não há para ambos nem observação direta das coisas, nem propriamente verificação empírica da teoria, como queriam Durkheim e Weber, mas tãosó observação indireta do real e justificação racional da teoria, justificação ela mesma de natureza teórica, a partir das coações próprias do pensamento e do discurso. Em conseqüência, a ob­ jetividade é menos questão de método e função das coisas do que do discurso e da teoria. Contudo, não é o mesmo o status da teoria (num mais marcadamente realista; noutro, em sua fase madura, mais construtivista), nem é a mesma a visão de ciência — Marx, reclamando da dialética, de suas mediações, de suas sínteses; Freud, de uma tópica que, se triangula os ele­ mentos e instala as díades, o faz seja para marcar as ambivalên162

As ciências hum anas e a exigência de objetividade:

cias e ambigüidades, seja para intensificar os conflitos e as po­ laridades, abrindo-os não à dialética, mas ao agon (pulsão de vida/pulsão de morte) e ao pensamento trágico. Donde a conclusão de que Marx, Freud, Durkheim, Max Weber (e mesmo Lévi-Strauss, como vimos nos capítulos precedentes) não falam da mesma coisa, em razão das diferentes estratégias discursivas seguidas e de suas diferentes visões de ciência. Voltaremos a esses pontos na segunda e na terceira partes de nosso estudo, onde abordaremos mais detalhadamente as vias de Emile Durkheim e Max Weber.

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SEGUNDA PARTE

O POSITIVISMO E A SOCIOLOGIA: DURKHEIM

Capítulo 1

O positivismo e as ciências humanas

Ao longo deste capítulo, vamos falar das repercussões do positivis­ mo nas ciências humanas. Para levar a cabo essa tarefa, nossa proposta é empreender uma abordagem que evite as duas opções que comumente caracterizam os trabalhos dos epistemólogos e historiadores das ciências humanas que se ocupam do assunto, a saber: 1) tomar o positivismo como uma espé­ cie de diabo que deve ser exorcizado, como em certos marxistas, a exem­ plo de Lenin e mesmo Althusser, que nele vêem algo como a manifes­ tação da ideologia burguesa no âmbito das ciências e da filosofia; 2) fazer do positivismo uma caricatura com o intuito de mais facilmente descartá-lo, como em certos trabalhos de Gusdorf, e também de alguns marxistas ilustres, a exemplo de Adorno e outros expoentes da Escola de Frankfurt, que não poupam nem mesmo Popper em seus ataques. Contra essas escolhas e os males a elas associados, tentaremos na seqüência adotar uma perspectiva mais ajustada à presença e à reper­ cussão do positivismo nas ciências humanas — sem aumentar e drama­ tizar sua importância (afinal, o positivismo não é o diabo e as ciências 167

O positivism o e a sociologia: Durkheim

humanas muito lhe devem seu atestado de nascimento), e também sem diminuir e esvaziar seus feitos (afinal, o positivismo não é uma banalidade e muitas das conquistas das ciências humanas devem ser creditadas a ele). Para dar corpo a essa perspectiva, vamos tratar de três pontos, os quais serão visados sob o ângulo das ciências humanas, deixando de lado as ciências naturais e a filosofia propriamente dita. Tais pontos são: 1) a caracterização do positivismo, num nível mais geral e introdu­ tório, envolvendo sua motivação filosófica e seu projeto científico; 2) a focalização do positivismo no âmbito das ciências humanas, num nível mais específico e de uma maneira mais desenvolvida, abrangendo a história, a sociologia, a economia e a psicologia; 3) a avaliação do pro­ grama positivista e de seus principais resultados no plano das ciências humanas (à exceção da sociologia, cujo exame, mais cerrado, será efe­ tuado depois, na seqüência do estudo), destacando sua fertilidade, seus impasses e seus limites. Com ecem os pelo primeiro ponto: a caracterização do positivismo. A palavra “positivismo” foi cunhada por Auguste Comte e sugere, mais do que o próprio Comte o afirma explicitamente, a necessidade de que todo juízo sobre um estado de coisas ou pronunciamento sobre o mundo seja confirmado pela experiência (daí o termo “positivo”, e por derivação a palavra “positivismo”, que designa a corrente de pensa­ mento que assim caracteriza a atividade do espírito que se quer e se propõe científica, e não simplesmente teológica, metafísica ou ideoló­ gica). Tal visão da ciência, ainda hoje moeda corrente, junto com outros ismos, como o empirismo lógico e o empiro-criticismo, foi justamente impugnada por Popper no curso do século XX. Ora, Popper se diz “ne­ gativista” e se atribuiu, não sem grande presunção, a glória de ter liqui­ dado com o empirismo lógico, e por extensão — acrescentaríamos — com o próprio positivismo, o qual, não obstante o atestado de óbito assinado pelo filósofo austríaco em suas memórias, ainda continua vivo. Voltando ao ponto, em sua acepção mais estrita o termo positivis­ mo designa, portanto, a doutrina de Comte, a quem deve sua criação e sua difusão em suas diferentes obras, especialmente o Curso de filo­ sofia positiva. 168

O positivism o e as ciências hum anas

Todavia, em sua acepção mais ampla, o vocábulo tem um espectro mais dilatado, recobrindo, quanto à sua motivação filosófica, para além da doutrina de Comte, por afinidade ou licença poética, tanto o empi­ rismo inglês e o iluminismo francês do início da modernidade como o empirismo lógico e a filosofia analítica da contemporaneidade. No to­ cante ao seu projeto científico, o positivismo abarca o materialismo na­ turalista do século XIX, o empiro-criticismo — dizíamos — de Mach e Avenarius, e certas orientações instrumentalistas ou mesmo construtivistas do século XX. Essa nebulosa, que nos terrenos da filosofia e da ciên­ cia termina por subverter a série histórica do antes e do depois de Comte, constituirá o chamado “positivismo histórico” . Ao nos referirmos àquela corrente de pensamento na sociologia, bem como em outras disciplinas das ciências humanas, é menos a doutrina de Comte do que o positivis­ mo histórico que teremos em mente. No caso, uma ficção intelectual que, se é verdade que mantém de alguma forma alguns pontos fortes do comtismo, como o papel da empiria e o respeito quase servil à experiên­ cia (todavia, Comte ressalta o papel da razão, associando-a à experiência), em contrapartida amputa membros importantes do corpo de sua doutri­ na, como sua filosofia da religião e sua teoria do sentimento. Nessa acepção tão vasta, abrigando escolas e correntes que mal disfarçam seus pontos de litígio nas suas escolhas e opiniões, a ponto de Durkheim julgar Comte pouco conseqüente quanto ao ideal positivis­ ta ao propor sua lei dos três estados e uma nova religião da humanida­ de que seria o próprio positivismo, a verdade é que a palavra positivis­ mo terminou por se inflacionar, perdendo tanto seu lastro antigo como seu novo valor. E o que é mais grave: não só perdeu a capacidade de demarcar a nebulosa das doutrinas com seus ismos, como também perdeu a capacidade de delimitar com clareza o campo das atividades do espírito que o vocábulo recobre (filosofia, ciência, técnica), além da possibilidade de designar com nitidez a atitude que caracteriza o posi­ tivista em suas incursões nos diferentes campos do saber. Ora, desapa­ recido o ethos, a palavra torna-se oca e todo o resto fica perdido. Não obstante, segue valendo a idéia, compartilhada por muitos partidários e expoentes da doutrina, de que na esfera do conhecimento empírico, estando todo ele fundado na experiência, é a própria expe­ 169

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riência que deverá encarregar-se de confirmar ou não nossos juízos sobre o real empírico. A seguir, vamos tentar precisar o que entender por esse reiterado apelo à experiência feito por uma plêiade de pensadores ilustres — de Hume a Moore, de Durkheim a Merton, de Newton a Dirac —, com o objetivo de melhor caracterizar a motivação filosófica do positivismo, assim como a orientação geral do projeto científico que aquela corrente de pensamento procura realizar em diferentes campos do conhecimento. No plano filosófico, o apelo à experiência não é exclusivo dos po­ sitivistas. Também os materialistas modernos e os epicuristas antigos postulam algo parecido. Porém, ao fazê-lo, os positivistas querem algo diferente. Antes de mais nada, no que tange ao problema do conheci­ mento, que é o problema que nos interessa aqui, que a experiência não seja tão-só um meio cognitivo auxiliar que, ao lado de outros, como a intuição, forneceria os dados sobre os quais a razão vai operar. Ela deve ser o meio por excelência, o solo firme e o fim último do conhecimen­ to, além do qual a razão não pode evadir-se, sob pena de operar sobre o vazio das abstrações e de se perder irremediavelmente em cavilações metafísicas. Por fim, por via de conseqüência, a idéia de que, se o co­ nhecimento está todo ele fundado na experiência, a própria experiên­ cia há de oferecer os meios para validá-lo, retificá-lo e ampliá-lo, a sa­ ber: a observação objetiva e a indução amplificadora. Todavia, a bem da verdade, tal associação da indução e da experiência não é obrigató­ ria, nem exclusiva. Trata-se, antes, da via costumeira daquelas corren­ tes mais empiristas e, como tais, mais chegadas ao real ou ao “concre­ to” . Em contrapartida, aquelas abordagens mais intelectualistas, e mesmo mais “científicas”, que não abrem mão do ideal de rigor e de exatidão, vão associar a experiência com a matemática, estimando ne­ las encontrar, juntas, a verdadeira via do saber. Sabe-se que, nesse apelo à experiência, alguns críticos mordazes viram a instalação no coração da filosofia do dogma da “imaculada percepção”, ao dar vazão à postulação, nunca justificada, de um acesso privilegiado ao real por obra de um “Percepto” que, além de deixar intacto o objeto, não se deixaria contaminar ao entrar em contato com ele. Já outros viram, com a anuência dos positivistas, a promoção do 170

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senso comum à filosofia, assim como a reconciliação do filósofo com o homem comum. Ou seja: o homem de bom senso, o indivíduo razoá­ vel que está mais disposto a seguir o que lhe ensina a experiência e a vida comum das pessoas do que a fiar nas especulações extravagantes da razão e nas elucubrações fantasiosas do indivíduo solitário, por mais genial que ele seja. Tal visão é acertada, por um lado, visto que o sentido dos fatos, o gosto do concreto, o apego à realidade são qualidades do “sadio” bom senso, compartilhadas pelos homens comuns e também pelos filósofos que, antes de ser filósofos e de ser contaminados pelo mal metafísi­ co que acomete o espírito, são também homens comuns. Tal visão não é correta, por outro lado, no sentido de que, tão logo começa a elaborar a experiência, o filósofo positivista descobre que, mais do que o refinamento do conhecimento comum ou a filosofia do senso comum, o que ele de fato faz ao filosofar é romper com o conhe­ cimento comum e se insurgir contra o senso comum, em busca de um conhecimento mais bem fundado e do estabelecimento de verdades mais elevadas. Sintoma disso é o cuidado com que se cerca o filósofo positivista ao falar da observação e da experiência, tendo em vista não o conheci­ mento comum, mas o conhecimento científico: em vez de falar de observação e de experiência sem mais, fala de observação metódica e de experiência ordenada (experimento). D aí a introdução de distinções conceptuais precisas, para além das noções chapadas do senso comum, e também a valorização do método numa tal escala que extrapola de longe a do conhecimento comum, sempre por demais espontâneo e mesmo dogmático nos domínios onde é mais “dóxico”, e sempre por demais dependente do ensaio e do erro onde é mais empírico. Contudo, há aqueles positivistas que, conquanto falem de precau­ ções, de observações imparciais, de análises desapaixonadas e de expe­ riências controladas, como algo que não se dá espontaneamente ou por tateamento, mas com método, ainda assim julgam que se trata do re­ finamento do conhecimento comum ou do prolongamento do senso comum, et pour cause... 171

O positivism o e a sociologia: Durkheim

No plano das ciências, três são as idéias-força que vão comandar o programa positivista: 1) procurar acercar-se dos fenômenos tais como eles se oferecem à observação e à experiência e tomá-los tais quais, como fatos ou dados da experiência, sem se apoiar em nenhuma idéia precon­ cebida e sem buscar nenhuma essência escondida por trás deles; 2) pro­ curar estabelecer correlações entre os fenômenos observados, fixar os nexos causais que os envolvem e determinar as leis que os governam; 3) procurar confirmar as correlações, corroborar os nexos causais e compro­ var as leis por meio de testes precisos e de experimentos concludentes. Para ser levado a bom termo, tal programa fica a depender, quanto ao método, do estabelecimento de regras ou condutas que ajustem o particular e o fático, instalados pela observação, ao universal e ao abs­ trato, que nos levam à teoria ou vêm ao mundo com ela ou através dela. E aqui, além das ferramentas da matemática, que entra a indução, que não apenas vai encarregar-se de fazer o liame, mas também vai ser a alavanca que permitirá a passagem do particular ao universal. Tão importante é o seu papel, que o sucesso do programa positivista em grande medida fica a depender do sucesso do próprio programa da indução, cujas linhas gerais Lalande resumiu assim: “Permanecer per­ to dos fatos e acumulá-los; procurar sobretudo as fórmulas matemáticas que resumam as observações, reportadas elas próprias tanto quanto possível às suas medidas: aproximar-se da indução completa de Aristó­ teles como de um ideal — eis os traços fundamentais do programa” '. Em sua origem, segundo os positivistas, encontram-se um filósofo de gênio e um cientista ilustre: o filósofo é Bacon com sua inductio vera; o cientista é Newton, que dizia hypothesis non fingo, mas indução empírica dos fenômenos. Entretanto, como esquecer que Bacon fazia indução das essências e que Newton, além de dedicar-se à física, tam­ bém entregou-se à alquimia, à teologia e à cronologia bíblica? Com o esquecer que Hume — também ele tido como precursor do positivis­ mo e também considerado, inclusive por ele próprio, um newtoniano — se encarregou justamente de levar o programa da indução à ruína? 1. LALANDE, A. Les théories de l’induction et de l’expérimentation. Paris, Boivin & C ie Ed., 1929, 132.

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Voltaremos a esse assunto controverso na seqüência, quando pro­ cedermos à avaliação do positivismo, no terceiro e último ponto de nosso estudo. Antes, porém, é preciso considerar o segundo ponto: a focalização do positivismo no âmbito das ciências humanas. Em que consiste o programa positivista nesse domínio do conhecimento?; como se traduz o preceito da observação imparcial e objetiva no tratamento de suas matérias?; como estabelecer as correlações, fixar os nexos cau­ sais e determinar as leis que governam os fenômenos humano-sociais?; como confirmar as correlações e corroborar nossos juízos sobre a rea­ lidade humano-social? — eis os temas que procuraremos abordar nos próximos parágrafos. Com o se sabe, o programa positivista no interior das ciências huma­ nas é concebido na extensão das ciências naturais, motivado pelo projeto de unificação das ciências e ensejado, pela maioria de seus partidários, dentro dos quadros do paradigma fisicalista. Dizemos “maioria” e não todos os partidários, visto que não são poucos os positivistas que prefe­ rem aproximar as ciências humanas da biologia, julgando que a matéria organizada e o mundo da vida teriam algo de específico que não se aco­ modaria muito bem no esquadro da física. Tal é o caso de dois positivis­ tas ilustres como Comte e Durkheim. Especialmente Durkheim, que chega a falar de uma morfologia social e, ao aludir ao corpo social, evoca menos os corpos físicos do que os corpos orgânicos, não hesitando dispor a sociologia no prolongamento da biologia, e não propriamente da físi­ ca. Todavia, isso só ocorre porque, antes, ele tinha enquadrado a biologia no paradigma fisicalista e feito da sociologia uma espécie de física apli­ cada, como aliás o próprio Comte. A prova disso, no tocante a Durk­ heim, é o título de um de seus artigos mais conhecidos: “Sociologia: física dos direitos e dos costumes”. Assim, pode-se dizer que, a despeito das inflexões ocorridas ao se estender ao terreno da biologia, a qual vai interpor-se entre a física e a sociologia, é o paradigma fisicalista que vai di­ rigir o programa positivista nas ciências humanas, paradigma em que é possível reconhecer dois componentes nem sempre perfeitamente ajus­ táveis: um componente empírico, motivado pela exigência de se acercar dos fenômenos guiando-se pelas notas da observação e da experiência; um componente formal ou matemático, motivado pela necessidade de 173

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traduzir tais notas segundo a linguagem do número e da medida. A depender pois do acento dado, ao componente empírico ou ao elemen­ to matemático do paradigma, o programa poderá adquirir um viés empirista, como na antropologia fúncionalista (cf. Malinowski), ou um viés formalista, como na econometria — pouco importa, pois vários são os positivismos e inúmeras as nuanças (questão de gosto, de inclinação e de idiossincrasia), desde que (essa condição não pode ser transgredida) não seja rompido ou abandonado o ideal unitário da ciência. Já a questão de saber como se traduz o preceito de observação objetiva e imparcial no campo das ciências humanas, a resposta encon­ trada é a mesma em suas diferentes disciplinas, por mais que se distin­ gam os objetos e as perspectivas dos estudiosos. No âmbito da sociolo­ gia, por exemplo, Durkheim dirá que o estudioso de suas matérias deverá esforçar-se por tomar os fatos sociais como coisas, tais quais, sem ne­ nhuma idéia prévia ou valor preconcebido. No domínio da história algo parecido é exigido por um número expressivo de historiadores. Com o Ranke, que dizia que o historiador não deve julgar ou dar lições, mas relatar os fatos tais como eles ocorreram realmente. Com o Seignobos, que frisava algo parecido, destacando dois preceitos. Primeiro: na abordagem das matérias históricas o sujeito cognoscente deve anular seu próprio “eu” para melhor mostrar o “em-si” da coisa, ao qual volta­ remos mais de uma vez no curso de nosso estudo. Segundo: nas ciên­ cias positivas o investigador deve esforçar-se por “estabelecer proposi­ ções incontestáveis em torno das quais o acordo possa ser completo entre todos os homens; o ideal é chegar a uma fórmula tão impessoal que ela não possa ser redigida de outra maneira; uma proposição im­ pregnada da marca pessoal de um homem não é ainda uma verdade prestes a entrar no domínio comum”2. Quanto à questão de saber como estabelecer as correlações, fixar os nexos causais e instaurar as leis que governam os fenômenos humanosociais, quem nos dá um bom exemplo da atitude do positivista e das regras a ser por ele seguidas na análise dos fenômenos sociais é Durk­ heim, especialmente em sua obra consagrada ao estudo do suicídio. 2. Apud GUSDORF, G . Introduction auxsciences humaines. Paris, Ophrys, 1 9 7 4 ,4 2 0 .

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O problema que lá está em jogo — vimo-lo — é determinar as causas sociais do suicídio, bem como fixar suas leis, para além dos fa­ tores psicológicos, médicos (patológicos) e individuais que igualmente o motivam (fim de um casamento, depressão aguda, alcoolismo etc.). Para chegar a tais causas e às leis que regulam o suicídio, Durkheim serve-se do método da correlação estatística, método que ele toma de empréstimo de Quételet, conforme salientamos, e também de Morselli, como veremos, e o adapta a seus fins. Assim, após proceder à distribuição das taxas de suicídio, tomando como parâmetro um conjunto de fatores extra-sociais (raças, distúrbios mentais etc.), ele mostra que esses fatores não-sociais não explicam por si sós algumas particularidades observadas nas taxas, a saber: 1) o fato de ela permanecer estável em diferentes sociedades de ano para ano, aumentando em períodos de instabilidade e de crise (econômica) mais ou menos prolongada, diminuindo em períodos de estabilidade e de estagnação: deve haver, portanto, influências sociais na composição dessa taxa; 2) o fato de ela ser menor em países católicos e maior em países protestantes, a despeito de o suicídio ser condenado com a mes­ ma severidade tanto pela Igreja reformada como pela Igreja católica: deve haver, pois, uma causa social que explique a diferença. C om base nesses indícios e particularidades, estabelecidos pela observação e registrados nos levantamentos estatísticos, Durkheim par­ te em busca daquele fator social que explicaria a um tempo a estabili­ dade e a diferença. Este fator — a causa, segundo ele, conforme mos­ tramos — não é senão a solidariedade social, a depender sua ação e seu grau do peso do poder regulador da sociedade sobre os indivíduos (cha­ mada por ele de função reguladora, como na ação do Estado nas cri­ ses), em íntima associação com a força dos laços sociais a vinculá-los entre si nos diferentes planos da existência (nomeada por ele função integradora, a exemplo da divisão do trabalho). A presença ou a ação desse fator é considerada fraca nos países protestantes, que são de índo­ le individualista e caracterizados pela existência de comunidades reli­ giosas pouco integradas (o que define o ethos protestante é o indivíduo, o qual, sem nenhuma mediação, abandonado a si mesmo, está só dian­ te de Deus, como Abraão no sacrifício de Isaac). Em contrapartida, sua 175

O positivism o e a sociologia: Durkheim

presença é considerada forte nos países católicos, pois, de índole me­ nos individualista e povoada de mediações que se interpõem entre o crente e Deus (o clero, os santos, as irmandades), a Igreja católica é uma comunidade mais vigorosamente integrada do que a protestante. Resultado: abandonado a si mesmo, o protestante se mata mais do que o católico, e isso é assim porque, em linguagem durkheimiana, se ex­ põe mais às correntes egoísticas suicidógenas, ao ver rompido o elo tênue que o ligava à sociedade. Além das duas confissões, uma outra correlação rotineiramente estabelecida pelo sociólogo concerne aos judeus, cujas taxas de suicídio ficam a meio caminho entre os católicos e os protestantes. Encontrada a causa (a ligação do suicídio à solidariedade social), Durkheim trata de generalizá-la, ao estendê-la a todo tipo de suicídio, independentemente do grupo e da comunidade a que o indivíduo pertence, seja ela laica ou religiosa, com vistas a subsumir o conjunto dos fenômenos numa lei geral, bem como a conferir-lhe sua expressão matemática. Segmentando as taxas segundo o sexo, a idade, o estado civil, a confissão religiosa etc., o sociólogo mostra, por exemplo, que a taxa de suicídio de uma comunidade religiosa é inversamente propor­ cional ao nível de integração social da comunidade, diminuindo quan­ do ela aumenta, aumentando quando ela diminui. Mostra, também, que a taxa de suicídio de uma comunidade laica como a família é in­ versamente proporcional ao tamanho dela: quanto maior for o número de filhos tanto menor será a taxa de suicídio dos pais. O suposto — vimo-lo — é que o grau de solidariedade é maior nas famílias maiores do que nas famílias menores e num simples casal. Sobre esse ponto, deve-se acrescentar que, se se introduz uma outra variável, como o grau de pobreza, cuja pressão também pode levar ao aumento da taxa de suicídio, contrariamente ao que imaginava o sociólogo, que via na pobreza um fator de imunização, poder-se-ia chegar a uma inferência diferente: a taxa de suicídio é menor numa família pequena e num simples casal. Só a pesquisa empírica associada à estatística poderia fornecer os elementos para decidirmos entre uma e outra inferência, podendo a regularidade observada se alterar por mais de um motivo. Durkheim mostra, ainda, que a taxa de suicídio é diretamente propor­ 176

O positivism o e as ciências hum anas

cional ao grau de divisão de trabalho e ao nível de industrialização da comunidade como tal (é maior na cidade do que no campo, na indús­ tria do que na agricultura), visto que tais fatores solapam a base moral, levam ao individualismo e instauram o maior dos males sociais: a anomia. Estabelecidas essas correlações e incorporadas inúmeras outras, como o suicídio de solteiros e de viúvas, o sociólogo francês pode então propor a formulação da lei geral do suicídio, pondo em evidência seu vínculo com a variável integração: “O suicídio varia em relação inversa ao grau de integração do indivíduo à comunidade de que faz parte”. Uma outra formulação é dada ao enfatizar a variável regulação, cuja ação nem sempre é fácil de distinguir da integração, a saber: maior é o poder regulador da sociedade sobre o indivíduo, menor é a taxa de suicídio — se o poder regulador é fraco, aumenta o suicídio anômico; se é excessivo ou forte demais, aumenta o suicídio fatalista, como o dos kamikazes (o exemplo é nosso). Compreende-se, então, ao se estabele­ cer a conexão entre a causa e a lei do suicídio, o quanto o positivismo de Durkheim se distancia do de Comte, que tinha preterido a primeira em prol da segunda, vendo na análise causal um resíduo da metafísica. Quanto, enfim, à questão de saber como se poderia confirmar as correlações e corroborar nossos juízos, já evocada por nós ao aludirmos ao fator pobreza, as coisas são mais complicadas. De um lado, porque as ciências humanas não dispõem de um aparelho tecnológico pareci­ do com o das ciências naturais, cujas disciplinas podem servir-se de todo um conjunto de engenhos, laboratórios e instrumentos de preci­ são para submeter suas ilações à prova. De outro, porque um conjunto de barreiras morais, religiosas, sociais, políticas e históricas torna parti­ cularmente difícil, se não impossível, a averiguação de uma grande porção de nossos vaticínios sobre a realidade humano-social. Um bom exemplo dessas barreiras nas ciências naturais encontra-se na condena­ ção da dissecação na época da renascença. Todavia, hoje, sabidamente o conhecimento do corpo humano e dos animais depende cada vez menos de práticas dessa natureza, uma vez que elas foram substituídas em larga escala, com grande benefício para a ciência, por técnicas de simulação e de computação gráfica, que lidam com um universo vir­ tual, e não exatamente real. Tal não é o caso das ciências humanas, ou, 177

O positivism o e a sociologia: Durkheim

pelo menos, da maior parte delas. Entre as suas disciplinas mais bem dotadas de recursos tecnológicos estão sem dúvida a fonologia e a psi­ cologia experimental, esta porém condenada a fazer boa parte de seus experimentos em cobaias não-humanas. Já a história, a sociologia, a antropologia e a economia são disciplinas nas quais o estudioso deverá contentar-se muitas vezes com meios indiretos, nem sempre confiáveis (essa situação, aliás, não é exclusiva das ciências humanas, ocorrendo no campo das ciências naturais algo parecido com a astronomia, que não é exatamente uma ciência experimental, mas “observacional”). Assim, o estudioso fará comparações e estabelecerá analogias, porém a ilusão é filha da analogia, e, como ela, sua irmã gêmea, a verdade. Na impossibilidade de examinar as diferentes formas de comprovação ima­ ginadas e endossadas pelos positivistas nas múltiplas e variadas discipli­ nas das ciências humanas, nos limitaremos na seqüência a considerar a história, para depois nos concentrarmos na sociologia, especialmente na escola de Durkheim, objeto de nosso estudo. O objetivo é dar ao leitor uma ilustração da conduta positivista nesse domínio do conheci­ mento, bem como das dificuldades a ser enfrentadas pelo estudioso de suas matérias ao procurar manter-se fiel ao preceito de que primeiro é preciso observar e catalogar os fatos, só depois partir para explicá-los e fazer teoria sobre eles. Com o em qualquer campo do conhecimento, a conduta positivis­ ta na história consistirá em tomar o conjunto de eventos e documentos que constitui seu campo de investigação como fatos ou coisas e dirigir a eles um olhar imparcial e objetivo, esvaziado de toda marca pessoal e impressão subjetiva do observador, as quais, se fossem consideradas e permanecessem aderidas a ele, só serviriam para atrapalhar e nos fazer perder os fatos. Para averiguar as proposições sobre tais fatos ou coisas, o caminho consistirá em contrastar as proposições fáticas com os próprios fatos, reunindo todos os indícios que os confirmam ou os infirmam. Contudo, como mostramos em nosso livro O fio e a trama, ao qual nos permitimos voltar, retomando suas considerações e seus exemplos, “tão logo procura satisfazer a exigência de seguir os fatos e contrastar as proposições sobre os fatos com os próprios fatos no sentido de con178

O positivism o e as ciências hum anas

firmá-los, o historiador cedo vê-se diante de duas alternativas: ou bem faz acompanhar tal exigência de um princípio de ampliação, no sen­ tido da restituição integral do fato histórico (fato histórico total), ou bem a faz acompanhar de um princípio de restrição, no sentido da restituição de um aspecto ou uma parte do fato histórico, num nível digamos micro-histórico”’. Quem nos dá um bom exemplo da primeira via é Seignobos, his­ toriador francês do século XIX e autor de um manual famoso em par­ ceria com Langlois, no qual ele é levado a abandonar o preceito em exame “ao reconhecer que as fontes com que lida o historiador ou são excessivas e abundantes, ou são insuficientes e lacunares. Se são exces­ sivas, como por vezes ocorre, a vida inteira de um homem não bastaria para ele ler e examinar todos os documentos, mesmo de um só país. Se são insuficientes, como o mais das vezes ocorre, o historiador ver-se-á forçado a operar sobre materiais defeituosos, servindo-se da via pouco confiável da observação indireta e de raciocínios por analogia, num esforço vão para suprir as lacunas e restituir o passado em sua integralidade, do qual restou apenas um amontoado de fragmentos dispersos, conservados ao acaso, sobre os quais não tem o menor controle”4. Quem nos dá um bom exemplo do segundo caminho — já comen­ tado por nós na primeira parte — é um certo historiador contemporâ­ neo, citado por Gusdorf, o qual se pôs a estudar a política de Napoleão Bonaparte para a Bavária, baseando-se nos preceitos do método positi­ vista, cujos procedimentos e resultados foram duramente repudiados por um crítico impiedoso. Lembremos ao leitor que a via seguida pelo historiador, evocando a primeira possibilidade mencionada por Seig­ nobos, consistiu em restringir seus estudos a um objeto bem delimita­ do no espaço e no tempo: a Bavária à época de Napoleão. Uma vez recortado, ele pôs-se a estudá-lo com rigor e paciência durante vinte anos, acumulando uma quantidade enorme de documentos. No fim, depois de esquadrinhar o objeto e exaurir as fontes, o resultado foi um fracasso acachapante: seu livro, enorme, no qual a política de Napo3. DOMINGUES, I. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo/ Belo Horizonte, Iluminuras/Editora da U F M G , 1996, 212. 4. Ibid. A fonte é Gusdorf, op. cit., 420.

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O positivism o e a sociologia: Durkheim

leão estava perdida no meio da barafunda de informações descosidas e sem foco, desde estabelecimentos comerciais até receitas de chucutre, simplesmente era ilegível e não servia para nada5. Quer dizer: qualquer que seja a via adotada, a tentativa de restituir o fato histórico em sua integralidade (micro ou macro) com base nas notas da observação e da experiência está fadada ao fracasso, seja por excesso, seja por insuficiência do material empírico. Dito isso, passaremos a abordar o terceiro e último ponto do capí­ tulo: a avaliação do programa positivista e de seus principais resultados no campo das ciências humanas. A nosso ver, a principal contribuição do positivismo para as ciên­ cias humanas residiu no seu sentido da pesquisa e na sua valorização do empírico no tocante ao estudo de diferentes aspectos da realidade humano-social. Para se ter uma idéia da fertilidade de sua abordagem, basta ter em mente que a maior parte das disciplinas das ciências humanas se constituiu a partir de meados do século XIX, observando os cânones e os ideais de um positivismo difuso já com livre curso nas ciências naturais, onde aparecia em certa simbiose com o materialismo (o chamado ma­ terialismo naturalista), e que elas de pronto os incorporam. Tal é o caso da psicologia experimental, com os trabalhos de Wundt, Pavlov e mais tarde Skinner. Tal é o caso da sociologia, com as obras de Durkheim, Parsons e Merton, os dois últimos no terreno do funcionalismo. Tal é o caso da antropologia, com as contribuições de Malinowski e RadcliffeBrown, também no terreno do funcionalismo. Em todos esses domí­ nios — dos reflexos condicionados de Pavlov, passando pelo estudo das causas sociais do suicídio em Durkheim, até chegar ao comportamento sexual dos selvagens analisado por Malinowski —, é um mesmo ideal de conhecimento que se perfila e um mesmo modo de empreendê-lo que se concretiza: a observação paciente dos fatos, a generalização pro­ gressiva deles com a ajuda da indução e a confirmação das asserções sobre eles mediante o emprego de métodos empíricos — métodos que

,

5. Ibid., 212-213. A fonte de Gusdorf, op. cit., 422-423, ao se referir ao crítico e que é o próprio (crítico), é LOMENIE, “Com m ent on écrit 1’histoire”, 230-231. 180

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O positivism o e as ciências hum anas

podem vir associados ao método matemático, como em Durkheim no Suicídio, ao se servir da estatística, ou dele dissociar-se por completo, como no mesmo autor nas Formas elementares da vida religiosa. Foi desta forma, no âmbito da sociologia, com ajuda de métodos empíricos, associados porém ao método estatístico, que Durkheim em sua obra famosa — vimo-lo —, após descobrir a causa, chegou à lei do suicídio e conferiu sua expressão matemática como função variável do grau de solidariedade social. Foi assim que Kondratieff e outros estu­ diosos chegaram às leis do ciclo da economia. Na mesma linha Skinner, à lei do condicionamento operante (estímulo/resposta/efeito de feedback) na psicologia. Tudo isso com certeza pode ser invocado em favor da fertilidade da abordagem positivista, approche que tem nome e filiação nas ciências humanas, mas que curiosamente, mesmo que tenha o análogon, não tem nem nome nem filiação em física, em quí­ mica e em biologia, as quais preferem falar de método científico ou método empírico simplesmente. Sua fertilidade, porém, logo mostrou seus limites, a ponto de tornar-se totalmente estéril e gerar um semnúmero de dificuldades, toda vez que, mais além dos fatos, das descri­ ções e das correlações, se perguntou pelo sentido dos fatos ou pela significação das experiências que davam estofo a eles. Em primeiro lugar, as dificuldades começam justamente por aque­ le preceito cuja não-satisfação seria capaz de jogar todo o programa positivista por terra, qual seja, o preceito segundo o qual primeiro é preciso observar os fatos, só depois fazer teoria. Esse ideal só pôde ser cumprido por Skinner, por exemplo, de uma maneira parcial e extre­ mamente duvidosa: parcial, porque sua base empírica se restringe ao estudo do comportamento dos ratos e sua generalização aos humanos se dá por analogia; duvidosa, porque nessa extensão Skinner é levado a afastar toda base motivacional do comportamento dos homens, seja ela consciente ou não (inconsciente), como se eles fossem ratos, dando razão àqueles que viram em sua concepção uma espécie de “ratomorfismo”. Em segundo lugar, o preceito da indução só pôde ser levado a cabo por Durkheim no seu estudo das Formas elementares da vida religiosa mediante o abandono do ideal da indução completa, associado à indu­ ção amplificadora, e sua substituição pela indução por enumeração 181

O positivism o e a sociologia: Durkheim

simples, com o que ele é levado a afirmar que em tais estudos mais vale uma experiência bem feita de um só caso, ainda que de alcance parcial e limitado, do que uma síntese total mediante a pura especulação des­ pida de qualquer base empírica. Porém, basta um só contra-exemplo, como a descoberta de que a distinção entre sagrado e profano, como forma elementar da vida religiosa, não se dá da mesma maneira nos sistemas totêmicos primitivos e nas religiões monoteístas que se lhes seguiram, para que sua teoria caia por terra. Tal é o caso, por exemplo, do cristianismo, no interior do qual a distinção sagrado/profano é profundamente subvertida pela introdu­ ção de um elemento novo, desconhecido de todas as outras religiões, a saber: a Encarnação. Isso porque a Encarnação, ao trazer o sagrado para dentro da história, esvazia a distinção das religiões primitivas entre o tempo profano da vida cotidiana e o tempo sagrado da ação dos deuses. D esde então, não há mais dois tempos, mas um só tempo, simultaneamente sagrado e profano. Além do mais, mesmo no cris­ tianismo há nuanças quanto à forma e à intensidade da identificação entre o sagrado e o profano: de um lado, o catolicismo conserva o sentimento da dualidade; de outro, o protestantismo, como bem viu Weber, com eça por afirmar o ascetismo secular (junção do sagrado e do profano) e acaba por dar lugar a um mundo totalmente desencan­ tado (depois de sacralizar tudo, tudo fica dessacralizado, por ter per­ dido toda a alteridade e toda a transcendência). Com o pretender, então, que a distinção sagrado/profano é o elemento comum de todas as religiões e que ele atua de uma mesma maneira em todas elas, se sua natureza é diferente ao passar de um sistema religioso para outro? C om o pretender que a distinção sagrado/profano é um dado de ob­ servação, se a fixação de sua significação depende da interpretação e, portanto, da teoria (teoria das formas religiosas)? Voltaremos a esses pontos no curso de nossos estudos sobre Durkheim, quando introdu­ ziremos, no tocante ao totemismo, outros aspectos do pensamento primitivo que vão levar à rejeição da díade do sagrado e do profano como instância fundadora da experiência religiosa, a exemplo de Stanner, que interpõe entre os dois pólos a categoria do mundano, conduzindo-os à dissolução.

O positivism o e as ciências hum anas

Em terceiro lugar, o preceito da verificação empírica não permite estabelecer de maneira cabal e concludente a duração dos ciclos da economia. Sintoma disso é a profusão de ciclos e de durações, todos eles instaurados com base em dados de observação: Kondratieff fala de um ciclo de 40 a 60 anos, Juglar de 9 a 11 anos, Kitchin e Crum de quase 40 meses. Com o decidir então qual entre eles é o verdadeiro ciclo ou qual é a verdadeira duração? A razão dessas dificuldades não é nada desprezível e, a julgar pela opinião dos críticos do positivismo, não haveria como neutralizá-las por meio de uma elaboração mais sofisticada dos elementos que estão em jogo no corpus de sua doutrina e no seu método de abordagem. A postulação de que a observação vem primeiro e a teoria depois, no entender desses críticos, não condiz nem com o ethos dos cientistas nem com a práxis das ciências, sejam elas naturais ou humanas. De um lado, porque o que caracteriza a conduta dos cientistas, como viu Thom as Kuhn, não é propriamente a adesão aos fatos e a decisão inamovível de seguir os fatos e apenas os fatos, sem qualquer teoria prévia ou idéia preconcebida (dogmas), mas a adesão aos dogmas (ou hipóteses) e a decisão de seguir os fatos guiados por esses dogmas ou hi­ póteses. De outro lado, porque o que caracteriza a práxis das ciências não é a primazia da observação sobre a teoria, mas a primazia da teoria sobre a observação. Tanto é assim que a observação e a experiência em sua imediaticidade estão carregadas de “teoria” (da mesma forma que os instrumentos de observação de que se valem as ciências, como o microscópio e o telescópio, que são uma espécie de teoria reificada no entender de Bachelard). Pouco importa, no caso específico, que tal “teoria” seja um conjunto de preconceitos ou de idéias prévias que o cientista deve elaborar se não quer ficar refém delas, ou uma idéia introduzida depois, criteriosa e racionalmente justificada, a qual vai servir de guia à observação e à experiência, permitindo a elaboração pelo espírito dos dados empíricos e observacionais. Pouco importa, pois, afinal — argumenta-se —, uma teoria não pode ser verificada empiri­ camente, mas justificada racionalmente, e sem uma teoria prévia a guiar a observação e a experiência ninguém jamais poderá saber ao certo o que procurar nos fatos, nem se realmente o que neles encontrou era 183

O positivism o e a sociologia: Durkheim

o que procurava. (Outra alternativa, como viu Boudon, seria tomar os princípios instalados junto com a teoria como “caixa preta”, de cujo conteúdo ninguém tem idéia nem, conseqüentemente, pode examinar ou discutir com propriedade seu funcionamento; porém, tal estado de coisas nos levaria de volta aos dogmas, como as idéias prévias, conde­ nadas por Durkheim.) Já a pretensão de que a indução permite a generalização dos fatos e sua disposição nos quadros de uma teoria geral não resiste a um exa­ me mais detido, pela razão muito simples de que nem a indução am­ plificadora (que procede por saltos) nem a indução por enumeração (que procede por inclusão dos casos um a um) são capazes de assegurar a generalização de um caso para todos e assim permitir a passagem do particular ao universal. A razão da dificuldade — um verdadeiro nó, como viu Lalande — está na própria estrutura da indução e no círculo lógico que enreda a inferência indutiva: para se efetuar a passagem de um a todos ou do particular ao universal, é preciso que todos os fatos reportados estejam previamente discriminados antes mesmo da infe­ rência indutiva, como notas do particular. Contudo, se se admitir como dado apenas o particular, jamais se poderá inferir o universal; se se admitir que o universal já está contido no individual, não haverá verda­ deiramente passagem ao universal nem inferência indutiva. Tal dificul­ dade atingiria tanto a indução amplificadora como a indução por enu­ meração simples, mesmo no caso de uma experiência bem feita: basta — vimo-lo — um contrafato da experiência para liquidar com a in­ ferência indutiva e a generalização que mediante ela se instaura. Por fim, a postulação de que toda proposição acerca dos fatos deve ser confirmada pela experiência também não resiste ao menor exame. Antes de mais nada, porque a exigência de que um dado da experiência deve ser confirmado por outro dado da experiência enreda as proposi­ ções fáticas num verdadeiro círculo lógico. Enfim, porque a tentativa de fundamentar os enunciados empíricos interpretando os dados ob­ servacionais como relativos a um sujeito ou a vários sujeitos leva ao solipsismo, seja ao solipsismo do uno ou monádico (primeiro caso: um sujeito), seja ao solipsismo múltiplo (segundo caso: vários sujeitos dian­ te dos mesmos fatos e compartilhando suas observações). Isso porque, 184

O positivism o e as ciências hum anas

como viu Ayer, no âmbito dos diferentes positivismos, e de um modo especial no empirismo lógico, imaginava-se que todo enunciado fático refere-se em última análise a experiências de um observador ou de vários observadores, de sorte que somente se verifica realmente um enunciado quando alguém está tendo uma experiência6. Uma primeira dificuldade a ser enfrentada, cuja natureza aporética e mesmo ingênua já foi salientada por mais de um crítico (Nietzsche etc.), está relaciona­ da com o já evocado dogma da “imaculada percepção”, fundado numa fé nunca examinada na infalibilidade dos sentidos, em associação com a crença num acesso direto e privilegiado ao real por meio dos órgãos dos sentidos (como se a “pele” e o “corpo” não se interpusessem entre o órgão e a coisa!; como se os órgãos não interagissem com as coisas, nem entre si, nem com a mente ou a consciência!). Outra dificuldade que aparece e não pode ser contornada é que, em sua imediaticidade, o conteúdo da experiência que alguém está tendo de si mesmo ou de um objeto qualquer é incomunicável. Duplamente incomunicável, com efeito: no sentido de que as pessoas não podem experienciar direta­ mente minha experiência nem compartilhar meus pensamentos nem dividir meus sentimentos; no sentido de que eu mesmo não posso fazer a experiência daquilo que as demais pessoas experienciam nem com­ partilhar seus pensamentos nem dividir seus sentimentos7. Todavia, se eu não posso comunicar essas experiências, como poderia pretender que poderia verificar os enunciados da experiência remontando os dados da experiência a esse solo originário ou a essa experiência primitiva que eu tenho de mim mesmo? Simplesmente, é a linguagem que permite a comunicação; porém, ao entrar no circuito, ela quebra a esfera do imediato e termina com a soberania dos sentidos, realizando o milagre de tornar comunicável e compartilhado aquilo que não é comunicável nem compartilhável, e tendo por limite, quanto a seu usuário, as expe­ riências de seu nascimento e de sua própria morte, das quais nada poderá comunicar nem falar. 6. AYER, A. J. “Introducción dei com pilador”, in E l positivismo lógico. M éxico/Bue­ nos Aires, Fondo de Cultura Económ ica, 1965, 23. 7. Ibid., 24. 185

O positivism o e a sociologia: Durkheim

Foi talvez por ter consciência das embrulhadas da percepção e dos sentidos que Durkheim, ainda que sem falar da linguagem (esta dócil serva da razão), infletiu seu positivismo numa direção mais decidida­ mente intelectualista, em vez de simplesmente empirista, quando nas Regras fala de um “racionalismo experimental” e o estende à sociolo­ gia8. E o que procuraremos mostrar em seguida, ao nos ocuparmos do método sociológico e do projeto fundacional de Durkheim de instau­ rar a sociologia como ciência empírica (positiva) autônoma.

8. Para uma avaliação global do programa positivista nas ciências humanas, ver o artigo de BO U D O N , R., “Peut-on être positiviste aujourd’hui ?”, in CuiN , Ch.-H. (org.), Durkheim d ’un siècle à l ’autre — Lectures actuelles des “règles de la méthode sociologi­ que”. Paris, PUF, 1997, em que o autor distingue um positivismo soft de um positivismo hard e fala de um Durkheim positivista, dur quanto à doutrina (Regras) e doux em sua aplicação concreta (Suicídio, Formas elementares da vida religiosa). 186

Capítulo 2

Durkheim e a fundação da sociologia como ciência empírica autônoma: o método sociológico, suas aplicações e suas inflexões

Landgrebe diz em algum lugar que há tantas fenomenologias quan­ tos fenomenólogos. Da mesma forma o positivismo — acrescentaría­ mos: há o de Comte em filosofia, há o de Skinner em psicologia, há o de Seignobos em história. Em antropologia, em sua vertente funcionalista, há o positivismo de Malinowski e o de Radcliffe-Brown, que estão longe de ser o mesmo. Já na sociologia, que é nosso assunto, há o de Spencer (e sua variante evolucionista), o de Merton (e sua variante funcionalista) e o de Durkheim (e sua variante kantiana). Ao proceder ao exame do impacto do positivismo nas ciências hu­ manas, diante de tal diversidade, o estudioso deverá estar atento a duas coisas. Por um lado, deverá dilatar o horizonte de sua pesquisa para situar esse conjunto de experiências mentais que mal se ajustam e mal compartilham um domínio ou território comum (cf. a esse respeito o conflito de Durkheim e Seignobos em torno do método científico e da questão da causalidade e da lei, em diferentes campos das ciências humanas). Por outro lado, deverá estreitar o foco da análise para visua­ lizar mais de perto, no interior de uma disciplina, de um autor e de 187

O positivism o e a sociologia: Durkheim

uma obra, os aspectos específicos e as colorações especiais que o posi­ tivismo adquire ao se aplicar a um domínio científico ou a um segmen­ to do real. Tal foi nosso caso no exame de Durkheim em suas relações com a sociologia e outras disciplinas das ciências humanas e sociais. Antes de partir para o exame do autor e da obra, gostaríamos de justificar nossa abordagem e deixar claro o sentido geral de nossas con­ siderações. Sabe-se que a obra de Durkheim conheceu ao longo do século XX uma fortuna crítica por demais rica e diversificada, consi­ deravelmente ampliada em anos recentes, por ocasião de inúmeros co­ lóquios e edições comemorativas, em razão da celebração dos 100 anos da Divisão do trabalho (1893), das Regras (1894) e do Suicídio (1897). Sabe-se que a obra do sociólogo francês, tanto nessas ocasiões como antes e independentemente delas, tem sido largamente tratada na pers­ pectiva da história das idéias ou das ciências. Tal é o caso de Raymond Aron e de Nisbet, que situam autor e obra nas etapas do pensamento sociológico (ou, como prefere Nisbet, na tradição da sociologia). Sua obra vem sendo tratada também, mais recentemente, na perspectiva da sociologia da ciência e mesmo da sociologia da sociologia, como em Karady ao analisar os aspectos institucionais da ação dos durkheimianos e da difusão do durkheimianismo no sistema de ensino francês, especialmente o universitário. Já foi tratada, ainda, na perspectiva da biografia intelectual do autor, associada a um estudo monográfico exaus­ tivo da obra, a exemplo de Steven Lukes em seu excelente D urkheim’s Works and Life. Por fim, na perspectiva da epistemologia das ciências sociais ou da filosofia das ciências (humanas ou sociais), como em Berthelot em sua análise das regras do método sociológico, Besnard em seus estudos do suicídio e da anomia, e Pickering no campo da socio­ logia da religião. Ora, esta última é nossa perspectiva, e é este o lugar a partir do qual examinaremos a obra de Durkheim. Ao efetuarmos a análise, diante de um autor de produção tão densa e vasta1, e guiados pelo princípio de economia que nos vem de G. de Ockham e, como tal, associado à sua famosa navalha, fomos levados a 1. A lista de suas recensões soma cerca de três centenas, e o número de seus artigos é enorme, ocupando três volumes. 188

Durkheim e a fundação da sociologia com o ciência em pírica autônom a:

selecionar algumas das obras, a introduzir um elenco de recortes te­ máticos para o conjunto selecionado e a formular algumas perguntas, agrupadas em torno de certos problemas. Tanto os critérios de seleção com o os recortes tem áticos e os próprios problem as, em bora referenciados à obra e ao autor, são menos de Durkheim do que nossos, e nós os retemos na qualidade não de sociólogo, mas de epistemólogo ou filósofo da ciência. Foi assim que, entre as obras e sua profusão de gêneros literários (livros, artigos, resenhas), fomos levados a privilegiar os livros (pois no terreno das humanidades, à diferença das ciências exatas e biológicas, onde se privilegia o paper, os livros têm mais peso e densidade, por conta de seu processo de maturação e seu suposto acabamento, coroan­ do um longo percurso da pesquisa). Entre os livros, selecionamos aque­ les mais bem-sucedidos em sua recepção pela tradição e pela crítica, seja porque abriram novos horizontes para o conhecimento em sua época, seja porque gozam ainda de uma certa atualidade e adquiriram um valor paradigmático, servindo de guia ou exemplo para as pesquisas em curso, em vez de ser vistos como algo depassé, meros capítulos de curiosidade histórica. Foi assim que, entre os recortes analíticos, fomos levados a privilegiar três temas, que virão acompanhados de um con­ junto de assuntos ou aspectos. Tais temas são: 1) a fundação da socio­ logia como ciência empírica autônoma; 2) a questão das dicotomias e dualidades fundadoras no pensamento de Durkheim; 3) o impacto da obra em seu campo de conhecimento e sua recepção (favorável/desfa­ vorável) por seus epígonos e críticos. Ao procedermos à análise, além da atenção aos aspectos contextuais — reduzidos porém, conforme veremos, ao mínimo —, fomos levados a introduzir um princípio de economia na análise textual, no tocante seja aos textos de Durkheim, seja aos dos discípulos e comentadores, a saber: ao instalar o argumen­ to, evitar a todo custo a duplicação do texto do autor e dos estudiosos de sua obra; simplesmente os textos estão disponíveis, e em epistemologia mais vale uma idéia clara e um argumento bem formulado do que uma enxurrada de glosas hermenêuticas e de incidências históricas — eis a pressuposição. Foi assim que, entre as perguntas, ao formularmos a questão epistemológica, fomos levados a indagar a natureza do pensa189

1 O positivismo e a sociologia: Durkheim

mento (forma de racionalidade), como também a concepção de co­ nhecimento (ou, antes, de ciência) e o espírito da obra do sociólogo. Eis algumas perguntas: será Durkheim-um positivista ou um kantiano?; será um cientificista emperdenido ou um moralista à l’outrance?; qual a natureza das dicotomias, seu papel na economia de seu pensamento e o modo de operá-las?; como conceber a relação entre a empiria e a teoria em sua obra?; serve-se Durkheim de modelos no Suicídio e nas Formas elementares da vida religiosa?; quais?; e seu estatuto? Passemos para a questão fundacional, que é o objeto deste capítulo. Considerar a questão da fundação da sociologia como ciência empírica autônoma por Durkheim é perguntar por sua concepção de ciência e de sociologia. E aqui que as coisas se complicam, a começar pela con­ cepção de ciência. Os manuais e as obras de divulgação apresentam Durkheim e seu projeto de fundação da sociologia como: o autor, um campeão da ciên­ cia e um positivista empedernido (um “positivístão”); a obra, um xaro­ pe positivista de propriedades tão inócuas quanto poderosas, de que resultam avaliações díspares por seus diferentes partidários e críticos. Por um lado, uma obra inútil, equivocada e mesmo ultrapassada em sua tentativa de dar as bases científicas para a sociologia nascente (na opinião de seus críticos). Por outro, uma obra fértil em seu projeto científico, modelar em seu modo de execução e atual em sua irradia­ ção, e, de resto, bem mais do que o legado de Auguste Comte (na opinião de seus partidários). Essa unanimidade dos manuais, mais além de sua apreciação posi­ tiva ou negativa, desaparece tão logo passamos a examinar um outro tipo de literatura e uma outra cepa de autores, menos preocupados com a divulgação dos resultados da ciência ou a introdução do noviço em seu santuário do que com a produção da ciência (mais ou menos distinguida da “disciplina”) e os grandes desafios que acompanham a empresa de sua fundação ou criação. Se não, vejamos: 1) Boudon, no artigo já citado (“Peut-on être positiviste aujourd’hui?”), depois de distinguir o positivismo dur do positivismo doux e aproximar Durkheim do economista M. Friedman, enquadran­ do-os inicialmente no primeiro tipo, mostra-os algo distancia190

Durkheim e a fundação da sociologia com o ciência em pírica autônom a:

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dos de suas posições iniciais num segundo momento. Vista por Friedman como uma espécie de “caixa preta” inútil ou perigo­ sa de abrir, a questão dos princípios em ciências sociais, a exem­ plo de outros campos do conhecimento, foi no começo enrije­ cida na versão dura do positivismo, dando lugar em teoria a uma concepção hard de ciência (eliminar o inobservável: Durk­ heim). Tal concepção se mostrou inaplicável ou insustentável na prática usual do cientista social, levando ambos a introduzir no cerne da ciência um conjunto de hipóteses (que Boudon chama de “psicológicas”) que incidem de uma maneira ou de outra sobre “ inobserváveis”, depois de reabilitados2. Em outro artigo, publicado um pouco antes na Revue intemationale de philosophie, ele opõe as Regras do método sociológico, em que Durkheim teria desenvolvido um programa positivista para a sociologia próximo das idéias de Comte e de S. Mill, às suas análises empíricas como tais, como as desenvolvidas no Suicídio e mais ainda nas Formas elementares da vida religiosa. Nes­ sas obras, segundo Boudon, o sociólogo, em face dos problemas concretos da pesquisa e da necessidade de vencê-los, adota uma visão mais sofisticada da ciência, e seu ponto de vista é mais próximo ao de Duhem e de Max Weberl 2) Parsons, mais preocupado com o espírito do que com a letra do texto, e mais ainda com as necessidades de seu próprio pensa­ mento (pensar uma teoria da ação social), contrapõe dois Durk­ heim: o positivista da primeira fase, como na Divisão do traba­ lho, nas Regras e no Suicídio, em que prevalecem os fatores morfológicos e o “coisismo” como elementos socialmente de­ terminantes; o idealista, quase kantiano, da segunda fase, parti­ dário da teoria voluntarista da ação, criador do realismo simbó­ lico e precursor do estruturalismo. Tal mudança de foco, em seu entender, ,teria ocorrido nas Formas elementares da vida re­ ligiosa, em que o francês abandona os fatores morfológicos e o 2. B o u d o n , R., in C u i n , Ch.-H., op. cit., 285. 3. Revue Internationale de Philosophie, v. 42, n. 192 (fev. 1995) 221-239. 191

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ponto de vista da coisa em favor dos valores, das idéias e do sentido da ação social4. 3) Pickering, em seu livro consagrado às Formas elementares da vida religiosa, a exemplo de Parsons, contrapõe o primeiro Durkheim, positivista, preso aos fatos observáveis e às formas objetivadas do fenômeno social (coisa), ao segundo Durkheim, idealista, atento às formas subjetivas (representações) e aos aspectos ideais (nor­ mas e valores), não diretamente observáveis, dos fatos sociais5. 4) Bellah, por sua vez, fala desabusadamente de um Durkheim kan­ tiano, destacando sua sociologia da religião, que, segundo ele, deu ensejo a uma espécie de kantismo social, ao mostrar que as representações religiosas, longe de ser um epifenômeno, consti­ tuem a sociedade6. Arguto, chega a dizer, pensando no conjunto da obra, que o pensador francês “falava dos fatos sociais como de coisas pertencendo ao mundo do ‘mental’, da ‘moral’, do ‘espi­ ritual’ ou do ‘ideal’”, sublinhando que “ele foi constantemente preocupado com o espírito, com a consciência”7. 5) Por fim, Huff, autor menos conhecido, em artigo consagrado ao Suicídio, preocupado em atualizar Durkheim e defendê-lo con­ tra seus detratores, fala do papel da abdução no seu pensamen­ to, mais além da dedução e da indução; salienta que o grande sociólogo está em dia com a física de seu tempo; e sugere que, longe de ser um realista, como quer a tradição, é tão instrumen­ talista no uso dos conceitos quanto Duhem e Fermi, além de ser em sociologia pioneiro da técnica estatística das correlações multivariadas8. Tais são os Durkheim de Huff, de Bellah, de Pickering, de Parsons e de Boudon. C abe então perguntar qual é o “nosso” Durkheim: em 4. Cf. sobre este ponto, PICKERING, W. S. F. Durkheim’s Sociology o f Religion. Lon­ don/Boston/Melbourne/Henley, Routledge & Kegan Paul, 1984, 89 e 372. 5. Ibid., 283-285. 6. Cf. P i c k e r i n g , W. S. F., op. cit., 298. 7. Apud PRADES, J. A. Persistance et metamorfose du sacré. Paris, PUF, 1987, 86. 8. H u f f , T. O. “ Discovery and Explanation in Sociology: Durkheim on Suicide”, Philosophy o f the Social Sciences, v. 5, n. 3 (set. 1975) 250-255. 192

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filosofia, o positivista ou o kantiano?; em ciência, o newtoniano, influen­ ciado pelos cálculos de probabilidade de Laplace?; ou o darwiniano, que vê no suicídio e na divisão do trabalho uma das facetas da luta pela vida?; ou o duhemiano e fermiano? Ao tentarmos responder a essa ques­ tão, em vez de recorrer à história das idéias em busca de elementos para compor o quadro geral das influências (e a lista seria enorme, visto que seríamos obrigados a incorporar, para além de Kant, Comte, Laplace e Darwin, os nomes de Montesquieu, Rousseau, Claude Bernard, Fustel de Coulanges, Robertson Smith, Morselli e Bertillon), propomos se­ guir um outro caminho e adotar uma outra hipótese. O caminho: em vez de segmentar a obra de Durkheim em fases e dicotomizar seu pensamento, tomá-la em conjunto e mitigar as oposições, afastando as clivagens (afinal, Durkheim nunca se desdisse ou se desmentiu: desde os tempos de Bordeaux até os de Paris, é uma mesma idéia seminal que obceca seu espírito — fundar a sociologia como ciên­ cia positiva). A hipótese: percorrido o caminho do conjunto da obra e afasftada a tentação anacrônica (ler Durkheim com os olhos de hoje ou através das lentes de Duhem, Fermi e Poincaré, autores que ele não leu), tentar uma hipótese conciliatória e propor um Durkheim a um tempo positivista e kantiano. Tal hipótese, à diferença das outras, de cunho histórico (Durkheim I, Durkheim II, fase I, fase II), tem a van­ tagem de contar com uma sólida base textual, e em especial com o aval do próprio Durkheim, que, além de nunca ter-se desdito e ter reconhe­ cido sempre sua dívida com Comte, em mais de uma ocasião registra a importância de Kant na formação de seu pensamento. Ao propormos tal hipótese, seremos levados a arrancar a pele do positivista caturrão dos manuais e da tradição, para mostrar que sob ela e atrás do Durk­ heim positivista se esconde um Durkheim kantiano. E desses dois Durkheim reunidos num só e da coexistência nem sempre tranqüila, para não dizer explosiva, dessas duas matrizes de pensamento que ire­ mos tratar nas páginas que seguem. Contudo, pode alguém ser ao mesmo tempo positivista e kantiano? Ao que parece, sim: basta olhar para o que se passou com o kantismo no outro lado do Reno, com a escola de Marburgo, tendo por expoen­ tes Cohen e Natorp, que sacrificaram a Crítica da razão prática à Crí­ 193

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tica da razão pura e abandonaram as exigências morais do mestre em favor das exigências epistemológicas um tanto secas da ciência. Algo parecido se passou no lado de baixo do Reno, em terras gaulesas, onde se assistiu à fusão do kantismo, do espiritualismo e do positivismo, dando origem ao neokantismo ou ao chamado positivismo espiritualista. Um exemplo emblemático dessa fusão é Renouvier, que, como Boutroux, era neokantiano e igualmente mestre de Durkheim. Em sua obra Ensaios de crítica geral, publicada em 1861 e reeditada mais tarde, em 1875, com pequenas modificações, sob o título de Traité de logique générale et de logique formelle, ele deixa clara sua dupla filiação, num esforço de síntese das duas tradições de pensamento: “confesso, portan­ to, claramente que eu continuo Kant” (p. XV), ao mesmo tempo que expressa sua adesão ao positivismo, por privilegiar “a redução do co­ nhecimento às leis dos fenômenos” (p. XVI), buscadas para além das estruturas do sujeito cognoscente ou nas coisas mesmas. E mais: como Kant, e à diferença de Comte, que a condenava e ficava só com a lei, Renouvier conferia grande importância à causalidade, que ele associa­ va ao método matemático de covariação (no lugar da indução e da variação concomitante de S. Mill) e à idéia de lei. Ora, um pouco disso, e mais alguma coisa, vamos encontrar em Durkheim, que, se reata com Renouvier e mediante ele chega a Com te e a Kant, é para voltar à indução e à variação concomitante de S. Mill, porém associando-a nas Regras e no Suicídio ao método matemático-estatístico da covariação, num claro testemunho de quanto os conceitos e as teorias flutuavam naqueles tempos. A herança positivista de Durkheim, por demais conhecida e já explorada à exaustão pelos estudiosos, está estampada da primeira à última página das Regras (tomar os fatos sociais como coisas, afastar as idéias prévias, privilegiar as formas objetivadas do social, buscar as leis que governam os fenômenos sociais etc.). A presença das exigências morais do espiritualismo francês, menos conhecida e tão importante ou mais que a herança positivista, é exibida do primeiro ao último de seus escritos, como bem observa Prades. Com o testemunho, ele cita o artigo “A ciência positiva da moral na Alemanha”, elaborado no início de sua carreira depois de viagem ao país de Goethe, o texto “A educa­ 194

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ção moral”, com base em notas de curso que o eminente sociólogo deu durante vários anos, e o escrito “ Introdução à moral”, de cuja redação ele se ocupava ao fim de sua vida, antes de falecer9. Outro testemunho da forte presença da herança espiritualista é a grande importância que Durkheim conferia à religião em sua articulação com o social, tanto em suas formas primitivas como em suas formas mais avançadas nas diferentes modalidades do monoteísmo, e mesmo nas formas laicas e secularizadas, ao falar de uma espécie de religião civil ou religião da humanidade, tendo por Deus e credo a sociedade. Por fim, a atestação de sua filiação a Kant e ao kantismo aparece espalhada ao longo de sua vasta produção, porém algo encavalada com a herança espiritualista, por conta da força irradiadora do problema da moral em sua obra. Essa filiação é claramente reconhecida por Durkheim em artigo publicado postumamente em Sociologia e filosofia: “Kant postula Deus, porque, sem está hipótese, a moral é ininteligível. Nós postulamos uma socie­ dade especificamente distinta dos indivíduos, porque, de outra forma, a moral é sem objeto e o dever, sem liame (point d ’attache)”10. Sem poder estender-nos mais no capítulo das influências, tão ao gosto dos historiadores, poderíamos acrescentar que a presença de Kant, por meio da moral, pode ser notada na Divisão do trabalho social (da­ qui para a frente D TS). Especialmente, na abordagem das forças coer­ citivas (de natureza moral em sua maior extensão) que regulam as re­ lações sociais, incluindo a divisão do trabalho, além dos imperativos econômicos e da coerção da luta pela vida, de linhagem darwiniana. Essa presença está estampada também no Suicídio, conforme salienta Besnard, autoridade no assunto. Junto com Douglas, colocando em relevo o capítulo “O elemento social do suicídio” (livro III), ele nos mostra que nessa obra famosa Durkheim não confere qualquer privilé­ gio aos fatores externos, ao modo de um positivista — dir-se-á —, mas a fatores internos: “Este capítulo estabelece claramente a primazia dos fatores internos sobre os fatores externos. E a ‘constituição moral’ das sociedades que determina as taxas de suicídio. O egoísmo, o altruísmo, 9. Cf. P r a d e s , J. A., op. cit., 306. 10. DURKHEIM, E. “Détermination du fait moral”, in Sociologie et philosophie. Pa­ ris, PUF, 74. 195

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a anomia não são descritos em termos de comportamento social, mas em termos de ‘significações sociais’ (social meanings). Eles são, escreve Durkheim, ‘correntes de opinião’, ‘estados morais”’11. E mais — pode­ ríamos acrescentar: a própria variável “regulação” tem um viés kantia­ no de um outro aspecto, ao enlaçar o enquadramento dos indivíduos na e pela sociedade com 1) o poder adstringente ou a força coercitiva da norma (lei) e 2) a sociedade como matriz e potência das normas, em cuja origem vamos encontrar o imperativo categórico e a Crítica da razão prática de Kant. Por fim, a presença de Kant transparece nas Formas elementares da vida religiosa (daqui para a frente também For­ mas), em que bem mais do que no Suicídio mostra a simbiose entre religião, moral e sociedade, e, como o “relógio” de Königsberg, trata a religião nos limites da razão, isto é, como fenômeno moral (ou, antes, “social” , como prefere Durkheim)12. Se é possível resumir o conjunto de influências de Kant na obra de Durkheim, influências em mais de um aspecto complexas e ainda a merecer a atenção dos estudiosos, poderíamos amalgamá-la numa úni­ ca idéia. A idéia é pensar, no rastro da Crítica da razão prática, a socie­ dade como potência das normas e sede da experiência moral, e ao mesmo tempo, em vista das exigências da ciência, na esteira da Crítica da razão pura, pensar uma ciência da moral e da sociedade. Tal desafio, que é o grande enjeu de sua sociologia e de seu projeto de ciência, evidente­ mente seria considerado uma heresia e mesmo um contra-senso por Kant, por implicar a fenomenalização do mundo moral e da liberdade (coisa que Kant nunca pensou nem autorizou) — não por Durkheim, que corrige Kant e estende o ideal de ciência à moral e à sociedade. Ora, o que se verificou depois, ao longo do século, foi a amputação uma a uma dessas heranças que conformaram o pensamento e a obra do sociólogo, dando origem a um Durkheim mais e mais seco, assim como cada vez mais cientificista, conforme ao gosto empirista e à mi­ 11. BESNARD, Ph. L ’anomie. Paris, PUF, 1987, 58-59. A expressão em inglês é de Douglas. 12. Sobre a simbiose religião, moral e sociedade em Durkheim e o legado de Kant, ver G i a n n o t t i , J. A., “A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durk­ heim”, Seleções Cebrap 2 — Exercícios de Filosofia. São Paulo, Ed. CEBRA P (1975). 196

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séria moral dos novos tempos. Foi então que o Durkheim positivista e cientista acabou por se impor ao Durkheim moralista e kantiano. E foi então que o Durkheim “histórico” e o Durkheim da “recepção” (o Durkheim dos funcionalistas britânicos e americanos) se impuseram sobre o Durkheim real e o Durkheim dos textos, deixando os estudiosos confusos e desarmados. Tal é, ao que parece, o caso de Pickering, que, conquanto sustente que o sociólogo não é exatamente um funcionalista (embora empregue o termo função), reconhece todavia a dificul­ dade de démêler os dois Durkheim, cujo percurso histórico acabou por se confundir com a própria trajetória do funcionalismo. Contudo, como os próprios funcionalistas reconhecem, Durkheim é um dos pais do funcionalismo. Todo estudioso do assunto não terá dificuldades de re­ conhecer os indícios dessa filiação. A dificuldade aparece quando, por um movimento de retorno, fruto da ilusão retrospectiva, o estudioso, tendo já reconhecido a filiação, projeta sobre o pai os caracteres de seus rebentos, gerando toda sorte de confusões. E o que nos mostra Pickering ao pôr em relevo o encavalamento de perspectivas e suas distorções. Diz ele: “Ninguém negaria a abordagem funcionalista geral de Durkheim, mas o perigo está em que, à luz do desenvolvimento do funcionalismo, o que ele escreveu pode tornar-se identificável com o funcionalismo enrijecido ou mais logicamente ampliado, que come­ çou a emergir nos anos 1920 e que se encaminhou ao sucesso até a década de 1960. Este ganhou considerável prestígio nas mãos de antro­ pólogos sociais britânicos como Malinowski e Radcliffe-Brown, e na América nas mãos de Talcott-Parsons e Merton”13. Cientes das superposições de perspectiva que acompanham autor e obra ao longo da história, antes (contexto da produção) e depois de seu aparecimento (contexto da difusão); cientes também da ação do ana­ cronismo (ilusão retrospectiva) gerado pelo próprio trabalho do tempo, assim como dos efeitos do ceticismo que corrói a significação da obra por conta do trabalho do historiador (a história jamais conseguirá mos­ trar qual é o verdadeiro Durkheim) — o epistemólogo deverá cercar-se de todo cuidado ao abordar a obra, e não terá outro ponto de apoio 13. P i c k e r i n g , W. S. F., op. cit., 300-301. 197

O positivism o e a sociologia: Durkheim

senão a base textual dela. É então, dispondo dos resultados do esforço de reconstituição do historiador, que ele poderá sopesar em suas análi­ ses conceituais a presença das mãos do autor ao moldar a obra, ao mesmo tempo que poderá perguntar com pertinência pela visão de ciência do autor e pelo sentido geral de seu projeto científico. Com tal intuito, tendo já sido identificadas as duas matrizes de seu pensamento (o kantismo e o positivismo), indagaremos na seqüência o alcance e o signi­ ficado da empresa fundacional de Durkheim, ao se dar a tarefa de ins­ taurar a sociologia como disciplina científica autônoma. Pensada como ciência empírica, a indagação nos levará a perguntar como ele monta sua base empírica e também, em seu rastro, como ele lida com a des­ crição, a explicação e a interpretação. Por último — coisa à qual volta­ remos no sexto capítulo, ao concluirmos nossa avaliação da obra de Durkheim —, a pesquisa nos levará a perguntar como ele lida com os elementos descritivos e normativos ao tratar do fato moral, dando ori­ gem à confusão jamais desfeita entre o empírico e o normativo, quan­ do, ao reificar a norma, o sociólogo (ou, antes, a própria sociedade) perde o métron com que avaliar o fato social em sua empiricidade. Sabe-se que, além de não poder ser considerado o único heróifundador da sociologia (há ainda Weber, bem como Pareto, segundo Aron, e o próprio Marx durante muito tempo foi considerado um dos pais da sociologia), Durkheim sofreu em vida, em terras gaulesas, a concorrência de outros cientistas sociais, como Le Play e Gabriel Tar­ de. Sabe-se também que Durkheim não tardou a se impor sobre seus concorrentes, e seu nome passou a se confundir com a própria escola sociológica francesa. Todavia, ao tratarmos da fundação da sociologia pelo alsaciano, além da abstração da perspectiva temporal, tão impor­ tante no trabalho do historiador, deixaremos de lado os aspectos socio­ lógicos, afetos à sociologia do conhecimento e das instituições, tão bem analisados por Karady, Clark e Heilbron (ver Bibliografia). Ao tratar desses pontos, evidenciando o quanto o percurso do conhecimento independe da força ou justeza das idéias, eles mostram com sagacidade o liame que vincula o destino da ciência à vida das instituições e às ações do próprio estamento dos cientistas: estes últimos constituídos em sua maioria por professores metidos em luta pelo poder no sistema 198

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de ensino e pautando seus comportamentos por estratégias de conquis­ ta. Deixaremos de lado, não porque sem importância, mas em razão de nosso problema e do lugar em que inscrevemos nossas análises. Esse lugar, como já dissemos, é o da epistemologia, e para ser preenchido com pertinência exige a tomada de certas precauções. A primeira, como se trata da questão fundacional, e levando em conta a própria natureza do trabalho do epistemólogo, que deverá chancelar ou não o factum da ciência e do conhecimento, ao pergun­ tar por suas credenciais, é o cuidado de só admitir como fundador (que é um artigo raro em história política, e mais ainda em história das ciências) quem tenha de fato as credenciais e seja reconhecido por seus pards. Ora, tal credencial não falta a Durkheim, que não só agiu assim, como fundador, com grande determinação e com esse objetivo, mas foi logo reconhecido como tal por seus pares, que lhe deram o título, se não de fundador da sociologia, ao menos da sociologia fran­ cesa, cujo prestígio e cuja influência (em escala mundial) se estende­ ram e aumentaram ao longo do século XX. Sinais desse reconhe­ cimento, dentro e fora da sociologia, nos dão Lévi-Strauss, Parsons e Evans-Pritchard. Lévi-Strauss, além de reconhecer sua dívida pessoal (por meio de Mauss) no artigo famoso “O que a etnologia deve a Durk­ heim”, aumenta mais ainda a lista dos endividados e dos campos de conhecimento no capítulo “A sociologia francesa”, publicado no livro organizado por Gurvitch e que tem por título A sociologia no século XX, em que cita Radcliffe-Brown (p. 513), Parsons (p. 514), Saussure (p. 516), Marc Bloch (p. 516), Mareei G ranet(p. 517) e Lévy-Bruhl (p. 520)14. Por sua vez, Evans-Pritchard, pouco antes de morrer, num paper que deveria integrar seu futuro livro jamais concluído A History of Antropological Thought, em que pesem suas críticas corrosivas ao pen­ samento de Durkheim (em especial sua teoria do totemismo), reco­ nhece a poderosa influência exercida pelo sociólogo, sobre a antropolo­ gia britânica15. Por último, Parsons, ao qual voltaremos no capítulo VI, junto com Merton, em mais de uma ocasião reconhece explicitamen­ 14. GURVITCH, G . L a sociologie au XXème siècle (t. II). Paris, PUF, 1947. 15. E v a n s -P r it c h a r d , E . E . (ed. por André Singer).“Durkheim (1858-1917)”, JASO (Journal o f the Antropological Society o f Oxford), v. XII, n. 3 (1981) 151. 199

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te sua dívida para com Durkheim, dando razão (o acréscimo é nosso) ao comentário de Lévi-Strauss. A segunda precaução a ser tomada pelo epistemólogo, que tem por campo privilegiado de trabalho a análise de conceitos, é evitar a todo custo a reificação de tais conceitos, ao se expor ao poder de sedução das palavras, bem como a certos embates comuns nos meios científicos, marcados menos pela disputa de idéias (o que por si só é salutar e não admite censura) do que de palavras (o que quase sempre não tem impor­ tância, ainda que pareça o contrário). Um pouco, como veremos no capítulo VI, é o caso de Lévi-Strauss ao conduzir seu processo (é assim que ele nomeia seu empreendimento) contra o totemismo de Durk­ heim, quando na conclusão, ao pronunciar a sentença, propõe a disso­ lução do problema (porque fruto de uma ilusão) e o abandono da teo­ ria durkheimiana (porque equivocada). Porém, se propõe a dissolução do problema junto com o abandono da teoria, é para deslocá-lo e pre­ conizar sua própria teoria, dissociando o totemismo da religião, vincu­ lando-o à magia e diminuindo seu âmbito ou lastro, ao abordá-lo como aspecto da taxinomia (sistema de parentesco). Quer dizer: no caso tro­ ca-se uma palavra por outra, ao aumentar ou diminuir a extensão de seu significado. Algo parecido com isso, mais além do antropólogo estruturalista, nos mostra o embate dos weberianos e dos durkheimianos relativamente à magia e à religião, estes distinguindo-as, aqueles assi­ milando-as. Por isso, todo cuidado é pouco: simplesmente, um mesmo vocábulo pode ter significações diferentes; vocábulos diferentes podem ter o mesmo significado — e é da tensão entre o sentido das idéias e o significado das palavras que vive o epistemólogo, dando a impressão, ao se ocupar da cognição, de que boa parte de seu trabalho coincide com o ofício do lingüista. E o que vamos mostrar no curso do capítulo, ao abordarmos o programa fundacional de Durkheim, quando, mais além dos conceitos, seremos conduzidos a considerar o papel das metáforas e coisas parecidas. Durkheim tornou-se conhecido nos meios intelectuais e científi­ cos do início do século XX por ocasião da publicação da Divisão do trabalho, fruto de sua tese de doutorado e em que ele avança parte das idéias seminais que manterá até o fim de sua vida. Todavia, a obra na 200

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qual ele apresenta o programa científico da sociologia e que é conside­ rada, até por ele mesmo, o texto fundador ou o momento inaugural da sociologia científica são as Regras do método sociológico (daqui para a frente Regras), publicadas depois da D TS e escritas mais ou menos simultaneamente à redação do Suicídio. E lá, no entender de muitos estudiosos, que encontramos as idéias-força de seu pensamento, sua visão da ciência e do método científico, e sua concepção de sociologia como ciência da sociedade e rainha das ciências humanas. Não vem ao caso examinar a pretensão do sociólogo, nem, em sua esteira, o conhecido imperialismo dos durkheimianos (da alçada da sociologia da ciência e das instituições), nem sequer o conceito daque­ la ciência ou daquela disciplina (cujo nome é fruto de um barbarismo intelectual, resultante da junção do vocábulo latino socius e do grego logos, e cujo batismo é devido a Comte), nem, menos ainda, as diversas concepções de sociologia em diferentes escolas e correntes de pensa­ mento. Em vez disso, ao considerarmos o programa durkheimiano de fundação da sociologia, voltaremos nossas atenções para seu objeto (a sociedade, que o sociólogo se esforça por delimitar ante o indivíduo e o mundo das coisas) e para seu método. Do objeto, na impossibilidade de abordá-lo em sua inteireza (a sociedade ou o fato social total — coisa que Durkheim nunca fez), reteremos dois dos aspectos ou recor­ tes por ele analisados, a saber: o suicídio e a religião como fenômenos sociais, deixando de lado, em razão de sua menor densidade científica no interior do corpus durkheimiano, a divisão do trabalho. Tendo reser­ vado a análise dos dois objetos para os dois próximos capítulos, proce­ deremos à avaliação das duas disciplinas que deles se ocupam (a socio­ logia da família e a sociologia da religião) no sexto e último capítulo, no qual encerraremos nossos estudos da obra do sociólogo. Por sua vez, ao nos ocuparmos do método, deslocaremos o foco de nossa análise das Regras para o Suicídio e as Formas. Duas são as razões. A primeira: por se tratar das obras voltadas para aqueles objetos ou que os têm como campo privilegiado de aplicação, nas quais os preceitos da ciência po­ dem ser julgados pelo que foi logrado ou realizado. A segunda: por entendermos que as Regras não legislam nem recobrem as soluções epistemológicas encontradas por Durkheim tanto no Suicídio como 201

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nas Formas. Dois bons exemplos são o método estatístico no primeiro (que nas Regras o sociólogo se limita a apontar, sem regular) e o mé­ todo etnográfico na segunda (que ele sem mais condena), dando razão àqueles que dizem que em Durkheim o método (as Regras) esconde dois outros (os métodos efetivamente empregados no Suicídio e nas Formas). Todavia, fica valendo para ambas, a título de aplicação, o programa anunciado pelas Regras, de estender o método experimental das ciências naturais à sociologia — programa que, avaliado na pers­ pectiva de Com te, Kant e Mill, seria considerado uma empresa “insen­ sata”, conforme salienta Berthelot16. Ao longo do século XX muitos estudiosos do pensamento de Durk­ heim se ocuparam das Regras e puseram em evidência temas tais como o realismo epistemológico, o estatuto da definição (real e não nomi­ nal), o comparativismo, a idéia de experiência, o papel da indução, a questão da causalidade e da lei etc. Recentemente, por ocasião da co­ memoração de seu centenário, as publicações festivas, na esteira dos seminários e dos colóquios, voltaram àqueles temas, atualizando-os e levando-os a um estado de quase exaustão. Em contrapartida, como nos primeiros estudos das Regras do início do século, os mais recentes deixaram na penumbra outros aspectos importantes da empresa fundacional de Durkheim, direta ou indiretamente relacionados com a ques­ tão do método. A título de exemplo, podem ser citados o papel das metáforas (para além dos conceitos), o problema do sujeito, o argu­ mento do criador, o uso de modelos, a questão do paradigma, o papel da retórica e da dialética, o emprego das dicotomias etc. Privilegiando as análises empíricas de Durkheim, poder-se-á acolher um e outro gru­ po de questões, colocando menos em relevo umas (porque exauridas) e mais outras (menos estudadas). De nossa parte, pela razão muito sim­ ples de que não é nosso intuito consagrar um estudo monográfico exaus­ tivo à obra de Durkheim, como o realizado por Steven Lukes, que alia a hermenêutica do texto à análise histórica, nem mesmo no tocante à metodologia, como nos estudos empreendidos por Berthelot, enfatiza16. BERTHELOT, J.-M . L ’avènement de la sociologie scientifique. Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1995, 102.

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remos os aspectos mais estreitamente relacionados com a questão fundacional, que é nosso objeto de análise. A começar pelas metáforas que fazem pendant e vêm juntas com a definição ou o conceito. Durkheim diz que o estudo dos fenômenos deve começar pelas definições, que vão circunscrever o objeto de aná­ lise e o campo dos estudos. Nada mais certo e nada mais inexato. Com efeito, toda ciência sé constitui mediante conceitos e o con­ ceito é igual à sua definição. Tal é o caso do Suicídio e também das Formas. Durkheim e os estudiosos de sua obra pretendem que de início o conceito é descritivo e provisório, e não será plenamente desenvolvi­ do, aparecendo em sua completude, senão no fim da pesquisa, quando a teoria se instalar depois de avançada ex-hypothesis e passar pelo con­ fronto com a empiria. Contudo, se é verdade que a teoria é o conceito desenvolvido e ela mesma depende de uma coleção de conceitos, não é menos verdade também que a teoria já está investida desde o in ício. no conceito e ela só faz sentido como tentativa de dar uma resposta a um problema ou a uma questão previamente formulada. Logo, nin­ guém começa com conceitos ou com fatos, mas com um problema, e é a teoria que, ao interpretar os fatos e dar resposta aos problemas, estabiliza os conceitos nas definições e abre o caminho para a ciência. Durkheim poderia ter de saída reconhecido isso, tivesse sido mais livre das contraintes do positivismo em sua decisão metodológica de deixar as coisas falarem e começar com elas ou pelos fatos. Mas não o fez. Preferiu ver na teoria algo que emergiria no fim do estudo, desco­ nhecendo que ela já estava engajada desde o início, ao ser avançada, se não como princípio, ao menos como hipótese. Preferiu ver na teoria uma visão das coisas solidamente estabelecida com a ajuda dos fatos, quando os fatos são estabelecidos com a ajuda da teoria. Acreditou ver na teoria a explicação do desconhecido (o fato que constitui problema e demanda explicação) por algo conhecido (o fato estabelecido com a ajuda das notas da observação e da experiência). Entretanto, o processo de conhecimento paradoxalmente vai do desconhecido (o problema que se quer solucionar) a algo mais desconhecido ainda (aquilo cujo conhecimento não se possui ainda e que uma vez adquirido resolveria o problema), vem a ser, algo referido ao real (no caso das ciências em203

O positivism o e a sociologia: Durkheim

píricas), que a teoria se esforça justamente por trazer à luz e objetivar com a ajuda dos conceitos. E o que ocorre com as teorias do suicídio e da religião em nosso autor, que só vieram a lume mediante a articu­ lação das teorias da regulação e da integração, no primeiro, e graças ao apelo à teoria do sagrado e do profano, na segunda. Todavia, não basta colocar em evidência a teoria, redimensionar seu papel e corrigir o sociólogo. Há que se distinguir ainda aquelas situações de conhecimento em que a formulação do problema e a ela­ boração de sua solução se dão no quadro de uma ciência já estabeleci­ da, com seu corpus de conceitos e sua teoria previamente desenvolvida, daquelas situações em que ocorre o oposto, como é o caso de Durk­ heim, que não tinha a sociologia, apenas o problema (o problema de pensar o social), devendo pois fundá-la, elaborar os conceitos e desen­ volver a teoria. Diante dessa segunda situação, também chamada de ordem da descoberta, na qual imperam a imaginação, a intuição e a sagacidade do indivíduo, o estudioso das matérias sociais saberá o que fazer. Não tendo a ciência (teoria e método), o remédio será apoiar-se em suas idéias ou noções prévias, lançar mão de analogias entre di­ ferentes domínios do conhecimento ou planos do real, aproximar o conhecido (ou o mais conhecido) e o desconhecido (ou o menos co­ nhecido) e esforçar-se por estender a ponte entre o observável e o inob­ servável ou entre o visível e o invisível. Ora, é justamente aqui, no ponto zero da teoria e fazendo pendant ao conceito, que entra a metá­ fora. Mais do que um tropo da linguagem ou uma vestimenta do pen­ samento, ela migra do ponto de partida para o núcleo duro da ciência e desliza até o ponto de chegada, denunciando sua presença e ação no coração da teoria, a um só tempo, uma forma e um meio de objetivação do real, a necessidade de a ciência estabilizá-la em conceitos e a própria metaforização do conceito ao se estender a diferentes domínios do conhecimento e do real. Dois bons exemplos disso nos dá o próprio Durkheim: o primeiro no Suicídio, ao valer-se das metáforas das cor­ rentes mecânicas, marítimas e elétricas para designar aquele tipo de morte e as forças que o provocam (“forças suicidógenas”, “correntes de opinião”); o segundo nas Formas, ao empregar um conjunto de metá­ foras químicas, mecânicas e elétricas para designar a religião como 204

Durkheim e a fundação da sociologia com o ciência em pírica autônom a:

experiência coletiva e fenômeno social (“efervescência coletiva”, “for­ ças religiosas”, “eletricidade das crenças”). Por fim, é justamente aqui, no ponto zero da teoria e do conceito, fazendo pendant à metáfora, que entra o paradigma, do qual voltaremos a falar mais à frente e o qual depende eni sua instauração — seja na extensão de uma disciplina a outra, seja na aproximação de um segmento do real a outro — de uma expansão metafórica (a analogia), acompanhada de uma restrição: no caso de Durkheim, a analogia entre o corpo social e o corpo ou o or­ ganismo biológico, fruto de uma expansão metafórica, tendo por restri­ ção (garantida pelo sui generis da coisa social) a consciência, a vontade e a liberdade, que são próprias do social (propriedade emergente) e não podem por sua vez repatriar-se para o mundo das coisas. Tendo elucidado esse ponto, deixaremos a outros estudiosos da obra de Durkheim a tarefa de conduzir estudos empíricos sobre o uso e o papel das metáforas, os quais poderiam ser estendidos à D TS e, assim, nos mostrar com uma maior riqueza de detalhes sua função cognitiva, ao se associar ao conceito em sua tarefa de dar ao objeto sua expressão e à ciência sua linguagem. Um excelente exemplo de um estudo dessa natureza nos dá P.-L. Assoun num capítulo de seu livro consagrado a Freud (Introduction à l’epistémologie freudienne), em que com argúcia o autor trabalha a metáfora da energia ao migrar da física para a biolo­ gia (fisiologia) e se estender depois da biologia ã psicanálise17. Outro exemplo é o de Judith Schlanger em seu belo livro Les métaphores de l’organisme, do qual o estudioso extrairá preciosos materiais e identifi­ cará importantes parâmetros cuja fertilidade logo se revelará ao aplicálos à obra de Durkheim18. Isso posto, passemos a nosso segundo tópico: a questão do sujeito e o papel do argumento do criador. Conforme salientamos na primeira parte de nosso estudo (capítulo I), Durkheim faz apelo ao argumento do criador ao longo de sua obra. Todavia, há uma discrepância notável em tal apelo. De um lado, ele dá livre curso ao construtivismo social tanto no Suicídio como nas Formas 17. ASSOUN, P.-L. “D e la dynamique à l’économique. Le modèle fechnero-helmoltzien”, in Introduction à l’épistémologie freudienne. Paris, Payot, 1981. 18. SCHLANGER, J. Les métaphores de l’organisme. Paris, L ’Harmattan, 1995.

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O positivism o e a sociologia: Durkheim

(a idéia de que a sociedade é uma construção dos homens e emerge de sua interação, tanto nos estados normais que levam um crente a um culto religioso com o nos estados patológicos que levam o indivíduo ao suicídio)19. De outro lado, ele represa o argumento no plano da elabo­ ração do conhecimento, e não há lugar para o construtivismo epistemológico propriamente dito, mas para o realismo20. Pode-se dizer que 19. De fato, o que não falta a Durkheim, especialmente nas Formas, é o vocabulário construtivista para designar seja a capacidade da sociedade de criar o próprio homem, seja a potência criadora das normas, seja a função constituidora do simbolismo, nomea­ da por ele “eficácia m oral”. Assim, a capacidade da sociedade de criar o próprio homem é sugerida na seguinte passagem , ao se referir ao fiel, tendo por contexto o liame entre religião e sociedade: “ N ous avons montré quelles forces morales elle [a sociedade — ID] développe et com m ent elle éveille ce sentiment d ’appui, de sauvegarde, de dépen­ dance tutélaire qui attache le fidèle à son culte. C ’est elle qui l’élève au-dessus de luimême: c ’est même elle qui le fait. C ar ce qui fait l’homme, c ’est cet ensemble de biens intellectuels qui constitue la civilisation, et la civilisation est l’oeuvre de la société” (p. 696 — para as referências com pletas da edição consultada, ver bibliografia). Já a potên­ cia criadora das normas é explicitamente afirmada ao fim da obra (p. 738-739), em que Durkheim argum enta, à guisa de conclusão, que “Entre le monde physique des sens et des appétits d’une part, celui de la raison et de la morale de l’autre, la distance est si considérable que le second semble n’avoir pu se surajouter au prémier que par un acte créateur. — M ais attribuer à la société ce rôle prépondérant dans la genèse de notre nature n’est pas nier cette création; car la société dispose précisément d ’une puissance créatrice q ’aucun être ne peut égaler”. Quanto à função constituidora dos símbolos, e por extensão seu poder de criar a coisa ou a sociedade, que só é possível mediante eles ou graças a eles, ela é afirmada por exemplo na p. 405 em duas passagens: 1) “Il faut donc se garder de voir dans ces symboles de simples artifices, des sortes d ’étiquettes qui viendarient se surajouter à des réprésentatiosn toutes faites pour les rendres plus maniables : ils en sont partie intégrante”. 2) “Ainsi, la vie sociale, sous tous ses aspects et à tous les moments de son histoire, n’est possible que grâce à un vaste symbolisme”. 20. Um bom exem plo desse “represamento” nos dão as Formas na seguinte passa­ gem: “L’idée de genre est un instrument de la pensée qui a été manifestement construit par les hommes. M ais pour le construire, il nous a, tout au moins, fallu un modèle; car comment cette idée aurait-elle pu naître s’il n’avait rien eu ni en nous ni en dehors de nous qui fût de nature à nous le suggérer? Répondre qu’elle nous est donnée a priori, ce n ’est pas répondre; cette solution paresseuse est, com m e on a dit, la mort de l’analyse. Or, on ne voit pas où nous aurions pu trouver ce modèle indispensable, sinon dans le spectacle de la vie collective” (p. 268-269). Mais um a vez, a razão dessa contenção é o realismo epistemológico de Durkheim, formulado porém em linguagem construtivista, na qual quem constrói ou cria as categorias de gênero, de espaço e de tempo, sem as quais não podemos pensar, não é exatamente o cientista ou o sujeito epistemológico, mas a sociedade. Sobre o vocabulário construtivista de Durkheim, a comparação das 206

Durkheim e a fundação da sociologia com o ciência em pírica autônom a:

essa discrepância é o sintoma da vitória da matriz positivista de seu pehsamento sobre a matriz kantiana, pois, se esta é guardada intacta do lado do construtivismo social, virtualmente desaparece na construção da ciência, ao ceder seu lugar ao realismo epistemológico no mais duro dos positivismos. Tivesse Durkheim trabalhado um pouco mais seu vocabulário, teria descoberto, por exemplo, que “fato” vem de facere e quer dizer “feito”, vem a ser algo que foi criado ou construído. Acepção válida tanto para os fatos históricos ou sociais (obra dos homens) como para os fatos mentais ou idéias (obra do cientista), coextensivos às ciên­ cias naturais e às ciências humanas, que o tempo todo se deparam com a necessidade de estabelecer os fatos e fixar os dados (particípio de “dar”, do latim dare = dar, doar, presentear ou fazer um “dom”, acep­ ções retidas pelo latim tardio donare, e não exatamente aquilo que encontramos ou achamos “pronto”). Tivesse, outrossim, investido um pouco mais de reflexão sobre a confecção das tabelas, o cálculo das taxas e a fixação dos coeficientes (agravação/preservação) estatísticos do suicídio, bem como sobre suas quatro tipologias, teria descoberto com Kant (quanto aos constructos matemáticos) e com Weber (quanto aos tipos) que uns e outras são construções mentais e, portanto, depen­ dem do sujeito construtor ou do sujeito do conhecimento. Contudo, Durkheim não o fez; preferiu refugiar-se no realismo epistemológico, pelo medo de perder o vínculo com a realidade (no caso, a sociedade, que, embora construída pelos homens, é não obstante real). Tendo reconhecido isso, o epistemológo não terá mais o que dizer: somente registrar a constatação, e de preferência sem se lamentar, se regozijar e prejulgar nada, como aconselham Espinosa, Descartes e Tácito (sine ira et studio). O ponto que falta elucidar é a articulação do realismo epistemológico com a questão do sujeito. Prevalecendo a matriz positivista na questão do conhecimento, pouco ou quase nada poderá Durkheim conceder ao sujeito epistemo­ lógico. Lugar de Deus e do Rei nas filosofias idealistas e racionalistas modernas, o sujeito é o lugar do vazio e do nada nas diferentes versões do positivismo e do materialismo. É o que nos mostra Durkheim ad categorias com os instrumentos e a conciliação do construtivismo com o realismo epis­ temológico, ver Formes, p. 67, nota 1 e p. 68, nota 1. 207

O positivism o e a sociologia: Durkheim

nauseam nas Regras, com seus preceitos de afastar as idéias prévias, neutralizar as paixões e os interesses, ater-se objetivamente à ordem das coisas e aos fatos sociais. E o que ocorre no Suicídio com sua decisão de se haver com as formas objetivadas daquele fenômeno e afastar as idéias prévias do vulgo. E o que ocorre também nas Formas, que par­ tem das formas objetivadas dos fenômenos religiosos (aspectos institu­ cionais, ritos, códigos), incorporam os estadós de efervescência coletiva (assembléias e cultos) e deixam de lado a questão da fé dos indivíduos e os estados de consciência da experiência mística. D aí a idéia de que Durkheim concede pouco ou quase nada ao sujeito epistemológico, de vez que, à diferença de Weber, não vê no ponto de vista do sujeito algo estruturador do processo do conhecimento, e o deixa de lado. A situação piora ainda mais ao levarmos em conta sua sociologia do conhecimento, em que ele mostra que as categorias, ao contrário do que pensavam Descartes e Kant, não têm uma existência meramente mental e menos ainda inata ou a priori, mas são geradas pela sociedade e introjetadas nos indivíduos. Pergunta-se então — se as coisas se pas­ sam assim, como quer o sociologismo (ou seja: que busquemos a gêne­ se do pensamento na sociedade, objetivando-o, com a ajuda das cate­ gorias geradas socialmente) —, se o sujeito, que na tradição filosófica antes de ser um “nós” é um “eu” (o eu penso), teria desaparecido de vez do sistema de pensamento de Durkheim. Para responder a essa questão, introduziremos uma hipótese contrafactual para deixar as coisas mais claras. O fato: na sociologia do conhecimento esboçada nas For­ mas, a sociedade é definida como a potência geradora das categorias do pensamento (espaço, tempo, totalidade etc.). A hipótese (contrafactual): se Durkheim tivesse introduzido a idéia de comunidade científica, as­ sociando-a à divisão do trabalho intelectual e à idéia de equipe, como a existente na revista Année sociologique em que ele era o Patron, po­ deria falar daquela comunidade como um “coletivo pensante”, e assim fazer da sociedade o verdadeiro sujeito do conhecimento (ela já era o sujeito moral na sua qualidade de potência geradora dos valores e das normas; era só dar um passo a mais e tomá-la como sujeito epistêmico). Na mesma linha, por desdobramento, ele poderia articular a empresa de fundação da ciência (da sociologia, no caso) com a implantação da 208

D urkheim e a fundação da sociologia com o ciência em pírica autônom a:

sociologia como disciplina científica no sistema de ensino, especial­ mente nas universidades, em que os durkheimianos já atuavam e ele era o “chefe de fila”. E o que é mais importante: assim procedendo, poderia tirar as conseqüências práticas de seu sistema de pensamento, ao articular o sujeito epistemológico e o sujeito moral, conforme ele de facto exigia e fazia concretamente, ao preconizar a reforma da huma­ nidade (ameaçada de morte pela doença da hipercivilização, que gera o maior dos males sociais: a anomia) e ao propor uma série de remédios para as patologias sociais, como as corporações e a própria religião. Tivesse feito isso, Durkheim poderia ter talhado o sujeito epistemo­ lógico à medida de seu sistema de pensamento; entretanto, não o fez. Em seu lugar, ficou um sujeito esvaziado e residual, tendo o indivíduo como suporte e a sociedade como objeto ou ponto de aplicação. Tal sujeito, presente nas Regras, no Suicídio e nas Formas, outra coisa não faz senão girar em torno do objeto (coisa), a ele se adequar e submeterse às suas corvéias, ao procurar conhecê-lo. Tal sujeito, que é o sujeito positivista, no qual muitos viram o lugar vazio ou do nada, devido à anulação de toda iniciativa e de qualquer autonomia que o qualifica­ riam como tal (seja como um “nós”, seja como um “eu”), exerce ainda assim as funções de sujeito, e tem a ver com outra de suas variantes, menos conhecida porém não menos real, oriunda da filosofia política. Estamos falando do sujet dos franceses e do subject dos ingleses, distin­ to do ego, do eu e do moi, vem a ser o sujeito na sua acepção de “sú­ dito”, que perdeu a autonomia e transferiu a soberania para o príncipe ou o monarca, a saber: na esfera do conhecimento, o subjectum, na acepção de “ser sujeito a”, “estar assujeitado a”, ao objeto no caso. Evi­ dentemente, tal sujeito é muito pobre e oferece muito pouco a Durk­ heim, se o leitor tem em conta, para além das exigências do conheci­ mento, os imperativos da moralidade que acompanham seu sistema de pensamento, denunciando seu recalque e seu esvaziamento, e condu­ zindo mais uma vez à vitória do positivismo sobre o kantismo. Um outro tópico importante vinculado à questão fundacional diz respeito ao apelo da parte de Durkheim à idéia de paradigma, já co­ mentada por nós, ao nos referirmos à metáfora, bem como ao emprego de modelos (nas acepções de arquétipo e cópia) em sua tentativa de 209

1 O positivism o e a sociologia: Durkheim

estender aos fenômenos sociais o método da ciência. Quando tratamos de ambos na primeira parte de nosso estudo, no capítulo II, vimos que todo cuidado é pouco em seu exame, uma vez que em suas acepções básicas os termos paradigma e modelo se recobrem e um pode ser to­ mado pelo outro (ambos significam exemplo ou algo a ser imitado). Daí termos proposto restringir o emprego do vocábulo paradigma ao campo da teoria e seu uso in abstracto, reservando o vocábulo modelo ao método e ao terreno de sua aplicação in concreto. Sobre essa distinção, a reserva é que Durkheim nunca fala explici­ tamente de um (paradigma) e só em poucas ocasiões menciona o outro (modelo), sem se dar o trabalho de aprofundar a análise, a exemplo das Formas ao se referir à sociedade como modelo da categoria de gênero, já citada (ver nota 20), em que poderia muito bem empregar paradigma no lugar de modelo. Em contrapartida, não faltam estudiosos que apon­ tam a presença de um e de outro em sua obra (aliás, a presença mais de um: paradigma, do que de outro: modelo), algumas vezes distinguindoos, outras vezes assimilando-os. Tal é o caso de Besnard, que fala do mo­ delo da “curva em U ” e mesmo em “V ” no Suicídio. Tal é o caso, também, de Berthelot, que fala do paradigma do “racionalismo experi­ mental”21 ao se lhe referir ao conjunto da obra e ao projeto de ciência. De nossa parte, procuraremos uma via distinta de ambos, cientes de que muitas vezes estão em jogo distinções nominais, para não dizer, conforme veremos mais à frente, que falar de modelos matemáticos em Durkheim, como quer Besnard, além de forçado, beira o anacronismo. Ao propormos a introdução destes dois elementos em vista do exa­ me da obra do sociólogo, a título de parâmetro epistemológico, gosta­ ríamos de precisar nosso intuito. Ao falarmos de paradigma, evocare­ mos o paradigma fisicalista e mesmo biologista, em que Durkheim vai buscar o exemplo e o guia em sua tentativa de fundar uma nova ciên­ cia: a sociologia. Aqui, assim como alhures, em outros autores, a exem­ plo de Com te, o procedimento adotado, quando se tratar de paradig­ ma, consistirá em estabelecer uma analogia entre um campo científi­ co, solidamente implantado ou já constituído, e um outro domínio do 21. Cf. BERTHELOT, J.-M. Uavènement, op. cit., 103.

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conhecimento, virtual e ainda a ser constituído. Foi o que fez Durk­ heim ao invocar o paradigma fisicalista ou antes “naturalista” (visO to que seu apelo concerne ao conjunto das ciências naturais, num le­ que que vai da física, passa pela química e chega à biologia). Todavia, tivesse o sociólogo parado por aqui e se limitado a estabe­ lecer a analogia entre a física e a sociologia como sugere seu artigo “Física do direito e dos costumes”, ele jamais teria logrado fundar a sociologia como disciplina científica autônoma: simplesmente, a socio­ logia ficaria atrelada e, mais ainda, seria anexada à disciplina paradig­ mática, ao modo de uma sociobiologia ou de uma física social. Para evitar o inconveniente, no mesmo ato em que invoca o paradigma das ciências naturais e estabelece a analogia dos dois campos do conheci­ mento (ciências sociais e ciências naturais), Durkheim postula a auto­ nomia e, junto com ela, a especificidade (eis a “restrição” que acompa­ nha a expansão metafórica do paradigma, de que falávamos antes) dos fenômenos sociais e das ciências que deles se ocupam, especialmente a sociologia. Ora, tal autonomia não é nada e não seria mais do que uma palavra oca se não estivesse assentada numa teoria ou numa dou­ trina que garantisse tanto a aproximação (analogia) como o afastamen­ to (diferenciação) dos dois campos. Tal teoria não é senão a doutrina da emergência, vem a ser a idéia segundo a qual, embora o fenômeno social seja a extensão dos fenômenos naturais e esteja enraizado no mundo das coisas e dos organismos vivos, o social ao se constituir, a partir da interação de elementos da natureza, gera e cristaliza um con­ junto de propriedades emergentes novas, e como tais irredutíveis àque­ les elementos. Essas propriedades têm a ver com as representações co­ letivas, a autonomia da vontade e a potência infinita do desejo huma­ no, os quais estão para o mundo dos homens e da sociedade assim como a célula dos organismos vivos está para as forças físicas e os ele­ mentos químicos. Demais, uma outra idéia de que Durkheim lança mão, associando-a à doutrina da emergência, é a de “meio social inter­ no”, que ele toma de empréstimo de Claude Bernard (o fisiológico como “meio interno” do organismo) e que nos faz lembrar a idéia de “forma lingüística interior” de Humboldt — todos às voltas com a ques­ tão de autonomização de seus campos de conhecimento. Uma outra

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O positivism o e a sociologia: Durkheim

idéia, enfim, é a de totalidade orgânica, que, à diferença do todo da matemática, é maior do que a soma das partes. A vista disso, a empresa de fundação de Durkheim pode ser considerada ao mesmo tempo, em sua ambivalência, uma empresa de imitação e aproximação analógica (tal é a função da idéia de paradigma) e um empreendimento de dis­ tanciamento e de diferenciação (tal é a função da doutrina da emer­ gência, da figura da totalidade e da idéia de meio interno). Essa ambi­ valência ocorreria tanto no tocante à relação da sociologia com a física, a química e a biologia, desempenhando cada uma das ciências naturais o papel de ciência paradigmática, como no que tange à relação das demais disciplinas das ciências humanas e sociais (como a história, a antropologia e a geografia) com a própria sociologia, exercendo a so­ ciologia, uma vez fundada, a função de ciência paradigmática. Quanto aos modelos, o uso que julgamos pertinente para a aprecia­ ção da obra de Durkheim é a acepção de modelo analógico, não a de modelo matemático, mecânico ou cibernético, cujo emprego foi con­ sagrado depois dos anos 1950, e só por força de um abuso de lingua­ gem poderiam ser estendidos ao sociólogo francês. Assim procedendo, não endossaríamos tentativas como a de Giddens e de outros autores de fazer dos tipos de suicídio algo como uma tipologia à maneira de Weber, uma vez que no caso de Durkheim os tipos de suicídio não têm a ver com a idéia de modelo na acepção de construção mental encon­ trada no pensador alemão, mas com uma classificação categorial e uma lógica de classes, com fundamento na realidade das coisas. Da mesma forma que não endossaríamos a tentativa de Besnard e de outros estu­ diosos de estabelecer para as taxas de suicídio o modelo das curvas em U ou em V, já assinalado, pela simples razão, mais uma vez, de que Durkheim via nas taxas e nas relações entre elas menos um modelo ideal (matemático ou estatístico) e suas variações do que um conjunto de indicadores da realidade social (a lembrar que Besnard, no famoso artigo consagrado ao suicídio das mulheres, diferentemente do livro sobre a anomia, não fala de modelo da curva em U, mas de filosofia da curva em U e, em sua extensão, de filosofia do justo meio e filosofia do equilíbrio, num claro testemunho de flutuação conceituai). O que pro­ pomos como parâmetro epistemológico é o emprego do termo modelo 212

Durkheim c a fundação da sociologia com o ciência em pírica autônom a:

como intercambiável com o vocábulo paradigma, por evocarem a idéia de analogia e de eminência (um dos termos analógicos funcionando como arquétipo, o outro como cópia), porém reservando o paradigma para o nível da teoria e o modelo para o plano do método. Admitido isso, poderemos falar, afora a analogia entre campos disciplinares, da fundação (teórica) da sociologia, do modelo do equilíbrio ou da ordem subjacente às análises durkheimianas do suicídio, bem como do mode­ lo (protótipo) da religião primitiva (o totemismo) como ferramenta analítica para a compreensão das religiões mais desenvolvidas, confor­ me as Formas elementares. E ainda, do modelo eminente (paradigmá­ tico) de uma experiência bem-feita, em contraposição ao modelo do comparativismo extensionista da antropologia culturalista, a exemplo do método de Frazer no Ramo de ouro. Tendo definido os parâmetros de nosso estudo, examinaremos na seqüência o sentido geral do programa fundacional de Durkheim, à luz de sua aplicação a dois campos da sociologia: o fenômeno do sui­ cídio, dando lugar à fundação da sociologia da família; o fenômeno da religião, dando origem à fundação da sociologia da religião. Ao fazê-lo, concederemos forte atenção ao modo como nosso autor articula no plano do método, muitas vezes a contrapelo das Regras, os níveis des­ critivo, explicativo e interpretativo de sua abordagem dos fatos sociais. Nossa decisão de proceder a seu exame no plano de uma análise fun­ damentalmente aplicada, como a do Suicídio e das Formas, deve-se ao caráter fortemente contextualizado da descrição, da explicação e da interpretação, não se prestando ao estabelecimento de uma canônica geral ao modo da Lógica de S. Mill, nem à fixação de um conjunto de preceitos de metodologia geral ou coisa parecida. Outro ponto para o qual estaremos atentos, e como o precedente escapando à legiferação das Regras, é o expediente adotado por Durkheim de “retraduzir” em linguagem sociológica conceitos, categorias e idéias oriundos de outras disciplinas e outros campos do conhecimento, como o direito, a filoso­ fia e a biologia. Por último, em íntima associação com o programa fundacional de Durkheim, estaremos atentos também para o impor­ tante papel desempenhado pelos procedimentos de retórica e de dialé­ tica na instauração de sua obra, e mais uma vez ao arrepio das Regras. 213

Capítulo 3

A fundação da sociologia da família: o caso d’0 suicídio

Durkheim não foi nem o primeiro nem o último a querer fundar a sociologia e dar-lhe os lustros de disciplina científica autônoma. An­ tes dele, foi a vez de Comte, que criou o nome e abriu-lhe um campo de estudos, e também de Spencer, que, além do nome e do campo de estudos, lhe forneceu os princípios e aplicou-os a segmentos da realida­ de social. A época de Durkheim, além do próprio, foi a vez de Tarde e Le Play na França (hoje desconhecidos e meros nomes catalogados nas monografias históricas), assim como de Simmel e Max Weber na Ale­ manha, especialmente Weber, no qual a tradição habituou-se a ver, ao lado do sociólogo francês, porém mais tardiamente, um dos heróis fundadores da sociologia. Depois de Durkheim, foi a vez de Schutz, que, no rastro de Weber, trata de fundar a sociologia em bases da fenomenologia; de Parsons, cujo programa de pesquisa procura articular Weber e Durkheim e assim refundar a sociologia; e de Bourdieu, que em sua tentativa de refundar a sociologia e abrir-lhe novos horizontes vai buscar seu ponto de apoio, além de em Parsons, no legado de Weber, Marx e Durkheim. 215

O positivismo e a sociologia: Durkheim

Relativizada a questão fundacional no campo da sociologia por meio da história da disciplina, tentaremos na seqüência averiguar em que con­ siste, em grandes linhas, o projeto durkheimiano, bem como o estado em que o sociólogo encontrou seu objeto ao estender-lhe o olhar da ciência. Com o se sabe, seu intuito era inscrever a sociologia no campo das ciências naturais, nos quadros do que se convencionou chamar de paradigma fisicalista e seu monismo epistemológico. Quanto ao objeto próprio da disciplina, um tanto vagamente denominado sociedade ou realidade social, Durkheim o encontrou pulverizado numa multidão de matérias das humanidades clássicas e das nascentes ciências huma­ nas e sociais. Tais foram os casos da divisão do trabalho, que integrava a economia; da educação, disputada pela filosofia e pela pedagogia; da família, objeto da psicologia e da antropologia; do suicídio, retalhado entre a psicologia, a medicina e a criminologia; e da religião, assunto da teologia, da antropologia e da história. A estratégia utilizada, ao es­ tender a esses objetos o olhar da sociologia, consistiu seja em desapro­ priar as disciplinas rivais de seus objetos e passá-los diretamente à alça­ da da ciência nova (este foi em grande parte o caso do suicídio), seja em introduzir nos velhos objetos novos recortes e neles acomodar a ciência da sociedade (este foi o caso da D TS, que, além da démarche da economia conhecida desde a época de Smith, explorou novos aspectos da divisão do trabalho, ao considerar sua dimensão social). Tanto num caso como noutro o expediente adotado por Durkheim, em seu esforço de assegurar a pertinência do olhar do sociólogo, dependeu em larga medida da técnica da “retradução” de conceitos e de vocábulos, transliterando-os em linguagem sociológica (se suicídio há em sua acepção sociológica, não é ao modo do suicídio de Sêneca, de Nero ou de Rafael, ao gosto dos historiadores, filósofos, psicólogos e literatos, em que pre­ valece o indivíduo e suas idiossincrasias, mas o suicídio considerado do ponto de vista social, no qual o indivíduo aparece como membro de um grupo ou de uma família). Quer dizer: um expediente por vezes mais de dialética e de retórica do que propriamente científico. Com ecem os pelo fenômeno do suicídio e pelo livro de igual título, em que muitos vêem sua obra mais bem-sucedida, e tal que não apenas ainda resiste ao tempo, mas que muitos estudiosos consideram, confor216

A fundação da sociologia da fam ília: o caso do suicídio

me nos lembra Pope, o exemplo clássico do casamento feliz entre a teoria e a pesquisa empírica1. Para bem avaliarmos o alcance e o significado da obra famosa, tomaremos como ponto de partida de nosso estudo a observação de Establet e Baudelot (Durkheim et le suicide2) segundo a qual O suicí­ dio, elaborado à mesma época das Regras, pode ser considerado uma análise empírica coextensiva à sociologia da família — seja porque toma a família como modelo e a estende a outros aspectos da socieda­ de como a religião e a economia, fornecendo um quadro em que a so­ ciedade pode ser vista como uma família ampliada, seja porque a fa­ mília é vista como célula da sociedade, tanto em seus aspectos nor­ mais como nos patológicos, retendo no entanto os últimos aspectos, o suicídio aparecendo como estudo de caso ou sua ilustração. Antes do Suicídio, o sociólogo tinha fundado a sociologia do trabalho na D TS (cujo alcance, entretanto, ao menos na mente do autor, é mais ambi­ cioso do que o título do livro sugere ou em contraste com os resultados efetivamente atingidos: trata-se da fundação da sociedade e da própria sociologia como ciência da sociedade — função da teoria da solidarie­ dade). Vindo na seqüência, o enjeu do Suicídio — coisa que Durk­ heim nem sempre deixa clara — seria então fundar a sociologia da família ou, antes, um de seus aspectos, ligado ao fenômeno da patolo­ gia social, mostrando que, quando a célula-mãe se desintegra, os indi­ víduos entram em colapso e a própria sociedade, não combatido o mal, é levada ao estado de ruína. Dizíamos antes que Durkheim encontrou seu objeto, o suicídio, pulverizado num conjunto de disciplinas já existentes, como a medici­ na (psiquiatria) e a criminologia, e também — acrescentaríamos agora — no senso comum. Dizíamos também que, em seu esforço de demar­ cação em vista de assegurar à sociologia seu território próprio e sua legislação específica, Durkheim foi levado a introduzir no objeto em apreço novos recortes e a destacar novos aspectos com o intuito de estender-lhe em sua pertinência o olhar da sociologia. Cabe então 1. POPE, W. Durkheim s Suicide — A Classic Analysed. Chicago/London, The Uni­ versity of C hicago Press, 1976, 1. 2. B a u d e l o t , C h ., E s t a b l e t , R. Durkheim et le suicide. Paris, PUF, 1984. 217

O positivism o e a sociologia: Durkheim

mostrar na seqüência o estado em que ele encontrou seu objeto, pergun­ tar em seguida pelo modo como introduziu o ponto de vista da socio­ logia e, por fim, indagar da originalidade, bem como da fertilidade do trabalho ensejado pelo sociólogo, à luz da obra do próprio Durkheim. Com efeito, como bem o mostraram Baudelot e Establet no livro já citado, porém numa outra perspectiva, o estudioso do suicídio ou o mero curioso encontrará à sua volta farto material que lhe dará uma idéia tão rica quanto multifacetada daquele inquietante fenômeno5. Com o fonte de informação ele terá a experiência comum, os veículos de comunicação (jornais, rádios, TVs), a literatura, a história e outras disciplinas das ciências. Não podendo contar com o suicida como fonte direta (afinal ele partiu e não poderá dar seu depoimento; quando muito deixará um bilhete ou um testamento), o estudioso deverá lançar mão de depoi­ mentos de familiares ou de amigos, por vezes bem menos dramáticos do que a carta deixada, muitas vezes bem mais vivos do que os registros da polícia ou os prontuários de hospitais. Lançará mão também dos registros da mídia, com o defeito de que os veículos de comunicação estarão interessados mais nos aspectos es­ petaculares e chocantes do ato de suicídio (tipo “fulano se suicidou enforcando-se com a cauda de seu gato” ou o “suicídio em massa de membros de uma seita religiosa”) do que nos aspectos ordinários e ba­ nais dos suicidas comuns. Poderá lançar mão ainda — acrescente-se — das fontes históricas, nas quais encontrará um sem-número de relatos sobre suicidas céle­ bres, como Demóstenes, Aníbal, Brutus, Catão, Nero, Condorcet, Nerval, Van Gogh, Vargas etc., pondo em evidência seus aspectos he­ róicos, teatrais e de desespero. Poderá em seguida lançar mão de fontes médicas e jurídicas, ao se reportar aos prontuários e autos de processos, os quais deixarão claro o estado de loucura do suicida que se imaginava Cristo ou Napoleão, ou então os motivos mesquinhos que levaram alguém a matar alguém e a se matar depois. 3. Ib id ., 7 6 -8 8 .

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A fundação da sociologia da fam ília: o caso do suicídio

Poderá, se quiser, apoiar-se na própria filosofia e nas meditações dos filósofos, como as de Sêneca e dos estóicos, que recomendavam o suicídio e o justificavam (se a vida não estava boa para alguém); como as de Montaigne, ao se referir nos Ensaios aos costumes dos povos de Cea, salientando que a morte nem sempre é temida pelas gentes e que os indivíduos se matam por motivos os mais diversos, desde os mais prosaicos e banais até os mais heróicos e sublimes; como as de Santo Agostinho, que diz que o ato do suicídio não é uma negação da existên­ cia (desejo do nada), mas, paradoxalmente, a afirmação da vida e a busca de uma realidade melhor do que a atual. Poderá, enfim, se reportar à literatura, na qual encontrará centenas de casos de suicidas célebres, muitos com base em figuras reais, outros tantos em peças de ficção: como em Flaubert, a propósito de Mme. de Bovary, inspirado em fato real; em Goethe, no caso de Werther, cujo exemplo (ficcional) deflagrou uma legião de suicídios em vários cantos da Europa; em Shakespeare, a respeito de Romeu e Julieta, cujo duplo suicídio inspira até hoje jovens amantes desesperados; em Balzac, na Comédia humana, na qual relata 21 casos de suicídio; em Victor Hugo, em Os miseráveis, no qual fala do suicídio de Javert, personagem, se­ gundo Baudelot e Establet, perfeitamente durkheimiano (“homem, sol­ teiro, idoso, parisiense, ele se afoga no Sena”4); em Maupassant, entre todos, segundo nossos autores, aquele que dá “o quadro literário (...) mais próximo do quadro cruzado do sociólogo, a ponto de chegar, no conto intitulado Promenade, à coincidência perfeita”5. Nada mais fácil do que apontar as diferenças flagrantes de interesses e de perspectivas que distinguem a literatura, a historiografia, a filosofia, a medicina, a criminologia, a mídia e o senso comum. Aos relatos presos ao grandioso e magnânimo da história, contrapõem-se o gosto pelo es­ cândalo da mídia e a atitude de condenação velada e de inquietação ameaçada do homem comum. À meditação serena do filósofo estóico, opõe-se o auto circunstanciado e motivado do criminalista, o registro das psicopatias do psiquiatra e das manias e perversões do psicanalista. 4. Ibid., 85. 5. Ibid., 86. 219

1 O positivism o e a sociologia: Durkheim

Nada mais fácil também do que apontar as similitudes e convergências das perspectivas, como o fazem Baudelot e Establet, que aproximam o suicídio literário do suicídio midiático, dizendo que “os suicídios literá­ rios são suicídios de exceção: a um tempo verdadeiros e inverossímeis, reais e improváveis. Eles se assemelham, sob esse aspecto, aos faits divers (dos jornais), dos quais eles freqüentemente se originam”6. Porém, o que dizer da sociologia? O que distingue o olhar do sociólogo dos olha­ res do psiquiatra, do criminalista, do filósofo e do jornalista? A julgar por Douglas, a démarche da sociologia, se bem conduzida, pouco ou nada se distinguiria dessas abordagens no tocante ã prospec­ ção das fontes, de vez que também ela dependeria da análise de casos, nem mais nem menos do que a descrição do médico e do jornalista. Todavia, não é o que pensa Durkheim, o qual, a lançar mão da técnica da análise de casos, preferiu seguir um outro caminho, e fazer da esta­ tística a via por excelência da análise sociológica. Ora, o que caracteri­ za o método estatístico é sua mudança de foco do indivíduo em sua singularidade e seu comportamento motivado, cujo drama pessoal e seu desenlace, podendo levar ou não ao suicídio, enchem os tribunais, as prisões e as clínicas, para o agregado de indivíduos, o esvaziamento do motivado, o foco no impessoal e o interesse pela média, pelo desvio e pela norma. E o que em suma vamos encontrar nesta obra genial de Durkheim, que é o Suicídio, ao longo da qual o sociólogo não estuda o suicídio ou o suicida, mas as taxas de suicídio e as relações entre as taxas (coeficiente de preservação contra o suicídio, coeficiente de agravação). E, também, o mesmo gosto pela média, pela norma e pelo anódino ou banal, diferentemente da mídia, da literatura e do senso comum, apesar das invectivas de Durkheim contra o “homem médio” e o raciocínio pela “média” em sociologia. A possibilidade de aplicação e o privilégio do método estatístico em sociologia têm a ver, ao que parece, com a própria natureza do objeto, tanto quanto as coações que vitimam o sociólogo em seu esfor­ ço de dar expressão ao social. Por um lado, a possibilidade ampara-se na propriedade do fenômeno em questão (o suicídio enquanto ato) de 6. Ib id ., 83.

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A fundação da sociologia da fam ília: o caso do suicídio

ser um objeto perfeitamente contável, a exemplo do nascimento e da morte dos indivíduos, e à diferença de uma crise de depressão ou de uma doença crônica, que mal sabemos quando começam e terminam. Por outro lado, o privilégio apóia-se no fato de a estatística ser um po­ deroso meio de objetivação do suicídio como fenômeno social, de outra maneira inacessível se ficamos tão-só com a análise de casos: por mais que juntemos os casos e os somemos, jamais conseguiremos mostrar o social, ao passo que, trabalhando diretamente os agregados estatísticos, suas decomposições e suas correlações, poderemos ter uma visão de conjunto e evidenciar o social em seu vínculo com grupos e outros fatores socioculturais (trabalho, religião, família). D aí a impressão de o olhar do sociólogo não ter nada a ver com o olhar do médico e o do filósofo, nem com o do jornalista, o do roman­ cista e o do psicólogo. Diante do suicídio e dos suicidas, o comporta­ mento do sociólogo ou, melhor, do sociólogo durkheimiano é de uma previsibilidade maçante: em vez de condenar o suicídio como o crente ou de expor à exaustão o meio que consumou o ato, como o jornalista, ele ficará comparando, medindo, correlacionando, mostrando que a taxa ora sobe, ora desce, que os homens suicidam-se mais do que as mulheres, os solteiros e viúvos mais do que os casados etc. Todavia, ele vê nessa técnica, por vezes demasiado rude ou mesmo banal, um pode­ roso instrumento, se não a única via possível para tratar do suicídio como fato social, demarcar a sociologia das outras disciplinas que dele se ocupam e vencer, evidenciando a pertinência e mesmo a superiori­ dade da abordagem sociológica, justamente onde tais disciplinas julga­ vam ter o privilégio de se ocupar com exclusividade do fenômeno. Assim, no tocante à psicologia, como bem viu Aron, não é à toa nem aleatoriamente que Durkheim escolheu o suicídio como a arma de combate ou o terreno onde medir forças, ajudado pelas taxas, com aquela ciência e, assim, mostrar a pertinência bem como o vigor do ponto de vista sociológico: fenômeno individual por excelência, se lo­ grasse mostrar que o suicídio é social, ele venceria a psicologia no ter­ reno da psicologia. Escreve Aron: no Suicídio Durkheim “quer mostrar até que ponto os indivíduos são determinados pela realidade coletiva. Desse ponto de vista, o fenômeno do suicídio encerra um interesse 221

1 O positivism o e a sociologia: Durkheim

excepcional, uma vez que, em aparência, nada é mais especificamente individual do que o fato, para o indivíduo, de alguém pôr fim à vida. Se ocorre que esse fenômeno é comandado pela sociedade, Durkheim terá provado, no caso mais desfavorável à sua tese, a verdade dela. Quando o indivíduo está só e desesperado a ponto de se matar, é ainda a sociedade que está presente na consciência do infeliz e lhe ordena, mais do que sua história individual, este ato solitário”7. Se a questão da pertinência e da originalidade do ponto de vista da sociologia pode ser facilmente evidenciada em seu esforço de demarca­ ção em relação à psicologia e à medicina, o mesmo não se pode dizer relativamente à criminologia ou ao direito. Para nos convencer disso basta levarmos em conta os trabalhos de Bertillon e de Morselli, que exerceram grande influência sobre Durkheim. Particularmente Morselli, que escreveu anos antes do nosso autor um livro de título idêntico, originalmente em italiano (II suicídio) e cedo traduzido para outras línguas, inclusive o inglês. Ora, Morselli e Bertillon, junto com Quételet e outros consortes, ajudaram a construir ao longo do século XIX a chamada “estatística moral”, e enquanto tal de índole essencialmente social, ao se ocupar não apenas da altura (estatura) dos indivíduos, como em Quételet, mas também da demografia (taxas de natalidade e de óbito), das doenças e do próprio suicídio. Ciente da influência de Mor­ selli sobre Durkheim, o estudioso, ao examinar a obra do primeiro e compará-la com a do segundo, terá grandes dificuldades de reconhecer seja a pertinência, seja a originalidade da sociologia. Assim, Huff, que se deu ao trabalho de fazer a comparação num artigo sobre Durkheim, mostrou que praticamente tudo o que encontramos no sociólogo fran­ cês está presente na obra do criminalista italiano: 1) a idéia de que o suicídio é típico das sociedades avançadas; 2) a relação religião/suicí­ dio; 3) as correlações entre suicídio e clima (estações); 4) o papel da integração (Morselli fala de integração política; Durkheim fala, como veremos, de integração social); 5) a existência de regularidades nas taxas de suicídio (o suicídio varia inversamente com a integração política, os protestantes suicidam-se mais do que os católicos, as pessoas solteiras 7. ARON, R. Les étapes de la pensée sociologique. Paris, Gallim ard. 1967, 331. 222

A fundação da sociologia da fam ília: o caso do suicídio

suicidam-se mais do que as casadas, a presença de filhos imuniza os indivíduos contra o suicídio, mais ainda a mãe do que o pai — casado ou viúvo); 6) e mesmo o sumário do suicídio de militares para toda a Europa (onde mostra, por exemplo, que a taxa do suicídio daquele estamento é quatorze vezes maior do que a dos civis) etc.8. Se acrescen­ tamos a essa lista acachapante as descobertas de Bertillon9, francês como ele, que lhe sugeriu contrastar a taxa de suicídio e os grupos sociais — estado civil (casado, solteiro, viúvo), sexo e idade, (as coisas ficam pio­ res ainda) —, simplesmente somos forçados a concluir que Durkheim não apenas não inventou o suicídio como fato social, como também que, tudo bem estimado, uma só e mesma estatística, ela mesma social ou antes “moral”, serve de fonte tanto para o trabalho do sociólogo com o para a obra do criminalista. De modo que as idéias de originali­ dade e de pertinência do ponto de vista sociológico se esfumam, pela razão muito simples de que o criminalista e o sociólogo bebem na mesma fonte (estatísticas oficiais) e se servem de um mesmo método: o método comparativo — estatística comparativa no caso (a lembrar que o livro de Morselli traz em inglês por subtítulo An Essay in Comparative Moral Statistics). Cabe assim perguntar: se a originalidade e a pertinência não estão no método, onde estarão, então? Na teoria — poder-se-ia responder —, vale dizer, na teoria em sua acepção grega de visão, de visão de conjun­ to ou de visão do todo, de visão sociológica, com efeito. É então, ao levar a sério a resposta, que o estudioso descobrirá, contrafeito, que muitas das conquistas de Durkheim, assim como boa parte da perti­ nência do discurso sociológico, dependem não do método, ele que era um campeão do método, mas da teoria, e, como tais, antes da estatís­ tica e independentes dela, conforme veremos adiante. Além disso, descobrirá, perplexo, que Durkheim não se serve de um só método no Suicídio, o método estatístico, mas de dois ou três métodos, visto que tam bém usa o método histórico (em contextos nos quais faltam as es­ tatísticas, como nas sociedades primitivas) e o método dialético (em 8. H u f f , T. E., op. cit„ 244-247 e 256, n. 7. 9. Ibid., 256, n. 6. 223

O positivism o e a sociologia: Durkheim

suas refutações das teorias rivais). E mais uma vez a unidade de doutri­ na dependerá não do uso ou emprego de um mesmo método, mas da teoria, vale dizer, de uma teoria multifacetada que deverá articular os métodos e dar consistência a seus resultados. Tal teoria não é senão a teoria da integração e da regulação social (voltaremos mais à frente ao assunto). Esclarecido esse ponto crucial, vejamos então como Durkheim ar­ ticula descrição, explicação e interpretação no Suicídio. Com ecem os pela descrição. Junto com ela, que coloca o sociólogo face a face com o objeto, vem a definição, que isolará os aspectos do objeto e o conjunto de problemas que se oferecerão à investigação. Associando descrição e definição, Durkheim estará correlacionando uma operação conceituai com seus engajamentos teóricos, do lado da definição, e uma operação empírica, baseada nas notas da observação e da experiência, do lado da descrição. Ora, antes da estatística, o método que vai permitir a nosso autor fazer a articulação é a dialética. Esta, à diferença da dialética antiga, que era puramente lógica e operava sobre as opiniões, refutando umas e endossando outras, virá associada aos procedimentos empíricos da ciência, inclusive à estatística, e desde logo não será considerada filosófica pelo sociólogo, mas científica. Dizíamos antes que Durkheim começa no Suicídio com um pro­ blema, não exatamente com a definição do objeto (a qual justamente constitui problema, e só depois de muito argumentar e refutar é que se chegará lá). Acrescentaremos, agora, que a questão consiste em mos­ trar que o fenômeno do suicídio tem uma dimensão social, ou melhor, é em sua essência um fenômeno social. Acrescentaremos, enfim, que é precisamente aqui, neste ponto, em vista de mostrar este fundo social a ser retido pela definição (conceituai) e a ser desenvolvido pela teoria (sociológica), que entra a dialética, com suas refutações e afirmações — para refutar os falsos problemas, afastar as más definições e eliminar as pseudo-explicações (que explicam o social pelo não social); para reter o verdadeiro problema, dar a boa definição e instaurar a explicação pertinente (que explica o social pelo social). Assim, em boa dialética, antes de fornecer a definição sociológica do suicídio, Durkheim deverá examinar aqueles fatores que, segundo 224

A fundação da sociologia da fam ília: o caso do suicídio

uma literatura bem estabelecida, têm a ver com o suicídio: o clima, as raças, as doenças mentais, as crises econômicas e políticas etc. Exami­ nando esses fatores, Durkheim introduzirá o conhecido argumento por eliminação, como bem viu Pope"’. Esse consistirá, evocando um pen­ samento marcado pelo gosto das dicotomias, em dividir tais fatores em dois grandes grupos: sociais, uns; não-sociais, outros. Eliminado o nãosocial, restará o social. E aqui que a investigação sociológica começa, com seu problema e seu objeto: o suicídio como fato ou fenômeno social, que deverá ser mostrado ao longo da investigação. E também aqui que entra a definição, com sua descrição do fenômeno a ser inves­ tigado e seu engajamento teórico in limine (fornecer a teoria social do suicídio), numa démarche igualmente dicotômica: assim, afastará as definições psicológicas e do senso comum, que fazem do suicídio um fenômeno motivado e um ato consciente cometido por alguém contra sua própria vida, e reterá seus aspectos sociais, afirmando que é um ato coletivo, socialmente causado e inconscientemente gestado pelo indi­ víduo ao se expor às forças da sociedade11. E é, enfim, aqui, de posse da definição, que Durkheim poderá ampliá-la, desenvolvendo-a, ao lhe associar aqueles aspectos residuais extra-sociológicos, que afinal exis­ tem e são bem reais, no quadro ou interior de uma teoria (social) do suicídio abrangente e coerente: mostrará então que o clima, o ciclo das estações e o curso da jornada afetam, sim, mas enquanto fatores que integram o ritmo social, com suas intensificações e seus relaxamentos, gerando oscilações nas taxas, não o fenômeno ou a taxa tomada abso­ lutamente; mostrará, também, que os fatores psíquicos afetam igual­ mente o suicídio, a exemplo da melancolia e da depressão (associadas ao suicídio egoísta), assim como a frustração e a irritação (associadas ao suicídio anômico), porém ao se integrarem às forças coletivas como seu script ou décor, vale dizer, integradas como motivo, não como cau­ 10. P o p e , W., op. cit., 186.

11. Sobre a definição do suicídio, ver a formulação de Durkheim na “Introdução” da obra (p. 3), onde reconhece que, além de provisória, a conceituação é insatisfatória por mais de uma razão: “Cham am os suicídio toda morte que resulta mediatamente ou imediatamente de um ato positivo ou negativo, consumado pela própria vítima” (para maiores referências sobre a edição consultada, ver a Bibliografia). 225

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sa dele; mostrará, ainda, que as doenças mentais, como a loucura, le­ vam ao suicídio, ao suicídio patológico, porém afetam muito pouco o suicídio social considerado em sua média ou segundo sua taxa ordiná­ ria, e a este título algo normal, antes de ser patológico; mostrará enfim que raça e suicídio não estão correlacionados, e seu suposto enlace é da mesma ordem da subida da ação na Bolsa em Paris e da baixa da maré na Normandia. Todavia, a operação conceituai não pára por aqui, com a definição geral do suicídio com base na descrição dos aspectos sociais daquele fenômeno ou das notas que o caracterizam, como a coercitividade e a exterioridade. Em vez disso, o trabalho do conceito continua em toda a obra, desde as tabelas estatísticas, ao organizá-las, até os nexos cau­ sais, ao inferi-los, passando pelos tipos de suicídio e sua relação com as forças ou correntes sociais que o acarretam ou o fazem eclodir. Na impossibilidade de pormenorizar o conjunto dessas operações, convo­ caríamos o leitor a percorrer a obra, ocasião em que poderá facilmente atestar o que acabamos de dizer. Paralelamente, poderá testemunhar a crença do autor de que lida com definições reais, pois apoiadas em indícios da realidade, até mesmo nas tabelas estatísticas, e não exata­ mente em pontos de vista do sujeito epistêmico, ao recortar a realidade e isolar os aspectos dela. Dispensando-nos dessa tarefa e, ao mesmo tempo, poupando o leitor de uma duplicação fastidiosa do texto, pode­ remos concentrar-nos num outro ponto, bem mais implícito. Ou seja: o exame do modo como Durkheim estabelece a base empírica do Suicídio, cuja montagem, além do conceito e a ele intimamente asso­ ciada, envolvendo a coleta e a triagem de dados, é outra operação liga­ da à descrição. Ao efetuar o exame, o leitor logo verificará que o procedimento de Durkheim está longe de ser homogêneo no conjunto da obra. Com o fonte para suas análises, as quais lhe fornecerão os dados ou os indicado­ res, ele terá os prontuários de hospitais, as cartas deixadas pelos suicidas (consta que o sociólogo examinou 1.507 cartas), os registros de autos jurídicos e de arquivos médicos, os casos de suicidas célebres relatados pelos historiadores e literatos, e — o que é mais importante — as pró­ prias estatísticas oficiais. Embora ricas e abundantes, essas fontes quase 226

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sempre frustram as exigências do sociólogo, da mesma forma que os dados de que precisa nem sempre ele os encontra prontos, o que os dis­ pensaria de controle crítico e de posterior elaboração. Tal é o caso do funcionário do hospital que lança no prontuário como suicídio um ato cometido por alguém contra si mesmo sem ter em mente a definição do sociólogo, fiando no laudo médico ou em relato de familiares. D aí a necessidade de precaução — coisa de que Durkheim estava ciente, ainda que, impotente, não soubesse ao certo, muitas vezes, o que fazer para remediar as deficiências e corrigir os erros mais comuns. Contu­ do, entre essas fontes, aquela que sem dúvida mais atendia às exigên­ cias ou expectativas do sociólogo era a estatística, ela mesma viciada por registros poucos circunspectos, além de discrepante quanto à sua origem médica (tipo Ministério da Saúde) e ao seu levantamento por organismos jurídicos (tipo tribunais e seus órgãos auxiliares) ou policial-militares (tipo Ministério do Interior ou da Justiça). Quanto à estatística, além das tabelas existentes e disponibilizadas por diferentes países, em sua maioria europeus, Durkheim elaborou suas próprias fontes, com a ajuda de seu sobrinho Mauss e à base de materiais oficiais (ainda não publicados) cedidos por Le Play. Foi a partir dessas tabelas, em grande parte já agrupadas por faixa etária e estado civil, que Durkheim montou uma das bases empíricas mais abun­ dantes e mais exaustivas, ainda que imperfeitas e lacunares, de seu li­ vro O suicídio — coisa que o leitor facilmente constatará ao percorrer diferentes partes da obra. Agora, o que desconcerta e embaraça, fato este salientado por mais de um comentador, é que esta base só se torna completa e universal com a ajuda de uma outra fonte que não tem nada a ver com a estatística: a fonte histórica ou historiográfica, geran­ do uma discrepância irremediável no tocante tanto à empiria como às análises ensejadas, uma primeira metade povoada de números e corre­ lações, uma outra metade de gêneses, comparações e filiações. E o que ocorre, quanto à primeira metade, com a análise do suicídio egoísta e anômico, para a qual abundam as fontes estatísticas. Quanto à segunda metade, é o que ocorre com a análise do suicídio altruísta e fatalista: para o primeiro, abundando as fontes historiográficas, porém algo arti­ ficiais, visto que viciadas desde a origem pela hipótese hiper-homogê227

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nea que levou Durkheim a assimilar as sociedades primitivas da Ocea­ nia às grandes civilizações do Oriente, como a índia, a China e o Ja­ pão; para o segundo, faltando toda base historiográfica, visto que sem apoio descritivo e se limitando a apontar numa nota de rodapé, além de seu suposto interesse histórico, alguns exemplos um tanto heteróclitos para saciar a curiosidade do espírito. A surpresa maior aparecerá, po­ rém, naquelas seções da obra em que Durkheim, para suprir as lacu­ nas, na falta de tabelas estatísticas e de dados históricos disponíveis, se não para aumentar ou suplementar a força persuasiva de suas análises, se serve da via dialética e nada empírica de trabalhar fontes propria­ mente literárias. Tal é o caso do apelo à obra de Lamartine, cujo Rafael cai feito uma luva para ajudar a traçar o tipo ideal do suicídio egoísta, conforme mostrou Besnard em seu livro (tipo meditativo e melancóli­ co, que “se afunda em si mesmo”). Tal é o caso também do apelo a Chateaubriand, cujo René bem ilustra o tipo ideal do suicídio anômico (tipo insaciável, acometido do mal do infinito, não podendo seu desejo imenso ser preenchido por nenhum objeto deste mundo), igual­ mente comentado por Besnard12. E pois com base nessas fontes compósitas e diversificadas que Durkheim monta a base empírica para uma ciência que se quer ela mesma empírica, porém que não pode adiar sua instauração à espera de um dia poder contar com dados homogêneos e fontes mais sólidas. Aliando procedimentos retóricos ou dialéticos às démarches empíricas e estatísticas, o sociólogo terá à sua disposição farto material com que operar e persuadir mentes menos predispostas e pouco favoráveis. E então que o leitor descobrirá que a operação mesma de instaurar a base empírica vai junto com o esforço de traçar a “tipologia” do suicídio, que dela depende e ao mesmo tempo vai além dela, ao nos remeter para os procedimentos de cunho explicativo-interpretativo e, como tais, em sua natureza profunda, dependentes da teoria tout court mais do que da empiria propriamente dita. E é então que o leitor descobrirá 12. Cf. BESNARD, Ph., L ’anomie, op. cit., 106, onde o autor cita Durkheim ao invocar as razões de René a este respeito: “On m ’accuse de passer toujours le but que je puis atteindre: hélas ! je cherche seulement un bien inconnu dont l’instinct me poursuit. Estce ma faute si je trouve partout les bornes, si ce qui est fini n’a pour noi aucune valeur?’’. 228

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que os tipos de suicídio são quatro, organizados dois a dois, ao modo de oposições binárias: de um lado, o suicídio egoísta (no qual o indivíduo se sacrifica a si mesmo, ao se desligar da sociedade e se afundar em si mesmo, qual o Rafael, de Lamartine), fazendo par com o suicídio al­ truísta (em que o indivíduo se suicida em holocausto à sociedade, ao se abandonar a si mesmo e se deixar invadir pela sociedade inteira, qual os velhos das sociedades primitivas e as viúvas da índia depois de per­ derem seus maridos); de outro lado, o suicídio anômico (em que a vítima é o indivíduo insaciável e acometido do mal do infinito, qual o René, de Chateaubriand), fazendo par com o suicídio fatalista (cuja vítima é o indivíduo ou o grupo social exposto à violenta coerção da sociedade e à tirania moral dos algozes, como no suicídio dos escravos ou dos judeus à época dos romanos). Ultrapassada essa etapa descritiva, quando a luz da razão finalmen­ te começa a vencer a opacidade da empiria, Durkheim poderá introdu­ zir os esquemas explicativos e, assim, ir além das descrições sumárias do real (o factum do suicídio como um tipo específico de morte), bem como da tipologia classificatória que decompõe o gênero do suicídio em classes ou espécies (os quatro tipos). Ao chegar aqui, o sentido geral da démarche é identificar a causa (social) do suicídio, que deverá ser buscada e encontrada na própria sociedade e seu sistema de forças. Junto com essa enquête, que põe o sociólogo por inteiro dentro das pa­ tologias sociais, o estudioso do fenômeno do suicídio descobrirá, ao lado das causas, as funções e disfunções das forças sociais, coesivas umas e dissolventes outras. E então que ficará sabendo que uma certa taxa ou um certo volume de suicídio é normal na vida das sociedades — taxa que, de resto, Durkheim nunca revelou ou disse com precisão qual era —, afirmativa que escandalizou seus oponentes e detratores, em cuja origem vamos encontrar uma idéia cara ao sociólogo desde os tempos da D TS. Ou seja: a suposição, na linha da fisiologia de Claude Bernard, de que nos fenômenos sociais, a exemplo dos biológicos, muitas vezes o patológico e o discrepante inundam mais de luz o fenômeno normal e corriqueiro do que o contrário ou o inverso. Muitos estudiosos já se ocuparam antes de nós dos esquemas expli­ cativos acionados por Durkheim no Suicídio. O leitor interessado nesse 229

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assunto poderá se socorrer em Pope, Berthelot, Besnard, Douglas e Baudelot/Establet — alguns deles algo laudatórios (como Berthelot), outros mais críticos (como Douglas). Assim, descobrirá, por exemplo, com Berthelot, o esquema expli­ cativo ampliado de que se serve Durkheim em sua obra famosa, o qual consiste basicamente em associar causa, função (aliviada de todo finalismo) e gênese histórica. Descobrirá ainda, com Berthelot, que a causalidade, a mola-mestra do esquema explicativo durkheimiano, em que pese o fato de ser considerada hoje algo escolástico pela maioria dos sociólogos, tem no fundador da sociologia sua razão de ser, por vir associada ao método das correlações estatísticas, bem como à enquête das leis que governam os fenômenos sociais. Descobrirá em seguida, com Berthelot, Boudon e Baudelot/Esta­ blet, a forma lógico-matemática da causalidade e das correlações a que ela dá lugar. Autores que num esforço de atualização da obra do mestre desvinculam o esquema em questão, modificando-o, do método lógico das variações concomitantes patrocinado pelas Regras e oriundo de S. Mill, em favor do método matemático-estatístico das correlações multivariadas, este, sim, mais palatável, ao gosto de boa parte dos sociólo­ gos do século XX. Forma lógica que não é senão a conhecida relação A (A B )n, ao passo que a forma matemática da lei é a famosa função variável y = f (x)14. Por fim, descobrirá com Baudelot/Establet um sem-número de exemplos extraídos do Suicídio que expressam de diferentes maneiras as leis daquele triste fenômeno, interpretadas as taxas como um con­ junto de variações e regularidades observadas no real empírico e inter­ pretadas as leis newtonianamente como leis-relações entre fenômenos, envolvendo relações de proporção entre variáveis dependentes e inde­ pendentes. Tais regularidades, que podem manter-se constantes, cres­ centes ou decrescentes, serão observadas nas variações regionais do fenômeno do suicídio, nos ritmos sociais (dia e noite), no ciclo das 13. B e r t h e l o t , J.- M , op. cit., 76. 14. Ibid., 84.

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estações, no início e no fim da semana, acrescidas das suas variações e constâncias, em função da idade do suicida, do estado civil, do credo religioso, do sexo e do local de habitação (cidade ou campo, cidades grandes ou pequenas etc.)15. Assim, teremos: 1) idade — quaisquer que sejam o sexo, o estado civil e o lugar de residência, o suicídio cresce com a idade; 2) sexo — quaisquer que sejam a idade, o estado civil e o lugar de residência, o suicídio é maior entre os homens do que entre as mulheres; 3) estado civil — quaisquer que sejam o sexo, a idade e o lugar de residência, o suicídio é menor entre as pessoas casadas do que entre as pessoas solteiras e viúvas; 4) lugar de residência — quaisquer que sejam o sexo, a idade e o estado civil, o suicídio é maior na cidade do que no campo e nas grandes metrópoles do que nas províncias16. Poderíamos acrescentar ainda o credo religioso: quaisquer que sejam a idade, o estado civil, o sexo e o lugar de residência (cidade ou campo), os protestantes suicidam-se mais do que os católicos e os judeus (po­ rém, entre os protestantes, há a dificuldade dos anglicanos, que se sui­ cidam bem menos do que os luteranos e os calvinistas — então, que fazer? recusar que são protestantes? rejeitar a lei simplesmente? ou tomar o caso como contra-exemplo e exceção à regra?). E mais: poderíamos incorporar os chamados coeficientes de agravação e de preservação do indivíduo pró ou contra o suicídio, recobrindo as relações entre um conjunto de taxas já conhecidas, quando ficará estabelecido que o ca­ samento preserva do suicídio, e o divórcio incita a ele. Todas essas regularidades ou leis foram estabelecidas por Durkheim com a ajuda das estatísticas, quando nosso autor se ocupa dos suicídios egoísta e anômico. As outras regularidades, embora não traduzidas em linguagem matemática, serão conhecidas e objetivadas com a ajuda do método histórico, ao se falar do suicídio de mulheres e de velhos nas sociedades primitivas, ou de grupos étnico-religiosos diante de ameaça iminente de povos invasores ou conquistadores. No tocante à estatísti­ ca, que tem a preferência de Durkheim, pode-se dizer que seu método revela-se aqui, como alhures, um poderoso instrumento de objetivação, 15. B a u d e l o t , C h ., E s t a b l e t , R., op. cit., 22-23. 16. Ibid., 29 e 31. 231

O positivism o e a sociologia: Durkheim

e sem ela o sociólogo pouco ou quase nada poderia fazer em seu esfor­ ço de mostrar o liame entre o suicídio e os grupos sociais. Poderia, como acabamos de ver, valer-se do método histórico; porém, a título de suplemento ou de compensação, sendo o ideal dispor das estatísticas, quando as há, ou confeccioná-las, na situação contrária. Porém, o que mostram as estatísticas, com efeito? Tudo, menos a causa do suicídio. Mostram que há uma relação entre o suicídio e tal grupo religioso, tal estado civil, tal sexo, tal idade e tal locus. De modo que, bem pesadas as coisas, se a análise de Durkheim se interrompesse aqui, em nada se distinguiria da de Morselli, e a sociologia seria idêntica à criminalística. Foi o que viu o eminente sociólogo, que, mais do que mostrar as corre­ lações entre suicídio e grupos sociais e suas variações segundo o sexo, a idade e o estado civil, como lhe tinha sugerido Bertillon, que era um criminalista, procurou aprofundar a análise das correlações e inquirir a causa do suicídio. Ora, é exatamente aqui que a estatística revela sua grandeza e sua miséria, sua força (enorme) e sua fraqueza (extrema): simplesmente pode mostrar as correlações, mas não pode apontar as causas. Estas terão de ser inferidas antes da estatística, e mostradas de­ pois mediante a interpretação de seus dados ou resultados. C om efeito, ao perguntar pela causa do suicídio, causa social, Durkheim será forçado, ao responder à pergunta, a introduzir um desnivelamento entre as correlações, e inquirir a força ou potência social que leva alguém a se suicidar. Em linguagem fisicalista, usando o vo­ cabulário das correntes e dos pólos, a força ou, antes, as forças (pois elas são quatro), subjacentes aos quatro tipos de suicídio e pensadas como seu substrato, são um tanto tautologicamente chamadas por ele de força egoísta, altruísta, anômica e fatalista. A dificuldade, já apontada direta­ mente por Aron e indiretamente por Douglas, é que a estatística não tem o poder de mostrar qual é a força e como ela age ao abocanhar o indivíduo e levá-lo ao suicídio. Tal força, como dizíamos, é inferida a partir dos dados estatísticos e interpretada com a ajuda da teoria a eles condizente. Todavia, levando até o fim sua análise, Durkheim vai des­ cobrir, ou antes inferir, a existência de duas hiperforças subjacentes às quatro correntes suicidógenas, a saber: a força regulativa (ou regula­ ção) e a força integrativa (ou integração). Tanto uma como a outra, em 232

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que muitos comentadores vêem uma só (voltaremos a este ponto no último capítulo), seriam em última análise a causa produtora do suicí­ dio, e elas se desdobrariam dicotomicamente duas a duas — a regula­ ção vindo associada às correntes anômica e fatalista, enquanto a inte­ gração encontrando-se ligada às correntes individualista e altruísta. Por isso, se é certo que a linguagem da função variável y = f (x) dá conta do que faz Durkheim ao operar com as estatísticas do suicídio e exibir suas leis (leis-relações), em contrapartida não é menos exato que tal função variável não aponta ou mostra qual é a causa: o x pode ser interpretado em termos de grupo, credo religioso, estado civil e sexo, e também em termos de correntes (4) e forças (2), deixando encavaladas e indefinidas sua natureza e sua distinção. Ao fim e ao cabo, estas deverão ser deci­ didas e postuladas, como viu Douglas, antes da estatística e indepen­ dentemente dela: obra da teoria (interpretação dos dados) e não do método (descrição e explicação dos dados). A idéia de nosso autor, ao que parece, embora nunca a tenha explicitado, é que o terreno das causas e das leis é o domínio do invi­ sível, devendo o cientista esforçar-se por descobrir e mostrar o laço que liga o invisível ao visível, mediante meios muitas vezes indiretos. Tal situação é considerada algo normal e corriqueiro, compartilhado por todas as ciências empíricas, inclusive pela sociologia, que não se distin­ gue em nada da biologia e da física sob este aspecto. Assim, a ação do magnetismo e da força de gravidade é estabelecida por meio de seus efeitos, em física, da mesma forma que a ação da seleção natural e da pressão do ambiente, no terreno da biologia. Igualmente, em sociolo­ gia, a ação (ou falta) das forças integrativa e regulativa é estabelecida por seus efeitos (o suicídio), cabendo à razão remontar dos efeitos às causas e inferir a existência da potência (força) produtora do fenôme­ no. Ora, no tocante à regulação e à integração, cujos conceitos Durk­ heim nunca formulou com clareza, nem muito menos determinou com precisão em que se distinguem quanto às suas funções (apenas é dito que ambas as potências sociais concorrem para assegurar a coesão do todo social), sua função vai ser antes de tudo salvar a sociedade da ameaça de dissolução oriunda do indivíduo, que pode desgarrar e levar tudo de roldão. A integração virá então e integrará o indivíduo ao gru­ 233

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po, protegendo a sociedade. Da mesma forma, a regulação aparecerá e reprimirá as inclinações destruidoras do indivíduo acometido do mal do infinito, submetendo-o ao poder da norma, da vida em comum e das coações da sociedade. Quer dizer: função associativa e horizontal, numa (integração); função repressiva e vertical, noutra (regulação). Nes­ se quadro, se as coisas funcionam bem e há um perfeito equilíbrio entre as correntes, assim como entre as forças, ou não há suicídio algum e as pessoas continuam vivas, ou há uma taxa estável de suicídio e algumas pessoas se matam. Contudo, se as coisas não funcionam bem e as for­ ças junto com as correntes não se coordenam ou não se ajustam, a taxa aumenta e a sociedade sai dos trilhos. Mas como mostrar isso? Por meio de dados obtidos mediante o método estatístico e o método histórico — diria Durkheim. Dessa forma, a démarche do sociólogo consistirá em partir dos da­ dos disponíveis acerca do suicídio e chegar às causas ou forças que o produzem — uns, da ordem do visível (dados); outras, da ordem do invisível (causas). Traduzido em linguagem de funções variáveis, todo o esforço consistirá em reconduzir os fenômenos, uns à variável inde­ pendente (integração e regulação), outros à variável dependente (os diferentes tipos de suicídio). Todavia, o estudioso da sociedade não poderia fazer nada e ficaria completamente paralisado em sua enquête se um fosso separasse a variável dependente da variável independente ou a ordem visível da ordem do invisível, e, portanto, não houvesse nenhum liame ou nenhum indício que permitisse estabelecer a liga­ ção. E justamente nesse ponto que entram em cena as variáveis inter­ mediárias, que vão dar aqueles elos ou elementos que faltavam e assim estabelecer a relação. Esses elos ou variáveis intermediárias, Durkheim os encontrará nos fatores idade, sexo, estado civil, credo religioso e local de habitação, na linha do que tinha feito Bertillon, porém inter­ pretados pelo sociólogo como indicadores seja da integração (presença ou ausência/excesso ou falta), seja da regulação (presença ou ausência/ excesso ou falta). De sorte que é com base nesta referência cruzada entre grupos, estado civil, idade, sexo, credo, local e filhos (existência ou não), que Durkheim poderá estabelecer a grande lei do suicídio que governa as regularidades observadas, ao modo de uma relação de pro­ 234

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porção (lei-relação) expressa em linguagem matemática, segundo o número e a medida: a taxa de suicídio é função de duas variáveis (in­ tegração e regulação) e varia em relação inversa com uma e com outra. No entanto, além da relação inversa, que recobre os suicídios anômico e egoísta, há a proporção direta, atinente aos tipos fatalista e altruísta, referidas nos capítulos precedentes. Assim procedendo, passa-se pois do plano da descrição para o da explicação (causa e função) e deste para o da interpretação (teoria da re­ gulação e da integração). Tal procedimento em três etapas, as quais muitas vezes se sobrepõem e um forte destaque deve ser conferido à interpretação, além da descrição e da explicação, porém que muitos comentadores teimam em aí ver dois elementos (descrição e explica­ ção, esta última abarcando a interpretação), de certo modo já tinha sido estabelecido por Durkheim nas Regras, redigidas mais ou menos contemporaneamente ao Suicídio. E lá, nas Regras, nosso autor deixa claro quanto o trabalho do sociólogo depende da interpretação. Diz ele: “Os resultados aos quais este método conduz devem ser interpreta­ dos. Mas qual é o método que permite obter mecanicamente uma re­ lação de causalidade, sem que os fatos que ele estabelece tenham ne­ cessidade de ser elaborados pelo espírito?”17 Algo parecido vamos en­ contrar no Suicídio, quando Durkheim introduz as idéias de regulação e de integração e faz de ambas a causa por excelência daquele fenôme­ no e a elas associa a idéia de lei, interpretando-a em termos de forças e sistema de forças — qual um newtoniano, nem mais nem menos. Na seqüência apresentaremos um diagrama de Pope, que permitirá ao leitor ter uma visão geral do livro, com a vantagem de o esquema vir associado a aspectos da teoria da morfologia social desenvolvida por Durkheim na D TS. O contraponto do esquema será desenvolvido por nós no capítulo consagrado às dicotomias, assim como no capítulo conclusivo, onde retomaremos Besnard e apresentaremos o dossiê das interpretações do Suicídio, envolvendo as relações entre regulação e in­ tegração, ao pensarmos a fortuna crítica da obra. Eis o esquema de Pope: 17. 223-224.

DURKHEIM, É . Les règles de la méthode socíologique. Paris, Flam m arion, 1988,

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