Entrevista com Bernardo Élis
December 11, 2016 | Author: Elisa Silva Caetano | Category: N/A
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Entrevista de Euler Belém com Bernardo Élis publicado no jornal Opção...
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Edição 2009 de 5 a 11 de janeiro de 2014 Euler de França Belém Entrevista de Bernardo Élis: confidências de um imortal A entrevista do escritor Bernardo Élis Fleury de Campos Curado, goiano de Corumbá, foi publicada na revista “Presença”, editada pela jornalista Consuelo Nasser, em 1991. Mas foi feita no final de 1990. Autor de “Ermos e Gerais” (1944), “O Tronco” (1956), “Veranico de Janeiro” (1966) e “Chegou o Governador” (1987), Bernardo Élis fez uma série de desabafos e, depois, me pediu que cortasse alguns trechos. Chegou a me dizer que, em determinados momentos de sua vida, pensou em se matar. Ele era tímido, mas não fugia de polêmicas e tinha mais cultura do que demonstrava nas conversas. Aprendeu muito com o irlandês James Joyce (autor de “Ulysses”, que o goiano apreciava) — que julgava superior ao francês Marcel Proust e ao alemão Thomas Mann (deliciava-se com o fato de que sua mãe fosse brasileira e tivesse “Silva” como sobrenome) —, mas sabia que sua própria prosa era diferente, mais tradicional. Bernardo — ou Bernardão, como o chamavam alguns amigos — traduzia do inglês e do francês, mas não alardeava a vocação. Era especialista em tupi. A revista “Presença” era Consuelo Nasser, editora brilhante, que, se deixassem, reescrevia até textos de Flaubert (costumava dizer que o editor era um “reformador” de textos). Desde o início das conversas, a jornalista disse ao repórter que queria uma entrevista diferente, menos literária e explorando mais o homem Bernardo. Assim foi feito. Sem omitir o escritor, a alma de Bernardo, o repórter tentou vasculhar a alma do autor do espetacular contista de “Veranico de Janeiro”, espécie de “Sagarana” do Cerrado. Há pouco tempo, numa polêmica, os jornalistas Luiz de Aquino e Jarbas Silva Marques discutiram as relações de Bernardo Élis e o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na entrevista de 1990/1991, o escritor não apenas assume que pertenceu ao PC como conta que foi candidato a deputado pelo partido. Bernardo Élis morreu em 1997, aos 82 anos, de câncer. No próximo ano, em novembro, comemorase o seu centenário de nascimento. Em 1990 e 1991, eu era repórter do “Diário da Manhã”. A ENTREVISTA
Ao completar 75 anos, mais da metade dedicados à vida literária, o escritor supera uma tradicional timidez e, pela primeira vez, faz revelações íntimas à “Presença” sobre sua carreira, seus conflitos familiares, suas alegrias e frustrações, suas vitórias e derrotas. E acrescenta um desabafo contundente: “Não gostaria de ter nascido escritor em Goiás”. [Ele morou algum tempo no Rio de Janeiro.] E revela que traduziu livros do francês e do inglês. A jornalista Consuelo Nasser, diretora de Jornalismo da Presença, marcou a entrevista para as 11horas. Do dia 14 de dezembro passado. Telefonou antes, confirmando a entrevista, e chegamos à casa (no Jardim América) do escritor Bernardo Élis às 11h40. Vestido numa calça social clara e numa camisa azul de mangas compridas, Bernardo Élis nos recebeu numa sala pequena mas confortável, decorada com vários quadros. Bernardo Élis colocou os óculos e começou a conversar com a jornalista Consuelo Nasser sobre
vários assuntos, entre eles, o conservadorismo do homem goiano. Notei que ele estava lendo “Lês Chemins de la Beauaté”, do cirurgião plástico e “imortal” Ivo Pitanguy. Abri o livro, discretamente, e vi que estava dedicado “ao amigo” Bernardo Élis. Pitanguy sabe que Bernardo Élis adora ler em francês. Logo depois, às 11h55, a jornalista Consuelo Nasser deixou eu e Bernardo Élis sozinhos. E ele me convidou para ir até a sua biblioteca, que deve ter cerca de 5 mil livros. A biblioteca é mais ou menos organizada e alguns livros estavam molhados. “É a chuva”, explicou o escritor. Tranquilo, bom conversador, abertíssimo ao diálogo, Bernardo Élis disse: “Estou pronto. Podemos começar a gravação”. Antes de gravar, conversamos um pouco sobre os ataques que ele sofreu do também “imortal” Josué Montello. Para este, Juscelino Kubitschek não foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em outubro de 1975 porque um grupo de militares, liderado pelo general Golbery do Couto e Silva e pelo acadêmico (também general) Aurélio de Lyra Tavares (autor de poemas com o pseudônimo de Adelita), teria pressionado alguns “imortais”. Montello recebeu várias críticas, inclusive do acadêmico e poeta Lêdo Ivo, amigo de Bernardo Élis e um intelectual lúcido. Bernardo Élis não quis conversar muito sobre o assunto. “Não me senti atingido. Ganhei por mérito”, frisou. Uma ponta de tristeza passou pelos olhos do escritor quando me disse que um escritor goiano ficou contra ele a respeito do ataque rasteiro de Josué Montello. “Mas deixa para lá”, resigna-se. O que impressiona em Bernardo Élis é a extrema facilidade com que se lembra dos fatos da infância. Fala sempre do pai, o poeta Erico José Curado, e da mãe, Marieta Fleury Curado, que morreu recentemente, aos 95 anos, com muito carinho, mesmo quando aponta as idiossincrasias do primeiro. Aos 75 anos, o espigado e alto (tem 1,82m e 74 quilos) escritor Bernardo Élis ainda tem saúde para discutir ideias, literatura. Mas admite que a sua “saúde anda combalida”. “Se faço qualquer esforço físico ou mental, fico cansado. Só pode ser velhice. Mas, felizmente, não estou caduco. Meu coração está normal. Ando muito de manhã. ‘Se tenho algum problema?’ Tenho insônia, muita, e dores musculares.” De manhã, além de andar, Bernardo Élis escreve. Das 9 às 13h. À tarde, pesquisa, lê jornais e livros ou sai para resolver “pequenos problemas”. O escritor diz que está lendo menos, mas que procura se manter atualizado. Durante a entrevista, na biblioteca, Bernardo Élis mostrou-me uma enciclopédia que foi de seu pai. Ele, Bernardo, começou a aprender francês lendo a enciclopédia. Sua mulher, a professora, escultora e pintora Maria Carmelita Fleury Curado, participou da entrevista durante alguns momentos. Primeiro, ela defendeu que Freud hoje é mais lido que Marx e, depois, lembrou Bernardo Élis de que ele também sabe tupi. Bernardo disse: “Ia me esquecendo. É o preconceito”. Maria Carmelita ainda discutiu outro assunto: “Alguns jornalistas goianos acham que Bernardo era pobrezinho quando criança. Isso não é verdade. Ele vivia em Corumbá num ambiente aristocrático, lendo revistas francesas”. O autor do romance “O Tronco” completou: “Certo. Mas a minha família mesmo não era rica”. A entrevista terminou às 14h30 e Bernardo só não falou mais porque precisava “resolver uns problemas no centro de Goiânia”. O escritor é um excelente papo e responde todas as perguntas com exatidão e interesse. Liguei para Bernardo Élis no dia 7 de janeiro, numa segunda-feira, para checar algumas informações e para que pudesse corrigir outras. Bernardo Élis informa que está escrevendo um
trabalho literário que chama de “Trigédia”. “Valendo do meu temperamento trágico, estou escrevendo três tragédias, ou melhor ainda, estou nos apontamentos. Elas tratam de fatos acontecidos nos últimos 50 anos. Escrevo sobre o sentimento de culpa, o complexo de Édipo.” Além disso, o autor de “Veranico de Janeiro” escreve crônicas e artigos para o “Diário da Manhã” e para uma revista de Brasília. Bernardo Élis não está só escrevendo. No momento, está interessado em ler uma biografia do Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo. Pombal expulsou os jesuítas do Brasil em 1760) escrita por Agustina Bessa-Luís (Editora Nova Fronteira, 294 páginas, Cr$ 2.070,00), famosa escritora portuguesa. Informei a ele que há também uma edição portuguesa nas livrarias de Goiânia e ele ligou ao Paulo Araújo, da Livraria Cultura Goiana. Bernardo Élis adora ler sobre Pombal. Por quê? “Pombal deu golpes profundos na mentalidade feudal de Portugal. Era um iluminista, ou melhor ainda, um déspota super esclarecido.” Dá para viver de literatura? “De jeito nenhum. Recebo 60 mil cruzeiros por mês das duas aposentadorias da Escola Técnica Federal e da Universidade Federal de Goiás (UFG), de onde fui demitido pela ditadura civil-militar.” Bernardo Élis gosta de falar sobre sua mulher — a dinâmica e arrojada Maria Carmelita. “É uma pessoa muito preparada: foi professora, é pintora e escultora. Ela desenhou a casa onde moramos” (trata-se de uma espécie de palacinho charmoso e criativo, distinto das demais residências do bairro). Maria Carmelita foi freira e morou na França e nos Estados Unidos. É uma pessoa bem informada. Depois de falar da mulher, que adora, Bernardo Élis volta a discutir sobrevivência e literatura. “O Jorge Amado me confessou que seus primeiros 15 livros não deram dinheiro. Ele era sustentado pelo pai, que era muito rico. Só mais tarde, é que houve retorno.” A entrevista, exclusiva, trata de vários outros assuntos, inclusive da fase stalinista do escritor e do seu pavor de ter fome. Aos 75 anos, o sr. tem resposta para a pergunta “o que é a vida”? Bernardo Élis — Não sei. Olhando para trás, pelo ângulo existencialista, observo que a vida é uma grande inutilidade. Herdei um pouco o pessimismo paterno. Pode até existir vidas úteis, mas úteis em que sentido? Úteis no sentido de se construir um palácio, de se fazer uma obra de arte? Mas, para a humanidade, isso tem importância? O que é importante para a humanidade é também para o indivíduo? Não creio que a pessoa se sinta realizada com o trabalho que desempenha... O seu pai gostava do escritor irlandês Oscar Wilde, que foi preso acusado de manter relações homossexuais com o menor Alfred Douglas, um nobre. Homem nascido no século 19, Erico Curado não ficava constrangido de ler um autor homossexual? Bernardo Élis — Meu pai era roceiro, mas viajou muito. Acho que não percebia o lado pederasta do Oscar Wilde. Achava encantador no Wilde a sua superioridade, o fato de não se curvar às necessidades humanas. Wilde se achava um Deus, soberbo, irônico, livre de tudo. Para ele, a vida não valia nada. Se pudesse optar, seria novamente escritor? Bernardo Élis — Não seria escritor. Ou, mais precisamente, não seria escritor em Goiás. É profundamente inútil escrever em locais atrasados. Não creio que a pessoa que nasça e cresça aqui possa se tornar um escritor de visão universal. As pessoas que nascem nos grandes centros têm chance de ter uma visão cosmopolita, pois há maior acesso às informações, a convivência é muito melhor, os estudos são mais aprofundados.
Há alguma cidade do mundo onde o sr. gostaria de ter nascido? Bernardo Élis — Sim, em Londres, uma cidade cosmopolita. No início, achava que a literatura poderia tornar os homens mais progressistas. Minha literatura defendia isso. Hoje, não tenho mais tais pretensões. Felizmente, não caí num proselitismo muito forte. O sr. é uma pessoa vitoriosa numa região onde predominam nulidades e invejosos. Como se relaciona com isso? Bernardo Élis — Tenho que reconhecer que sou uma pessoa vitoriosa, mas, no fundo, não me acho tão vitorioso. Acho que perdi muito tempo. Tinha condições de fazer uma obra melhor. O sr. acha que devia ter se mudado de Goiás para um centro mais desenvolvido? Bernardo Élis — Perfeitamente. São Paulo seria a cidade escolhida? Bernardo Élis — Hoje, talvez seja mais fácil a pessoa ficar aqui e ter relacionamento com o mundo todo, porque já existem meios de comunicação. Mas ainda há um certo isolamento. Veja que Goiânia não se comunica com Brasília. O goiano tem medo de Brasília, e por isso a critica. O meu grande sonho era morar no Rio de Janeiro, mas hoje São Paulo é mais cosmopolita. Qual a profissão que mais o fascinava quando criança? Bernardo Élis — Corumbá, quando eu tinha cinco anos, era uma cidade muito atrasada, não havia calçamento nas ruas nem iluminação pública. Na casa do meu avô paterno é que havia um lampião a querosene. Não havia mercado e carne era um produto raro. Na casa de meu pai não havia gado. A gente comprava carne do matadouro da cidade. O matadouro funcionava de 15 em 15 dias ou de mês em mês. Matava-se uma vaca e fazia-se um pregão. À noite, o camarada que matava a vaca chamava os meninos treinados e eles punham o chapéu na cabeça e saíam gritando: “Amanhã tem carne seca muito boa na casa do Zé Rufino! O quilo custa tantos réis”. [Bernardo relembra a infância, para um pouco e ri da história.] Meu pai saía na janela, na escuridão, e perguntava: “Ei, menino, na casa de quem é?” O menino respondia: “Na casa do Zé Rufino”. Encantado, pedi ao meu pai que ele me desse um chapéu para eu poder sair cantando pelas ruas. Meu pai disse que ia me dar o chapéu para eu anunciar a chegada de carne na cidade. Minha vocação era para ser pregoeiro. [Risos] Foi um menino precoce? Bernardo Élis — Não. Fui normal. Qual é o retrato de Bernardo Élis quando jovem? Foi um grande conquistador? Bernardo Élis — [Risos] Vou te dizer uma coisa engraçada: até os meus 15 anos, era até desinibido. Tive várias namoradas. Preferia a companhia das meninas. Mas a partir dos 15 anos, no período da puberdade, com a manifestação da sexualidade e devido a minha educação ser muito severa, marcada pela religiosidade, entendi que sexo era pecado. A simples aproximação de uma mulher me deixava corado. Isso era uma desgraça [Bernardo ri muito ao falar disso e lembra os fatos sem muito esforço]. Por não querer ficar vermelho, evitava me aproximar delas. Uma vez, na Cidade de Goiás, fui encarregado de convidar as pessoas para um baile. Tinha uma moça, muito bonita e eu tinha vontade de namorá-la. Bati na porta da casa dela, que saiu para atender. A moça havia acabado de sair do banho, estava cheirando a sabonete, o cabelo meio escorrido, com uma roupa leve. Aquilo me deu um choque, fiquei pasmo, vermelho, gago e saí correndo. Foi um fracasso horroroso. Essa timidez marcou minha juventude. Como resolveu sua timidez com as mulheres? Bernardo Élis — Passei a ter muito contato com as mulheres de vida livre. Na década de 30, o
dinheiro era muito difícil e eu não podia frequentar a prostituição rica. Fazia sucesso com as prostitutas pobres. Havia doença venérea? Bernardo Élis — Demais. Contraiu doença venérea? Bernardo Élis — Eu sempre tive estreitamento de uretra. Os médicos me diziam: “Não pegue gonorreia. Se pegar, vai ser difícil tratar” [risos]. Eu tinha um medo pavoroso de gonorreia e, por isso, usava preservativos. Nunca tive doença venérea. Usava camisinha? Bernardo Élis — Usava. Elas eram mais grossas. Havia uma bisnaga de estanho, muito usada na minha juventude, para ser injetada na uretra. Ela defendia o organismo da penetração de bactérias. Evitava, sobretudo, a gonorreia. No meu tempo de jovem, a repressão sexual era intensa. Quase todo mundo idealiza o passado e critica a “libertinagem” do presente. O jornalista Paulo Francis diz que em 1950, no Rio de Janeiro, o pessoal transava muito e usava cocaína. Na sua época de rapaz, a repressão sexual era feroz, mulher tinha de se casar virgem? Bernardo Élis — Em Goiás havia muito recato em termos de sexo. A maioria das mulheres se casava virgem. E as drogas? Bernardo Élis — Não havia drogas em Goiás. O pessoal fumava (cigarro) e bebia. Mesmo as rodas que frequentei no Rio de Janeiro não usavam drogas. E ninguém tinha dinheiro. Conseguir uma mulher cara era difícil, sobretudo para mim, que nunca fui um homem bonito. O sr. se achava feio? Bernardo Élis — Até que não, mas me achava meio gauche, desconchavado. Nunca fui Dom Juan. O que acha do casamento tradicional? Bernardo Élis — Não sou contra. O casamento é uma coisa boa. Saí do primeiro casamento e, em menos de um ano, me casei de novo. O sr. se casou a primeira vez com quantos anos? Bernardo Élis — Com 27 anos. Só a compreensão faz um casamento durar. Mas voltando a falar das doenças venéreas, a sífilis, na minha época de jovem, matava ou estragava a pessoa. Acho os motéis uma coisa formidável: tanto por causa da higiene como pelo fato de que lá a noção de pecado desaparece ou arrefece. O que estraga uma relação estável? Bernardo Élis — Em Goiás há muita intolerância. Os homens são machistas e as mulheres, castradoras. Mas o que acho formidável é um casal conseguir conviver durante 35 anos. Eu fui casado durante 35 anos. Como foi o casamento de 35 anos? Bernardo Élis — Conviver bem exige muito equilibrismo. Estou casado pela segunda vez há dez anos. Qual a sua maior obsessão? Bernardo Élis — Fome. A fome sempre me horrorizou. O meu medo de ter fome é tão grande que
antigamente, quando viajava de avião, levava comigo um pacote de bolacha. Tinha receio de o avião cair e eu ficar passando fome. Quando menino, tive uma fome canina. A fome era tanta que me dava cegueira e eu desmaiava. Eu era um menino muito tímido e tinha medo de pedir as coisas. Até hoje conservo o medo de passar fome. Minha timidez é genética: o meu pai, Erico, era tímido De onde vem a sua timidez? Bernardo Élis — Tenho estudado muito sobre a timidez. Tenho encontrado livros horrorosos e interessantes sobre o assunto. Um muito bom é do Cândido Mota Filho, que é avô do Nelson Motta (ex-marido da atriz Marília Pêra). Ele é um grande tímido. Sempre procurei combater minha timidez. Toda vitória minha representa uma dupla vitória: contra mim e contra o ambiente. E a origem da timidez? Bernardo Élis — Minha timidez um pouco é genética: meu pai era tímido. Não gosto de dizer não para as pessoas e isso tem me trazido grandes complicações. Quis criar os meus filhos de forma diferente. Mas não deu muitos resultados. Há o aspecto genético e o de formação. Meu pai era uma pessoa culta mas tímida. Era profundamente crítico, irônico — e isso me intimidava. Uma vez, vi um filme, onde aparecia Dom Quixote (só li o livro aos 22 anos) queimando livros e a imagem me emocionou. Cheguei em casa e falei para meu pai, que riu e disse uma piada. Aquilo me causou uma profunda impressão: eu me senti ofendido com a piada. Eu não tinha idade para compreender certas coisas que ele dizia. Como foi a presença de seus pais na sua vida? Bernardo Élis — Marcante, mas não decisiva. Vivi muito tempo fora da casa deles. Só fui “conhecer” minha mãe quando eu tinha quase 60 anos, pois, quando me separei da minha primeira mulher, voltei a morar na casa dela. Foi sua mãe quem o alfabetizou? Bernardo Élis — Sim. Meu pai não tinha paciência. Minha mãe era sensível, mas desembaraçada. Tinha condições de interferir no mundo. O tímido não interfere no mundo. Minha mãe sabia discordar das coisas. Seu pai e sua mãe leram suas obras? Bernardo Élis — Só me senti à vontade com meu pai mais ou menos quando eu tinha 18 anos. Numa noite de Natal, todos foram para a missa, menos ele e eu. Quando cheguei da rua, meu pai estava lendo e começamos a conversar sobre literatura. Para mim, foi um encanto, porque ninguém nunca havia falado sobre literatura com tanta propriedade quanto ele falou, embora eu já estivesse no terceiro ou quarto ano do Lyceu. Ele leu sua obra? Bernardo Élis — Meu pai deve ter lido minha obra, mas nunca deu opinião. Quando eu tinha 11 anos, ele mandou que eu escrevesse um trabalho literário e escrevi plagiando um conto do Afonso Arinos. Ele leu aquilo com espírito crítico, e isso me confundiu e me amargurou. Só me lembro de meu pai ter me elogiado numa ocasião em que escrevi um poema chamado “Aranhol”, mais ou menos conservador, mas ele disse: “Tá bom, tá bem feito”. Nunca falou mais nada sobre meus trabalhos. E sua mãe? Bernardo Élis — Minha mãe leu os primeiros contos que escrevi, talvez um deles tenha sido “A Morte Por Tabela”. Ela disse: “Sua literatura tá muito cheia de sangue, tá muito criminosa, muito maldosa”. Não disse mais nada.
Meus três filhos moram fora de Goiás e escrevem contos Como é o seu relacionamento com os filhos? O que eles fazem? Bernardo Élis — Tenho três filhos, todos homens. O primeiro, José Semião, nasceu em 1946; o segundo, Silas, em 1948; o último, Ivo, em 1953. O Semião é formado em ciências econômicas e é o chefe do departamento encarregado de instalar parques industriais no Rio de Janeiro. O Ivo é médico oftalmologista, com clínica própria em São Paulo. O Silas trabalha com rádio e televisão em Nova York, Estados Unidos. Tive contato com eles quando eram meninos. Contava histórias para os três e os levava para todos os lugares aonde ia. Tenho muita saudade do tempo em que eles eram meninos. Mas tiveram que sair logo de Goiás, pois aqui havia uma certa marcação política contra mim e isso refletia neles. Não podendo sair, preferi que eles saíssem. Os três saíram muito cedo de Goiás. Não tive maiores contatos com eles a partir de então. Não sou muito sentimental ou então procuro evitar o sentimentalismo, talvez porque, no fundo, eu seja sentimental. Procuro evitar relacionamento para não sentir dores. Em virtude disso, eles se mantêm um pouco distantes de mim. No meu aniversário, o Ivo veio me cumprimentar e trouxe presente. Eles me escrevem e telefonam, sempre. O mais ausente é o Silas, que é o mais sensível e tem temperamento parecido com o meu. Algum deles fez ou faz literatura? Bernardo Élis — Todos escrevem. O Semião tem contos muito bons. O Ivo muito cedo escreveu um livro junto com a filha do Bariani Ortêncio. O livro tem duas faces. De um lado, era “O Morto que Voava”. Do outro, de meu filho, chamava-se: “Estórias do Cerrado”. O título é muito interessante e até hoje ninguém o colocou em livro. São pequenos contos, ou melhor, fábulas. O Silas também escreveu contos, aqui mesmo ele publicou um conto interessante, meio fantástico, sobre um telefone que começa a falar por conta própria. O sr. foi filiado ao Partido Comunista. Como era a convivência no Partido? Bernardo Élis — A minha ligação com o Partido Comunista foi até bastante íntima. Cheguei a ser filiado, disputei duas cadeiras pelo PC para deputado federal e estadual, em 1945 e 1946, respectivamente. Perdi. Naquela ocasião, eu havia publicado um livro, estava me formando em Direito e tinha muito prestígio. Achei que, mesmo que não me elegesse, conseguiria arrastar muitos votos para o Partido. Fiquei em quarto lugar entre os candidatos comunistas. Sua experiência como comunista foi proveitosa? Bernardo Élis — Confesso que, para mim, o Partido Comunista foi uma grande escola. Falo do Partido Comunista com o maior respeito. Havia pessoas muito boas, de grande valor no PC. Qual era sua função no PC? Bernardo Élis — Como militante, frequentei reuniões, escrevia relatórios, fazia parte de comissões, participei do grupo que fazia propaganda eleitoral, andei em cima de caminhões com faixa, fazia inscrições nas ruas. Fui um militante fiel e dedicado. Depois, passei a ter uma militância menor. Mas sempre fiquei com a parte de propaganda e agitação. Fui stalinista mas consegui escapar da literatura engajada O que provocou sua saída do PC? Bernardo Élis — O Partido Comunista foi uma escola para mim, porque fui criado dentro de um regime católico fechado, no qual o pecado era lembrado constantemente. Por intermédio do marxismo, da literatura materialista, pude me livrar do temor do pecado. Antes, eu tinha a preocupação de ganhar o céu. Ganhei liberdade. Mas quando e por que o sr. deixou o PC?
Bernardo Élis — O Partido ficou na ilegalidade e ficou difícil a militância. Eu era casado, tinha filhos e sou um pequeno burguês (Bernardo ri ao dizer-se pequeno burguês). O sr. foi stalinista? Bernardo Élis — Fui stalinista, porque naquela ocasião [década de 40] não tinha como não ser. Nesse período, escrevi um romance, “A Terra e as Carabinas”, que mostrava o dia-a-dia do Partido em Goiás. Os comunistas acreditavam que podiam tomar o poder e queriam derrubar o governo federal. O famoso stalinista Diógenes Arruda chegou a “empurrar” o poeta Carlos Drummond de Andrade para que este modificasse um escrito, para torná-lo engajado. Rachel de Queiroz foi expulsa do PC como trotskista. O PC tentou influenciar sua obra? Bernardo Élis — Não. O meu contato em São Paulo e no Rio foi com grupos mais abertos. Mantive contatos com [o jornalista, escritor e tradutor] Moacir Werneck de Castro, [o escritor e tradutor] James Amado [irmão do escritor Jorge Amado] e [o ator e dramaturgo] Gianfrancesco Guarnieri. O relatório de Kruschev, em 1956, denunciando os crimes de Stálin, o abalou? Bernardo Élis — Eu já estava afastado do PC. Deixei o PC mais ou menos em 1954. Passei a ser apenas simpatizante. O que levou o sr. a romper com o PC? Bernardo Élis — Eu não concordava muito com as autocríticas, achava que elas eram hipócritas. Como eram as autocríticas? Bernardo Élis — A pessoa era obrigada a fazer autocrítica. Os militantes exageravam; mesmo quem estivesse certo, não tendo errado em nada, era obrigado a fazer autocrítica. O pior é que, naquele tempo, a gente concordava com o centralismo democrático, que é, na verdade, uma ditadura. Até há pouco tempo eu ainda defendia a ditadura do proletariado, embora não estivesse mais militando. Lia todos os documentos do PC e me julgo a pessoa mais informada em todo o Centro-Oeste a respeito do assunto. Gosto de Marx e de Freud. Mas Freud é mais atual que Marx Quem mandava no PC em Goiás? Bernardo Élis — O mandachuva era o Abraão Isaac. Alberto Xavier também tinha liderança. O sr. prefere Marx ou Freud? Bernardo Élis — (risos) Sempre me debati entre os dois. O marxismo ortodoxo combate Freud. O marxismo acha que o problema fundamental é o social. Freud pensava que, libertado dos demônios interiores, o indivíduo estava livre. Marx e Freud não são incompatíveis. Há autores, como Eric Fromm e Herbert Marcuse, que combinam as duas teorias. Quem permanece “vivo”: Marx ou Freud? Bernardo Élis — Freud é mais atual, porque há uma retomada do misticismo; Deus está na moda. Como a psicanálise lida com aspectos subjetivos, Freud está mais em moda. O fracasso do Leste europeu é resultado do fracasso do marxismo? Bernardo Élis — O marxismo fracassou em parte. Votei em Collor no segundo turno. Em Goiás, votei em Iris Rezende O sr. votou no segundo turno para Fernando Collor ou para Lula? Bernardo Élis — Collor. Votaria no Brizola, se tivessem ficado Collor e Brizola. No primeiro turno,
votei no Brizola. Em Goiás, o sr. votou em Iris Rezende ou Paulo Roberto Cunha? Bernardo Élis — Iris. Votei em Kleber Adorno para deputado estadual e no Fernando Cunha, para federal. O sr. concorda com a tese do Franklin de Oliveira de que “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, bloqueou a literatura regional? O crítico literário diz que só “O Tronco” escapa do bloqueio. Bernardo Élis — Franklin de Oliveira é grande entusiasta de “Grande Sertão: Veredas”. O trabalho dele, que saiu numa coleção organizada pelo Afrânio Coutinho, é um enaltecimento fabuloso ao romance. “Grande Sertão: Veredas” desmoralizou a literatura regionalista na base de relatório. Mas acho que, se Guimarães Rosa bagunçou o coreto, não chegou a firmar posições. Não criou escola, porque é impossível imitá-lo. Guimarães Rosa é o Joyce brasileiro? Bernardo Élis — É parecido com James Joyce, embora ele não crie tantas palavras como Joyce criou. Guimarães Rosa não “deturpa” palavras, ele as recupera. O jogo dele em geral é não fazer concordâncias populares — como “a gente fomos”, em vez de a gente foi. A literatura dele é bastante sensível. Os contos são encantadores, por exemplo, “Noites no Sertão”, em que um coronel está mais ou menos apaixonado pela nora. Mas é sutil. Gosto mais do contista de “Corpo de Baile” do que do Guimarães Rosa romancista. Guimarães Rosa era pródigo nos elogias à sua obra. O sr. manteve contato com ele? Um contato muito superficial, porque o Guimarães Rosa era muito cauteloso nas coisas dele, era muito... assim... sutil, muito precavido, e eu, tímido. Então, era difícil haver um contato mais profundo. Mas nas vezes em que estive com ele, achei interessante. Ele mostrou sobretudo muita sabedoria. Guimarães Rosa me disse que conhecia minha obra e comentou: “Gostei muito daquele conto seu, ‘Pai Norato’. Achei interessante aquele mito de que o ato sexual enfraquece os poderes espirituais”. Guimarães tinha uma memória prodigiosa. Tem razão o Alaor Barbosa quando o chamou de “vaqueiro eletrônico”. Conversando comigo, Guimarães Rosa citou o nome de um passarinho que em cada Estado tinha um nome e em Minas Gerais tinha vários nomes. “É o caso das cobras. Você diz lá em sua obra que uma boipeba (ou boipeva) é venenosa e, em Minas, a boipeba não é venenosa.” Eu lhe disse então que na ocasião que escrevi o conto não sabia que a boipeba não era venenosa. O que me horrorizou na boipeba foi o nome dela. Não sei se a indagação de Guimarães Rosa foi delicadeza ou ironia. Renan e um autor espírita exerceram influência sobre mim Qual a literatura que mais o influenciou? Qual autor que julga decisivo na concepção de sua obra e até hoje o senhor gosta e relê? Bernardo Élis — É curioso, mas eu não tive muitas obras à mão na minha formação. Li muitas antologias, talvez venha daí minha preferência por contos, matéria mais curta. Li Hugo de Carvalho Ramos [autor de “Tropas e Boiadas”] aos 17 anos, em 1932. Foi o [o escritor] José [J.] Veiga quem me emprestou o livro. Machado de Assis eu li, mas numa idade muito tenra e ele não me agradou. Tive uma birra com Machado até muito tarde. Li muito José de Alencar, Bernardo Guimarães. Depois, li Oswald de Andrade, Mário de Andrade, o francês Guy de Maupassant e Eça de Queiroz. Monteiro Lobato li tardiamente. Mas há uma influência marcante de algum escritor? Bernardo Élis — No começo, peguei um livro de contos de Anatole France (o livro era do meu pai) e quis imitá-lo. Mas não consegui, porque Anatole joga, sobretudo, com o poderio da sua alta
cultura clássica. Aí me caiu nas mãos um livro interessante de Ernest Renan (1823-1892) — “Souvenirs d'Enfance et de Jeunesse” (“Recordações da Infância e da Juventude”). Não sei como o livro caiu nas minhas mãos, mas me influenciou muito, porque eu achei muita sinceridade nele. Flaubert, só li mais tarde. Algum outro escritor influenciou sua literatura? Bernardo Élis — Outro escritor, de terceira categoria, exerceu grande influência sobre mim: trata-se de João de Minas, cujo nome verdadeiro é Ariosto Palombo (1896-1984). Era um escritor espírita, mas irônico e de muito humor negro. Li “Mulheres e Monstros”, “Em Farras com o Demônio” e “Nos Mistérios Subterrâneos de São Paulo”. Agora estão rememorando João de Minas e já fizeram entrevista comigo. Está sendo levada ao palco uma peça sobre ele. O que mais me impressionou no João de Minas foi o profundo conhecimento que ele tinha da vida do roceiro, da psicologia do roceiro. Ele enaltecia o roceiro, mas também examinava o seu lado ridículo. Depois do João de Minas, me caíram nas mãos os escritores modernos. Tive contato com José Américo [autor de “A Bagaceira”], que teve muita influência sobre mim, José Lins do Rego. Jorge Amado não teve muita influência porque a polícia proibiu a edição de suas obras. Li Jorge Amado tardiamente. Li pouca coisa de Rachel de Queiroz. O concretismo tem algum valor? Bernardo Élis — Sempre fui curioso a respeito dos movimentos renovadores. O concretismo aprofunda o modernismo. Os autores concretistas [Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari] conseguiram fazer uma literatura rápida, de acordo com os tempos modernos, aproveitando os problemas atuais. O concretismo deixou um lastro bom. Deu maior liberdade ao estilo, inclusive lutando contra o próprio estilo, achando que o estilo não deve existir. A narrativa solta, sem pontuação, é uma conquista interessante. Que leitura o sr. faz das obras de Marcel Proust, James Joyce e Thomas Mann? Bernardo Élis — Conheço bem a literatura de Joyce. Só Joyce poderia ter escrito “Ulysses”. É um escritor importante porque aborda todos os gêneros e faz uma literatura sobretudo baseada no inconsciente, na associação livre de ideias. É o caminho pelo qual se conduz a literatura atual, que é muito subjetiva. Joyce inovou a literatura. Proust, conheço menos e acho muito tumultuado, não me agrada. Mann não tem muita modernidade, exceto em algumas ideias que defende. Mann segue a forma tradicional de narrar. Qual um livro de outro autor que o sr. gostaria de ter escrito? Bernardo Élis — Pode parecer ignorância minha, mas um livro que acho encantador, que leio sempre, é “O Livro de San Michele”, do escritor sueco Axel Munthe [1857-1949]. É uma espécie de reportagem em que ele mistura o real com o imaginário. Gostaria muito de ter escrito o livro de Munthe. Outro livro que eu gostaria de ter escrito é “Madame Bovary”, de Flaubert. Gostaria de ter escrito “Barrabás”, do sueco Par Lagerkvist. “As Lesmas, de Heleno Godoy, é um livro admirável” Qual o livro mais bem realizado de um autor goiano? Bernardo Élis — No sei se o melhor realizado, mas um livro importante, bom, é “As Lesmas”, do Heleno Godoy. O autor consegue uma economia muito grande de descrições, de recriação por meio do uso de pronomes, ou então, através apenas das pessoas verbais. Ele consegue com essa alternância, usando várias pessoas gramaticais na mesma frase, indicar quem está falando e quem está ouvindo. A cena do suicídio caracteriza bem a literatura moderna. O sr. desistiu de ser poeta? Bernardo Élis — Não desisti da poesia, mas não me julgo poeta. A minha poesia, desde o começo, é
prosaica. Fazia poesia porque estava em moda fazer poesia. Tenho dificuldades em certos aprofundamentos subjetivos. Há alguma falha em livro seu que os críticos não notaram ou algum aspecto que eles geralmente não percebem? João Cabral de Melo Neto diz que os críticos não notam na sua poesia o humor e a ironia. Bernardo Élis — A minha literatura tem humor e ironia — e esses aspectos não são muito considerados. Há também muito de subjetivismo, embora a minha literatura seja objetiva, não usando muito dos truques da literatura subjetivista. Mas minha literatura remete ao subjetivo. Tem a ver com autobiografia? Bernardo Élis — Não. Nunca construí um personagem me tomando como modelo. Do ponto de vista formal, qual o seu livro mais bem realizado? Bernardo Élis — “Veranico de Janeiro”. Aproveito bem o coloquial goiano no texto. O sr. reescreveria algum livro seu hoje porque mudou de ideia sobre algum aspecto? Bernardo Élis — Não. Somente reescreveria alguns capítulos, porque ficaram mal escritos, do romance “A Terra e as Carabinas”. Não é porque eu pense diferente. Pensa em escrever memórias? Bernardo Élis — Não. A minha vida é padronizada, não sou homem de aventuras. O sr. escreve à mão ou direto à máquina? Bernardo Élis — Escrevo à mão, até bilhete, e tenho que escrever mais de uma vez. O último romance, “Chegou o Governador”, ficou em cinco versões. Primeiro, eu escrevo e tomo notas. Quando fui escrever “Chegou o Governador”, fiz até um dicionário, pegando todos os vultos daquele período em que ele viveu. Aí armou-se a história que seria baseada em observação de SaintHilaire. Depois, comecei a escrever o livro capítulo por capítulo. Escrevi três vezes à mão e, em seguida, bati à máquina e, feitas as correções, mandei bater de novo. Alguns de seus críticos dizem que o sr. é um produto da mídia. Como recebe esse tipo de crítica? Bernardo Élis — Não tenho profundidade para julgar bem isso. Tenho uma vida literária longa, talvez uma das mais longas do país. Estou com 75 anos e escrevo desde os meus 15 anos. Três gerações estão seguindo o meu trabalho. Quando eu comecei a escrever, sobretudo aqui em Goiás, mas também no restante do Brasil, eram poucas as pessoas que escreviam. Escrevendo, pude atingir todo o mercado livreiro do país. Hoje, não consigo fazer isso nem em Goiás. As críticas às suas obras deixam o sr. irritado? Bernardo Élis — Até que eu não sou muito agredido e não há muita crítica sobre mim. Sou um espírito bastante amplo, mas não tomo conhecimento das críticas veladas. Embora tímido, tenho certeza dos defeitos e de algumas qualidades que possuo. A crítica negativa, muito rara, não me atinge. O sr. se lembra de alguma crítica dura ou desonesta feita à sua literatura? Bernardo Élis — No campo da literatura, não houve nenhuma crítica contundente.
O deputado Moura, do PT, me criticou; ele sequer me conhece E fora da literatura, que tipo de crítica lhe fizeram? Bernardo Élis — No episódio da invasão de minhas terras, alguns idiotas fizeram acusações contra mim. Mas dadas às origens das acusações, não dei muita importância. Partiram de pessoas ignorantes e fanáticas. São pessoas ligadas ao PT? Bernardo Élis — São. Eu sei que o deputado Antônio Carlos Moura fez referências agressivas à minha pessoa. Eu nem o conheço. Ele é do PT. Mas outras pessoas sérias do PT não me acusaram. É possível afirmar que a crítica requereu falência? Há algum tempo, escreviam nos jornais críticos do porte de Antonio Candido, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux. Bernardo Élis — Eu atribuo a falência da crítica às universidades. Elas centralizaram o pensamento literário. A literatura também se transformou em mercadoria. Antes os críticos escreviam os artigos analisando as obras, e eram um fator de estímulo à leitura. Hoje, a capacidade de análise decaiu. Os jornais estão mais preocupados em fazer uma resenha curta divulgando o lançamento do livro, isto é, estimulando a venda do produto. Mas análise mesmo virou coisa rara. Aliás, os críticos de jornais e revistas estão copiando a orelha dos livros. Frequentemente, o que se lê num jornal sai no outro, porque a base para o texto não foi uma leitura da obra, mas, sim, da orelha. Os estudos mais profundos ficaram circunscritos à universidade. A linguagem dos estudos universitários não é ininteligível? Bernardo Élis — A linguagem da universidade não é para os mortais comuns. É pura semiótica, semiologia e estruturalismos. Os estudos são profundos demais ou, em geral, pseudoprofundos. Há uma espécie de necrose no meio acadêmico? Bernardo Élis — Muitos estudos nascem mortos. Em que sua carreira foi modificada com o ingresso na Academia Brasileira de Letras (ABL)? Ser imortal não é tedioso? Bernardo Élis — [risos] Sou uma pessoa muito tolerante e procuro enxergar o que tenho de fazer como uma obrigação. Eu quis entrar para a Academia. É uma instituição nacional mas de repercussão internacional. Goiás tem uma intelectualidade importante e precisava de um escritor na ABL. O pessoal da Academia é cordial, mantenho grandes amizades lá. As reuniões são mais ou menos literárias. A reforma ortográfica proposta pelo Houaiss é uma bobagem O que se discute lá? Bernardo Élis — Comemoramos nascimentos, mortes e centenários de autores, aparecimento de livros. Discute-se a política cultural do país, a ortografia. Dizem que o presidente da ABL, o viúvo Austregésilo de Athayde, adora falar sobre mulheres durante as reuniões. Bernardo Élis — [risos] Não acho que seja verdade, embora o ambiente seja de pessoas de idade — e geralmente os velhos ficam encantados com as mulheres. Talvez eu não pertença às rodas que ficam falando sobre as mulheres [risos]. O sr. é mais ligado a quais escritores na ABL? Bernardo Élis — A Cyro dos Anjos, Jorge Amado, Antônio Houaiss, Américo Jacobina Lacombe,
Otto Lara Rezende, Lêdo Ivo e Rachel de Queiroz. A última vez que estive na ABL foi em março de 1989. O que o sr. acha da proposta de alguns filólogos, como Antônio Houaiss, de se unificar a ortografia da língua portuguesa? Bernardo Élis — Não concordo — é bobagem. Nós ficaríamos muito presos à compreensão linguística de Portugal. Na verdade, nós somos um país com mais de 140 milhões de habitantes, temos uma indústria relativamente sólida, portanto somos muito mais importantes que Portugal. Mesmo na parte cultural, somos mais importantes do que Portugal. Não podemos ficar a reboque dos portugueses. A reforma ortográfica que estão querendo impor atrapalha muito mais a nossa ortografia, que é mais simples que a que estão propondo. O sr. domina quais línguas? Traduz? Bernardo Élis — Leio em francês, inglês e espanhol. Capisco alguma coisa de latim. Mas só falo português. A minha inibição não permite que eu fale noutra língua. O francês eu aprendi cedo. [A mulher de Bernardo Élis interfere e lembra: “Bernardo, você sabe tupi”.] Ah, de fato eu sou uma das três ou quatro pessoas que mais conhecem tupi no Brasil. Sei tudo sobre tupi, conheço a gramática, mas não falo. Voltando ao francês: aprendi a língua muito cedo, porque meu pai tinha uma enciclopédia em francês [Bernardo ainda tem a enciclopédia] e recebia muitas visitas francesas. Ele me deu uma gramática francesa e comecei a estudar. Conheço bem o francês. Traduzi para o português o livro “Aspectos da Vida de Rimbaud e Verlaine”. O poeta Verlaine era pederasta. A tradução não foi publicada, pois eu tinha vergonha de dizer que traduzia. Do inglês traduzi dois romances.
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