Emmanuel Lévinas - Ética e Infinito

November 21, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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ETICA

EINFINITO Dialogos com PHILIPPE NEMO Titulo original: Ethique et infini ©

Librairie Artheme Fayard et Radio-France, 1982 Tradu~ao de Joao Gama Revista por Artur Morao

Capa de Edifoes 70 Todos os direitos reservados para a lingua portuguesa por Edifoes 70, Lda., Lisboa- PORTUGAL EDICOES

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2007

edic;oes 70

Os didlogos apresentados neste volume foram gravados e divulgados pela France-Culture em Fevereiro e Marr;o de 1981. Foram ligeiramente adaptados e completados pela editora. Constituem uma apresentar;ao sucinta dafilosofia de Emmanuel Levinas, a cujo resumo poderia, sem duvida, convir o t[tulo Etica e Infinito. As dez conversas acompanham o desenvolvimento do pensamento de Levinas desde os anos de formar;ao ate aos mais recentes artigos dedicados ao problema de Deus- artigos que acabam de se reunir numa antologia(') -passando por duas obras breves, mas importantes: De !'existence a l'existant e Autre-

mept qu'etre ou au-dela de I' essence.

Sucinta - numerosos aspectos da filosofia de Levinas nao sao abordados -, esta apresentar;ao nao lhe e me nos fie/, num sentido especial. Com efeito, e formulada pelo proprio autor, adoptando relativamente a sua obra urn ponto de vista geral, aceitando simplificar a expressao dos seus argumentos, nao se refugiando por detrds da propria reputar;ao e da lista das suas

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De Dieu que vient aI' idee, Vrin, 1982.

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obras completas- indo assim em sentido inverso ao de uma falsidade e de uma irracionalidade habituais nas nossas academias. Ela e, portanto,fiel com a fidelidade que assegura a urn discurso a presenfa viva do seu autor. Comentando o Fedro de Platiio, o proprio Levinas insistiu muitas vezes na soberania e na modestia do autor, pai do discurso, defendendo oralmente o discurso escrito, que se interpela e de que se discorda, pondo-o em jogo e submetendo-o aprova do instante' do outro homem actualmente presente a quem, finalmente, se destina. Neste sentido, e nesta situafiio, o dizer do autor vivo autentifica o dito da obra apresentada, porque s6 ele pode desdizer o dito e realfar assim a sua verdade. 0 autor, ao falar do seu pensamento, decide o que quer redizer. A cedencia que, por vezes, faz perante as exigencias do interlocutor leva ao prevalecimento com maior nitidez do que acima de tudo ele defende. Tale o exercfcio a que Uvinas quis entregar-se ao responder as nossas perguntas. E verdade que estas niio o obrigarn a pronunciar-se sabre outros temas azern dos que longamente tinha tratado nos seus livros - o que niio exclui este desenvolvimento ou aquele esclarecimento ineditos. Emmanuel Levinas e o fil6sofo da etica, sern duvida, o unico moralista do pensamento contemporaneo. Mas aos que o considerarn especialista da etica como se a etica fosse uma especialidade, estas paginas dariio a conhecer a tese essencial: que a. etica e a filasofia prirneira, aquela a partir da qual os outros ramos da rnetafisica adquirern sentido. A questiio prirneira, pela qual o ser se dilacera e o humano se instaura como «diversamente de ser» e transcendencia relativamente ao mundo, aquela sern a qual, ao inves,

qualquer outra interrogafiiO do pensamento e apenas vaidade e corrida atras do vento- e a questiio da justifa.

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Ph.N.

Emmanuel Levinas nasceu em Janeiro de 1906 em Kaunas, na Lituania. Estudos secundarios na Lituania e Russia. Estudos de filasofia em Estrasburgo, de 1923 a 1930. Estada em Friburgo em 1928-1929 junto de Husser! e Heidegger. Naturalizado frances em 1930. Professor de Filosofia, director da Escola normal israelita oriental. Professor de Filosofia na Universidade de Poitiers (1964), de Paris-Nanterre (1967), depois, na Sorbona (1973).

I

BIBLIA E FILOSOFIA

PHILIPPE NEMO - Como se come\;a a pensar? Com perguntas que, ap6s acontecimentos originais, fazemos a n6s mesmos ou acerca de n6s pr6prios? EMMANUEL LEVINAS - Isso come\;a prova- ' velmente com traumatismos ou tacteios a que nem sequer se e capaz de dar uma forma verbal: uma separa\;ao, uma cena de violencia, uma brusca consciencia da monotonia do tempo. E com a leitura de livros- nao necessariamente filos6ficos - que estes choques iniciais se transformam em perguntas e problemas, dao que pensar. 0 papel das literaturas nacionais pode aqui ser importante. Nao e que se aprendam palavras, mas vive-se «a verdadeira vida que esta ausente•, que, precisamente, nao e ut6pica. Penso que, no grande medo do livresco, se subestima a referencia «ontol6gica» do humano ao livro que se toma como uma fonte de informa\;Cies, ou como urn «utensilio» para aprender, como urn manual, quando e, na verdade, uma modalidade do nosso ser. Com efeito, ler e manter-se acima do realismo - ou da 15

politica - , da preocupaQao por n6s mesmos, sem desembocar, contudo, nas boas intenQ5es das nossas belas almas, nem na idealidade normativa do que «deve ser>. Neste sentido, a Biblia serta, para mim, o livro por excelencia. PH. N. - Quais foram, portanto, para si, os prtmeiros grandes livros encontrados: a Biblia ou os fil6sofos? EM. L. - Muito cedo, a Biblia, os primeiros textos filos6ficos na universidade; depois, urn vago resumo de psicologia na escola secundfuia e uma nipida leitura de algumas paginas sabre o «idealismo alemao», numa «IntroduQaO a filasofia•. Mas, entre a Biblia e os fil6sofos, os classicos russos - Puchkine, Lermontov, Gogo!, Turgueniev, Dostoieswsky e Tolstoi, e tambem os grandes escritores da Europa ocidental, e, principalmente, Shakespeare muito admirado no Hamlet, Macbeth e Rei Lear. 0 problema filos6fico entendido como o do sentido do humano, como a procura do famoso «sentido da vida• sabre o qual se interrogam sem cessar as personagens dos romances russos - sera uma boa preparaQao para Platao e Kant, que constam do programa da licenciatura de filosofia? E necessarto tempo para perceber as transiQ6es. PH. N.- Como e que na sua obra se harmonizam estes dois modos de pensamento, o biblico e o filos6fico?

EM. L. - Terao que harmonizar-se? 0 sentimenta religioso, tal como o recebi, consistia mais no respeito pelos livros - a Biblia e seus comentfuios tradicionais, que remontam as ongens do pensamento dos antigos rabinos - do que em determinadas crenQas. Nao quero com isto dizer que era urn sentimento religioso atenuado. 0 sentimento de que a Biblia e o Livro dos livros em que se dizem as coisas primeiras, as que se deviam dizer para que a vida humana tenha urn sentido, e se dizem sob uma forma que abre aos comentadores as pr6prias dimens6es da profundidade, nao era uma simples substltuiQao de urn juizo literario a consciencia do «sagrado•. E a ex:traordinaria presenQa das suas personagens, e esta plenitude de etica e as misteriosas possibilidades da exegese que significam originalmente, para mim, a transcendencia. E e o minima. Nao era pouco entrever e sentir a hermeneutica, com todas as suas ousadias, como vida religiosa e como liturgia. Os tex:tos dos grandes fil6sofos, com o lugar que a interpretaQao tern na sua leitura, pareceram-me mais pr6ximos da Biblia do que opostos a ela, ainda que a concretizaQii.O dos temas biblicos nao se reflectisse imediatamente nas paginas filos6ficas. Mas nao tinha a impressao, quando principiante na materia, de que a filosofia era essencialmente ateia, e hoje tambem nao penso assim. E se, em filosofia, o versiculo nao pode substltuir a prova, o Deus do versiculo, apesar de todas as metaforas antropom6rficas do tex:to, pode permanecer a medida do Espirito para o fi16sofo. 2

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PH. N. - Com efeito, pode interpretar-se a sua obra anterior como uma tentativa para harmonizar o essencial da teologia biblica com a tradi\;ao filos6fica e a sua linguagem. Foi necessaria ter havido, dentro de si, mais do que uma coexistencia pacifica entre as duas «bibliotecas•? EM. L. - Nunca pretendi explicitamente «p6r de acordo• ou «conciliar• as duas tradi\;i'ies. Se concordaram foi porque, provavelmente, todo o pensamento filos6fico se funda em experiencias pre-filos6ficas e porque a leitura da Biblia fez parte, para mim, das experiencias fundadoras. Ela desempenhou, portanto, urn papel essencial - e, em grande parte, sem que eu o saiba - na minha maneira de pensar filosoficamente, isto e, de pensar dirigindo-se a todos OS homens. Mas o que, para mim, mede a profundidade religiosa da experiencia fundadora da Biblia e tambem a consciencia aguda de que a Hist6ria sagrada nao conta apenas uma serie de acontecimentos terminados, mas que tern uma rela\;ao imediata actual com o destino da dispersao judaica no mundo. Toda a duvida intelectual relativa ao dogmatismo implicito deste ou daquele ponto do livro antigo perdia o seu sentido e os seus efeitos no que ha sempre de grave na hist6riajudaica real. Em nenhuma ocasiao a tradi\;iio filos6fica ocidental, na minha opiniao, perdia 0 direito a ultima palavra: com efeito, tudo deve ser expresso na sua linguagem; mas talvez ela nao seja o lugar do primeiro sentido dos seres, o lugar em que o sentido come\;a.

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PH. N. - Falemos desta tradi\;ao. Quais os primeitos fil6sofos que leu? EM. L. - Ainda antes de come\;ar os meus estudos de filosofia em Fran\;a, li os grandes escritores russos, de que lhe falei. 0 contacto serio com a literatura especificamente filos6fica e com os fil6sofos, foi em Estrasburgo. Ai encontrei, aos dezoito anos, quatro professores a que o meu espirito atribui urn prestigio incomparavel: Charles Blonde!, Maurice Halbwachs, Maurice Pradines e Henri Carteron. E isso mesmo, que homens! Exclama\;iiO natural que vern ao meu pensamento sempre que evoco esses anos tao ricos e que nada na minha vida p6de desmentir. M. Halbwachs teve uma morte de martir durante a Ocupa\;ao. Foi no contacto com estes mestres que se revelavam as grandes virtudes da honra intelectual e da inteligencia, mas tambern da clareza e da elegancia da universidade francesa. Inicia\;iiO aos grandes fil6sofos Platao e Arist6teles, Descartes e os cartesianos, Kant. Ainda nao a Hegel, nestes anos 20, na Faculdade de Letras de Estrasburgo! Mas Durkheim e Bergson e que pareciam particularmente vivos no ensino e na aten\;iiO dos estudantes. Eram eles que citavamos, a eles nos opunhamos. Tinham sido incontestavelmente os professores dos nossos mestres. PH. N. - Poe no mesmo plano o pensamento sociol6gico de urn Durkheim e o pensamento propriamente filos6fico de urn Bergson? 19

EM. L. - Aparentemente, Durkheim inaugurava uma sociologia experimental. Mas a sua obra aparecia tambem como uma «sociologia racional•: como elabora~;ao das categorias fundamentais do social, como aquila que hoje se chamaria uma «eidetic a da sociedade•, partindo da ideia-for~;a de que o social nao se reduz a soma das psicologias individuais. Durkheim metafisico! A ideia de que o social e a propria ordem do espirito, nova intriga no ser acima do psiquismo animal e humano; o plano das «representa~;oes colectivas• definido com rigor e que abre a dimensao do espirito na propria vida individual em que so o individuo chega a ser reconhecido e ate libertado. Ha em Durkheim num sentido, uma teoria dos «niveis do ser»; d~ irredutibilidade dos niveis entre si: ideia que adquire o seu sentido no contexto husserliano e heideggeriano. PH. N. - Citou igualmente Bergson. Qual e, no seu entender, o principal contributo deste para a filosofia? EM. L. - A teoria da dura~;ao. A destrui~;ao da primazia do tempo dos relogios; a ideia de que o tempo da fisica e apenas derivado. Sem esta afirma~;ao da prioridade de alguma maneira «ontologica• e nao apenas psicologica da dura~;ao irredutivel ao tempo linear e homogeneo, Heidegger nao poderia ter tido a ousadia da sua concep~;ao da temporalidade finita do Dasein, apesar da diferen~;a radical que separa, clara 20

esta, a

concep~;ao

bergsoniana do tempo da E a Bergson que pertence 0 merito de ter libertado a filosofia do prestigiado modelo do tempo cientifico. concep~;ao heideggeriana.

PH.N. - Mas a que questao ou inquieta~;ao mais pessoais
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