Em Busca Da Idade Média- Jacques Le Goff

March 6, 2017 | Author: izes1976 | Category: N/A
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Jacques Le Goff com a colaboração de Jean-Maurice de Montremy

Em busca da Idade Média TRADUÇÃO Marcos de Castro

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro 2005

Esta obra tem sua origem numa série de conversas entre Jacques Le Goff e Jean-Maurice de Montremy. O texto foi inteiramente revisto por Jacques Le Goff.

Sumário

PRÓLOGO

11

1. Tornar-se medievalista

15

IDADE MÉDIA SOMBRIA, IDADE MÉDIA CLARA: LUGARES-COMUNS UMA REVOLUÇÃO: 0 LIVRO. UM PROBLEMA: AS FONTES

2. Uma longa Idade Média

SI

A NOÇÃO DE "RENASCIMENTO"

57

UM MILÊNIO E SEUS PERÍODOS

63

1 2 1 5 : LATRÃO IV, O CONCÍLIO CAPITAL

73

3. Mercadores, banqueiros e intelectuais A INVENÇÃO DA ECONOMIA

96

UM OUTRO ESPAÇO: 0 PENSAMENTO

104

FRANCISCO DE ASSIS. MENDICANTES NA CIDADE

4. Uma civilização toma corpo O CÉU DESCE SOBRE A TERRA

125

INFERNO, PURGATÓRIO, PARAÍSO 139 EUROPA OU OCIDENTE? A FEUDALIDADE

147

156

O PRESTÍGIO DO DIREITO

87

161

9

121

110

34

22

SUMÁRIO

5. Na terra como no céu o HUMANISMO MEDIEVAL

169 176

HEREGES, JUDEUS, EXCLUÍDOS OS ANJOS E OS DEMÔNIOS

186

193

QUANDO MARIA PROTEGE. A "BOA MORTE"

EPÍLOGO

211

BIBLIOGRAFIA

219

202

Prólogo

Jacques Le Goff — ver-se-á no início destas conversas — partiu muito cedo em busca da Idade Média. O começo de tudo foi a emoção de um jovem leitor: a floresta de Ivanhoé, figuras arrebatadoras, Walter Scott, o romance histórico... Claro, o pequeno tolosino ainda não sabia que as duas palavras (romance, história) carregavam em si mesmas uma longa aventura humana, espiritual e concreta. Entretanto já se desenhava uma paisagem interior, cuja exploração até agora continua sendo o "encanto" do erudito, do sábio, do professor, do chefe de equipe, irremediável e incuravelmente curioso. Curioso para perceber a emoção, a poesia, o que está por trás das coisas. Curioso para compreender aqueles homens, aquelas mulheres, aquelas sensibilidades desaparecidas. Mas curioso, principalmente, ao viver o tempo presente, cujos choques e violências são objeto de seu interesse apaixonado tanto quanto o passado. A investigação, para Jacques Le Goff, nunca cessou. Quase se poderia dizer: a busca. Porque a Idade Média, cujo estudo ele empreendeu, era bem mais do que um período. Le Goff teve rapidamente a intuição de encontrar um mundo, uma civilização, muito próximos e muito longínquos. Apesar do intenso trabalho de esquecimento — às vezes de negação — que leva nossa cultura a se afirmar contra as suas origens (até

mesmo a criar essa expressão cruel, a "Idade Média"), os intensos mil anos que apaixonam Le Goff nos falam muito de perto. E exatamente o nosso problema: somos freqüentementes medievais quando nos vangloriamos de sermos modernos; e freqüentemente não passamos de "apreciadores da Idade Média" quando cremos nos enraizar no tempo das catedrais, dos cavaleiros, dos lavradores e dos comerciantes. Os códigos e os valores desse longínquo passado-próximo são bem mais estranhos a nós do que habitualmente pensamos. Mas lhes devemos bem mais do que queremos admitir. Curioso, por isso mesmo sempre buscando, Jacques Le Goff compreendeu — e fez compreender — a que ponto a própria Idade Média buscava alguma coisa. O historiador o reconhece de bom grado: se ele contribuiu para mudar nossa visão da Idade Média, a Idade Média contribuiu para mudar sua própria visão do presente. No correr destas entrevistas, o grande medievalista propõe uma síntese de seus trabalhos. Conta como foram escritos seus livros, e como se desenhou pouco a pouco uma visão global dessa civilização que modelou a cultura "ocidental", em suas qualidades como em seus defeitos. Fernand Braudel falava de economia-mundo. Jacques Le Goff nos convida a descobrir uma civilização-continente. Porque é bem a Europa que se desenha pouco a pouco a partir dessas pesquisas no espaço e no tempo. Uma Europa de fronteiras mais culturais do que geográficas. Uma Europa que jamais foi inteiramente uma "cristandade", ainda que, durante séculos, tenha se imaginado como tal. Jacques Le Goff mostra com clareza como esse ideal permitiu à Idade Média construir-se — antes de gerar o nosso próprio tempo, não sem dilacerações. A própria "cristandade" evoluiu paralelamente, surgindo de um

modelo territorial, o Ocidente, que não era o seu originariamente. A cidade celeste caminha na cidade terrestre. Não pode se fixar nesta, nem se confundir com ela. A cidade celeste atravessa a cidade terrestre. Porque a cidade aqui de baixo está decadente, enquanto que a cidade lá de cima ignora os achaques do tempo. Esse foi o ensinamento de Santo Agostinho, incansavelmente retomado e discutido pelo pensamento medieval. Esses homens, essas mulheres, pensavam que o m u n d o estava no fim de sua caminhada, a humanidade desgastada, declinante. De todo modo, não deixaram de inventar, de melhorar, de aperfeiçoar. Esses homens, essas mulheres, imaginavam um universo fechado, os valores solidamente encarnados nos lugares e nos objetos. Peregrinavam, contudo, de passagem para um outro mundo, no sentido de um outro espaço, na esperança de um outro tempo. Criaram o novo, ainda que o próprio princípio de "novidade" lhes parecesse detestável. Quanto a nós, podemos nos perguntar se nossa pretensão de sermos sempre mais "novos" não trai, ao contrário, imobilismo e embotamento. Assim projetamos sobre a Idade Média as nossas sombras, sem lhe ver as luzes. Revisitar a civilização medieval com Jacques Le Goff é descobrir o dinamismo e o otimismo racional próprios de nossos predecessores. Sem para isso idealizá-los. Neste início do século XXI, claramente aberto a "grandes medos", esses reencontros podem nos reservar agradáveis surpresas.

BI

Estas conversas se deram a cada 15 dias, de 21 de fevereiro a 24 de julho de 2002. Jacques Le Goff reviu, enriqueceu e desenvolveu o texto durante os meses de agosto e setembro. As questões apresentadas, quase sempre reduzidas ao mínimo, foram mantidas para conservar — na lógica própria da escrita — o ritmo e a amplitude que fazem de Jacques Le Goff um digno herdeiro dos mestres medievais, sempre preocupados em atrair a atenção de seu público.

Na vasta floresta que cobre "a maior parte das pitorescas colinas e vales entre Sheffield e a graciosa cidade de Doncaster", dois homens conversam neste ano de 1194: o porqueiro Gurth e o bufão Wamba, as primeiras personagens com que topa o leitor de Ivanhoé (1819). A paisagem leva a sonhar. Walter Scott tem prazer em descrevê-la: "O sol iluminava com seus últimos raios uma das belas e verdes clareiras [...] Carvalhos de ampla copa, grosso tronco, grandes galhadas, testemunhas talvez da marcha dominadora dos soldados romanos, estendiam às centenas seus galhos nodosos sobre um lindo tapete de relva..." Foi dessa maneira, em 1936, que descobri a Idade Média. Tinha doze anos, vivia em Toulon, onde meu pai ensinava inglês. Já tinha paixão pela história — a idéia de estudá-la me veio desde a idade de 10 anos. Não me lembro infelizmente por quê... Lendo Walter Scott, não restou qualquer dúvida: a história confirmava sua influência sobre mim. E assumia os traços da Idade Média. Uma Idade Média situada num cenário material de encantamento: a floresta, claro, depois o castelo de Torquilstone cujo cerco e assalto ocupam uma boa parte da narrativa; e mais ainda, talvez, a justa de Ashby, com suas barracas, suas tendas, seu tumulto, suas cores, suas tribunas,

EM

BUSCA

OA

IDADE

MÉDIA

ocasião em que se misturavam o povinho, mercadores, damas nobres, cavaleiros, monges, sacerdotes. Não pretendo ter descoberto, em idade tão tenra, a importância da civilização material; menos ainda, tendo me apaixonado pelo romance lvanhoé, posso dizer que tenha criticado os programas escolares, freqüentemente reduzidos à narrativa política, aos "grandes homens" e aos acontecimentos. E claro, eu ignorava que, desde 1929, existia um certo movimento denominado Annales, tão importante para mim, mais tarde. Igual paixão me arrebatou, uns quarenta anos mais tarde, lendo a Bataille de Bouvines (1973), na qual Georges Duby me fez reviver as lembranças do torneio de Ashby. Tive a mesma sensação, vendo Duby a valorizar o complexo "militar-industrial" das justas e batalhas, tive o mesmo prazer que sentira outrora com a formidável aparição do cavaleiro desconhecido — armadura de ouro e aço — trazendo sobre o escudo a inscrição "Desdichado", o Infortunado, o homem que desafia o selvagem templário Briand de Bois-Guilbert... Um torneio era verdadeiramente uma coisa enorme. Seria possível compará-lo com uma corrida de Fórmula 1: investimentos financeiros e técnicos, bases comerciais, vasta rede de subempreitadas, etc. A essas imagens, que nada tinham perdido de seu poder de encantamento, Duby acrescentava suas demonstrações de historiador — explicar em profundidade o que de saída não parece passar do pitoresco e de casos. Nesse meio-tempo eu me tornei medievalista. Essa leitura teve, de imediato, uma conseqüência inesperada. Comovido com os sofrimentos dos judeus, causados pelos normandos, em particular as provações pelas quais passa a bela Rebeca — Bois-Guilbert, decididamente repugnan-

TORNAR-SE

MEOIE

te, a acusa de feitiçaria — logo desejei passar à ação contra o anti-semitismo e o racismo. Mas alguns de nossos amigos suspeitavam das organizações que combatiam o anti-semitismo e o racismo, acusando-as de maçónicas e anticatólicas, o que inquietava minha mãe, descendente, por um lado, de italianos e altamente piedosa. Mandou-me ela consultar o arcipreste* da catedral de Toulon, que me garantiu: eu podia militar em tais movimentos. Rebeca, decididamente deslumbrante, foi um dos primeiros papéis de Elisabeth Taylor no soberbo lvanhoé de Richard Thorpe, de 1952. Perdido no tempo, esse pequeno caso me parece revelador. O estudo da Idade Média tem suscitado sempre, em minha vida pessoal, "efeitos paralelos". Freqüentemente, depois de ter abordado tal ou qual tema da história ou da cultura medievais encarei de modo diferente as questões de hoje: questões graves, como as da guerra ou da violência; questões aparentemente mais superficiais, como a cozinha. Ainda que eu nunca tenha encarado a cozinha de modo superficial! A Idade Média certamente não me trouxe soluções para o tempo presente. Em compensação, ela trabalhou em mim tanto quanto eu trabalhei nela — e trabalhou em mim como homem militante tanto no século XX como agora no XXI. Para adaptar uma fórmula de Stanislas Fumet, há uma história da Idade Média em minha vida, nas "dádivas" que a história faz ao historiador. A história me empurrou para a ação. Jamais eu poderia separar minha leitura de lvanhoé do entusiasmo que suscitava em mim o Front Populaire naquele mesmo ano de *Era o pároco de uma catedral ao qual habitualmente o bispo delegava funções. O título náo existe mais ína formação da palavra, preste é uma contração do latim presbyter, vocábulo originário do grego presbúteros, que significa "mais velho" e, por extensão, "sacerdote"). (N. do T.)

1936.* Não me lembro de acontecimento que me tenha provocado o mesmo entusiasmo. A Libertação* * não me deu essa felicidade, pois não apagava nem a derrota nem a amargura dos anos negros, nem a descoberta do horror. Ah, mas 1936! Robin des Bois*** de um lado. Do outro as experiências sociais... Compreendi mais tarde que eu transferia minhas emoções (meus problemas, inconscientemente) do presente para o passado, que eu transformava em coisas vivas as coisas do passado. A Idade Média só me conquistou por seu poder quase mágico de me transportar para um ambiente novo, de me arrancar das inquietações e das mediocridades do presente e, ao mesmo tempo, de tornar o presente para mim mais ardente e mais claro. Notre-Dame de Paris não teve, sobre o senhor, o mesmo efeito ? Li mais tarde, com prazer, o romance de Hugo. Era um dever escolar. Não teve para mim o mesmo sentido de liberto nome sofreu influência direta da Frente Popular da Espanha, cuja mítica guerra civil se iniciava naquele ano. Foi a coalizão dos partidos de esquerda (comunistas, socialistas e radicais) que ganhou as eleições de 1936 na França, empolgando o povo com a palavra de ordem "Pão, Paz e Liberdade". O sucesso, particularmente dos socialistas, levou Léon Blum à chefia do governo. Mas os desentendimentos dentro das próprias facções da esquerda e a confusão do período pré-Segunda Guerra Mundial não permitiram que o governo do Fror.t Popuiaire durasse muito e Léon Blum foi constrangido a demitir-se em 1937. Num breve período ce menos de um mês (março-abril de 1938), Blum voltou à chefia do governo, mas a exigência do fim das greves, por Daladier, e os problemas exteriores do país puseram fim ao espírito do Front Popuiaire. {N. do T.) **Libertação da França do jugo nazista na Segunda Guerra. (N. do T.) ***Walter Scott, como se sabe, inspirou-se, para escrever Ivanhoé, nas histórias de Robin Hood, que os franceses também chamam de Robin des Bois (Robin dos Bosques). (N. do T.)

dade. Acho, também, que o fato de ser muito bem escrito cria um paradoxo para Notre-Dame de Paris: sua soberba linguagem supera o conteúdo. E o conteúdo, em Hugo, não é a Idade Média, nem mesmo quando trata da vida de uma catedral. O conteúdo é o próprio livro, a formidável visão. Claro, Hugo tem como referência Walter Scott. Entretanto não se trata — não se trata mais — de um romance histórico. E uma visão. De t o d o modo, não quereria deixar a impressão de que lvanhoé foi a causa única de minha opção pela Idade Média. Esse período histórico ainda era estudado no programa da Quatrième* Tive a sorte de ter nessa série um professor de História excepcional, Henri Michel. Ainda que não fosse um medievalista, ele sabia contar, sabia interessar os alunos e tratar de maneira imparcial os assuntos mais delicados; não se contentava em descrever: dedicava-se a explicar. Militante socialista, agnóstico, Henri Michel contudo falava muito bem da Igreja, o que não deixava de me seduzir, porque eu era um menino católico praticante, como o desejava minha mãe — enquanto meu pai era anticlerical, até mesmo anti-religioso. Dando o pontapé inicial, Henri Michel já anunciava o essencial do jogo: "Na Idade Média, a Igreja domina tudo." Minha devoção de então — relativa, certamente, porém sincera — estava seduzida. Sensibilizava-me o fato de que um leigo tratasse do assunto com competência e respeito. Grande resistente durante a Segunda Guerra, Henri Michel tornou-se um especialista dos mais conhecidos sobre esse período.

IDADE MÉDIA SOMBRIA, IDADE MÉDIA CLARA: LUGARES-COMUNS

Que visão se deve propor,; então, da Idade Média? O que eu achava então já mudou muito — praticamente a seqüência de meus trabalhos alterou tudo em mim. Mas, à época, digamos que duas imagens se superpunham: uma Idade Média "negra" e uma Idade Média idealizada. Tive a sorte, graças a Henri Michel e depois a outros mestres, de escapar dessas imagens. Que continuam a ter seu peso, ai de nós, sobre as mentalidades de hoje. A rica escola medieval francesa, apesar de seus sucessos científicos, parece não ter mudado nada nos meios de comunicação e nas idéias transmitidas. Às vezes me sinto desencorajado ao reencontrar intactos os dois clichês vindos dos séculos XVIII e XIX: de um lado a Idade Média obscurantista e, como contraste, a Idade Média "dos trovadores", suave. Fica-lhes a visão dos filmes, dos romances históricos, das publicidades. Recentemente, Carla dei Ponte — procuradora geral do Tribunal Penal Internacional — denunciava a "purificação étnica" empreendida por Slobodan Milosevic como uma prática "medievalista"\ Já nem falo da visão depreciativa, pois se trata de uma visão burlesca, propos-

ta pelo filme Os visitantes... A concepção subjacente a esses julgamentos pré-fabricados revela, além de tudo, uma idéia falsa e primária do progresso e da história em geral. Até mesmo pessoas cultas permanecem com uma visáo dessas aproximações, já extemporâneas na minha juventude. "Não estamos mais na Idade Média", clamavam os melhores espíritos diante das violências, dos atos bárbaros, dos movimentos de multidão incontrolados. Em contrapartida, propunha-se uma outra versão, estilizada, procedente do romantismo: a Idade Média era, para retomar um recente refrão de sucesso, deturpando a obra de um grande historiador, "o tempo das catedrais", a fé simples e bela. Sonhava-se com uma época artesanal e erudita, numa escala simultaneamente humana e divina. A primeira dessas tradições, a negra, remonta ao humanismo, ao autodenominado Renascimento (o primeiro a "envolver em trevas a Idade Média" é Petrarca), e foi infelizmente retomada, como num revezamento, pelas Luzes. Estava bem instalada nos círculos influentes da III República. A segunda versão, "catedrais", constrói-se, por sua vez, depois da Revolução Francesa, quando Chateaubriand, contestando as Luzes, redigiu seu O gênio do cristianismo (1802), com o elogio da natureza e do gótico, da simplicidade, do ideal — grande livro poético, de resto. Retomada e aprofundada por Charles Péguy, essa Idade Média popular, à francesa, seduzia antes da guerra tanto a esquerda como a direita. Isso permitia, é certo, grandes sucessos corno a apresentação das companhias de teatro itinerantes, com que uni Jacques Copeau depois um Jean Vilar percorriam as estradas desde antes da guerra. Daí sairão o Festival de Avignon e, lá, a espetacular utilização do famoso

pátio do Palácio dos Papas. Mas isso não é a Idade Média. Com as melhores intenções, um grande cineasta como Mareei Carne recria em Os visitantes da noite u m a Idade Média de segunda classe (1942). Acrescentem-se os devaneios das corporações, o espírito cavaleiroso, as pieguices do espírito cortesão, a bonomia rabelaisiana das trovas. Um espetáculo medíocre representado por atores em andrajos, nisso se transformou a Idade Média "enorme e delicada" de que falava Verlaine — tempo heróico, às vezes violento, bárbaro; simplesmente belo. Gide confessava que não pôde ler a Chanson de Roland* (o romantismo dela não guardava mais do que a trombeta de Roncevaux). Afinal, não se freqüentava a extraordinária literatura medieval, difícil de penetrar, mas, quando o conseguíamos, ah, como era compensador! Q u e seria da cultura européia sem as canções de gesta, os romances arturianos, El cantar de mio Cid, Dante e Chaucer? Essa literatura — nem negra nem dourada — exprime esse tempo, esses homens e essas mulheres, cheios de força e de vida, incrivelmente criadores, distantes da verdade frouxa, do moralismo reacionário ou da estética são-sulpiciana.**

A insistência do regime de Vichy em explorar o filão desacreditou essas visões sempre mais regressivas, até acabar com elas. A versão "dourada", se assim posso dizer, contenta-se, na verdade, em ir contra a versão "negra", tomando o sentido inverso. Para acertar suas contas com as Luzes (ou com a idéia que fazia das Luzes), o regime de Pétain louvava em "sua" Idade Média um espírito de ordem e de fé dóceis, de um jeito muito pessoal. Tudo isso, seria preciso compreender, já vinha viciado desde os modernos e minado por agentes corruptores estrangeiros. Essa Idade Média me foi oferecida — mas eu a rejeitei. Na época em que eu lia Walter Scott e me enriquecia com os cursos de Henri Michel, via a Idade Média, apesar de seus ecos contemporâneos, como um mundo longínquo, diferente do nosso. Nela conviviam práticas bárbaras e figuras sublimes, impressionantes. Essa Idade Média já não vivia entre nós: tinha desaparecido. Era um sonho que se esfumava. Minha única lembrança medieval de então, aquela do monte Saint-Michel, vista com a idade de nove anos, confirmava essa distância. Saint-Michel "sob a ameaça do mar", diziam os homens da Idade Média! Para eles, o mar era alguma coisa de inquietante, de selvagem, ainda próxima do caos bíblico, que de certa forma tinha escapado da organização inacabada da Criação. Talvez eu tenha então percebido confusamente esse espírito aventuroso: desafiar com pobres meios o desconhecido, a imensidão... A verdadeira descoberta da Idade Média "concreta" deuse portanto mais tarde, em 1939, eu tinha quinze anos. Afinal, vi vestígios medievais. Não foi em Toulon, cujo desenvolvimento é bem mais recente. Por ocasião de uma viagem aos Pireneus, mudamos de trem em Toulouse. As poucas horas 2 5

de tempo disponíveis aproveitei-as para visitar lugares. Assim tive a revelação da igreja abacial de Saint-Serain, a maior igreja romana da França. Fiquei profundamente emocionado. Pareceu-me evidente que se tratava de um outro mundo, muito distante daquela primeira metade do século XX na qual eu vivia. Quem então tinha construído aquilo e para quem? Como conhecer esses homens, essas mulheres? Evidentemente, eu estava muito feliz por não viver na "Idade Média". Adivinhava-a desprovida de muitas das comodidades cotidianas de que dispunha em minha vida já naquele finzinho dos anos 1930. Senti, entretanto, uma certa nostalgia, como se esse surgimento da Idade Média não fosse tão antigo, como se os laços rompidos nos privassem de alguma coisa, nos afastassem de homens que eu teria desejado ouvir. O torneio de Ashby construía sua pompa a partir do povo que lá se comprimia, tão próximo, entretanto tão diferente. Sentia essa multidão como coisa muito diferente de um público de um jogo de futebol ou de rugby. Eu era jovem. Muitas coisas desapareciam, outras nasciam. Quando o cinema se tornou falado eu tinha seis anos. Nossa família ainda não tinha telefone, embora o aparelho já existisse. Via claramente as mudanças que se processavam na relação espaço-tempo. O mesmo se p o d e dizer quanto ao automóvel (também não tínhamos um, aliás) e a tudo que se referia à vida do dia-a-dia. Só mais tarde apareceram os refrigeradores: durante anos vivemos no ritmo venerável das geladeiras nas quais púnhamos blocos de gelo comprados nos entrepostos ou de vendedores ambulantes. De repente, podíamos controlar o frio, enganar o tempo. Tive o "sentido da história" — o único que mais tarde não seria abalado; e ainda...

Sentia muito claramente nossa entrada numa outra era. Adivinhava que essas mudanças materiais, cotidianas, eram um dos componentes fundamentais da História. Que a História, ainda uma vez, não se limitava às batalhas, aos reis, aos governos. Uma certa maneira de ser e de pensar tornava-se ultrapassada. Mais tarde, chamaria esse movimento de mudança de mentalidade — mudança que acompanharia as trocas materiais. Certamente, eu não distinguia todos os estratos depositados em nossas vidas pelos séculos sucessivos. Entretanto, via perfeitamente que ficava um pouco da Idade Média em nosso mundo e em nossas existências e que essa Idade Média tinha passado, definitivamente — mas deixava heranças. Parecia-me, para encerrar, que o desaparecimento se tinha precipitado, acelerado, liquidado, com a guerra de 1418, cujas marcas, faltas, vazios permaneciam onipresentes em torno de mim. Por ocasião da derrota de 1940, eu tinha dezesseis anos. Vivi a Segunda Guerra. Mas não sentia durante esse período a sensação do fim de um mundo que antes me sugeria a lembrança de 14-18 conservada por meus próximos e seus contemporâneos. A História, para mim, nos anos 30, também se passava do outro lado de um muro — a Grande Guerra, de que todos falavam — para reencontrar essa vida tão diferente, essas "pessoas médias", como nós, já quase exóticas, embora só vinte anos se tivessem passado. A juventude de meus pais a meus olhos tinha transcorrido num outro mundo. Com a irrupção espantosa de um futuro: o cinema.

O senhor falou de nostalgia... Sim, ainda que haja necessidade de ser claro. Minha Idade Média não devia nada aos modos neomedievais de que acabo de falar. Nela eu descobria, contudo, um prazer nostálgico, indissociável da História em geral, e que, acredito, todos os historiadores sentem: o prazer nostálgico de uma luta contra a morte. A História mergulha na vida do passado, prolonga essa vida desaparecida, e a ressuscita—ou, pelo menos, é como se a ressuscitasse, sabendo, entretanto, obscuramente, que essa ressurreição arrisca-se a ser apenas provisória. O ofício de historiador situava-se, assim, para o adolescente que eu era, entre os ofícios que o homem tinha inventado para viver e fazer viver. Eu me sentia próximo dos médicos e dos artistas — sem dúvida, quanto a este último ponto, por causa de minha mãe, que me ensinava piano. Eu via, eu ouvia, que bastava correr os dedos sobre o teclado para que obras antigas revivessem, para que épocas passadas ressoassem entre nós... Um professor de história (não me ocorria então tomarme um pesquisador) aos meus olhos era de certo modo parecido com um pianista. Tinha de decifrar, aprender, transmitir, restituindo a vida. Os documentos eram partituras e, em relação aos médicos, o passado era um organismo humano ao qual era preciso dar vida, alguma espécie de vida... Não me passavam pela cabeça nomes técnicos quanto às coisas que me atraíam, mas hoje posso dizer que desde cedo tive interesse por dois tipos de história: a história social e a história cultural. Duas histórias que se cruzavam, na minha inegável curiosidade pelos rituais e pela liturgia. Quer se trate dos torneios, quer se trate, igualmente, da Igreja. Como disse, não me dominava — ao contrário de minha mãe — um sentimento religioso intenso, mas eu era sensível

à religião que se expressava, para um menino de Toulon, sob a forma do catolicismo pós-tridentino, meridional. O Concílio Vaticano II, a revolução [da Igreja] dos anos 1960-1970, sacudiram tudo isso como que criando um outro mundo. As pessoas nascidas nos anos 50 só fazem disso uma idéia nebulosa. Para as gerações posteriores a 1960, isso é chinês. Minhas lembranças foram como que reconstruídas. Creio, porém, que o distanciamento já existia nos anos 1930. Distanciamento, mas não estranheza. Eu observava as velhas liturgias sem nelas me integrar, seja nos gestos, seja na emoção. Essas liturgias, afinal, não eram tão velhas assim: enraizavam-se no século XVII e, mais ainda, no ardente esforço de restauração que o século XIX representou. Pouco restava da Igreja medieval. Mas, seja como for, havia ainda uma presença forte dos velhos rituais, diante dos quais, a exemplo de tantas outras pessoas, eu me via como na soleira de uma porta: um pé para dentro, outro para fora. Poderia dizer as mesmas coisas de outros costumes, como a distribuição dos prêmios de íim de ano: os professores, de beca, a interminável litania das leituras de relações de premiados, a entrega de livros e de diplomas... Desde a classe de Quatrième, tais cerimônias me pareciam estranhas, tão fascinantes e "medievais" como esse famoso torneio de Ashby. Inconscientemente, eusentia a necessidade de ir além de Jules Ferry* para ver a Escola sair da História.

Vem, então, desde o secundário, sua decisão, senão de tornar-se historiador; pe/o menos de ensinar história. Não é tão simples assim... Os estudos, em si mesmos, nunca foram um problema maior para mim. Seu conteúdo, isso sim, me trouxe mais problemas. Eu fazia o bacharelado.* Era a primavera de 1940. Estava compondo uma redação em latim para o concurso final, quando o inspetor de sala saiu por um momento, anunciando-me, ao voltar, que Hitler tinha invadido a Bélgica. Os bombardeios italianos sobre Toulon, em maio, nos levaram a sair da cidade (meu pai, por motivos de saúde, não podia descer para os abrigos). Refugiamo-nos nas proximidades de Sète,** num sítio posto à nossa disposição por parentes. Candidato-me então, para terminar o bacharelado, à prova oral em Montpellier, no distrito-sede da Academia. Quando estava na famosa praça "do Ovo", alto-falantes transmitem o discurso de Pétain, anunciando que solicitara de Hitler o armistício. Um militar que passava pela praça tira seu uniforme e clama, em roupa de baixo, que não vestirá mais uma farda que tinha sido desonrada. Para mim, a França, que será minoritariamente a da Resistência e maioritariamente a cortesã vil do velho cuja voz vergonhosa e trêmula eu ouço, será sempre, até que eu venha a

saber da declaração de De Gaulle de 18 de junho,* a do protesto público daquele simples soldado. Tendo completado o bacharelado, fiz, na Marselha em guerra, os preparatórios para a Escola Normal Superior e depois o início do curso na própria Escola Normal Superior, com admiráveis professores e condiscípulos, alguns dos quais continuaram pela vida afora meus amigos mais queridos. Chegou o tempo em que eu teria de dar meu "trabalho obrigatório" para a Alemanha, o STO.** Foram alguns meses que passei num maquis alpino. Depois, no fim de 1944, Paris libertada, um curso no liceu Louis le Grand. Era um curso menos vivo, menos inspirado que o de Marselha, porém terrivelmente eficaz. Entrei para a Escola Normal em julho de 1945. Acredito que essa experiência modesta e marginal da Segunda Guerra, acrescentando-se a minhas reflexões já antigas sobre a história como ciência concreta, humana, me tornou incapaz de suportar uma história poeirenta, aquela a respeito da qual Lucien Febvre disse, como vim a aprender mais tarde, que os camponeses só lavravam a terra como cartulários, cuidavam apenas dos forais e títulos da terra. Tive de seguir, paralelamente, cursos na Sorbonne, como era rotina então. Minha decepção foi cruel. Com raras exceções, cs historiadores sorboneses me deixaram oprimido, a tal ponto que pensei em abandonar a História. Não encon-

trava em parte alguma as coisas que tinha começado a aprender em Toulon e em Marselha. Houve um momento em que estive tentado a bifurcar para o estudo da língua e da civilização alemãs. Esse conceito de "civilização" me atraía. A abordagem cultural, a própria noção de civilização, cruzando as disciplinas, prometedora de vida, de ressurreição dos homens e da vida social, parecia na verdade ausente da história historiadora praticada naqueles anos. Tinha sido, no curso secundário, apaixonado pela língua e literatura alemãs. De um modo que surpreendeu a mim mesmo, consegui estabelecer a diferença entre a Alemanha e os nazistas. Nos preparatórios em Marselha, um admirável professor (depois dos ótimos que eu tinha tido em Toulon), Henri Pizard, abriu-me a visão para o m u n d o maravilhoso de Goethe, Heine, Rilke, Thomas Mann. Esse professor foi morto durante a libertação de Marselha (morte acidental, terrível acaso). Estudando alemão e a civilização alemã de certa forma eu prestaria uma homenagem à sua memória. De novo, porém, a decepção não tardou. Por trás da bela palavra "civilização" só se viam fórmulas estreitas. E a filologia perturbava tudo. Voltei-me então para a História, especialmente por causa dos cursos de história antiga que me pareciam os mais interessantes. Mas nesse caso faltavam competências — especialmente técnicas (arqueologia, epigrafia) — que eu não tinha e que não me atraíam. Contudo, dirigi minha atenção para essas técnicas. Com elas, amarrei-me afinal ao problema maior do historiador: o da documentação. Disse que havia um prazer nostálgico em nossa atividade. Esse prazer é a única recompensa final. Antes disso está a exigência básica: empregar e pesquisar os documentos. Não é possível entregar-se a este

ofício sem as fontes, e sem saber utilizar essas fontes, com um rigor verdadeiramente científico. Assim descobri a paleografia, que é a ciência da leitura das escritas antigas. Leitura nos dois sentidos do termo: a decifração e a interpretação. O contato com o manuscrito me apaixonou. Trata-se, na maioria das vezes, de peles de animais, de pergaminhos, matéria agradável de ser tocada. Sente-se, então, materialmente, o trabalho do escriba. Sua tinta, sua pena, seus códigos, suas pequenas manias, seu trabalho. A paleografia, afinal, confirmou meu gosto pela Idade Média. Sem dúvida, ela é que me orientou definitivamente para a pesquisa. Isso não me impediu de gostar de ensinar, ainda que tenha sido breve minha passagem ensinando num curso secundário (um ano em Amiens, 1950-1951), depois na Faculdade de Letras de Lille (1954-1959). Guardei, de minha vocação inicial —retomar a chama de meu pai ou de um mestre como Henri Michel —, o prazer de comunicar o resultado de minhas pesquisas, de partilhálos e de cooperar com outros pesquisadores. Falarei mais adiante do grande sábio, do mestre rigoroso e humano que me manteve definitivamente na Sorbonne e que, nela, definitivamente me conduziu à Idade Média, Charles Edmond Perrin — sem que nós partilhássemos da mesma concepção da história. E mais adiante ainda, dos dois medievalistas que me abriram os grandes espaços da história medieval: Maurice Lombard, na Escola de Altos Estudos, e Michel Mollat du Jourdain, na Universidade de Lille.

UMA REVOLUÇÃO: O LIVRO. UM PROBLEMA: AS FONTES

Para o profano, falar de epigrafia, de manuscritos, de impressos — tudo parece a mesma coisa. Essas ciências são ciências da fonte. Mas requerem técnicas diferentes e se aplicam a períodos diferentes. Há uma lógica da epigrafia, há uma lógica do manuscrito, do impresso, da imagem, etc., que estruturam a abordagem do historiador. Fazer a história da Antigüidade sem arqueologia e sem epigrafia — a decifração das inscrições — seria uma brincadeira. De saída, o historiador da Antigüidade mantém com sua matéria uma relação diferente daquela mantida pelo historiador do mundo contemporâneo com seus arquivos. A natureza dos documentos de que dispomos influi sobre nossa maneira de pensar os períodos estudados. Um historiador da Revolução Francesa raciocina a partir de materiais que não "funcionam", se assim posso dizer, do mesmo modo que aqueles a que recorre um especialista em Primeira Guerra. Quanto à Idade Média, é inseparável dos manuscritos. Ela os produziu. E também foi produzida por eles. A Antigüidade se expressava através de rolos — o que supõe uma relação com o texto particular: as idas e vindas para diante e para trás exigem uma manipulação mais longa. 0 enquadramento das linhas e dos parágrafos depende da superfície sobre a qual o escriba, ou o leitor, pode se apoiar; a noção de frase e de pontuação não é a nossa. E assim por diante. Enfim, o rolo quase não favorece a leitura silenciosa. Ainda que soubessem perfeitamente ler e escrever, os poderosos e os sábios da Antigüidade tinham o hábito de dizer o texto, porque os leitores especialistas manipulam rapidamente

os rolos, libertando seus donos (ou mestres) de todo constrangimento material. Assim, quase sempre os mestres preferem ditar. A generalização do códex (nosso livro, com páginas e cadernos) marca uma passagem. O livro-códex seria um ótimo modo de situar o nascimento da Idade Média, desde o fim do século IV. O livro-códex favorece a leitura pessoal, interiorizada, mesmo que a leitura totalmente silenciosa só venha a se generalizar no século XIII. Até então, ainda é preciso imaginar os leitores — mesmo solitários — murmurando os textos ou, pelo menos, mexendo os lábios. O advento definitivo da leitura silenciosa, ainda mais interiorizada, corresponde, afinal, a um novo período da Idade Média. Supõe uma profunda modificação da memória, uma vez que a facilidade do emprego do códex e o desenvolvimento das margens permitem um jogo de localização ou de remissão. A Antigüidade, certamente, conhecia a margem, as notas explicativas, etc. Faltava, contudo, um espaço racionalmente distribuído. Com o códex, surgiu esse espaço. E o indivíduo, lendo sem necessidade de auxílio, afirma-se. Seja dito de passagem, afastei-me da história inglesa, que entretanto me era muito querida, em parte porque a chancelaria real da Inglaterra foi a única a manter longamente o venerável uso do rolo. Isso torna a consulta penosa e incômoda. Por fim, há a própria escrita. Diga-me como tu escreves e eu te direi quem és. A que escritório o escriba pertence, a que corte, a que grupo, a que meio. A reforma da escrita durante o reinado de Carlos Magno é um momento fundador, carregado de conseqüências. Por volta do ano 800, os scriptoria — esses escritórios dos escribas, na maioria das vezes monásticos — impõem o domínio de

uma pequena escrita caligráfica, a "minúscula" carolina. A palavra "carolina" vem de Carolus, Carlos; a "minúscula" designa, claro, uma distinção fundamental em relação à maiúscula. Sabe-se que a Antigüidade, especialmente as epigrafias, privilegiava a maiúscula, claramente legível, mas necessariamente mais esquemática. Essa carolina responde a uma exigência religiosa e política: Carlos Magno e o seu círculo mais próximo querem uma edição confiável, uniformizada, dos velhos manuscritos, especialmente os dos Evangelhos e dos Padres da Igreja, cujo texto é antes de mais nada restabelecido a partir dos mais antigos e mais fiéis manuscritos então conhecidos. A constituição desse corpus corresponde à utilização de novo instrumento gráfico. Todos os textos serão escritos em latim, todos da mesma maneira. É a base de uma civilização, um movimento que altera pouco a pouco a maneira de transmitir e de ensinar. A constituição das Universidades, nos séculos XII e XIII, já se acha potencialmente nessa profunda reorganização da escrita. Depois disso é possível julgar fisicamente, à só visão dos manuscritos, a importante virada que são os séculos XII e XIII. A minúscula carolina desaparece. A escrita torna-se irregular, personalizada, com um sistema de abreviações. E a prova de que se escreve rapidamente e de que se penetra na palavra viva. Há de agora em diante numerosos estudantes e mestres. Há os que anotam e os que têm autoridade para se dirigir a um grande número de pessoas. A rapidez da escrita permite fixar a mobilidade do pensamento, as intuições, as variações. Cresce ainda mais a interioridade. A memória se modifica de novo. Uma grande parte dos tratados do século XIII, sem exceção daqueles provindos das mais altas autori-

dades, como Tomás de Aquino, foi redigida a partir de notas tomadas durante os cursos. O próprio Tomás nos deixou muitos traços de sua própria escrita — uma terrível escrita resumida — na qual se sente a louca rapidez do pensamento no momento de nascer, engendrando-se ele próprio. E o tempo do cursivo e das abreviações. Uma nova ordem, uma nova regulamentação, chega com os humanistas dos séculos XV e XVI, especialmente com Erasmo. Prova de que há uma mudança de época, não de civilização. A impressão começa, de fato, a expandir um novo tipo de texto. Haverá evidentemente, e ainda por muito tempo, manuscritos e algumas fontes continuam sendo apenas manuscritos. Porém manuscritos que não têm mais exatamente o mesmo papel. Diante das fontes impressas o historiador não pode reagir da mesma maneira que em face do manuscrito. Hoje uma alteração essencial se produz com o computador. A felicidade que tive de descobrir os manuscritos medievais foi grande, ainda que com muitos deles eu só travasse conhecimento através de fac-símiles, de fotografias. Isso foi fundamental. Em seguida, estive atento a desenvolver o conhecimento de outras fontes: especialmente a arqueologia medieval e o estudo das fontes artísticas, iconográficas. Esse contato com o documento cria a distinção fundamental entre o "verdadeiro" historiador, o historiador de ofício, e o historiador de segunda mão, que, por maiores que sejam suas qualidades, não passa de um historiador amador, um ersatz de historiador. Pode-se dizer que toda a história se situa na produção de documentos e na decifração dos documentos a que denominamos fontes. Dá-se, assim, um movimento no sentido da história que se faz para a história que se conta, se anota e

constitui a memória escrita, grande necessidade da humanidade que não quer desaparecer; esse movimento leva os homens e mulheres vivos ao historiador, e o historiador os impede de morrer. Quanto ao termo fonte, ele me incomoda. Por um lado, a palavra me seduz, porque faz do documento alguma coisa viva, uma fonte de vida. Mas, por outro lado, pode levar — e levou alguns historiadores — a pensar que a história "escorre da fonte", sai toda pronta dos documentos. Para os historiadores "positivistas" do século XIX e do início do século XX, era suficiente reunir documentos, fazer-lhes a crítica do ponto de vista da autenticidade (provar que não eram falsos — a história dos falsos é uma bela página da historiografia) e a obra histórica estava pronta. Aprendi com meus mestres dos Annales que é o historiador que cria o documento, que confere a traços, a vestígios, como diria Carlo Ginzburg, o status de fonte. O questionário do historiador — as questões que levanta para si e que levanta em relação ao documento (uma parte essencial de seu ofício) — constitui a base da historiografia, da História. Por longo tempo subestimou-se a arqueologia medieval, uma vez que os traços desse período freqüentemente se tornam complexos com as adições e remanejamentos posteriores — enquanto que os restos da Antigüidade parecem mais facilmente visíveis: são as ruínas, as pegadas nos campos, restos recobertos por outros restos muito diferentes. Durante longo tempo, considerou-se, principalmente, a arqueologia como um documento de segunda ordem. Para a Antigüidade, havia a necessidade de se servir dela, por falta de textos. De acordo com a concepção preguiçosa do historiador que deve deixar "falar" suas fontes, a fonte arqueológica parecia me-

nos clara do que a fonte textual... ainda que freqüentemente a escrita seja produzida mais para mentir do que para dizer a verdade! Conheci nos anos 1950 e 1960 uma regulamentação da atividade arqueológica na França que suspendia (em particular para as escavações) a arqueologia identificada com o ano 800. Carlos Magno foi coroado, o texto venceu, suspenda-se a arqueologia. Nunca vi concepções tão estúpidas e burlescas. Felizmente há hoje em toda a Europa uma arqueologia medieval ativa e fecunda. Por fim, e principalmente, a arqueologia não se limita mais à escavação e ao estudo dos monumentos, nem à pesquisa exclusiva dos belos objetos. Interessa-se pelos sítios globais: cidades e aldeias. A escavação das "aldeias abandonadas" trouxe muitos conhecimentos novos sobre a vida rural medieval. A arqueologia também se interessa pelo que chamamos de "cultura material", capítulo agora importante da história. Descurava-se, enfim, o mais visível, o mais evidente: refiro-me à imagem medieval. Onipresente, essa imagem foi durante longo tempo interpretada sob seu ângulo artístico — o que é necessário —, mas subestimava-se, de saída, sua contribuição documental, seu valor de testemunho, de expressão. Saídos do romantismo, ou hostis ao romantismo (ousaria dizer que nesse domínio os dois partidos se parecem), os historiadores nem sempre souberam ver que a obra de arte, ou de artesanato, não se resumia à bela invenção feita por um autor artista. Não via que ela também reflete regras, códigos, costumes, encomendas. Em resumo, que o indivíduo — noção cara aos séculos XIX e XX, que pouco tem a ver com o espírito medieval — da época se exprimia certamente com sua sensibilidade pessoal, mas também e em primeiro lugar

em função de um certo número de convenções próprias da época. E isto era significativo. A tradição romântica está ligada à beleza. O que se procura nesse caso é o homem, o gênio, sob regras impostas. Acaba-se, de saída, por diminuir a importância dessas regras, tomadas como tal. A imagem é um outro jeito de ser de um texto. Essas regras têm por finalidade comunicar uma mensagem ao público f Um "grande público" a ser convencido pela vulgarização e produções em massa — tudo isso é uma idéia moderna. A questão não se situava assim na Idade Média. O primeiro destinatário (ou o destinatário final, como se queira) era Deus. Toda obra a que chamamos obra de arte (a expressão não existia na Idade Média) era uma imitação da criação divina ou da natureza, ela própria criatura de Deus. Havia comanditários e comandos: a Igreja, os poderosos, os notáveis, as comunidades instituídas. O nível, essencialmente, era esse. O dos comanditários com aquilo que eles tinham necessidade de expressar. Por muito tempo o artista medieval não foi mais do que um artesão que trabalhava sob comando. A obra de arte, a imagem e seus temas são uma fonte para o historiador por duas razões: seu conteúdo significativo ultrapassa a sensibilidade do artista, do comanditário e daqueles que o recebem. Assim como o historiador dispôs de recursos para chegar à noção de mentalidade no domínio das idéias, também tem de recorrer à noção de sensibilidade coletiva para dar conta do significado histórico de uma obra de arte. O historiador não deve esquecer que uma parte significativa da criação artística se endereça de modo definitivo ao conjun-

to do povo cristão — que essa criação constitui um elemento essencial da liturgia, força estruturante da comunidade medieval. Desse modo, o documento artístico, a imagem se concentram nos lugares, nos monumentos em que se desenvolve mais fortemente, mais freqüentemente essa liturgia: a igreja, a praça comunal. Há certamente a imagem reservada a uns poucos, ou a Deus: as esculturas que não podem ser vistas, as pinturas de manuscrito, os tesouros de igreja. Mas acabam sempre por se tornarem objetos de exibições, de ostensões* — ainda que raríssimas, tanto mais fortes, por isso mesmo. O século XIX nos trouxe muitas contribuições. Adquiriu, entretanto, nesse domínio, um peso às vezes muito pesado, se assim se pode dizer. Nossa famosa Ecole des Chartes ilustra bem essa inflexão. Criada em 1821 por Luís XVIII, na esteira da moda "trovador" (Chateaubriand, de novo!), reformada em 1846, a Ecole des Chartes devia salvar e reabilitar os documentos escritos em baixo latim e em francês antigo — memória posta em perigo pelo desprezo das Luzes e depois da Revolução por esses documentos antigos. Esse prestígio novo da Ecole des Chartes faz parte de um movimento mais geral, em que se combinam o imaginário que inspira H u g o (ou Michelet) e um desejo de conhecimento específico do passado, impregnado de uma inspiração nacionalista. Nesse momento nasce a noção de patrimônio, tão característica do século XIX. É no início do século, igualmente,

que Alexandre Lenoir, fundador em 1796 do Museu dos Monumentos francês, reúne os conjuntos ornamentais salvos da Revolução. Lenoir publica, em 1804, o Musée des Monuments de France. Também funda a Comissão dos Monumentos Históricos, que terá por ilustrador Prosper Mérimée. No mesmo momento, edifica-se no Cemitério de Père-Lachaise um túmulo para Abelardo e Heloísa. Logo virá o genial Violletle-Duc (1814-1879), teórico rigoroso do gótico (em Carcassone, em Notre-Dame de Paris), que vê nessa arte o produto de um imaginário espírito democrático medieval. Devemos a essas iniciativas, retomadas pela Terceira República, um trabalho admirável, semelhante ao trabalho feito na mesma época pela grande escola filológica alemã. Infelizmente, essa volta às fontes, aos manuscritos, à paleografia, dirigia-se essencialmente aos escritos jurídicos: as cbartes.* O próprio regime de Luís XVIII não se baseou numa Carta? Com a Ecole des Cbartes, já se vê, focalizou-se longamente apenas uma parte do acervo medieval. As intenções foram as melhores possíveis, mas, não apenas em relação à Idade Média, como à História em geral, os estudos ficaram restritos às instituições. Os chartistes [os estudiosos da equipe da Escola] compreenderam bem que a Idade Média formava um sistema, um todo. Mas nela não viram uma civilização. Retomaram, dando-lhe uma acepção neutra, o termo com o qual os

juristas das Luzes condenavam a Idade Média: o feudalismo. Mais adiante (no capítulo IV deste livro), voltarei a essa palavra, que ainda confunde nossa percepção da Idade Média. Digamos, por ora, que a noção de feudalismo é essencialmente jurídica, refere-se à posse e transmissão — regidas por um contrato — de um bem, de um feudo. Para os juristas das Luzes, o sistema medieval que desejaram destruir (o que a Revolução Francesa acabou por fazer) ordenava-se em torno desse feudo e a ele se resumia. Ampliavam esse elemento jurídico, de uma importância secundária (que só existia em relação à ligação social do senhor e do vassalo), para formar sua visão global da Idade Média. Conhece-se o ardor que punham os revolucionários em pisotear tudo aquilo que lembrasse de perto ou de longe os "horrores" feudais. Havia nisso, se ouso dizê-lo, alguma coisa de psicodrama: as estruturas jurídicas, econômicas e sociais herdeiras do absolutismo já não tinham muito a ver com as do feudalismo. Na verdade, estavam bem distantes delas. Os historiadores modernos, conservando os termos, deram-lhes um conteúdo muito mais complexo e mais rico, de natureza mais social e antropológica do que jurídica. Hoje, fazemos a história da Idade Média quase sem recorrer à noção de feudo — o que mostra a extensão das mudanças. Para deixar essa abordagem excessivamente jurídica, foi preciso ampliar o estudo das fontes; foi preciso consultar tudo aquilo que os historiadores não liam no século XIX, ou não julgavam digno de ser lido: sermões, manuais de confissão, teologia prática, contas comerciais, etc. Descobre-se assim uma Idade Média diferente. E uma História diferente.

O senhor deixou subentendido: com a difusão da imprensa, as fontes mudam. Haverá a seguir a multiplicação mecânica das imagens, depois a do som, depois a do audiovisual, acrescentando-se a isso a conservação crescente de arquivos de todos os gêneros. Isso muda o trabalho do historiador? O medievalista tem sorte, de verdade. Seus métodos, mesmo ampliados, permanecem na medida de seu assunto. Em compensação, não acredito que a história moderna e — menos ainda — a história contemporânea possam conservar imutáveis seus métodos. Lucien Febvre (1878-1956) e Mare Bloch (1886-1944), depois Fernand Braudel (1902-1985), Georges Duby (19191996) ou eu próprio somos todos especialistas, seja em Idade Média seja nesse outro período "medieval" que é também, na minha opinião, o Renascimento. Há coisa semelhante nas importantes escolas alemãs, italianas e anglo-saxônicas, para citar só estas. Não estávamos sozinhos. O historiador dependente das fontes, em sua relação com elas desempenha um papel importante nas escolhas que faz desse período. Idade Média e século XVI oferecem um feliz equilíbrio quantitativo de fontes entre a penúria antiga e a pletora moderna, sobretudo contemporânea. Devo essa orientação ao movimento dos Annales, que descobri quando preparava a agregação.* Fui favorecido por uma grande sorte. No ano de 1950, em que passei no concurso, houve uma grande revolução. O ministro da Educação

nacional tinha, no outono de 1949, mudado radicalmente os membros da banca. A agregação no setor de história tornavase coisa dos historiadores dos Annales. Fernand Braudel tornou-se o presidente. 0 historiador sem dúvida mais inovador no grupo era o medievalista, pouco conhecido, notável para Lucien Febvre, Maurice Lombard, um especialista em Islam medieval, que ensinava na marginal Ecole Pratique des Hautes Etudes. Essa escola foi fundada pelo último ministro da Instrução Pública de Napoleão III, o historiador Victor Duruy, em 1868, com o sentido de criar, ao lado dos cursos de professores de uma Sorbonne mais retórica do que científica, um ensino superior com base no seminário, quer dizer, num grupo de trabalho e não mais num anfiteatro de ouvintes passivos. Imitava-se nesse caso a Prússia, da qual se sentia a preeminente modernidade, que a guerra de 1870 iria comprovar. Essa audácia na forma não tinha, entretanto, confirmação imediata no conteúdo. O ensino da seção histórica — a IV seção, voltada para as ciências históricas e filosóficas — não era muito diferente em sua concepção daquele da Ecole des Chartes. Além da nova e notável V seção — a das Ciências Religiosas, concebida num espírito à maneira de Renan —, Victor Duruy tinha previsto uma VI seção para as Ciências Econômicas e Sociais. Tratava-se de inovação tão grande que não havia historiadores suficientes para dirigir cursos lá e desenvolver seminários. Assim, a VI seção não chegou a ser criada. Foi preciso esperar 1947 para que Lucien Febvre, professor no Collège de France e presidente da IV seção dos Altos Estudos, criasse a VI seção, que de pronto se tornou uma sensação, provocando vivas hostilidades. Tive a sorte de começar nesse contexto. Os primeiros tempos de uma revolução são, de um modo geral, entusiasmantes

e fecundos. Esse caso não foi exceção. Participei da vida dos candidatos à agregação na escada e nas pequenas salas de uma ala isolada da Sorbonne, que abrigava os Altos Estudos (até 1968, quando a IV seção expulsou a VI de lá). E aquilo foi um deslumbramento. Fiquei encantado por dois grandes historiadores, Fernand Braudel e Maurice Lombard. Aprendi que havia uma história nova e, sobretudo, que a história com que eu sonhava existia. Descobri que tinha razão ao querer "fazer história" e mais particularmente história medieval. Entrei num ofício que foi uma das grandes alegrias da minha existência e até hoje ainda o é. Conhece-se a frase célebre de Mare Bloch: ttO historiador é como o ogro da fábula: onde sente cheiro de carne humana, sabe que lá está sua presa." Os Annales, dessa forma, me ensinaram que a história decorre de uma certa maneira de levantar os problemas diante dos documentos e dos fatos. Comportamo-nos assim: situamos as questões a partir de nossas fontes. Em compensação, as fontes nos obrigam à vigilância crítica quanto ao funcionamento de nosso próprio espírito. Desse período nasceu o que então chamamos de "Nova História" (que agora, claro, já não é tão nova assim...). Tratava-se de uma novatio — como diziam, com pavor, os clérigos medievais, que escondiam o novo porque a Igreja não o via com simpatia, achando que o mundo a partir do pecado original estava em declínio constante. Essa novatio marcou o conjunto da disciplina. A História se estendeu à vida privada, aos costumes, às mentalidades, às sensibilidades, etc. Não vou ficar me lamentando. Penso, todavia, que a História dos tempos modernos (tradicionalmente fixados do "Renascimento" à Revolução Francesa) e, mais ainda, a do mundo contemporâneo (depois de 1789...) — para retomar uma periodização

pouco convincente —elevem ter seus métodos de estudo repensados, construir outras técnicas de abordagem. Adotar problemáticas diferentes, para usar uma palavra enjoada. O senhor duvida daquilo que se chama a História do Tempo Presente? Absolutamente, não duvido. Faço parte daqueles que, no Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, pela sigla francesa), apadrinharam o Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), de influência fecunda, considerável, e foi um amigo muito querido que lhe foi o primeiro e admirável diretor, François Bédarida. Interrogo-me, contudo, quanto a essa noção, agora que o tempo passou, e que nossa percepção do "tempo presente" evoluiu. Compreenda bem: a história contemporânea permanece um imenso canteiro de obras, apaixonante, cheio de riscos. Será preciso, porém, uma outra abordagem, exclusivamente por causa do engarrafamento e da natureza das fontes. Enquanto eu disponho de dezenas de documentos, às vezes sobre muitos séculos, os historiadores do Tempo Presente se vêem às voltas com algumas dezenas, centenas, milhares, até mesmo dezenas de milhares de fontes: escritas, sonoras, iconográficas, arquiteturais, cadastrais, urbanas, etc. A esta altura, a ferramenta já não se adapta mais ao terreno. Não digo que seria impossível estudar o Tempo Presente. Penso, uma vez mais, que é preciso estudá-lo de outra forma. E portanto repensar as regras. Quando a relação com os documentos muda, o historiador muda de período. E, afinal, a relação do historiador com esse passado próximo a que chamamos presente é diferente.

Para escrever sua História da Revolução Francesa (18471853), Michelet — meio século depois d o s fatos — ainda teve condições de dominar seus arquivos, entretanto consideráveis. A partir do século XX, o arquivo explode. Novos caminhos foram abertos: constituíram-se equipes, partiu-se para o tratamento quantitativo informatizado dos dados, novos ângulos passaram a ser explorados, etc. Essas técnicas não são próprias à história do Tempo Presente. O senhor mesmo procedeu desse modo para a Idade Média. Trata-se de um efeito bumerangue. Os medievalistas constataram que se deparavam às vezes com dificuldades comparáveis às que encontram pela frente os historiadores contemporâneos. Tomaram, então, seus métodos de empréstimo, uma vez que o diálogo é constante entre especialistas dos diversos períodos. Durante muito tempo, por exemplo, viu-se com desprezo a importante produção de sermões acumulada ao longo da Idade Média. Apesar de todos os sermões que não foram deixados por escrito, e dos numerosos manuscritos perdidos, a quantidade permanece enorme. O medievalista neles se afoga. Neste caso é preciso achar um modo de tratamento adaptado ao quantitativo: estudo estatístico do vocabulário, cálculo das ocorrências, repartição geográfica, etc. Mas isso continua sendo uma coisa rara, para o período, e dá-se sobretudo na área da história cultural, e ainda na história das mentalidades. Entretanto, para o econômico ou o político, quase não lidamos com coisas assim. Antes do século XII, na verdade, a Idade Média não faz contas, ou pelo menos não gosta de contar. Quando falam

em números, os homens da Idade Média usam símbolos: 3, 7, 12 e todos os seus múltiplos, ou, quando se quer assinalar quantidades significativas, mil, às vezes um milhão. A história, ainda hoje, se atrapalha com o uso do termo Millenium, tomado de empréstimo à confusão do Apocalipse (com razão denunciada por Nietzsche e por D. H. Lawrence). 1 Millenium, na Idade Média, não significa mais do que "período muito longo". Mas isso suscita, desde então, devaneios sobre o milenarismo, especulações sobre o fim do mundo. Exemplo espetacular: os "terrores" que teria suscitado a aproximação do Ano Mil — idéia tipicamente... romântica. 2 Nesses números medievais temos, na melhor das hipóteses, ordens de grandeza. Os medievais queriam dizer que tal epidemia tinha feito devastações, que tal batalha tinha sido importante, etc. E verdade que os historiadores quase não trabalham, salvo exceções, usando o quantitativo. Nós nos deparamos mesmo, freqüentemente, é com a ausência de documentos ou com o silêncio dos textos. É um dos limites da medievalística, uma situação que somos obrigados a enfrentar com métodos particulares. Os camponeses da Idade Média não escrevem. Só aparecem indiretamente, em nossas fontes, pelo que deles dizem os clérigos. Ora, mais de 80% da Europa medieval é camponesa. Entre as mulheres que, logicamente, representam a metade da população, a coisa não melhora: elas não deixaram

manuscritos, salvo raras exceções — o que não quer dizer, claro, que as mulheres e camponeses fossem mudos, inativos e sem influência durante todo esse período! Os historiadores, são, de resto, capazes de fazê-los falar, dentro de certos limites. Somos ainda historiadores da falta e das lacunas, mais próximos, nesse caso, de nossos confrades historiadores da Antigüidade ou pré-hisroriadores do que dos "contemporanistas". Com grandes esforços de método e respeitáveis esforços de imaginação, podemos, entretanto, fazer com que as lacunas falem. É uma das tarefas dos medievalistas que virão, fazer falar os silêncios acuais da Idade Média.

Todo medievalista vê-se diante da questão do seu período. Não escapei à regra. No início dos anos 1950, o corte tradicional ainda mantinha sua autoridade: a Idade Média — implicitamente concebida como ocidental — começa em 476 e acaba em 1492. Em 476, Odoacro, rei dos hérulos, depõe o jovem Rómulo Augústulo,* "imperador'' rigorosamente formal do Ocidente, então com a idade de uma quinzena de anos. Os hérulos, longínquos descendentes de povos escandinavos, viviam à beira do Mar Negro. O acontecimento de 476 parece não passar de um simples episódio. O verdadeiro Imperador era na verdade o de Bizâncio, Zenon, que, como tal, continua sendo o homem de influência das intrigas regionais que são, por essa época, os negócios romanos. Eis o acontecimento fundador. Passemos ao ano de 1492. Cristóvão Colombo descobre a América. A Espanha cristã derrota os muçulmanos em Granada e completa assim sua reconquista. Como disse Alphonse Aliais: o homem de 1492 sabia, ao deitar-se para dormir no dia 31 de dezembro na noite da Idade Média, que acordaria

no dia seguinte, I o de janeiro de 1493, na manhã do Renascimento? Já tenho dito que, no meu modo de ver, um fato histórico é sempre construído por um historiador. Da mesma forma o são os períodos — e estes mais ainda. Não há nada a nos assinalar que se entra numa época, nem que se sai de outra. Como historiador, herdo uma periodização, modelada pelo passado — mas devo também me interrogar sobre esses cortes artificiais do tempo, às vezes nocivos à boa percepção dos fenômenos. Quando se vê generalizar-se, sob Carlos Magno, o códex e a letra conhecida como minúscula carolina, definitivamente não estamos mais na Antigüidade. Isso não impede que alguns traços da Antigüidade persistam aqui e ali em outras faces da mesma civilização. Ao invés, traços, para nós, medievalistas, afloram já no curso da Antigüidade tardia, que há algum tempo os historiadores tiveram a tendência, a justo título na minha opinião, de espichar, como Henri Irénée Marrou propôs recentemente. Esta precisão: Antigüidade tardia, me parece essencial. Não se fala mais, hoje, de Baixo Império — subentendido: decadente. Isso suporia um Alto Império pretensamente mais "evoluído", estendendo-se de Augusto a Constantino. Compreenda-se: o Império foi "alto" antes de sua cristianização por Constantino. Depois "baixo" desde que o paganismo — o não-cristianismo — reflui. Ora, tudo indica um poderio em seu apogeu, estendendo-se de Constantino (início do século IV) até Justiniano (século VI) o que corresponde pelo menos a 300 anos... Digo imediatamente: privilegio a dupla continuidade/virada em prejuízo da noção de ruptura A história transcorre de modo contínuo. Uma série de mudanças — que freqüen-

temente não são simultâneas — delimitam evoluções. Quando um certo número dessas mudanças afeta domínios tão diferentes como a economia, os costumes, a política ou as ciências; quando essas trocas acabam por interagir umas sobre as outras até constituir um sistema, ou, em todo caso, uma paisagem nova, então, sim, podemos falar de uma mudança de período. Nenhuma troca, porém, tem como referência uma única data, um único fato, um único lugar, num único domínio de atividade humana. Para nós, franceses, a Segunda Guerra Mundial começa em 1939. Para os americanos e os russos, começa em 1941, mas para os tchecos ela terá começado antes, em 1938. Da mesma forma, façamos desaparecer o Antigo Regime político em 1789. Ideologicamente, se posso dizer, o Antigo Regime sem dúvida estava morto há quase um século, com a querela quente do jansenismo. Culturalmente, persiste em amplas características do século XIX, e bastaria o empreendimento napoleónico para prová-lo. François Furet mostrou claramente que a Revolução Francesa prosseguiu durante uma boa parte do século XIX. Afinal, não se empregam mais expressões como Baixo Império ou Alta Idade Média. Os Baixos Alpes se tornaram os Alpes da Aira Provença, e os Baixos Pireneus agora se chamam Pireneus Atlânticos... Podemos, portanto, evitar essa terminologia alto/baixo, que — em História — não é inocente. Esse tipo de nomenclatura remete a um raciocínio essencialmente medieval, segundo o qual o alto é o antigo, o passado venerável, que cria autoridade, enquanto que o baixo é o recente, imperfeito, decadente. Para um homem da Idade Média, o tempo presente resulta de

uma longa degringolada, longe das perfeições do passado. É preciso, no entanto, voltar à própria Idade Média para compreender melhor o paradoxo. A expressão e a noção de "Idade Média" surge no século XVI, com Petrarca e os humanistas italianos. Falam eles de um médium ternpus (idade do meio) ou, no plural, de media têmpora. Está muito clara essa idéia de "meio" no inglês, com Middle Ages, no espanhol EàadL Media ou no Mittelalter alemão — ainda que os alemães, com Alter, introduzam, mais que a noção de idade, uma conotação "venerável": a palavra alt (antigo) induz uin certo prestígio. Observa-se, ao contrário, em francês, a evolução depreciativa da palavra Moyen [média]. A conotação estritamente formal de "médio" — intermediário— quase desapareceu: fala-se com um certo desprezo de um resultado médio, de um espetáculo médio, de um nível médio, etc. Reconhecemos imediatamente em Petrarca um espírito medieval. Como muitos humanistas, ele pretende reencontrar a Antigüidade em toda a sua pureza, uma vez que a Antigüidade é a idade "alta", da qual os homens, ai de nós, não deixaram de se afastar. Petrarca tem a impressão de que um verdadeiro Renascimento está surgindo, que a cristandade poderá ver o fim do túnel medieval. E se ele quer reencontrar esse verdadeiro e grande passado, livre das críticas acumuladas ao longo do tempo, é também para reformar uma Igreja católica comprometida com o século, carregando o peso da cidade terrestre, muito afastada daquela CivitasDei que Santo Agostinho celebrava. Buscar a reforma através de um retorno às fontes é uma constante na Idade Média. Impondo a letra carolina, a revisão das Escrituras, Carlos Magno pensava em reformar: voltar aos bons textos da Escritura, às fontes não corrompidas.

A NOÇÃO DE "RENASCIMENTO"

Médium tempus, portanto, Idade do meio. Mas em relação a quê? Em relação à Antigüidade, por um lado. Em relação ao futuro, por outro lado. Os humanistas julgavam que estavam saindo de um período sem nome, de um intermédio. Os sábios dos séculos XIII e XIV julgam, aliás — retomando uma teoria judia das Idades do Mundo —, que a humanidade se acha justamente na sexta e última Idade, ponto final de um declínio contínuo. Alguns até dizem, contra toda a evidência, que os homens se apequenavam e "envelheciam": seriam anões em relação aos "gigantes" dos tempos heróicos, intrinsecamente gastos. Outros chegavam a pretender que nascemos mais "velhos" do que nossos ancestrais. Dar uma dimensão magnífica ao passado entretanto trazia problemas. A Antigüidade — d a Idade Média até o século XVII — tem seu valor a partir do Cristo, dos apóstolos e dos Padres da Igreja. É o tempo da fundação do cristianismo. Mas é também o tempo dos deuses, dos autores não cristãos, dos pagãos e dos idólatras. Isso só em parte incomodava os cristãos da Idade Média. Porque a Antigüidade tinha se convertido: todos os grandes autores greco-romanos de certa forma anunciavam a revelação que estava para chegar. Eram precursores — sem dúvida ainda insuficientemente esclarecidos, mas de qualquer forma esclarecidos. Por isso é que personalidades como Cícero e depois Aristóteles, quando este foi elevado a um lugar de honra, tornaram-se referência, sem que se visse contradição nisso em relação aos Padres da Igreja.

Santo Agostinho, aliás, não tinha ele próprio reciclado de maneira brilhante os autores pagãos e o sistema das sete "artes liberais" que resumia a totalidade do saber? Resta o problema do futuro. A que conduz esse período vago e incerto, esse tempo do meio, que vivem os homens da Idade Média? A um "renascimento", claramente. Ou antes, como vamos ver, a "renascimentos". Este renascimento, para os humanistas, não passa de uma volta da Antigüidade: brilhará para nós, ao contrário, como uma Antigüidade que virá — um tempo análogo ao da Antigüidade, mas não a repetição inútil da Antigüidade. O cristianismo nesse tempo encontrará afinal sua perfeição primeira. No Evangelho, o fariseu Nicodemus pergunta a Jesus: "Como pode um homem nascer sendo velho? Pode ele entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e voltara nascer?" (João, capítulo 3). Jesus lhe responde que esse homem fruto de um renascimento será "nascido da água e do espírito". E um renascimento desse tipo, um renascimento em espírito que os cristãos da Idade Média esperam. Por isso eles se julgam descoloridos — situados entre duas épocas coloridas. A própria Idade Média, assim, se autodeprecia Mas não abusemos das palavras. A "Idade Média" não existe antes do início do século XVII e o "Renascimento" só se constitui plenamente no século XIX... Foi em 1676 que Christoph Cellarius (latinização do nome alemão Keller) publicou em Iena,em latim, uma história medieval. Em lugar de médium tempos, como se tinha tornado um hábito, ele emprega a expressão médium aeium. A nuança tem seu valor: aevum, "a época", substitui tetnpus, "o tempo". Alguns anos mais tarde, em 1688, Charles du Cange, em seu Glossariumy retoma uma terminologia similar. Isso se radicaliza no século

XVni — esse século que se institui a si mesmo como das Luzes, lançando outra vez a Idade Média na escuridão. Os ingleses dirão mesmo DarkAges, "Idades Sombrias". A Idade Média não é mais, depois do século XVIII, o período incolor que os medievais pensavam viver, mas um período sombrio, enfeixado entre o passado esplendoroso da Antigüidade e o futuro luminoso dos Filósofos. E um tempo oco, caracterizado pela ausência da razão e ausência de gosto. A palavra gótico — antes da reabilitação feita por Walter Scott e Chateaubriand — torna-se sinônimo de feiúra, de esquisitice, de falta de jeito... Essa depreciação buscava, claro, atingir a Igreja. Voltaire o diz explicitamente em seu Ensaio sobre os costumes, 1756: obscurantismo clerical e Idade Média são uma só e única coisa. Leibnitz o tinha dito, antes de Voltaire. Observa-se, por fim, que o futuro segundo as Luzes parece-se pouco com esse "renascimento" vago, próximo do fim do Tempo, que era a visão dos medievais. O futuro de agora em diante se inscreve dentro de uma perspectiva, a do progresso. História e progresso logo se confundirão: esse seria o risco do século XIX, para o qual a História tem um sentido, tendendo para o melhor e o bom. Enquanto na Idade Média o próprio progresso parece o fim da História, a transfiguração, a caminhada para fora do tempo. Dito isso, a ambigüidade persiste. Quando os homens de 1789 se querem latinos, quando se julgam romanos e celebram a Antigüidade, retomam os temas caros às Luzes. Também reatam — mais do que se imagina hoje e mais do que eles pensavam, então — uma tradição medieval. Citarei apenas a aventura de Cola di Rienzo (1313-1354). Esse filho de artesãos, grande leitor de Tito Lívio, quis instaurar uma "re-

pública" em Roma, atraindo a simpatia de Petrarca e até, durante algum tempo, do papado que então se achava em Avignon. Cola di Rienzo citava o direito romano, referia-se a textos da Antigüidade, opunha-se aos baroni romani, os grandes proprietários de terras, sonhava com uma renovação universal do cristianismo. Não entro no caso de sua "comuna", indossociável do desenvolvimento da Itália do século XIV. É o imaginário que me interessa. E esse imaginário, profundamente medieval, também se liga à Antigüidade. Cola quer restabelecer a velha Roma, para que a verdadeira Igreja desabroche. Em 1841, o jovem Wagner cantará esse episódio em sua ópera Rienzi, interessante conjunção de espírito revolucionário "burguês", de inquietudes germânicas e de Idade Média reinventada. Porque a Idade Média revive no século XIX, a um tempo terrível e maravilhosa, violenta e familiar. Fascinante. O que não é forçosamente um trunfo. Para nós, medievalistas, aparece então, de fato, uma grande e desagradável personagem: o suíço alemão Jakob Burckhardt (1818-1897). Historiador da arte e da civilização, próximo de Nietzsche, amoroso da Grécia, Burckhardt— pioneiro — instaura firmemente a periodização a que estamos amarrados até hoje. Apoiando-se em sua paixão pelos Antigos, entusiasmado pela arte italiana do Quatrocentto (nosso século XV), ele estabelece a teoria da ruptura. E ele que inventa o Renascimento, com R maiúsculo, isola-o da Idade Média e estabelece esse corte definitivo. Burckhardt joga com a antítese. Opõe esse período — o Renascimento — ao tempo das trevas, que ainda não estava claramente circunscrito, nem datado. Sua Civilização do Renascimento na Itália (1860), de resto um grande livro, cria um corte decisivo.

Uma velha palavra medieval, a palavra "moderno" — que significava "recente", "presente" — assume assim um valor que havia provocado na virada do século XVII para o XVIII a Querela dos Antigos e dos Modernos. Ser "moderno" não é mais apenas pertencer ao período atual, mas ser melhor, despontar com mais força, estar à frente do progresso. Procurou-se então o moderno por toda parte no passado, embaralhando as cartas sem proveito. (Inventou-se depois o pós-moderno, mas esta é uma outra história...) A partir de Burckhardt, o Moderno coroa a evolução, pula por cima de mil anos de errâncias (nossa Idade Média). Marca o início das coisas sérias, da civilização plena e total, com seus progressos, sua Razão, seu saber incomparável, etc. Antigüidade perseguida por outros meios, o Moderno, como que por acaso, representa o fim da História. Os europeus não precisarão, daí em diante, mais do que aperfeiçoar as descobertas "modernas" e completar seu sistema político, evidentemente universal. E o que impera nos anos 1860-1880: uma mistura de ecletismo neoclássico e de modelos aparentemente italianos. Parece, então, que se chegou a um ponto que não pode ser ultrapassado. Não contesto Burckhardt quanto à sua estatura intelectual, nem quanto à sua erudição, nem quanto às suas qualidades em relação ao método. Apenas considero seu sucesso como uma catástrofe. Não só ele confirma a idéia de uma Idade Média negra, mas dá uma importância exemplar a uma região: a Itália, certamente brilhante, certamente muitas vezes culturalmente andando à frente, mas que seguiu muito tardiamente a evolução política. Confunde, com isso, a percepção européia que é preciso ter sempre da Idade Média. Numerosos contra-exemplos pocem se opor à tese de Burckhardt. Persiste, contudo,

nos espíritos, a idéia de que haveria uma zona "avançada" e zonas "retardatárias", que nisso estaria um perfeito equilíbrio, um ideal impossível de ser ultrapassado, etc. Essa visão da história segundo Burckhardt corresponde, com toda a certeza, às expectativas da cultura germânica do século XIX: a Grécia dividida mas genial; a Itália repartida em fatias mas genial, anunciavam uma Alemanha genial, da Prússia à Áustria, superando suas divisões, nova Roma e nova Atenas. Não nos esqueçamos que o Sacro-Império RomanoGermânico só desapareceu em 1806, não mais do que meio século antes da obra de Burckhardt. Burckhardt empurra a Alemanha e a Europa para o sul, inspirando-lhe uma nostalgia (Sehnsucht nacb Süden) pesada de desequilíbrios. Digamo-lo, aliás, sem rebuços: Burckhardt, com gênio, tudo que fez foi erigir em sistema um movimento geral, o da pesquisa apaixonada das origens, da paixão pela História, fundamento do nacionalismo. As burguesias nacionais européias afastam-se da Antigüidade que por longo tempo as fascinou, deixam em segundo plano o culto efêmero de uma Idade Média imaginária proposta pelo romantismo, e descobrem na História a narrativa fundadora da nação e a legitimação de sua eventual preeminência. Muitos, finalmente, escolhem como ano zero o Renascimento: Lutero na Alemanha, a Reforma na Inglaterra... Isso fica muito claro, na França, com Michelet. Depois de ter por muito tempo passeado por uma Idade Média que o entusiasma e o enternece, porque ele encontra o povo verdadeiro na pessoa de Joana d'Are ou de Jacques Bonhomme — camponês imaginário, simbólico —, Michelet faz o prefácio em 1869 do tomo VII de sua História da França com um espírito totalmente novo. Ruptura violenta com o primeiro romantismo. Não existe nada de verdadeiramente bom, diz

ele, antes do Renascimento, aurora dos tempos presentes, cujos símbolos são dois gigantes: Rabelais e Lutero. 1 Se o século XIX se debruçou sobre a Idade Média com mais interesse do que os séculos XVII e XVIII nem por isso chegou a produzir — salvo casos isolados — mais do que uma reabilitação relativa. A Idade Média tornou-se um folclore, uma espécie de infância da nação, felizmente atingindo a idade adulta com o Renascimento. A cada nação, então, convinha mostrar que era a nova Itália, o ápice do moderno, etc. Nesses tempos de expansão colonial, construiu-se a imagem do indígena. Sob essa óptica, os africanos perpetuavam de maneira imemorial os primitivos. Os árabes e os asiáticos, por sua vez, descobrem-se aplicando todo tipo de metáfora medievalística, especialmente o vocabulário da cavalaria e da feudalidade. Colonizando esses primitivos e esses feudais, nós lhes demos as Luzes e os acordamos de seu longo sono medieval...

UM MILÊNIO E SEUS PERÍODOS

A periodização que ainda usamos (476-1492) é portanto muito recente. Vem do século XIX. Responde às necessidades de um ensino escolar e universitário em expansão. Esse ensino tem ne'Tentei mostrar em meu artigo "Les Moyen Age de Michelet", publicado no tomo I da Histoire de France, editada nas 0euvres complètes de Michelet por Paul Viallaneix, Paris, Flammarion, 1974, pp. 45-63 — texto republicado em J. Le Goff, Pour un autre Moyen Age, Paris, Gallimard, 1977, pp. 19-45 — que Michelet ánha passado de uma concepção da "bela Idade Média em 18331844" para uma concepção da "Idade Média sombria de 1855", que ainda aparece no célebre Prefácio de 1869 da Histoire de France.

cessidade de datas, de quadros, de balizas. Quer-se estruturar — e isso não é mau. Mas essa estruturação nunca é inocente. O grande negócio então era menos datar o fim da Antigüidade do que demarcar ou balizar a Idade Média e estabelecer o começo do mundo moderno, com o Renascimento. Muitos defendem, como fim da Idade Média, o ano de 1453, queda de Bizâncio, fim do Império Romano, se bem que os europeus do século X\[ salvo exceção, não viveram o acontecimento como um traumatismo. Mas isso permitia equilibrar a data de 476. Ao fim do Império do Ocidente, quando começa a Idade Média, corresponderia, assim, o fim do Império do Oriente, quando começa... o Renascimento! A queda de Bizâncio, de fato, despeja na Europa muitos sábios, impregnados de cultura grega. Trazem a Grécia até nós. Nós nos tornamos seus herdeiros. A volta está completa. Essa passagem de um testemunho permite estabelecer a economia da Idade Média. Os modernos recebem a Grécia diretamente, sem nada dever, em relação a isso, aos clérigos da Idade Média, que, na verdade, pouco praticaram a cultura grega. A Grécia se torna, assim, a Antigüidade por excelência. Esses distinguos* estão nas idéias preconcebidas acompanhando o aprendizado das "línguas mortas". A Idade Média foi antes de tudo latina: consideramos, entretanto, grosseira a cultura latina, sobretudo o chamado latim "da Igreja". O bom latim é o que vai de Cícero a Tácito. Quer dizer, do século I antes de nossa era ao século II de nossa era. Depois

disso, essa língua entraria, afirma-se, em decadência. Isso permite eliminar a maior parte dos autores — especialmente os Padres — que alimentaram os estudos medievais. Em compensação, o grego, situado em posto de honra pelos humanistas, é refinado, sutil, audacioso. Há de um lado o latim de cozinha balbuciado pelos párocos, de outro o grego aristocrático praticado pelos espíritos livres... Baste-nos lembrar o que mostraram tão bem historiadores como Henri-Irénée Marrou, Paul Veyne ou Peter Brown: desde o fim da República romana, a cultura mediterrânea tornou-se totalmente helenística. É uma cultura essencialmente bilíngüe: não se pode opor pensamento latino e pensamento grego. O século XV se beneficia igualmente do prestígio da imprensa. Posta em condições por Gutenberg (c. de 1400-1463), afinal fixou-se arbitrariamente 1450 como o ano de criação da imprensa. A personagem Gutenberg goza de grande reputação na Alemanha. Imprimir a Bíblia pouco antes de que Lutero a tornasse, com sua tradução, o livro fundador da língua alemã, eis o que dá papel importante à terra germânica. Finalmente, esboça-se um acordo em torno de 1492. Descoberta por um italiano a serviço da Espanha, a América coroa o dinamismo do Ocidente. Os próprios Estados Unidos, ao se tornarem grande potência no século XIX, são sensíveis a essa solução. O fim do reino muçulmano de Granada, nesse mesmo ano de 1492, também funciona como um bom argumento, pois naqueles tempos o Islam surge aos olhos da Europa imperialista como um agente conservador de hábitos "medievalistas". Os franceses também gostam dessa data, uma vez que em 1492 Carlos VIII inicia as guerras da Irália — essa famosa Itália cuja importância foi descoberta por Burckhardt.

Essa periodização é perturbadora. Se se procurar na Itália, por exemplo, obras de arte, movimentos intelectuais ou monumentos que rompam radicalmente com a Idade Média não se vai achar. Ou melhor, vamos achá-los desde o século XIII. Os púlpitos dos Nicolao Pisano, pai e filho (1260-1310), as portas do batistério de Florença no início do século XV, Petrarca (1304-1374), a cúpula do domo de Florença, de Brunelleschi (1420-1436), isso seria Idade Média ou seria Renascimento? Se se examinar a cultura dos Conquistadores e a cristianização dos "índios" é ainda a Idade Média que encontramos. E as próprias guerras da Itália, famosas, não inovam do ponto de vista militar. As técnicas e as estratégias são as da Idade Média. Uma evolução só se desenha a partir dos anos 1520-1530. Eu mesmo ouvi um especialista em história militar afirmar que o comandante guerreiro Wallenstein (1583-1634), um dos protagonistas da guerra dos Trinta Anos, foi o último grande capitão da Idade Média. Em resumo, mas voltaremos a isso: as mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média, uma Idade Média que — em certos aspectos de nossa civilização — perdura ainda e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais. O mesmo se pode dizer em relação à economia, não se pode falar de mercado antes do século XVIII. A economia rural só consegue fazer desaparecer a fome no século XIX (salvo na Rússia). O vocabulário da política e da economia só muda definitivamente — sinal de mudança das instituições, dos modos de produção e das mentalidades que correspondem a essas alterações — com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. E também o momento em que se

chega à construção de uma nova ciência que já não é medieval (Galileu, Harvey, Newton, etc...). O Renascimento é seu inimigo? O Renascimento como máquina de engolir a História, sim. O Renascimento como momento da civilização, não, claro que não! Pelo contrário, desde os trabalhos de Erwin Panofsky (1892-1968) Renaissance and Renascenses in Western Art (1960) — todos os historiadores concordam em que não há mais um Renascimento, mas Renascimentos, e que a própria lógica de renascimento" é indissociável da história medieval. Não se compreenderá a Idade Média se não a integrarmos à idéia de renascimentos sucessivos, e de reformas sucessivas são necessidades constantes, pelo menos desde o tempo de Carlos Magno! A Reforma de Lutero se inscreve numa longa seqüência de reformas. A Idade Média iria se estender por mais de um milênio. Como estabelecer unia periodização dentro desses mil anos? A Idade Média foi dinâmica, fortemente criadora. Mas não o declara. Se nossas sociedades qualificam alegremente de históricos os acontecimentos mais desimportantes (um score de futebol, uma baixa na Bolsa), a Idade Média evita de modo absoluto celebrar as novidades. Ao contrário, na Igreja e a Igreja abrange então toda a vida intelectual — a palavra novitas, novidade, enche de medo e de hostilidade aquele que a ouve. Dizer de um autor que é um novo significa condená-lo: ou acusá-lo de heresia malfazeja. Os criadores, numerosos na Idade Média, recusam essa suspeita. Afirmam

que são imitadores de autoridades veneráveis. Retomam, dizem eles, idéias antigas, limpam-lhes a poeira e as fazem renascer. Santo Tomás de Aquino, imenso inventor de idéias, escandalizar-se-ia se fosse celebrado como inovador. Tudo aquilo que fazia, segundo ele próprio, era voltar às fontes. Novo, novus, é coisa apocalíptica, só alguns audaciosos, alguns provocadores recorriam à novidade entendida de maneira positiva. Por exemplo, os primeiros frades mendicantes, os dominicanos e os franciscanos no início do século XIII. A biografia oficial de São Domingos está cheia de novus, novitas, etc. É portanto — seguindo os exemplos de Etienne Gilson e de Erwin Panofsky — descobrindo renascimentos que é preciso periodizar, no caso. O primeiro desses renascimentos é com toda a evidência o Renascimento carolíngio (fim do século VIH-século IX). Assinalaram-no muito cedo historiadores como Jean-Jacques Ampère (1800-1864), filho do célebre físico Ampère, em sua Histoire littéraire de la France sous Charlemagne 1839). Paralelamente os alemães, na mesma época, começavam a publicar metodicamente os documentos. Dos dois lados do Reno, houve talvez o mesmo exagero sobre esse momento carolíngio, por motivos nacionais: Carlos Magno é francês ou alemão? A questão para nós praticamente não tem sentido. Mas no século XIX ela era importante; mais ainda, sem dúvida, para os alemães: germanizar Carlos Magno permitiria tornar a Alemanha o centro do primeiro Renascimento. Vimos, entretanto, que o tempo de Carlos Magno — caracterizado pela busca de uma edição autêntica da Bíblia e pela reforma da escrita — constrói os fundamentos de uma civilização. Temos a exegese, de um lado. De outro, a arte de 6 8

UMA

LONGA

IDADE

MÉDIA

ler e de escrever. A Idade Média será o tempo do Livro e dos livros. Isso suscita um outro choque, cuja mensuração só hoje os historiadores alcançam: a importância da imagem muda. A imagem reflete a relação que se instaura desse momento em diante com o Livro e os livros. Sabe-se da grave crise que dilacera por duas vezes o Império Bizantino: a iconoclastias a destruição das imagens, tornada doutrina religiosa oficial entre 730 e 787, depois entre 815 e 843. Não se trata absolutamente de uma discussão "bizantina ', especiosa e sofística, mas de uma revolução cultural, seguida de uma contra-revolução, assumindo às vezes o aspecto de uma guerra civil, arrastando a sublevação de regiões inteiras. O Ocidente, graças a Carlos Magno, seu grupo e seus prelados, criou a economia sobre a questão. Carlos Magno não tomou partido pró ou contra a veneração das imagens. Recusa-se a entrar no debate sobre a aniconia — a proibição da representação por imagens. Ele preconiza a teoria do nemnemy para retornar uma forma que teve seu sucesso: nem proscrição de imagens, nem veneração. Apóia-se sobre uma tradição vinda do papa Gregório Magno (c. de 540-604), cuja Carta a Serenus de Marselha justificava o papel das imagens. Seus teólogos se equivocavam também quanto à tradução dos atos do concílio de Nicéia, de 787, que teve a presença da imperatriz Irene para justificar o culto dos ícones. É portanto de maneira parcialmente involuntária que se desenha uma posição original. Como quer que seja, a imagem se desdramatiza, seu uso está autonzado. Evitando a querela, Carlos Magno exclui todo bate-boca sobre a função litúrgica das imagens. As imagens, pensa-se, são intermediárias entre o homem e Deus. Representar Deus

por uma figura nada tem de pagão, nem de idolatria. Trata-se de um ato de devoção, não de culto. Tudo isso distingue o Ocidente de Bizâncio. Mas o Ocidente se distingue também das duas religiões anicônicas — judaísmo e islam —apresentando as imagens como um instrumento de salvação. A imagem não é mais do que um instrumento. Também não é menos do que isso. O cristianismo "romano" se afasta desde então, a um tempo, do judaísmo, do islam e do cristianismo "grego". Situa o debate em outros pontos. A não ser em algumas crises isoladas, não haverá controvérsia quanto a imagens até a Reforma luterana. A arte ocidental, que dá um lugar central ao homem e à figura humana, nasce dessa escolha. A adoção das imagens, afinal, desempenha um papel importante no desenvolvimento de um culto fundamental: o da Virgem Maria. A Virgem entra na piedade de maneira até então inédita porque está presente na Paixão de Cristo — e a própria representação da Paixão é favorecida em todas as camadas da sociedade pela difusão do crucifixo. Essas imagens acostumam os fiéis a ver Deus sob a forma humana. Isso decorre com toda a naturalidade do dogma da Encarnação, central no cristianismo: Deus se fez homem, viveu entre nós. Mas é preciso entender bem que a imagem, aqui, precede freqüentemente a reflexão teórica. A piedade se exprime primeiro pela imagem, depois pelo discurso. Picasso dizia: eu não procuro, eu acho. O mesmo se dá com esse momento capital. Acha-se, encontra-se pela imagem. Os discursos teológicos encontram depois. As imagens precedem freqüentemente os desenvolvimentos propostos pelos clérigos. Proporcionando uma visão dos textos bíblicos, induzem e antecipam o comentário que dali sairá.

Será preciso lembrar a importância da famosa narrativa do Gênesis segundo a qual o Homem foi criado à imagem de Deus? "Faciamiis hominem ad imaginem et similitudinem nostramw, diz o texto latino da Vulgata, que se tornou referência: "Façamos o Homem à nossa imagem e à nossa semelhança." A imagem representa, exprime a piedade dos fiéis. Dá-lhes a intuição daquilo que os raciocínios tornarão preciso em seguida. Depois do Renascimento carolíngio, temos um outro: o do século XII. Para falar a verdade, uma vez introduzida a noção de renascimento, alguns medievalistas a vêem por roda parte, tão constante é a aspiração por um renascimento, por uma reforma, na Idade Média. Contuco, para que a periodização seja prática — de outra forma, periodizar não serviria para nada —, exigências se impõem, pois há o risco de que os historiadores esquematizem, como sempre, evoluções cada vez mais sutis. O grande medievalista ítalo-americano Roberto Sabbatino López levantou há pouco a questão: "o século X seria também um Renascimento?" (The Tenth Century, still anotber Renaissancef). Tratava-se, para esse historiador, de situar a questão da "decolagem" do Ocidente por volta do Ano Mil, questão que recentemente suscitou discussões inúteis. Não houve nada no Ano Mil, mas, como Georges Duby mostrou com toda a evidência, o período 980-1040 é um momento de efervescência decisiva no domínio econômico e social (desenvolvimento acelerado dos arroteamentos, do cavaleiro, dos castelos, da aldeia e logo da senhoria), e no domínio espiritual (movi-

mento da paz de Deus, construção de igrejas, mito de Jerusalém preparando a cruzada). É razoável, então, levar em consideração as análises feitas, em 1927, pelo americano Charles Homer Haskins, e que foram em seguida objeto de numerosas pesquisas. Haskins lançava a idéia de um segundo Renascimento, no século XII. Esse Renascimento é muito mais importante, mais profundo do que o Renascimento carolíngio. Implica também o saber: a filosofia e a teologia. Confirma um retorno maciço às obras da Antigüidade latina — a Antigüidade grega por longo tempo ainda permaneceria ignorada, com a exceção notável de Aristóteles, parcialmente redescoberto no século XII —, o grande momento de sua redescoberta através dos árabes, sendo o século XIII o das traduções das obras latinas. A mudança atinge materialmente a vida social. Vê-se por toda parte a eclosão de escolas urbanas que, diante das antigas escolas monásticas, impõem-se como escolas leigas. Vê-se também o nascimento, paralelamente com os conventos, das corporações universitárias. Quando digo "leiga", entenda-se com clareza essa palavra no sentido cristão: os leigos são membros da Igreja não engajados no sacerdócio. Não passa pela cabeça de ninguém, então, não pertencer à Igreja! Por essa época nasce também uma literatura original — eu diria mesmo: a literatura, no sentido ocidental do termo. A palavra literatura, aliás, aparece no século XII. Essa literatura é antes de tudo poética; difunde a ideologia cortesã, cavaleirosa. Mas um gênero inédito se afirma, um gênero que não está na tradição greco-romana: o romance. Existem, claro, muitos textos narrativos, grandes textos narrativos, vindos da tradição helenística, designados depois como romances

(O Asno de Ouro, de Apuleio*; Os Etíopes, de Heliodoro, etc). Essas obras nada têm a ver com o romance existente na ocasião: um texto de ficção utilizando a língua corrente, por oposição ao latim. Seu conteúdo na maioria das vezes é profano, "leigo". Conhece-se a posteridade de um Chrétien de Troyes** (c. de 1135-c. de 1183)... As canções de gesta, épicas, eram estruturadas em torno da imagem de Carlos Magno, os romances cortesãos em torno da imagem de um rei lendário, Artur.

1 2 1 5 : LATRÃO IV, O CONCÍLIO CAPITAL

O que se deve entender por "leigo"? A palavra designa, na Idade Média, os cristãos não ordenados nem consagrados pela Igreja, em oposição aos "clérigos". Essa repartição dos poderes retoma uma dialética tão velha quanto o ensino de Jesus: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deusn. De um lado a Igreja. De outro, os poderes leigos, especialmente o do Império Romano-Germânico, herdeiro parcial *Não será inútil para o leitor saber que temos uma excelente edição brasileira de Amor e Psique, que é uma das histórias contidas em O Asno de Ouro. Tratase de: Lúcio Apuleio,Amore psique, tradução de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Rio, Civilização Brasileira, 1956. (N. do T.) **É o primeiro grande poeta do romanceiro francês. Começou traduzindo Ovídio, mas depois dedicou-se a temas bretões e lendas celtas (Erec e Enide é o primeiro romance arturiano da literatura francesa). Deixou incompleto Lancelote ou O Cavaleiro da carreta, terminado por Geoffroy de Lagny. O u tra história não terminada (interrompida por sua morte), Percival ou 0 Conto do Graal, embora inacabada é considerada sua obra-prima, na qual o amor atinge o misticismo. (N. do T.)

de Carlos Magno. São dois poderes distintos, que se afrontam vivamente para assegurar a preeminência de um sobre o outro. Também a aspiração à reforma da Igreja responde a uma velha exigência: livrar a Igreja de seu enfeudamento ao temporal. Esse movimento assume uma importância excepcional com a reforma gregoriana, simbolizada em Gregório VII, papa de 1073 a 1085. Reforma que se realiza ao longo de todo o século XII. Gregório, segundo as práticas consagradas, pretende purificar a Igreja de seus compromissos com o dinheiro e de suas diversas "impurezas", especialmente resguardá-la da mancha dos líqíiidos impuros: o esperma e o sangue — o celibato freqüentemente violado pelos clérigos é-lhes imposto definitivamente e a atividade guerreira lhes é firmemente proibida. Para ele, essa volta ao ideal deve livrar a Igreja dos poderes temporais, a fim de que o Papado exerça plenamente o poder espiritual — mas, claro, há nisso uma ambigüidade: quando o papa insiste na necessária distinção entre Deus e César, evidentemente espera elevar a Igreja a um plano acima de César. A Igreja encarnaria assim o verdadeiro poder, subempreitando a gestão temporal ao poder subordinado, menos eminente, dos leigos reduzidos ao papel de "braço secular". As conseqüências sociais sáo pesadas: todo mundo é chamado a reformar-se, leigos inclusive, que se tornam, certamente, em relação ao clero, cristãos de segunda classe. Já estavam habituados a isso. Aceitavam essa superioridade desde que a vida monástica tinha imposto seu prestígio, ao longo dos séculos VII e VIII, fixando como valores últimos o retirar-se do mundo, o celibato, a castidade e a pobreza. A reforma gregoriana mantém os leigos um grau abaixo. Dá-lhes, entretanto, uma dignidade nova. Eles se tornam cristãos to-

tais cujos deveres e responsabilidade vão crescendo, como interlocutores claramente definidos diante dos clérigos. O essencial para a civilização ocidental foi que a Europa escapou da teocracia e permitiu que se estabelecesse um laicato coexistente com a prática religiosa. Uma série de concílios "ecumênicos" — europeus, na verdade, uma vez que se perdeu o contato com as Igrejas orientais — levam ao quarto concílio de Latrão, dito Latrão IV (1215), o concílio capital. Realizado em Roma, sede de um Papado que assumira a cabeça do Ocidente, Latrão IV mexe com a vida cotidiana e espiritual dos leigos. Os Padres conciliares instauram a prática anual da confissão auricular para todos os cristãos de mais de 14 anos. Dão importância maior ao casamento impondo o consentimento mútuo e a publicação dos banhos. Até então depreciado, abandonado aos diversos arranjos entre os clãs, o casamento se torna uma instituição verdadeiramente cristã, um ideal de vida. Também condenam a heresia, a usura e os judeus. O Concílio é representativo de um momento histórico em que a Igreja apóia o grande impulso da cristandade do século XI ao século X i n , mas também encoraja o movimento de repressão que pretende guardar a pureza da reforma (condenação dos hereges, dos judeus, dos homossexuais, dos leprosos). Abre as portas à Inquisição. Nunca se insistirá suficientemente na revolução introduzida pela confissão auricular obrigatória: uma confissão dita individualmente ao ouvido do padre, e com a cobertura do segredo. Isso acabava com as confissões públicas, raras, necessariamente espetaculares e ligadas exclusivamente aos atos públicos.

Trata-se agora de entrar em si mesmo, de fazer seu exame de consciência. Abre-se um espaço interior, que será o da psicologia, depois o da psicanálise. Um dia, encontrando Michel Foucault na biblioteca parisiense dos dominicanos de Saulchoir, discutimos apaixonadamente Latrão IV Eu próprio arrisquei uma fórmula: "A psicanálise fez o confessionário deitar-se horizontalmente; o confessionário tornou-se o divã." Minha fórmula não era exata, confesso, pois o confessionário, fisicamente, só apareceu no século XVI. Até então, confessava-se individualmente, sentado junto do padre, exatamente como ainda se vê nas grandes manifestações públicas da Igreja, hoje: peregrinações, Dias Mundiais da Juventude, etc. Mantenho, entretanto, a idéia de uma afirmação vertical: a confissão une o alto e o baixo, o lá e o aqui. Interessamna menos os atos do que as intenções levando ao ato. As conseqüências são consideráveis. O Renascimento dos séculos XV e XV7, tal como o definimos, não passa então do terceiro... Considero o "grande" Renascimento, você compreendeu bem, como um dos renascimentos medievais. O mesmo em relação a essa reforma que foi a Reforma protestante. A grande questão é saber quando esse Renascimento se torna outra coisa, e quando a Idade Média, verdadeiramente, acaba. Como eu dizia, não há necessidade de buscar um momento, nem uma grande data, mas uma série de momentos. Não existe um fim da Idade Média. Importa mais meu sentimento. Gostaria de voltar por um momento a falar do século XVI, grande Renascimento medieval.

Politicamente, pode-se pensar que a Idade Média acaba com o correr das guerras de Religião. O célebre princípio: Cu jus régio, ejus religio (falou no lugar, falou na religião)* nada mais faz do que homologar um hábito medieval. Cada lugar, cada senhor, seus costumes. Num tempo em que Roma, apesar de suas pretensões, é uma realidade longínqua, o príncipe e os bispos fixam um certo número de usos. Eu diria mesmo que a separação do cristianismo em dois grupos (os Reformados e os Romanos) fere o homem medieval, mas não o surpreende: já tinha havido momentos de dois ou três papas concomitantes, reinos eram excomungados, havia guerras contra o papa, etc. Desse ponto de vista, portanto, não houve uma verdadeira ruptura, mesmo que se saiba que se trata de um corte definitivo. Em compensação, aparece nesse momento a palavra religião, absolutamente estranha à Idade Média. Tudo era religião, mas o termo era restrito àsignificação de ordem religiosa: entrar na religião significava professar os votos monásticos. O grande economista americano Karl Polanyi (18861964) mostrou, por exemplo, que a economia das sociedades primitivas até a época moderna não existia de maneira independente mas era embutida no que chamamos religião" (ver capítulo 3, p. 7, da obra de Polanyi em tradução francesa citada pouco adiante, no subtítulo "A invenção da economia"). A acepção atual da palavra remonta ao século XVI. Esse surgimento do conceito de religião marca — ele marca — uma verdadeira ruptura, uma vez que convida a pensar even-

tualmente fora da religião, considerada então como um fenômeno, senão relativo, pelo menos posto à distância. Pode-se "escolher Como "visão do mundo", a Idade Média persiste, ao contrário, nos dois campos. Só se desfaz com o impulso do espírito científico, a partir de Copérnico (1473-1543) e até Newton (1642-1727). Se se considerar, por fim, a tecnologia e a vida social, a Idade Média dura até o século XVIII. Cede progressivamente, então, lugar à revolução industrial, quando se acentua a ruptura cora a economia rural. O surgimento da noção de mercado, a tomada de consciência de fenômenos especificamente econômicos anunciam uma reviravolta. Até então, a economia respondia em primeiro lugar a questões morais: como pensar a riqueza e a pobreza? No século XVIII, encontra sua autonomia. Torna-se um instrumento, que se quer tornar causa e finalidade. Resta um último problema: o da Itália. Tradicionalmente, desde Burckhardt — já o vimos — o Renascimento quase se confunde com a Itália. Isso não me satisfaz. A Itália é, certamente, o lugar onde se realiza a excelência de cada período medieval. Mas é também o lugar que se afasta constantemente dessa civilização, produzindo exceções consideráveis. Excelência na Idade Média: o sucesso do avanço urbano, o dinamismo do movimento religioso, a eclosão de gigantes como Dante (1265-1321) ou Giotto (c. de 1266-1337)... Exceção na Idade Média: a ausência de monarquia, a ausência de uma verdadeira arte gótica; e, principalmente, a fragmentação das cidades, a estrutura estranha das guerras intestinas. Há alguma coisa de anacrônico para estudar uma Itália Medieval. Trata-se de uma noção abstrata, fabricada a posteriori. O que há são Itálias, no plural.

As mesmas interrogações pesam sobre o Renascimento italiano. Na Península, o século XV freqüentemente parece atípico. Citarei apenas o caso de Maquiavel (1469-1527). O Florentino é medieval, sob muitos pontos de vista; talvez mais do que os italianos de seu tempo. Sob outros pontos de vista, vai adiante de sua época, e já trata da questão política do "príncipe" e do absolutismo como ela viria a ocorrer no século XVII. Depois de ter situado a Itália no coração da Idade Média em seguida ao Renascimento, seria absurdo excluí-la desse período. Quero simplesmente lembrar como é difícil tomar o caso italiano como modelo e medir por ele o conjunto da Europa. Difícil demarcar o fim da Idade Média. Aías quando ela começa? Tínhamos ficado em Rómulo Augústulo, Odoacro e 476... A idéia de um fim brutal da Antigüidade greco-romana felizmente foi abandonada. Fala-se de Antigüidade tardia. Esse grande período, ainda imperial, leva à Idade Média ocidental, certamente, mas igualmente às civilizações do Oriente bizantino e do islam — que talvez seja preciso parar de designar como medievais. Porque não basta falar de uma cronologia (do século VI ao século XV) para falar de Idade Média, a partir do momento em que deixamos o Ocidente. A Arábia medieval, a índia medieval, o Japão medieval nem sempre são noções pertinentes. Em relação a que periodização podese falar em "Idade Média" no Islam, na índia, no Japão? Haveria nisso uma extensão abusiva de um ponto de vista ocidental. Quanto à América: quem estudaria os astecas sob o ângulo

EM

BUSCA

DA IDADE

MÍDIA

da Idade Média? Mas a periodização ocidental que produziu a Idade Média foi geralmente aceita até aqui. Existe até o fim da Antigüidade tardia uma cultura própria a todo Mediterrâneo. Lá se edificaram em seguida — sem apagar tudo — outras entidades geopolíticas. Algumas delas ligadas ao continente europeu: é o caso de nossa Idade Média, que nada tem de universal. Outras dessas entidades políticas ligam-se à Arábia ou à África do Norte: é o caso da conquista muçulmana. Outras, ainda, interagem com a Ásia Central: caso dos fenômenos turcos e mongóis, muçulmanos mas muito pouco árabes. É o caso igualmente de Bizâncio, cujo encadeamento cedo seria com a Rússia. Quanto à Europa, vamos esquecer Rómulo Augústulo, que não é significativo. Eliminemos também a imagem — não menos ideológica — das "Grandes Invasões". Augusto e Tibério já repelem os "invasores": pertencem sem contestação à Antigüidade. A Grécia antiga tinha combatido os "bárbaros", termo criado por ela com o sucesso conhecido. Também Carlos Magno guerreia contra os "invasores" do Sul ou do Norte. Situa-se, entretanto, e isso é uma evidência, na cultura medieval. A mudança, para nós, tem a ver coma cristianização: fazse pouco a pouco, a partir de dentro. O Império se cristianiza, depois cristianiza seus invasores, ainda que ele próprio desapareça na nova configuração. Em compensação, para o Oriente Próximo e o Médio, a mudança nasce da islamização, progressiva, que neste caso vem do exterior: da Arábia. A Idade Média ocidental não é programada. Nasce de uma aculturação na qual se confundem pouco a pouco os usos e costumes greco-romanos com os dos "bárbaros". Nasce também da confrontação com o Islam. Na origem, de fato, nada predispunha o Império do Ocidente — que englobava a Áfri-

ca do Norte — a se torrar "europeu". Da conquista muçulmana na Espanha (século VIII) até a hegemonia otomana nos Bálcãs (século XIV), o Ocidente não se concebe em si mesmo como entidade geopolítica. Estrutura-se apenas por sua existência diante de um mundo que se mostra hostil. Sua periodização supõe um tempo longo: a Idade Média perfaz mais de mil anos, foi dito. Dentro desse tempo longo, encontram-se entretanto períodos mais curtos: duzentos anos ou trezentos anos de um Renascimento a outro. Quanto mais nos aproxi?namos do tempo presente, mais curtos parecem os períodos: vai-se da Revolução Francesa (1789) até o fim do Império (1815), da Restauração até a Revolução de 1848 ou, para algunss até a queda do Segundo Império (1870), etc. Essa periodização, porém, concerne apenas à França. Mais o passado se aproxima, mais os períodos diminuem... É o paradoxo, de fato. Multiplicamos o período pelo tempo recente, como se isso nos permitisse dominá-lo, como se nos propuséssemos assim uma leitura dele. A tendência seria, aqui, o conceito equívoco de "geração''. A geração da guerra (subentendido, a Segunda), a geração do baby boom, a geração de 1968... O que representa períodos de vinte ou vinte e cinco anos, mais ou menos. E um modo de corresponder a isso a que chamamos "a aceleração da história". A priori, esse instrumento apresenta alguns méritos. Estabelece balizas. Resta um problema de fundo: quando começa uma "geração"? Para mim, as pessoas de minha geração são as nascidas em 1924. A elas se segue uma nova geração quando seus filhos vierem ao mundo — ponhamos aí, os anos 1950.

Mas, para os homens e as mulheres de 1934, com toda a certeza será muito diferente: uma diferença de dez anos já apresenta nuanças na maneira de viver e de proceder. E para as pessoas nascidas em 1920, em 1917, em 1913? Em 1944, em 1950, em 1958? Ainda é possível tomar as duas grandes guerras como pontos de balizamento. Conscientes desse aspecto mais do que aleatório, os utilizadores do conceito de geração o que tentam é ligá-lo a grandes acontecimentos — o que depende, claro, da experiência de cada país. Falar de "geração Mitterrand (1981) só tem sentido para a França, não diz nada ao resto da Europa. Poder-se-ia, na melhor das hipóteses, dizer que há uma geração da Primeira Guerra, uma geração da Segunda Guerra e uma geração de 1968, porque esses são três momentos marcantes para o conjunto do Ocidente. Os americanos poderiam, porém, dar 1917 como um marco forte, sua primeira intervenção no Velho Continente, ou ver uma reviravolta na grande crise de 1929, e os alemães podem destacar o terrível ano de 1933, quando Hitler chega ao poder... Para dizer a verdade, essa noção de geração foi forjada para valorizar os acontecimentos de 1968. Foram os atores de 1968 que a criaram. A "geração de 68" corresponde, do ponto de vista demográfico, a uma substituição de classes etárias e a crise se estende ao conjunto do mundo ocidental, dos Estados Unidos aos países do Leste. u Sessenta-e-oitista" é termo formado sobre "Quarenta-e-oitista" palavra que também serve para toda a Europa —, referente aos grandes movimentos de 1848. Como o quarenta-e-oitista, o sessentae-oitista é um velho rebelde, aburguesado (ou re-aburguesado) que se integra às e l i t e s dirigentes, exceção feita a alguns irredutíveis, às vezes infelizes quanto ao destino. Será isso sufi-

ciente para marcar um período? Digamos que isso definiu, seja como for, de modo aceitável o momento 1968. Eu ousaria dizer, contudo, que a noção de "geração" vale só para essa vez, e talvez essa vez apenas. A partir da idéia de "geração" pode-se, entretanto, partir para uma questão diferente: a do enfrentamento pais/filhos, que não é a mesma coisa que o enfrentamento jovens/velhos. Essa estrutura me pareceria mais importante para a evolução histórica. Permitiria periodizações mais amplas: o estabelecimento, por exemplo, de um período 1848-1968, eventualmente pertinente na transmissão de valores e da educação, mas não obrigatoriamente no domínio político. Volto à minha observação precedente: os diferentes domínios da atividade humana não se periodizam da mesma maneira. Pode-se falar de conflitos de gerações em relação à Idade Médiai De conflitos entre pais e filhos, sim — mas a título privado. A noção de geração é inconcebível para o espírito medieval. Sem dúvida é preciso esperar a Fronda* para achar um conflito de características geracionais, com o surgimento das "barricadas", e da própria palavra com essa acepção — que continuará a mesma até maio de 1968... As primeiras "barricadas" foram erguidas em 1648. Tratar-se-ia já de "quarentae-oitistas"? De qualquer maneira, não vejo nada semelhante na Idade Média. Salvo, talvez, em alguns pontos, o movimento dos

Pastoureaux (Pastorinhos), ainda que este tenha tido um papel antes de tudo marginal. Trata-se de um movimento de "cruzada" que, por três vezes, mobilizou pastores e jovens, até mesmo jovens muito jovens, pobres. Uma primeira onda se formou em 1212, uma segunda em 1251 — no momento em que São Luis estava prisioneiro no Oriente —, uma terceira em 1320. Os Pastoureaux queriam tomar o lugar dos cavaleiros, incapazes de libertar a Terra Santa. Puseram-se a caminho. Rapidamente, sua ação se tornou violenta. Por onde passavam, apoderavam-se dos judeus e das riquezas do clero. Aos judeus, criticavam-nos por não se converterem — ora, sua conversão maciça seria o sinal dos Últimos Dias precedendo a vinda do Cristo. Ao clero "pervertido", criticavam por conspurcar a Igreja, pois a purificação da Igreja seria, também isso, o meio de provocar a Parusia.* Tolerados, no início, os Pastoureaux logo passaram a ser combatidos, dispersados. Alguns, porém, integram os exércitos reais. Mas o movimento se desfaz. Não pode ser interpretado como um conflito de gerações, nem mesmo como um conflito social (pobres contra ricos), porque se trata, à evidência, de um movimento religioso, ligado às esperanças messiânicas. Na verdade, faltam-nos documentos sobre os jovens na Idade Média. Numa sociedade amplamente camponesa, analfabeta, eles deixaram poucos traços. De maneira significativa, Georges Duby só pôde estudar uma categoria deles; e só poderia ser uma: a dos cavaleiros. Esses jovens nobres são privados de terras e de mulheres por causa do crescimento

demográfico. Não podem mais usufruir de eventuais benefícios eclesiásticos. Não há mais lugares para todo mundo. São empurrados para a Cruzada. O Papado desvia, assim, em proveito próprio, os "vencidos" pelo crescimento econômico e demográfico dos séculos X e XI. Eis um belo exemplo de influências conjuntas do material e do espiritual: os Cruzados (e o Papado) acreditam verdadeiramente na Cruzada. Mas o que não falta às Cruzadas, também, é base material. Poder-se-ia, com toda a boa-fé, buscar a salvação e enriquecer-se em nome de um ideal. Tudo isso situando-se numa perspectiva escatológica do fim dos Tempos, ou, melhor ainda, do Fim do Tempo. Mas nos afastamos com isso de toda noção historiográfica de longa duração...

Mercadores, banqueiros e intelectuais

A Idade Média é portanto um continente. Quando eu começava a viagem, no alvorecer dos anos 1950, esse continente nada tinha de uma terra virgem. Muitas gerações de historiadores tinham produzido milhares de trabalhos sobre ele. Eu próprio o abordava sem plano, nem programa, com exceção de minha tese, que eu esperava consagrar às Universidades medievais — tese jamais terminada, mas da qual são encontrados traços em meus trabalhos, especialmente meu livro sobre os "intelectuais" da Idade Média.* O acaso, uma breve carreira de docente (um ano no ginásio de Amiens, 19501951;** cinco anos na Faculdade de Letras de Lille, 19541959) e as mudanças no mundo editorial francês levaram-me, com efeito, a temas que eu não teria abordado por iniciativa própria — especialmente o dos mercadores e dos banqueiros, ao qual foi consagrado meu primeiro livro em 1956. É preciso insistir sobre o momento particular que foram os anos 1950-1960. Até então os historiadores escreviam sobretudo para seus pares — salvo algumas exceções. Seus leitores pertenciam a instituições de eruditos. Os trabalhos

tinham como objetivo fazer a ciência avançar sobre pontos muito precisos, necessários ao conhecimento, mas dificilmente assimiláveis pelo grande público. Grande público, que, afinal, não era seu objetivo. E insisto em dar como indispensáveis as memórias, os artigos ou as comunicações eruditas. Constituem a base das pesquisas, seu terreno de lavoura Continuam a ser a pedra de toque para verificar ou invalidar as sínteses que apresentamos ao público não especializado. Os anos 1950-1960 vêem então desabrochar, em muitos países da Europa, e em particular na França, um gênero novo. Editores, freqüentemente historiadores eles próprios, nos encomendam obras cuja lógica não é universitária. Ao acolher alguns de nossos projetos, esses editores se apresentam principalmente com uma força de propósitos até então desconhecida. Nosso mundo era tradicionalmente regido pelos assuntos de tese e pelas grandes questões decurso, destinadas ao programa de agregação. Surgiram, cora os editores, expectativas imprevistas. Faziam-nos um pedido, com o qual já quebravam a ordem convencional, obrigando-nos a uni tratamento diferente dos problemas. É um momento importante da história cultural. Os diretores de coleções, os novos tipos de obra, as abordagens diferentes suscitavam de nossa parte um texto diferente, e portanto necessariamente a abertura de campos até então inexplorados. Entre esses editores-historiadores, Pierre Nora é figura exemplar. Criador da coleção "Archives" na editora Julliard (1964), diretor nas edições Gallimard da "Bibliothèque des Histoires" desde 1970, foi ele o mestre-de-obra, especialmente, do vasto empreendimento dos Lieux de Mémoire (19841993). Manteve-se, todavia, prudente e adequadamente um

tanto à margem daquilo que se chamou "a nova história". Esse rótulo um tanto provocante e com sentido publicitário serviu para muitas maneiras de fazer história. Exprimia o sentimento de uma profunda renovação da história (da cultura material às mentalidades, da história seriada à antropologia histórica). Nessa renovação, Pierre Nora tomou parte ativa. A "Bibliothèque des Histoires" cobre um amplo campo. Propõe a retomada de obras clássicas (1924), como Os reis taumaturgos* de Mare Bloch, mas desconhecidas porque adiante da historiografia de seu tempo, assim como pesquisas recentes. Nessa coleção encontramos Michel de Certeau, Georges Duby, François Furet, Emmanuel Le Roy Ladurie... muitos outros. Eu próprio, com Pierre Nora, coordenei nessa coleção três volumes coletivos: Faire de Vhistoire, que apresentavam os novos problemas; as novas abordagens; os novos objetos. Nela publiquei muitos livros de importância particular para mim: Pour nn autre Moyen Age (1978), La Naissance du Purgatoire (1981), Llmagmaire médieval (1985) e Saint Louis (1996).** O jovem historiador que eu era nos anos 1950 não previa nada disso. Sobretudo, eu tinha curiosidades; fazia-me perguntas: não sabia exatamente para onde iria. Prudentemente, havia me inscrito para uma tese na Sorbonne. Tinha, segundo o costume, "depositado" meu assunto. Pensava, já o disse, numa tese sobre as universidades medievais no prolongamento de meus

estudos superiores (hoje uma aplicação de magistério). Eu a tinha elaborado e redigido em Praga, onde obtivera uma bolsa. Essa escolha nascera de um acaso. Depois de minha entrada na Escola Normal, no verão de 1945, tinha participado de uma viagem de alunos dessa escola na zona de ocupação do Exército francês pela Alemanha (região do lago de Constança) e pela Áustria (Tirol) por iniciativa de uma divisão militar. Em Innsbruck, um tenente francês estudante da Escola Normal pediu-me que eu entregasse um pacote a seu irmão que trabalhava na Direção das Relações Culturais do Quai d'Orsay.* Esse rapaz do Quai dOrsay é que me encorajou a pensar em uma bolsa na Tchecoslováquia, país no qual a França se esforçava para fazer esquecer o rancor provocado pela sua atitude em Munique. Segui o curso de língua tcheca naquilo que chamávamos então de Línguas O (Escola das Línguas Orientais Vivas, hoje INÀLCO). A instituição da cortina de ferro e a guerra fria me impediram, depois daquele ano ern Praga excepcional, de prosseguir nas pesquisas sobre a Boêmia medieval. Mas consegui um diploma s o b r e i fundação da Universidade Carlos de Praga em 1347-1348 e passei a ter uma viva atração pelos países eslavos, fascinado por sua cultura "européia". Esse horizonte oriental continuava fechado, mas por um outro acaso reabrese dez anos depois, desta vez na Polônia. Nessa Europa, por cuja união milito hoje em dia, a Europa centro-oriental, me fala particularmente ao coração. À Tchecoslováquia transformada em República Tcheca eà Eslováquia (que não se pode

esquecer), acrescentou-se nos anos 70 a Hungria, sempre cara a meu coração. Não sou particularmente apegado a honrarias. Não desejei ser membro do instituto mas tenho orgulho e fico feliz com o fato de que alguns colegas estrangeiros me concederam um título de doutor honoris causa. Pois sou doutor H.C. das universidades de Varsóvia, de Cracóvia, de Praga, de Budapeste, de Bucareste e de Cluj (Romênia). É uma alegria. O assunto da tese que depositei nos anos 1950 naSorbonne era, entretanto, muito difícil. Quando de minha temporada na Escola Francesa de Roma, em 1952-1953, da qual voltarei a falar, o capelão da Escola Normal, padre Brien, que me honrava com sua amizade, orientou-me para uma espécie de fonte, os manuais do confessor do século XIII. Neles descobri um tema de pesquisa que me cativou mais. Pretendi estudar "as atitudes a respeito do trabalho". Observei, na verdade, que a constituição das universidades no século XIII inspirava-se em parte em uma nova concepção do "mestre". O mestre universitário diferia do mestre monástico, que era tradicionalmente o modelo. Percebi que nesse século XIII se tinham desenvolvido — acompanhando o avanço urbano (e as cidades tinham um lugar eminente no conjunto cultural e social que me fascinava) — reflexões e conflitos a respeito do trabalho. Por um lado, o trabalho se confrontava com a mendicância; por outro, com o "lazer" (
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