Elena Ferrante - A amiga genial (Ed. Relógio D'Água, Portugal).pdf

March 5, 2017 | Author: Laio Brandão | Category: N/A
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A Amiga Genial Infância, Adolescência

Relógio D'Água Editores Rua Sylvio Rebelo, n.0

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1000-282 Lisboa te!.: 218 474 450 fax: 218 470 775 [email protected] www.relogiodagua.pt

L'amica geniale © 2011 Edizioni e/o Publicado por acordo com The Elia Sher Literary Agency Título: A Amiga Genial - Infância, Adolescência Título original:

L'amica geniale - Infanzia, adolescenza (2011) Autora: Elena Ferrante Tradução: Margarida Periquito Revisão de texto: Inês Dias

Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com) ©Relógio D'Água Editores, Novembro de

2014

Encomende os seus livros em: www.relogiodagua.pt

ISBN 978-989-641-479-5

Composição e paginação: Relógio D'Água Editores Impressão: Guide Artes Gráficas, Lda. Depósito Legal n.0: 384238/14

Elena Ferrante

A Amiga Genial Infância, Adolescência Tradução de Margarida Periquito

Ficções

O SENHOR:

Fica

à vontade, e vem quando quiseres;

Nunca odiei os seres da tua casta. De todos os espíritos negadores

É o Maligno o que menos me agasta. A acção do Homem depressa se atenua, Em pouco tempo já quer repouso inteiro,

É bom, por isso, mandar-lhe um companheiro Que o espicaça e incita e como diabo actua. J. W. Goethe, Fausto

Índice das Personagens A família Cerullo (a família do sapateiro):

Fernando Cerullo, sapateiro. Nunzia Cerullo, mãe deLila. Raffaella Cerullo, a quem todos chamam Lina, só Elena lhe Rino Cerullo, irmão mais velho deLila, também sapateiro. Rino será também o nome do filho deLila. Outros filhos.

chama

Lila.

A família Greco (a família do porteiro):

Elena Greco, a

quem chamam

Lenuccia

ou

Lenu. É a mais

velha; seguem-

-se-lhe

Peppe, Gianni e Elisa. O pai é porteiro da Câmara. A mãe é doméstica. A família Carracci (a família de dom Achille):

Dom Achille Carracci, o papão das histórias infantis. Maria Carracci, mulher de dom Achille. Stefano Carracci, filho de dom Achille, dirige a charcutaria da família. Pinuccia e Alfonso Carracci, os outros dois filhos de dom Achille. A família Peluso (a família do carpinteiro):

Alfredo Peluso, carpinteiro. Giuseppina Peluso, mulher de Alfredo. Pasquale Peluso, filho de Alfredo e Giuseppina, pedreiro. Carmela Peluso, que também responde por Carmen, irmã de Pasquale, cai­ xeira de retrosaria.

Outros filhos.

Índice das Personagens

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A fann1ia Cappuccio (a família da viúva maluca):

Melina, prima da mãe deLila, viúva maluca. O marido de Melina, que descarregava caixas no mercado da fruta e da hortaliça.

Ada Cappuccio, filha de Melina. Antonio Cappuccio, seu irmão, mecânico. Outros filhos. A fann1ia Sarratore (a família do ferroviário-poeta):

Donato Sarratore, revisor. Lidia Sarratore, mulher de Donato. Nino Sarratore, o mais velho dos quatro filhos de Donato eLidia. Marisa Sarratore, filha de Donato eLidia. Pino, Clelia e Ciro Sarratore, os filhos mais novos de Donato eLidia. A família Scanno (a família do vendedor de fruta e hortaliça):

Nicola Scanno, vendedor de fruta e hortaliça. Assunta Scanno, mulher de Nicola (Nino). Enzo Scanno, filho de Nicola e Assunta, também vendedor de fruta e hortaliça. Outros filhos. A família Solara (a farm1ia do proprietário do bar-pastelaria homónimo):

Silvio Solara, dono do bar-pastelaria. Manuela Solara, mulher de Silvio. Marcello e Michele Solara, filhos de Silvio

e Manuela.

A família Spagnuolo (a família do pasteleiro): O senhor Spagnuolo, pasteleiro do bar-pastelaria Rosa Spagnuolo, mulher do pasteleiro. Gigliola Spagnuolo, filha do pasteleiro. Outros filhos.

Solara.

Gino, o filho do farmacêutico. Os professores:

Ferraro, professor e bibliotecário. Oliviero, professora da escola primária. Gerace, professor da escola secundária. Galiani, professora do liceu. Nella Incardo, de

Ischia, prima da professora Oliviero.

Prólogo Apagar o rasto

1.

Rino telefonou-me esta manhã, pensei que quisesse outra vez dinhei­ ro e preparei-me para lhe dizer que não . Mas o motivo do telefonema era outro: não sabia da mãe . «Há quanto tempo?» «Há duas semanas .» «E agora é que me ligas?» O tom deve ter-lhe parecido hostil , embora eu não estivesse zangada nem indignada; tinha apenas uma ponta de sarcasmo . Tentou desculpar­ -se mas fê-lo confusamente , atrapalhando-se , metade em dialecto , me­ tade em italiano . Disse que estava convencido de que a mãe andava a passear por Nápoles , como de costume . «Mesmo de noite?» «Bem sabes como ela é.» «Pois sei , mas achas normal duas semanas de ausência?» «Sim. Tu não a vês há muito tempo , ela piorou . Nunca tem sono , entra, sai , faz o que lhe dá na gana.» Mas acabara por ficar preocupado . Perguntara a toda a gente , dera uma volta pelos hospitais , até tinha ido à polícia. Nada, a mãe não esta­ va em parte nenhuma. Que filho tão bom ! Um homem corpulento , dos seus quarenta anos , que nunca trabalhara na vida, só negociatas e esban­ jamento . Imaginei o cuidado com que fizera as buscas . Nenhum . Não tinha miolos , e só gostava de si próprio . «Não estará aí contigo?» , perguntou-me de súbito . A mãe? Aqui em Turim? S abia perfeitamente o que se passava, falava só por falar. Ele é que era viajante , já viera a minha casa pelo menos dez vezes , sem ser convidado . Ao passo que a mãe , que eu acolheria com prazer, nunca saíra de Nápoles em toda a sua vida. Respondi-lhe:

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«Claro que não está aqui comigo .» «Tens a certeza?» «Por favor, Rino , já te disse que não está.» «Então , para onde foi ela?» Começou a chorar e deixei-o fazer a fita de quem está desesperado , soluços que começavam por ser fingidos e se tomavam verdadeiros . Quando terminou , disse-lhe: «Por favor, ao menos uma vez , comporta-te como ela desejaria: não a procures.» «Mas o que estás tu a dizer?» «Aquilo que ouviste . É inútil . Aprende a viver sozinho e não voltes a ligar-me também.» E desliguei .

2. A mãe de Rino chama-se Raffaella Cerullo , mas toda a gente a tratou sempre por Lina. Eu não, nunca fiz uso de nenhum desses nomes . Para mim, há quase sessenta anos que é Lila. Se lhe chamasse Lina ou Raf­ faella, assim de repente , era sinal de que a nossa amizade chegara ao fim. Há pelo menos trinta anos que me diz que quer desaparecer sem dei­ xar rasto , e só eu sei bem o que ela quer dizer. Nunca lhe passou pela cabeça uma fuga, uma mudança de identidade , o sonho de refazer a vida noutro lado . E nunca pensou em suicídio , pois repugnava-lhe a ideia de Rino ter alguma coisa a ver com o seu corpo , de ser obrigado a ocupar-se dele . A sua intenção foi sempre outra: queria volatilizar-se; queria que todas as suas células desaparecessem; que dela não fosse possível encontrar nada. E como a conheço bem, ou pelo menos creio que conheço , tenho como certo que encontrou a maneira de não deixar em parte nenhuma deste mundo nem um cabelo .

3. Passaram-se dias . Fui vendo o correio electrónico e o correio normal , mas sem esperança. Sempre lhe escrevi com frequência, e ela quase nunca me respondeu . O hábito foi sempre esse . Preferia o telefone ou as longas noites de conversa quando eu ia a Nápoles .

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Abri a s minhas gavetas , a s caixas d e metal onde guardo todo o géne­ ro de coisas . Poucas . Deitei tanta coisa fora, principalmente o que se relacionava com ela, e ela sabe-o . Descobri que não tenho nada dela, nem uma imagem, nem um bilhete , nem uma prendinha. Eu própria me surpreendi . É possível que em todos estes anos não me tenha deixado nada de si , ou , pior, que eu não tenha querido conservar qualquer coisa dela? É possível . Desta vez telefonei eu a Rino, fi-lo contrariada. Não atendia no fixo nem no móvel . Ligou-me ao serão , quando lhe dava jeito . Tinha o tom de voz com que tenta causar pena. «Vi que ligaste . Tens notícias?» «Não . E tu?» «Nada.» Disse-me coisas sem pés nem cabeça. Queria ir à televisão , ao pro­ grama onde se fala das pessoas desaparecidas , fazer um apelo , pedir perdão à mãe por tudo , suplicar-lhe que volte . Escutei com paciência, depois perguntei-lhe: «Viste o guarda-fato dela?» «Para quê?» Naturalmente , a coisa mais óbvia não lhe ocorrera. «Vai ver.» Foi e verificou que não havia lá nada, nem um vestido da mãe , de Verão ou de Inverno , só as cruzetas velhas . Mandei-o procurar pela casa toda. Os sapatos dela, desaparecidos . Os poucos livros que possuía, desaparecidos . As fotografias , todas desaparecidas . Desaparecidos os filmes . Desaparecido o computador, bem como as velhas disquetes que dantes se usavam , tudo , todas as coisas relacionadas com a sua expe­ riência de feiticeira electrónica, que começara a familiarizar-se com os computadores em finais da década de sessenta, no tempo dos cartões perfurados . Rino estava estupefacto . Disse-lhe: «Leva o tempo que quiseres , mas depois telefona-me e diz se encontraste nem que seja só um alfinete que lhe pertença.» Ligou-me no dia seguinte , muito agitado . «Não há cá nada.» «Nada, nada?» «Não . Recortou a imagem dela de todas as fotografias em que está­ vamos juntos , mesmo aquelas de quando eu era pequeno .» «Procuraste bem?» «Em todo o lado .»

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«Na cave , também?» «Em todo o lado , já te disse . Até a caixa com os documentos desapa­ receu . Sei lá, velhas certidões de nascimento , contratos telefónicos , re­ cibos de contas . O que significa isto? Que alguém roubou tudo? O que procuravam? O que querem da minha mãe e de mim?» Tranquilizei-o , disse-lhe que estivesse descansado . Era improvável que alguém quisesse alguma coisa, sobretudo dele . «Posso ir passar uns dias a tua casa?» «Não .» «Por favor, não consigo dormir.» «Amanha-te , Rino , não sei como lidar com isto.» Desliguei e , quando ele voltou a ligar, não atendi . Sentei-me à secre­ tária. Lila está a exagerar, como é costume, pensei . Estava a dilatar excessivamente o conceito de rasto . Agora, aos ses­ senta e seis anos, não só queria desaparecer como também apagar toda a vida que deixara para trás . Senti-me deveras irritada. Vamos ver quem vence , desta vez , disse para mim. Liguei o compu­ tador e comecei a escrever os pormenores da nossa história, tudo aquilo que me ficara na memória.

Infância História de dom Achille

1.

A nossa anúzade começou no dia em que eu e Lila decidimos subir as escadas escuras que , degrau após degrau , lanço após lanço , iam até à porta do apartamento de dom Achille . Lembro-me da luz violácea do pátio , dos odores de um entardecer ameno de Primavera. As mães estavam a fazer o jantar, eram horas de ir para casa, mas nós deixámo-nos ficar, dando provas de coragem ao desafio , sem dizermos uma palavra. Havia algum tempo que não fazía­ mos outra coisa, dentro e fora da escola. Lila enfiava a mão e o braço inteiro na escuridão de uma boca de esgoto , e eu fazia o mesmo logo a seguir, com o coração aos saltos , esperando que as baratas não me su­ bissem pela pele e que os ratos não me mordessem. Lila trepava até à janela do rés-do-chão da senhora Spagnuolo , pendurava-se da barra de ferro a que estava preso o arame da roupa, balançava-se e depois deixava-se cair para o passeio , e eu em seguida fazia o mesmo , embora com medo de cair e de me magoar. Lila espetava sob a pele o alfinete de segurança ferrugento que achara na rua sei lá quando , mas que guar­ dava na algibeira como se fosse o presente de uma fada; eu observava a ponta de metal a abrir-lhe um túnel esbranquiçado na palma da mão , e depois , quando ela o retirava e mo estendia, fazia a mesma coisa. A certa altura lançou-me um olhar dos dela, firme , de olhos semicer­ rados , e dirigiu-se para o prédio onde morava dom Achille . Gelei de medo . Dom Achille era o papão das histórias infantis , estava terminan­ temente proibida de me aproximar dele , de lhe falar, de olhar para ele , de o espiar, tinha de agir como se ele e a farm1ia não existissem. Em minha casa, e não só na minha, havia uma animosidade e um ódio para com ele que eu não sabia de onde vinham. Pela maneira como o meu pai falava dele eu imaginava-o corpulento , cheio de borbulhas violá-

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ceas , violento apesar do «dom» , que me sugeria uma autoridade calma. Era um ser feito não sei de que matéria, ferro , vidro , urtigas , mas vivo , vivo e com um bafo escaldante que lhe saía do nariz e da boca. Acredi­ tava que mesmo que o visse só de longe me lançaria para os olhos qualquer coisa aguçada e ardente . E então , se cometesse a loucura de me aproximar da porta de sua casa, matar-me-ia. Esperei um pouco, para ver se Lila reconsiderava e desistia. Sabia o que ela queria fazer, esperara em vão que se esquecesse; mas afinal , não . Os candeeiros da rua ainda não se tinham acendido , nem as luzes das escadas . Das casas chegavam-nos vozes nervosas . Para acompanhá-la tinha de sair da luz azulada do pátio e penetrar no negrume da porta. Quando finalmen­ te me decidi , a princípio não via nada, sentia apenas um cheiro a coisas velhas e aDDT. Depois habituei-me ao escuro e vi Lila sentada no primei­ ro degrau do primeiro lanço de escadas . Levantou-se e começámos a subir. Avançámos encostadas à parede; ela, dois degraus à frente , eu , dois degraus atrás e indecisa entre encurtar a distância ou deixá-la aumentar. Ficou-me a impressão do ombro a roçar pela parede esfolada e a ideia de que os degraus eram muito altos, mais altos do que os do prédio onde eu morava. Tremia. Cada ruído de passos ou de vozes era dom Achille que subia atrás de nós ou que descia ao nosso encontro com uma grande faca, daquelas para abrir o peito às galinhas . Sentia-se um chei­ ro a alho frito . Maria, a mulher de dom Achille , meter-me-ia na frigidei­ ra com óleo a ferver, os filhos comer-me-iam e ele chuparia a minha cabeça, como o meu pai fazia com os salmonetes . Parámos muitas vezes , e de cada vez esperei que Lila resolvesse vol­ tar para trás . Estava toda suada, ela não sei . De vez em quando Lila olhava para o alto , mas não percebi porquê , só se via o tom cinzento das janelonas em cada patamar. De repente as luzes acenderam-se , mas pálidas , empoeiradas , deixando amplas zonas de sombra, cheias de pe­ rigos . Esperámos , tentando perceber se fora dom Achille que girara o interruptor, mas nada ouvimos , nem passos , nem porta nenhuma a abrir ou a fechar. Depois Lila continuou , e eu segui-a. Ela achava que estava a fazer uma coisa certa e necessária, eu esque­ cera qualquer boa razão e , sem dúvida, só estava ali porque ela também estava. Subíamos devagar, dirigindo-nos para o maior dos nossos terro­ res de então , íamos expor-nos ao medo e questioná-lo . No quarto lanço Lila comportou-se de forma inesperada. Parou à minha espera e , quando a alcancei , deu-me a mão . Esse gesto mudou tudo entre nós para sempre .

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2. A culpa fora dela. Não havia muito tempo - dez dias , u m mês , sei lá, não sabíamos nada sobre o tempo , nessa época - , tirara-me a bone­ ca à traição e lançara-a para dentro de uma cave . Agora íamos subindo em direcção ao medo , e nessa altura tínhamo-nos sentido na obrigação de descer, e a correr, para o desconhecido . Para cima ou para baixo , parecia-nos sempre que íamos ao encontro de algo terrível que , embora existisse havia mais tempo do que nós , era por nós e só por nós que esperava. Quando se está há pouco tempo no mundo , é difícil com­ preender quais os desastres que estão na origem da nossa sensação de desastre , talvez nem sintamos necessidade disso . Os adultos , à espera do amanhã , movem-se num presente para trás do qual há o ontem ou o anteontem ou no máximo a semana passada. No resto não querem pen­ sar. As crianças não sabem o significado do ontem , do anteontem, nem do amanhã, tudo é isto e agora: a rua é esta, a porta é esta, as escadas são estas , esta é a mamã , este é o papá, isto é o dia, isto é a noite . Eu era pequena e, vendo bem , a minha boneca sabia mais do que eu . Falava com ela, ela falava comigo . Tinha cara de plástico , cabelos de plástico e olhos de plástico . Usava um vestidinho azul que a minha mãe lhe fi­ zera num raro momento feliz , e era linda. A boneca de Lila, pelo con­ trário , tinha um corpo de trapo amarelado cheio de serradura, para mim era feia e asquerosa. Espiavam-se mutuamente , tiravam as medidas uma à outra , estavam prontas para saltar para os nossos braços se rebentasse um temporal , se fizesse trovões , se alguém maior e mais forte e com os dentes afiados lhes quisesse pegar. Brincávamos no pátio , mas fazendo de conta que não brincávamos juntas . Lila sentava-se no chão , num dos lados da fresta de uma cave , e eu no outro . Gostávamos daquele sítio , em primeiro lugar porque podía­ mos arrumar sobre o cimento do peitoril , por entre as grades e contra a rede de protecção da fresta, as coisas da minha boneca, que se chamava Tina, e da boneca de Lila, que se chamava Nu . Ali púnhamos pedras , tampas de gasosa, florzinhas , pregos , lascas de vidro . Eu captava o que Lila dizia a Nu e dizia o mesmo a Tina em voz baixa, com ligeiras alte­ rações . Se ela pegava numa tampa e a punha na cabeça da boneca como se fosse um chapéu , eu dizia à minha, em dialecto: Tina, põe a coroa de rainha, senão vais ter frio . Se Nu jogava à macaca nas mãos de Lila, daí a pouco eu punha Tina a fazer o mesmo . Mas nunca acontecia combi­ narmos uma brincadeira e participarmos nela em conjunto . Até aquele

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lugar não era escolhido por acordo . Lila ia para lá e eu andava às voltas , fingindo que ia para outro sítio . Depois , como quem não quer a coisa, punha-me também ao pé da fresta, mas do lado oposto . Aquilo que mais nos atraía era o ar frio que vinha da cave, uma lufada que nos refrescava na Primavera e no Verão . E depois gostávamos das grades com teias de aranha, do escuro e da rede de malha fina, avermelha­ da pela ferrugem e encaracolada nos cantos , tanto do meu lado como do de Lila, formando duas fendas paralelas , através das quais podíamos dei­ xar cair pedras para o escuro e ouvir o ruído quando chegavam ao chão. Era bonito e assustador, como todas as coisas naquele tempo. Por aquelas aberturas o escuro podia tirar-nos de repente as bonecas, por vezes em segurança no nosso colo, mas as mais das vezes postas de propósito junto da rede retorcida e portanto expostas ao bafo frio da cave, aos ruídos ameaçadores que de lá saíam, ao resmalhar, aos estalidos , às raspadelas. Nu e Tina não eram felizes . Os terrores que nós saboreávamos todos os dias eram os delas . Não confiávamos na luz que incidia sobre as pedras , sobre os prédios , sobre os campos, sobre as pessoas fora e den­ tro de casa. Pressentíamos-lhe os cantos negros , os sentimentos reprimi­ dos mas sempre quase a explodir. E atribuíamos a essas bocas escuras , às cavernas que por trás delas se abriam sob os prédios do bairro , tudo aquilo que nos assustava à luz do dia. Dom Achille , por exemplo , não estava apenas em sua casa, no último andar, mas também ali em baixo , uma aranha entre as aranhas , um rato entre os ratos , uma forma que assumia todas as formas . Imaginava-o de boca aberta por causa das compridas presas de animal , corpo de pedra vidrada e ervas venenosas , sempre pronto para recolher num grande saco negro tudo o que deixá­ vamos cair pelos cantos soltos da rede . Esse saco era um aspecto funda­ mental de dom Achille , tinha-o sempre consigo , até em casa, e nele metia matéria viva e morta. Lila sabia que eu tinha aquele medo , a minha boneca falava disso em voz alta. Por isso , logo no dia em que trocámos de bonecas pela primei­ ra vez sem combinar sequer, só com olhares e gestos , ela, assim que lhe entreguei Tina, enfiou-a pela rede e deixou-a cair para o escuro .

3. Lila entrou na minha vida na primeira classe e impressionou-me de imediato porque era muito má. Naquela turma éramos todas um bocadi-

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nho más , mas só quando a professora Oliviero não conseguia ver-nos . Ela, porém, era má sempre , pior do que os rapazes . Uma vez rasgou o papel mata-borrão em pedacinhos , enfiou-os um a um no tinteiro e de­ pois pôs-se a pescá-los com o aparo e a atirá-los para cima de nós . Eu fui atingida duas vezes no cabelo e uma vez na gola branca. A professo­ ra berrou como só ela sabia , com uma voz de agulha que nos aterroriza­ va, longa e pontiaguda, e mandou-a imediatamente para o castigo , atrás do quadro . Lila não obedeceu , nem sequer pareceu ter-se assustado , pois continuou a atirar bocados de mata-borrão ensopados em tinta para todos os lados. Então a professora Oliviero , uma mulher pesadona que nos parecia muito velha, embora devesse ter pouco mais de quarenta, desceu do estrado ameaçando-a, tropeçou não se sabe bem em quê , não conseguiu equilibrar-se e foi bater com a cara na quina de uma carteira. Ficou caída no chão como morta. O que aconteceu logo a seguir não me recordo , lembro-me apenas do corpo imóvel da professora, uma trouxa escura, e Lila a olhar para ela de cara séria. Tenho na lembrança muitos incidentes deste tipo . Vivíamos num mun­ do em que crianças e adultos se feriam com frequência, as feridas san­ gravam, supuravam, e eles por vezes morriam. Uma das filhas de dona Assunta, a vendedora de fruta e hortaliça, ferira-se com um prego e morrera de tétano . O filho mais novo da senhora Spagnuolo morrera de garrotilho . Um primo meu que tinha vinte anos foi uma manhã remover entulho e à noite estava morto , esmagado , com sangue a sair-lhe dos ouvidos e da boca. O pai da minha mãe trabalhava na construção de um edifício , caiu dele abaixo e morreu . O pai do senhor Peluso não tinha um braço , o tomo arrancara-lho à traição . A irmã de Giuseppina, mulher do senhor Peluso , morrera de tuberculose aos vinte e dois anos . O filho adulto de dom Achille - nunca o vi mas parecia-me que me lembrava dele - fora para a guerra e morrera duas vezes: primeiro , afogado no oceano Pacífico , e depois comido pelos tubarões . Os da farru1ia Mel­ chiorre tinham morrido todos abraçados , a gritar de medo, debaixo de um bombardeamento. A velha dona Clorinda morrera por respirar gás em vez de ar. Giannino, que andava na quarta quando nós andávamos na primeira, um dia morreu porque encontrou uma bomba e mexeu-lhe . Luigina, com quem tínhamos brincado no pátio, ou talvez não, era ape­ nas um nome , morrera de tifo . O nosso mundo era assim, cheio de pala­ vras que matavam: o garrotilho , o tétano , o tifo , o gás , a guerra, o tomo , o entulho , o trabalho , o bombardeamento , a bomba, a tuberculose , a su-

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puração . Remeto para essas palavras e para aqueles anos os muitos me­ dos que me têm acompanhado toda a vida. Também se podia morrer de coisas que pareciam normais . Podíamos morrer, por exemplo, se estivéssemos a transpirar e bebêssemos água fria da torneira sem ter molhado os pulsos primeiro . Ficávamos cobertos de pontinhos vermelhos , tínhamos um ataque de tosse e não conseguíamos respirar. Podíamos morrer se comêssemos cerejas pretas sem cuspir o caroço . Podíamos morrer se mastigássemos pastilhas elásticas america­ nas e por distracção as engolíssemos . Podíamos morrer, sobretudo , se levássemos uma pancada na têmpora. A têmpora era um ponto muito frágil , dávamos todas muita atenção a isso . Bastava uma pedrada, e as pedradas eram a regra. À saída da escola, um bando de rapazes do cam­ po chefiado por um que se chamava Enzo ou Enzuccio , um dos filhos de Assunta, a vendedora de fruta e hortaliça, começou a atirar-nos pedras . Sentiam-se ofendidos por sermos melhores alunas do que eles . Quando as pedras vinham direito a nós fugíamos todas , menos Lila, que conti­ nuava a andar no seu passo normal e às vezes até parava. Era muito es­ perta a calcular a trajectória das pedras e a evitá-las com um movimento calmo , hoje diria elegante . Tinha um irmão mais velho e talvez tivesse aprendido com ele , não sei , eu também tinha irmãos , mas mais novos do que eu e nunca aprendera nada com eles . Mas quando notava que ela ficara para trás , parava e esperava por ela, embora cheia de medo . Já nesse tempo havia qualquer coisa que me impedia de abandoná-la. Não a conhecia bem , nunca tínhamos trocado uma palavra, apesar de estarmos sempre a competir uma com a outra, na aula e fora dela. Mas tinha a vaga sensação de que se fugisse , como as outras , deixaria com ela algo de meu que ela nunca mais me restituiria. A princípio ficava escondida em qualquer canto e espreitava para ver se Lila já aí vinha. Depois , como ela não se mexia, sentia-me na obri­ gação de ir ter com ela, passava-lhe as pedras , atirava-as também . Mas fazia-o sem convicção , fiz muitas coisas na vida mas sem convicção , sempre me senti um bocado desligada das minhas acções . Ao passo que Lila tinha, desde pequena - agora não consigo precisar se aos seis ou se aos sete anos , ou se quando subimos juntas as escadas que iam ter a casa de dom Achille e tínhamos oito , quase nove - , uma total determi­ nação como característica. Quer empunhasse o cabo tricolor da caneta, ou uma pedra, ou o corrimão das escadas escuras , transmitia a ideia de que aquilo que se seguia - espetar a caneta na madeira da carteira com um movimento preciso , atirar bolinhas ensopadas em tinta, acertar nos

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rapazes do campo , subir até à porta de dom Achille - seria feito sem hesitações . O bando vinha do aterro do caminho-de-ferro , fornecendo-se de pedras no meio dos carris . Enzo, o cabecilha, era um menino muito perigoso , tinha pelo menos mais três anos do que nós , era repetente, tinha cabelos loiros muito curtos e olhos claros . Lançava com precisão pedras pequenas com rebordos afiados , e Lila aguardava os tiros dele para lhe mostrar como os evitava, fazê-lo irritar-se ainda mais e responder de imediato com tiros igualmente perigosos . Uma vez atingimo-lo no artelho direito, e digo atingimo-lo porque eu é que entregara a Lila uma pedra achatada com os bordos todos lascados . A pedra roçou pela pele de Enzo como uma lâmi­ na, deixando-lhe uma marca vermelha de onde saiu imediatamente san­ gue . O menino olhou para a perna ferida, parece que ainda estou a vê-lo. Tinha entre o polegar e o indicador a pedra que se preparava para atirar, o braço já estava no ar para fazer o lançamento , mas deteve-se, estupefacto. Os rapazes que ele comandava também olharam incrédulos para o sangue . Lila, porém, não mostrou a mínima satisfação pelo êxito da pedrada e baixou-se para apanhar outra. Eu agarrei-a por um braço, foi o nosso pri­ meiro contacto físico, um contacto brusco e assustado. Pressenti que o bando se enfureceria mais e queria que nos afastássemos . Mas não houve tempo . Enzo , apesar de ter o artelho a sangrar, recuperou do espanto e lançou a pedra que tinha na mão . Ainda estava agarrada ao braço de Lila quando a pedrada a atingiu na fronte , arrancando-ma da mão. No instante seguinte estava estendida no passeio com a cabeça partida.

4. Sangue . Geralmente só saía das feridas depois de se terem trocado maldições terríveis e obscenidades nojentas . Era sempre essa a ordem das coisas . O meu pai , que até me parecia ser um bom homem, proferia insultos e ameaças sem parar se alguém, como ele dizia, não fosse dig­ no de andar à face da terra. Sentia um rancor especial por dom Achille . Tinha sempre qualquer coisa para lhe atirar à cara e eu às vezes tapava os ouvidos com as mãos para não ficar tão incomodada com as suas palavras horríveis. Quando falava dele com a minha mãe chamava-lhe «O teu primo» , mas a minha mãe negava imediatamente esse laço de sangue (havia um parentesco muito afastado) e reforçava a dose de in­ sultos. As raivas deles assustavam-me e tinha sobretudo medo de que

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dom Achille tivesse o ouvido bem apurado e conseguisse ouvir os insul­ tos mesmo a grande distância. Receava que ele viesse matá-los . Porém, o inimigo figadal de dom Achille não era o meu pai , mas sim o senhor Peluso , um carpinteiro muito habilidoso que andava sempre sem cheta, pois perdia ao jogo tudo o que ganhava, no armazém das traseiras do bar Solara. Peluso era o pai de Carmela, nossa companheira de escola, de Pasquale , que era já grande, e de outros dois , crianças mais miseráveis do que nós , com as quais eu e Lila às vezes brincávamos e que na escola e não só tentavam sempre roubar as nossas coisas , a ca­ neta, a borracha, a marmelada, e por isso voltavam para casa cheias de nódoas roxas por causa das pancadas que lhes dávamos . Todas as vezes que o víamos , o senhor Peluso parecia-nos a imagem do desespero . Não só perdia tudo ao jogo como andava à pancadaria em público , porque não sabia como matar a fome à farm1ia. Por razões obscuras atribuía a sua ruína a dom Achille . Acusava-o de lhe ter tirado sub-repticiamente , como se o corpo tenebroso dele fosse um íman , to­ das as ferramentas próprias do ofício de carpinteiro , o que tomara a oficina inútil . Censurava-o mesmo por lhe ter tirado também a oficina e tê-la transformado numa charcutaria. Durante anos imaginei o alicate , a serra, a turquês , o martelo , o tomo e milhares de pregos a serem suga­ dos , como um enxame metálico , para o interior da matéria de que era composto dom Achille . Durante anos vi-lhe sair do corpo tosco e pesa­ do , feito de matérias heterogéneas , salames, queijos provolone , morta­ dela, banha e presunto , também sob a forma de enxame . Factos ocorridos em tempos obscuros . Dom Achille devia ter-se ma­ nifestado em toda a sua monstruosa natureza antes de nós nascermos . «Antes» . Lila usava essa expressão muitas vezes , na escola e fora dela. Mas parecia que não lhe importava tanto aquilo que acontecera antes de nós - acontecimentos de um modo geral obscuros , sobre os quais os adultos guardavam silêncio ou se pronunciavam com muita reticência - , como o facto de ter realmente havido um antes . Era isso que nessa época a deixava perplexa e por vezes até a enervava. Quando nos tomá­ mos amigas falou-me tanto daquela coisa absurda - o «antes de nós» - que acabou por me transmitir o seu nervosismo . Era um tempo lon­ go , muito longo , durante o qual não tínhamos existido; o tempo em que dom Achille se mostrara a todos como aquilo que era: um ser malvado , de fisionomia animal-mineral incerta, que - parecia - tirava o sangue aos outros , enquanto o dele nunca vertia, talvez nem fosse possível fazer-lhe um arranhão .

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Andávamos na segunda classe , talvez , e ainda não nos falávamos , quando constou que mesmo e m frente da igreja da sagrada Fanu1ia, à saída da missa, o senhor Peluso se pusera a gritar furiosamente contra dom Achille , e que dom Achille se afastara de Stefano , o filho mais velho , de Pinuccia, de Alfonso , que era da nossa idade , e da mulher e , apresentando-se por u m instante n a sua forma mais horripilante , s e ati­ rara a Peluso , o levantara no ar e o lançara contra uma árvore do jardim, e ali o deixara, desmaiado , com o sangue a correr-lhe das inúmeras fe­ ridas na cabeça e por todo o lado , sem que o pobre homem pudesse ao menos dizer: socorro !

5. Não tenho saudades da nossa infância, foi cheia de violência. Aconte­ cia-nos de tudo , em casa e fora dela, todos os dias , mas não me lembro de ter alguma vez pensado que a vida que nos calhara fosse particular­ mente desagradável . A vida era assim e mais nada, crescíamos com a obrigação de tomá-la difícil aos outros , antes que os outros a tomassem difícil a nós . É claro que teria gostado das maneiras delicadas que a professora e o padre pregavam, mas sentia que esses modos não eram adequados para o nosso bairro , mesmo para as raparigas . As mulheres lutavam mais umas com as outras do que os homens , agarravam-se pe­ los cabelos , magoavam-se . Fazer mal era uma doença. Em pequena imaginava animais pequeninos , quase invisíveis , que apareciam de noite no bairro , saíam dos charcos , das carruagens de comboio abando­ nadas do lado de lá do aterro , das ervas malcheirosas a que chamavam fedorentas , das rãs , das salamandras , das moscas , das pedras , do pó , e metiam-se na água e na comida e no ar, fazendo as nossas mães e avós ficarem raivosas como cadelas sedentas . Eram mais contaminadas do que os homens, porque eles enfureciam-se a todo o passo mas acabavam por se acalmar, ao passo que as mulheres , que pareciam ser caladas , conciliadoras , quando se zangavam enraiveciam-se de tal maneira que nunca mais lhes passava. Lila ficou muito marcada por aquilo que aconteceu a Melina Cappuc­ cio , uma parente da mãe . E eu também. Melina morava no mesmo pré­ dio que os meus pais, nós no segundo andar e ela no terceiro . Tinha pouco mais de trinta anos e seis filhos , mas parecia-nos uma velha. O marido era da mesma idade , descarregava caixas no mercado da fruta e

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da hortaliça. Lembro-me dele baixo e largo , mas bonito , com um rosto altivo . Uma noite saiu de casa como era habitual e morreu , talvez assas­ sinado ou então de cansaço . Teve um funeral muito triste , em que todo o bairro participou , os meus pais também e os pais de Lila igualmente . Decorrido algum tempo , sabe-se lá o que aconteceu a Melina. Por fora continuou a mesma, uma mulher seca com o nariz grande , os cabelos já grisalhos , a voz aguda com que à noite chamava os filhos da janela, um por um, pelo nome, com as sílabas alongadas por um desespero raivoso: Aaa-daaa, Miii-che . A princípio foi muito ajudada por Donato Sarratore , que morava no apartamento por cima do dela, no quarto e último piso . Donato era frequentador assíduo da igreja paroquial da Sagrada Fanu1ia e, como bom cristão , esforçou-se muito por ela, recolhendo dinheiro , roupas e sapatos usados , e arranjando-lhe colocação para o filho mais velho , Antonio , na oficina de Gorresio , seu conhecido . Melina ficou-lhe tão grata que a gratidão se transformou , dentro do seu peito de mulher desolada, em amor, em paixão . Não se sabia se Sarratore se apercebera disso . Era um homem amistoso mas muito sério , casa, igreja e trabalho , fazia parte do pessoal de bordo da Companhia dos Caminhos de Ferro do Estado , tinha um ordenado fixo com que sustentava decentemente a mulher, Lidia, e cinco filhos , o mais velho dos quais se chamava Nino . Quando não andava em viagem no percurso Nápoles-Paola e regresso , dedicava-se a arranjos disto e daquilo em casa, ia fazer as compras , le­ vava o filho mais novo a passear no carrinho . Tudo coisas muito anóma­ las no bairro . Não passava pela cabeça de ninguém que Donato se esfor­ çasse daquele modo para aliviar os trabalhos da mulher. Não . Todos os homens da vizinhança, com o meu pai à cabeça, o consideravam um tipo efeminado , tanto mais que até escrevia poesias e as lia com prazer a quem calhava. Tal coisa também não passou pela cabeça de Melina. A viúva preferia pensar que , por ele ter um feitio tão dócil , a mulher o dominava, e por isso decidiu lutar ferozmente contra Lidia Sarratore , para que ela o libertasse e permitisse assim que ele se juntasse com ela. A guerra que se seguiu a princípio pareceu-me divertida, falava-se disso em minha casa e fora dela entre risotas maldosas . Lidia estendia os len­ çóis acabados de lavar e Melina subia para o parapeito e sujava-lhos com uma cana cuja ponta queimara de propósito no lume; Lidia passava sob as janelas e ela cuspia-lhe para a cabeça ou despejava-lhe baldes de água suja para cima; Lidia fazia barulho de dia por cima dela, a andar pela casa juntamente com os filhos endiabrados , e ela insistia em bater no tecto toda a noite com o cabo da esfregona. Sarratore tentou por to-

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dos os meios que houvesse paz , mas era um homem demasiado sensível , demasiado delicado . E assim , continuando a provocar-se mutuamente , as duas mulheres começaram a trocar insultos quando se cruzavam na rua ou na escada, com palavras duras e raivosas . A partir daí comecei a ter medo delas . Uma das muitas cenas terríveis da minha infância come­ ça com os gritos de Melina e Lidia, com os insultos que gritavam das janelas e depois na escada; continua com a minha mãe a correr para a porta de casa, a abri-la e a aparecer no patamar seguida por nós , crian­ ças; e termina com a imagem, ainda hoje insuportável para mim , das duas vizinhas a rebolar pela escada agarradas uma à outra, e a cabeça de Melina a bater no chão do patamar, a poucos centímetros dos meus sa­ patos, como um melão branco que nos escapuliu da mão . É difícil dizer porque é que naquele tempo nós , crianças , estávamos do lado de Lidia Sarratore . Talvez porque ela tinha feições regulares e cabelo loiro . Ou porque Donato era dela e tínhamos percebido que Me­ lina lho queria tirar. Ou porque os filhos de Melina andavam andrajosos e sujos , ao passo que os de Lidia andavam limpos, bem penteados , e o mais velho , Nino , que tinha mais uns aninhos do que nós , era bonito , gostávamos dele . Só Lila pendia para o lado de Melina, mas nunca nos explicou porquê . Disse apenas , em determinada ocasião , que se Lidia Sarratore acabasse por ser morta era bem feito , e eu pensei que ela en­ carava as coisas dessa forma porque no íntimo era má e também porque ela e Melina eram parentes afastadas . Um dia vínhamos da escola, éramos quatro ou cinco meninas . Con­ nosco encontrava-se Marisa Sarratore , que habitualmente nos acompa­ nhava, não porque simpatizássemos com ela mas porque esperávamos , através dela, poder entrar em contacto com o irmão mais velho , ou seja, Nino . Foi ela a primeira a avistar Melina. Vinha pelo outro lado da lon­ ga rua em passo lento , e trazia na mão um cartucho do qual ia tirando qualquer coisa e comendo . Marisa chamou-nos a atenção para ela cha­ mando-lhe «a puta» , mas sem desprezo , repetindo simplesmente a ex­ pressão que ouvia à mãe em casa. Lila, apesar de ser mais baixa e muito magra, deu-lhe imediatamente uma bofetada, com tanta força que a atirou ao chão , e fê-lo a sangue frio , como costumava fazer em todas as situações de violência, sem gritar antes e sem gritar depois , sem uma palavra de pré-aviso , sem arregalar os olhos , fria e decidida. Primeiro socorri Marisa, que estava a chorar, e ajudei-a a levantar-se , depois virei-me para ver o que Lila fazia. Descera do passeio para atra­ vessar a estrada larga e ir ter com Melina, sem prestar atenção aos ca-

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miões que passavam. Vi-lhe , mais na atitude do que no rosto , algo que me perturbou e que ainda me é difícil definir, de forma que por agora me limitarei a dizer assim: embora se movesse , a atravessar a estrada, pequena, escura, nervosa, embora o fizesse com a determinação habi­ tual , estava imóvel . Imóvel dentro daquilo que a parente da mãe estava a fazer, imóvel pelo desgosto , imóvel de pasmo como as estátuas . Cola­ da. Era uma só com Melina, que trazia na mão o sabão escuro e macio acabado de comprar na cave de dom Carla , do qual tirava pedacinhos com a outra mão e comia.

6. No dia em que a professora Oliviero caiu do estrado e foi bater com a maçã do rosto na carteira, eu , como disse, julguei-a morta, morta no local de trabalho como o meu avô e o marido de Melina, e pareceu-me que como consequência disso também Lila morreria, por causa do terrível castigo que apanharia. Mas afinal , durante um período de tempo que não consigo definir - breve, longo - nada aconteceu . Limitaram-se ambas a desaparecer, professora e aluna, dos nossos dias e da nossa memória. Mas tudo era muito surpreendente , nessa época. A professora Olivie­ ro voltou para a escola viva e começou a dar atenção a Lila, não com a intenção de a castigar, mas de a enaltecer. Esta nova fase começou quando a senhora Cerullo, mãe de Lila, foi chamada à escola. Uma manhã o contínuo bateu à porta e anunciou-a. Logo a seguir entrou Nunzia Cerullo , irreconhecível . Ela, que como a maioria das mulheres do bairro , vivia entrouxada em chinelos e velhos vestidos coçados , apareceu em traje de cerimónia (casamento , comunhão , crisma, funeral) , toda de escuro, uma pequena bolsa brilhante , sapatos com um bocado de salto que lhe martirizavam os pés inchados, e ofereceu à professora dois saquinhos de papel, um com açúcar e outro com café. A professora aceitou a oferta de bom grado e disse , a ela e a toda a turma, olhando para Lila que por sua vez olhava para a carteira, frases cujo sentido geral me desorientou . Estávamos na primeira classe . Andá­ vamos ainda a aprender o alfabeto e os números de um a dez . A melhor da aula era eu , já conhecia as letras todas , sabia contar um dois três quatro , etc . , era elogiada a toda a hora por causa da caligrafia, ganhava os laços com as três cores da bandeira que a professora costurava. To­ davia, surpreendentemente , apesar de Lila a ter feito cair e a ter manda-

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do para o hospital , disse que a melhor da aula era ela. Verdade que ela era a mais má. Verdade que fizera aquela coisa horrível de atirar peda­ ços de mata-borrão sujos de tinta para cima de nós . Verdade que se aquela menina não se comportasse de maneira tão indisciplinada, ela, a nossa professora, não teria caído do estrado , ferindo-se na maçã do ros­ to . Verdade que era obrigada a castigá-la constantemente com a vara de madeira ou mandando-a ajoelhar-se em cima do trigo rijo, atrás do quadro. Mas existia um facto que a enchia de alegria enquanto profes­ sora e enquanto pessoa, um facto maravilhoso que descobrira havia poucos dias , casualmente . Aqui calou-se, como se as palavras não lhe bastassem ou como se quisesse ensinar à mãe de Lila e a nós que os factos contam quase sem­ pre mais do que as palavras . Pegou num bocado de giz e escreveu no quadro (agora não me lembro o que foi , ainda não sabia ler; por isso vou inventar) a palavra «sol» . Depois perguntou a Lila: «Cerullo , o que está aqui escrito?» Na aula fez-se um silêncio de expectativa. Lila fez um meio sorrizi­ nho , quase uma careta, e deitou-se toda de lado , para cima da compa­ nheira de carteira, que deu vários sinais de irritação . Depois leu , em tom amuado: «Sol.» Nunzia Cerullo olhou para a professora com olhos incertos , quase assustados . A professora a princípio pareceu não compreender porque é que naqueles olhos de mãe não se via o seu próprio entusiasmo . Mas depois deve ter deduzido que Nunzia não sabia ler ou que não tinha a certeza de que a palavra escrita no quadro era mesmo «sol» , e franziu o sobrolho . Depois, em parte para esclarecer a situação à senhora Cerullo e em parte para encarecer a nossa companheira, disse a Lila: «Muito bem, de facto , o que ali está escrito é "sol" .» Depois ordenou-lhe: «Vem cá, Cerullo , vem ao quadro .» Lila foi ao quadro contrariada, e a professora entregou-lhe o giz . «Escreve aí» , disse-lhe , «"giz".» Lila, muito concentrada, com uma caligrafia trémula, desenhando uma letra mais acima e outra mais abaixo , escreveu: «gi» . A professora acrescentou o «Z» e a senhora Cerullo , vendo a correc­ ção , disse desconsolada à filha: «Erraste .» Mas a professora tranquilizou-a de imediato:

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«Não , não , não . A Lila tem de praticar, pois tem, mas já sabe ler e já sabe escrever. Quem a ensinou?» A senhora Cerullo disse , de olhos baixos: «Eu , não .» «Mas em vossa casa ou no prédio há alguém que o possa ter feito?» Nunzia fez energicamente que não com a cabeça. Então a professora dirigiu-se a Lila e , com evidente admiração , perguntou-lhe diante de todas nós : «Quem te ensinou a ler e a escrever, Cerullo?» Cerullo , pequena, de cabelos e olhos escuros e de bata, com um laço cor-de-rosa ao pescoço e apenas seis anos de vida, respondeu: «EU .»

7. Segundo dizia Rino , o irmão mais velho de Lila, a menina tinha aprendido a ler por volta dos três anos , olhando para as letras e para as gravuras do seu silabário . Enquanto fazia os trabalhos de casa na cozi­ nha, ela sentava-se a seu lado e conseguia aprender mais do que ele . Rino era quase seis anos mais velho do que Lila, era um rapaz deste­ mido que se destacava em todos os jogos do pátio e da rua, sobretudo no lançamento do pião. Mas ler, escrever, fazer contas , aprender poesias de cor, não eram coisas para ele. Ainda ele não tinha dez anos quando o pai , Fernando , começou a levá-lo todos os dias para a sua oficina de sapateiro numa ruela do outro lado da rua larga, para lhe ensinar o ofício de remen­ dão. Nós , as meninas , quando o encontrávamos , sentíamos-lhe o cheiro a pés sujos , a gáspeas velhas , a massa de sapateiro , e gozávamos com ele , chamávamos-lhe chineleiro . Talvez fosse por isso que ele se gabava de estar na origem da proeza da irmã. Mas a verdade é que nunca tivera um silabário e nunca se sentara, nem um minuto, a fazer os trabalhos de casa. Portanto, era impossível que Lila tivesse aprendido devido à aplicação escolar dele . Era mais provável que ela tivesse compreendido precoce­ mente como funcionava o alfabeto , graças às folhas de jornal em que os clientes embrulhavam os sapatos velhos e que o pai às vezes levava para casa, para ler à farm1ia as notícias locais mais interessantes . Não importa, fosse de uma maneira ou de outra, o facto relevante era este: Lila sabia ler e escrever. E daquela manhã cinzenta em que a pro­ fessora no-lo revelou ficou-me na lembrança, sobretudo , a sensação de

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fraqueza que essa notícia causou em mim. Desde o primeiro dia que a escola me parecera um lugar muito mais bonito do que a minha casa. Em todo o bairro , era o sítio onde me sentia mais em segurança, ia para lá cheia de entusiasmo . Estava com atenção nas aulas , fazia com o má­ ximo cuidado tudo o que me diziam para fazer, aprendia. Mas gostava sobretudo de agradar à professora, gostava de agradar a toda a gente . Em casa era a preferida do meu pai e os meus irmãos também me esti­ mavam. O problema era a minha mãe; as coisas com ela nunca corriam bem. Já nessa altura, com pouco mais de seis anos , tinha a impressão de que ela fazia tudo para me dar a perceber que eu era supérflua na vida dela. Não simpatizava comigo , nem eu com ela. Repugnava-me o seu corpo , coisa que ela provavelmente intuía. Era aloirada, de olhos azuis , opulenta. Mas nunca se sabia para onde o seu olho direito estava a olhar. E a perna direita também não funcionava bem, ela chamava-lhe a perna ofendida. Coxeava, e o passo dela perturbava-me , sobretudo de noite , quando não conseguia dormir e caminhava pelo corredor, ia à cozinha, voltava para trás , recomeçava. Às vezes ouvia-a esmagar com o calca­ nhar, cheia de raiva, as baratas que se introduziam pela porta de entrada, e imaginava-a com os olhos furiosos , como quando se irritava comigo . Não era feliz , com certeza; as tarefas da casa consumiam-na e o di­ nheiro nunca chegava. Zangava-se muitas vezes com o meu pai , que era porteiro na câmara, berrava-lhe que ele tinha de inventar qualquer coisa, que assim não se podia continuar. Discutiam. Mas como o meu pai nun­ ca levantava a voz , nem quando perdia a paciência, eu tomava sempre o partido dele , contra ela, embora ele às vezes lhe batesse e soubesse ser ameaçador para mim. Fora ele , e não a minha mãe , que me dissera no primeiro dia de escola: «Lenuccia, porta-te bem com a professora, que nós deixamos-te estudar. Mas se não fores boa aluna, se não fores a melhor, o papá precisa de ajuda e tu vais trabalhar.» Aquelas palavras tinham-me assustado muito; todavia, embora pronunciadas por ele , sen­ ti que fora a minha mãe que lhas sugerira, que lhas impusera. Prometi aos dois que seria boa aluna. E as coisas tinham logo corrido tão bem que a professora me dizia muitas vezes: «Greco , vem sentar-te ao pé de mim.» Era um grande privilégio . A professora tinha sempre junto de si uma cadeira vazia e chamava as melhores alunas para ali se sentarem, como prémio . Eu , nos primeiros tempos , estava sempre sentada a seu lado . Ela incitava-me com palavras encorajadoras , gabava os meus caracóis loiros, e assim reforçava em mim o desejo de fazer tudo bem. Era o

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contrário da minha mãe , que , quando eu estava em casa, me cobria tan­ tas vezes de repreensões , e às vezes de insultos , que só me apetecia esconder-me num canto escuro e esperar que ela nunca mais me encon­ trasse . Depois aconteceu que a senhora Cerullo veio à aula e a profes­ sora Oliviero nos revelou que Lila estava muito mais adiantada do que nós . E mais ainda: passou a chamá-la mais vezes do que a mim para nos sentarmos a seu lado . O que essa despromoção causou dentro de mim não sei , hoje é-me difícil dizer com exactidão e clareza aquilo que sen­ ti . A princípio talvez nada, um pouco de ciúmes , como todas . Mas foi sem dúvida nessa altura que nasceu em mim uma preocupação . Pensei que , embora as minhas pernas funcionassem bem, corria constantemen­ te o risco de ficar coxa. Acordava com essa ideia na cabeça e levantava­ -me logo da cama, para ver se as pernas ainda estavam em ordem. Tal­ vez fosse por isso que fixei o pensamento em Lila, que tinha umas perninhas muito magras e ágeis e não parava de as mexer, dava ponta­ pés mesmo quando estava sentada ao lado da professora, de tal forma que ela se irritava e depressa a mandava voltar para o lugar. Então , al­ guma coisa me convenceu de que , se eu andasse sempre atrás dela, acompanhando a sua passada, o passo da minha mãe , que me estava gravado na cabeça e dela não saía, deixaria de ser uma ameaça para mim . Decidi que tinha de me regular por aquela menina, nunca a perder de vista, mesmo que ela se aborrecesse e corresse comigo .

8. É provável que tenha sido essa a minha maneira de reagir à inveja e ao ódio e de sufocá-los . Ou talvez tenha disfarçado desse modo o senti­ mento de subalternidade , o sortilégio que estava a sofrer. Preparei-me , claro está, para aceitar de bom grado a superioridade de Lila em tudo , e também as suas prepotências . Além disso , a professora comportou-se de maneira muito perspicaz . É verdade que chamava Lila muitas vezes para se sentar a seu lado , mas dava a impressão de que o fazia mais para ela se portar bem do que para premiá-la. Com efeito , continuou a elogiar Marisa Sarratore , Car­ mela Peluso e , principalmente , a mim. Deixou-me brilhar com uma luz viva, encorajou-me a ser cada vez mais disciplinada, mais diligente , mais subtil . Quando Lila se deixava de turbulências e me passava à frente sem esforço , a professora elogiava-me primeiro a mim com mo-

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deração e só depois exaltava a competência dela. Sentia mais o veneno da derrota quando era a Sarratore ou a Peluso que me ultrav.assavam. Se ficava em segundo lugar depois de Lila, fazia uma expressão resignada de aceitação . Nesses anos, creio que só receava uma coisa: nunca vir a estar a par de Lila nas hierarquias estabelecidas pela professora Olivie­ ro; nunca a ouvir dizer com orgulho que a Cerullo e a Greco eram as melhores . Se um dia ela dissesse que as melhores eram a Cerullo e a Sarratore, ou a Cerullo e a Peluso, eu caía morta. Por isso empreguei todas as minhas energias de menina, não para me tomar a melhor da aula - parecia-me impossível consegui-lo - , mas para não cair para terceiro , quarto , ou último lugar. Dediquei-me ao estudo e a muitas outras coisas difíceis , que me eram estranhas , só para me manter a par daquela menina terrível e brilhante . Brilhante para mim. Para todos os outros alunos , Lila era simples­ mente terrível . Da primeira à quinta classe da primária, por culpa do director e também um pouco por culpa da professora Oliviero , foi a menina mais detestada da escola e do bairro . Pelo menos duas vezes por ano o director obrigava as classes a com­ petirem umas com as outras , de forma a apurar quais os alunos mais brilhantes e, consequentemente , quais os professores mais competentes . A professora Oliviero gostava dessas competições . Em permanente conflito com os seus colegas , com os quais por vezes parecia perto de chegar a vias de facto , servia-se de Lila e de mim como prova evidente da sua competência, de que era a melhor professora da escola primária do nosso bairro . Por isso levava-nos muitas vezes às outras salas de aula, independentemente dos encontros organizados pelo director, para competir com outras crianças , meninas e meninos . Habitualmente eu era enviada para apalpar o terreno , para sondar o nível de competência do inimigo . Geralmente ganhava eu , mas sem exagerar, sem humilhar professores nem alunos . Era uma menina de caracóis loiros , bonitinha, feliz por me exibir mas não atrevida, e transmitia uma impressão de delicadeza que enternecia. Se depois fosse a melhor a recitar as poesias , a cantar a tabuada, a fazer divisões e multiplicações , a dizer que os Al­ pes eram Marítimos , Cácios, Graios , Apeninos , etc . , os outros professo­ res faziam-me uma festa, os alunos sentiam que me esforçara muito para aprender aquilo tudo de cor, e por isso não me odiavam. O caso de Lila era diferente . Na primeira classe já estava além de qualquer competição possível . A professora até dizia que com um pouco de esforço seria capaz de fazer a prova da segunda classe e passar para

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a terceira com menos de sete anos . Depois essa distância aumentou . Lila fazia de cabeça contas complicadas , nos ditados não dava um erro , falava sempre em dialecto como todos nós , mas quando era preciso pu­ xava de um italiano como mandam os livros , usando até palavras como «avezado» , «luxuriante» , «com todo o gosto» . De modo que , quando a professora a mandava para o terreno para dizer os modos e os tempos dos verbos , ou resolver problemas de aritmética, extinguia-se qualquer hipótese de lhe mostrarem boa cara, os ânimos exaltavam-se . Lila era de mais para qualquer pessoa. Além disso , não dava abertura para amabilidades . Para nós , crianças , reconhecer a sua competência era o mesmo que admitir que nunca se­ ríamos capazes de a alcançar, que era inútil competir, e para os profes­ sores e professoras significava aceitar que tinham sido crianças medío­ cres . A sua rapidez mental fazia lembrar um sibilo , um relâmpago , uma picada letal . E nada no seu aspecto poderia servir para suavizar essa impressão . Andava desgrenhada, suja, nos joelhos e nos cotovelos tinha sempre crostas de feridas que não tinham tempo de sarar. Os olhos gran­ des e vivos sabiam transformar-se em duas fendas , no fundo das quais , antes de qualquer resposta acertada, havia uma expressão que não só parecia pouco infantil , como talvez não humana. Todos os seus movi­ mentos avisavam que era inútil fazer-lhe mal , porque , fosse como fosse , ela arranjaria maneira de nos fazer ainda mais mal . O ódio , portanto , era tangível , eu sentia-o . Tanto as raparigas como os rapazes a detestavam, mas os rapazes mais abertamente . Aliás , por qualquer motivo secreto , a professora Oliviero tinha prazer em levar­ -nos, sobretudo , às salas de aula onde , mais do que alunas e professoras , podíamos humilhar alunos e professores . E o director, por motivos seus igualmente secretos , privilegiava sobretudo competições desse mesmo tipo . Cheguei a pensar que na escola se apostasse dinheiro , talvez até muito , naqueles nossos encontros . Mas foi exagero meu . Provavelmen­ te era apenas uma forma de dar vazão a velhos rancores , ou de permitir que o director tivesse rédea curta sobre os professores menos capazes ou menos obedientes . O que é certo é que uma manhã nós duas , que na altura andávamos na segunda classe , fomos levadas , nem mais nem menos , a uma quarta classe , a do professor Ferrara , onde se encontra­ vam Enzo Scanno , o malvado filho da vendedora de fruta e hortaliça, e Nino Sarratore , o irmão de Marisa que eu amava. Toda a gente conhecia Enzo . Era repetente e pelo menos duas vezes tinham-no levado a percorrer as salas de aula com um cartaz ao pesco-

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ço , em que o professor Ferrara , um homem alto e muito magro , de ca­ belos grisalhos cortados à escovinha, rosto pequeno e enrugado , olhos inquietos , havia escrito «burro» . Nino , pelo contrário , era tão bom, tão dócil , tão silencioso , que era conhecido e querido principalmente por mim. É claro que Enzo não valia nada, escolarmente falando , tinham-no debaixo de olho só porque era brigão . Os nossos adversários , em ques­ tões de inteligência, eram Nino e - descobrimos logo - Alfonso Car­ racci , terceiro filho de dom Achille , um menino muito estimado , da se­ gunda classe como nós , que aparentava menos do que os sete anos que tinha. Passava por ser muito inteligente , e percebeu-se que o professor o chamara ali à quarta classe por ter mais confiança nele do que em Nino , quase dois anos mais velho . Houve uma certa tensão entre Oliviero e Ferrara , devido à convoca­ tória imprevista de Carracci , e depois o desafio começou , perante as duas classes reunidas numa mesma sala. Perguntaram-nos os verbos , perguntaram-nos a s tabuadas , perguntaram-nos as quatro operações , primeiro n o quadro e depois de cabeça. Dessa particular ocasião fica­ ram-me na lembrança três coisas . A primeira é que o pequeno Alfonso Carracci me derrotou imediatamente , era calmo e preciso , e o que tinha de bom era que não gozava com uma pessoa quando a vencia. A segun­ da é que Nino Sarratore , surpreendentemente , quase nunca respondeu às perguntas , ficou embasbacado como se não percebesse o que os dois professores lhe perguntavam. A terceira é que Lila fez frente ao filho de dom Achille sem garra, como se não lhe importasse que ele a vencesse . A cena só se animou quando se passou aos cálculos de cabeça de adi­ ções , subtracções , multiplicações e divisões . Alfonso , apesar da apatia de Lila, que por vezes ficava calada como se não tivesse ouvido a per­ gunta, começou a falhar, errava sobretudo as multiplicações e as divi­ sões . Por outro lado , se o filho de dom Achille se ia abaixo , Lila também não estava à altura, por isso andavam mais ou menos a par. Mas a certa altura deu-se um facto imprevisto . Pelo menos duas vezes , quando Lila não respondeu ou Alfonso errou , ouviu-se a voz de Enzo Scanno cheia de desprezo , vinda das últimas carteiras , dizer o resultado certo . Aquilo espantou os outros alunos , os professores , o director, espan­ tou-me a mim e a Lila . Como era possível que um rapaz como Enzo , preguiçoso , incapaz e delinquente , soubesse fazer contas de cabeça complicadas melhor do que eu , do que Alfonso Carracci , do que Nino Sarratore? Foi como se Lila tivesse acordado de repente . Alfonso fi­ cou fora de jogo num instante e , com o consentimento orgulhoso do

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professor, que prontamente trocou de paladino , iniciou-se um duelo entre Lila e Enzo . Fizeram frente um ao outro durante muito tempo . A certa altura o director, passando por cima do professor, chamou ao estrado , para junto de Lila, o filho da vendedora de fruta e hortaliça. Enzo levantou-se da última carteira entre risadinhas nervosas , suas e dos seus acólitos , mas depois postou-se junto ao quadro , em frente de Lila, sério , sem à-von­ tade . O duelo prosseguiu com contas de cabeça cada vez mais difíceis. O rapaz dava as respostas em dialecto , como se estivesse na rua e não numa sala de aula, e o professor corrigia-lhe a dicção , mas o resultado estava sempre certo . Enzo parecia muito orgulhoso daquele momento de glória, ele próprio admirado de ser tão inteligente . Depois começou a ir-se abaixo , porque Lila acordara definitivamente e agora tinha os olhos semicerrados , muito determinados , e respondia com precisão . Enzo por fim perdeu . Perdeu mas não se conformou . Começou a pra­ guejar, a gritar obscenidades horríveis . O professor mandou-o pôr-se de joelhos atrás do quadro , mas ele recusou-se a ir. Levou chibatadas nos dedos e foi arrastado pelas orelhas até ao canto do castigo . O dia de escola acabou assim. Mas a partir daí o bando dos rapazes começou a atirar-nos pedras .

9. Aquela manhã do duelo entre ela e Enzo é importante na nossa longa história. Ali se iniciaram muitos comportamentos de difícil decifração . Por exemplo , viu-se claramente que Lila, se quisesse , era capaz de do­ sear o uso das suas capacidades . Fora isso que fizera com o filho de dom Achille . Não só não quisera vencê-lo , como calibrara silêncios e respos­ tas de forma a não se deixar vencer. Nessa altura ainda não éramos amigas e não podia perguntar-lhe porque tivera aquele comportamento . A verdade é que não era preciso fazer perguntas , eu calculava qual era a razão . Tal como eu , também ela estava proibida de fazer desconside­ rações , não só a dom Achille como a toda a farm1ia. Era assim. Não sabíamos de onde vinha aquele medo-rancor-ódio­ -condescendência que os nossos pais mostravam sentir pelos Carracci e que nos transmitiam, mas existia, era um facto , assim como o bairro , as suas casas de um branco-sujo, o cheiro miserável dos patamares , a poei­ ra das ruas . Com toda a probabilidade , também Nino Sarratore ficara

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calado para permitir que Alfonso desse o seu melhor. Bonito , delicado e nervoso, bem penteado , com aquelas pestanas compridas , poucas coi­ sas gaguejara e por fim calara-se . Para continuar a amá-lo , quis pensar que tinha sido assim. Mas cá no fundo tinha certas dúvidas . Fora deci­ são dele , como acontecera com Lila? Não tinha a certeza. Eu pusera-me de parte porque Alfonso realmente era melhor do que eu . Lila podia tê-lo batido imediatamente , no entanto decidira apostar no empate . E ele? Houve qualquer coisa que me confundiu , que me entristeceu , tal­ vez: não foi incapacidade dele , nem desistência, mas antes , diria eu hoje, uma cedência. Aquele gaguejar, a palidez , o roxo que lhe engolira de repente os olhos: como era bonito assim, lânguido , e todavia , como me desagradara a sua languidez . Também Lila a certa altura me parecera bonita. Geralmente , a bonita era eu . Ela, pelo contrário , era seca como uma anchova salgada, exalava um cheiro a bravio , tinha uma cara comprida, estreita nas têmporas , apertada entre duas faixas de cabelo liso e negro . Mas quando decidira eliminar Alfonso e Enzo , iluminara-se como uma santa guerreira. Subira-lhe um rubor às faces , que era o sinal de uma chama libertada por cada recanto do corpo , de tal forma que pela primeira vez pensei: Lila é mais bonita do que eu . Portanto , eu era segunda em tudo . Fiz votos para que ninguém se apercebesse disso . Mas a coisa mais importante daquela manhã foi ter descoberto que uma expressão que usávamos muito para nos eximirmos aos castigos continha algo de verdadeiro e, por conseguinte , de incontrolável , de perigoso . A expressão era: «não o fiz de propósito» . Com efeito , Enzo não entrara de propósito na competição em curso , e não derrotara Alfon­ so de propósito . Lila vencera Enzo de propósito , mas não vencera tam­ bém Alfonso de propósito , nem o humilhara de propósito , fora só uma passagem necessária. Os factos que daí resultaram convenceram-nos de que era conveniente fazer tudo de propósito , premeditadamente , para sabermos o que se podia esperar. De facto , aquilo que aconteceu depois atingiu-nos de modo inespera­ do . Como quase nada fora feito de propósito , caiu-nos em cima uma caterva de coisas imprevistas , uma após outra. Alfonso voltou para casa lavado em lágrimas , por ter sido derrotado . O seu irmão Stefano , de catorze anos , que era aprendiz na charcutaria (na antiga oficina do car­ pinteiro Peluso) que pertencia ao pai - o qual , porém, nunca lá punha os pés - , no dia seguinte apareceu no exterior da escola e disse coisas muito feias a Lila, chegando a ameaçá-la. A certa altura ela gritou-lhe

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um insulto muito obsceno , ele empurrou-a contra uma parede e tentou agarrar-lhe a língua, gritando que queria picar-lha com um alfinete . Lila voltou para casa e contou tudo ao irmão Rino , e, quanto mais ela falava, mais vermelho ele se fazia e mais os olhos lhe luziam. Entretanto Enzo , quando regressava a casa à noite sem o bando dos campónios, foi trava­ do por Stefano , que o atacou à chapada, ao murro e a pontapés . Rino de manhã foi à procura de Stefano e andaram à luta, batendo um no outro mais ou menos por igual . Dias depois a mulher de dom Achille , a tia Maria, bateu à porta dos Cerullo e fez uma cena de gritos e insultos a Nunzia. Passado pouco tempo , um domingo depois da missa Fernando Cerullo , o sapateiro , pai de Lila e de Rino , um homem baixo e muito magro , abeirou-se timidamente de dom Achille e pediu-lhe desculpa, sem dizer do quê . Eu não o vi , ou pelo menos não me lembro , mas constou que o pedido de desculpa foi feito em voz alta e de maneira que todos ouvissem, embora dom Achille tivesse continuado a andar, como se o sapateiro não estivesse a falar com ele . Pouco tempo depois eu e Lila ferimos Enzo no artelho com uma pedra e Enzo atirou uma pedra que feriu Lila na cabeça. Enquanto eu berrava de medo e Lila se levan­ tava, com o sangue a pingar de sob os cabelos, Enzo , também a sangrar, desceu do aterro e , vendo Lila naquele estado , de modo imprevisto , e aos nossos olhos incompreensível , começou a chorar. Passaram-se uns dias e Rino , o irmão adorado de Lila, aproximou-se da escola e deu umas valentes pauladas a Enzo , que quase nem se defendeu . Rino era mais velho , maior, e estava mais motivado . E mais ainda: Enzo não falou dessas pauladas ao seu bando , nem à mãe , nem ao pai , nem aos irmãos , nem aos primos , que trabalhavam todos no campo e vendiam fruta e hortaliça numa carriola. Nessa altura, graças a ele , acabaram-se as vinganças .

1 0. Lila andou uns tempos com a cabeça ligada, com orgulho . Depois tirou a ligadura e mostrava a quem lho pedisse a ferida negra e averme­ lhada nos bordos , que lhe vinha até à fronte por baixo do cabelo . Por fim esqueceu-se do que lhe acontecera, e se alguém olhava fixamente para a marca esbranquiçada que lhe ficara na pele, fazia um gesto agres­ sivo que significava: para onde estás a olhar? Mete-te na tua vida. A mim nunca disse nada, nem sequer uma palavra de agradecimento pelas

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pedras que lhe passara, o u por lhe ter enxugado o sangue com a ponta da bata. Mas a partir dali começou a sujeitar-me a provas de coragem que nada tinham a ver com a escola. Víamo-nos cada vez mais no pátio . Mostrávamos as nossas bonecas uma à outra, mas como quem não quer a coisa, brincando num espaço próximo como se cada uma de nós estivesse sozinha. A certa altura co­ meçámos a permitir que elas se encontrassem, para experimentar, para ver se se davam bem. E assim chegou o dia em que estávamos ao pé da janela da cave que tinha a rede despregada e fizemos uma troca, ela segurou um bocadinho na minha boneca e eu um bocadinho na dela, e Lila de repente enfiou Tina pela abertura da rede e deixou-a cair. Senti um desgosto insuportável . Gostava da minha boneca de plástico como se fosse o que eu tinha de mais precioso . Sabia que Lila era uma menina muito má, mas nunca esperaria que me fizesse uma coisa tão maldosa. Para mim a boneca tinha vida, e saber que ela estava no fundo da cave , no meio de tanta bicharada que lá vivia, deixou-me em deses­ pero . Mas nesse momento aprendi uma arte em que depois me tornei exímia. Sustive o desespero , sustive-o na orla dos olhos brilhantes , de tal modo que Lila me perguntou em dialecto: «Não te importas?» Não respondi . Sentia uma dor violenta, mas pensava que a dor de discutir com ela seria ainda mais forte . Era como se estivesse a ser es­ trangulada por dois sofrimentos , um já a ocorrer, a perda da boneca, e outro possível , a perda de Lila. Não disse nada, fiz apenas um gesto sem despeito , como se fosse natural , embora natural não fosse e sabendo eu que estava a arriscar muito . Limitei-me a atirar para a cave a sua Nu , a boneca que acabara de me entregar. Lila olhou para mim , incrédula. «Aquilo que tu fazes , faço eu» , papagueei imediatamente em voz alta, muito assustada. «Agora vais-ma lá buscar.» «Só se tu fores buscar a minha.» Fomos juntas . À entrada do prédio , à esquerda, havia uma porta já nossa conhecida por onde se ia para as caves . Era uma porta desconcha­ vada - uma das meias-portas estava segura por uma única dobradiça - , fechada por um ferrolho que mantinha os dois batentes mal unidos . Todas as crianças eram tentadas , e ao mesmo tempo amedrontadas , pela possibilidade de forçar a porta apenas o necessário para conseguir passar para o lado de lá. Foi o que nós fizemos . Abrimos uma nesga

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suficiente para os nossos corpos delgados e flexíveis se esgueirarem para o interior. Uma vez lá dentro , primeiro Lila e depois eu , descemos cinco de­ graus de pedra e chegámos a um sítio húmido, mal iluminado pelas pequenas aberturas ao nível da rua. Eu tinha medo , procurei manter-me atrás de Lila, que parecia zangada e concentrada em encontrar a boneca. Avancei às apalpadelas . Sentia sob as solas das sandálias objectos que rangiam, vidro , cascalho , insectos. Em redor havia coisas não identifi­ cáveis , vultos escuros , pontiagudos , quadrados , arredondados . A pouca luz que penetrava no escuro caía por vezes sobre objectos reconhecí­ veis: o esqueleto de uma cadeira, o pé de um candeeiro , caixas de fruta, fundos e painéis de armários , gonzos de ferro . Apanhei um grande susto com algo que me pareceu uma cara flácida com uns grandes olhos de vidro , alongada por um queixo em forma de caixa. Vi-a pendurada numa armação de madeira, com uma expressão desolada, e gritei , indicando-a a Lila. Ela virou-se bruscamente , aproximou-se devagar de costas para mim, estendeu a mão com cuidado e arrancou-a da armação . Depois voltou-se . Pusera a cara dos olhos de vidro sobre a sua e agora tinha uma cara enorme , com órbitas redondas sem pupilas , sem boca, apenas aquele queixo escuro de rabeca a balançar-lhe sobre o peito . Foram instantes que me ficaram bem impressos na memória. Não tenho a certeza, mas devo ter soltado um grito de verdadeiro terror, pois ela apressou-se a dizer em voz ribombante que era só uma máscara, uma máscara antigás . Era isso que o pai lhe chamava, tinha uma semelhante em casa, na arrecadação . Continuei a tremer e a gemer de medo , o que , evidentemente , a convenceu a tirá-la do rosto e lançá-la para um canto , fazendo um grande barulho e levantando pó , que se adensou entre as línguas de luz das frestas . Acalmei-me . Lila olhou em volta, localizou a abertura por onde tínha­ mos deixado cair Tina e Nu . Aproximámo-nos da parede áspera, grumo­ sa, perscrutámos na sombra. As bonecas não estavam lá. Lila repetia em dialecto: não estão aqui , não estão aqui , não estão aqui , e inspeccionava o chão com as mãos , coisa que eu não tinha coragem de fazer. Passaram-se minutos longos . Uma única vez me pareceu ter visto Tina e , com um baque do coração, inclinei-me para apanhá-la, mas era só uma folha de jornal amachucada. Não estão aqui , repetiu Lila, encaminhando­ -se para a saída. Senti-me perdida, incapaz de ficar ali sozinha a procurar, incapaz de me ir embora com ela sem ter encontrado a boneca. No cimo dos degraus ela disse:

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«Dom Achille apanhou-as , meteu-as no saco negro .» E nesse instante ouvi dom Achille a arrastar os pés , a roçar-se pelas formas indistintas das coisas . Então abandonei Tina ao seu destino , fugi para não me perder de Lila, já a torcer-se com agilidade e a esgueirar-se pela porta desengonçada.

11. Acreditava em tudo o que ela me dizia. Ficou-me gravada na mente a massa informe de dom Achille a correr por passagens subterrâneas com os braços pendurados , segurando com os grandes dedos de uma mão a cabeça de Nu e com os da outra a cabeça de Tina. Sofri muito . Adoeci com febres pueris, melhorei , adoeci de novo . Fui atacada por uma espé­ cie de disfunção táctil. Às vezes tinha a impressão de que , enquanto to­ dos os seres animados em meu redor aceleravam os ritmos da sua vida, as superfícies sólidas se tornavam moles sob os meus dedos, ou incha­ vam, deixando espaços vazios entre a massa interna e a folha da super­ fície . O meu próprio corpo , se o apalpasse , parecia-me tumefacto , o que me entristecia. Tinha a certeza de ter bochechas como balões , mãos re­ cheadas de serradura, lobos das orelhas parecidos com sorvas , pés do feitio de pães redondos. Quando regressei às ruas e à escola, senti que o espaço também estava mudado. Parecia acorrentado entre dois pólos escuros . De um lado a bola de ar subterrânea que pressionava as raízes das casas , a caverna assustadora para onde tinham caído as bonecas . Do outro lado o globo lá no alto , no quarto andar do prédio onde morava dom Achille , que as roubara. As duas bolas estavam como que aparafu­ sadas às extremidades de uma barra de ferro , que na minha imaginação atravessava obliquamente os apartamentos , as ruas , os campos, o túnel , os carris , comprimindo-os . Sentia-me apertada dentro daquele torno , juntamente com o aglomerado de coisas e de pessoas do dia-a-dia, e ti­ nha um mau gosto na boca, uma sensação permanente de náusea que me esgotava, como se o conjunto das coisas assim comprimidas , cada vez mais apertadas , me moesse , reduzindo-me a um creme repugnante . Foi um mal-estar resistente , durou anos , talvez , entrou pela adoles­ cência dentro . Mas quando estava ainda no começo , recebi inesperada­ mente a minha primeira declaração de amor. Foi antes de eu e Lila experimentarmos subir até à casa de dom Àchille , o desgosto pela perda de Tina era ainda insuportável . Tinha ido

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comprar pão , contrariada. A minha mãe tinha-me mandado e estava de volta a casa com o troco bem apertado na mão para não o perder, e o pão ainda quente contra o peito , quando me apercebi de que Nino Sar­ ratore se arrastava atrás de mim, com o irmãozinho pela mão . Nos dias de Verão a mãe , Lídia, fazia-o sair de casa sempre na companhia de Pino , que na altura não tinha mais de cinco anos, com a recomendação de nunca o largar. Perto de uma esquina, pouco depois da charcutaria dos Carracci , Nino fez menção de me ultrapassar, mas , em vez de passar adiante , cortou-me o caminho , empurrou-me contra a parede e apoiou nela a mão livre , como uma barra para me impedir de fugir, e com a outra puxou para si o irmão , testemunha silenciosa da sua proeza. Ofe­ gante , disse qualquer coisa que não compreendi . Estava pálido , primei­ ro sorria, depois punha-se sério , depois sorria de novo . Por fim disse pausadamente , no italiano da escola: «Quando formos grandes quero casar contigo .» Depois perguntou-me se entretanto queria ser namorada dele . Era um pouco mais alto do que eu , muito magro , pescoço alto , orelhas um pou­ co afastadas da cabeça. Tinha cabelo rebelde , olhos intensos com longas pestanas . O esforço que fazia para conter a timidez era impressionante . Embora eu também quisesse casar com ele , apeteceu-me responder: «Não , não posso .» Ele ficou de boca aberta, Pino deu-lhe um puxão . Fugi . Dali para a frente comecei a meter-me por ruelas sempre que o via. No entanto , achava-o lindo . Quantas vezes me aproximara da sua irmã Marisa, só para estar perto dele e fazermos juntos o caminho para casa. Claro está que me fez a declaração na hora errada. Não podia saber como eu me sentia desorientada, quanta angústia me causava a separa­ ção de Tina, como o esforço de acompanhar Lila me consumia, até que ponto o espaço comprimido do pátio , das casas , do bairro , me tirava a respiração . Após muitos olhares longos e assustados que me lançava de longe , também ele começou a evitar-me . Durante um certo tempo deve ter receado que eu contasse às outras meninas , sobretudo à sua irmã, a proposta que me fizera. Sabia-se que Gigliola Spagnuolo , a filha do pasteleiro , se comportara dessa forma quando Enzo lhe pediu namoro . Enzo teve conhecimento e ficou zangado , gritou-lhe , ao pé da escola, que ela era mentirosa, até ameaçara matá-la com uma faca. Também eu senti a tentação de contar tudo , mas depois deixei-me disso , não contei a ninguém , nem sequer a Lila quando nos tornámos amigas . Com o passar do tempo , eu própria me esqueci disso .

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Voltou-me à lembrança mais tarde , quando toda a farm1ia Sarratore se mudou . Uma manhã apareceu no pátio a carroça e o cavalo que per­ tenciam ao marido de Assunta, Nicola, a mesma carroça e o mesmo cavalo velho com que ele e ela vendiam fruta e hortaliça pelas ruas do bairro . Nicola tinha um rosto largo e atraente , e os mesmos olhos azuis e cabelos loiros que o filho Enzo . Além de vender fruta e hortaliça, também fazia mudanças . Daí a pouco , Donato Sarratore , o próprio Nino e também Lídia começaram a trazer coisas para baixo , bugigangas de todo o género , colchões , móveis , e acondicionaram tudo na carroça. As mulheres , assim que ouviram o ruído das rodas no pátio , assoma­ ram-se às janelas , incluindo a minha mãe e eu . Havia uma grande curio­ sidade . Parecia que Donato recebera uma casa nova directamente dos Caminhos de Ferro do Estado , perto de uma praça que se chamava Piazza Nazionale . Ou então - disse a minha mãe - foi a mulher que o obrigou à mudança, para fugir à perseguição de Melina, que lhe quer tirar o marido . Era provável . A minha mãe via sempre o mal onde , para minha grande contrariedade , mais cedo ou mais tarde se descobria que o mal de facto existia, e o seu olho estrábico parecia feito de propósito para detectar os movimentos secretos do bairro . Como reagiria Melina? Seria verdade , como eu ouvira murmurar, que ela tivera um filho de Sarratore e depois o matara? E seria possível que ela se pusesse a gritar coisas horríveis , entre as quais também essa? Todas nós , grandes e pe­ quenas , estávamos à janela, talvez para acenarmos um adeus à farm1ia que se ia embora, ou para assistirmos ao espectáculo da raiva daquela mulher feia, magra e viúva. Vi que Lila e Nunzia, sua mãe , também se debruçavam para ver. Procurei o olhar de Nino , mas ele parecia ter mais que fazer. Assal­ tou-me então , sem um motivo concreto , como era costume , um que­ branto que tornava indistinto tudo o que me rodeava. Pensei que talvez ele me tivesse feito a declaração porque já sabia que se ia embora e queria dizer-me antes o que sentia por mim. Olhei para ele , atarefado a transportar caixas a abarrotar de coisas e senti a culpa, a pena de lhe ter dito que não . Agora ia-se escapulir como um passarinho . Por fim o desfile de móveis e de trastes acabou . Nicola e Donato co­ meçaram a passar cordas , para prender tudo bem à carroça. Lídia Sarra­ tore apareceu vestida como se fosse para uma festa, pusera até um cha­ peuzinho estivo , de palha azul. Empurrava o carrinho com o filho bebé , tendo aos lados as duas filhas , Marisa, que era da minha idade , oito ou nove , e Clelia, de seis . Ouviu-se de repente um barulho de coisas partidas

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no segundo andar. Quase ao mesmo tempo , Melina começou a gritar. Eram gritos de um tal tormento que vi Lila tapar os ouvidos com as mãos. Ecoou também a voz dolorosa de Ada, a segunda filha de Melina, que gritava: mamã, não , mamã. Após um instante de hesitação também eu tapei os ouvidos . Mas entretanto começaram a voar objectos da jane­ la, e a curiosidade foi tanta que libertei os tímpanos , como se precisasse de sons nítidos para compreender. Melina, porém, não gritava palavras , apenas «aaah , aaah» , como se estivesse ferida. Não a víamos , dela não aparecia um braço nem uma mão ao atirar as coisas . Panelas de cobre , copos , garrafas , pratos , parecia que voavam da janela por vontade pró­ pria, e na rua Lídia Sarratore caminhava de cabeça baixa, curvada sobre o carrinho , com as filhas atrás , e Donato subiu para a carroça, para junto dos seus bens, e dom Nicola segurava o cavalo pelo freio enquanto as coisas tombavam no asfalto, ressaltavam e se quebravam, espalhando estilhaços por entre as patas nervosas do animal. Procurei Lila com os olhos . E vi-lhe outra cara, uma cara de desnor­ teamento . Deve ter percebido que olhava para ela e desapareceu logo da janela. Entretanto a carroça pôs-se em movimento . Ao rés da parede , sem um adeus para ninguém, Lídia e os três filhos mais pequenos esgueiraram-se também direito ao portão , enquanto Nino parecia sem vontade de se ir embora, como que hipnotizado pela quantidade de ob­ jectos frágeis atirados contra o asfalto . Por último vi voar da janela uma espécie de mancha negra. Era um ferro de engomar, ferro puro: manípulo de ferro e base de ferro . Quando ainda tinha Tina e brincava em casa, usava o da minha mãe , idêntico, em forma de proa, fazendo de conta que era um navio numa tempestade . O objecto despenhou-se em voo picado e com um baque seco fez um buraco no chão , a poucos centímetros de Nino . Por pouco - por muito pouco - não o matou .

1 2. Nenhum menino alguma vez declarou o seu amor a Lila, e ela nunca me disse se isso lhe dava desgosto. Gigliola Spagnuolo recebia constan­ temente propostas de namoro e eu também era muito requisitada. Mas Lila não agradava, antes de mais porque era um palito , porca e sempre com feridas , mas também por ter a língua afiada. Inventava alcunhas humilhantes e, embora com a professora exibisse vocábulos da língua

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italiana que ninguém conhecia, connosco falava só um dialecto desprezí­ vel, cheio de palavrões , que matava à nascença qualquer sentimento amoroso . Só Enzo fez uma coisa que, não sendo propriamente um pedido de namoro, era no entanto um sinal de admiração e de respeito. Muito depois de lhe ter partido a cabeça com a pedra, e antes , parece-me, de ser rejeitado por Gigliola Spagnuolo, ele seguiu-nos pela rua larga e , perante os meus olhos incrédulos , estendeu a Lila uma coroa de sorvas . «Ü que faço eu a isto?» «Come-as .» «Verdes?» «Deixa-as amadurecer.» «Não as quero .» «Deita-as fora.» Foi tudo . Enzo virou costas e correu para o trabalho . Eu e Lila come­ çámos a rir. Pouco falávamos , mas tínhamos sempre uma risada para tudo o que nos acontecia. Disse-lhe apenas , em tom divertido: «Eu gosto de sorvas .» Estava a mentir, era um fruto que não apreciava. Atraía-me a cor ver­ melho-amarelada de quando ainda estavam verdes , a sua dureza que resplandecia nos dias de sol . Mas quando amadureciam às janelas e se tornavam castanhas e moles como pequenas peras secas , e a pele se ti­ rava facilmente , pondo à vista uma polpa granulosa que não sabia mal , mas que se desfazia de uma maneira que me fazia lembrar as carcaças dos ratos que encontrávamos na rua, nem lhes tocava. Disse aquela frase para fazer uma experiência, esperando que Lila mas oferecesse: toma, fica tu com elas . Senti que se ela me desse a prenda que recebera de Enzo , eu ficaria mais contente do que se ela me oferecesse uma coi­ sa sua. Mas não o fez , e recordo ainda a sensação de traição quando as levou para casa. Ela própria espetou o prego na janela. Vi-a pendurar nele a coroa.

13. Enzo nunca mais lhe deu presentes . Depois da altercação com Giglio­ la, que contara a toda a gente que ele se lhe declarara, vimo-lo· cada vez menos . Embora tivesse mostrado ser muito hábil com as contas de ca­ beça, era demasiado preguiçoso , por isso o professor não o propôs para o exame de admissão , e ele não ficou triste por isso , aliás , até se alegrou .

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Inscreveu-se na escola comercial , mas na verdade já trabalhava com os pais . Levantava-se muito cedo , para ir com o pai ao mercado da fruta e da hortaliça ou para correr as ruas do bairro com a carroça, vendendo produtos do campo , por isso depressa se desligou da escola. Mas nós , quando estávamos quase a terminar a quinta classe , fomos informadas de que tínhamos capacidades para continuar a estudar. A pro­ fessora chamou por turnos os meus pais, os de Gigliola e os de Lila, para lhes dizer que nós devíamos fazer sem falta, além do exame final da instrução primária, também o exame de admissão à escola média. Eu estudei todas as maneiras de convencer o meu pai a não mandar à escola a minha mãe , coxa, com um olho dançarino e sempre cheia de raiva, que fosse antes ele, que era porteiro e sabia ter boas maneiras . Não consegui . Foi ela, falou com a professora e regressou a casa carrancuda. «A professora quer dinheiro . Diz que tem de lhe dar aulas extraordinárias , porque o exame é difícil» «Mas para que serve esse exame?» , perguntou o meu pai . «Para ela poder estudar Latim.» «Mas porquê?» «Porque disseram que ela é inteligente .» «Mas se é inteligente , porque é que a professora tem de lhe dar aulas pagas?» «Porque assim ela viverá melhor e nós pior.» Discutiram muito . A princípio a minha mãe estava contra e o meu pai indeciso; depois , o meu pai mostrou-se cautelosamente a favor e a mi­ nha mãe resignou-se a ser um pouco menos contrária; finalmente deci­ diram deixar-me fazer o exame , mas sempre na condição de eu ser óp­ tima aluna, senão tiravam-me imediatamente da escola. Mas os pais de Lila disseram que não . Nunzia Cerullo fez algumas tentativas com pouca convicção , mas o pai nem quis discutir o assunto , e deu uma bofetada a Rino por ele lhe dizer que fazia mal . Nem era in­ tenção deles ir falar com a professora, mas ela fez com que o director os mandasse chamar, de modo que Nunzia teve de ir. Perante a sua tímida mas firme recusa, a professora Oliviero , severa mas calma, apresentou­ -lhe composições maravilhosas , problemas resolvidos com inteligência, e até desenhos muito coloridos que na aula, quando Lila os fazia, nos encantavam a todas , pois ela, surripiando lápis de cor Giotto , desenhava com realismo princesas com penteados , jóias , vestidos e sapatos nunca vistos em livro nenhum, nem no cinema paroquial . Mas quando a recusa se confirmou , a professora perdeu a calma e arrastou a mãe de Lila até

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ao director, como se fosse uma aluna indisciplinada. Mas Nunzia não podia ceder, não tinha autorização do marido . Portanto foi repetindo que não até ela própria, a professora e o director se cansarem. No dia seguinte , quando íamos para a escola, Lila disse-me no tom habitual: mas eu faço o exame na mesma. Acreditei , pois todos sabiam que era inútil proibi-la de alguma coisa. Parecia ser a mais forte das meninas , mais forte do que Enzo , do que Alfonso , do que Stefano , mais forte do que o irmão Rino , mais forte do que os nossos pais, mais forte do que todos os adultos , incluindo a professora e os carabinieri, que nos podiam meter na cadeia. Apesar do seu aspecto frágil , diante dela qual­ quer proibição perdia consistência. Sabia como passar dos limites sem nunca chegar a sofrer as consequências . Todos acabavam por se dar por vencidos e ainda por cima, embora de má vontade , se sentiam na obri­ gação de elogiá-la.

14. Também era proibido ir a casa de dom Achille , mas ela decidiu fazê­ -lo na mesma e eu fui atrás dela. Aliás , foi naquela ocasião que me convenci que nada podia detê-la, e cada acto seu de desobediência tinha desfechos espantosos , de cortar a respiração . Queríamos que dom Achille nos devolvesse as nossas bonecas . Por isso subimos as escadas , mas eu a cada degrau tinha vontade de virar costas e voltar para o pátio. Ainda sinto a mão de Lila a agarrar a minha, e dá-me prazer pensar que ela o fez não só porque pressentiu que eu não teria coragem de ir até ao último andar, mas também porque ela própria, com aquele gesto , procurava ter ânimo para continuar. Assim, ao lado uma da outra, eu do lado da parede e ela do lado do corrimão , as mãos suadas bem apertadas , subimos os últimos lanços . Em frente da porta de dom Achille o meu coração batia com força, sentia-o nos ouvidos , mas consolei-me pensando que era também o som do coração dela. Dentro do apartamento ouviam-se vozes , talvez de Alfonso, de Stefano ou de Pinuc­ cia. Lila, depois de uma longa espera muda em frente da porta, girou o botão da campainha. Fez-se silêncio , depois ouviu-se chinelar. Dona Maria abriu-nos a porta, trazia um roupão verde desbotado . Quando falou, vi-lhe na boca um dente de ouro muito brilhante . Pensou que procuráva­ mos Alfonso , estava um tanto admirada. Lila disse-lhe em dialecto: «Não , procuramos dom Achille .»

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«Diz-me a mim.» «É com ele que temos de falar.» A mulher gritou: «Achl .» Mais chinelar. Uma figura opulenta surgiu da penumbra. Tinha o tron­ co alto , pernas curtas , braços que lhe chegavam aos joelhos e um cigarro na boca; via-se a brasa. Perguntou em voz rouca: «Quem é?» «A filha pequena do sapateiro com a filha do Greco .» Dom Achille chegou à luz e, pela primeira vez , vimo-lo bem. Nada de minerais nem cintilar de vidros . O rosto era de carne , comprido , e só tinha algum cabelo desgrenhado por cima das orelhas , o alto da cabeça brilhava. Tinha olhos luzidios , com o branco coberto de riachos verme­ lhos , a boca era grande e delgada, o queixo volumoso com uma cova ao centro . Achei-o feio , mas não tanto como imaginara. «Então?» «As bonecas» , disse Lila. «Que bonecas?» «As nossas .» «Não precisamos aqui das vossas bonecas .» «0 senhor apanhou-as lá em baixo na cave .» Dom Achille virou-se e gritou para o interior do apartamento: «Piou , apanhaste a boneca da filha do sapateiro?» «Eu não .» «Alfõ , apanhaste-a tu?» Risotas . Lila disse com firmeza, não sei onde foi buscar tanta coragem: «0 senhor é que as apanhou , nós vimo-lo .» Houve um instante de silêncio . «Vocês , a mim?» , perguntou dom Achille . «Sim, e meteu-as no seu saco negro .» O homem, ao ouvir estas últimas palavras , franziu a testa, aborrecido . Eu nem podia crer que estávamos ali diante de dom Achille , e que Lila falava com ele daquele modo e ele olhava para ela perplexo , e que ao fundo entrevíamos Alfonso , Stefano e Pinuccia, e a tia Maria a pôr a mesa para o jantar. Não podia crer que ele era uma pessoa normal , um pouco baixo , um pouco calvo , um pouco desproporcionado , mas nor­ mal . Por isso esperava que de um momento para o outro ele se transfor­ masse .

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Dom Achille repetiu , como se quisesse perceber bem o sentido das palavras: «Eu peguei nas vossas bonecas e meti-as no saco negro?» Senti que ele não ficara zangado , mas sim desgostoso de repente , como se estivesse a ter a confirmação de uma coisa que já sabia. Disse algo em dialecto que não percebi , e Maria gritou: «Achi , está pronto .» «Vou já.» Dom Achille levou uma mão grande e larga ao bolso de trás das cal­ ças . Nós apertámos as mãos com força, à espera que ele tirasse de lá uma faca . Mas afinal tirou o porta-moedas , abriu-o , olhou lá para dentro e entregou algum dinheiro a Lila, não me recordo quanto . «Vão comprar bonecas» , disse . Lila arrancou-lhe o dinheiro da mão e arrastou-me pela escada abaixo . Ele debruçou-se do corrimão e resmoneou : «E lembrem-se de que fui eu que as ofereci .» Eu disse em italiano, atenta para não cair nas escadas : «Boa noite e bom apetite .»

15. Logo a seguir à Páscoa, Gigliola Spagnuolo e eu começámos a ir a casa da professora, para nos prepararmos para o exame de admissão . A professora morava mesmo ao lado da igreja paroquial da Sagrada Famí­ lia, as janelas davam para os jardins da igreja e dali avistava-se , para lá dos campos , os postes da linha férrea. Gigliola passava por baixo das minhas janelas e chamava-me . Eu já estava pronta, saía a correr. Gosta­ va daquelas aulas particulares , duas por semana, parece-me . A professo­ ra, no fim da aula, oferecia-nos bolinhos secos em forma de coração e uma gasosa. Lila nunca foi , os pais não tinham concordado em pagar à professora. Mas ela, como agora éramos muito amigas , continuava a dizer-me que ia fazer o exame e que iria para o primeiro ano da escola média, na mesma turma que eu . «E os livros?» «Emprestas-mos tu .» Mas entretanto , com o dinheiro de dom Achille comprou um roman­ ce : Mulherzinhas . Decidiu comprá-lo porque já o conhecia e gostara

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muito dele . Na quarta classe a professora Oliviero tinha dado às melho­ res alunas livros para lermos . A ela calhara-lhe Mulherzinhas , com a seguinte frase a acompanhar: «Este é para as mais crescidas , mas está bem para ti» , e a mim calhara Coração , sem uma só palavra que me explicasse do que se tratava. Lila havia lido Mulherzinhas e Coração em pouco tempo , e dizia que não havia comparação , na opinião dela Mulherzinhas era muito bonito . Eu não conseguira lê-lo , terminara Cuo­ re a custo , dentro do prazo estabelecido pela professora para devolução . Era uma leitora vagarosa, ainda o sou . Lila, quando teve de restituir o livro à professora, lamentou-se de não poder continuar a reler Mulh er­ zinhas e de não poder falar comigo sobre o livro . Por isso uma manhã decidiu-se . Chamou-me da rua, fomos ao paul , ao sítio onde tínhamos enterrado o dinheiro de dom Achille numa caixinha de metal , pegámos nele e fomos perguntar à Iolanda da papelaria, que tinha na montra sei lá desde quando um exemplar de Mulherzinhas amarelecido pelo sol , se chegava. Chegava. Assim que nos tomámos proprietárias do livro , co­ meçámos a encontrar-nos no pátio para lê-lo , ou em silêncio , ao lado , uma da outra, ou em voz alta. Andámos a lê-lo durante meses , tantas e tantas vezes que o livro ficou sebento , esfrangalhado , perdeu a lombada, começaram a cair fios e a soltar-se os cadernos . Mas era o nosso livro , gostávamos muito dele . Eu era a guardiã, tinha-o em casa no meio dos livros da escola, porque Lila não se sentia à vontade para tê-lo em casa dela. O pai , nos últimos tempos , zangava-se se a apanhasse a ler. Rino, porém, protegia-a. Quando houve a questão do exame de admis­ são , ele e o pai discutiam constantemente . Nessa altura Rino teria uns dezasseis anos , era um rapaz muito nervoso e iniciara uma batalha pessoal para ser pago pelo trabalho que fazia. O seu raciocínio era: levanto-me às seis; venho para a loja e trabalho até às oito da noite; quero ter um salário. Mas essas palavras escandalizavam o pai e a mãe. Rino tinha uma cama onde dormir, tinha onde comer, para que queria dinheiro? A sua obrigação era ajudar a fannlia, e não empobrecê-la. Mas o rapaz insistia, achava in­ justo trabalhar tanto como o pai e não receber um centavo . Então , Fernan­ do Cerullo respondia-lhe com aparente paciência: «Eu já te pago, Rino , pago-te generosamente ensinando-te o ofício completo . Tu daqui a pouco sabes apenas pôr uns saltos novos ou uma orla, ou umas meias-solas; o teu pai está a ensinar-te tudo o que sabe, e não tarda muito serás capaz de fazer um sapato inteiro .» Mas esse pagamento com base no ensino não era bas­ tante para Rino , por isso discutiam, principalmente ao jantar. Começavam a falar de dinheiro e acabavam a litigar por causa de Lila.

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«Se me pagares , encarrego-me de a mandar estudar» , dizia Rino . «Estudar? Porquê? Eu estudei?» «Não .» «E tu estudaste?» «Não .» «Então porque é que a tua irmã, que é rapariga, há-de estudar?» O assunto encerrava-se quase sempre com uma bofetada na cara de Rino , que de uma forma ou de outra, mesmo sem querer, faltara ao res­ peito ao pai . O rapaz , sem chorar, pedia desculpa com voz rancorosa. Lila ficava calada durante aquelas discussões . Ela nunca mo disse , mas ficou-me a impressão de que enquanto eu odiava a minha mãe , e odiava-a mesmo , profundamente , ela apesar de tudo não tinha rancor ao pai . Dizia que ele era todo cheio de gentilezas , dizia que ele , quando precisava de fazer contas , lhas mandava fazer a ela, dizia que o ouvira dizer aos amigos que a filha dele era a pessoa mais inteligente do bairro , dizia que no dia do santo do seu nome era ele próprio que lhe levava chocolate quente à cama e quatro bolachas . Mas o que se havia de fazer, não cabia na sua maneira de ver que ela continuasse a estudar. E tam­ bém não cabia nas suas possibilidades financeiras . A farru1ia era nume­ rosa, viviam todos da pequena oficina de sapateiro , e ainda duas irmãs solteiras de Fernando , e também os pais de Nunzia. Por isso , sobre a questão do estudo era como falar com uma parede , e a mãe ao fim e ao cabo era da mesma opinião . Só o irmão pensava de maneira diferente e lutava corajosamente contra o pai . E Lila, por razões que eu não com­ preendia, mostrava-se convencida de que Rino havia de ganhar. Conse­ guiria ter um salário e com o seu dinheiro lhe pagaria a escola. «Se for preciso pagar propinas , ele paga-mas» , dizia-me . Tinha a certeza de que o irmão também lhe daria dinheiro para os livros escolares , e até para as canetas , para o estojo, para os lápis de cor, para o mapa-múndi , a bata e o laço . Adorava-o. Disse-me que quando acabasse de estudar queria ganhar muito dinheiro , com o único objecti­ vo de fazer do irmão a pessoa mais rica do bairro . A riqueza, naquele último ano da primária, tomou-se a nossa ideia fixa. Falávamos dela como nas histórias se fala da busca de um tesouro . Dizíamos que quando fôssemos ricas faríamos isto e faríamos aquilo . Ouvindo-nos , dir-se-ia que a riqueza estava escondida em qualquer sítio do bairro , dentro de arcas que quando se abriam soltavam clarões , à espera de que a encontrássemos . Depois , não sei porquê , as coisas alte­ raram-se e começámos a associar os estudos ao dinheiro . Pensámos que ,

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se estudássemos muito , seríamos capazes de escrever livros e que os livros nos tomariam ricas . A riqueza continuava a ser um resplendor de moedas de ouro fechadas dentro de inúmeras arcas , mas para a alcançar bastava estudar e escrever um livro . «Escrevemos um juntas» , disse Lila uma vez , o que me encheu de alegria. Talvez a ideia tenha tomado forma quando ela descobriu que a autora de Mulherzinhas ganhou tanto dinheiro dessa maneira que deu um pou­ co da sua riqueza à fanu1ia. Mas não garanto . Falámos sobre isso , disse­ -lhe que podíamos começar logo depois do exame de admissão . Concor­ dou , mas não conseguiu resistir. Enquanto eu tinha muito que estudar, ainda mais por causa das aulas da tarde com a Spagnuolo e a professora, ela tinha mais tempo livre; meteu mãos à obra e escreveu um romance sem mim. Fiquei magoada quando ela o trouxe para eu ler, mas não disse nada, contive a desilusão e elogiei-a muito . Eram dez folhas de papel quadri­ culado, dobradas e presas com um alfinete de costureira. Tinha uma capa desenhada a lápis de cor e lembro-me do título . Chamava-se A Fada Azul, era apaixonante e cheio de palavras difíceis. Disse-lhe que o desse a ler à professora. Não quis . Implorei-lhe , ofereci-me para ser eu a entregar-lho . Com pouca convicção , fez sinal que sim. Um dia, quando estava em casa da professora para a aula, aproveitei a ida de Gigliola à casa de banho e tirei da pasta A Fada Azul. Disse que era um romance muito bonito escrito pela Lila e que ela queria que a professora o lesse . Mas a professora, que nos últimos cinco anos sempre se entusiasmara com tudo o que Lila fazia, à parte as maldades , respon­ deu friamente: «Diz à Cerullo que faria bem em estudar para o exame da primária, em vez de perder tempo» . E embora ficasse com o romance de Lila, deixou-o em cima da mesa sem sequer olhar para ele . Aquela atitude desorientou-me . O que é que acontecera? Zangara-se com a mãe de Lila? Tinha alargado a zanga a Lila também? Estava abor­ recida por causa do dinheiro que os pais da minha amiga não lhe tinham querido dar? Não compreendi . Uns dias depois , cautelosamente , per­ guntei-lhe se já lera A Fada Azul. Respondeu-me num tom insólito , de modo pouco claro , como se só eu e ela fôssemos capazes de perceber. Tenho as frases bem gravadas na memória. «Sabes o que é a plebe , Greco?» «Sim. A plebe , os tribunos da plebe , os Gracchi.»

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«A plebe é uma coisa muito feia.» «Sim.» «E se uma pessoa quer continuar a ser da plebe , ela , os filhos, os fi­ lhos dos filhos, nada merecem. Esquece a Cerullo e pensa em ti .» A professora Oliviero nunca mais disse nada a respeito de A Fada Azul. Lila pediu-me notícias duas ou três vezes , depois não fez mais caso . Disse , pesarosa: «Assim que tiver tempo escrevo outro , aquele não era bom.» «Era maravilhoso.» «Metia nojo .» Mas tomou-se menos vivaça, sobretudo nas aulas , provavelmente porque percebeu que a professora já não a elogiava, por vezes até se mostrava incomodada com o seu excesso de qualidades . Quando se realizou a competição do final do ano ela foi a melhor, mas sem o atre­ vimento de outros tempos . Para terminar o dia, o director apresentou a quem estava ainda em competição - Lila, Gigliola e eu - um proble­ ma dificílimo que ele mesmo inventara. Gigliola e eu esforçámo-nos sem resultado . Lila reduziu os olhos a duas gretas como era costume e concentrou-se . Foi a última a capitular. Disse em tom tímido , insólito nela, que o problema não se podia resolver porque havia algo errado no enunciado , mas não sabia dizer o quê . O que ela foi dizer ! A professora deu-lhe uma grande ensaboadela. Vi Lila no quadro com o giz na mão , franzina, muito pálida, a ser atingida por rajadas de frases cruéis . Sentia o sofrimento dela, não conseguia suportar o tremor do seu lábio inferior e pouco faltou para eu desatar a chorar. «Quando não sabemos resolver um problema» , concluiu a professora com frieza, «não dizemos que o problema está errado , dizemos que não somos capazes de o resolver.» O director ficou em silêncio . Tanto quanto me lembro , o dia termi­ nou ali .

16. Pouco antes do exame final da primária, Lila desafiou-me para fazer outra das muitas coisas que eu nunca teria tido coragem de fazer sozi­ nha. Decidimos não ir à escola e atravessar as fronteiras do bairro . Nunca acontecera. Tanto quanto conseguia lembrar-me , nunca fora além dos prédios brancos de quarto andar, do pátio , da igreja paroquial ,

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dos jardins , nem alguma vez sentira o impulso de fazê-lo . Passavam comboios constantemente do lado de lá dos campos , automóveis e ca­ miões circulavam de um lado para o outro na rua larga, mas não me lembrava de uma só vez ter perguntado a mim mesma, ou ao meu pai , ou à professora, para onde iam os automóveis , os camiões , os comboios , para que cidade , para que mundo? Lila também nunca se mostrara particularmente interessada, mas daquela vez organizou tudo . Recomendou-me que dissesse à minha mãe que depois das aulas iríamos todas a casa da professora a uma festa de final de ano escolar, e apesar de eu tentar recordar-lhe que as professo­ ras nunca tinham convidado as alunas todas para ir a suas casas fazer uma festa, ela disse que precisamente por isso é que devíamos dizer aquilo . O acontecimento pareceria tão excepcional que nenhum dos nossos progenitores teria o atrevimento de ir à escola perguntar se era verdade ou não . Confiei , como sempre , e correu precisamente como ela dissera. Em minha casa todos acreditaram, não só o meu pai e os meus irmãos, como também a minha mãe . Na noite anterior não consegui dormir. O que haveria para além do bairro , para além do seu perímetro que tão bem conhecia? Atrás de nós elevava-se uma colina densamente arborizada e uns escassos edifícios junto dos carris cintilantes. Na nossa frente , para lá da rua larga, esten­ dia-se uma rua toda esburacada que bordejava os pauis . À direita, quan­ do se saía do portão , havia uma faixa de terras sem árvores por baixo de um céu enorme . À esquerda havia um túnel com três bocas , mas se trepássemos até aos carris da linha férrea, nos dias limpos via-se , depois de algumas casas baixas e muros de tufo e uma vegetação cerrada, uma montanha azul com um cume mais baixo e outro um pouco mais alto , que se chamava Vesúvio e era um vulcão . Mas nada daquilo que tínhamos diante dos olhos todos os dias , ou que podíamos avistar se subíssemos a colina, nos impressionava. Habituadas pelos livros da escola a falar com muita competência daquilo que nunca tínhamos visto , o que nos excitava era o invisível . Lila dizia que mesmo na direcção do Vesúvio era o mar. Rino , que já lá fora, contara-lhe que era feito de água azul e cintilante , uma beleza de espectáculo . Ao domin­ go , principalmente no Verão , mas também muitas vezes no Inverno , ele corria para lá com os amigos para ir tomar banho , e prometera-lhe que a levava. Não era ele o único que tinha visto o mar, evidentemente , outros nossos conhecidos também o tinham visto. Uma vez Nino Sarratore e a sua irmã Marisa falaram-nos do mar, num tom de quem achava normal

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ir lá de vez em quando comer biscoitos e marisco . Gigliola Spagnuolo também já lá estivera. Ela, Nino e Marisa tinham a sorte de ter uns pais que levavam os filhos a fazer passeios até longe, não só meia dúzia de passos até aos jardins em frente da igreja. Os nossos não eram assim, faltava-lhes tempo , faltava-lhes dinheiro , faltava-lhes vontade . Na verda­ de parecia-me que tinha uma vaga lembrança azulada do mar, a minha mãe dizia que me levara com ela em pequena, quando ia fazer banhos de areia à perna ofendida. Mas eu pouco acreditava na minha mãe , e com Lila, que nada sabia a tal respeito , eu admitia que também nada sabia. De modo que ela planeou fazer como Rino , pôr-se a caminho e chegar lá sozinha. Convenceu-me a ir com ela. No dia seguinte . Levantei-me cedo , fiz tudo como se fosse para a escola, as sopas de pão no leite quente, a pasta, a bata. Esperei por Lila em frente do portão como sempre , só que , em vez de irmos para a direita, atravessámos a rua larga e seguimos para a esquerda, na direcção do túnel . Era de manhã cedo e já fazia calor. Havia no ar um odor forte a terra e a erva que enxugavam ao sol . Subimos por entre arbustos altos , por veredas incertas que se dirigiam para os carris . Chegámos a um poste de electricidade , tirámos as batas e metemo-las nas pastas , que esconde­ mos no meio das moitas . Depois corremos pelos campos que conhecía­ mos bem e voámos excitadas por um declive que nos levou até ao túnel . A boca da direita era muito escura, nunca tínhamos penetrado naquela obscuridade. Demos as mãos e seguimos . Era uma passagem comprida, o círculo luminoso da saída parecia distante . Quando nos habituámos à penumbra vimos , aturdidas pelo ribombar dos passos , as linhas de água prateada que deslizavam pelas paredes e as enormes poças . Prossegui­ mos , muito tensas . Lila soltou um grito e riu-se da explosão violenta dó som. Depois gritei eu_ e ri-me também. A partir daí não fizemos senão gritar, ao mesmo tempo e em separado . Risadas e gritos , gritos e risadas , só pelo prazer de os ouvir ampliados . A tensão afrouxou , começou a viagem. Tínhamos diante de nós muitas horas durante as quais nenhum dos nossos familiares nos procuraria. Quando penso no prazer de ser livre, penso no início daquela jornada, quando saímos do túnel e nos encontrá­ mos numa estrada sempre a direito a perder de vista, a estrada que , segun­ do o que Rino dissera a Lila, temos de percorrer toda para chegar ao mar. Senti-me exposta ao desconhecido com alegria. Nada que fosse compará­ vel com a descida às caves ou a subida até casa de dom Achille. Estava um sol nebuloso , um forte cheiro a queimado . Caminhámos muito tempo

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entre muros desmoronados invadidos pelas ervas , edifícios baixos de onde vinham vozes em dialecto , por vezes um clangor. Vimos um cavalo descer cautelosamente uma ladeira e atravessar a estrada a relinchar. Vi­ mos uma mulher jovem debruçada de uma varanda, a pentear-se com o pente fino para os piolhos . Vimos um grupo de garotos ranhosos que pa­ raram de brincar e nos olharam com ar ameaçador. Também vimos um homem gordo em camisola interior, que saiu de uma casa em ruínas , abriu as calças e nos mostrou o pénis. Mas não tivemos medo de nada: Dom Nicola, o pai de Enzo , às vezes deixava-nos fazer festas ao cavalo, os garotos também no nosso pátio eram ameaçadores , e havia o velho dom Mimi que nos mostrava o seu coiso asqueroso sempre que vínhamos da escola. Durante pelo menos três horas de caminho a grande estrada que percorríamos não nos pareceu diferente do segmento que víamos todos os dias . E não senti a responsabilidade do caminho certo . Íamos de mão dada, avançávamos lado a lado, mas para mim, de acordo com o que era costume, era como se Lila fosse dez passos à minha frente e soubesse com precisão o que fazer, por onde ir. Estava habituada a sentir-me segunda em tudo , por isso estava certa de que para ela, que desde sempre era a primeira, tudo era claro: o passo , a contagem do tempo de que dispúnha­ mos para ir e voltar, o percurso para chegar ao mar. Para mim era como se ela tivesse tudo arrumado na cabeça, de tal modo que o mundo em volta não conseguiria criar desordem. Abandonei-me com alegria. Lem­ bro-me de uma luz difusa que não parecia vir do céu e sim das profunde­ zas da terra, mas que vista à superfície era fraca, feia. Depois começámos a ficar cansadas , a ter sede e fome . Nisso não tí­ nhamos pensado . Lila abrandou o passo , e eu abrandei também. Surpre­ endi-a duas ou três vezes a olhar para mim como se estivesse arrepen­ dida de me ter feito uma maldade . O que se passava? Reparei que se virava muito para trás e comecei a virar-me também . A mão dela come­ çou a suar. Há muito tempo que se deixara de ver atrás de nós o túnel , que era a fronteira com o bairro . A estrada já percorrida era-nos pouco familiar, tal como a que continuava a abrir-se diante de nós . As pessoas pareciam totalmente indiferentes à nossa sorte . E entretanto ia surgindo à nossa volta uma paisagem de abandono: bidões amolgados , madeira queimada, esqueletos de automóveis , rodas de carroça com os raios partidos , móveis semidestruídos , ferragens ferrujentas . Porque olhava Lila para trás? Porque deixara de falar? O que é que não corria bem? Olhei melhor. O céu , que a princípio estava muito alto , era como se tivesse baixado . Atrás de nós estava a ficar tudo negro , viam-se nuvens

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grossas , pesadas , pousadas por cima das árvores e dos postes da luz . À nossa frente , pelo contrário, a luz ainda encandeava, mas parecia ser pressionada dos lados por um cinzento violáceo prestes a sufocá-la. Ouviram-se trovões ao longe . Senti medo , mas o que mais me assustou foi a expressão de Lila, nova para mim. Tinha a boca aberta, os olhos arregalados , olhava nervosamente para a frente , para trás , para o lado , e apertava-me a mão com força. Será possível , perguntei-me , que ela também tenha medo? O que se passa com ela? As primeiras grandes pingas chegaram, bateram na poeira da estrada e formaram manchas castanhas . «Voltemos» , disse Lila. «E o mar?» «É longe de mais.» «E a casa?» «Também.» «Então vamos até ao mar.» «Não .» «Porquê?» Vi-a agitada como nunca vira. Havia qualquer coisa - qualquer coisa que ela tinha na ponta da língua mas não se resolvia a dizer-me - que de repente a impeliu a arrastar-me para casa à pressa. Não percebi . Por que razão não prosseguíamos? Tínhamos tempo , o mar não devia estar longe , e quer voltássemos para casa, quer continuássemos em frente , se chovesse molhávamo-nos na mesma. Era um esquema de raciocínio que aprendera com ela e admirava-me que não o pusesse em prática. Uma luz violácea fendeu o céu escuro , trovejou com mais força. Lila deu-me um puxão , foi com pouca convicção que corri na direcção do bairro . Levan­ tou-se vento , as pingas engrossaram ainda mais , no espaço de poucos segundos transformaram-se numa cascata de água. Nenhuma de nós se lembrou de procurar abrigo . Corremos , cegas pela chuva, os vestidos de repente ensopados , os pés nus dentro das sandálias gastas , que não ade­ riam ao terreno enlameado . Corremos até ficar sem fôlego . Depois não conseguimos mais , abrandámos . Relâmpagos , trovões , um rio de água corria de cada lado da estrada, camiões ruidosos passa­ vam, velozes, levantando ondas de lama. Fizemos o caminho em passo rápido , com o coração em tumulto , primeiro debaixo de grandes báte­ gas , depois sob uma chuva miudinha, e por fim sob um céu cinzento . Estávamos ensopadas , os cabelos colados à cabeça, os lábios roxos , os olhos assustados . Passámos de novo pelo túnel , atravessámos os cam-

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pos . Os arbustos carregados de água roçavam por nós , fazendo-nos es­ tremecer. Encontrámos as pastas , vestimos as batas secas por cima da roupa molhada, encaminhámo-nos para casa. Tensa, sempre de olhos baixos , Lila não voltou a dar-me a mão . Depressa compreendemos que nada correra como previsto . No bair­ ro , o céu fizera-se negro à hora da saída da escola. A minha mãe fora até lá com o guarda-chuva, para me acompanhar até à festa da professora. Descobrira que eu não me encontrava na escola e que não havia festa nenhuma. Havia horas que me procurava. Quando avistei ao longe a sua figura a coxear, corri-lhe imediatamente ao encontro deixando Lila para trás , para que ela não se zangasse com Lila. Nem me deixou falar. Esbofeteou-me e bateu-me com o guarda-chuva, gritando que me mata­ va se eu voltasse a fazer algo daquele género . Lila pirou-se . Em casa dela ninguém dera por nada. Ao serão a minha mãe contou tudo ao meu pai e obrigou-o a bater­ -me . Ele enervou-se , pois não queria fazê-lo , e começaram a discutir. Primeiro ele deu-lhe uma bofetada e depois , irritado consigo mesmo , deu-mas pela medida grande . Durante toda a noite tentei perceber o que tinha de facto acontecido . Devíamos ter ido ao mar e não fomos , e eu levara tareia por nada. Ocorrera uma misteriosa inversão de atitudes . Eu , apesar d a chuva, teria prosseguido caminho , sentia-me longe de tudo e de todos , e a distância - descobrira-o pela primeira vez - ex­ tinguia em mim todos os vínculos e todas as preocupações; Lila de re­ pente arrependera-se do plano que concebera, renunciara ao mar, quis regressar aos confins do bairro . Não conseguia compreender. No dia seguinte não a esperei ao portão , fui sozinha para a escola. Encontrámo-nos nos jardins , ela descobriu as nódoas negras nos meus braços e perguntou-me o que acontecera. Encolhi os ombros, as coisas agora estavam assim. «Só te bateram?» «Que mais haviam de me fazer?» «Ainda te vão mandar estudar latim?» Olhei para ela, perplexa. Seria possível? Arrastara-me consigo na esperança de que os meus pais , como castigo , já não me mandassem para a escola média? Ou trouxera-me para trás a toda a pressa justamente para evitar esse casti­ go? Ou - interrogo-me hoje - desejara uma coisa e outra em momen­ tos diferentes?

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17. Fizemos juntas o exame final da primária. Quando percebeu que eu faria também o de admissão , perdeu a energia. Aconteceu algo que sur­ preendeu toda a gente: eu passei nos dois exames com dez em todas as disciplinas ; Lila passou no exame da primária com nove em todas e oito em aritmética. Não me disse uma única palavra de raiva ou de descontentamento . Mas começou a fazer conluio com Carmela Peluso , a filha do carpin­ teiro-batoteiro , como se eu já não bastasse para ela. No espaço de pou­ cos dias formámos um trio , no qual eu , apesar de ter sido a número um da escola, estava quase sempre em terceiro lugar. Falavam e diziam piadas uma à outra constantemente , ou melhor, Lila falava e dizia pia­ das , Carmela ouvia e divertia-se . Quando dávamos os nossos passeios entre a igreja e a rua larga, Lila ia sempre no meio , e nós , uma de cada lado . Se notava que ela tendia para se aproximar mais de Carmela, eu sofria com isso e tinha vontade de voltar para casa. Nesse último período da primária parecia que andava atordoada, co­ mo se tivesse sofrido um golpe de sol . Já fazia muito calor e costumá­ vamos molhar a cabeça na fonte . Recordo-a com os cabelos e a cara a pingar água e sempre a querer falar da nossa ida para a escola no ano seguinte . Tornara-se o seu tema preferido e tratava-o como se fosse um dos contos que tinha intenção de escrever para ficar rica. Agora, ao fa­ lar, dirigia-se de preferência a Carmela Peluso , que no exame da primá­ ria tivera sete em tudo e também não fizera o exame de admissão . Lila tinha muito jeito para contar histórias , parecia ser tudo verdade , a escola para onde iríamos , os professores , fazia-me rir e preocupava­ -me . Mas uma manhã interrompi-a. «Lila» , disse-lhe , «tu não podes ir para a escola média, não fizeste o exame de admissão . Nem tu nem a Peluso podem ir.» Zangou-se . Disse que iria na mesma, com exame ou sem exame . «E a Carmela também?» «Também .» «Não é possível .» «Então vais ver.» Mas as minhas palavras devem ter-lhe dado um grande abanão . A partir daí deixou de contar histórias sobre o nosso futuro escolar e tor­ nou-se silenciosa. Depois , com uma determinação repentina, começou a atormentar a farm1ia, gritando que queria estudar latim como Gigliola

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Spagnuolo e eu íamos estudar. Zangou-se sobretudo com Rino , que prometera ajudá-la e não o fizera. Era inútil explicar-lhe que já não havia nada a fazer, pois mostrava-se ainda mais irracional e mais má. No princípio do Verão assaltou-me um sentimento difícil de explicar por palavras . Via-a nervosa e agressiva como sempre fora, e isso alegra­ va-me , reconhecia-a. Mas também sentia, por trás dos seus antigos modos , um desgosto que me incomodava. Ela sofria, e a sua dor não me agradava. Preferia-a quando ela era diferente de mim, muito distante dos meus anseios. E o mal-estar que sentia por descobrir que ela era frágil transformava-se por vias secretas numa necessidade minha de ser superior. Sempre que podia, cautelosamente e de preferência quando Carmela Peluso não estava presente , arranjava maneira de lhe recordar que a minha caderneta escolar era melhor do que a dela. Sempre que podia, cautelosamente , lembrava-lhe que ia para a escola média e ela não . Deixar de ser a segunda, passar-lhe à frente , pela primeira vez pare­ ceu-me um sucesso . Teve de se compenetrar disso e tomou-se ainda mais áspera, mas não para comigo, para a fanu1ia. Muitas vezes , enquanto esperava que ela descesse para o pátio , ouvia os seus berros que vinham das janelas . Lançava insultos no pior dialec­ to de rua, tão pesados que ao ouvi-los me ocorriam pensamentos de ordem e de respeito , não me parecia certo ela tratar os adultos daquela maneira, e até o irmão . É verdade que o pai , o sapateiro Fernando , quan­ do estava com os azeites tomava-se mau . Mas todos os pais se enfure­ ciam. Além disso o dela, se não fosse provocado , era um homem gentil , simpático , muito trabalhador. De cara parecia-se com um actor que se chamava Randolph Scott, mas sem a sua finura. Era mais grosseiro , nada de tons claros , tinha uma barbaça preta que começava logo abaixo dos olhos , e umas mãos largas e curtas sulcadas de porcaria em cada prega e debaixo das unhas . Gostava de brincar. Quando eu ia a casa da Lila ele prendia-me o nariz entre o indicador e o médio e fingia que mo arrancava. Queria fazer-me acreditar que mo tinha roubado e que ele agora se agitava, aprisionado entre os seus dedos , tentando escapulir-se para voltar para a minha cara. Eu achava graça àquilo . Mas se Rino , ou Lila, ou os outros filhos , o faziam zangar, até eu me assustava ao ouvi­ -lo da rua. Uma tarde , não sei o que aconteceu . No tempo quente ficávamos na rua até à hora do jantar. Dessa vez, Lila não se deixava ver, e fui chamá-la por baixo das janelas , que eram no rés-do-chão. Chamei «Ll , Ll, Ll» , e a mi­ nha voz juntava-se à de Fernando , muito alta, à da mulher e à voz insis-

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tente da minha amiga. Ouvi claramente que se passava qualquer coisa que me aterrorizava. Das janelas saía um napolitano grosseiro e o ruído de objectos a partirem-se. Aparentemente não era nada diferente daquilo que acontecia em minha casa quando a minha mãe se enfurecia porque o di­ nheiro não chegava, e o meu pai se zangava porque ela já tinha gastado a parte do ordenado que lhe dera. Na realidade , havia uma diferença subs­ tancial. O meu pai continha-se , mesmo quando estava furioso, tornava-se violento em surdina, impedindo a voz de explodir, embora as veias do pescoço se lhe dilatassem e os olhos lançassem chamas . Fernando, pelo contrário, gritava, partia coisas , e a raiva crescia, não conseguia parar; as tentativas que a mulher fazia para o acalmar enfureciam-no ainda mais , e mesmo que a zanga não fosse com ela acabava por lhe bater. Portanto insistia em chamar Lila, para tirá-la daquela tempestade de gritos , de obscenidades , de ruídos de destruição . Eu gritava «Ll , Ll , Ll» , mas ela - bem a ouvia - não parava de insultar o pai . Tínhamos dez anos , daí a pouco fazíamos onze. Eu estava a ficar mais cheia, Lila continuava baixinha, magra, era leve e delicada. De repente os gritos pararam e daí a instantes a minha amiga voou pela janela, passou por cima da minha cabeça e aterrou no asfalto atrás de mim. Fiquei estarrecida. Fernando apareceu à janela, continuando a gritar ameaças horríveis à filha. Atirara-a como se fosse um objecto . Olhei para ela aterrorizada, enquanto tentava levantar-se , dizendo-me com uma careta quase divertida: «Não me aconteceu nada.» Mas estava a sangrar, tinha partido um braço .

18. Os pais podiam fazer aquilo e mais , às meninas atrevidas . Depois , Fernando tornou-se mais sisudo , mais trabalhador do que o habitual . Durante esse Verão , eu , Carmela e Lila passámos muitas vezes em fren­ te da sua oficinazita, mas enquanto Rino nos acenava sempre alegre­ mente , o sapateiro , enquanto a filha teve o braço engessado , nem sequer olhava para ela. Via-se que estava arrependido . Os seus actos violentos de pai pouca coisa eram, se comparados com a violência dispersa pelo bairro . No bar Solara, com o calor, entre perdas ao jogo e bebedeiras importunas , chegava-se com frequência ao desespero (palavra que em dialecto significava ter perdido toda a esperança, mas , também , estar

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sem um tostão) , e depois às cenas de pancadaria. Silvio Solara, o dono , um homem corpulento com uma barriga imponente , olhos azuis e testa muito alta, tinha um bordão escuro atrás do balcão , com o qual não hesitava em bater em quem não pagasse o consumo , quem tivesse pedi­ do empréstimos e quando se vencesse o prazo não os liquidasse , quem fizesse acordos de qualquer tipo e não os cumprisse , e muitas vezes era ajudado pelos filhos, Marcello e Michele , rapazes da idade do irmão de Lila, mas que batiam com mais força do que o pai . Ali , dava-se pancada e levava-se . Depois os homens voltavam para casa exasperados pelas perdas ao jogo , pelo álcool , pelas dívidas , pelos prazos , pelas pancadas , e à primeira palavra torta batiam na fanu1ia, um chorrilho de dislates que davam origem a outros dislates . A meio daquela longa estação ocorreu um facto que perturbou toda a gente , mas que teve um efeito particular sobre Lila. Dom Achille , o terrível dom Achille , foi assassinado em sua casa ao início da tarde de um dia de Agosto surpreendentemente chuvoso . Encontrava-se na cozinha, acabara de abrir a janela para deixar entrar a frescura da chuva. Levantara-se da cama de propósito , interrompendo a sesta. Vestia um pijama azul-claro muito gasto , calçava apenas meias de cor amarelada, escurecidas nos calcanhares . Assim que abriu a jane­ la, bateu-lhe na cara uma rajada de chuva e, do lado direito do pescoço , a meio caminho entre o maxilar e a clavícula, foi trespassado por uma faca. O sangue esguichou-lhe do pescoço e atingiu uma panela de cobre pendurada na parede . O cobre era tão brilhante que o sangue parecia uma mancha de tinta da qual escorria - assim contava Lila - uma li­ nha negra irregular. O assassino - mas ela inclinava-se mais para uma assassina - entrara sem arrombar a porta, a uma hora em que as crian­ ças e os jovens estavam na rua e os adultos, se não estavam a trabalhar, estavam a repousar. Entrara de certeza com uma chave falsa. Certamen­ te tencionava apunhalá-lo no coração enquanto dormia, mas encontrara­ -o acordado e dera-lhe a facada no pescoço . Dom Achille virou-se , com a lâmina espetada no pescoço , os olhos arregalados e o sangue a sair a rodos e a ensopar-lhe o pijama. Depois caiu de joelhos e em seguida de cara no chão . O assassínio impressionou tanto Lila que quase todos os dias , muito séria, nos obrigava a ouvir a descrição como se tivesse assistido , acres­ centando sempre novos pormenores . Eu e Carmela ficávamos assusta­ das de a ouvir, Carmela nem conseguia dormir de noite . Nos momentos

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mais horríveis , quando a linha negra de sangue escorria pela panela de cobre , os olhos de Lila tornavam-se duas gretas ferozes . Com certeza imaginava que o criminoso era mulher, só porque lhe era mais fácil identificar-se com ela. Nesse tempo íamos muito para casa dos Peluso , para jogar às damas e ao jogo dos três , Lila tinha então essa paixão. A mãe de Carmela mandava-nos entrar para a sala de jantar, cujos móveis haviam sido feitos pelo marido , antes de dom Achille lhe ter tirado as ferramentas de carpinteiro e a oficina. Sentávamo-nos à mesa, entre dois aparadores com espelhos , e jogávamos . Antipatizava cada vez mais com Carmela, mas fingia ser sua amiga, pelo menos tanto como era de Lila, e em cer­ tas ocasiões até lhe fazia crer que gostava mais dela. Por outro lado , simpatizava muito com a senhora Peluso . Trabalhara na Tabaqueira, mas perdera o posto de trabalho meses antes e estava sempre em casa. Mas tanto na boa sorte como na má era uma pessoa alegre , gorda, com um grande peito , faces afogueadas por duas rosetas vermelhas , e embo­ ra o dinheiro escasseasse tinha sempre qualquer coisa boa para nos oferecer. O marido também parecia um bocado mais tranquilo . Agora servia à mesa numa pizzeria e tentava não ir ao bar Solara perder às cartas o pouco que ganhava. Uma manhã estávamos na sala de jantar a jogar às damas , eu e Car­ mela contra Lila. Nós duas sentadas de um lado e ela do outro . Atrás de nós encontravam-se os dois móveis idênticos , com os espelhos . Eram de madeira escura e tinham cornijas com volutas . Via a imagem das três reflectida até ao infinito e não conseguia concentrar-me , não só por causa das imagens que não me agradavam, como devido aos gritos de Alfredo Peluso , que naquele dia estava muito nervoso e implicava com a mulher, Giuseppina. A certa altura bateram à porta e a senhora Peluso foi abrir. Exclama­ ções , gritos . Nós fomos as três espreitar ao corredor e vimos os cara­ binieri , figuras que muito temíamos . Os carabinieri agarraram Alfredo e levaram-no . Ele esbracejou , gritou , chamou os filhos pelos nomes , Pasquale , Carmela, Ciro , Immacolata, agarrava-se aos móveis feitos pelas próprias mãos, às cadeiras , a Giuseppina, jurava que não matara dom Achille , que estava inocente . Carmela chorava desesperada, todos choravam, também comecei a chorar. Lila não , Lila fez aquele olhar que anos antes fizera a Melina, mas com algumas diferenças : agora, embora imóvel , parecia estar em movimento juntamente com Alfredo Peluso , que lançava gritos roucos e assustadores: «Aaaah ! »

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Foi a coisa mais terrível a que assistimos ao longo da nossa infância, impressionou-me muito . Lila preocupou-se com Carmela, consolou-a. Dizia-lhe que se de facto fora o pai , fizera muito bem em matar dom Achille , mas que na sua opinião não fora ele . Estava inocente de certe­ za, e em breve fugiria da prisão . Cochichavam uma com a outra sem parar e, se eu me aproximava, chegavam-se um bocado mais para lá, para evitar que eu ouvisse .

Adolescência História dos sapatos

1.

A 3 1 de Dezembro de 1 959 Lila teve o seu primeiro episódio de des­ marginação . O termo não é meu , foi ela que sempre o usou , forçando o significado corrente da palavra. Dizia que nessas alturas as margens das pessoas e das coisas se dissolviam de repente . Quando , naquela noite , no alto do terraço onde estávamos a festejar a chegada de 1 960 , foi acometida bruscamente por uma sensação desse tipo , assustou-se e guardou o caso para si , ainda incapaz de lhe dar nome . Só anos depois , numa noite de Novembro de 1 980 - tínhamos ambas trinta e cinco anos, éramos casadas , mães de filhos - , me contou em pormenor o que lhe acontecera naquela ocasião , e que ainda lhe acontecia, e pela primei­ ra vez recorreu a esse vocábulo . Estávamos no exterior, no alto de um dos prédios do bairro . Apesar de fazer muito frio , usávamos vestidos leves e decotados para parecer­ mos bonitas . Olhávamos para os homens, que estavam alegres , agressi­ vos , figuras escuras excitadas pela festa, pela comida, pelo espumante . Acendiam as mechas dos fogos de artifício para festejar o novo ano , ritual a que Lila, como depois contarei , dera a sua colaboração , e agora olhava com satisfação as linhas de fogo no céu . Mas de repente disse-me - , apesar do frio começou a cobrir-se de suor. Pareceu-lhe que todos gritavam muito alto e se movimentavam muito depressa. Essa sensação foi acompanhada de náusea e ela teve a impressão de que alguma coisa totalmente material , presente em seu redor e em redor de todos e de tudo desde sempre , mas imperceptível , estava a destruir os contornos das pessoas e das coisas e a revelar-se . O coração batia-lhe descontroladamente. Começou a sentir aversão pe­ los gritos que saíam das gargantas de todos aqueles que circulavam pelo terraço no meio dos fumos , no meio dos rebentamentos , como se aqueles

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sons obedecessem a leis novas e desconhecidas . A náusea cresceu, o dia­ lecto deixou de lhe ser familiar, tomara-se-lhe insuportável o modo como as nossas gargantas húmidas banhavam as palavras no líquido da saliva. Uma sensação de repugnância apoderara-se de todos os corpos em movi­ mento, da sua estrutura óssea, do frenesim com que se agitavam. Como somos mal feitos , pensou ela, como somos insuficientes . Os ombros largos , os braços , as pernas, as orelhas , os narizes , os olhos , pareciam-lhe atributos de seres monstruosos , caídos de qualquer recanto do céu negro. E o asco, sabe-se lá porquê , concentrava-se sobretudo no corpo do seu irmão Rino, a pessoa que afinal lhe era mais familiar, a pessoa que ela mais amava. Parecia-lhe que o via pela primeira vez tal como ele era, uma forma animal atarracada, membruda, a que mais gritava, a mais feroz, a mais voraz , a mais mesquinha. O tumulto do coração dominava-a, sentia-se sufocar. Fumo a mais , mau cheiro a mais , demasiado relampejar de fo­ gos na geada. Lila tentara acalmar-se , dissera a si mesma: tenho de agarrar o caudal que está a atravessar-me , tenho de atirá-lo para fora de mim. Mas nesse instante ouviu , entre os gritos de alegria, uma espécie de última detonação , e passou-lhe qualquer coisa ao lado , como que o sopro de um bater de asa. Alguém estava a disparar, já não foguetes e morteiros , mas tiros de pistola. O seu irmão Rino gritava obscenidades insuportáveis na direcção dos clarões amarelados . Na altura em que me fez essa descrição , Lila disse também que aquela coisa a que chamava desmarginação, embora a tivesse atingido de forma clara só daquela vez, não era totalmente nova para ela. Por exemplo , já tivera muitas vezes a sensação de entrar, durante fracções de segundos , numa pessoa ou numa coisa, ou num número , ou numa sílaba, violando­ -lhe os contornos . E no dia em que o pai a atirara pela janela, tivera a certeza absoluta, enquanto voava em direcção ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados , muito amigáveis , estavam a dissolver a composi­ ção da estrada, transformando-a numa matéria lisa e macia. Mas naquela noite de fim de ano apercebera-se pela primeira vez da existência de en­ tidades desconhecidas , que quebravam o contorno habitual do mundo , deixando ver a sua natureza assustadora. E isso tinha-a transtornado.

2. Quando tiraram o gesso a Lila e reapareceu o seu bracinho muito branco mas perfeitamente funcional , Fernando , o pai , chegou a um

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acordo consigo mesmo e , sem se pronunciar directamente , mas sim pela boca de Rino e da mulher, Nunzia, permitiu-lhe que frequentasse uma escola para aprender não sei bem o quê , estenografia, ou contabi­ lidade , ou economia doméstica, ou essas três disciplinas . Ela foi , contrariada. Nunzia foi chamada pelos professores , porque a filha faltava muitas vezes sem justificação , perturbava as aulas , se a interrogavam recusava-se a responder, se tinha de fazer exercícios fa­ zia-os em cinco minutos e depois incomodava as colegas . A certa altura apanhou uma gripe má, muito pior do que aquela que tivemos quase todos . Mas ela pareceu aceitá-la com uma espécie de resignação , de tal modo que o vírus depressa lhe tirou todas as energias . Passavam-se os dias e não conseguia recuperar. Assim que experimentava sair, mais pálida do que o habitual , voltava-lhe a febre . Um dia vi-a na rua e pare­ ceu-me um fantasma, o fantasma de uma menina que tinha comido ba­ gas venenosas , que eu vira desenhado num livro da professora Oliviero . Depois correu o boato que ela ia morrer em breve , o que me causou uma ansiedade insuportável . Mas afinal recompôs-se , quase contra vontade . Mas foi cada vez menos à escola, com a desculpa de se sentir fraca, e no final do ano reprovou . Também eu não fui bem sucedida no primeiro ano da escola média. No início tive grandes expectativas , e embora não o admitisse claramen­ te , sentia-me contente por ter entrado juntamente com Gigliola Spag­ nuolo , e não com Lila. Em alguma parte secreta do meu ser eu aspirava a uma escola a que ela nunca tivesse acesso , em que eu , na sua ausência, seria a melhor aluna, e da qual lhe falaria quando isso se concretizasse , gabando-me . Mas comecei logo a claudicar, foram muitos os que mos­ traram ser melhores do que eu . Acabei por me encontrar numa espécie de lamaçal , tal como Gigliola, éramos uns bichinhos assustados com a nossa própria mediocridade , e lutámos o ano inteiro para não ficarmos entre os piores . Custou-me muito . Começou a despontar em surdina a ideia de que , sem Lila, nunca mais saborearia o prazer de pertencer ao grupo restrito dos melhores . De vez em quando encontrava à entrada Alfonso , o filho mais novo de dom Achille , mas fazíamos de conta que não nos conhecíamos . Eu não sabia o que lhe dizer, achava que Alfredo Peluso fizera bem em ma­ tar-lhe o pai e não me ocorriam palavras de conforto . Nem a sua condi­ ção de órfão me comovia, era como se ele carregasse parte da culpa pelo terror que dom Achille me causara durante anos . Usava uma faixa preta cosida no casaco, nunca se ria , sempre metido consigo . Estava

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numa turma diferente da minha e constava que era muito bom aluno . No fim do ano soube-se que passara com média de oito , o que me deprimiu muito . Gigliola tinha de repetir Latim e Matemática, eu safei-me com seis em tudo . Quando saíram as notas , a professora mandou chamar a minha mãe e disse-lhe, na minha presença, que só me salvara em Latim graças à sua generosidade , mas que se não tivesse aulas particulares no ano seguinte não conseguiria passar. Sofri uma dupla humilhação: envergonhei-me porque não fora capaz de alcançar o nível que tinha na primária, e envergonhei-me também pela diferença entre a figura harmoniosa, de­ centemente vestida da professora, com o seu italiano que se assemelha­ va um pouco ao da Ilíada , e a figura torta da minha mãe , os seus sapatos velhos , o cabelo sem brilho , o dialecto vergado a um italiano cheio de erros de gramática. Ela também deve ter sentido o peso daquela humilhação . Voltou para casa carrancuda, disse ao meu pai que os professores não estavam satis­ feitos comigo , que ela precisava de ajuda em casa e eu devia deixar de estudar. Discutiram muito , litigaram e por fim o meu pai decidiu que , uma vez que eu afinal fora aprovada, ao passo que Gigliola reprovara em duas , merecia continuar. Passei um Verão entorpecido , no pátio , geralmente em companhia de Gigliola, que me falava muito do jovem estudante universitário que ia a casa dar-lhe explicações e que , na opinião dela, a amava. Eu escutava-a mas aborrecia-me . De vez em quando via Lila a passear com Carmela Peluso , que também frequentara uma escola não sei de quê e também reprovara. Sentia que Lila já não queria ser minha amiga, e esse pensa­ mento dava-me um cansaço como se tivesse sono . Às vezes , esperando não ser apanhada pela minha mãe , estendia-me em cima da cama e passava pelo sono . Uma tarde adormeci deveras e ao acordar senti-me molhada. Fui à retrete ver o que tinha e descobri que as cuecas estavam sujas de sangue . Aterrorizada não sei bem por que razão , talvez por recear uma repri­ menda da minha mãe por me ter magoado entre as pernas , lavei-as bem , espremi-as e voltei a vesti-las molhadas . Depois saí para o calor do pátio . O coração saltava-me de medo . Encontrei Lila e Carmela, fui passear com elas até à igreja. Senti que estava outra vez a ficar molhada, mas tentei sossegar, pensando que seria a humidade das cuecas . Quando já não suportava o medo , sussur­ rei a Lila:

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«Tenho uma coisa para te dizer.» «Ü quê?» «Quero dizer só a ti .» Peguei-lhe num braço , tentando afastá-la de Carmela, mas ela seguiu­ -nos . A preocupação era tal que acabei por me confessar às duas , embo­ ra dirigindo-me só a Lila. «Ü que poderá ser?» , perguntei . Carmela sabia tudo. Já havia um ano que tinha o sangue , todos os meses . «É normal» , disse . «As mulheres têm isso por natureza. Sangra-se durante uns dias , tens dores na barriga e nas costas , mas depois passa.» «De certeza?» «De certeza.» O silêncio de Lila impeliu-me para Carmela. A naturalidade com que me dissera o pouco que sabia tranquilizou-me e fez-me simpatizar com ela. Passei a tarde toda a falar com ela, até à hora do jantar. Fiquei a saber que daquela ferida não se morria. Pelo contrário , «significa que já és adulta e já podes ter filhos, se um homem te enfiar o coiso na barriga.» Lila ficou a ouvir-nos , sem nada ou quase nada dizer. Perguntámos­ -lhe se já tinha o sangue , como nós , e vimo-la hesitar, depois , com má vontade respondeu que não . De repente pareceu-me pequena, mais pe­ quena do que sempre a achara. Era seis ou sete centímetros mais baixa, só pele e osso , muito pálida apesar dos dias ao ar livre . E reprovara. E nem sabia tão-pouco o que era o sangue . E ainda nenhum rapaz se lhe declarara. «Também te há-de aparecer» , dissemos-lhe ambas num falso tom de consolação . «Estou-me nas tintas» , disse , «eu não o tenho porque não quero ter, dá-me nojo. E quem o tem também me dá nojo .» Fez menção de se ir embora, mas depois parou e perguntou-me: «Como é o latim?» «Bonito .» «És boa?» «Muito .» Pensou um bocado e murmurou: «Eu fiz de propósito para reprovar. Nunca mais quero ir para escola nenhuma.» «E o que vais fazer?» «Aquilo que me apetecer.»

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Deixou-nos ali no meio do pátio e foi-se embora. Não se deixou ver o resto do Verão . Tomei-me muito amiga de Car­ mela Peluso , que , embora oscilasse desagradavelmente entre risadas a mais e lamúrias a mais , sofrera a influência de Lila de maneira tão forte que às vezes era uma espécie de sucedâneo . Ao falar imitava-lhe os tons , usava certas expressões recorrentes , gesticulava de modo seme­ lhante e ao andar tentava reproduzir os movimentos dela, embora fisi­ camente fosse mais parecida comigo: bonita e rechonchuda, vendia saúde como eu . Aquela espécie de apropriação indevida desagradava­ -me por um lado e por outro atraía-me . Oscilava entre a irritação por ver uma recriação que me parecia uma caricatura, e o fascínio , porque , embora adulterados , os modos de Lila encantavam-me na mesma. Foi com esses modos que Carmela acabou por me conquistar. Contou-me que a nova escola fora muito desagradável: todos implicavam com ela e os professores não a podiam ver. Falou-me de quando ia a Poggiorea­ le com a mãe e os irmãos visitar o pai , e dos prantos que faziam. Contou-me que o pai estava inocente , que quem matara dom Achille fora uma criatura escura, um pouco masculina mas sobretudo feminina, que vivia com os ratos e saía das sarjetas do esgoto mesmo de dia, fazia as coisas terríveis que tinha a fazer e depois escapulia-se para debaixo do chão . Contou-me inesperadamente , com um sorriso fátuo , que estava apaixonada por Alfonso Carracci . De um momento para o outro passou do sorriso às lágrimas . Era um amor que a atormentava e a consumia, a filha do assassino estava apaixonada pelo filho da vítima. Bastava vê-lo atravessar o pátio ou caminhar pela rua para se sentir desmaiar. Foi uma confidência que me impressionou muito e que consolidou a nossa amizade . Carmela jurou que nunca falara disso com ninguém , nem sequer com Lila. S e decidira abrir-se comigo era porque j á não conseguia guardar tudo lá dentro . Gostei do seu tom dramático . Anali­ sámos todas as possíveis consequências daquela paixão até as escolas reabrirem e eu deixar de ter tempo para escutá-la. Mas que história ! Talvez nem Lila fosse capaz de construir uma his­ tória assim .

3. Começou um período de indisposição . Engordei , sob a pele do peito despontaram-me dois rebentos duros , floriram-me pêlos nas axilas e na

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púbis, tomei-me triste e nervosa. Na escola esforcei-me mais do que nos anos precedentes , os exercícios de matemática quase nunca davam o resultado previsto no caderno de exercícios , as frases de latim pareciam­ -me não ter pés nem cabeça. Assim que podia fechava-me na retrete e via-me ao espelho , nua. Já não sabia quem era. Comecei a desconfiar que iria continuar a mudar, até que de mim ressurgisse minha mãe , co­ xa, com um olho torto , e ninguém mais gostaria de mim. Chorava mui­ to, repentinamente . Entretanto o peito , a princípio tão duro , tomou-se maior e mais macio . Sentia-me à mercê de forças ocultas que actuavam no interior do meu corpo , estava sempre ansiosa. Uma manhã, à saída da escola, Gino , o filho do farmacêutico , seguiu­ -me na rua e disse-me que , na opinião dos seus companheiros , os meus seios não eram verdadeiros , que eu lhes punha algodão . Falava e ria-se . Disse ainda que ele , pelo contrário , achava que eram verdadeiros , que tinha apostado vinte liras . Por fim disse que , caso ganhasse a aposta, dez liras ficavam para ele e as outras dez eram para mim, mas tinha de lhe provar que não usava algodão . Aquele pedido assustou-me . Não sabendo como proceder, recorri conscientemente ao tom atrevido de Lila: «Dá-me as dez liras .» «Porquê , sou eu que tenho razão?» «Sim.» Pôs-se a andar e eu prossegui , decepcionada. Mas pouco depois voltou , na companhia de um rapaz da sua turma, um magrinho de cujo nome não me recordo , com uma penugem por cima do lábio. Gino disse: «Ele tem de estar presente, senão os outros não acreditam que ganhei .» Recorri novamente ao tom de Lila: «Primeiro o dinheiro .» «E se tiveres algodão?» «Não tenho .» Deu-me dez liras e subimos os três em silêncio até ao último andar de um prédio que ficava a poucos metros do jardim. Ali , ao pé da porta de ferro que dava para o terraço , onde eu era perfeitamente delineada pelos delicados segmentos de luz , levantei a blusa e mostrei os seios . Ficaram os dois parados a olhar, como se não acreditassem no que os seus olhos viam. Depois viraram-se e fugiram pela escada abaixo . Dei um suspiro de alívio e fui ao bar Solara comprar um gelado . Aquele episódio ficou-me gravado na memória. Senti pela primeira vez a força magnética que o meu corpo exercia sobre os homens , mas

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sobretudo dei-me conta de que Lila actuava, não só sobre Carmela mas também sobre mim, como um fantasma exigente . Se eu numa situação daquelas tivesse de tomar uma decisão com as emoções na mais pura desordem, o que teria feito? Tinha fugido . E se estivesse na companhia de Lila? Puxava-lhe por um braço e sussurrava-lhe «vamos embora» , e depois , como sempre , ficava, porque ela, como sempre , decidiria ficar. Porém, na sua ausência, após uma breve hesitação pusera-me no lugar dela. Ou melhor, abrira lugar para ela em mim. Quando pensava de novo naquele instante em que Gino me fez o pedido , sentia com preci­ são que me passara a mim mesma para trás , que imitara o olhar e o tom e os gestos da Cerullo em situações de conflito descarado , e ficava muito contente . Mas às vezes interrogava-me , um pouco ansiosa: faço como Carmela? Parecia-me que não , parecia-me que era diferente , mas não era capaz de explicar em que sentido , e o meu contentamento des­ vanecia-se . Quando passei com o gelado em frente da oficina de Fer­ nando e vi Lila absorta a arrumar sapatos sobre uma comprida pratelei­ ra, fui tentada a chamá-la e a contar-lhe tudo , para ver o que ela pensava. Mas ela não me viu e eu segui caminho .

4. Tinha sempre que fazer. Naquele ano Rino obrigou-a a matricular-se de novo na escola, mas mais uma vez ela pouco compareceu e nova­ mente a reprovaram. A mãe pedia-lhe que a ajudasse em casa, o pai pedia-lhe para estar na oficina, e ela, inesperadamente , em vez de opor resistência, pareceu até contente de trabalhar para ambos . As raras vezes em que nos encontrámos - ao domingo depois da missa ou a passear entre os jardins e a rua larga - , não mostrou qualquer curiosidade pela minha escola, começava a falar ininterruptamente e com admiração do trabalho que o pai e o irmão faziam. Soube que o pai quando era rapaz quis emancipar-se , fugiu da oficina do avô , que também era sapateiro , e foi trabalhar para uma fábrica de calçado em Casaria, onde fizera sapatos para toda a gente , até para os que iam para a guerra. Descobriu que Fernando sabia fazer um sapato à mão do princípio ao fim, mas também conhecia bem as máquinas , a cortadora, a pespontadora, a esmeriladora, e era capaz de fazer uso de todas . Falou-me em couro , em gáspeas , em peleiros e em pelarias , em tacão inteiro e meio tacão , na preparação do fio , em meias-solas , em

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como se aplicava uma sola e se coloria e se dava brilho . Usou todos aqueles termos do ofício como se fossem mágicos e o pai os tivesse aprendido num mundo encantado - Casoria, a fábrica - , do qual re­ gressara como um explorador plenamente satisfeito , tão satisfeito que agora preferia a pequena oficina da fanu1ia, o balcãozito sossegado , o martelo , o pé de ferro , o cheiro bom da cola misturado com o dos sapa­ tos velhos. E puxou-me para dentro daquele vocabulário com um entu­ siasmo tão enérgico que o pai e Rino , graças à habilidade que tinham de encerrar os pés das pessoas em sapatos sólidos e cómodos , pareceram­ -me ser as melhores pessoas do bairro . Sobretudo , voltava sempre para casa com a impressão de que , por não passar os meus dias na oficina de um sapateiro e tendo por pai um banalíssimo porteiro , estava excluída de um privilégio raro . Nas aulas comecei a sentir-me inutilmente presente . Durante meses e meses pareceu-me que tinham fugido dos manuais escolares todas as promessas , toda a energia. À saída da escola, atordoada pela infelicidade , passava pela oficina de Fernando só para ver Lila no seu posto de traba­ lho , sentada a uma mesinha, ao fundo , com o seu peito magro sem som­ bra de seios , o pescoço delgado , o rosto emaciado . Não sei o que ela fazia exactamente , mas lá estava, activa, por trás da porta de vidro , en­ quadrada pela cabeça inclinada do pai e a cabeça inclinada do irmão , sem livros , sem aulas , sem trabalhos de casa. Por vezes parava para ver na montra as caixas de cromatina, os sapatos velhos com solas novas , e os novos metidos numa forma que dilatava o cabedal e os alargava, tomando-os mais cómodos , como se fosse uma cliente interessada na mercadoria. Só me ia embora, e de má vontade , quando ela me via e me fazia adeus , e eu respondia à saudação , e ela voltava a concentrar-se no trabalho . Mas muitas vezes era Rino que dava por mim primeiro , e fazia­ -me caretas cómicas para eu me rir. Envergonhada, fugia sem esperar pelo olhar de Lila. Um domingo dei por mim a falar apaixonadamente de sapatos com Carmela Peluso . Ela comprava a revista Sogno e devorava fotonovelas . A princípio parecia-me tempo perdido , depois comecei a dar uma olhadela também e passámos a lê-las juntas , no jardim , e co­ mentávamos as histórias e aquilo que cada personagem dizia, escrito em letras brancas sobre fundo negro . Carmela, mais do que eu , passava sem interrupção dos comentários às histórias de amor ficcionais aos comen­ tários à história do seu verdadeiro amor, por Alfonso . Eu , para não lhe ficar atrás , uma vez falei-lhe no filho do farmacêutico , Gino , disse-lhe que me amava. Aos olhos dela, o filho do farmacêutico era uma espécie

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de príncipe inacessível , futuro herdeiro da farmácia, um senhor que nun­ ca se casaria com a filha de um porteiro , e estive quase a contar-lhe da­ quela vez que me pedira para lhe mostrar o peito , e que eu mostrara e ganhara dez liras . Mas tínhamos a revista Sogno bem aberta sobre os joelhos e os meus olhos caíram sobre os lindos sapatos de salto de uma das actrizes . Pareceu-me um assunto muito oportuno , mais do que a his­ tória das maminhas , e não pude conter-me , comecei a gabá-los e a gabar quem os tinha feito tão bonitos , e a fantasiar que se usássemos sapatos assim, nem Gino nem Alfonso nos resistiriam. Mas quanto mais falava mais me apercebia, com embaraço , que tentava fazer minha a nova pai­ xão de Lila. Carmela ouviu-me distraída, e depois disse que tinha de ir. Sapatos e sapateiros pouco ou nada lhe interessavam. Ao contrário de mim, ela, embora imitasse os modos de Lila, mantinha-se fiel às únicas coisas que a cativavam: as fotonovelas e o amor.

5. Todo aquele período teve este ritmo . Depressa tive de admitir que aquilo que eu fazia sozinha não me dava emoção , só aquilo em que Lila tocava é que era importante . Mas se ela se afastava, se a sua voz se distanciava das coisas , as coisas ficavam sujas , cheias de pó . A escola média, o Latim, os professores , os livros , a língua dos livros , pareciam­ -me decisivamente menos sugestivos do que o acabamento de um sapa­ to , e isso deprimiu-me . Mas um domingo tudo mudou outra vez . Tínhamos ido , Carmela, Lila e eu , à catequese , andávamos a preparar-nos para a primeira comu­ nhão . À saída Lila disse que tinha que fazer e afastou-se . Mas vi que não se dirigia para casa. Para minha grande surpresa, entrou no edifício da escola primária. Segui com Carmela, mas depois aborreci-me, despedi-me dela, con­ tornei o edifício e voltei para trás . As escolas ao domingo estavam fe­ chadas , como é que Lila entrara? Após muitas hesitações lá me aventurei a passar pela porta, até ao átrio . Nunca mais entrara na minha antiga escola e senti uma grande emoção; reconheci o cheiro , que trouxe con­ sigo uma sensação de à-vontade , um sentimento de mim que eu já não tinha. Entrei pela única porta aberta no rés-do-chão . Era uma sala ampla, iluminada com lâmpadas de néon , e tinha as paredes cobertas de estantes repletas de velhos livros . Contei uma dezena de adultos e muitas crian-

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ças . Pegavam em livros , folheavam-nos, punham-nos no lugar, até esco­ lherem um. Depois punham-se em fila em frente de uma secretária a que estava sentado um velho inimigo da professora Oliviero , o professor Ferraro , magro , com o cabelo grisalho cortado à escovinha. Ferraro exa­ minava o texto escolhido , escrevia qualquer coisa no livro de registo e as pessoas saíam com um ou mais livros. Olhei em volta: Lila não estava, talvez já tivesse saído . O que andava ela a fazer, já não frequentava a escola, interessava-se por sapatos e chinelada, no entanto , sem nada me dizer, ia ali buscar livros? Gostava daquele espaço? Porque não me convidava para ir com ela? Porque me deixara com Carmela? Porque falava comigo sobre a maneira de esme­ rilar as solas e não daquilo que lia? Irritei-me , fui-me embora. Durante uns tempos as horas na escola pareceram-me mais insignifi­ cantes do que nunca. Depois fui assoberbada pela chusma de trabalhos e de dúvidas de final do ano , receava ter más notas , estudava muito , embora sem interesse . Além disso , outras preocupações me afligiam. A minha mãe disse-me que eu era indecente com todo aquele peito que me crescera e levou-me a comprar um soutien . Andava mais brusca do que o habitual . Parecia envergonhada de eu ter seios e de me ter vindo o sangue . Os toscos esclarecimentos que me dava eram breves e insufi­ cientes , não passavam de resmungos . Não tinha tempo de lhe fazer perguntas antes que ela me virasse as costas e se afastasse no seu passo de esguelha. O soutien tornou-me o peito ainda mais visível . Nos últimos meses de escola fui perseguida pelos rapazes e depressa percebi porquê . Gino e o colega tinham espalhado o boato que eu não tinha problemas em mostrar o físico , e de vez em quando vinha um pedir-me que repetisse o espectáculo . Pirava-me , comprimia o peito cruzando os braços sobre ele , sentia-me misteriosamente culpada e sozinha com a minha culpa. Os rapazes insistiam, até na rua, até no pátio . Riam-se, gozavam comi­ go . Experimentei afastá-los uma vez ou duas imitando os modos de Lila, mas não me saíram bem, e então não me aguentei e comecei a chorar. Com medo de me importunarem, metia-me em casa. Estudava muito , já só saía para ir à escola e contrariada. Uma manhã de Maio , Gino seguiu-me e perguntou-me , sem fanfar­ ronice , aliás , perturbado , se queria ser namorada dele . Disse-lhe que não , por ressentimento , por vingança, por atrapalhação , mas orgulhosa por o filho do farmacêutico me querer. No dia seguinte perguntou-me

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outra vez e nunca mais desistiu de perguntar, até Junho , quando fizemos a primeira comunhão , todas vestidas de branco como as noivas . Assim vestidas , demorámo-nos no adro da igreja já a pecar, falando de amor. Carmela não queria acreditar que eu rejeitasse o filho do far­ macêutico , e contou a Lila. Esta, para minha admiração , em vez de se afastar com o ar de quem se está nas tintas , interessou-se pelo caso . Falámos as três no assunto . «Porque lhe disseste que não?» , perguntou-me Lila em dialecto . Respondi inesperadamente em italiano , para a impressionar, para ela perceber que , embora eu passasse o tempo a falar de namorados , não devia ser tratada como Carmela: «Porque não estou certa dos meus sentimentos.» Era uma frase que eu aprendera nas leituras da revista Sogno , e Lila pareceu-me impressionada. Como se fosse um daqueles nossos desafios da primária, demos início a uma conversa na linguagem das histórias aos quadradinhos e dos livros , o que reduziu Carmela a uma ouvinte pura e simples . Aqueles momentos iluminaram-me o coração e a cabe­ ça: eu e ela e aquelas palavras bem arquitectadas . Na escola média não acontecia nada do género , nem com os colegas , nem com os professo­ res . Foi maravilhoso . De frase em frase , Lila convenceu-me de que no amor só se obtém alguma segurança submetendo o pretendente a duras provas . Depois , voltando de súbito ao dialecto , aconselhou-me a namo­ rar com Gino , mas na condição de ele aceitar comprar gelados para mim, para ela e para Carmela durante todo o Verão . «Se não aceitar, quer dizer que o amor não é verdadeiro .» Fiz como ela me disse e Gino desapareceu . Não era verdadeiro amor, portanto , mas não sofri com isso . O desafio com Lila dera-me um prazer tão intenso que planeei dedicar-me totalmente a ela, sobretudo no Ve­ rão , quando eu tinha mais tempo livre . Entretanto queria que aquela conversa se tornasse o modelo de todos os nossos próximos encontros . Sentira-me outra vez inteligente , como se tivesse levado uma pancada na cabeça que me trouxera à memória imagens e palavras . Porém , aquele episódio não teve o seguimento que eu esperava. Em vez de reatar a minha relação com Lila e torná-la exclusiva, atraiu para junto dela muitas outras meninas . A conversa e o conselho que ela me dera, e o seu efeito , haviam impressionado tanto Carmela Peluso que ela acabou por contar a toda a gente . O resultado foi que a filha do sapatei­ ro , que não tinha seios nem menstruação e nem sequer um pretendente , se tornou em poucos dias a mais acreditada conselheira sobre assuntos

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do coração . E ela, surpreendendo-me uma vez mais, aceitou esse papel . Se não estava ocupada em casa ou na oficina, via-a a cochichar com esta e com aquela . Passava-lhe ao lado , cumprimentava-a, mas estava tão compenetrada que nem me ouvia. Captava sempre frases que achava lindas e sofria com isso .

6. Foram dias desconsoladores , que culminaram com uma humilhação que sofri e que já devia ter previsto , e que em vez disso fizera de conta que não era importante: Alfonso Carracci passou com média de oito , Gigliola Spagnuolo passou com média de sete , e eu tive seis em tudo e quatro em Latim. Tinha de repetir em Setembro essa única disciplina. Dessa vez foi mesmo o meu pai que disse que era inútil continuar. Os manuais escolares tinham custado muito dinheiro . O dicionário de Latim, o Campanini e Carbone, apesar de comprado usado fora uma grande des­ pesa. Não havia dinheiro para me mandarem ter explicações durante o Verão . Mas sobretudo , tomara-se evidente que eu não era boa aluna: o filho mais novo de dom Achille passara a tudo e eu não, a filha do paste­ leiro Spagnuolo passara a tudo e eu não. Tinha de me conformar. Chorava noite e dia, tomei-me feia de propósito para me castigar. Era a primogénita, depois de mim havia dois rapazes e outra rapariga, a pequena Elisa. Peppe e Gianni , os dois rapazes , vinham consolar-me por turnos, ora trazendo-me fruta, ora convidando-me para brincar com eles . Mas eu sentia-me sozinha na mesma, com um triste destino , e não conseguia tranquilizar-me . Depois , uma tarde , senti minha mãe aproxi­ mar-se por trás de mim. Disse em dialecto , no tom áspero habitual: «Não te podemos pagar as lições , mas podes experimentar estudar sozinha e ver se passas no exame .» Olhei-a, duvidosa. Era sempre a mesma: cabelo baço , olho dançarino , nariz grande , corpo pesado . Acres­ centou: «Não está escrito em parte nenhuma que não podes fazê-lo .» Foi tudo o que disse, pelo menos é o que recordo. No dia seguinte co­ mecei a estudar, impondo a mim própria não ir ao pátio nem aos jardins . Mas uma manhã ouvi que me chamavam da rua. Era Lila, que depois de terminarmos a primária perdera aquele hábito . «Lenu» , chamava ela. Debrucei-me na janela. «Tenho uma coisa para te dizer.»

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«Ü que é?» «Vem cá abaixo .» Fui de má vontade , aborrecia-me confessar-lhe que tinha de repetir uma disciplina. Demos uns passos pelo pátio , ao sol . Perguntei-lhe com indolência que novidades havia a respeito de namoros . Recordo-me de ter perguntado explicitamente se havia desenvolvimentos entre Carmela e Alfonso . «Que desenvolvimentos?» «Ela gosta dele .» Lila estreitou os olhos . Quando fazia aquilo , séria, sem um sorriso , como se reduzir os olhos a uma greta lhe permitisse ver de forma mais concentrada, fazia-me lembrar as aves de rapina que vira em filmes no cinema paroquial . Mas daquela vez pareceu-me que havia descoberto qualquer coisa que a irritava e assustava ao mesmo tempo . «Não te disse nada a respeito do pai?» , perguntou-me . «Que está inocente .» «E quem seria o assassino?» «Um ser, metade masculino e metade feminino , que está escondido no esgoto e sai pelas sarjetas como os ratos.» «Então é verdade» , disse ela, mostrando-se desgostosa de repente , e acrescentando que Carmela tomava como certo tudo o que ela lhe dizia, e que no pátio eram todas assim. «Não quero falar mais , não quero falar com ninguém» , balbuciou amuada, e percebi que não o dizia com des­ prezo , que não exprimia orgulho nem altivez por exercer influência sobre todas nós , de tal forma que a princípio não entendi . Eu , no lugar dela, sentiria muita soberba, mas nela não havia soberba nenhuma, só uma espécie de impaciência associada ao medo da responsabilidade . «É bonito» , murmurei , «falar com os outros.» «Sim, mas só se quando falas há alguém que te responde .» Senti no peito uma lufada de alegria. Que pedido estava contido na­ quela bela frase? Estava a dizer-me que queria falar só comigo porque eu não tomava como certo tudo aquilo que lhe saía da boca e lhe res­ pondia? Estava a dizer-me que só eu era capaz de seguir aquilo que lhe passava pela cabeça? Sim. E estava a dizer-mo num tom que não lhe conhecia, fiável , em­ bora brusco como era costume . Disse a Carmela, contou-me ela, que nos romances e nos filmes a filha do assassino podia apaixonar-se pelo filho da vítima. Era uma possibilidade , pois para se tomar um facto verdadeiro seria preciso que nascesse um amor verdadeiro . Mas Carme-

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la não compreendera, e logo no dia seguinte fora contar a toda a gente que estava apaixonada por Alfonso; uma mentira, para se exibir junto das outras , mas que poderia ter sabe-se lá que consequências . Falámos sobre isso . Tínhamos doze anos , mas caminhámos muito tempo pelas ruas escaldantes do bairro , no meio do pó e das moscas que os velhos camiões levantavam ao passar, como duas velhotas a fazer o ponto das suas vidas cheias de desilusões , estreitamente chegadas uma à outra. Ninguém se compreendia, só nós duas - pensava eu - nos compreen­ díamos . Nós duas , e apenas nós , sabíamos que o peso que oprimia o bairro desde sempre , isto é , desde que nos lembrávamos , cederia pelo menos um pouco se não tivesse sido Peluso , o ex-carpinteiro , que mer­ gulhara a faca no pescoço de dom Achille , se quem o fizera tivesse sido o habitante do esgoto , e se a filha do assassino casasse com o filho da vítima. Havia qualquer coisa de insuportável nas coisas , nas pessoas , nos prédios , nas ruas , que só reinventando tudo , como num jogo , se tornava aceitável . O essencial , porém, era saber jogar, e eu e ela, eu e ela apenas , sabíamos fazê-lo . A certa altura perguntou-me , aparentemente sem nexo , mas como se todas aquelas conversas não pudessem deixar de chegar àquela pergunta: «Ainda somos amigas?» «Sim.» «Então fazes-me um favor?» Por ela faria qualquer coisa, naquela manhã de reaproximação: fugir de casa, abandonar o bairro , dormir em estábulos , alimentar-me de raí­ zes , descer aos esgotos através das sarjetas , nunca mais voltar para casa, mesmo se fizesse frio, mesmo se chovesse . Mas o que ela me pediu pa­ receu-me não ser nada, e num primeiro instante decepcionou-me . Queria simplesmente que nos encontrássemos uma vez por dia, nos jardins , mesmo que fosse só durante uma hora, antes de jantar, e que eu levasse o livro de Latim. «Não te darei chatices» , disse . Já sabia que eu tinha de repetir a cadeira e queria estudar comigo .

7. Naqueles anos da escola média muitas coisas mudaram diante dos nossos olbos , mas no dia a dia, por isso não nos pareceram verdadeiras mudanças .

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O bar Solara foi ampliado , tomou-se uma pastelaria bem abastecida - cujo experiente pasteleiro era o pai de Gigliola Spagnuolo - , e ao domingo enchia-se de homens novos e velhos , que iam comprar bolos para as farm1 ias . Os dois filhos de Silvio Solara, Marcello , que andava pelos vinte anos , e Michele , pouco mais novo , compraram um 1100 branco e azul e ao domingo pavoneavam-se pelas ruas do bairro . A antiga carpintaria de Peluso, que uma vez na posse de dom Achille se transformara numa charcutaria, encheu-se de coisas boas que ocupa­ ram o seu interior e também um pouco do passeio . Quando por lá se passava sentia-se um aroma a especiarias , a azeitonas , a enchidos , a pão fresco , a torresmos e a banha, que abria o apetite . A morte de dom Achille afastara pouco a pouco a sua sombra ameaçadora daquele lugar e de toda a família. A viúva, a dona Maria, adoptara modos muito cor­ diais e era ela que geria agora a loja, juntamente com Pinuccia, a filha de quinze anos , e Stefano , que já não era o rapazinho furioso que tenta­ ra puxar a língua a Lila. Tomara-se um rapaz ponderado , de olhar sedu­ tor e sorriso doce . A clientela aumentara muito . Até a minha mãe me mandava lá fazer compras , e o meu pai não se opunha, também porque , quando não havia dinheiro , Stefano apontava tudo num livrinho e pagá­ vamos no fim do mês . Assunta, que vendia fruta e hortaliças pelas ruas com Nicola, o mari­ do , tivera de se reformar devido a fortes dores nas costas , e passados alguns meses uma pneumonia quase lhe matara o cônjuge . Mas esses dois infortúnios revelaram-se um bem. Agora, quem corria as ruas do bairro todas as manhãs com a carroça puxada pelo cavalo , de Verão e de Inverno , debaixo de chuva e debaixo de sol , era o filho mais velho , Enzo , que quase nada tinha do garoto que nos atirava pedras; tomara-se um rapaz encorpado , de aspecto forte e saudável , cabelos loiros desgre­ nhados , olhos azuis , e uma voz potente com que gabava a mercadoria. Tinha excelentes produtos e transmitia, só com os gestos , um carácter honesto e tranquilizador ao servir os clientes . Manejava a balança com grande habilidade . Gostava de ver a velocidade com que ele fazia correr o peso ao longo do braço da balança até encontrar o equilíbrio certo , e depois , veloz , o ruído de ferro a correr contra ferro; embalava as batatas ou a fruta no cartucho de papel , e corria a metê-las no saco da senhora Spagnuolo ou no de Melina, ou da minha mãe. Despontavam iniciativas em todo o bairro . Na retrosaria, onde Car­ mela Peluso era caixeira havia pouco tempo , começara de um dia para o outro a trabalhar uma jovem costureira e a loja fora ampliada, preten-

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dendo tomar-se uma ambiciosa alfaiataria de roupas de senhora. A ofi­ cina onde trabalhava o filho de Melina, Antonio , por iniciativa do filho do velho proprietário , Gentile Corresio , tentava transformar-se numa pequena fabriqueta de motociclos . Enfim, tudo se agitava, tudo se ar­ queava, como se pretendesse alterar os sinais exteriores , como se não quisesse ser reconhecido pelos ódios acumulados , pelas tensões , pela fealdade , preferindo mostrar uma cara nova. Enquanto eu e Lila estudá­ vamos latim nos jardins , também o puro e simples espaço que nos ro­ deava, a fonte , o silvado , uma cova ao lado da estrada, mudou . Sentía­ mos um cheiro permanente a alcatrão , a máquina fumegante crepitava, fazendo o rolo compressor avançar lentamente sobre a camada prepara­ da; trabalhadores em tronco nu ou em camisola interior asfaltavam as estradas e a rua larga. As cores também se modificaram. O irmão mais velho de Carmela, Pasquale , foi contratado para ir cortar as árvores junto à linha férrea. E cortou muitas , ouvimos o ruído da destruição ao longo de vários dias : as árvores estremeciam, emanavam um cheiro a madeira fresca e a verdura, fendiam o ar, tombavam no chão depois de um longo resmalhar que parecia um suspiro , enquanto ele e os outros serravam, rachavam, extirpavam raízes que exalavam um odor a subter­ râneo . A mancha verde desapareceu e no seu lugar surgiu uma clareira amarelada. Pasquale arranjara aquele serviço por um acaso da sorte . Algum tempo antes um amigo dissera-lhe que tinha vindo gente ao bar Solara à procura de rapazes , para irem cortar durante a noite as árvores de uma praça do centro de Nápoles . Ele - embora não gostasse de Silvio Solara nem dos filhos, pois fora naquele bar que o seu pai se desgraçara - , como tinha de sustentar a fami1 ia, foi . Voltara, exausto , ao romper do dia, com as narinas cheias do odor a madeira viva, a folhas massacradas e a mar. Depois , uma coisa leva a outra, voltara a ser cha­ mado para trabalhos daquele tipo . E agora estava no estaleiro de obras perto da linha férrea, e por vezes víamo-lo sobre os andaimes dos novos edifícios , onde se erguiam pilares piso após piso , ou com um chapéu feito de jornal , debaixo de sol , a comer pão com salsichas e grelos du­ rante o intervalo do almoço . Lila irritava-se se eu me punha a olhar para Pasquale e me distraía. Depressa percebi , para meu espanto , que ela já sabia muito latim. As declinações , por exemplo , sabia-as todas , e os verbos também. Perguntei­ -lhe com cautela como era possível , e ela, com aquele jeito maldoso de rapariga que não quer perder tempo , admitiu que logo que eu entrei para o primeiro ano da escola média requisitara uma gramática na bi-

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blioteca que emprestava livros , a que era dirigida pelo professor Ferra­ ro , e estudara-a por curiosidade . Para ela, a biblioteca era um grande recurso . Palavra puxa palavra, mostrou-me com orgulho todos os car­ tões que possuía , que eram quatro: um dela, um em nome de Rino , outro em nome do pai e outro em nome da mãe . Com cada um deles levava um livro emprestado , de maneira que tinha sempre quatro ao mesmo tempo . Devorava-os e no domingo seguinte ia devolvê-los e levantava outros quatro . Nunca lhe perguntei que livros já lera e que livros andava a ler, não houve tempo , tínhamos de estudar. Fazia-me perguntas e enfurecia-se quando eu não sabia. Uma vez deu-me uma bofetada num braço , com força, com aquelas mãos compridas e magras , e não me pediu desculpa, aliás , disse que se eu voltasse a errar me batia outra vez e com mais força. Estava encantada com o dicionário de latim, tão grosso , com tantas páginas , pesado , nunca vira nenhum. Procurava palavras constan­ temente , não só as que apareciam nos exercícios , mas todas as que lhe viessem à cabeça. Marcava trabalhos de casa no tom que aprendera com a nossa professora Oliviero . Mandava-me traduzir trinta frases por dia, · vinte de latim para italiano e dez de italiano para latim. Ela também as traduzia, muito mais depressa do que eu . No fim do Verão , quando o exame estava próximo , depois de observar, com ar duvidoso , como eu procurava no dicionário as palavras que não conhecia, ou seja, pela mesma ordem em que as encontrava na frase que tinha de traduzir, e ia apontando os significados principais , e só depois me esforçava para perceber o sentido , perguntou prudentemente: «Foi a professora que te disse para fazeres assim?» A professora nunca dizia nada, limitava-se a marcar os exercícios . Eu é que me regulava daquele modo . Calou-se por instantes e depois aconselhou-me: «Lê primeiro a frase em latim, depois vai ver onde está o verbo . A partir do verbo percebes qual é o sujeito . Quando tiveres o sujeito , pro­ curas os complementos: o complemento directo se o verbo for transiti­ vo , ou outros complementos se não for. Experimenta assim.» Experimentei . De repente , pareceu-me fácil traduzir. Em Setembro fui fazer o exame , fiz a prova escrita sem um erro e na oral soube res­ ponder a todas as perguntas . «Quem te deu explicações?» , perguntou a professora, um bocado trombuda. «Uma amiga minha.»

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«Universitária?» Não sabia o que significava. Respondi que sim. Lila estava à minha espera lá fora, à sombra. Quando saí abracei-a, disse-lhe que me correra lindamente e perguntei-lhe se podíamos estudar juntas no ano seguinte . Uma vez que fora ela a primeira a propor que nos encontrássemos só para estudar, pareceu-me que convidá-la para conti­ nuarmos era uma bela maneira de lhe mostrar a minha alegria e a minha gratidão . Esquivou-se com um gesto quase de enfado . Disse que só que­ ria perceber que coisa era o latim que estudavam os inteligentes . «E então?» «Já percebi . Basta.» «Não gostas?» «Sim. Vou buscar uns livros à biblioteca.» «Em latim?» «Sim.» «Mas ainda há muito que estudar.» «Estuda tu por mim, e se eu tiver dificuldades , ajudas-me . Eu agora tenho uma coisa para fazer com o meu irmão .» «Ü que é?» «Depois mostro-te .»

8. Recomeçou a escola e saí-me bem em todas as disciplinas desde o início . Não via a hora de Lila me pedir que a ajudasse com o latim ou outra coisa, e por isso creio que não estudava tanto para a escola como para ela. Tomei-me a melhor da aula, nem na primária tinha sido tão boa aluna. Naquele ano pareceu-me ter dilatado como a massa de piv.a . Tomei­ -me ainda mais cheia de peito , de coxas , de traseiro. Um domingo em que ia para os jardins , onde marcara encontro com Gigliola Spagnuolo , os irmãos Solara aproximaram-se de mim no 1100. Marcello , o mais velho , ao volante , e Michele , o mais novo , sentado ao lado dele . Eram os dois bonitos , de cabelo muito escuro e brilhante e o sorriso branco . Mas dos dois , o que mais me agradava era Marcello, parecia-se com Heitor, tal como estava representado na versão escolar da Ilíada . Acompanharam­ -me todo o caminho , eu no passeio e eles ao lado , no 1100. «Já andaste de automóvel?»

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«Não .» «Entra, levamos-te a dar uma volta.» «0 meu pai não quer.» «E nós não lhe dizemos . Quando é que tens ocasião de entrar num carro como este?» Nunca, pensei . No entanto disse que não e continuei a dizer que não até aos jardins , quando o automóvel acelerou e desapareceu como uma flecha para lá dos prédios em construção . Disse que não porque se o meu pai viesse a saber que eu tinha entrado naquele automóvel, embora fosse um homem bom e amável , e embora gostasse muito de mim, matava-me com pancada imediatamente , e ao mesmo tempo os meus irmãozinhos , Peppe e Gianni , apesar de ainda serem pequenos , sentir-se-iam na obri­ gação , agora e no futuro , de tentar matar os irmãos Solara. Não havia regras escritas , sabia-se que era assim e pronto . Os Solara também sa­ biam, tanto mais que tinham sido simpáticos , limitando-se apenas a con­ vidar-me a entrar. Mas algum tempo depois não o foram com Ada, a filha mais velha de Melina Cappuccio , isto é , a viúva maluca que dera escândalo quando os Sarratore se mudaram . Ada tinha catorze anos . Ao domingo , às escon­ didas da mãe , punha bâton , e com as pernas compridas e direitas e os seios maiores que os meus, parecia já crescida e bonita. Os irmãos So­ lara disseram-lhe palavras grosseiras , Michele chegou mesmo a agarrá­ -la por um braço , abriu a porta do carro e puxou-a para dentro . Uma hora depois deixaram-na no mesmo sítio , e Ada estava um pouco zan­ gada, no entanto ria-se . Mas entre aqueles que a viram ser puxada à força para dentro do carro , houve quem fosse contar a Antonio , o irmão mais velho que era mecânico na oficina de Gorresio . Antonio era um bom trabalhador, dis­ ciplinado , tímido , visivelmente afectado pela morte precoce do pai e também pelos desequilíbrios da mãe . Sem dizer uma palavra aos amigos ou à farm1ia, foi esperar Marcello e Michele em frente do bar Solara, e quando os dois irmãos apareceram recebeu-os a soco e pontapé, sem uma só palavra de preâmbulo . Durante alguns minutos deu conta do recado , mas depois o pai Solara e um dos barmen saíram para a rua. Os quatro espancaram Antonio até sangrar, e nenhum dos passantes , ne­ nhum dos clientes , interveio em seu auxílio . Nós , raparigas , dividimo-nos sobre este episódio . Gigliola Spagnuolo e Carmela Peluso tomaram o partido dos Solara, mas só porque eles eram bonitos e tinham o 1100. Eu vacilei . Na presença das minhas duas

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amigas inclinava-me para os Solara, e discutíamos para ver quem os adorava mais , pois na verdade eram muito atraentes e era impossível não imaginarmos a figura que faríamos sentadas ao lado de um deles no automóvel . Mas também achava que se tinham comportado muito mal com Ada, e que Antonio , embora não fosse uma beleza, embora não fosse musculoso como eles , que iam todos os dias ao ginásio levantar pesos, tivera a coragem de os enfrentar. Por isso , na presença de Lila, que exprimia sem meias palavras essa minha posição , também eu ex­ pressava algumas reservas . Uma vez a discussão tornou-se tão acesa que Lila, talvez porque não era tão desenvolvida como nós e não conhecia o prazer-temor de sentir o olhar dos Solara em cima dela, empalideceu mais do que o habitual e disse que , se lhe acontecesse o que acontecera a Ada, para evitar sarilhos ao pai e ao irmão Rino , trataria da saúde àqueles dois pessoalmente. «Üra, Marcello e Michele nem sequer olham para ti» , disse Gigliola Spagnuolo , e pensámos que Lila se ia enfurecer. Mas em vez disso , respondeu , séria: «Melhor assim.» Continuava delgada como sempre, mas tensa em cada fibra. Olhava­ -lhe para as mãos , espantada. Em pouco tempo tinham ficado como as de Rino , como as do pai , com a pele das pontas dos dedos amarelada e gros­ sa. Embora ninguém a obrigasse a isso - não era essa a sua tarefa na oficina - começara a fazer trabalhinhos , preparava o fio , descosia, cola­ va, até debruava, e já manejava as ferramentas de Fernando quase como o irmão . Eis a razão por que naquele ano não me perguntou nada de latim. A dada altura contou-me o plano que tinha em mente , uma coisa que nada tinha a ver com livros: andava a tentar convencer o pai a começar a fazer sapatos novos . Mas Fernando não queria saber disso . Fazer sapatos à mão - dizia-lhe - é uma arte sem futuro . Hoje existem máquinas , e as máquinas custam dinheiro; e o dinheiro ou está no banco ou na mão dos usurários , e não nos bolsos da farru1ia Cerullo . Mas ela insistia, en­ chia-o de elogios sinceros, dizia-lhe: «Ninguém sabe fazer sapatos como tu sabes , papá.» E ele respondia que, embora fosse verdade, hoje em dia era tudo feito nas fábricas , em série , a baixo custo, e como tinha trabalha­ do em fábricas , sabia bem a porcaria que aparecia no mercado . Mas pouco havia a fazer, quando as pessoas precisavam de sapatos novos não iam ao sapateiro do bairro , iam às lojas do Rettifilo , por isso , mesmo que alguém quisesse fazer o produto artesanal com todas as regras da arte , não o vendia, era dinheiro deitado fora, e trabalho , ia à ruína.

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Lila não se deixara convencer e , como de costume , puxara Rino para o seu lado . O irmão a princípio alinhara com o pai , irritado pelo facto de ela meter o nariz nas coisas do trabalho , onde já não era uma questão de livros e em que o especialista era ele . Mas pouco a pouco deixara-se seduzir, e agora discutia com o pai dia sim, dia não , repetindo aquilo que ela lhe metera na cabeça. «Pelo menos tentemos .» «Não .» «Já viste o automóvel que os Solara têm, já viste como a charcutaria dos Carracci vai de vento em popa?» «0 que eu vi foi que a retrosaria que queria fazer uma alfaiataria fe­ chou , e vi que o Gorresio , devido à estupidez do filho , deu a passada maior que a perna, na oficina.» «Mas os Solara continuam a crescer.» «Mete-te na tua vida e esquece os Solara.» «Junto ao caminho-de-ferro está a nascer um novo bairro .» «Estou-me nas tintas para isso .» «Papá, as pessoas ganham e querem gastar.» «As pessoas gastam em comida, porque é preciso comer todos os dias . Ao passo que os sapatos, primeiro não se comem, e segundo , quan­ do se estragam mandas arranjar e podem durar vinte anos . O nosso trabalho , nos tempos que correm , é arranjar sapatos e mais nada.» Gostava de ver como aquele rapaz , sempre gentil comigo mas capaz de brutalidades que até ao pai metiam medo , apoiava sempre , em todas as situações , a irmã. Invejava Lila por ter aquele irmão tão sólido e às vezes pensava que a verdadeira diferença entre mim e ela era eu só ter irmãos pequenos , portanto ninguém capaz de me encorajar e de me apoiar contra a minha mãe , libertando-me a mente , ao passo que Lila podia contar com Rino , que era capaz de defendê-la de quem quer que fosse , e de qualquer coisa que lhe viesse à cabeça. Dito isto , eu achava que Fernando tinha razão , sentia que estava do lado dele . E, conversan­ do com Lila, descobri que ela achava o mesmo . Uma vez estava a mostrar-me os desenhos dos sapatos que queria fazer com o irmão , para homens e para mulheres . Eram desenhos lindos , feitos em folhas de papel quadriculado , ricos em pormenores coloridos com precisão , como se tivesse tido oportunidade de observar de perto sapatos daquele género em qualquer mundo paralelo ao nosso , e os ti­ vesse reproduzido no papel . Na realidade tinha-os inventado ela no seu todo e em cada detalhe , como fazia na primária quando desenhava prin-

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cesas , pois apesar de serem sapatos normais, não s e pareciam com aqueles que se viam no bairro , nem tão-pouco com os das actrizes das fotonovelas . «Gostas deles?» «São muito elegantes.» «Rino diz que são difíceis .» «Mas sabe fazê-los?» «Jura que sim.» «E o teu pai?» «Esse é capaz de certeza.» «Então façam-nos.» «Ü papá não quer fazê-los .» «Porquê?» «Disse que enquanto eu estiver a brincar, tudo bem, mas que ele e Rino não podem perder tempo comigo .» «Ü que significa isso?» «Significa que para fazer realmente as coisas é preciso tempo e ma­ teriais que custam dinheiro .» E fez menção de me mostrar também as contas que fizera, às escon­ didas de Rino , para perceber quanto dinheiro era realmente necessário para fazê-los . Depois desistiu , voltou a dobrar as folhas que agitava na mão e disse que era inútil perder tempo , porque o pai tinha razão . «E então?» «Devemos experimentar na mesma.» «Fernando zanga-se .» «Se uma pessoa não tentar, nada muda.» Aquilo que devia mudar, na opinião dela, era sempre a mesma coisa: de pobres , devíamos passar a ricas , de não termos nada, devíamos che­ gar ao ponto de ter tudo . Tentei falar-lhe do velho projecto de escrever romances , como fizera a autora de Mulherzinhas . Eu tinha essa ideia firme , queria concretizá-la. Andava a aprender latim pensando nisso e cá no fundo estava convencida de que ela ia buscar tantos livros à bi­ blioteca do professor Ferraro só porque , embora já não fosse à escola, embora tivesse o pensamento fixo nos sapatos , de qualquer maneira queria escrever um romance juntamente comigo e ganhar muito dinhei­ ro . Mas limitou-se a encolher os ombros à sua maneira despreocupada. Tinha reduzido Mulherzinhas às devidas proporções . Agora - explicou­ -me - , para ficarmos realmente ricas precisávamos de uma actividade económica. Por isso pensava começar com um único par de sapatos , só

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para mostrar ao pai como eram bonitos e confortáveis . Depois , uma vez que Fernando se tivesse convencido , era preciso iniciar a produção . Dois pares de sapatos hoje, quatro amanhã, trinta num mês , quatrocen­ tos num ano , para que dentro de pouco tempo ela, o pai , Rino , a mãe e os outros irmãozinhos , conseguissem montar uma fábrica de calçado com as respectivas máquinas e cinquenta operários , pelo menos: a fábri­ ca de calçado Cerullo . «Uma fábrica de sapatos?» «Sim.» Falou-me da fábrica com grande convicção, como ela sabia fazer, com frases em italiano que pintavam diante dos meus olhos o anúncio luminoso da fábrica: Cerullo; a marca gravada nas gáspeas: Cerullo; e depois os sapatos Cerullo por inteiro , todos reluzentes , todos muito elegantes como nos seus desenhos , sapatos daqueles que uma vez cal­ çados, disse ela, são tão bonitos e cómodos que à noite vais dormir sem os descalçar. Rimo-nos, divertimo-nos . Depois , Lila embatocou . Pareceu dar-se conta de que estávamos a brincar como anos antes com as bonecas , com Tina e Nu ao pé da fres­ ta da cave , e disse-me , como que numa urgência de solidez, acentuando o ar de menina-velha que me parecia estar a tomar-se o seu traço carac­ terístico: «Sabes porque é que os irmãos Solara se julgam os donos do bairro?» «Porque são prepotentes .» «Não , porque têm dinheiro .» «Achas?» «Claro . Já viste que eles nunca incomodaram Pinuccia Carracci?» «Sim.» «E sabes porque se comportaram da maneira que se comportaram corn Ada?» «Não .» «Porque Ada não tem pai , o irmão Antonio não conta para nada, e ela ajuda Melina a limpar as escadas dos prédios .» Conclusão , ou também nós ganhávamos dinheiro , mais do que os Solara, ou então , para nos defendermos dos dois irmãos era preciso passar a fazer-lhes muito mal . Mostrou-me um trinchete muito afiado que obtivera na oficina do pai . «A mim não me tocam, porque sou feia e ainda não tenho o sangue» , disse , «mas a ti pode ser que sim. Se isso acontecer, diz-me .»

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Olhei para ela desconcertada . Com quase treze anos , não sabíamos nada de instituições , lei s , justiça. Repetíamos , e fazíamo-lo com con­ vicção , aquilo que sempre ouvimos e vimos à nossa volta desde a primeira infância. A justiça não era feita com pancadaria? Peluso não matara dom Achille? Voltei para casa. Concluí que com aquelas últi­ mas frases ela admitira que eu era importante para ela, e senti-me feliz .

9. Passei no exame final da escola média com oito em tudo , nove em italiano e nove em latim. Fui a melhor da escola. Melhor do que Alfon­ so , que teve média de oito , e de longe melhor do que Gino . Durante dias e dias gozei essa supremacia absoluta. Fui muito elogiada pelo meu pai , que a partir dali começou a gabar-se a toda a gente de que a sua filha primogénita tivera nove em italiano e nove , nada menos , em latim. A minha mãe , que estava na cozinha ao pé do lava-loiça a escolher horta­ liça, para minha surpresa, disse-me sem se virar: «Podes pôr a minha pulseira de prata no domingo , mas não a percas .» Menos sucesso tive no pátio . Ali só os amores e os namorados é que contavam. Quando disse a Carmela Peluso que era a melhor da escola, ela começou de imediato a falar-me do modo como Alfonso olhava para ela quando passava. Gigliola Spagnuolo entristeceu-se porque ti­ nha de repetir Latim e Matemática, e tentou recuperar o prestígio con­ tando-me que Gino andava atrás dela, mas ela não lhe dava confiança porque estava apaixonada por Marcello Solara, e talvez Marcello tam­ bém a amasse . Lila também não se mostrou particularmente contente . Quando lhe disse as minhas notas , disciplina por disciplina, ela disse a rir, com o seu tom de maldosa: «Não te deram nenhum dez?» Fiquei aborrecida. Dez só davam em comportamento , os professores não o tinham dado a ninguém nas cadeiras importantes . Mas bastou aquela frase para que um pensamento latente se tomasse de chofre cla­ ro: se ela andasse na escola comigo , na mesma classe , se lho tivessem permitido , este ano teria tido dez a tudo , e isso já eu sabia desde sempre , e ela também sabia, e agora atirava-mo à cara. Fui para casa incubando o desgosto de ser a primeira sem ser verda­ deiramente a primeira. Ainda por cima, os meus pais começaram a falar

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entre eles de onde poderiam colocar-me , agora que tinha nem mais nem menos do que o diploma da escola média. A minha mãe queria pedir à senhora da papelaria que me aceitasse como ajudante . Achava ela que , inteligente como eu era, tinha competência para vender canetas , lápis , cadernos e manuais escolares. O meu pai imaginava negociações futu­ ras com os seus conhecimentos na câmara municipal , por forma a atribuírem-me um lugar de prestígio . Senti uma tristeza dentro de mim que , embora sem se definir, cresceu , cresceu , cresceu , até ao ponto de já nem ao domingo me apetecer sair. Já não estava satisfeita comigo mesma, tudo me parecia sem brilho . Olhava-me ao espelho e não via aquilo que gostaria de ver. Os cabelos loiros tinham-se tomado castanhos . O meu nariz era largo e esborracha­ do . Todo o meu corpo continuava a dilatar-se , mas sem crescer em altu­ ra. Até a pele se estava a estragar: na testa, no queixo , em volta dos maxilares , proliferavam arquipélagos de inchaços avermelhados , que depois se faziam violáceos e por fim ganhavam pontas amareladas . Co­ mecei por iniciativa própria a ajudar a minha mãe a limpar a casa, a cozinhar, a cuidar da desordem que os meus irmãos deixavam atrás de si , a ocupar-me de Elisa , a mais pequena. No tempo que me sobrava não saía, sentava-me a um canto a ler romances que ia buscar à biblioteca: Grazia Deledda, Pirandello , Tchékhov, Gogol, Tolstoi , Dostoievski . Por vezes sentia uma grande necessidade de ir procurar Lila à oficina e falar­ -lhe de personagens de que tinha gostado muito , de frases que aprendera de cor, mas depois perdia o interesse. Ela diria uma maldade qualquer; começaria a falar dos planos que fazia com Rino , sapatos , fábrica de calçado, dinheiro, e eu pouco a pouco acharia que os romances que lia eram inúteis e que a minha vida era uma lástima, tal como o meu futuro , aquilo em que me transformaria: uma vendedora gorda e furunculosa na papelaria em frente da igreja, uma funcionária da câmara solteirona, mais cedo ou mais tarde estrábica e coxa. Um domingo , estimulada por um convite em meu nome vindo pelo correio , em que o professor Ferraro me chamava à biblioteca nessa ma­ nhã, decidi finalmente reagir. Tentei pôr-me bonita, como desde peque­ na me parecia que era, como queria acreditar que ainda era, e fui . Levei tempo a espremer os furúnculos, o que serviu para me inflamar ainda mais a cara, pus a pulseira de prata da minha mãe , soltei o cabelo . Mas continuei a não gostar do que via. Deprimida, debaixo do calor que naquela época do ano caía sobre o bairro desde manhã, como uma mão inchada pela febre , percorri o caminho até à biblioteca.

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Percebi logo , pela pequena multidão de pais e crianças da primária e da escola média que entrava pela porta principal , que algo fora do nor­ mal se passava. Entrei . Vi filas de cadeiras já totalmente ocupadas , festões coloridos , o pároco , Ferraro , também o director da escola primá­ ria e a professora Oliviero . Compreendi que o professor tivera a ideia de oferecer um livro a todos os leitores que , de acordo com os seus regis­ tos , eram os mais assíduos . Como a cerimónia ia começar e a requisição de livros estava suspensa naquele momento, sentei-me ao fundo da sala. Procurei Lila, mas vi apenas Gigliola Spagnuolo na companhia de Gino e de Alfonso . Agitei-me na cadeira, pouco à vontade . Instantes depois sentaram-se junto de mim Carmela Peluso e o irmão Pasquale . Olá, olá. Cobri melhor as faces irritadas , com o cabelo . A pequena cerill}ónia começou . Os premiados foram: primeiro, Raf­ faella Cerullo; segundo, Fernando Cerullo; terceiro , Nunzia Cerullo; quar­ to , Rino Cerullo; quinto, Elena Greco , ou seja, eu. Deu-me vontade de rir, e a Pasquale também. Olhámos um para o outro, sufocando o riso , enquanto Carmela sussurrava com insistência: «Porque se riem?» Não lhe respondemos , olhámo-nos de novo e rimo-nos , cobrin­ do a boca com a mão. Foi assim que , sentindo ainda os olhos cheios de riso , e com uma inesperada sensação de bem-estar, depois de o professor perguntar várias vezes se estava alguém da frum1ia Cerullo na sala, fui chamada eu , a quinta classificada, para receber o meu prémio. Fazendo­ -me elogios , Ferrara entregou-me Três Homens num Barco, de Jerome K. Jerome . Agradeci e perguntei , baixinho: «Posso levar também os prémios da farm1ia Cerullo , para lhos entre­ gar?» O professor entregou-me os livros dos Cerullo . Ao sairmos , enquanto Carmela, ressentida, se juntava a Gigliola, que tagarelava com Alfonso e Gino muito feliz , Pasquale disse-me em dialecto coisas que me fize­ ram rir ainda mais: que Rino estragava a vista com os livros , que o sa­ pateiro Fernando não dormia de noite para ler, que a dona Nunzia lia de pé , junto ao fogão , enquanto cozia massa com batatas , numa mão um romance e na outra a colher de pau . Ele andara na primária com Rino , companheiros de turma e de carteira - disse-me , com lágrimas de riso nos olhos - , e ambos , ele e o amigo , ajudando-se um ao outro , após seis ou sete anos de escola incluindo as repetições , o máximo que con­ seguiam ler era: Sal e Tabacos , Charcutaria, Correios e Telégrafos . De­ pois perguntou-me qual era o prémio do seu ex-companheiro de escola. «Bruges-la-Morte .»

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«Tem fantasmas?» «Não sei .» «Posso ir contigo quando lho fores entregar? Aliás , posso entregar-lho eu , com as minhas próprias mãos?» Desatámos outra vez a rir. «Sim.» «Deram o prémio ao Rinuccio . Coisa de doidos . É Lina quem lê tudo . Deus do céu , aquela rapariga é mesmo esperta.» As atenções de Pasquale Peluso consolaram-me muito , gostei que ele me fizesse rir. Talvez eu não seja assim tão feia, pensei , se calhar sou eu que não sei apreciar-me . Nesse instante ouvi chamar por mim, era a professora Oliviero . Fui ao encontro dela, olhou-me com o seu olhar sempre avaliador e disse-me , como que a confirmar a legitimidade de um juízo mais gene­ roso sobre o meu aspecto: «Que bonita que estás , e como cresceste ! » «Não é verdade , professora.» «É verdade , estás uma estrela, cheia de saúde , gordinha. E também boa aluna. Soube que foste a melhor da escola.» «Sim.» «E o que vais fazer agora?» «Vou trabalhar.» Entristeceu-se . «Nem pensar nisso , tu tens de continuar a estudar.» Olhei-a surpreendida. O que mais havia para estudar? Eu nada sabia sobre a organização escolar, não tinha uma ideia exacta sobre o que se seguia à escola média. Palavras como liceu , ou universidade , para mim eram abstractas , como tantas palavras que encontrava nos romances . «Não posso , o s meus pais não me deixam.» «Quanto te deu em Latim o professor de Letras?» «Nove .» «Tens a certeza?» «Sim.» «Então eu vou falar com os teus pais.» Fiz menção de me afastar, e devo dizer que um bocado assustada. Se a professora Oliviero fosse de facto falar com o meu pai e a minha mãe , dizer-lhes que me mandassem estudar mais , iria desencadear de novo discussões que não me apetecia enfrentar. Preferia as coisas tal como estavam: ajudar a minha mãe , trabalhar na papelaria, resignar-me a ser

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feia, ter furúnculos , ser saudável e gorda, como dizia a professora, e labutar na miséria. Lila não fazia isso havia já pelo menos três anos, à parte os seus sonhos loucos de filha e irmã de sapateiro? «Obrigada, professora» , disse , «até à vista.» Mas ela agarrou-me por um braço . «Não percas tempo com aquele» , disse , referindo-se a Pasquale , que estava à minha espera. «É pedreiro , não irá mais além. E vem de uma farm1ia horrível , o pai é comunista e matou dom Achille . Não quero de maneira nenhuma ver-te com ele, com certeza é comunista como o pai .» Fiz um gesto de assentimento e afastei-me sem me despedir de Pas­ quale , que primeiro ficou espantado , mas depois ouvi com prazer que vinha atrás de mim , a dez passos de distância. Não era um rapaz bonito , mas eu também já não o era. Tinha os cabelos negros e muito encaraco­ lados , era escuro por natureza e por causa do sol , tinha a boca grande e era filho de assassino , talvez até comunista. Dei voltas e voltas na cabeça à palavra «comunista» , que para mim não tinha sentido , mas que a professora marcara imediatamente com um sinal negativo . Comunista, comunista, comunista. Achei-a fascinante . Comunista e filho de assassino . Assim que virámos a esquina, Pasquale apanhou-me . Percorremos o caminho juntos até poucos metros de casa e , recomeçando a rir, marcá­ mos encontro para o dia seguinte , para irmos à oficina do sapateiro en­ tregar os livros a Lila e a Rino . Antes de nos separarmos , Pasquale disse-me que no domingo seguinte ele , a irmã e quem quisesse , iam a casa de Gigliola aprender a dançar. Perguntou-me se também queria ir, talvez até com Lila. Fiquei de boca aberta, já sabia que a minha mãe nunca me deixaria ir. Mas mesmo assim disse: está bem, vou pensar. Então ele estendeu-me a mão e eu , que não estava habituada a tais ges­ tos , hesitei , mal toquei na dele , dura e áspera, e recolhi a minha. «Ainda és pedreiro?» , perguntei-lhe , embora soubesse que era. «Sim.» «E és comunista?» Olhou-me com ar perplexo . «Sim.» «E vais visitar o teu pai a Poggioreale?» Ficou sério: «Quando posso .» «Adeus.» «Adeus.»

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10. A professora Oliviero apresentou-se em minha casa nessa mesma tarde sem ter avisado , lançando o meu pai na mais total angústia e exas­ perando a minha mãe . Exigiu que ambos lhe jurassem que me iam ma­ tricular na escola secundária mais próxima. Ofereceu-se para arranjar ela própria os livros de que eu precisaria. Contou ao meu pai , mas olhando-me com ar severo , que me vira sozinha com Pasquale Peluso , companhia totalmente inadequada para mim, em quem se depositava tão grandes esperanças . Os meus pais não ousaram contradizê-la. Juraram-lhe solenemente que me iam inscrever na escola secundária, e o meu pai disse , austero: «Lenu , nunca mais te atrevas a falar com Pasquale Peluso .» Antes de se despedir a professora perguntou-me por Lila, ainda na presença dos meus pais. Respondi-lhe que ajudava o pai e o irmão , punha em ordem as contas e a loja. Fez um trejeito de desprezo e perguntou-me: «Sabe que tiveste nove em Latim?» Fiz sinal que sim . «Diz-lhe que agora também vais estudar grego . Diz-lho .» Despediu-se dos meus pais toda empertigada. «Esta rapariga» , exclamou , «vai dar-nos grandes alegrias .» Nessa noite , enquanto a minha mãe , furiosa, dizia que agora era pre­ ciso mandar-me para a escola dos ricos , senão a Oliviero não deixaria de a atormentar e chumbaria sabe-se lá quantas vezes a pequena Elisa como represália; e enquanto o meu pai , como se fosse aquele o proble­ ma principal , ameaçava partir-me as duas pernas se soubesse que eu trocara uma só palavra com Pasquale Peluso , ouviu-se um grito agudo que nos silenciou . Era Ada, a filha de Melina, a gritar por socorro . Corremos para as janelas , vimos um grande alvoroço no pátio . Per­ cebeu-se que Melina, que depois da mudança dos Sarratore geralmente se portara bem - um pouco melancólica, é verdade, um pouco distraída, mas no essencial as excentricidades eram raras e inócuas , por exemplo cantar alto enquanto lavava as escadas dos prédios ou atirar baldes de água suja para a rua sem ver se ia alguém a passar - , estava a ter uma nova crise de loucura, uma espécie de demência da felicidade . Ria, dava saltos em cima da cama e levantava a saia, mostrando as coxas descama­ das e as cuecas aos filhos assustados . Disso se inteirou minha mãe, inter­ rogando as mulheres debruçadas das janelas . Vi que Nunzia Cerullo e Lila se apressavam para ir ver o que se passava, e tentei esgueirar-me

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pela porta para ir ter com elas , mas a minha mãe impediu-me. Ajeitou o cabelo e , no seu passo claudicante , foi ela mesma avaliar a situação. Quando voltou , vinha indignada. Alguém fora entregar um livro a Melina. Um livro , sim, um livro . A ela, que o máximo que tinha era o segundo ano da primária e nunca na vida lera nenhum. Na capa do livro estava o nome de Donato Sarratore . Dentro , na primeira página, escrita a caneta, uma dedicatória para Melina, e encontravam-se assinalados a tinta vermelha os poemas que ele escrevera para ela. O meu pai , ao ouvir aquele despropósito , insultou de forma muito obs­ cena o ferroviário-poeta. A minha mãe disse que alguém devia tomar a iniciativa de abrir àquele homem de merda a cabeça de merda que ele ti­ nha. Toda a noite ouvimos Melina cantar de felicidade e ouvimos as vozes dos filhos , sobretudo Antonio e Ada, tentando acalmá-la mas em vão . Eu , por outro lado , estava dominada pelo espanto . No mesmo dia atraíra a atenção de um jovem misterioso como Pasquale , abrira-se uma nova escola no meu caminho , e descobrira que uma pessoa que até há pouco tempo morava no bairro , mesmo no prédio em frente do nosso , publicara um livro . Este último acontecimento provava que Lila tinha razão em pensar que nos podia acontecer o mesmo . É certo que ela já desistira disso , mas talvez eu , por ir para aquela escola difícil que se chamava secundária, e apoiada pelo amor de Pasquale , conseguisse es­ crever um sozinha, como fizera Sarratore . Quem sabe , se tudo corresse pelo melhor, ficaria rica primeiro do que Lila, com os seus desenhos de sapatos e a sua fábrica de calçado .

11. No dia seguinte encontrei-me com Pasquale Peluso em segredo . Ele chegou a arquejar, com a roupa do trabalho , todo suado , com manchas brancas de cal por todo o lado . Pelo caminho contei-lhe a história de Donato e Melina. Disse-lhe que estes últimos acontecimentos eram a prova de que ela não era maluca, que Donato se apaixonara realmente por ela e ainda a amava. Mas enquanto falava, enquanto Pasquale me dava razão , manifestando sensibilidade pelas coisas do amor, dei-me conta de que , mais do que qualquer outra coisa, o que naqueles últimos desenvolvimentos continuava a excitar-me era o facto de Donato Sarra­ tore ter, nem mais nem menos, publicado um livro . Aquele empregado dos Caminhos de Ferro do Estado era agora o autor de um livro que o

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professor Ferrara poderia muito bem incluir na sua biblioteca e empres­ tar. Portanto , disse eu a Pasquale , todos nós havíamos conhecido , não um tipo qualquer, fraco , pela maneira como deixava a mulher, Lidia, pôr-lhe os pés em cima, mas sim um poeta. Ou seja, diante dos nossos olhos nascera um seu amor trágico , que fora inspirado por uma pessoa que conhecíamos muito bem , isto é, Melina. Excitei-me muito , o cora­ ção saltava-me no peito . Mas percebi que sobre esse assunto Pasquale não era capaz de me acompanhar, dizia que sim só para não me contra­ dizer. E de facto , daí a pouco começou a mudar de assunto , a fazer-me perguntas sobre Lila: como era ela na escola, o que pensava eu dela, se éramos muito amigas . Respondi com prazer. Era a primeira vez que alguém me interrogava sobre a nossa amizade e falei sobre isso todo o caminho , com grande entusiasmo . Também foi a primeira vez que senti que , tendo de procurar as palavras para um assunto para o qual não tinha palavras prontas , tive a tendência para reduzir a relação entre mim e Lila a afirmações empolgadas e peremptoriamente positivas . Quando chegámos à loja ainda íamos a falar nisso . Fernando fora a casa fazer a sesta, mas Lila e Rino estavam lado a lado , com ar apreen­ sivo , debruçados sobre qualquer coisa que olhavam com hostilidade , e assim que nos viram através da porta de vidro guardaram tudo . Entre­ guei à minha amiga os presentes do professor Ferrara , enquanto Pasqua­ le fazia troça do amigo , abrindo-lhe o presente debaixo dos olhos e dizendo-lhe: «Depois de leres a história desta Bruges morta dizes-me se gostaste , e se for esse o caso , eu também a leio .» Riram-se muito e de vez em quando segredavam ao ouvido um do outro frases sobre Bruges , certamente obscenas . Mas a certa altura reparei que , embora trocando piadas com Rino , Pasquale lançava olhares furtivos a Lila. Porque a olhava assim, o que procurava, o que via nela? Eram olhares longos e intensos que ela parecia nem notar, enquanto - pareceu-me - mais atento a eles do que eu estava Rino , que se apressou a arrastar Pasquale para a rua, como se quisesse evitar que ouvíssemos o que os divertia tanto a respeito de Bruges , mas na realidade aborrecido com o modo como o amigo lhe olhava para a irmã. Fui com Lila até à arrecadação nas traseiras da loja, esforçando-me para descobrir nela o que atraíra a atenção de Pasquale. Pareceu-me sem­ pre a mesma rapariga delgada, pele e osso , pálida, excluindo talvez o formato maior dos olhos e uma pequena ondulação no peito . Ela arrumou os livros junto de outros que tinha no meio dos sapatos velhos e de alguns cadernos com as capas em mau estado . Referi-me às maluqueiras de

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Melina, mas contei-lhe sobretudo o entusiasmo que senti , porque final­ mente podíamos dizer que conhecíamos alguém que acabava de publicar um livro , Donato Sarratore . Sussurrei-lhe em italiano: «Pensa, o seu filho Nino foi nosso companheiro de escola; pensa, provavelmente toda a fa­ nu1ia Sarratore vai ficar rica.» Ela fez um meio sorriso duvidoso . «Com isto?» , disse. Estendeu a mão e mostrou-me o livro de Sarratore . Dera-lho Antonio , o filho mais velho de Melina, para tirá-lo para sempre da vista e do alcance da mãe . Peguei-lhe , examinei-o . Intitulava­ -se Expressões de Bonança . A capa era avermelhada, com um desenho do Sol a brilhar no cimo de uma montanha. Foi emocionante ler, mesmo por cima do título , Donato Sarratore . Abri-o e li em voz alta a dedicató­ ria escrita a tinta: «À Melina, que alentou o meu canto . Donato . Nápo­ les, 12 de Junho de 1 958.» Emocionei-me , senti um calafrio na nuca, na raiz dos cabelos . «0 Nino terá um carro mais bonito do que o dos Solara» , disse-lhe . Mas Lila fez um daqueles seus olhares intensos e vi que estava presa ao livro que eu tinha na mão . «Se assim for, logo saberemos» , resmoneou . «Por agora, esses poe­ mas só causaram danos.» «Porquê?» «0 Sarratore não teve coragem de se encontrar pessoalmente com Melina, e no seu lugar mandou-lhe o livro .» «E não foi uma acção bonita?» «Sabe-se lá. Agora a Melina está à espera dele , e se o Sarratore não vier ela sofrerá mais do que sofreu até aqui .» Que bela conversa. Olhei-lhe para a pele branca e lisa, sem uma fis­ sura. Olhei-lhe para os lábios , para a forma delicada das orelhas . Sim, pensei , talvez esteja a mudar, e não só fisicamente , também na maneira de se exprimir. Pareceu-me - dito com palavras de hoje - que não só sabia dizer bem as coisas , como também estava a desenvolver um dom que já lhe conhecia: melhor do que fazia em criança, pegava nos factos e , com naturalidade , reproduzia-os carregados de tensão; reforçava a realidade ao reduzi-la a palavras , injectava-lhe energia. Mas também notei com prazer que , assim que ela começava a fazê-lo , logo sentia em mim a capacidade para fazer o mesmo . E experimentava, e saía-me bem. Isto - pensei , contente - distingue-me de Carmela e de todas as outras; eu inflamo-me juntamente com Lila, aqui , no próprio momento em que ela fala comigo . Que mãos fortes e bonitas que ela tinha, que cativantes gestos formulava, que olhares.

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Mas enquanto Lila falava de amor, enquanto também eu falava dele , o prazer embotou-se e veio-me um pensamento desagradável . Percebi de repente que me enganara: Pasquale , o pedreiro , o comunista, o filho do assassino , quisera acompanhar-me até ali não por mim , mas por ela, para ter oportunidade de a ver.

12. Aquele pensamento tolheu-me a respiração por u m instante . Quando os dois rapazes reentraram, interrompendo a nossa conversa, Pasquale confessou a rir que se escapulira do estaleiro da obra sem dizer nada ao mestre-de-obras , mas tinha de voltar já para o trabalho . Notei que olha­ va de novo para Lila, longamente , intensamente , quase contra vontade , talvez para lhe dar a ver: estou a correr o risco de ser despedido apenas por tua causa. E entretanto disse , dirigindo-se a Rino: «Domingo vamos todos dançar em casa da Gigliola, a Lenuccia tam­ bém vai , vocês também irão?» «Domingo ainda está longe , depois logo se vê» , respondeu Rino . Pasquale deitou um último olhar a Lila, que não lhe prestou atenção nenhuma, e pôs-se a andar, sem me perguntar se queria ir com ele . Senti uma irritação que me pôs nervosa. Comecei a tocar com os dedos nas zonas mais inflamadas das faces , mas tive consciência disso e contive-me . Enquanto Rino tirava de debaixo do balcão as coisas em que estava a trabalhar antes de chegarmos, e as observava perplexo , tentei continuar a falar de livros e de histórias de amor com Lila. Em­ polámos exageradamente Sarratore , a loucura de amor de Melina, o papel daquele livro . O que iria acontecer? Que reacções iria desenca­ dear, não a leitura dos versos , mas o objecto em si , o facto de a capa, o título , o nome e o apelido terem vindo inflamar de novo o coração da­ quela mulher? Falámos com tanta paixão que Rino de repente perdeu a paciência e gritou: «Então não param com isso? Lila, vamos trabalhar, senão o papá volta e já não podemos fazer mais nada.» Parámos . Deitei uma olhadela ao que eles estavam fazendo , uma forma de madeira cercada por uma confusão de solas , tirinhas de pele , bocados de couro espesso , à mistura com facas e sovelas e ferros de toda a espécie . Lila disse-me que ela e Rino andavam a tentar fazer um sapato de viagem para homem, e o irmão , ansioso , imediatamente me

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fez jurar pela minha irmã Elisa que nunca falaria daquilo a ninguém. Trabalhavam às escondidas de Fernando , Rino conseguira o couro e a pele através de um amigo que ganhava a vida numa fábrica de curtumes na Ponte de Casanova. Dedicavam à criação do sapato cinco minutos agora, dez amanhã, porque não fora possível convencer o pai a ajudá­ -los . Aliás , cada vez que puxavam a conversa, Fernando mandava Lila para casa e gritava que não queria voltar a vê-la na oficina, e ameaçava Rino de morte , por se lhe ter metido na cabeça, aos dezanove anos e faltando-lhe ao respeito , que poderia ser mais do que o pai . Fingi estar interessada no seu projecto secreto , mas na verdade fiquei triste . Embora os dois irmãos me tivessem incluído , fazendo de mim sua confidente , tratava-se de uma experiência em que eu só podia participar como testemunha. Lila por aquele caminho viria a fazer grandes coisas sozinha, eu estava excluída. Mas sobretudo , como podia ser que , depois das nossas conversas intensas sobre amor e poesia, ela me acompanhas­ se à porta como estava fazendo , e achasse muito mais interessante aquele clima de tensão em tomo de um sapato? Tínhamos falado tão bem sobre Sarratore e Melina. Não podia crer que , embora apontando­ -me para aquele amontoado de couro , pele e ferramentas , não conti­ nuasse a sentir lá dentro , como eu , uma ansiedade pela mulher que so­ fria por amor. Eu queria lá saber de sapatos . Ainda tinha presentes , diante dos meus olhos , os movimentos mais secretos daquela história de fidelidade violada, de paixão , de canto que se transformara em livro , era como se ela e eu tivéssemos lido um romance juntas , como se tivésse­ mos visto , ali na arrecadação da loja e não no salão paroquial ao domin­ go , um filme muito dramático . Senti-me desgostosa pelo desperdício , por ser obrigada a ir-me embora, por ela preferir a aventura dos sapatos às nossas conversas , porque sabia ser independente , ao passo que eu precisava dela, porque tinha coisas só dela em que eu não podia partici­ par, porque Pasquale , um tipo já crescido , não um rapazinho , certamen­ te procuraria outras oportunidades de olhar para ela e de lhe pedir, e de tentar convencê-la, a namorar com ele em segredo , e a beijá-lo , e a tocar-lhe , como diziam que se fazia quando se namorava; porque , em suma, me sentiria cada vez menos necessária. Por isso , como se para afugentar a sensação de asco que aqueles pen­ samentos me causavam, como se para evidenciar o meu valor e o facto de ser indispensável , disse-lhe de chofre que ia para a escola secundária. Disse-lho à porta da loja, ou melhor, quando já estava na rua. Contei-lhe que fora a professora Oliviero que impusera isso aos meus pais , prome-

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tendo arranjar-me ela própria, de graça, livros usados . Fi-lo porque queria que ela percebesse que eu era mais única do que rara, e que , mesmo que ela enriquecesse a fabricar sapatos com Rino , nunca poderia passar sem mim, como eu não podia passar sem ela. Olhou-me , perplexa. «0 que é a escola secundária?» , perguntou . «Uma escola importante que vem depois da escola média.» «E o que vais para lá fazer?» «Estudar.» «0 quê?» «Latim.» «E mais nada?» «E também grego .» «Grego?» «Sim.» Fez uma expressão de quem se perdeu e não sabe o que dizer. Por fim murmurou , sem qualquer nexo: «Na semana passada apareceu-me o sangue .» E , sem que Rino a tivesse chamado , voltou para dentro .

13. Portanto agora também ela sangrava. Os movimentos secretos do corpo , que tinham chegado primeiro a mim , também a ela haviam che­ gado como a réplica de um terremoto , e iriam mudá-la, já estava a mudar. Pasquale - pensei - apercebeu-se primeiro do que eu . Ele e provavelmente outros rapazes . O facto de eu ir para a escola secundária num instante perdeu a aura. Durante alguns dias não consegui pensar noutra coisa senão na incógnita das mudanças que iriam afectar Lila. Tornar-se-ia bonita como Pinuccia Carracci , ou Gigliola, ou Carmela? Ficaria feia como eu? Cheguei a casa e observei-me ao espelho . Como era eu realmente? Como seria, mais cedo ou mais tarde , ela? Comecei a arranjar-me melhor. Um domingo à tarde , à hora do habi­ tual passeio da rua larga até aos jardins , vesti a minha roupa melhor, um vestido azul com o decote quadrado , e pus a pulseira de prata que a minha mãe me dera. Quando me encontrei com Lila senti um prazer secreto ao vê-la como andava todos os dias , os cabelos muito escuros em desordem, um vestidinho liso e debotado . Nada a diferenciava da

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habitual Lila, uma menina nervosa e descamada. Só me pareceu mais crescida, tão pequenina que era e fizera-se quase tão alta como eu , só um centímetro de diferença, talvez . Mas o que era essa mudança? Eu tinha o peito grande , formas de mulher. Fomos até ao jardim, voltámos para trás , percorremos de novo o ca­ minho até ao jardim. Era cedo , ainda não havia a agitação dos domin­ gos , nem os vendedores de avelãs e amêndoas torradas e de tremoços . Lila fez-me de novo perguntas cautelosas sobre a escola secundária. Disse-lhe o pouco que sabia, mas empolando-o o mais possível . Queria que ela se interessasse , que desejasse ao menos um bocadinho participar naquela minha aventura pelo lado de fora, que sentisse que estava a perder alguma parte de mim , como eu temia sempre perder muito dela. Caminhava do lado da estrada, ela pelo lado de dentro . Falava, e ela ouvia com muita atenção . Depois o 1100 dos Solara pôs-se ao nosso lado , Michele ao volante , Marcello ao lado . Este começou a dizer-nos gracejos . A dizê-los a am­ bas , não só a mim . Trauteava em dialecto frases do tipo: mas que lindas senhorinhas , não se cansam de andar para a frente e para trás , olhem que Nápoles é grande , é a cidade mais bonita do mundo , bonita como vocês , entrem, meia hora apenas e trazemo-las aqui outra vez . Não devia tê-lo feito , mas fiz. Em vez de continuar a andar como se ele não existisse , nem o irmão , nem o carro , em vez de continuar a con­ versar com Lila, ignorando-o , por necessidade de me sentir atraente e afortunada, e quase a ir para a escola dos ricos , onde muito provavel­ mente encontraria rapazes com automóveis mais bonitos do que o dos Solara, voltei-me e disse em italiano: «Obrigada, mas não podemos.» Então , Marcello estendeu a mão . Vi que era larga e curta, embora ele fosse um rapaz alto e bem feito . Os cinco dedos saíram da janela e vie­ ram agarrar-me pelo pulso , enquanto a sua voz dizia: «Trava, Miche , já viste que bela pulseira tem a filha do porteiro?» O carro parou . Os dedos de Marcello em volta do meu pulso arrepe­ laram-me a pele , puxei o braço com nojo. A pulseira partiu-se , caiu entre o passeio e o carro . «Meu Deus , olha o que me fizeste» , exclamei , pensando na minha mãe . «Calma» , disse ele abrindo a porta, e saiu do carro . «Vou repará-la.» Mostrou-se alegre , cordial , tentou agarrar-me outra vez o pulso , co­ mo se quisesse criar uma familiaridade que me acalmasse . Foi num

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ápice . Lila, que fazia metade dele , empurrou-o contra o automóvel e encostou-lhe o trinchete à garganta. Disse com calma, em dialecto: «Toca-lhe outra vez e vais ver o que te acontece .» Marcello imobilizou-se , incrédulo . Michele saiu imediatamente do carro , dizendo em tom tranquilizador: «Ela não te faz nada, Marce , essa puta não tem coragem.» «Vem cá» , disse Lila, «vem cá e vais ver se não tenho coragem.» Michele deu a volta ao carro , e eu comecei a chorar. De onde estava via bem que a ponta do trinchete já ferira a pele de Marcello , um corte de onde saía um fiozinho de sangue . Tenho a cena gravada na memória com nitidez . Ainda fazia muito calor, havia poucos transeuntes, Lila estava encostada a Marcello como se lhe tivesse visto um insecto na cara e lho quisesse enxotar. Fiquei com a mesma absoluta certeza que tive na altura: ela não teria hesitado em cortar-lhe a garganta. Michele também percebeu isso . «Muito bem, sua valente» , disse e , sempre com a mesma calma, qua­ se divertido , meteu-se no carro . «Entra, Marce , pede desculpa às meni­ nas e vamo-nos embora.» Lila desencostou lentamente a ponta da lâmina da garganta de Mar­ cello . Ele fez-lhe um sorriso tímido , tinha o olhar desorientado . «Um momento» , disse . Ajoelhou-se no passeio , na minha frente , como se quisesse pedir per­ dão da forma mais humilhante . Tacteou por baixo do carro, encontrou a pulseira, observou-a e reparou-a, apertando com as unhas a argolinha de prata que se abrira. Entregou-ma, olhando não para mim, mas para Lila. E foi a ela que disse: «Desculpa.» Depois entrou para o carro e partiram . «Comecei a chorar por causa da pulseira, não por ter medo» , disse .

14. A s fronteiras do bairro esbateram-se n o decurso daquele Verão . Uma manhã o meu pai levou-me com ele . Uma vez que me ia matricular na escola secundária, ele quis que eu soubesse bem que transportes tinha de apanhar e quais as ruas por onde devia ir para me dirigir à nova es­ cola em Outubro . Estava um lindo dia claro e ventoso . Senti-me amada, mimada, ao afecto que sentia por ele depressa se juntou uma admiração crescente .

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Conhecia muito bem a enorme extensão da cidade , sabia onde se apa­ nhava o metropolitano , ou um eléctrico , ou um autocarro . Na rua mos­ trava-se muito sociável e de uma cortesia dócil, que em casa quase nunca tinha. Tratava toda a gente com familiaridade , nos transportes públicos , nos escritórios , e arranjava sempre maneira de dar a conhecer ao interlocutor que trabalhava na câmara municipal e que , se quisesse , podia acelerar processos , abrir portas . Passámos o dia inteiro juntos , o único nas nossas vidas , não me re­ cordo de mais nenhum. Dedicou-se muito a mim, como se quisesse transmitir-me em poucas horas tudo o que de útil aprendera ao longo da sua existência. Mostrou-me a Piazza Garibaldi e a estação que estava a ser construída. Dizia que ela era tão modema, sobretudo os pilares , que vinham japoneses do Japão de propósito para estudá-la e fazer uma idêntica no país deles. Mas confessou-me que gostava mais da estação anterior, estava mais afeiçoado a ela. Paciência. Nápoles , dizia ele , era assim desde sempre: corta-se , parte-se , e depois volta-se a fazer, e o dinheiro corre e gera trabalho . Levou-me pelo Corso Garibaldi , até ao edifício onde era a minha futura escola. Tratou do necessário na secretaria com extrema simplici­ dade , tinha o dom de se tomar simpático , dom esse que no bairro e em casa escondia. Gabou a minha extraordinária caderneta escolar a um contínuo cujo padrinho de casamento conhecia bem, como logo desco­ briu . Reparei que repetia muito «tudo em ordem?» , ou «faz-se o que se pode fazer» . Mostrou-me a Piazza Cario III , o Asilo dos Pobres , o Jar­ dim Botânico , a Via Foria, o Museu . Levou-me à Via Costantinopoli , à Port' Alba, à Piazza Dante , à Via Toledo . Fiquei assoberbada com os nomes , com o barulho do trânsito , com as vozes, com as cores , com o ar de festa por todo o lado , com o esforço de guardar tudo na memória para depois contar a Lila, com a habilidade com que ele falava com o vendedor de pizza a quem me comprou uma pizza bem quente com re­ queijão , e com o vendedor de fruta a quem me comprou um pêssego muito amarelo . Seria possível que só o nosso bairro estivesse cheio de conflitos e violência, enquanto o resto da cidade era radioso e benevo­ lente? Levou-me a ver o sítio onde trabalhava, que era na Piazza Municipio . Disse-me que também ali tudo fora renovado , as árvores todas cortadas e rachadas . Vejam agora quanto espaço , a única coisa velha é o Maschio Angioino , mas é bonito , o rapagão , em Nápoles há dois verdadeiros machos , o teu papá e aquele ali . Fomos à câmara, cumprimentou este e

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aquele , era muito conhecido . Com alguns foi jovial , apresentou-me , repetiu pela enésima vez que eu na escola tivera nove em italiano e nove em latim; com outros foi quase mudo , apenas está bem, sim, o senhor manda e eu faço . Por fim anunciou-me que me ia mostrar o Vesúvio de perto , e o mar. Foi um momento inesquecível. Dirigimo-nos para a Via Caracciolo, cada vez mais vento , cada vez mais sol . O Vesúvio era uma forma deli­ cada de tom pastel , aos pés da qual se amontoavam as pedras esbranqui­ çadas da cidade , o perfil cor de terra do Castel dell ' Ovo , e o mar. Mas que mar. Estava muito agitado , ruidoso , o vento cortava a respiração , colava a roupa ao corpo e levantava os cabelos da fronte . Ficámos do outro lado da estrada, juntamente com uma pequena multidão que apre­ ciava o espectáculo . As ondas rolavam como tubos de metal azul , er­ guendo ao alto a clara de ovo da espuma. Depois quebravam-se em mil estilhaços cintilantes e chegavam até à estrada, com um «oh ! » de espan­ to e temor de todos os que observávamos. Que pena Lila não estar ali . Senti-me atordoada pelas fortes rajadas e pelo ruído . Tinha a impressão de que , embora absorvesse muito daquele espectáculo , imensas coisas , demasiadas , se espalhavam em volta sem se deixarem captar. O meu pai apertou-me a mão como se receasse que eu me escapulis­ se . Na verdade apetecia-me largá-lo , correr, afastar-me , atravessar a estrada, deixar-me atingir pelos estilhaços brilhantes do mar. Naquele momento tão tremendo , cheio de luz e de fragor, fiz de conta que estava só no novo da cidade , nova eu também, com a vida inteira pela frente , exposta à fúria inconstante das coisas mas , de certeza, vencedora: eu , eu e Lila, nós duas com aquela capacidade que juntas - apenas juntas tínhamos de pegar na massa de cores , de ruídos , de coisas e pessoas , e expressá-la por palavras e dar-lhe força. Regressei ao bairro como se tivesse ido a uma terra distante . Eis no­ vamente as ruas conhecidas , eis novamente a charcutaria de Stefano e da sua irmã Pinuccia, Enzo a vender fruta, o II 00 dos Solara estaciona­ do em frente do bar, e que agora eu pagaria sei lá o quê para que desa­ parecesse da face da terra. Ainda bem que a minha mãe nada soubera do episódio da pulseira. Ainda bem que ninguém fora contar a Rino aquilo que acontecera. Contei a Lila tudo sobre as ruas , os seus nomes, o fragor, a luz ex­ traordinária. Mas de repente senti-me desconsolada. Se fosse ela a fazer o relato daquele dia, eu ter-me-ia imiscuído com um contracanto indis­ pensável , e, mesmo que não tivesse estado presente , ter-me-ia sentido

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viva e activa, teria feito perguntas , levantado questões , teria tentado demonstrar-lhe que devíamos fazer esse percurso juntas , necessaria­ mente , porque iria enriquecer-lho , seria uma companhia muito melhor do que o pai dela, de longe . Ao passo que ela se limitou a ouvir-me sem curiosidade , e a princípio pensei que assim fizesse por maldade , para tirar força ao meu entusiasmo . Mas tive de convencer-me de que não era assim, ela simplesmente tinha uma linha de pensamento muito sua, que se alimentava de coisas concretas , como um livro ou uma fonte . Com os ouvidos ouvia-me , sem dúvida, mas com os olhos , com a mente , estava solidamente ancorada à rua, às poucas plantas dos jardins, a Gigliola, que andava a passear com Alfonso e Carmela, a Pasquale , que nos fazia adeus dos andaimes da obra, a Melina, que falava de Donato Sarratore em voz alta, enquanto Ada tentava arrastá-la para casa, a Stefano , o bonito filho de dom Achille , que acabava de comprar a Giardinetta e levava a seu lado a mãe , e no banco de trás a irmã Pinuccia, a Marcello e Michele Solara que iam a passar no seu 1100, Michele fazendo de conta que não nos via, enquanto Marcello não se esquecia de nos deitar um olhar cordial , mas sobretudo ao seu trabalho secreto , às escondidas do pai , a que se aplicava para ir para a frente com o projecto dos sapa­ tos . O meu relato , para ela, naquele momento era apenas um conjunto de sinais inúteis de espaços inúteis . Só faria caso daqueles espaços se lhe surgisse a oportunidade de lá ir. E de facto , depois de eu ter falado tanto , ela disse apenas: «Tenho de dizer ao Rino que temos de aceitar o convite do Pasquale Peluso para domingo .» Ora aí está, eu a falar-lhe do centro de Nápoles e ela a pôr no centro a casa de Gigliola, num dos prédios do bairro , onde Pasquale nos que­ ria levar para dançar. Lamentei . Tínhamos sempre aceitado os convi­ tes de Peluso , no entanto nunca lá tínhamos ido , eu , para evitar discus­ sões com os meus pais , e ela, porque Rino era contra . Mas víamo-lo muitas vezes , nos dias de festa, todo asseado , à espera dos amigos , os grandes e os mais pequenos . Era um rapaz generoso , não fazia distin­ ções de idades , acompanhava com todos . Geralmente esperava j unto à bomba de gasolin a e pouco a pouco iam chegando Enzo , Gigliola, e Carmela, que agora queria que lhe chamassem Carmen , e às vezes Rino , se não tivesse mais nada que fazer, e Antonio , que tinha o peso da mãe , Melina , e se Melina estivesse calma vinha também a sua irmã Ada , que os Solara tinham metido no carro e levado sabe-se lá para onde durante uma boa hora. Quando o dia estava. bom iam à praia, e

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voltavam com a cara vermelha do sol . Ou então , o que era mais fre­ quente , reuniam-se em casa de Gigliola, cujos pais eram mais toleran­ tes do que os nossos , e ali , quem sabia dançar dançava, e quem não sabia dançar aprendia. Lila começou a puxar-me para aquelas festarolas , dera-lhe o interesse pela dança não sei como . Tanto Pasquale como Rino , para minha sur­ presa, revelaram-se óptimos dançarinos , e nós aprendemos com eles o tango , a valsa, a polca, a mazurca. Rino , é bom que se diga, como pro­ fessor depressa se enervava, principalmente com a irmã, ao passo que Pasquale era muito paciente . A princípio fez-nos dançar com os pés sobre os dele , para aprendermos bem os passos , e depois , quando já estávamos mais experientes , rodopiávamos pela casa. Descobri que gostava muito de dançar, apetecia-me dançar sempre . Lila, porém, com aquele seu ar de quem quer perceber bem como se faz , dava a impressão de que o seu divertimento consistia só em aprender, tanto que muitas vezes ficava sentada a olhar, estudando-nos , e aplaudia os pares mais acertados . Uma vez que fui a casa dela mostrou-me um livrinho que trouxera da biblioteca, onde estava escrito tudo sobre os passos de dança, e cada movimento era explicado com desenhos de homens e mulheres a dançar. Andava muito alegre nesse tempo , uma exuberância surpreendente nela. Sem mais nem menos agarrou-me pela cintura e, fazendo de homem, obrigou-me a dançar o tango , trauteando a música. Apareceu Rino , que desatou a rir ao ver-nos . Também quis dançar, primeiro comigo e depois com a irmã, embora sem música. Enquanto dançávamos , contou-me que Lila apanhara uma tal mania do perfeccionismo que o obrigava constantemente a exercitar-se, mesmo sem terem gramofone . Mas assim que ele disse aquela palavra - gra­ mofone , gramofone , gramofone - Lila gritou-me de um canto da sala, estreitando os olhos: «Sabes o que essa palavra é?» «Não .» «Grego .» Olhei-a, duvidosa. Rino entretanto largou-me e começou a dançar com a irmã, que deu um grito suave , me entregou o manual de dança e voou pela sala com ele . Pousei o manual ao pé dos outros livros . O que dissera ela? Gramofone era italiano , e não grego . Mas entretanto vi que debaixo de Guerra e paz, com uma etiqueta da biblioteca do professor Ferrara , espreitava um livro esfrangalhado intitulado Gramática Grega . Gramática. Grega. Ouvi que ela me prometia, quase sem fôlego:

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«Depois escrevo-te gramofone em letras gregas .» Disse que tinha que fazer e fui-me embora.

15. Começara a estudar grego ainda antes de eu ir para a escola secundá­ ria? Fizera-o sozinha, quando eu ainda nem pensava em tal coisa, e no Verão , que era tempo de férias? Fazia sempre as coisas que eu havia de fazer, primeiro e melhor do que eu? Fugia de mim quando eu a seguia, mas entretanto ia na minha peugada para me passar à frente? Tentei não me encontrar com ela por uns tempos , fiquei zangada. Fui à biblioteca buscar uma gramática grega, mas só existia uma e fora emprestada por turnos a toda a farm1ia Cerullo . Talvez eu devesse apa­ gar Lila de mim como se fosse um desenho no quadro , pensei , e foi , creio , a primeira vez . Sentia-me frágil , exposta a tudo , não podia passar o meu tempo a segui-la ou a descobrir que ela me seguia, e de uma maneira ou de outra sentir-me diminuída. Mas não consegui , fui logo procurá-la. Deixei que me ensinasse como se fazia a quadrilha. Deixei que me mostrasse que sabia escrever todas as palavras italianas com o alfabeto grego . Quis que eu aprendesse também aquele alfabeto antes de ir para a escola, e obrigou-me a escrevê-lo e a lê-lo . Apareceram-me mais furúnculos . la aos bailes em casa de Gigliola com uma sensação permanente de inferioridade e de vergonha. Esperei que passasse , mas a inferioridade e a vergonha intensificaram­ -se . Uma vez Lila exibiu-se numa valsa com o irmão . Dançavam tão bem juntos que deixámos o espaço todo para eles . Fiquei encantada. Eram bonitos , acertavam bem. Olhando para eles compreendi perfeita­ mente que ela em breve perderia o seu ar de menina-velha, do mesmo modo que se perde um tema musical muito conhecido quando é adapta­ do com demasiada imaginação . Tomara-se sinuosa. A fronte alta, os grandes olhos que se estreitavam de repente , o nariz pequeno , as maçãs do rosto , os lábios , as orelhas , andavam à procura de uma nova orques­ tração e pareciam prestes a encontrá-la. Quando se penteava com o rabo-de-cavalo , o longo pescoço mostrava-se com uma nitidez enterne­ cedora. O peito tinha uns pequenos pomos graciosos , de dia para dia mais visíveis . As costas faziam uma curva profunda antes de chegarem ao arco cada vez mais firme do traseiro . Os tornozelos ainda eram ma­ gros de mais , tornozelos de menina; mas quanto faltaria para se adapta-

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rem à sua actual figura de rapariga? Tive consciência de que os rapazes , contemplando-a enquanto dançava com Rino , viam ainda mais coisas do que eu . Primeiro que todos Pasquale , mas também Antonio e tam­ bém Enzo . Tinham os olhos postos nela, como se as outras tivessem desaparecido . No entanto eu tinha mais peito . No entanto Gigliola tinha uns cabelos loiros deslumbrantes , feições regulares , pernas perfeitas . No entanto Carmela tinha uns olhos lindos e , sobretudo , movimentos provocantes . Mas não havia nada a fazer. O corpo em mutação de Lila começara a emanar qualquer coisa que os machos sentiam, uma energia que os atordoava, como o som já próximo da beleza que se avizinha. Foi preciso que a música se interrompesse para eles voltarem a si , com sor­ risos incertos e aplausos exagerados .

16. Lila era má. Era o que eu continuava a pensar, em qualquer lugar secreto de mim. Já me mostrara que sabia ferir com palavras e também que seria capaz de matar sem hesitação , contudo , essas suas capacida­ des pareciam-me agora de pouca importância. Dizia para comigo: há-de libertar alguma coisa ainda mais malvada, e recorria à palavra malefí­ cio , um vocábulo exagerado que me vinha das histórias da infância. Mas se era o meu lado infantil que desencadeava aqueles pensamentos , o certo é que havia neles um fundo de verdade . E de facto , gradualmen­ te tomou-se claro não só para mim, que a observava desde que andáva­ mos na primeira classe , mas para todos , que emanava de Lila um fluido que não era apenas sedutor mas também perigoso . No final do Verão começaram a aumentar as pressões sobre Rino para que , nas saídas em grupo fora do bairro , para uma pizza , para um passeio , trouxesse consigo a irmã. Rino , porém, queria ter o seu espaço . Também ele me parecia estar a mudar, Lila despertara nele a fantasia e as esperanças . Mas , para quem o via, para quem o ouvia, o efeito não era dos melhores . Tomara-se mais fanfarrão , não perdia uma oportuni­ dade de aludir a como era hábil no seu trabalho e que iria ficar rico; repetia amiúde uma frase que lhe dava prazer: basta pouco , um bocadi­ nho de sorte , para eu mijar na cara dos Solara. Mas para dizer essas gabarolices era indispensável que a irmã não estivesse presente . Na presença dela atrapalhava-se , esboçava algumas frases , mas depois continha-se . Apercebia-se de que Lila o olhava de mau modo , como ele

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estivesse a trair u m pacto secreto de compostura, de distanciamento , e por isso preferia não a ter por perto , já bastava estarem todo o dia a trabalhar juntos na sapataria. Esgueirava-se para se ir exibir como um pavão junto dos amigos . Mas por vezes tinha de se sujeitar. Um domingo, após muitas discussões com os nossos pais, fomos sair (Rino veio generosamente assumir perante os meus pais a responsabilida­ de pela minha pessoa) , imagine-se, à noite. Vimos a cidade iluminada pelos anúncios luminosos , as ruas apinhadas , sentimos o fedor a peixe estragado por causa do calor, mas também o perfume dos restaurantes , das tascas de fritos , dos bares-pastelarias muito mais bem abastecidos do que o dos Solara. Não me recordo se Lila já tivera alguma oportunidade de ir ao centro , com o irmão ou com outros . Mas se tinha ido , tenho a certeza de que não me contara. Do que me recordo bem é que daquela vez se manteve totalmente muda. Atravessámos a Piazza Garibaldi , mas ela fica­ va para trás , demorava-se a olhar para um engraxador, para uma mulhera­ ça toda pintada, para os homens escuros , para os rapazes . Fixava as pes­ soas com muita atenção , olhava-lhes directamente para a cara, de modo que alguns riam-se , outros faziam-lhe um gesto que significava: o que queres? De vez em quando puxava por ela, arrastava-a atrás de mim com medo de nos perdermos de Rino, Pasquale, Antonio , Carmela e Ada. Nessa noite fomos a uma pizzeria do Rettifilo , comemos com alegria. Quis-me parecer que Antonio me cortejava um pouco , vencendo a sua timidez , e fiquei contente , isso equilibrava as atenções de Pasquale com Lila. Mas a certa altura o tipo que fazia a pizza , um homem dos seus trinta anos, começou a fazer voltear a pizza no ar enquanto a amassava, com uma habilidade excessiva, e trocando sorrisos com Lila, que olhava para ele admirada. «Pára com isso» , disse-lhe Rino . «Não estou a fazer nada» , respondeu ela, esforçando-se para olhar para outro lado . Mas as coisas agravaram-se . Pasquale , a rir, disse-nos que o homem que fazia a pizza - que para nós , rapariguinhas , parecia velho , tinha aliança no dedo , era pai de filhos com certeza - atirara às escondidas um beijo a Lila, soprando-o na ponta dos dedos. Virámo-nos todos para olhar para ele . Estava ocupado com o seu trabalho e mais nada. Mas Pasquale perguntou a Lila, sempre a rir: «É verdade , ou estou enganado?» Lila, com uma risadinha nervosa a contrastar com o sorriso generoso de Pasquale , respondeu:

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«Eu não vi nada.» «Deixa estar, Pascà» , disse Rino , fulminando a irmã com o olhar. Mas Peluso levantou-se , foi ao balcão do fomo , olhou em volta e , com o seu sorriso cândido nos lábios , deu uma bofetada na cara do ho­ mem , atirando-o contra a boca do fomo . O dono do estabelecimento , um homem na casa dos sessenta, peque­ no e pálido , acorreu imediatamente , e Pasquale explicou-lhe com calma que não era preciso preocupar-se , que se limitara a fazer compreender ao seu empregado uma coisa que era pouco clara para ele , e que agora não haveria mais problemas . Acabámos de comer a pizza em silêncio , de olhos baixos, com dentadas lentas , como se estivesse envenenada. E quando saímos Rino deu um grande raspanete a Lila, terminando com uma ameaça: continua assim e nunca mais te trago . O que é que se passava? Na rua, os homens com quem nos cruzáva­ mos olhavam para todas nós , bonitas , bonitinhas , feias , e não tanto os jovens como os homens feitos . Acontecia assim no bairro e fora dele , e Ada, Carmela, e eu própria - principalmente depois do incidente com os Solara - tínhamos aprendido instintivamente a manter os olhos baixos , a fingir que não ouvíamos as porcarias que eles nos diziam e seguir em frente . Lila, não . Ir passear com ela ao domingo tomou-se um motivo de permanente tensão . Se alguém olhava para ela, ela retribuía o olhar. Se alguém lhe dizia qualquer coisa, ela parava, perplexa, como se não acreditasse que estavam a falar com ela, e por vezes respondia, intrigada. Até porque , coisa fora do normal , quase nunca lhe dirigiam as obscenidades que habitualmente nos reservavam. Uma tarde de fim de Agosto fomos até à Villa Comunale , onde nos sentámos à mesa de um bar porque Pasquale , que naquele tempo se comportava como um nababo , quis oferecer um spumone a todos . À nossa frente estava uma farru1ia a comer gelado à mesa, como nós : pai , mãe e três filhos , com idades entre os doze e os sete . Parecia gente res­ peitável . O pai , um homem forte , dos seus cinquenta, tinha ar de profes­ sor. E posso jurar que Lila não trazia nada que desse nas vistas: não pusera bâton e as roupas que vestia eram as mesmas de sempre, que a mãe lhe fazia. Mais vistosas estávamos nós , sobretudo Carmela. Mas aquele senhor - desta vez todos nós reparámos - não conseguia tirar os olhos dela, e Lila, embora tentando controlar-se , correspondia ao olhar como se não se capacitasse de que estava a ser admirada. Por fim, enquanto à nossa mesa o nervosismo de Rino , Pasquale e Antonio cres­ cia, o homem, evidentemente sem se dar conta do risco que corria,

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levantou-se , parou na frente de Lila e , dirigindo-se educadamente aos rapazes , disse: «Vocês são afortunados. Têm aqui uma rapariga que virá a ser mais bela do que uma Vénus de Botticelli . Peço desculpa, mas já disse isto à minha mulher e aos meus filhos , e senti necessidade de o dizer também a VÓS .» Lila desatou a rir devido à tensão nervosa. O homem por sua vez sorriu , fez-lhe uma vénia discreta e ia regressar à sua mesa quando Rino o agarrou pelo colarinho , o fez percorrer a distância a correr, o sentou à força e , diante da mulher e dos filhos , descarregou sobre ele uma série de insultos , como os dizíamos no bairro . O homem zangou-se , a mulher gritou metendo-se no meio , e Antonio puxou Rino dali para fora. Mais um domingo estragado . Mas o pior aconteceu uma vez que Rino não estava. O que me espan­ tou não foi o facto em si , mas a adesão em tomo de Lila de tensões de proveniência diversa. A mãe de Gigliola, no dia do santo do seu nome (chamava-se Rosa, se bem me lembro) , deu uma festa com pessoas de todas as idades . Como o marido era o pasteleiro da pastelaria Solara, foi tudo feito em grande: havia profiteroles em abundância, pãezinhos de cassata , pastéis folhados , bolos de amêndoa, licores , bebidas para crian­ ças e discos de música de dança, dos mais corriqueiros aos da última moda. Veio gente que às nossas festarolas de jovens nunca teria vindo . Por exemplo , o farmacêutico com a mulher e o filho mais velho , Gino , quase a entrar para a secundária como eu . Por exemplo , o professor Ferraro e a sua numerosa farm1ia. Por exemplo Maria, a viúva de dom Achille , com o filho Alfonso e a filha Pinuccia, muito colorida, e tam­ bém Stefano . Estas últimas presenças de início causaram grandes tensões . Também lá estavam Pasquale e Carmela Peluso, os filhos do assassino de dom Achille . Mas depois tudo se compôs da melhor maneira. Alfonso era um rapaz simpático (também ia para a secundária, na mesma escola que eu) e até trocou algumas palavras com Carmela. Pinuccia estava sobretudo contente por ter ido a uma festa, pois sacrificava-se a trabalhar diaria­ mente na charcutaria. Stefano percebera precocemente que o comércio se baseia na ausência de discriminações , considerando todos os habitan­ tes do bairro potenciais clientes que iriam gastar dinheiro na sua loja. Geralmente abria o seu bonito e simpático sorriso para toda a gente , por isso limitou-se a evitar cruzar, um só instante que fosse , o seu olhar com o de Pasquale . Maria, que , por regra, se via a senhora Peluso , virava a

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cara para o outro lado , ignorou por completo os dois jovens e tagarelou muito tempo com a mãe de Gigliola. Aquilo que mais contribuiu para diluir as tensões foi o facto de termos começado a dançar sem demora; a algazarra aumentou e ninguém fez caso de mais nada. Primeiro foram as danças tradicionais e depois passámos para uma nova dança, o rock and rol!, pela qual todos , dos velhos às crianças , ti­ nham grande curiosidade . Eu , encalorada, retirei-me para um canto . É claro que já sabia dançar o rock and roll, já o dançara muitas vezes em casa, com o meu irmão Peppe , e em casa de Lila, ao domingo , com ela, mas sentia-me muito desajeitada para aqueles movimentos rápidos e ágeis , e , embora de má vontade , decidi ficar a olhar. Aliás , Lila também não me parecera muito em forma. Mexia-se de modo um pouco ridícu­ lo , chegara a dizer-lho , e ela tomara a crítica como um desafio e insisti­ ra em treinar-se sozinha, uma vez que Rino se recusava a dançá-lo . Mas , perfeccionista como era em todas as coisas , naquela noite decidiu tam­ bém, para minha satisfação , ficar de fora, a meu lado , a ver como Pas­ quale e Carmela Peluso dançavam bem. Mas a certa altura Enzo aproximou-se dela. O garoto que nos atirara pedras , que de surpresa competira com Lila em aritmética, que uma vez lhe oferecera uma coroa de sorvas , ao longo dos anos era como se tives­ se sido absorvido por um organismo de baixa estatura mas forte , habi­ tuado ao trabalho duro . De aspecto parecia mais velho do que Rino , que de todos nós era o que tinha mais idade . Via-se bem nas suas feições que se levantava antes de alvorecer, que tinha de lidar com a camorra do mercado de fruta e hortaliças , e que andava em todas as estações , com frio , debaixo de chuva, a vender fruta e hortaliça com a carroça, calcor­ reando as ruas do bairro . Mas no seu rosto de loiro em que tudo era claro , sobrancelhas e pestanas loiras , olhos azuis , havia ainda um res­ quício do menino rebelde de quem tivéramos de nos defender. No resto , Enzo era de poucas palavras mas tranquilas , todas em dialecto , não teria passado pela cabeça de nenhuma de nós trocar piadas com ele , manter uma conversa. Foi ele que tomou a iniciativa. Perguntou a Lila porque não dançava. Ela respondeu: porque ainda não sei dançar bem esta mú­ sica. Ele ficou calado , e depois disse: eu também não . Mas quando pu­ seram a tocar outro rock and rol!, pegou-lhe num braço com naturalida­ de e levou-a para o meio da sala. Lila, que se alguém lhe tocava sem ela permitir saltava para o lado como se lhe tivesse picado uma vespa, não reagiu , tanta era, evidentemente , a vontade que tinha de dançar. Olhou­ -o com gratidão e entregou-se à música.

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Viu-se imediatamente que Enzo não sabia dançar grande coisa. Me­ xia-se pouco , de modo sério e compassado , mas estava muito atento a Lila, pretendia claramente dar-lhe prazer, permitir que ela se exibisse . E ela, embora não fosse tão exímia como Carmen , conseguiu como sem­ pre captar a atenção de todos . Até Enzo gosta dela, pensei desolada. E - reparei imediatamente - até Stefano , o dono da charcutaria. Olhou para ela o tempo todo como se olha para uma diva no cinema. Mas , justamente quando Lila estava a dançar com ele , chegaram os irmãos Solara. Bastou-me vê-los para ficar agitada. Foram cumprimentar o pastelei­ ro e a mulher, deram uma palmada amigável a Stefano e depois puse­ ram-se também a observar os dançarinos . Primeiro , à maneira de donos do bairro , que era o que se sentiam, deitaram um olhar carregado a Ada, que desviou o olhar; depois segredaram, indicaram um ao outro Anto­ nio , e fizeram-lhe um gesto de saudação exagerado que ele fingiu não ver; por fim repararam em Lila, fixaram-na durante muito tempo , disse­ ram qualquer coisa ao ouvido um do outro e Michele fez um visível sinal de concordância. Não os perdi de vista e não foi preciso muito para perceber que , so­ bretudo Marcello - Marcello , que agradava a todas - , parecia não estar zangado por causa da cena do trinchete . Muito pelo contrário . Em poucos segundos foi completamente cativado pelo corpo flexível e ele­ gante de Lila, pelo seu rosto fora do comum para o bairro e talvez para toda a cidade de Nápoles . Nunca mais tirou os olhos dela, como se ti­ vesse perdido o pouco tino que tinha. Continuou a olhar para ela mesmo quando a música terminou . Aconteceu tudo num ápice . Enzo tentou impelir Lila para o canto onde eu estava, Stefano e Marcello avançaram ao mesmo tempo para convidá-la para dançar, mas Pasquale antecipou-se-lhes . Lila deu um saltinho gracioso de consentimento e bateu as palmas , feliz . Foi mesmo isto que se passou . Quatro homens de idades variadas moveram-se ao mesmo tempo na direcção daquela figurinha de rapariga de catorze anos , cada um deles convencido , de modo diferente , do seu poder abso­ luto . A agulha raspou o disco , a música começou . Stefano , Marcello e Enzo recuaram, duvidosos . Pasquale começou a dançar com Lila e , dada a excelência do dançarino , ela imediatamente se desenfreou . Nessa altura Michele Solara, ou por amor ao irmão , ou pelo simples gosto de armar desordem, decidiu complicar a situação à sua maneira. Deu uma cotovelada a Stefano e disse-lhe em voz alta:

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«Mas tu tens sangue na guelra, ou não? Aquele é o filho do homem que matou o teu pai , é um comunista de merda, e ficas aqui parado a vê-lo dançar com a miúda com quem tu querias dançar?» Pasquale de certeza não ouviu , porque a música estava alta e ele es­ tava ocupado a fazer acrobacias com Lila. Mas eu ouvi , e ouviu Enzo , que estava ao pé de mim, e ouviu Stefano , naturalmente . Esperámos que acontecesse qualquer coisa, mas não aconteceu nada. Stefano era um rapaz atilado . A charcutaria ia de vento em popa, ele planeava comprar um espaço ao lado para ampliá-la, ou seja, sentia-se afortunado , ou mesmo certo de que a vida lhe daria tudo o que desejava. Disse a Mi­ chele , com o seu sorriso encantador: «Deixemo-lo dançar, ele dança bem» , e continuou a olhar para Lila, como se a única coisa que lhe importasse naquele momento fosse ela. Michele fez um trejeito de desagrado e foi à procura do pasteleiro e da mulher. O que queria ele fazer agora? Vi-o a falar com os donos da casa de modo agitado , apontava para o canto onde estava Maria, apontava para Stefano , Alfonso e Pinuccia, apontava para Pasquale que estava a dan­ çar, apontava para Carmela que se exibia com Antonio . Assim que a música acabou , a mãe de Gigliola deu o braço a Pasquale cordialmente , levou-o para um canto e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido . «Vai» , disse Michele ao irmão , a rir, «O caminho está livre» . E Mar­ cello Solara voltou à carga com Lila. Tinha a certeza de que ela lhe diria que não , sabia como o detestava. Mas não foi assim que aconteceu . A música recomeçou e ela, com a vontade de dançar em cada músculo , primeiro procurou Pasquale com o olhar, depois , não o vendo , agarrou a mão de Marcello como se fosse apenas uma mão , como se a seguir não existisse um braço e todo o cor­ po dele , e , a transpirar, recomeçou a fazer o que naquele momento mais contava para ela: dançar. Olhei para Stefano , olhei para Enzo . Estava tudo sob tensão . Enquan­ to o coração me batia de ansiedade , Pasquale , sisudo , aproximou-se de Carmela e disse-lhe qualquer coisa com modos bruscos . Carmela pro­ testou em voz baixa, e ele em voz baixa mandou-a calar. Antonio apro­ ximou-se deles , falou com Pasquale . Olharam os dois de través para Michele Solara, que conversava de novo com Stefano , e para Marcello , que dançava com Lila, puxando-a, elevando-a, baixando-a. Depois An­ tonio foi buscar Ada à zona de dança. A música terminou , Lila voltou para o pé de mim. Eu disse-lhe:

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«Passa-se qualquer coisa, é melhor irmo-nos embora.» Ela riu-se e exclamou: «Vou dançar mais uma música, nem que venha um terremoto» , e olhou para Enzo, que estava encostado a uma parede . Mas entretanto , Marcello convidou-a mais uma vez e ela deixou-se arrastar de novo pela dança. Pasquale veio até junto de mim e disse-me , com ar sombrio , que tí­ nhamos de nos ir embora. «Esperemos que a Lila termine esta dança.» «Não , imediatamente» , disse ele num tom que não admitia respostas , duro , indelicado . Depois foi de encontro a Michele Solara, e bateu-lhe com força com o ombro . O outro riu-se e disse-lhe qualquer obscenida­ de entre dentes . Pasquale dirigiu-se para a porta da casa, seguido por Carmela, relutante , e por Antonio que puxava por Ada. Voltei-me para ver o que Enzo fazia, mas ele continuou encostado à parede a ver Lila dançar. A música terminou . Lila dirigiu-se para mim seguida por Marcello , cujos olhos brilhavam de satisfação . «Temos de nos ir embora» , quase gritei , enervada. Devo ter revelado tanta angústia na voz que ela finalmente olhou em volta, como se tivesse acordado . «Está bem, vamos» , disse , perplexa. Encaminhei-me para a porta sem esperar mais , a música recomeçou . Marcello Solara agarrou Lila por um braço , dizendo-lhe , entre o riso e a súplica: «Fica, eu levo-te a casa.» Lila, como se só então o reconhecesse , olhou-o incrédula, parecia-lhe impossível ele estar a tocar-lhe com tanta confiança. Tentou libertar o braço , mas Marcello agarrou-a com força, dizendo: «Só mais uma dança.» Enzo desencostou-se da parede e agarrou o pulso de Marcello sem dizer uma palavra. Ainda estou a vê-lo . Estava calmo , e apesar de ser mais novo e mais baixo , parecia não estar a fazer o menor esforço . A força do aperto só se revelou no rosto de Marcello Solara, que soltou Lila com um esgar de dor e agarrou imediatamente o pulso com a outra mão . Enquanto nos dirigíamos para a saída, ouvi Lila dizer indignada a Enzo , em dialecto puro: «Tocou-me , viste? A mim , aquele merdoso . Ainda bem que o Rino ali não estava. Se o fizer mais alguma vez , é um homem morto .» Seria possível que não se tivesse apercebido de ter dançado com Marcello duas vezes? É possível , ela era assim mesmo .

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Lá fora encontrámos Pasquale , Antonio , Carmela e Ada. Pasquale estava fora de si , nunca o tínhamos visto assim. Gritava insultos , gritava a plenos pulmões , com olhos de louco , e não havia maneira de o acal­ mar. Tinha raiva a Michele , sim, mas sobretudo a Marcello e Stefano . Dizia coisas que nós não tínhamos elementos para compreender. Dizia que o bar Solara sempre havia sido um lugar de camorristas usurários , que era a base para o contrabando e para recolher os votos da Estrela e Coroa, dos monárquicos . Dizia que dom Achille fora espião dos nazi­ -fascistas , dizia que o dinheiro com que Stefano desenvolvera a charcu­ taria fora ganho pelo pai no mercado negro . Gritava: «Ü meu pai fez bem em matá-lo.» E gritava: «Os Solara, pai e filhos , encarrego-me eu de lhes cortar as goelas , e depois apago também da face da terra Stefano e o resto da farm1ia.» E por fim gritou , voltando-se para Lila, como se fosse a coisa mais grave: «E tu , tu até foste dançar com aquele pulha.» Nesse instante , como se a fúria de Pasquale lhe tivesse bombeado fôlego para o peito , também Antonio começou a gritar, e quase parecia que estava zangado com Pasquale , porque queria privá-lo de uma ale­ gria: a alegria de ser ele a matar os Solara, por aquilo que haviam feito a Ada. E Ada começou a chorar e Carmela não conseguiu conter-se mais, debulhou-se em lágrimas também. Enzo tentou convencer-nos a todos a sair da rua. «Vamos dormir» , disse . Mas Pasquale e Antonio calaram-no , queriam ficar para enfrentar os Solara. Enfurecidos , repeti­ ram várias vezes a Enzo , fingindo calma: «Vai tu , vai , vemo-nos ama­ nhã.» Então Enzo disse baixinho: «Se vocês ficam, também fico.» Nesse momento fui eu que desatei a chorar e , segundos depois - o que me perturbou ainda mais - , foi Lila, que eu ainda nunca tinha visto chorar. Éramos já quatro raparigas lavadas em lágrimas , e lágrimas desespe­ radas . Mas Pasquale só amansou quando viu Lila a chorar. Disse , em tom resignado: «Pronto , esta noite não , resolvo o assunto dos Solara noutra altura, vamos .» Por entre soluços , eu e Lila demos-lhe logo o braço e arrastámo-lo dali . Dissemos-lhe muito mal dos Solara para o consolar, mas também frisámos que o melhor era fazer de conta que não existiam. Depois Lila perguntou , enxugando as lágrimas com as costas da mão: «Quem são os nazi-fascistas , Pascà? Quem são os monárquicos? O que é o mercado negro?»

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17. É difícil dizer o que as respostas de Pasquale fizeram a Lila, corro o risco de errar ao contá-lo , até porque sobre mim, na altura, elas não ti­ veram qualquer efeito concreto . Mas ela, à sua maneira habitual , ficou transtornada e alterada por causa disso , de tal forma que até ao final do Verão me massacrou com uma única ideia, para mim insuportável . Em linguagem de hoje, tentarei resumir assim: não há gestos, palavras , sus­ piros , que não contenham a soma de todos os crimes que os seres huma­ nos cometeram e cometem. Ela, evidentemente , dizia-o de outra maneira. Mas o que importa é que foi tomada pelo frenesim da revelação total . Quando saíamos indicava-me as pessoas , as coisas , as ruas , e dizia: «Aquele foi à guerra e matou , aquele espancou e deu a beber óleo de rícino , aquele denunciou uma quantidade de pessoas , aquele até a mãe fez passar fome , naquela casa torturaram e mataram, sobre esta pedra marcharam e fizeram a saudação romana, nesta esquina açoitaram, o dinheiro destes vem-lhes da fome daqueles , este automóvel foi compra­ do com a venda de carne estragada e pão contendo pó de mármore no mercado negro , aquele talho nasceu do roubo de cobre e de assaltos a comboios de mercadorias , na origem daquele bar está a camorra, o con­ trabando , a usura.» Depressa se sentiu insatisfeita com Pasquale . Era como se ele tivesse accionado um mecanismo na cabeça dela e agora a sua tarefa fosse pôr em ordem uma remessa caótica de sugestões . Cada vez mais tensa e mais obcecada, provavelmente ela própria dominada pela urgência de se sentir encerrada numa visão compacta, sem fissuras , completou as insu­ ficientes informações dele com alguns livros que encontrou na bibliote­ ca. E assim deu motivações concretas e rostos comuns ao clima de tensão abstracta que desde pequenas havíamos respirado no bairro . O fascismo , o nazismo , a guerra, os aliados , a monarquia, a república, ela transformou-os em ruas , casas , rostos , dom Achille e o mercado negro , Peluso o comunista, o avô camorrista dos Solara, o pai Silvio , um fas­ cista ainda pior do que os filhos Marcello e Michele , e o seu pai , Fer­ nando , o sapateiro , e o meu pai , todos, todos , todos aos seus olhos manchados até ao tutano por culpas tenebrosas , todos eles criminosos empedernidos ou cúmplices condescendentes , todos comprados com farelos . Ela e Pasquale encerraram-me num mundo terrível que não dava escapatória.

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Depois Pasquale começou a ficar calado , também ele derrotado pela capacidade de Lila de ligar uma coisa à outra, formando uma corrente que nos apertava por todos os lados . Via-os passear juntos com frequên­ cia, e se a princípio era ela que ficava suspensa dos lábios dele , agora era ele que ficava suspenso dos lábios dela. Está apaixonado , pensava eu . E depois pensava: também Lila se apaixonará, depois namoram, depois casam-se , continuarão a falar destas questões políticas , e terão filhos que por sua vez falarão das mesmas questões . Quando recomeçou a escola, por um lado sofri muito porque sabia que já não disporia de tempo para Lila, mas por outro esperei desligar-me daquela sua avalia­ ção dos delitos e das cumplicidades e das cobardias das pessoas que conhecíamos , que amávamos , que trazíamos - eu , ela, Pasquale , Rino , todos nós - no sangue .

18. Os dois anos de escola secundária foram muito mais trabalhosos do que a escola média. Fui parar a uma turma de quarenta e dois alunos , uma das raríssimas turmas mistas daquela escola. As raparigas eram pouquíssimas , não conhecia nenhuma. Gigliola, depois de muitas gaba­ rolices («Sim, também vou para a escola secundária, de certeza, ficamos na mesma carteira») , acabou por ir ajudar o pai na pastelaria dos Solara. Dos rapazes , sim, conhecia Alfonso e Gino , mas sentaram-se juntos numa das primeiras carteiras , cotovelo com cotovelo , com ar assustado , e quase fizeram de conta que não me conheciam. A sala tresandava, um pivete ácido a suor, a pés sujos , a medo . Durante os primeiros meses vivi a minha nova vida escolar em silên­ cio , sempre com os dedos na testa ou nas faces cheias de acne . Sentada numa das filas de trás de onde mal via, não só os professores como o que escreviam no quadro , era uma desconhecida para a minha compa­ nheira de carteira, assim como ela era uma desconhecida para mim . Graças à professora Oliviero depressa obtive o s livros de que precisava, sujos e muito usados. Impus a mim própria uma disciplina que aprende­ ra na escola média: estudava toda a tarde , até à hora de jantar, e depois , das cinco da manhã até às sete , quando eram horas de ir para a escola. À saída de casa, carregada de livros , encontrava muitas vezes Lila, que ia a correr para ir abrir a loja, varrê-la, lavá-la, pôr tudo em ordem antes que chegassem o pai e o irmão . Ela interrogava-me acerca das discipli-

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nas que tinha nesse dia e o que tinha estudado , e queria respostas preci­ sas . Se não lhas desse , atormentava-me com perguntas que me punham ansiosa com medo de não ter estudado o suficiente , e de não ser capaz de responder aos professores, como não era capaz de lhe responder a ela. Em certas manhãs frias , quando me levantava ainda de madrugada e revia as lições na cozinha, tinha a impressão de estar, como de costu­ me , a sacrificar o sono quente e profundo da manhã para fazer boa figu­ ra com a filha do sapateiro , mais do que com os professores da escola dos ricos . Até o pequeno-almoço era a correr por culpa dela. Engolia à pressa o leite e o café e corria para a rua, para não perder nem um metro do trajecto que fazíamos juntas . Esperava à porta. Via-a vir do prédio onde morava e constatava que ela continuava a mudar. Já era mais alta do que eu . O seu andar já não era o da menina magricela que fora até alguns meses antes , como se , ao tornear-se-lhe o corpo , também o passo se tivesse tomado mais suave . Olá, olá, e começávamos logo a falar. Quando parávamos no cruzamen­ to e nos despedíamos - ela ia para a sapataria e eu para a estação do metropolitano - , ia-me virando para trás para lhe deitar um último olhar. Uma vez ou duas vi Pasquale chegar junto dela ofegante e acom­ panhá-la. O metropolitano ia apinhado de rapazes e raparigas , imundos de sono e do fumo dos primeiros cigarros . Eu não fumava, não falava com nin­ guém. Nos poucos minutos do percurso revia as lições aterrorizada, metia freneticamente na cabeça linguagens estranhas , tons diferentes dos que se usavam no bairro . Vivia apavorada com o possível insucesso na escola, com o espectro vesgo da minha mãe insatisfeita, da carranca da professora Oliviero . Contudo , tinha agora uma única ideia firme: arranjar um namorado , imediatamente , antes que Lila me anunciasse que andava com Pasquale . De dia para dia era mais forte a angústia de não ir a tempo . Receava, ao voltar da escola, encontrá-la e ficar a saber, da sua própria boca, que já fazia amor com Peluso . E se não fosse ele , era Enzo . E se não fosse Enzo , era Antonio . Ou até , sei lá, Stefano Carracci , o dono da charcuta­ ria, ou mesmo Marcello Solara. Lila era imprevisível . Os tipos que an­ davam atrás dela eram quase homens, cheios de exigências . Por isso , entre o projecto dos sapatos , as leituras sobre o mundo horrível em que caíramos ao nascer, e os namorados , deixaria de ter tempo para mim. Por vezes , no regresso da escola, dava uma grande volta para não passar em frente da sapataria. Se por acaso a avistava de longe , metia por outra

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rua, angustiada. Mas depois não resistia e ia ao encontro dela, como de uma fatalidade . À entrada e à saída do liceu , um enorme edifício cinzento e escuro , em péssimas condições , olhava para os rapazes . Olhava com insistência, para eles sentirem o meu olhar e olharem para mim. Olhava para os meus colegas da secundária, alguns ainda de calções , outros de calças à zuava ou compridas . Olhava para os mais velhos , os do liceu , quase todos de casaco e gravata, nunca de sobretudo , tinham de provar, sobre­ tudo a si próprios , que não tinham frio: cabelo à escovinha, nucas bran­ cas por causa do pescoço bem rapado . Preferia esses , mas também me contentava com um do ano acima do meu , o essencial era que usasse calças compridas . Um dia reparei num aluno por causa do seu andar desengonçado , muito magro , cabelos castanhos desalinhados , um rosto que achei boni­ to e com qualquer coisa de familiar. Quantos anos podia ter? Dezasseis , dezassete? Observei-o bem, olhei mais uma vez e o meu coração parou . Era Nino Sarratore , o filho de Donato Sarratore , o ferroviário-poeta. Também olhou para mim, mas distraído , não me reconheceu . O casaco estava deformado nos cotovelos , estreito de costas , as calças puídas , os sapatos cambados . Não apresentava qualquer sinal de abastança, como se via em Stefano e, sobretudo , nos Solara. O pai , embora tivesse escri­ to um livro de poemas , era óbvio que ainda não ficara rico . Fiquei muito perturbada por causa daquela aparição inesperada. À saída pensei em ir a correr contar à Lila, o impulso foi muito forte , mas depois mudei de ideias . Se lhe contasse , de certeza que me pedia para ir comigo à escola, para vê-lo . E já sabia o que aconteceria. Nino não re­ parara em mim, não reconhecera a menina loira e esbelta da primária na adolescente de catorze anos , gorda e furunculosa, em que me transfor­ mara, mas reconheceria imediatamente Lila e ficaria fascinado . Decidi dedicar-me à imagem de Nino Sarratore em silêncio , quando ele saía da escola de cabeça em baixo , com um andar bamboleante , e seguia pelo Corso Garibaldi . A partir daquele dia fui para a escola como se vê-lo , ou apenas entrevê-lo , fosse a verdadeira razão para lá ir. O Outono voou . Uma manhã fui interrogada sobre a Eneida , foi a primeira vez que fui chamada ao estrado . O professor, um tal Gerace , homem dos seus sessenta anos , indolente , sempre a bocejar ruidosa­ mente , desatou a rir assim que eu pronunciei «oraculo» em vez de «orá­ culo» . Não lhe ocorreu que eu , embora conhecesse o significado da palavra, vivia num mundo onde nunca ninguém tivera motivo para

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pronunciá-la. Todos se riram, principalmente Gino , ali na primeira fila ao lado de Alfonso . Senti-me humilhada. Passaram-se uns dias e fize­ mos o primeiro trabalho de Latim. Quando Gerace trouxe os trabalhos corrigidos , perguntou: «Quem é a Greco ?» Levantei a mão . «Vem cá.» Fez-me uma série de perguntas sobre as declinações , sobre os verbos, sobre a sintaxe . Respondi aterrorizada, sobretudo porque ele olhava para mim com uma atenção que até àquele momento nunca dispensara a nenhum de nós . Depois entregou-me a folha sem qualquer comentá­ rio . Tive nove . A partir daí foi um crescendo . No trabalho de Italiano deu-me oito , em História não errei uma data, em Geografia soube na perfeição super­ fícies , populações , riquezas do subsolo , agricultura. Mas sobretudo em Grego , deixei-o de boca aberta. Graças àquilo que aprendera com Lila, mostrei uma familiaridade com o alfabeto , uma destreza na leitura, uma desenvoltura na fonética, que finalmente arranquei um louvor público ao professor. As minhas qualidades atingiram os outros professores como um dogma. Até o professor de Religião me chamou à parte , uma manhã, e me perguntou se eu me queria inscrever num curso gratuito de Teologia por correspondência. Disse que sim. Por alturas do Natal já todos me chamavam Greco e alguns Elena. Gino começou a demorar-se à saída, a esperar por mim , para voltarmos juntos para o bairro . Um dia perguntou-me outra vez se podíamos ser namorados e eu , embora ele fosse um palerma, dei um suspiro de alívio . Sempre era melhor que nada. Aceitei . Toda aquela exaltante tensão teve uma pausa durante as férias do Natal . Fui reabsorvida pelo bairro , tive mais tempo , vi Lila mais vezes . Descobrira que eu estudava inglês e , naturalmente , arranjara uma gra­ mática. Já conhecia imensas palavras , que pronunciava de modo impre­ ciso , e é claro que a minha pronúncia não era melhor. Mas ela atormen­ tava-me , dizia-me : quando recomeçar a escola pergunta ao professor como se pronuncia isto , como se pronuncia aquilo . Um dia levou-me à loja e mostrou-me uma caixa de metal cheia de pedacinhos de papel . Em cada um deles escrevera de um lado a palavra em italiano , e do outro a palavra inglesa equivalente: lápis!pencil, perceber/to unders­ tand, sapato!shoe . Fora o professor Ferraro que a aconselhara a fazer assim , uma óptima maneira de aprender vocabulário . Lia-me o lado em

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italiano e queria que eu lhe dissesse o equivalente em inglês . Mas eu sabia pouco ou nada. Vi que parecia estar mais adiantada do que eu em tudo , como se an­ dasse numa escola secreta. Notei também nela uma certa tensão , queren­ do mostrar-me que estava à altura daquilo que eu estudava. Mas , para dizer a verdade , eu preferia falar de outras coisas . Mas ela interrogou-me sobre as declinações gregas , e depressa deduziu que eu ia ainda na pri­ meira, ao passo que ela já sabia a terceira. Também me fez perguntas sobre a Eneida , apaixonara-se por ela. Em poucos dias a lera toda, en­ quanto eu , na escola, ia a meio do segundo livro . Falou-me pormenori­ zadamente de Dido , figura sobre quem eu nada sabia, ouvi esse nome pela primeira vez da boca dela, e não na escola. E uma tarde puxou de um comentário que me impressionou muito . Disse: «Se não houver amor, não é só a vida das pessoas que se toma árida, mas também a das cidades.» Não me recordo como ela se expressou exactamente , mas a ideia era essa, e eu associei-a às nossas ruas sujas , aos jardins cheios de poeira, aos campos destruídos pelos novos prédios , à violência em cada casa, em cada farm1ia. Receei que ela recomeçasse a falar-me de fascis­ mo , nazismo , comunismo . E não resisti , quis dar-lhe a saber que estavam a acontecer-me coisas boas , e disse-lhe tudo de um fôlego; primeiro , que namorava com Gino , e segundo , que na minha escola andava Nino Sar­ ratore , ainda mais bonito agora do que era na primária. Semicerrou os olhos, temi que fosse dizer-me: também eu namoro . Mas não , começou a gozar comigo . «Fazes amor com o filho do farma­ cêutico» , disse , «esperta, rendeste-te , apaixonaste-te como a amada de Eneias» . Depois passou bruscamente de Dido para Melina e falou-me muito sobre ela, uma vez que eu pouco ou nada sabia do que acontecia nos prédios , pois de manhã tinha escola e à noite estudava até tarde . Contou-me coisas sobre a sua parente , como se nunca a perdesse de vista. Vivia na miséria com os filhos , por isso continuava a lavar as es­ cadas dos prédios , juntamente com Ada (o dinheiro que Antonio levava para casa não chegava) . Mas já não se a ouvia cantar, passara-lhe a eu­ foria, agora trabalhava que nem uma máquina. Descreveu-ma em por­ menor. Dobrada em duas , começava do último andar e ia passando com as mãos o trapo molhado , lanço após lanço , degrau após degrau , com uma energia e uma agitação capazes de arrasar pessoas mais robustas do que ela. Se alguém descia ou subia, começava a gritar insultos, atirava­ -lhe o trapo . Contara-lhe Ada que uma vez vira a mãe no auge de uma crise , por lhe terem estragado o trabalho com pegadas , beber a água

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suja do balde , e tivera de lho arrancar das mãos . Estão a perceber? Pas­ so a passo , de Gino foi parar a Dido , e a Eneias que a abandonou . E só naquela altura é que trouxe à baila Nino Sarratore , sinal de que me es­ cutara com atenção . «Conta-lhe a respeito de Melina» , incitou-me , «e diz-lhe que deve contar ao pai» . Depois acrescentou , com maldade: «Pois é muito fácil escrever poemas» . Por fim começou a rir e prometeu com uma certa solenidade: «Eu nunca me apaixonarei por ninguém, e nunca, nunca, nunca hei-de escrever um poema» . «Não acredito .» «É verdade .» «Mas haverá quem se apaixone por ti .» «Pior para eles .» «Sofrerão , como essa tal Dido .» «Não , irão enamorar-se de outra, como fez Eneias , que no fim se juntou à filha de um rei .» Mostrei-me pouco convencida. Fui-me embora, depois voltei , agora que tinha um namorado , aquelas conversas agradavam-me . Uma vez perguntei-lhe , com cautela: «Ü Marcello Solara, que faz ele , anda atrás de ti?» «Sim.» «E tu?» Fez um meio sorriso de desprezo , que significava: Marcello Solara mete-me nojo. «E o Enzo ?» «Somos amigos .» «E o Stefano?» «Na tua opinião , pensam todos em mim?» «Sim.» «Ü Stefano atende-me sempre em primeiro lugar, mesmo se a loja estiver cheia.» «Vês?» «Não há nada para ver.» «E o Pasquale , declarou-se-te?» «Estás louca?» «Vi-o acompanhar-te à loja de manhã.» «Porque ele explica-me as coisas que aconteceram antes de nós .» Assim regressou o tema do «antes» , mas de maneira diferente da primária. Disse que nós não sabíamos nada, nem em pequenas nem agora, e por isso não estávamos em condições de compreender nada,

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que todas as coisas do bairro , cada pedra ou pedaço de madeira, todas as coisas , já ali estavam antes de nós , mas nós tínhamos crescido sem nos apercebermos delas , sem nunca pensarmos nelas sequer. E não só nós . O pai dela fazia de conta que não existira nada antes . E o mesmo fazia a mãe , e também a minha mãe , o meu pai , e Rino também. E no entanto , a charcutaria de Stefano antes era a carpintaria de Peluso , o pai de Pasquale . E no entanto , o dinheiro de dom Achille fora ganho antes . E o dinheiro dos Solara, a mesma coisa. Ela fizera a experiência com o pai e a mãe . Não sabiam de nada, não queriam falar de nada. Nem do fascismo , nem do rei . Nem de injustiças , nem de opressões , nem de exploração . Odiavam dom Achille e tinham medo dos Solara. Todavia, passavam por cima disso e iam gastar o seu dinheiro na loja do filho de dom Achille e na dos Solara, e também lá nos mandavam a nós . E vo­ tavam nos fascistas , nos monárquicos , conforme os Solara queriam que eles fizessem. E pensavam que o que acontecera antes era passado , e para viverem tranquilos punham-lhe uma pedra em cima, no entanto estavam metidos nelas , nas coisas de antes, e também lá nos metiam a nós , e assim, sem saberem, davam-lhes continuação . Aquela conversa do «antes» impressionou-me mais do que as conver­ sas tenebrosas para as quais me arrastara durante o Verão . As férias passaram-se a falar continuamente , na sapataria, na rua, no pátio . Con­ támos tudo uma à outra, mesmo pequenas coisas , e foi reconfortante .

19. Naquele período senti-me forte. Na escola comportara-me de forma perfeita, contei à professora Oliviero os meus sucessos, e ela elogiou-me . Encontrava-me com Gino, dávamos todos os dias um passeio até ao bar Solara. Ele comprava-me um bolo, comíamo-lo a meias , voltávamos para trás . Às vezes até tinha a impressão de que Lila é que dependia de mim, e não eu dela. Passara as fronteiras do bairro , frequentava a escola secun­ dária, estava com rapazes que estudavam Latim e Grego e não com pe­ dreiros , mecânicos , remendões , vendedores de fruta, charcuteiros e sapa­ teiros, como ela. Quando me falava de Dido ou do seu método para aprender vocabulário inglês , ou da terceira declinação, ou daquilo em que matutava nas conversas com Pasquale , apercebia-me cada vez mais de que o fazia com um certo acanhamento, como se finalmente fosse ela que sentia necessidade de me demonstrar que era capaz de conversar comigo

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de igual para igual . Até mesmo uma tarde em que resolveu mostrar-me , com alguma indecisão, em que ponto estava o sapato secreto que andava a fazer com Rino , já não senti que ela habitava uma terra maravilhosa de onde eu estava ausente. Pareceu-me antes que tanto ela como o irmão hesitavam em falar-me de coisas de tão pouco valor. Ou então era eu que começava a sentir-me superior a eles . Quando foram remexer numa arrecadação e apareceram com um embrulho , encorajei-os com fingimento. Mas o par de sapatos de homem que me mostraram pareceu-me realmente fora do comum. A medida era 43 , o número de Rino e de Fernando , castanhos , exactamente como os recor­ dava de um desenho de Lila, com um aspecto leve e robusto ao mesmo tempo . Nunca vira nada daquele género nos pés de ninguém. Enquanto me deixaram tocar-lhes e me apontavam as suas qualidades , fui-lhes elogiando o trabalho com entusiasmo . «Apalpa aqui» , dizia Ri no , esti­ mulada pelos meus elogios , «e diz-me se a costura se sente .» «Não» , respondia eu , «não se sente .» Depois tirava-me os sapatos da mão , do­ brava-os , largava-os, mostrava-me a resistência que tinham . Eu aprova­ va, dizia «formidável» , como fazia a professora Oliviero quando nos queria encorajar. Mas Lila não parecia satisfeita. Quanto mais qualida­ des o irmão apontava, mais defeitos ela me mostrava, e dizia a Rino: «Quanto tempo leva o papá a descobrir estes erros?» A certa altura disse , séria: «Experimentemos outra vez com água.» O irmão mostrou­ -se contrariado . Mas ela encheu uma bacia, meteu a mão num dos sapa­ tos como se fosse um pé , e fê-la andar um bocado dentro de água. «Ela tem de brincar» , disse-me Rino , como um irmão mais velho que se aborrece com as criancices da irmã mais pequena. Mas quando viu Lila tirar o sapato da água, fez uma expressão preocupada e perguntou: «Então?» Lila retirou a mão , esfregou os dedos e estendeu-lhe o sapato: «Apalpa.» Rino enfiou uma mão e disse: «Está seco .» «Está húmido .» «Só tu é que sentes a humidade . Apalpa, Lenu .» Apalpei . «Está um pouco húmido» , disse . Lila fez uma careta de desagrado . «Viste? Basta um minuto na água para ficar húmido , não pode ser. Temos de descolar e de descoser tudo outra vez .»

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«Mas que porra, o que é um bocadinho de humidade?» Rino enfureceu-se . E não só: sofreu uma espécie de transformação diante dos meus olhos . Fez-se-lhe a cara vermelha, inchou em volta dos olhos e nas maçãs do rosto , não se conseguiu conter e explodiu numa série de impropérios e insultos dirigidos à irmã. Lamentou-se que assim nunca mais se acabava. Repreendeu Lila por tê-lo encorajado primeiro e desencorajado depois . Gritou que não queria ficar para sempre naque­ le sítio asqueroso , a ser escravo do pai e a ver os outros enriquecerem. Agarrou no pé de ferro , fingiu que lho atirava, e se o tivesse feito a sé­ rio , matava-a. Eu fui-me embora, por um lado desorientada por aquela fúria de um jovem habitualmente gentil , e por outro orgulhosa, por o meu parecer se ter revelado credível e decisivo . Nos dias que se seguiram descobri que o acne estava a secar. «Estás muito bem, é a satisfação que a escola te dá, e é o amor» , disse-me Lila, e achei-a um pouco triste .

20 . Aproximava-se a festa da passagem do ano e a Rino deu-lhe a mania de lançar mais fogo-de-artifício do que todos, e sobretudo mais do que os Solara. Lila troçava do irmão , mas às vezes era bastante dura com ele. Disse-me que achava que o irmão , que a princípio duvidava da possibili­ dade de ganhar muito dinheiro com os sapatos , agora apostava demasiado nisso , já se via como proprietário da fábrica de calçado Cerullo e não queria voltar a ser sapateiro-remendão . Isto preocupava-a, era uma faceta de Rino que ela não conhecia. Sempre lhe parecera apenas generosamen­ te impetuoso , às vezes agressivo , mas não fanfarrão . Porém agora, queria dar-se ares daquilo que não era. Sentia-se perto da riqueza. Um patrãozi­ nho . Alguém que já podia dar ao bairro um primeiro sinal da sorte que o novo ano lhe traria, lançando fogo-de-artifício em quantidade, mais , muito mais do que os irmãos Solara, que aos seus olhos se haviam toma­ do o modelo de homem jovem a imitar, e mesmo a superar. Pessoas que ele invejava e que via como inimigos a abater, para conseguir representar o papel deles . Lila nunca disse , como acontecera com Carmela e as outras raparigas do pátio: talvez eu lhe tenha metido na cabeça uma fantasia que ele não é capaz de controlar. Ela própria acreditava nessa fantasia, julgava-a realizável, e o irmão era uma pedra importante dessa realiza-

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ção . E queria-lhe bem, era seis anos mais velho do que ela, não queria tratá-lo como um garoto que não sabe gerir os seus sonhos . Mas afirmou muitas vezes que faltava firmeza a Rino, que não sabia enfrentar as difi­ culdades com os pés bem assentes na terra, tinha tendência para se exce­ der. Como naquela competição com os Solara, por exemplo . «Se calhar tem ciúmes do Marcello» , disse eu uma vez . «Que dizes?» Riu-se , fazendo-se parva, mas ela própria me contara. Marcello So­ lara passava e voltava a passar todos os dias em frente da sapataria, tanto a pé como no 1100, e Rino devia ter dado por isso , tanto que dis­ sera muitas vezes à irmã: «Não te atrevas a dar confiança àquele pedaço de merda.» Quem sabe , como não podia partir a cara aos Solara por fazerem a corte à irmã, talvez lhes quisesse mostrar a sua força com o fogo-de-artifício . «Se assim for, estás a ver como tenho razão?» «Razão em quê?» «Que ele se tornou um fanfarrão . Onde é que vai buscar dinheiro para o fogo-de-artifício?» Era verdade . A noite de fim de ano era uma noite de batalha, no bair­ ro e em toda a cidade de Nápoles. Luzes ofuscantes , explosões . O fumo denso da pólvora tornava tudo nebuloso , entrava nas casas , fazia arder os olhos, provocava tosse . Mas o estralejar das bombinhas , o assobio dos foguetes , as canhonadas dos petardos contra as paredes , tudo isso tinha custos, e como era costume , quem tinha mais dinheiro é que dis­ parava mais . Nós , os Greco , não tínhamos dinheiro , em minha casa o contributo para os fogos do fim do ano era pobre . O meu pai comprava uma caixa de fitfit, outra de rocas e outra de mini-foguetes . À meia-noite punha na minha mão , por ser a mais velha, o ferrinho das estrelinhas ou de uma girândola, acendia-a e eu ficava imóvel , excitada e temerosa, a olhar para as faíscas , breves remoinhos de fogo a pouca distância dos meus dedos . Ele entretanto enfiava a haste dos foguetes numa garrafa de vidro , sobre o mármore da janela, acendia a mecha com a brasa do cigarro e , entusiasmado , fazia subir para o céu o sibilo luminoso . No final atirava também a garrafa para a rua. Em casa de Lila também soltavam pouco ou nenhum fogo , e Rino depressa se rebelou . Desde os doze anos que tinha por hábito ir passar a meia-noite com pessoas mais audazes do que o pai , e tinham fama as suas tentativas de recuperar petardos que não tivessem explodido , indo à caça deles assim que terminava o caos dos festejos . Juntava-os todos na zona

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dos pauis , deitava-lhes fogo e divertia-se a ver as chamas altas , e trac trac trac a explosão final . Tinha ainda uma cicatriz escura na mão , uma mancha grande , de uma vez em que não se chegou para trás a tempo. Entre as muitas razões , claras e secretas , para aquele desafio no final do ano de 1 95 9 , há que admitir também que Rino talvez quisesse vin­ gar-se da sua infância pobre . Por isso se atarefou a recolher dinheiro aqui e além para comprar fogo-de-artifício . Mas era sabido - ele tam­ bém sabia, apesar da mania da grandeza que o atacara - que com os Solara ninguém podia concorrer. Como acontecia todos os anos, havia dias que os dois irmãos andavam para cá e para lá no seu 1100, com o porta-bagagem cheio de explosivos , que na noite da passagem do ano matariam pássaros , assustariam cães , gatos e ratos , e fariam tremer os prédios desde as caves até aos terraços que os cobriam. Rino observava­ -os da loja com rancor e entretanto negociava com Pasquale , com Anto­ nio e sobretudo com Enzo , que tinha mais um bocadinho de dinheiro , para juntar um arsenal que fizesse pelo menos boa figura. As coisas tiveram uma pequena e inesperada alteração , quando Lila e eu fomos , a mandado das nossas mães , fazer as compras para a ceia à charcutaria de Stefano Carracci . A loja estava cheia de gente . A atender ao balcão , além de Stefano e Pinuccia estava também Alfonso , que nos fez um sorriso embaraçado . Preparámo-nos para uma longa espera. Mas Stefano dirigiu-me , inequivocamente a mim , um gesto de saudação , e disse qualquer coisa ao ouvido do irmão . O meu colega de escola veio até fora do balcão e perguntou-me se tínhamos a lista das coisas que íamos comprar. Demos-lha e ele retirou-se . Daí a cinco minutos as nos­ sas compras estavam prontas . Metemos tudo nos sacos , pagámos o que era devido a dona Maria e fomo-nos embora. Mas poucos passos tínhamos dado quando, não Al­ fonso , mas Stefano , o próprio Stefano , me chamou com a sua bonita voz de homem feito: «Lenu .» Alcançou-nos . Tinha uma expressão tranquila, um sorriso cordial . Só o desfeava um pouco a bata branca manchada de gordura. Falou com as duas , em dialecto , mas a olhar para mim: «Querem vir festejar o ano novo a minha casa? Alfonso gostaria muito.» A mulher e os filhos de dom Achille , mesmo depois do assassinato do pai , faziam uma vida muito recatada: igreja, charcutaria, casa, no máximo qualquer festarola a que não se podia dizer que não . Aquele convite era uma novidade . Respondi , olhando para Lila: ­

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«Já estamos comprometidas , vamos juntar-nos com o irmão dela e outros amigos .» «Digam também ao Rino , e digam aos vossos pais . A casa é grande , e para os foguetes vamos para o terraço.» Lila interveio , em tom decisivo: «0 Pasquale e a Carmen Peluso , e a mãe , também vêm festejar a nossa casa.» Aquela frase deveria eliminar qualquer outro argumento . Alfredo Pe­ luso estava em Poggioreale por ter matado dom Achille , e o filho de dom Achille não podia convidar os filhos de Alfredo para brindarem ao novo ano em sua casa. No entanto , Stefano olhou para ela como se até àquele momento não a tivesse visto , com um olhar muito intenso , e retorquiu no tom que se usa para as coisas óbvias: «Está bem, venham todos: bebemos espumante , dançamos . Ano novo , vida nova.» Aquelas palavras sensibilizaram-me . Olhei para Lila, também ela estava desorientada. Murmurou: «Temos de falar com o meu irmão .» «Depois dêem-me a resposta.» «E o fogo-de-artifício?» «0 que queres dizer?» «Nós trazemos o nosso , e tu?» Stefano sorriu: «Que quantidade queres?» «Muitíssimo .» O rapaz dirigiu-se de novo a mim: «Venham todos para minha casa e prometo-vos que quando romper o dia ainda estamos a lançar foguetes.»

21 . Durante todo o caminho não fizemos senão rir a bandeiras despregadas , dizendo coisas do género: «Ele faz isto por ti .» «Não , por ti .» «Está apaixonado , e para te ter em casa convida até os comunistas e os assassinos do pai .» «0 que estás tu a dizer? Ele nem sequer olhou para mim.»

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Rino ouviu a proposta de Stefano e disse imediatamente que não . Mas a vontade de vencer os Solara fê-lo hesitar, e falou disso a Pasquale , que ficou furioso . Enzo , por sua vez, murmurou: «Está bem. Se puder, vou .» Quanto aos nossos pais , ficaram muito felizes com aquele convite , pois para eles dom Achille já não existia e os filhos e a mulher eram pessoas de bem e respeitáveis , e tê-las como amigas era uma honra. Lila a princípio parecia baralhada, como se tivesse esquecido onde estava, as ruas , o bairro , a sapataria. Depois apareceu em minha casa uma tarde , com ar de quem percebeu tudo , e disse-me: «Enganámo-nos. O Stefano não me quer a mim nem a ti .» Conversámos sobre o assunto à nossa maneira, misturando factos reais e suposições . Se não nos queria a nós , o que queria? Pensámos que Stefano também pretendesse dar uma lição aos Solara. Lembrámo-nos de quando Michele fizera com que mandassem Pasquale embora da festa em casa da mãe de Gigliola, intrometendo-se assim na vida dos Carracci e fazendo com que Stefano parecesse não saber defender a memória do pai . Pensando bem, nessa ocasião os dois irmãos não tinham humilhado ape­ nas Pasquale , mas também Stefano . E portanto agora ele agravava a acusação , para os arreliar: fazia definitivamente as pazes com os Peluso , convidando-os mesmo para sua casa na passagem do ano . «E o que ganha com isso?» , perguntei a Lila. «Não sei . Quer fazer um gesto que aqui no bairro ninguém faria.» «Perdoar?» Lila abanou a cabeça, não convencida. Estava a tentar perceber, está­ vamos as duas a tentar perceber, e perceber era uma coisa de que muito gostávamos . Stefano não parecia um tipo capaz de perdoar. Lila achava que ele tinha outra coisa em mente . E pouco a pouco , partindo de uma das suas ideias fixas dos últimos tempos , isto é , desde que começara a discutir assuntos com Pasquale , pareceu-lhe ter encontrado a solução . «Lembras-te de quando eu disse à Carmela que podia namorar com o Alfonso?» «Sim.» «Ü Stefano tem em mente algo desse género .» «Casar-se ele com a Carmela?» «Mais do que isso .» Stefano , na opinião de Lila, queria apagar tudo . Queria tentar sair do antes . Não queria fazer de conta que nada acontecera, como faziam os nossos pais , mas sim pôr em prática uma frase do tipo: bem sei , o meu pai foi aquilo que foi , mas agora estou cá eu , estamos cá nós , e mais

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nada. Resumindo , queria que todo o bairro compreendesse que ele não era dom Achille , e que os Peluso também não eram o ex-carpinteiro que o matara. Essa hipótese agradou-nos , tomámo-la logo por uma certeza, e sentimos um impulso de grande simpatia pelo jovem Carracci . Deci­ dimos tomar o partido dele . Em seguida explicámos a Rino , a Pasquale , a Antonio , que o convite de Stefano era mais do que um convite , que por trás dele existiam sig­ nificados importantes , que era como se ele estivesse a dizer: antes de nós aconteceram coisas horríveis; os nossos pais , uns de uma maneira, outros de outra, não se comportaram bem; a partir de agora, tomemos nota disso e mostremos que nós , os filhos , somos melhores do que eles . «Melhores?» , perguntou Rino , interessado . «Melhores» , disse eu , «ao contrário dos Solara, que fazem pior do que o avô e o pai .» Falei muito emocionada, em italiano , como se estivesse na escola. A própria Lila me deitou um olhar admirado , e Rino , Pasquale e Antonio gaguejaram qualquer coisa, embaraçados . Pasquale tentou até responder­ -me em italiano , mas logo desistiu . Disse , triste: «0 dinheiro com que o Stefano está a ganhar mais dinheiro é o que o pai dele ganhou no mercado negro . O estabelecimento onde está a char­ cutaria é aquele onde era antigamente a carpintaria do meu pai .» Lila fez os olhos pequeninos , quase não se viam . «Isso é verdade . Mas preferem estar do lado de quem quer mudar ou do lado dos Solara?» Pasquale disse com altivez , em parte por convicção e em parte por estar claramente com ciúmes do inesperado protagonismo de Stefano nas palavras de Lila: «Eu estou do meu lado e mais nada.» Mas era bom rapaz , pensou e voltou a pensar. Foi falar com a mãe , discutiu o assunto com toda a farru1ia. Giuseppina, dantes uma incansá­ vel trabalhadora de bom carácter, desenvolta, exuberante , depois da prisão do marido transformara-se numa mulher deprimida, triste com a sua má sorte , e dirigiu-se ao pároco . O pároco passou pela loja de Ste­ fano , falou muito tempo com Maria, e foi falar com Giuseppina Peluso novamente . Por fim convenceram-se todos de que a vida já era bastante difícil , e se fossem capazes , por ocasião do ano novo , de reduzir os conflitos, era melhor para todos . E assim, no dia 3 1 de Dezembro , de­ pois da ceia de ano novo , às 23 : 3 0 , diversas farru1ias - a família do porteiro , a do sapateiro , a do vendedor de fruta e hortaliça, a família de

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Melina, que se arranjou muito bem para a festa - subiram aos grupi­ nhos até ao quarto andar, até à velha casa tão odiada de dom Achille , para festejarem o novo ano juntas .

22 . Stefano recebeu-nos com muita cordialidade . Lembro-me de que se tinha penteado com esmero , tinha o rosto um pouco vermelho da agita­ ção , vestia uma camisa branca, gravata e um colete de malha azul , sem mangas . Achei-o muito bonito , com maneiras de príncipe . Calculei que teria mais sete anos do que eu e Lila, e pensei que ser namorada de Gino , que era da minha idade , era coisa pouca. Quando lhe pedira para ir ter comigo a casa dos Carracci respondera que não podia, porque os pais não o deixavam sair depois da meia-noite , era perigoso . Eu queria um namorado crescido , e não um miúdo , queria um como aqueles rapa­ zes , Stefano , Pasquale , Rino , Antonio , Enzo . Olhei para eles , andei de roda deles toda a noite . Apalpava com nervosismo os brincos , a pulsei­ ra de prata da minha mãe . Começara a sentir-me bonita de novo , e queria que os olhos deles me dessem prova disso . Mas pareciam todos absorvidos pela festa do fogo-de-artifício à meia-noite . Aguardavam a sua guerra entre homens e nem sequer a Lila davam atenção . Stefano foi particularmente gentil com a senhora Peluso e com Meli­ na, que não dizia uma palavra, tinha os olhos irrequietos , o nariz com­ prido , mas estava bem penteada e, com os brincos e o seu velho vestido preto de viúva, parecia uma grande dama. À meia-noite o dono da casa encheu de espumante , em primeiro lugar, o copo da mãe , e logo a se­ guir, o da mãe de Pasquale . Brindámos às coisas maravilhosas que aconteceriam no novo ano , e depois subimos em bando para o terraço , os velhos e as crianças com sobretudos e éc harpes , porque fazia muito frio . Apercebi-me de que o único que se demorava indolentemente lá em baixo era Alfonso . Chamei-o por boa educação , mas não me ouviu ou fingiu que não ouviu . Corri para cima. Encontrei um céu tremendo por cima de mim, cheio de estrelas e de trevas , gelado . Os rapazes estavam em pulôver, Pasquale e Enzo mesmo em mangas de camisa. Lila, eu , Ada e Carmela tínhamos os vestidinhos finos que usávamos para os bailes, e tremíamos de frio e de excitação . Já se ou­ viam os primeiros sibilas dos foguetes , que sulcavam o céu e explodiam em flores coloridas . Já se ouvia o baque das coisas velhas que voavam

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pelas janelas , os gritos , as risadas . Todo o bairro estrepitava, lançando petardos . Eu acendi os fitfit e as rocas às crianças , gostava de ver nos olhos delas o espanto assustado que eu sentira em pequena. Lila con­ venceu Melina a acenderem juntas um fogo-de-bengala, a golfada de fogo jorrou com um frufrulhar colorido . Gritaram ambas de alegria e no fim abraçaram-se . Rino , Stefano , Pasquale , Enzo e Antonio transportaram caixotes e caixas e cartuchos de explosivos, orgulhosos de todas aquelas munições que tinham conseguido reunir. Alfonso também ajudou , mas com enfa­ do , reagindo às incitações do irmão com gestos de contrariedade . Pareceu-me até intimidado por Rino , que se mostrava muito animado , e que o empurrava com maus modos , lhe tirava as coisas , tratando-o co­ mo um miúdo . Por fim, mais do que zangar-se , Alfonso retraiu-se , mis­ turando-se cada vez menos com os outros. Entretanto os fósforos luzi­ ram, os adultos acendiam cigarros uns aos outros com as mãos em concha, conversando , sérios e cordiais . Se houvesse uma guerra civil , pensei , como as que houve entre Rómulo e Remo , entre Mário e Sila, entre César e Pompeu , antes da batalha eles teriam feito aqueles mes­ mos olhares , aquelas mesmas poses . Todos os rapazes , com excepção de Alfonso , encheram as camisas de bombinhas e de petardos , arrumaram séries de foguetes dentro de gar­ rafas vazias enfileiradas . Rino , cada vez mais agitado e a gritar alto , encarregou-me a mim, e também Lila, Ada e Carmela, de reabastecer todos de munições constantemente . Depois , os mais novos , os novos e os menos novos - digamos , os meus irmãos Peppe e Gianni , mas tam­ bém o meu pai , e também o sapateiro , que era o mais velho - começa­ ram a movimentar-se no escuro e ao frio , acendendo mechas e lançando fogos-de-artifício do parapeito para baixo ou para o céu , num clima festivo de excitação crescente , de gritos tipo viste estas cores , caramba, que estrondo , vá, vá, apenas perturbado pelos gemidos lânguidos mas assustados de Melina, e por Rino que tirava bombinhas aos meus irmãos e as usava, gritando que eles as desperdiçavam, porque as lançavam sem esperar que a mecha pegasse realmente fogo . A fúria cintilante da cidade atenuou-se lentamente , extinguiu-se , dei­ xando emergir o ruído dos automóveis , das buzinas . Reapareceram am­ plas zonas de céu escuro . A varanda dos Solara tornou-se , embora através do fumo , embora por entre os clarões , mais visível. Encontravam-se a pouca distância, víamo-los . O pai , os filhos , os fa­ miliares , os amigos , estavam, tal como nós , dominados pelo desejo de

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caos . No bairro todos sabiam que o que acontecera até àquele momento era pouco, que eles só se soltariam deveras quando os pobretanas tives­ sem dado por terminadas as suas festarolas e os seus rebentamentos in­ significantes e os seus chuviscos de prata e ouro , só no momento em que ficassem a ser eles os senhores absolutos da festa. E assim foi . Da varanda, o fogo intensificou-se bruscamente , o céu e a rua recomeçaram a explodir. A cada lançamento , sobretudo se o petar­ do fazia um barulho de destruição , da varanda chegavam obscenidades entusiásticas . Mas , de surpresa, Stefano , Pasquale , Antonio e Rino come­ çaram a responder com novos lançamentos e idênticas obscenidades . A um foguete dos Solara eles respondiam com outro foguete , a bombinhas com bombinhas , e no céu abriam-se corolas maravilhosas , e lá em baixo a rua flamejava, tremia. A certa altura Rino pôs-se em pé sobre o para­ peito , gritando insultos e lançando petardos às paredes , enquanto a mãe berrava de terror e lhe ralhava: «Desce daí, senão cais lá em baixo .» Nesse momento o pânico apoderou-se de Melina, que começou a gemer. Ada bufou de raiva, cabia-lhe a ela levá-la para casa, mas Alfon­ so fez-lhe um sinal , aproximou-se e levou a mulher para baixo . A minha mãe seguiu-os imediatamente , a coxear, e as outras começaram também a retirar dali as crianças . As explosões provocadas pelos Solara eram cada vez mais fortes . Um foguete deles, em vez de subir para o céu , rebentou contra o parapeito do nosso terraço , com um clarão vermelho estrondoso e um fumo sufocante . «Fizeram de propósito» , gritou Rino a Stefano , fora de si . Stefano , uma silhueta escura no ar gelado , fez-lhe sinal para se acal­ mar. Correu para um canto onde depositara um caixote em que nós , raparigas , havíamos sido proibidas de tocar, e dali se abasteceu , convi­ dando os outros a fazerem o mesmo . «Enzo» , gritou , sem uma sombra sequer dos tons de voz subtis do co­ merciante, «Pascà, Rino, Anto , aqui , depressa, aqui , dêmos-lhes a ouvir aquilo que nós temos .» Todos acorreram , a rir. Repetiam: sim , dêmos-lhes a ouvir, tens disto , pedaço de bosta, tens disto , e faziam gestos obscenos na direcção da varanda dos Solara. Nós olhávamos para os seus frenéticos vultos escu­ ros , a tremer de frio . Estávamos sozinhas , sem nada para fazer. Até o meu pai fora para baixo , com o sapateiro . Lila, não sei , estava em silên­ cio , absorta pelo espectáculo como por um enigma. Estava a acontecer-lhe aquela coisa a que já fiz referência e a que ela depois chamou desmarginação. Foi - disse-me ela - como se numa

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noite de Lua cheia, sobre o mar, uma massa escuríssima de tempestade avançasse pelo céu , engolisse toda a claridade , corroesse a circunferência do círculo lunar e desfigurasse o disco brilhante , reduzindo-o à sua ver­ dadeira natureza de tosca matéria insensata. Lila imaginou , viu , sentiu - como se fosse verdade - o irmão desfazer-se. Diante dos seus olhos , Rino perdeu a fisionomia que sempre tivera desde que ela se lembrava, a fisionomia do rapaz generoso , honesto, as feições agradáveis da pessoa em quem confiava, o perfil amado de quem desde sempre , desde que ela tinha memória, a divertira, a ajudara, a protegera. Ali , no meio de explo­ sões violentas , no ar gelado , por entre os fumos que queimavam as nari­ nas e o cheiro agressivo do enxofre , qualquer coisa violou a estrutura orgânica do seu irmão , exerceu sobre ele uma pressão tão intensa que lhe despedaçou os contornos , e a matéria expandiu-se como um magma, mostrando-lhe aquilo de que ele era realmente feito . Cada segundo da­ quela noite de festa lhe causou horror, teve a impressão de que, à medida que Rino se movia, que se espalhava a si próprio em redor, todas as mar­ gens caíam, e ela própria, as suas margens , se iam tornando moles e maleáveis . Fez um grande esforço para se controlar, mas conseguiu , pouco ou nada da sua angústia se manifestou exteriormente . A verdade é que , naquele tumulto de explosões e cores , lhe dei pouca atenção . Impres­ sionou-me , creio , a sua expressão de medo crescente . Também reparei que olhava fixamente o vulto do irmão - o mais activo , o mais gabarola, o que gritava com mais exagero insultos ferozes na direcção do terraço dos Solara - , com repulsa. Ela, que geralmente nada temia, parecia estar assustada com isso. Mas foram impressões em que só voltei a pensar depois . Naquele momento sentia-me mais próxima de Carmela, de Ada, do que dela. Como sempre , parecia não ter necessidade nenhuma das atenções masculinas . Nós , pelo contrário , ali ao frio , no meio do caos , sem essas atenções nada significávamos . Teríamos preferido que Stefano , ou Enzo , ou Rino , acabassem com a guerra, nos pusessem o braço em volta dos ombros , nos pressionassem o flanco contra o flanco e nos dis­ sessem palavras lisonjeiras . Mas não , por isso estávamos bem aconche­ gadas umas às outras para nos aquecermos , enquanto eles corriam a apanhar cilindros com grandes rastilhos , espantados com a reserva infin­ dável de Stefano , admirados com a sua generosidade , perturbados pela quantidade de dinheiro que era possível transformar em rastos luminosos , faíscas , explosões , fumo , pela simples satisfação de ganhar o desafio . Competiram com os Solara durante não sei quanto tempo , explosões de um lado e do outro como se terraço e varanda fossem trincheiras , e

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todo o bairro estremeceu , vibrou . Já não se percebia nada, estrondos , vidros esmagados , céu arrombado . Mesmo quando Enzo gritou: «Eles terminaram, não têm mais nada» , os nossos continuaram, Rino , sobre­ tudo , continuou , até não haver nem mais um rastilho sequer para quei­ mar. Então ergueram todos um coro vitorioso , saltando ou abraçando­ -se . Por fim acalmaram-se , fez-se silêncio . Mas durou pouco , foi interrompido por um choro distante de criança, por gritos e insultos, por carros que avançavam pelas ruas pejadas de detritos . E depois vimos clarões na varanda dos Solara, chegaram-nos uns ruídos secos , pah , pah . Rino gritou , decepcionado: «Estão a reco­ meçar.» Mas Enzo , que percebeu de imediato o que se estava a passar, foi o primeiro a empurrar-nos para dentro , e depois dele também Pas­ quale , também Stefano . Só Rino continuou a lançar insultos ferozes , debruçando-se do parapeito do terraço , e então Lila afastou Pasquale e correu para puxar o irmão para dentro , berrando-lhe insultos por sua vez . Nós , raparigas , chegámos lá abaixo a gritar. Os Solara, para ganha­ rem a competição , estavam a disparar sobre nós .

23 . Daquela noite , como eu já disse , muitas coisas me escaparam. Mas sobretudo , transtornada pelo clima de festa e de perigo , e pelo torveli­ nho dos rapazes , de cujos corpos emanava uma chama mais ardente do que a dos fogos no céu , descurei Lila. Contudo , foi então que ocorreu a sua primeira mudança interior. Não me apercebi daquilo que lhe aconteceu , a alteração era difícil de perceber. Mas das consequências dei-me conta quase de imediato . Tomou-se mais preguiçosa. Dois dias depois levantei-me cedo , embora ainda não tivesse escola, para ir com ela abrir a loja e ajudá-la a fazer as limpezàs , mas ela não apareceu . Chegou atrasada, amuada, e passeá­ mos pelo bairro , evitando a sapataria. «Não vais trabalhar?» «Não .» «Mas porquê?» «Já não me apetece .» «E os sapatos novos?» «Estão em banho-maria.» «E então?»

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Tive a impressão de que ela nem sabia o que queria. A única certe­ za é que parecia muito preocupada com o irmão , muito mais do que a vira ultimamente . E foi justamente a partir dessa preocupação que começou a alterar as suas conversas sobre a riqueza . Continuávamos a ter pressa de ficar ricas , sobre isso não havia discussões , mas o ob­ jectivo já não era o mesmo da infância: nem arcas do tesouro , nem brilhos de moedas e pedras preciosas . Agora parecia que o dinheiro , na ideia dela, se transformara em cimento: consolidava, reforçava, consertava isto e aquilo . Consertava sobretudo a cabeça de Rino . O par de sapatos que tinham feito em conjunto , ele achava que já estava pronto , e queria mostrá-lo a Fernando . Mas Lila sabia bem (e dizia que Rino também sabia) que o trabalho estava cheio de defeito s , que o pai examinaria os sapatos e os deitaria fora. Por isso lhe dizia que era preciso tentar e voltar a tentar, que o caminho para chegar à fábri­ ca de calçado era um percurso difícil; mas ele não queria esperar mais , tinha urgência em ser como os Solara , como Stefano , e Lila não con­ seguia fazê-lo raciocinar. De repente pareceu-me até que a riqueza em si mesma já não lhe interessava. Agora falava de dinheiro sem qual­ quer brilho , era apenas um remédio para evitar que o irmão se metes­ se em sarilhos . «Tudo por minha culpa» , começou a admitir, pelo menos comigo , «fi-lo acreditar que a sorte está ao virar da esquina .» Mas como ao virar da esquina não estava, magicava com olhos de má no que havia de inventar para acalmá-lo . Rino na verdade enervava-se . Fernando , por exemplo , nunca repreen­ deu Lila por ter deixado de ir para a sapataria. Pelo contrário , deu-lhe a entender que se sentia satisfeito por ela ficar em casa a ajudar a mãe . Mas o irmão zangou-se , e logo nos primeiros dias de Janeiro assisti a mais uma briga feia. Rino aproximou-se de cabeça baixa, barrou-nos o caminho e disse-lhe: «Vem já trabalhar.» Lila respondeu-lhe que isso nem lhe passava pela cabeça. Então ele puxou-a por um braço , ela rea­ giu com um insulto feio , Rino deu-lhe uma bofetada e gritou: «Então vai para casa, vai ajudar a mãe .» Ela obedeceu . Nem se despediu de mim e foi para casa. O auge do conflito deu-se no dia da Befana. Ela, segundo parece , acordou e encontrou ao lado da cama uma meia cheia de carvão . Com­ preendeu que fora Rino e pôs a mesa do pequeno-almoço para todos , excepto para ele . Apareceu a mãe: o filho deixara-lhe , pendurada numa cadeira, uma meia com rebuçados e chocolates , o que a comovera, aquele filho era o seu ai-jesus . Por isso , quando viu que a mesa não

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estava posta para ele , preparou-se para o fazer, mas Lila não deixou . Enquanto mãe e filha discutiam , apareceu o irmão , e ela atirou-lhe um pedaço de carvão . Rino riu-se , pensando que era a brincar, que ela tives­ se apreciado a partida, mas quando percebeu que a irmã o fizera a sério , tentou agarrá-la para lhe bater. Nesse instante apareceu Fernando em cuecas e camisola interior, com uma caixa de cartão na mão . «Vejam o que a Befana me trouxe» , disse , e via-se que estava furioso . Tirou da caixa os sapatos novos , feitos em segredo pelos dois filhos. Lila ficou de boca aberta, da surpresa. Não sabia nada sobre aquela iniciativa, Rino decidira sozinho mostrar ao pai os sapatos novos , como se fossem uma prenda da Befana. Quando viu na cara do irmão um sorrisinho divertido e angustiado ao mesmo tempo , quando lhe apanhou o olhar alarmado a observar o rosto do pai , pareceu-lhe ter a confirmação daquilo que a assustara no terraço , no meio do fumo e dos estalos: Rino perdera o seu perfil habitual , ela agora tinha um irmão desmarginado , do qual podia sair o irremediável . Naquele sorriso, naquele olhar, viu algo insuportavelmente mesquinho , mais insuportável ainda porque continuava a amar o irmão , a sentir necessidade de estar ao lado dele para o ajudar e ser ajudada. «Que bonitos que são» , disse Nunzia, que nada sabia sobre a história dos sapatos . Fernando , sem dizer uma palavra, com a expressão de u m Randolph Scott encolerizado , sentou-se e calçou , primeiro o sapato do pé direito , e depois o do esquerdo . «A Befana» , disse , «fê-los mesmo para os meus pés .» Levantou-se , experimentou-os, andou para a frente e para trás na cozinha, sob o olhar da farm1ia. «São realmente cómodos» , comentou . «São sapatos de gente fina» , disse a mulher, deitando olhares apaixo­ nados ao filho . Fernando sentou-se de novo . Tirou-os , examinou-os por cima, por baixo , por dentro e por fora. «Quem fez estes sapatos é um mestre» , disse , mas sem que o rosto se lhe desanuviasse . «Habilidosa, a Befana.» Em cada palavra sentia-se como sofria, e como esse sofrimento o enchia de vontade de partir tudo . Mas Rino parecia não perceber isso . A cada palavra sarcástica do pai ficava mais orgulhoso , sorria, todo vermelho , pronunciava frases incompletas: fiz assim, papá, acrescentei isto , pensei que. Lila, por seu lado , queria sair da cozinha, evitar o aces-

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so de cólera iminente do pai , mas não conseguia decidir-se , não queria deixar o irmão sozinho . «São leves e ao mesmo tempo robustos» , continuou Fernando , «não têm nada atabalhoado . E sobretudo , nunca os vi nos pés de ninguém, com este bico largo são bastante originais.» Sentou-se , voltou a calçá-los , atou-os . Disse ao filho: «Vira-te , Rinu , tenho de agradecer à Befana.» Rino pensou que era uma brincadeira que encerraria definitivamente toda a controvérsia entre eles e virou-se , feliz e embaraçado . Mas , mal fez o gesto de virar as costas , o pai deu-lhe um violento pontapé no traseiro , chamou-lhe besta e néscio , e atirou-lhe tudo aquilo a que pôde jogar a mão , por fim também os sapatos . Lila só se meteu no meio quando viu que o irmão , inicialmente ape­ nas preocupado em proteger-se de murros e pontapés , começava tam­ bém a gritar, derrubando cadeiras , partindo pratos , e a chorar, jurando que preferia matar-se a continuar a trabalhar de graça para o pai , aterro­ rizando a mãe , os outros irmãos e a vizinhança. Mas em vão . Pai e filho tiveram de desabafar primeiro , até esgotarem as forças . Depois volta­ ram a trabalhar juntos , calados , fechados na lojeca com os seus deses­ peros. Dos sapatos, durante algum tempo não se voltou a falar. Lila decidiu que o seu papel era ajudar a mãe , ir às compras , cozinhar, lavar a roupa, estendê-la ao sol , e nunca mais foi à sapataria. Rino , tristonho , amuado , interpretou o facto como uma desconsideração incompreensível , e co­ meçou a exigir que a irmã fizesse as coisas de maneira que ele encon­ trasse sempre meias , cuecas e camisas em ordem na gaveta, que o ser­ visse e o respeitasse quando voltava do trabalho . Se alguma coisa não lhe agradava, protestava, dizia coisas desagradáveis do tipo: nem uma camisa sabes passar, estafermo . Ela encolhia os ombros , não protestava, passou a executar as suas tarefas com atenção e cuidado . Ele próprio , naturalmente, não se sentia contente por se comportar as­ sim, arrependia-se, tentava acalmar-se , esforçava-se bastante para voltar a ser o mesmo de antigamente . Nos dias bons , domingo de manhã, por exemplo, andava de roda dela com brincadeiras , falava-lhe em tom gentil: «Estás zangada comigo porque fiquei com todo o mérito dos sapatos? Mas fi-lo» dizia-lhe, mentindo , «para evitar que o papá se zangasse tam­ bém contigo.» E depois pedia-lhe: «Ajuda-me, o que havemos de fazer agora? Não podemos ficar parados , eu tenho de sair desta situação.» Lila ficava calada. Cozinhava, passava a ferro , às vezes dava-lhe um beijo na

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face, pare ele perceber que já não estava zangada. Mas ele entretanto já se zangara de novo e acabava sempre por partir qualquer coisa. Gritava­ -lhe que ela é que o traíra, e havia de o trair ainda mais , pois mais tarde ou mais cedo casaria com um imbecil qualquer e ia-se embora, deixando­ -o a viver na miséria para sempre . Lila por vezes , quando não estava ninguém em casa, ia ao quarto de arrumos onde escondera os sapatos e apalpava-os , olhava para eles , ela própria maravilhada porque, bem ou mal , existiam, e por terem nascido graças a um desenho numa folha de caderno . Tanto trabalho deitado fora.

24 . Regressei à escola, fui absorvida pelos ritmos torturantes que os pro­ fessores nos impunham. Muitos dos meus colegas começaram a desistir, e a turma a reduzir-se . Gino teve insuficientes em tudo e pediu-me ajuda. Tentei ajudá-lo , mas na verdade ele só queria que o deixasse co­ piar os trabalhos de casa. Deixei-o copiar, mas era preguiçoso . Mesmo quando copiava não prestava atenção , não se esforçava para compreen­ der. Alfonso , embora muito disciplinado , também estava em dificulda­ des . Um dia desatou a chorar durante o interrogatório de Grego , o que para um rapaz era considerado muito humilhante . Viu-se claramente que preferia morrer em vez de deitar uma só lágrima diante da turma, mas não se aguentou . Ficámos todos em silêncio , muito perturbados , excepto Gino que , talvez devido à tensão , ou pela satisfação de ver que também ao seu companheiro de carteira as coisas corriam mal , rebentou a rir. À saída da escola disse-lhe que por causa daquela gargalhada já não éramos namorados . A reacção dele foi perguntar-me , preocupado: «Gostas do Alfonso?» Respondi-lhe que , simplesmente , já não gostava dele . Gaguejou que mal havíamos começado , não estava certo . Como namorados , entre nós não acontecera grande coisa. Tínhamos dado um beijo, mas sem língua, tentara apalpar-me o peito , mas eu zanguei-me e repeli-o . Pediu-me para continuarmos mais um pouco , mas mantive-me firme na minha decisão . Já sabia que não me custava nada deixar de ter a companhia dele na ida para a escola e no regresso . Poucos dias depois do meu rompimento com Gino , Lila confidenciou­ -me que recebera duas declarações quase ao mesmo tempo , as primeiras da sua vida. Uma manhã, quando andava a fazer as compras , Pasquale fora ao seu encontro . Vinha sujo do trabalho e muito agitado . Disse-lhe

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que andava preocupado porque nunca mais a vira na sapataria, e pensou que estivesse doente . Mas agora que a encontrava de boa saúde , estava feliz. Porém , enquanto falava, não mostrava felicidade nenhuma no ros­ to . Interrompeu-se como se estivesse a sufocar e, para libertar a gargan­ ta, quase gritou que gostava dela. Amava-a tanto que , se ela estivesse de acordo , ia falar imediatamente com o irmão , com os pais, com quem fosse preciso , para um compromisso sério . Ela ficara sem palavras , du­ rante alguns minutos pensou que ele estivesse a brincar. Tantas vezes eu lhe dissera que Pasquale andava de olho nela, e nunca acreditara. Mas afinal ali estava ele , num lindo dia de Primavera, quase com as lágrimas nos olhos, a suplicar-lhe , a dizer que a vida para ele perderia todo o valor se ela dissesse que não . Como eram difíceis de deslindar os sentimentos de amor. Lila, com muita cautela, sem nunca dizer que não , encontrara as palavras para o rejeitar. Disse-lhe que também ela gostava dele , mas não como se gosta de um namorado . Disse-lhe também que lhe seria grata para sempre por todas as coisas que ele lhe explicara: o fascismo , a resistência, a monarquia, a república, o mercado negro , o comandante Lauro , os neofascistas , a democracia cristã, o comunismo . Mas compro­ meter-se com ele , não , nunca se comprometeria com ninguém. E con­ cluíra: «Gosto de todos vós , do Antonio , de ti , do Enzo , como gosto do Rino .» Pasquale , então , murmurara: «Mas eu não gosto de ti como gosto da Carmela.» Escapulira-se e voltara para o trabalho . «E a outra declaração?» , perguntei-lhe com curiosidade , mas também um pouco ansiosa. «Nunca terias imaginado .» A outra declaração viera de Marcello Solara. Ao ouvir aquele nome senti uma pontada no estômago . Se o amor de Pasquale era um sinal de como Lila era capaz de agradar, o amor de Marcello , um rapaz bonito , rico , com automóvel , duro , violento , camor­ rista, habituado , portanto , a ter as mulheres que queria, era, aos meus olhos , aos olhos de todas as raparigas da minha idade , apesar da má fama que tinha, ou talvez também por causa disso , uma promoção , a passagem da rapariguinha magricela a mulher, capaz de vergar a si qualquer um. «E como aconteceu?» Marcello ia ao volante do 1100, sozinho , sem o irmão , e viu-a quando regressava a casa pela rua larga. Não encostara o carro , não falara com ela através da janela. Deixou o carro no meio da rua , de porta aberta, e aproximou-se dela. Lila continuou a andar, e ele atrás . Suplicou-lhe que

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lhe perdoasse a maneira como se comportara tempos atrás , admitindo que ela teria feito bem em matá-lo com o trinchete . Recordou-lhe , emo­ cionado , como tinham dançado bem o rock na festa da mãe de Gigliola, sinal de que podiam acertar bem o passo um com o outro . Fizera-lhe muitos elogios: «Como tu cresceste , que lindos olhos que tens, que bo­ nita que és.» Depois contou-lhe o sonho que tivera nessa noite: ele pedia-a em casamento , ela dizia que sim, e ele oferecia-lhe um anel de noivado idêntico ao da avó , que tinha um engaste com três diamantes . Lila finalmente falara, continuando a andar. Perguntou-lhe: «Nesse so­ nho eu disse-te que sim?» . Marcello confirmou e ela respondeu: «Então foi mesmo um sonho , porque tu és um animal , tu e a tua fallll1 ia, o teu avô , o teu pai , o teu irmão , e eu nunca te diria que sim, mesmo que digas que me matas .» «Disseste-lhe mesmo assim?» «Disse-lhe ainda mais.» «Ü quê?» Quando Marcello , ofendido , lhe respondera que os seus sentimentos eram muito delicados , que dia e noite só nela pensava com amor, e por isso não era um animal , mas alguém que a amava, ela retorquira que se uma pessoa se comportava como ele se comportara com Ada, e se essa mesma pessoa na noite da passagem do ano se punha a disparar contra outras pessoas com uma pistola, chamar-lhe animal era ofender os ani­ mais . Marcello percebera finalmente que ela não estava a brincar, que na verdade o considerava muito menos do que uma rã, do que uma salaman­ dra, e ficou imediatamente deprimido . Murmurara baixinho: «Foi o meu irmão que disparou .» Mas ao pronunciar esta frase compreendeu logo que depois disso ela o desprezaria ainda mais . Verdade pura. Lila apres­ sou o passo , e quando ele ainda tentou segui-la, gritou-lhe: «Vai-te em­ bora» , e começou a correr. Ele parou , como se não soubesse onde estava e o que havia de fazer, e depois voltou para o 1100 de cabeça baixa. «Tu fizeste isso ao Marcello Solara?» «Sim.» «És doida. Não contes a ninguém que o trataste assim.» Naquele momento pareceu-me uma recomendação supérflua, disse aquilo só para mostrar que a história dela era importante para mim. Lila, por natureza, gostava de falar e de fantasiar acerca dos factos , mas não era de mexericos , ao contrário de nós , que estávamos sempre a mexeri­ car. E de facto , do amor de Pasquale falou só a mim , nunca me constou que tivesse contado a mais alguém. Mas a respeito de Marcello Solara

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contou a toda a gente . Encontrei Carrne la, que me disse: «Soubeste que a tua amiga disse que não ao Marcello Solara?» . Depois foi Ada que me disse: «Nada menos , a tua amiga deu uma nega ao Marcello Solara.» Pinuccia Carracci , na charcutaria, segredou-me ao ouvido: «É verdade que a tua amiga disse que não ao Marcello Solara?» Até Alfonso me disse um dia na escola, estupefacto: «A tua amiga disse que não ao Marcello Solara?» Quando vi Lila, disse-lhe: «Fizeste mal em dizer a toda a gente , o Marcello vai ficar furioso .» Ela encolheu os ombros . Tinha muito que fazer, com os irmãos , a casa, a mãe , o pai , e não se deteve muito tempo a falar. Desde a noite da passagem do ano , dedicava-se só às tarefas domésticas .

25 . E era mesmo assim. Durante o resto do ano escolar, Lila desinteressou­ -se completamente daquilo que eu fazia na escola. Quando lhe perguntei que livros ia buscar à biblioteca, o que andava a ler, respondeu com des­ peito: «Já não vou lá buscar nada, os livros fazem-me doer a cabeça.» Eu , porém, estudava, e ler tomara-se um hábito agradável . Mas tive de reconhecer que , desde que Lila deixara de me pressionar, de se ante­ cipar a mim no estudo e nas leituras , tanto a escola como a biblioteca do professor Ferrara tinham deixado de ser uma espécie de aventura, tomando-se simplesmente uma coisa que eu sabia fazer bem e pela qual era muito elogiada. Apercebi-me claramente disso em duas ocasiões. Uma vez fui buscar livros à biblioteca, com o meu cartão todo preen­ chido com empréstimos e devoluções , e o professor, primeiro congratu­ lou-se com a minha assiduidade , depois perguntou-me por Lila, lamen­ tando muito que ela e toda a família tivessem deixado de ir buscar livros. É difícil explicar porquê , mas aquela lamentação fez-me sofrer. Pareceu-me a prova de um verdadeiro interesse por Lila, algo muito mais profundo do que os louvores pela minha regularidade de leitora assídua. Veio-me à ideia que , mesmo que Lila só tivesse ido buscar um livro por ano , teria deixado nesse livro a sua marca, e o professor senti­ -la-ia no momento da devolução , ao passo que eu não deixava marcas , eu representava apenas a persistência com que ia somando um livro a outro livro , desordenadamente .

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A outra ocasião teve a ver com a rotina escolar. O professor de Letras trouxe as composições de Italiano corrigidas (ainda me recordo do te­ ma: «As várias fases do drama de Dido» ) , e enquanto geralmente se li­ mitava a dizer duas palavras para justificar o meu oito ou nove habitual , naquele dia elogiou-me com eloquência diante da turma, e só no fim revelou que me dera nada menos do que um dez . No final da aula cha­ mou-me ao corredor, verdadeiramente admirado com a maneira como eu desenvolvera o tema, e quando o professor de Religião apareceu , deteve-o e resumiu-lhe , cheio de entusiasmo , a minha composição . Dias depois constatei que Gerace não se limitara ao padre , fizera circular esse meu trabalho pelos outros professores também , e não só os da mi­ nha secção . Alguns professores do liceu agora sorriam-me nos corredo­ res , faziam-me até comentários . Uma professora do primeiro A, por exemplo , a professora Galiani , muito considerada, e que todos evitavam por ter fama de ser comunista, e porque em duas penadas era capaz de deitar por terra qualquer argumentação mal fundamentada, dirigiu-se a mim no átrio e entusiasmou-se sobretudo com a ideia, central no meu trabalho , de que , se o amor for desterrado das cidades , a natureza bené­ fica das cidades transforma-se em natureza maléfica. Perguntou-me: «Ü que significa para ti "uma cidade sem amor"?» «Um povo privado da felicidade .» «Dá-me um exemplo .» Pensei nas discussões que tivera com Lila e Pasquale durante o Ve­ rão , e de repente senti-as como uma verdadeira escola, mais verdadeira do que aquela que eu tinha todos os dias . «A Itália sob o fascismo , a Alemanha sob o nazismo , todos nós , seres humanos , no mundo de hoje.» Sondou-me com acrescido interesse . Disse que eu escrevia muito bem, aconselhou-me algumas leituras , ofereceu-se para me emprestar livros seus. Por fim perguntou o que fazia o meu pai , e eu respondi: «É porteiro na câmara municipal .» Afastou-se de cabeça baixa. Aquele interesse da professora Galiani , como é natural , encheu-me de orgulho , mas não teve grandes consequências , e a rotina escolar voltou ao normal . Por isso , o facto de eu , ainda no primeiro ano da secundária, já ser uma aluna com uma certa fama de excepcional , acabou por não me parecer importante . Afinal o que é que isso provava? Provava acima de tudo que fora proveitoso estudar e conversar com Lila, tê-la como estí­ mulo e apoio da minha aventura naquele mundo exterior ao bairro, entre as coisas , as pessoas , as paisagens e as ideias dos livros. Sim, dizia para

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comigo , claro que a composição sobre Dido é minha, a capacidade de formular frases bonitas é um dom meu; claro que aquilo que escrevi sobre Dido me pertence; mas não foi elaborado juntamente com ela, não nos estimulámos mutuamente , a minha paixão não cresceu com o calor da dela? E aquela ideia da cidade sem amor, que tanto agradara aos pro­ fessores , não me viera de Lila, embora eu depois a tenha desenvolvido com as minhas capacidades? O que devia eu concluir disto? Fiquei à espera de novos elogios , que provassem as minhas capaci­ dades autónomas . Mas Gerace , quando marcou outro trabalho sobre a rainha de Cartago («Eneias e Di do: o encontro de dois fugitivos») , não se entusiasmou , limitou-se a dar-me um oito . Mas da professora Galiani recebia cordiais gestos de saudação e fiz a agradável descoberta de que ela era professora de Latim e Grego de Nino Sarratore , aluno do primei­ ro A. Sentia uma necessidade urgente de atenção e apreço renovados , tive esperança que me viessem dele , pelo menos . Tive esperança de que a sua professora de Letras me elogiasse publicamente , digamos , na tur­ ma dele , fazendo com que se recordasse de mim e finalmente me diri­ gisse a palavra. Mas não aconteceu nada, continuei a entrevê-lo à saída, à entrada, sempre com o mesmo ar absorto , nunca um olhar. Uma vez cheguei mesmo a segui-lo pelo Corso Garibaldi e pela Via Casanova, na esperança de que reparasse em mim e me dissesse: olá, estou a ver que fazemos o mesmo caminho , ouvi falar muito de ti . Mas seguia apressa­ do , de cabeça baixa, e nunca se virou . Cansei-me , senti desprezo por mim. Deprimida, meti pelo Corso Novara e fui para casa. Fui avançando dia após dia, sempre preocupada em confirmar aos professores , aos colegas , a mim própria, a minha assiduidade e diligên­ cia. Mas entretanto crescia-me cá dentro um sentimento de solidão , sentia que aprendia sem energia. Experimentei contar a Lila as queixas do professor Ferrara , disse-lhe para voltar a ir à biblioteca. Também lhe disse que o meu trabalho sobre Dido fora muito apreciado , sem lhe contar o que tinha escrito , mas dando-lhe a entender que o sucesso em parte também era dela. Ouviu-me apaticamente , talvez já nem se recor­ dasse da nossa conversa sobre aquela personagem, tinha outros proble­ mas . Assim que lhe dei oportunidade , disse-me que Marcello Solara não se resignara como Pasquale , continuava a andar atrás dela. Se saía para ir às compras , ele seguia-a, sem a incomodar, até à loja de Stefano , ou até à carroça de Enzo , só para olhar para ela. Se se assomava à janela, via-o parado à esquina, à espera de que ela se debruçasse na janela. Andava enervada com aquela persistência. Receava que o pai desse por

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isso , e sobretudo que Rino se apercebesse . Assustava-a a possibilidade de principiar ali uma daquelas histórias de homens , que acabavam em cenas de pancadaria dia sim, dia não , no bairro havia muitas . «0 que tenho eu?» , perguntava. Via-se magra, feia. Porque é que Marcello se fixara nela? «Tenho alguma coisa de doentio?» , dizia. «Levo as pessoas a fazerem coisas erradas .» Repetia muito essa ideia. A convicção de ter feito mais mal ao irmão do que bem consolidara-se . «Basta olhar para ele» , afirmava. Desfeito o projecto da fábrica de calçado Cerullo , Rino continuava agarrado à mania de ficar rico como os Solara, como Stefano , mais ainda, e não conseguia resignar-se ao trabalho quotidiano na oficina. Dizia à irmã, tentanto reacender nela o velho entusiasmo: «Nós somos inteligentes , Lina, juntos , ninguém nos leva a melhor, diz-m� o que havemos de fa­ zer.» Queria comprar um automóvel , um televisor, e detestava Fernando por não compreender a importância daquelas coisas . Mas quando Lila mostrava que já não queria apoiá-lo , tratava-a pior do que a uma serva. Talvez nem se apercebesse de como o seu feitio se deteriorara, mas ela, que o via diariamente , andava alarmada. Uma vez disse-me: «Já viste como as pessoas quando acordam são feias , todas deforma­ das , não têm olhar?» Na opinião dela, era assim que ele estava.

26 . Recordo-me de que um domingo à noite , em meados de Abril , saímos os cinco: Lila, eu , Carmela, Pasquale e Rino . Nós , raparigas , vestimo­ -nos o melhor que pudemos , e assim que saímos de casa pusemos bâton e pintámos um pouco os olhos . Apanhámos o metropolitano , que ia muito cheio . Rino e Pasquale foram todo o caminho alerta, ao pé de nós . Receavam que alguém nos apalpasse , mas não , os nossos acompanhan­ tes tinham caras muito perigosas . Descemos a Via Toledo a pé . Lila insistia em ir à Via Chiaia, à Via Filangieri , e depois Via dei Mille , até à Piazza Amedeo , zonas onde se sabia que havia gente rica e elegante. Rino e Pasquale não concorda­ vam, mas não sabiam ou não queriam explicar-se , e respondiam só com resmungos em dialecto e insultos a pessoas indeterminadas , a quem chamavam «janotas» . Nós três unimo-nos e insistimos . Nesse momento ouvimos buzinar. Voltámo-nos e vimos o 1 1 00 dos Solara. Dos dois ir-

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mãos nem nos apercebemos , de tão espantadas que ficámos com as duas raparigas que nos faziam adeus das janelas: Gigliola e Ada. Pareceram­ -nos bonitas , com lindos vestidos , belos penteados , lindos brincos cin­ tilantes , agitando as mãos e gritando-nos saudações alegres . Rino e Pasquale viraram a cara, Carmela e eu , com a surpresa, nem responde­ mos . Lila foi a única que gritou qualquer coisa com entusiasmo e lhes fez adeus com gestos largos , enquanto o carro desaparecia na direcção da Piazza del Plebiscito . Ficámos um bocado em silêncio , depois Rino disse em voz baixa a Pasquale que desde sempre se sabia que Gigliola era uma puta, e Pas­ quale concordou , sério . Nenhum deles falou em Ada. Antonio era amigo de ambos e não queriam ofendê-lo . Mas Carmela disse muito mal de Ada. Eu senti sobretudo amargura. Passara num relâmpago a imagem do poder, quatro jovens de automóvel , a maneira certa de saírem do bairro para se irem divertir. A nossa maneira era errada: a pé , mal arran­ jados, tesos . Deu-me vontade de voltar imediatamente para casa. Mas Lila, como se aquele encontro não tivesse acontecido , voltou a insistir que queria ir passear onde se encontravam as pessoas elegantes . Agar­ rou-se ao braço de Pasquale , gritou , riu , fez aquilo que para ela era pa­ rodiar uma pessoa fina, que é como quem diz , saracoteou-se , e desfez-se em grandes sorrisos e gestos lânguidos. Nós hesitámos um pouco e de­ pois resolvemos secundá-la, exasperadas pela ideia de que Gigliola e Ada andavam a divertir-se num 1 1 00 , com os lindos irmãos Solara, enquanto nós íamos a pé , na companhia de Rino , que remendava sapa­ tos , e de Pasquale , que era pedreiro . Aquela nossa insatisfação , que , naturalmente , calámos , deve ter che­ gado por vias secretas aos dois rapazes , que olharam para nós , suspira­ ram e se deram por vencidos. Está bem, disseram , e entrámos na Via Chiaia. Foi como se atravessássemos uma fronteira. Recordo um passeio entre multidões e uma espécie de diversidade humilhante . Eu não olha­ va para os rapazes , mas sim para as raparigas , para as senhoras . Eram completamente diferentes de nós . Pareciam ter respirado outro ar, ter comido outros alimentos, terem-se vestido em qualquer outro planeta, terem aprendido a andar sobre fios de vento . Estava pasmada. Enquanto eu teria parado para olhar à vontade para vestidos , sapatos , o tipo de óculos que usavam , quando usavam óculos , elas passavam e parecia que não me viam. Não viam nenhum de nós . Não éramos perceptíveis. Ou éramos desinteressantes . E se por vezes o olhar lhes caía sobre nós ,

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voltavam-se imediatamente para outro lado , como se incomodadas . Olhavam apenas umas para as outras . Todos nós reparámos nisso. Ninguém se pronunciou , mas percebemos que Rino e Pasquale , mais crescidos, por aquelas ruas encontravam ape­ nas a confirmação de coisas que já sabiam, o que os punha de mau humor, os tornava carrancudos , indispostos pela certeza de estarem num lugar que não era o deles , ao passo que nós , raparigas , só naquele momento fazíamos essa descoberta e com sentimentos ambíguos . Sentíamo-nos acanhadas e ao mesmo tempo encantadas; feias , mas também estimula­ das a imaginar como nos transformaríamos , se tivéssemos a possibilidade de nos reeducarmos , de nos vestirmos e de nos maquilharmos e de nos ataviarmos como deve ser. Entretanto , para não estragarmos a noite , rea­ gíamos com risotas , ironizando . «Tu alguma vez usavas aquele vestido?» «Nem que me pagassem.» «Eu usava.» «Valente , ficavas parecida com uma bola-de-berlim, como aquela que ali vai .» «E viste os sapatos?» «Ü quê , aquilo são sapatos?» Fomos até ao Palazzo Cellamare , a rir e a dizer piadas . Pasquale, que evitava de todas as formas estar ao pé de Lila, e quando ela lhe dera o braço se libertara de imediato , com bons modos (falava com ela, claro , sentia um prazer evidente em ouvir-lhe a voz, em olhar para ela, mas via­ -se que o mais pequeno contacto o perturbava, talvez até fosse capaz de fazê-lo chorar) , caminhando a meu lado, perguntou-me com sarcasmo: «Na escola as tuas companheiras são assim?» «Não .» «Quer dizer que não é uma boa escola.» «É um liceu clássico» , disse eu , picada. «Não presta» , insistiu ele , «podes ter a certeza, se não há lá gente assim, não presta. Não é verdade , Lila, que não é bom?» «Bom?» , disse ela, e apontou para uma rapariga loira que vinha na nossa direcção , acompanhada por um jovem moreno , alto , de pulôver branco com decote em V: «Se não houver lá uma como aquela, a tua escola mete nojo.» E desatou a rir. A rapariga estava toda de verde: sapatos verdes , saia verde , casaco verde , e na cabeça - e era principalmente isso que fazia rir Lila - um chapéu de coco como o de Charlot, também verde .

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A hilaridade dela contagiou-nos a todos . Quando o par passou por nós , Rino fez um comentário grosseiro sobre o que a senhora de verde devia fazer com o chapéu de coco, e Pasquale parou , de tanta vontade de rir, e apoiou-se à parede com um braço . A rapariga e o acompanhan­ te deram alguns passos e pararam. O rapaz de pulôver branco voltou-se , mas um braço da rapariga reteve-o de imediato . Ele soltou-se , voltou para trás e dirigiu directamente a Rino uma série de frases insultuosas . Foi num abrir e fechar de olhos. Rino derrubou-o com um soco na cara, gritando: «0 que foi que me chamaste? Não percebi , repete lá o que me cha­ maste . Ouviste , Pascà, o que ele me chamou?» Nós , raparigas , passámos bruscamente do riso ao pavor. Lila foi a primeira a lançar-se sobre o irmão , antes que ele pontapeasse o jovem caído no chão , puxando-o com uma expressão incrédula, como se mil fragmentos da nossa vida, desde a infância até aos nossos catorze anos de então , estivessem a compor uma imagem finalmente nítida, mas que naquele momento lhe parecia inverosímil . Empurrámos Rino e Pasquale para longe , enquanto a rapariga de chapéu de coco ajudava o namorado a levantar-se . Entretanto , a incre­ dulidade de Lila dava lugar à fúria desesperada. Enquanto afastava o irmão , lançava-lhe insultos ordinários , puxando-o por um braço e ameaçando-o . Rino continha-a com uma mão , com um riso nervoso na cara e dirigindo-se a Pasquale: «A minha irmã pensa que aqui se brinca, Pascà» , disse-lhe em dialec­ to , com olhos de louco , «a minha irmã pensa que , quando eu digo que é melhor não irmos para um sítio qualquer, veste a pele de quem sabe sempre tudo , de quem percebe sempre tudo , como é hábito , e tem de ir por força.» Uma pequena pausa para controlar a respiração , e acrescen­ tou: «Ouviste que aquele pedaço de esterco me chamou labrego? Labre­ go , a mim? Labrego?» E ainda, sem fôlego: «A minha irmã trouxe-me aqui e vai ver se deixo que me chamem labrego , vai ver o que faço a quem me chama labrego .» «Calma, Rino» , respondeu-lhe Pasquale alarmado , olhando para trás de vez em quando . Rino continuou agitado , mas baixou o tom de voz . Lila acalmou-se . Parámos na Piazza dei Martiri . Pasquale , virando-se para Carmela, dis­ se em tom frio: «Vocês agora vão para casa.» «Nós , sozinhas?»

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«Sim.» «Não .» «Carme , não quero discutir. Vão-se embora.» «Não sabemos o caminho .» «Não mintas .» «Vai» , disse Rino a Lila, tentando conter-se , «toma lá dinheiro , comprem gelados pelo caminho .» «Saímos de casa juntos e regressamos juntos.» Rino perdeu de novo a paciência, deu-lhe um encontrão: «Queres parar com isso? O irmão mais velho sou eu , tens de fazer o que eu te digo . Mexe-te , vá, anda, não tarda nada parto-te a cara.» Vi que estava pronto para fazê-lo a sério , puxei Lila por um braço . Ela também percebeu que corria o risco: «Vou contar ao papá.» «E eu ralado ! Põe-te a andar, vá, pira-te , nem o gelado mereces .» Incertas , começámos a subir por Santa Caterina. Mas pouco depois , Lila mudou de ideias , parou, disse que voltava para junto do irmão. Ten­ támos convencê-la a ficar connosco , mas não fez caso . Enquanto discu­ tíamos vimos um grupo de rapazes , cinco ou seis , pareciam os canoeiros que às vezes admirávamos , nos passeios de domingo , junto do Castel dell 'Ovo . Eram todos altos , bem constituídos , bem vestidos . Alguns leva­ vam um bastão , outros não . Passaram ao lado da igreja em passo apressa­ do e dirigiram-se para a praça. Com eles encontrava-se o rapaz a quem Rino esmurrara a cara, com o pulôver de decote em V sujo de sangue . Lila soltou-se da minha mão e foi a correr, eu e Carmela seguimo-la. Chegámos mesmo a tempo de ver Rino e Pasquale a recuar, lado a lado , na direcção do monumento central da praça, e o grupo dos bem vestidos a persegui-los e a dar-lhes com os bastões . Gritámos por socorro , come­ çámos a chorar, a interceptar transeuntes , mas os bastões metiam medo , as pessoas não ajudavam. Lila agarrou um dos agressores por um braço , mas deitaram-na ao chão . Vi Pasquale de joelhos, atacado a pontapé , vi Rino a proteger-se das bastonadas com o braço . Depois parou um carro , era o 1100 dos Solara. Marcello saiu do carro , primeiro levantou Lila e depois , incitado por ela, que gritava de raiva e chamava o irmão , atirou-se para a refrega, dando murros e levando . Só então Michele saiu do carro , abriu o porta­ -bagagem sem pressa, tirou qualquer coisa que parecia um pedaço de ferro reluzente e entrou na luta, batendo com uma violência fria que espero não voltar a ver na minha vida. Rino e Pasquale ergueram-se

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furiosos , batendo , apertando , rasgando . Pareceram-me dois desconheci­ dos , de tal modo estavam alterados pelo ódio . Os rapazes bem vestidos puseram-se em fuga. Michele aproximou-se de Pasquale , que sangrava do nariz , mas Pasquale repeliu-o com maus modos e passou pela cara a manga da camisa branca, vendo-a depois molhada de vermelho . Marce­ llo apanhou do chão um molho de chaves e deu-o a Rino , que agradeceu de má vontade . As pessoas que antes se tinham afastado , aproximavam­ -se agora, curiosas . Eu estava paralisada de medo . «Levem daqui as raparigas» , disse Rino aos dois Solara, no tom agra­ decido de quem faz um pedido que não pode evitar. Marcello fez-nos entrar para o carro , em primeiro lugar Lila, que opu­ nha maior resistência. Amontoámo-nos todas no banco de trás , sentadas no colo umas das outras , e partimos. Voltei-me para olhar para Pasquale e Rino , que se dirigiam para a Riviera, Pasquale a coxear. Senti-me como se o bairro se tivesse ampliado e abrangesse Nápoles inteira, incluindo as ruas da gente rica. Dentro do carro houve imediatamente conflitos. Gigliola e Ada estavam muito irritadas , protestaram pela forma incómo­ da de viajar. «Não é possível» , diziam. «Então apeiem-se e vão a pé» , disse Lila, e estavam quase a agredir-se . Marcello travou , divertido . Gi­ gliola desceu e , em passo lento de princesa, foi sentar-se à frente , no colo de Michele . Fizemos assim a viagem, com Gigliola e Michele a beijarem-se constantemente, diante dos nossos olhos . Eu olhava para ela, e ela, enquanto dava beijos apaixonados , olhava para mim. Eu desviava logo os olhos . Lila não voltou a falar até chegarmos ao bairro . Marcello pronunciou algumas palavras , procurando-a com o olhar através do espelho retrovi­ sor, mas ela não lhe deu resposta. Quisemos que nos deixassem longe de casa, para evitarmos ser vistas no carro dos Solara. Fizemos o resto do caminho a pé , as cinco raparigas juntas . Exceptuando Lila, que pare­ cia consumida pela raiva e pela preocupação , estávamos todas muito admiradas com o comportamento dos dois irmãos . Valentes , dissemos , portaram-se bem . Gigliola repetia sem parar: «Mas é claro» , «Mas o que é que julgavam» , «Mas sem dúvida» , com ar de quem , por trabalhar na pastelaria, sabia bem que os Solara eram gente impecável . A certa altura perguntou-me , mas num tom trocista: «Lá na escola, como é?» «Óptimo .» «Mas não te divertes como eu me divirto .» «É outro tipo de divertimento .»

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Quando ela, Carmela e Ada se separaram de nós para entrar em casa, eu disse a Lila: «Üs ricos são piores do que nós , sem dúvida.» Ela não respondeu . Acrescentei , circunspecta: «ÜS Solara podem ser gente de merda, mas ainda bem que lá estavam. Aqueles da Via dei Mille podiam matá-los , ao Rino e ao Pasquale .» Ela abanou a cabeça energicamente . Estava mais pálida do que o habitual e tinha sulcos roxos profundos sob os olhos . Não estava de acordo , mas não me disse porquê .

27 . Passei com nove a tudo , até ia receber uma coisa que se chamava bolsa de estudo . Dos quarenta que éramos , ficaram trinta e dois . Gino foi reprovado , Alfonso tinha que repetir três disciplinas em Setembro . Incitada pelo meu pai , fui a casa da professora Oliviero - minha mãe era contra, não gostava que ela metesse o nariz na sua fann1 ia e se per­ mitisse tomar decisões a respeito dos seus filhos , passando por cima dela - com os dois pacotes do costume , um de açúcar e outro de café , comprados no bar Solara, para lhe agradecer o seu interesse por mim . Ela não s e sentia muito bem, tinha qualquer coisa n a garganta que lhe doía, mas elogiou-me muito , regozijou-se com o meu bom aproveita­ mento , disse que me achava bastante pálida e que tencionava telefonar a uma prima sua que morava em Ischia, para ver se ela me recebia em sua casa durante algum tempo . Agradeci , mas não disse nada à minha mãe sobre aquela possibilidade . Já sabia que ela nunca me deixaria ir. Eu , em Ischia? Eu sozinha, de barco , fazendo uma viagem por mar? Eu , imagine-se , na praia, a tomar banho em maiô? Nem a Lila falei nisso . A sua vida, em poucos meses , perdera até a aura aventureira da fábrica de sapatos , e não tinha coragem de me gabar da aprovação , da bolsa de estudo , de umas possíveis férias em Ischia. Aparentemente , as coisas haviam melhorado , pois Marcello Solara dei­ xara de andar atrás dela. Mas , depois da violência da Piazza dei Martiri, dera-se um facto totalmente inesperado que a deixara perplexa. O rapaz, pondo em alvoroço sobretudo Fernando , pela honra que lhe era feita, apresentara-se na oficina para se informar sobre o estado de Rino. Mas Rino , que tivera o cuidado de não contar ao pai o que acontecera (para justificar as nódoas roxas da cara e do corpo , inventara que tinha caído

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da Lambretta de um amigo) , receando que Marcello dissesse alguma palavra a mais, levara-o imediatamente para a rua. Deram um curto pas­ seio. Rino agradeceu contrariado a Solara, não só a sua intervenção, mas também a gentileza de passar por ali para ver como ele estava. Dois mi­ nutos , e despediram-se . Quando reentrou na oficina, o pai disse-lhe: «Finalmente estás a fazer uma coisa boa.» «Ü quê?» «A amizade com o Marcello Solara.» «Não existe amizade nenhuma, papá.» «Então quer dizer que tolo eras e tolo continuas a ser.» Fernando queria dizer que alguma coisa estava a mudar, e que o filho , chamasse ele o que quisesse àquela coisa com os Solara, faria bem em encorajá-la. Tinha razão . Daí a poucos dias Marcello voltara, trazendo os sapatos do avô para pôr meias-solas; depois convidara Rino para dar uma volta de automóvel; depois oferecera-se para o ensinar a conduzir; depois encorajara-o a tratar da licença de aprendizagem, para tirar a carta, assumindo a responsabilidade de o deixar exercitar-se ao volante do seu 1100. Provavelmente não se tratava de amizade , mas os Solara, sem dúvida, tinham ganho estima por Rino . Lila, alheia àquele convívio , que se passava em torno da sapataria, onde ela não punha os pés , quando ouvia falar nisso sentia, ao contrário do pai , uma grande preocupação . A princípio , recordando-se da batalha do fogo-de-artifício , pensara: Rino odeia demasiado os Solara, não é possível que se deixe enrolar. Depois verificara que as atenções de Mar­ cello seduziam ainda mais o seu irmão mais velho do que os pais . Co­ nhecia bem a fragilidade de Rino , mas isso não evitava que se enfure­ cesse com a maneira como os Solara lhe estavam entrando na cabeça, fazendo dele uma espécie de macaquinho feliz . «Que mal há nisso?» , objectei uma vez . «São perigosos .» «Aqui , tudo é perigoso .» «Viste o Michele, aquilo que ele tirou do carro na Piazza dei Martiri?» «Não .» «Uma barra de ferro .» «Üs outros tinham bastões .» «Tu não estás a ver, Lenu , mas a barra estava bem afiada na ponta . Se ele quisesse , podia espetá-la no peito de um daqueles , ou no estô­ mago .» «Ora, tu ameaçaste o Marcello com o trinchete .»

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Ela irritou-se , disse que eu não percebia. E provavelmente era verda­ de . Ele era irmão dela, não meu; e eu gostava de argumentar, ao passo que ela tinha outras necessidades , queria afastar Rino daquela relação . Mas mal fazia qualquer alusão crítica, Rino mandava-a calar, ameaçava­ -a, às vezes batia-lhe . E o facto é que as coisas , de bom ou de mau grado , avançaram , e avançaram tanto que numa noite de fim de Junho - estava eu em casa de Lila, a ajudá-la a dobrar os lençóis já secos , ou outra coisa, não me recordo - , abriu-se a porta de casa e entrou Rino , seguido por Marcello . O rapaz convidara Solara para jantar, e Fernando , que regressara havia pouco da oficina, cansado , de início aborreceu-se , mas depois sentiu-se honrado e mostrou cordialidade . Nunzia, nem se fala. Ficou agitada, agradeceu as três garrafas de bom vinho que Marcello trouxera, levou os outros filhos para a cozinha, a fim de não incomodarem. Eu própria participei , com Lila, nos preparativos do jantar. «Vou deitar aqui veneno das baratas» , dizia Lila furiosa, junto do fogão , e ríamos , enquanto Nunzia nos mandava calar. «Veio cá para se casar contigo» , provoquei-a eu , «vai pedir a tua mão ao teu pai .» «Está muito enganado .» «Porquê?» , perguntou Nunzia, ansiosa. «Se ele te quiser, dizes-lhe que não?» «Ora, já lhe disse que não .» «De verdade?» «Sim.» «Que estás tu a dizer?» «É verdade» , confirmei eu . «Que o teu pai nunca saiba disso , senão , mata-te .» Durante o jantar, só Marcello é que falou . Era evidente que se fize­ ra convidado , e Rino , que não fora capaz de lhe dizer que não , à mesa esteve sempre calado , ou então ria sem motivo . Solara dirigia a conversa sobretudo a Fernando , mas sem se esquecer nunca de servir água ou vinho a Nunzia , a Lila, a mim . Disse ao dono da casa que era muito estimado no bairro pelas suas qualidades de sapateiro . Disse­ -lhe que seu pai gabava muito a sua grande habilidade . Disse-lhe que Rino sentia uma admiração sem limites pela sua competência como sapateiro . Fernando , em parte por causa do vinho , comoveu-se . Gaguejou qual­ quer coisa em louvor de Silvio Solara, e chegou mesmo a dizer que

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Rino era muito trabalhador e estava a tomar-se muito competente . En­ tão , Marcello começou a elogiar a necessidade de progredir. Disse que o avô começara numa cave , depois o pai ampliara o negócio , e hoje, o bar-pastelaria Solara era aquilo que se sabia, todos o conheciam , vinha gente de toda a parte de Nápoles tomar um café , comer um bolo . «Que exagero» , exclamou Lila, e o pai fulminou-a com o olhar. Mas Marcello sorriu-lhe com humildade e admitiu: «Sim, talvez tenha exagerado um pouco , mas é só para dizer que o dinheiro deve circular. Começa-se por uma cave , e de geração para ge­ ração pode-se chegar longe .» Depois , com visível incómodo de Rino , começou a enaltecer a ideia de fazer sapatos novos . E a partir desse momento começou a olhar para Lila como se , elogiando a energia das gerações , estivesse a elogiá-la sobretudo a ela. Dizia: se uma pessoa sentir vontade , se tiver habilidade , se for capaz de criar coisas com qualidade , que agradem , porque é que não há-de tentar? Falou num dialecto bonito , sedutor, e enquanto falou não tirou os olhos da minha amiga. Eu sentia e via que ele estava apai­ xonado por ela como nas canções , que gostaria de a beijar, de respirar o hálito dela, que ela poderia fazer dele tudo o que quisesse , que aos olhos dele encarnava todas as qualidades femininas possíveis . «Sei» , concluiu Marcello , «que o s vossos filhos fizeram u m lindo par de sapatos , número 43 , precisamente o meu número .» Fez-se um longo silêncio . Rino fixou os olhos no prato e não ousava olhar para o pai . Só se ouvia o rebuliço do pintassilgo junto à janela. Fernando disse devagar: «Sim, é exactamente o número 43 .» «Gostaria muito de os ver, se não se importarem.» Fernando gaguejou: «Não sei onde estão . Tu sabes , Nunzia?» «Ela é que os tem» , disse Rino , apontando para a irmã. Lila olhou directamente para o rosto de Solara, e disse: «Tinha-os , sim, estavam guardados na arrecadação . Mas anteontem a mãe disse-me para fazer limpeza e deitei-os fora. Já que ninguém gos­ tava deles .» Rino irritou-se e disse: «És uma mentirosa, vai já buscar os sapatos .» Fernando também disse , enervado: «Vai buscar os sapatos , anda.» Lila explodiu , dirigindo-se ao pai:

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«Então agora já os queres? Deitei-os fora porque disseste que não gostavas deles .» Fernando bateu na mesa com a mão aberta, o vinho estremeceu nos copos: «Levanta-te e vai buscar os sapatos imediatamente .» Lila afastou a cadeira, levantou-se . «Deitei-os fora» , repetiu baixinho e saiu da sala. Não voltou a aparecer. O tempo foi passando em silêncio . O primeiro a alarmar-se foi preci­ samente Marcello . Disse , preocupado: «Se calhar errei , não me tinha apercebido de que existem problemas .» «Não existem problemas» , disse Fernando , e segredou à mulher: «Vai ver o que a tua filha está a tramar.» Nunzia saiu da sala. Quando voltou vinha muito atarantada, não en­ contrava Lila. Procurámo-la por toda a casa, não estava. Chamámos da janela, nada. Marcello , desolado , despediu-se . Assim que ele saiu , Fer­ nando berrou para a mulher: «Tão verdade como Deus ser Deus, é desta vez que mato a tua filha.» Rino uniu-se ao pai nas ameaças , Nunzia começou a chorar. Eu fui­ -me embora quase em bicos de pés , assustada. Mas assim que fechei a porta e me encontrei no patamar, Lila chamou-me . Estava no último andar, subi em bicos de pés . Encontrei-a aninhada junto da porta do terraço , na penumbra. Tinha os sapatos no colo , vi-os pela primeira vez acabados . Brilhavam à luz fraca de uma lâmpada pendurada de um fio eléctrico . «0 que te custava deixá-lo vê-los?» , perguntei , desorientada. Abanou energicamente a cabeça. «Não quero que ele lhes toque sequer.» Mas estava arrasada devido à sua reacção extrema. Tremia-lhe o lá­ bio inferior, algo que nunca lhe acontecia. Convenci-a pouco a pouco a voltar para casa, não podia ficar escon­ dida lá em cima eternamente . Acompanhei-a a casa, contando que a minha presença a protegesse . Mas houve da mesma maneira gritos , in­ sultos , algumas bofetadas . Fernando gritou-lhe que , por causa de um capricho , o obrigara a fazer má figura perante um convidado importan­ te . Rino arrancou-lhe os sapatos da mão , disse que lhe pertenciam, que o trabalho fora todo dele . Ela começou a chorar, murmurando: «Eu também trabalhei , mas melhor seria que não o tivesse feito , tomaste-te uma besta enlouquecida.» Foi Nunzia quem pôs fim àquela tortura. Fez-

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-se lívida e , com uma voz fora do habitual , ordenou aos filhos , e tam­ bém ao marido - ela, que era sempre submissa - , que acabassem imediatamente com aquilo , que lhe entregassem os sapatos , que não retorquissem uma única palavra, se não queriam que ela se atirasse da janela. Rino deu-lhe logo os sapatos , e daquela vez as coisas ficaram por ali . Eu escapuli-me dali para fora.

28 . Mas Rino não se deu por vencido , nos dias que se seguiram conti­ nuou a agredir a irmã com palavras e com as mãos . Cada vez que me encontrava com Lila via-lhe uma nova nódoa roxa. Passado algum tempo senti que ela estava resignada. Uma manhã ele impôs-lhe que saíssem juntos , que o acompanhasse até à sapataria. Pelo caminho ten­ taram ambos , com palavras cautelosas , encontrar uma maneira de aca­ bar com aquela guerra. Rino disse-lhe que lhe queria bem, mas que ela não queria bem a ninguém, nem aos pais , nem aos irmãos . Lila murmu­ rou : «Ü que é querer bem, para ti , e o que é querer bem para a nossa família? Estou à espera que me digas .» Palavra puxa palavra, ele revelou-lhe o que tinha em mente . «Se o Marcello gostar dos sapatos , o papá muda de ideias .» «Não acredito .» «De certeza. E então se o Marcello os comprar, o papá percebe que os teus modelos são bons , que podem dar frutos , e deixa-nos começar a trabalhar.» «Nós três?» «Eu , ele , e talvez tu , também. O papá é capaz de fazer um par de sapatos, com todos os acabamentos , em quatro dias , no máximo cinco . E eu , se me aplicar, vais ver que não lhe fico atrás . Fazemo-los , vende­ mo-los e autofinanciamo-nos; fazemo-los , vendemo-los e autofinancia­ mo-nos .» «A quem os vendemos? Ao Marcello Solara, sempre?» «Os Solara são comerciantes , conhecem gente importante . Farão reclame aos nossos sapatos.» «E fá-lo-ão de graça?» «Se quiserem uma pequena percentagem, damos-lha.» «E porque haviam de se contentar com uma percentagem pequena?» «Simpatizaram comigo .»

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«Üs Solara?» «Sim.» Lila suspirou: «Vamos fazer uma coisa: eu digo ao papá, e vejamos o que ele pensa.» «Não te atrevas .» «Ou é assim, ou nada feito .» Rino ficou calado , muito nervoso . «Está bem. De qualquer modo , falas tu , que sabes falar melhor.» Nessa noite , ao jantar, diante do irmão , que tinha o rosto afogueado , Lila disse a Fernando que Marcello não só tinha mostrado muita curio­ sidade pela iniciativa dos sapatos , como até podia estar interessado em comprá-los , e mais, se se entusiasmasse com a questão do ponto de vista comercial , faria publicidade ao produto nos círculos que frequen­ tava, em troca, naturalmente , de uma pequena percentagem sobre as vendas . «Isso fui eu que disse» , precisou Rino , de olhos baixos , «e não o Marcello .» Fernando olhou para a mulher. Lila percebeu que haviam falado so­ bre o assunto e chegado a uma conclusão secreta. «Amanhã» , disse , «ponho os vossos sapatos na montra da loja. Se alguém os quiser ver, se os quiser experimentar, se os quiser comprar, ou outra porra qualquer, tem de falar comigo , sou eu que decido .» Dias depois passei pela loja. Rino estava a trabalhar, Fernando estava a trabalhar, os dois curvados , de cabeça baixa. Na montra, entre caixas de cromatina e atacadores , vi os bonitos e harmoniosos sapatos da mar­ ca Cerullo . Um anúncio colado no vidro , decerto escrito por Rino , dizia mesmo assim, pomposamente: «Aqui , sapatos da marca Cerullo .» Pai e filho esperavam que a boa sorte chegasse . Mas Lila estava céptica, amuada. Não dava crédito às hipóteses ingé­ nuas do irmão e receava o indecifrável acordo entre o pai e a mãe . Isto é, esperava coisas más . Passou uma semana, e ninguém mostrou o me­ nor interesse pelos sapatos na montra, nem sequer Marcello . Só porque foi instado por Rino , na verdade quase arrastado à força para a loja, é que Solara olhou para eles , mas como se tivesse outras coisas em men­ te . Experimentou-os , sim, mas disse que lhe ficavam um pouco aperta­ dos . Descalçou-os de imediato e desapareceu sem uma palavra sequer de apreço , como se estivesse com dor de barriga e precisasse de ir a correr para casa. Decepção para o pai e para o filho . Mas , dois minutos depois , Marcello reapareceu . Rino pôs-se em pé de um salto , radiante ,

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e estendeu-lhe a mão , como se qualquer acordo , com aquela simples reaparição , ficasse já estipulado . Mas Marcello ignorou-o e dirigiu-se directamente a Fernando . Disse-lhe de um só fôlego: «As minhas intenções são muito sérias , dom Fernà: queria pedir-lhe a mão da sua filha Lina.»

29 . Rino reagiu àquela viragem com uma febre violenta, que o afastou do trabalho alguns dias . Quando a febre bruscamente desapareceu , teve manifestações inquietantes: levantava-se da cama no meio da noite , mas a dormir, e em silêncio e muito agitado ia até à porta, que se esforçava para abrir, de olhos arregalados . Nunzia e Lila, assustadas , arrastavam­ -no de novo para a cama. Fernando , que juntamente com a mulher intuíra de imediato as reais intenções de Marcello , falou com a filha calmamente . Explicou-lhe que a proposta de Marcello Solara era importante , não só para o seu futuro como para o futuro de toda a farm1ia. Disse-lhe que ela ainda era uma criança e não tinha de dizer que sim imediatamente , mas acrescentou que , como pai , a aconselhava a aceitar. Um longo noivado , em casa, habituá-la-ia pouco a pouco ao casamento . Lila respondeu-lhe , com idêntica calma, que em vez de ficar noiva e depois casar-se com Marcello Solara, antes iria afogar-se nos pauis . Seguiu-se uma grande altercação , mas que não a fez mudar de opinião . Eu fiquei pasmada com aquela notícia. Sabia muito bem que Marce­ llo queria por força ser namorado de Lila, mas não me passaria pela cabeça que na nossa idade se pudesse receber uma proposta de casa­ mento . No entanto , Lila recebera-a, e nem tinha ainda quinze anos , nunca namorara às escondidas , nunca trocara um beijo com ninguém. Pus-me imediatamente do lado dela. Casar-se? Com Marcello Solara? Talvez até ter filhos? Não , absolutamente não . Encorajei-a a combater aquela nova guerra contra o pai e jurei que a apoiaria, apesar de ele já ter perdido a calma e andar a ameaçá-la, dizendo que , para o bem dela, lhe partiria os ossos se não aceitasse um partido daquela importância. Mas não pude ficar ao lado dela. Em meados de Julho aconteceu uma coisa com que devia ter contado , mas que afinal me apanhou despreve­ nida e me perturbou . Uma tarde , depois da habitual volta pelo bairro a conversar com Lila sobre aquilo que lhe estava a acontecer, e como sair

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daquela situação , voltei para casa e a minha irmã Elisa veio abrir-me a porta. Disse , excitada, que na sala de jantar se encontrava a sua profes­ sora, isto é, a senhora Oliviero . Estava a conversar com a nossa mãe . Entrei timidamente na sala, e a minha mãe disse-me , aborrecida: «A professora Oliviero diz que tu precisas de repousar, que andas muito cansada.» Olhei para a professora sem compreender. Ela é que parecia precisar de repouso , estava pálida e tinha a cara inchada. Anunciou-me: «A minha prima respondeu ontem mesmo . Podes ir para casa dela, em Ischia, e ficar até ao fim de Agosto . Recebe-te com muito prazer, só tens de ajudá-la um pouco em casa.» Falou comigo como se fosse ela a minha mãe , e como se a minha verdadeira mãe , a que era coxa e tinha um olho torto , fosse apenas um ser vivo descartável , e, como tal , não devesse ser tomada em considera­ ção . Além disso , não se foi embora depois de me transmitir aquele re­ cado , demorou-se ainda uma hora bem contada, mostrando-me os livros que trouxera para me emprestar. Explicou-me quais os que devia ler primeiro e quais depois , fez-me prometer que antes de os ler os forraria , e ordenou-me que lhos devolvesse todos n o final d o Verão , sem u m único canto dobrado . A minha mãe aguentou com paciência. Ficou sen­ tada, atenta, embora o olho dançarino lhe desse um ar alucinado . Só explodiu quando a professora, finalmente , se despediu , com um gesto de desdém para ela e nem uma carícia à minha irmã, que estava à espe­ ra disso e teria ficado orgulhosa. Dirigiu-se a mim: «A menina tem de ir para Ischia repousar, a menina anda muito can­ sada. Vai já fazer o jantar, anda, senão dou-te uma bofetada.» Mas passados dois dias , depois de me ter tirado as medidas e me ter feito à pressa um fato de banho que copiou não sei de onde , foi ela mesma que me acompanhou ao barco . Ao longo do caminho até ao porto , enquanto me comprava o bilhete e depois , enquanto aguardámos o embarque , bombardeou-me com recomendações . O que mais a assus­ tava era a travessia. «Esperemos que o mar não esteja agitado» , dizia quase para si mesma, e jurou-me que em pequena, tinha eu três ou qua­ tro anos , me levava a Coroglio todos os dias para me curar do catarro , e que o mar era lindo e eu aprendera a nadar. Mas eu não me lembrava de Coroglio , nem do mar, nem de saber nadar, e disse-lho . E ela ficou com um ar ressentido , como que a dizer que a culpa do meu eventual afogamento não devia ser atribuída a ela, que fizera o que devia fazer para evitá-lo , mas simplesmente ao meu esquecimento . Depois recomen-

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dou-me que não me afastasse da beira da água, nem mesmo com o mar calmo , e que ficasse em casa se ele estivesse agitado ou com a bandeira vermelha. «Sobretudo» , disse ainda, «quando tiveres o estômago cheio , ou se te aparecer o sangue , não deves sequer molhar os pés .» Antes de nos separarmos , pediu a um velho marinheiro que olhasse por mim. Quando o barco se afastou do cais , senti-me aterrorizada e feliz ao mes­ mo tempo . Saía de casa pela primeira vez , ia fazer uma viagem, uma viagem por mar. O corpo volumoso da minha mãe - assim como o bairro e as atribulações de Lila - foi ficando cada vez mais longe , ex­ tinguiu-se .

30 . Desabrochei . A prima da professora chamava-se Nella Incardo e mo­ rava em Barano . Cheguei à povoação de autocarro , encontrei facilmente a casa. Nella revelou-se uma mulherona simpática, muito alegre , falado­ ra, solteira. Alugava os quartos a veraneantes e ficava com um quartinho para si e a cozinha. Eu ia dormir na cozinha. Tinha de fazer a cama à noite e desmontar tudo (tábuas , suportes , colchão) de manhã. Descobri que tinha obrigações inevitáveis: levantar-me às seis e meia, preparar o pequeno-almoço para ela e para os hóspedes - quando cheguei estava lá um casal inglês com duas crianças - , levantar a mesa e lavar chávenas e tigelas , pôr a mesa para o jantar e lavar a loiça antes de ir para a cama. O resto do tempo era meu . Podia estar no terraço a ler com o mar em frente , ou descer a pé por uma estrada branca e íngreme até uma praia comprida, larga e de areia escura, que se chamava praia dos Maronti . No início , com tantos medos que a minha mãe me inculcara e os problemas que tinha com o meu corpo , passava o tempo no terraço , toda vestida, escrevendo uma carta por dia a Lila, todas elas cheias de perguntas , ditos espirituosos e descrições empolgantes da ilha. Mas Nella uma manhã fez troça de mim , dizendo: «0 que fazes tu assim? Veste o fato de banho.» Quando o vesti ela desatou a rir, achou que era de velha. Fez-me outro que na opinião dela era mais moderno , muito decotado no peito , mais justo no traseiro , num bonito tom de azul . Experimentei-o e ela entusiasmou-se , disse que já eram horas de eu ir à praia, chegava de terraço . No dia seguinte , entre mil receios e mil curiosidades , peguei numa toalha e num livro e fui até aos Maronti . O percurso pareceu-me longo ,

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não encontrei ninguém a subir nem a descer. A praia não tinha fim e estava deserta, a areia granulosa roçagava a cada passo . Do mar chega­ va-me um odor intenso , um som seco e monótono . Fiquei muito tempo em pé a olhar para aquela massa de água. Depois sentei-me na toalha, sem saber bem o que fazer. Levantei-me e fui mo­ lhar os pés . Como era possível viver numa cidade como Nápoles e nunca ter pensado , nem uma vez só , em ir tomar um banho de mar? Mas era verdade . Avancei com cautela, deixando que a água me subisse dos pés até aos tornozelos , às coxas . Depois perdi o pé e afundei-me . Esbra­ cejei aterrorizada, engoli água, voltei à superfície e ao ar. Apercebi-me de que movia instintivamente os pés e os braços de uma certa maneira, para me manter à tona de água . Portanto , sabia nadar. Era verdade que a minha mãe me levara à praia em pequena, e que , enquanto ela fazia os banhos de areia, eu aprendera. Vi-a num relance , mais nova, menos es­ tragada, sentada na areia preta ao sol do meio-dia, com um vestido branco às florinhas , a perna saudável tapada até ao joelho pelo vestido , e a perna doente toda enterrada na areia escaldante . A água do mar e o sol depressa me apagaram do rosto a inflamação do acne . Queimei-me , escureci . Esperava cartas de Lila, tínhamos pro­ metido escrever-nos à despedida, mas não chegaram. Pratiquei um pouco de inglês com a família que estava hospedada em casa de Nella. Perceberam que eu queria aprender e falavam cada vez mais comigo com simpatia, fiz um grande avanço . Nella, que estava sempre alegre , encorajava-me , comecei a servir-lhe de intérprete . Entretanto , não per­ dia a oportunidade de me fazer elogios . Fazia-me grandes pratos , cozi­ nhava muito bem. Dizia que eu era um palito quando cheguei e agora, graças ao tratamento que me dava, estava muito bonita. Enfim, os últimos dez dias de Julho deram-me uma sensação de bem­ -estar até então desconhecida. Experimentei um sentimento que depois , ao longo da vida, se repetiu muito: a alegria do que é novo . Gostava de tudo: de me levantar cedo , preparar o pequeno-almoço , arrumar a cozi­ nha, passear por Barano, descer e subir a estrada para os Maronti , ler estendida ao sol , mergulhar, ler mais . Não tinha saudades do meu pai , dos meus irmãos , da minha mãe , das ruas do bairro , dos jardins . Só sentia falta de Lila, Lila que não respondia às minhas cartas . Receava que lhe acontecessem coisas , boas ou más , sem eu estar presente . Era um receio antigo , um receio que nunca me passara: o medo de que , perdendo bocados da vida dela, a minha perdesse intensidade e impor­ tância. O facto de ela não me responder aumentava essa preocupação .

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Embora me esforçasse para lhe transmitir nas cartas o privilégio que eram os meus dias em Ischia, o meu rio de palavras e o seu silêncio pareciam demonstrar que a minha vida era maravilhosa, mas pobre de acontecimentos , dando-me até tempo de lhe escrever todos os dias , ao passo que a dela era negra mas cheia. Só no final de Julho é que Nella me disse que para o lugar dos ingle­ ses chegaria, no primeiro dia de Agosto , uma farm1ia napolitana. Era o segundo ano que vinham. Pessoas muito finas , muito educadas , amá­ veis . Sobretudo o marido , um verdadeiro cavalheiro que lhe dizia sem­ pre belas palavras . E depois o filho mais velho , um bonito rapaz , alto , magro mas robusto , fazia este ano dezassete anos. «Vais deixar de estar sozinha» , disse-me , e eu envergonhei-me , fiquei ansiosa pela chegada desse rapaz , receei que não conseguíssemos dizer duas palavras um ao outro , que ele não gostasse de mim. Assim que os ingleses partiram, deixando-me dois romances para praticar a leitura, e o seu endereço , para poder visitá-los se resolvesse ir a Inglaterra, Nella quis que a ajudasse a encerar os quartos , a mudar as roupas , a fazer as camas de lavado . Fi-lo com gosto, e enquanto lavava os pavimentos ela gritou-me da cozinha: «Que inteligente que és , até sabes ler em inglês . Não te chegam os livros que trouxeste?» Fartou-se de me elogiar à distância, em voz alta, por ser disciplinada, por ser ajuizada, por ler todo o dia e também à noite. Quando voltei para a cozinha, encontrei-a com um livro na mão . Disse que lhe fora oferecido pelo senhor que chegava no dia seguinte, que fora escrito por ele . Nella tinha-o sempre na mesa-de-cabeceira, todas as noites lia um poema, pri­ meiro em silêncio e depois em voz alta. Já os sabia todos de cor. «Vê o que ele me escreveu» , disse , estendendo-me o livro . Era Expressões de Bonança , d e Donato Sarratore . A dedicatória di­ zia: «À Nella, que é um doce, e às suas compotas.»

31. Escrevi imediatamente a Lila. Páginas e páginas de apreensão , ale­ gria, desejo de fuga, antecipação apaixonada do momento em que veria Nino Sarratore , em que desceria a estrada para os Maronti com ele , em que tomaríamos banho , olharíamos para a Lua e para as estrelas , dormi­ ríamos sob o mesmo tecto . Não fazia senão pensar nos momentos inten-

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sos em que ele , segurando o irmão pela mão , havia um século ah , quanto tempo passara - , me declarara o seu amor. Éramos duas crian­ ças , então . Agora sentia-me adulta, quase uma velha. No dia seguinte fui à paragem da camioneta, para ajudar os hóspedes a trazer as bagagens . Sentia uma grande agitação, não dormira em toda a noite . A camioneta chegou , parou , e os passageiros saíram. Reconheci Donato Sarratore , reconheci Lidia, a mulher, reconheci Marisa, apesar de estar muito mudada, reconheci Clelia sempre à parte, reconheci o peque­ no Pino , que era agora um rapazinho de rosto sério, e calculei que o me­ nino cheio de birras que estava a atormentar a mãe fosse aquele que , a última vez que eu vira a farm1ia Sarratore completa, ainda ia no carrinho, sob a chuva de projécteis atirados por Melina. Mas não vi Nino . Marisa lançou-me os braços ao pescoço , com um entusiasmo que eu não esperava. Ao longo de todos aqueles anos nunca, mas nunca mais , me recordara dela, ao passo que ela disse que pensara muito em mim , com saudades . Quando falou nos velhos tempos d o bairro , e disse aos pais que eu era a filha do Greco , o porteiro , Lidia, a mãe , fez um trejei­ to de desagrado e correu a agarrar o filho pequeno , e a repreendê-lo não sei porquê , enquanto Donato Sarratore se ocupou das bagagens , sem uma frase sequer, tipo: como está o teu pai . Fiquei deprimida. Os Sarratore instalaram-se nos quartos, eu fui à praia com Marisa, que conhecia muito bem os Maronti e Ischia inteira, e estava impaciente , queria ir ao Porto , onde havia mais animação , e a Forio , e a Casamicciola, a toda a parte menos a Barano , que na opinião dela era uma pasmaceira. Contou-me que estudava para secretária em­ presarial e que tinha um namorado , que eu em breve conheceria porque ele vinha visitá-la, mas às escondidas . Por fim disse-me uma coisa que me deu um baque no coração . Sabia tudo a meu respeito , sabia que eu andava na secundária, que era uma óptima aluna e que namorava com Gino , o filho do farmacêutico . «Quem te contou?» «Ü meu irmão .» Portanto , Nino reconhecera-me , portanto sabia quem eu era, portanto não era desatenção , mas talvez timidez , talvez falta de à-vontade , talvez vergonha por causa da declaração que me fizera em criança. «Já há tanto tempo que acabei tudo com o Gino» , disse , «O teu irmão não está bem informado .» «Só pensa em estudar, aquele , já há muito tempo que me falou em ti; anda quase sempre com a cabeça nas nuvens.» -

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«Ele não vem?» «Vem quando o pai se for embora.» Falou-me de Nino de forma muito crítica. Não tinha sentimentos . Não se entusiasmava com coisa nenhuma, não se irritava mas também não era simpático . Era metido consigo , a única coisa que o interessava era o estudo . Nada lhe dava prazer, era de sangue frio . A única pessoa que mexia um bocado com ele era o pai . Não quer dizer que discutis­ sem, era um filho respeitador e obediente . Mas Marisa sabia bem que ele não suportava o pai . Ela, por sua vez , adorava-o . Era o homem me­ lhor e mais inteligente do mundo . «E fica cá muito tempo , o teu pai? Quando se vai embora?» , perguntei-lhe com um interesse talvez excessivo . «Só três dias . Tem de ir trabalhar.» «E o Nino chega daqui a três dias?» «Sim. Inventou que tinha de ajudar a fami1 ia de um amigo a fazer a mudança.» «E não é verdade?» «Ele não tem amigos . E aliás , não deslocaria aquela pedra dali para aqui , nem pela mãe , a única pessoa a quem quer bem, quanto mais aju­ dar um amigo .» Tomámos banho e enxugámo-nos passeando à beira da água. A rir, indicou-me algo em que eu não reparara. Ao fundo do areal escuro viam-se formas brancas , imóveis . Arrastou-me , a rir, pela areia escal­ dante , e a certo ponto viu-se claramente que eram pessoas . Pessoas vi­ vas cobertas de lama. Era um tratamento que faziam, não se sabia a quê . Estendemo-nos na areia e rebolámo-nos, empurrando-nos uma à outra, fingindo que éramos múmias , como aquelas pessoas . Divertimo-nos muito e depois fomos tomar outro banho . À noite a fami1ia Sarratore jantou na cozinha, tendo convidado Nella e eu para lhes fazermos companhia. Foi um serão agradável . Lidia não fez qualquer referência ao bairro , mas , passada a fase inicial de hostili­ dade , fez perguntas a meu respeito . Quando Marisa lhe disse que eu era muito estudiosa e andava na mesma escola que Nino , tomou-se mais amável . Mas o mais simpático de todos foi Donato Sarratore . Cobriu Nella de elogios, deu-me os parabéns pelos resultados escolares que ti­ ve , dispensou muitas atenções a Lídia, brincou com Ciro , o mais peque­ no , quis ser ele a arrumar tudo , nem me deixou lavar a loiça. Observei-o com muita atenção e pareceu-me uma pessoa diferente daquela de que me lembrava. Sim, estava mais magro , deixara crescer

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bigode , mas à parte o aspecto físico havia algo mais que não entendi bem e que resultava do comportamento . Talvez me tivesse parecido mais paternal do que o meu pai e de uma cortesia fora do comum. Essa sensação acentuou-se nos dois dias seguintes . Quando íamos para a praia, Sarratore não permitia que Lidia nem nós duas , raparigas , levássemos nada. Ele é que ia carregado com o guarda-sol , os sacos com as toalhas e a comida para o almoço , à ida, e a mesma coisa no regresso , quando o caminho era todo a subir. Só nos entregava a carga quando Gianni choramingava e queria que o levassem ao colo . Tinha um corpo seco , com poucos pêlos . Usava um fato de banho de cor incerta, não de tecido , parecia de lã fina. Nadava muito mas sem se afastar, queria mos­ trar a mim e a Marisa como era o estilo livre . A filha nadava como ele , com as mesmas braçadas cuidadosas , lentas , e eu comecei a imitá-los . Exprimia-se mais em italiano do que em dialecto e tendia, com uma certa insistência, principalmente comigo , para compor frases complica­ das e perífrases fora do comum. Convidava-nos animadamente , a mim , Lidia e Marisa, para corrermos para c á e para lá com ele , junto à reben­ tação , para tonificar os músculos , e entretanto fazia-nos rir, com caretas , vozes desafinadas , passadas cómicas . Quando tomava banho com a mulher, boiavam abraçados , falavam em voz baixa, riam muito . No dia em que se foi embora fiquei triste , como Marisa ficou triste , como Lidia ficou triste e como Nella ficou triste . A casa, apesar de ecoar as nossas vozes , parecia tão silenciosa como um túmulo . A única consolação foi que finalmente chegaria Nino .

32 . Experimentei sugerir a Marisa que o fôssemos esperar ao porto , mas ela recusou , disse que o irmão não merecia essas atenções . Nino chegou à noite . Alto , muito magro , camisa azul, calças escuras , sandálias , um saco ao ombro , não mostrou a mínima emoção por me encontrar em Ischia, naquela casa, cheguei a pensar que tivessem telefone em Nápo­ les , que Marisa o tivesse de algum modo informado . À mesa expressou­ -se por monossílabos , ao pequeno-almoço não apareceu . Acordou tarde , fomos tarde para a praia, pouco ou nada levou . Mergulhou imediata­ mente , com decisão , sem o virtuosismo exibicionista do pai , com natu­ ralidade . Desapareceu , receei que se tivesse afogado , mas nem Marisa nem Lidia se preocuparam. Reapareceu quase duas horas depois , pôs-se

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a ler e a fumar cigarro atrás de cigarro . Leu todo o dia, sem nunca nos dirigir a palavra, e dispondo as beatas apagadas na areia, em filas de duas . Também eu me pus a ler, recusando o convite de Marisa para passear ao longo da rebentação . Ao jantar comeu à pressa e saiu . Levan­ tei a mesa e lavei a loiça, pensando nele . Fiz a cama na cozinha e pus­ -me de novo a ler, à espera que ele voltasse . Li até quase à uma e depois deixei-me dormir com a luz acesa e o livro aberto sobre o peito . De manhã acordei com a luz apagada e o livro fechado . Pensei que teria sido ele e senti uma onda de amor nas veias , que nunca sentira. Passados alguns dias as coisas melhoraram. Reparei que de vez em quando olhava para mim , e depois desviava os olhos . Perguntei-lhe o que estava a ler e disse-lhe o que eu estava a ler. Falámos das nossas leituras , enfastiando Marisa. A princípio pareceu ouvir-me com atenção , mas depois , tal como Lila, começou a tomar as rédeas da conversa e prosseguiu , cada vez mais preso aos seus raciocínios . Como queria que ele se apercebesse da minha inteligência, tentava interrompê-lo , argu­ mentar, mas era difícil . Só parecia satisfeito com a minha presença se eu ficasse em silêncio a ouvi-lo , o que depressa me resignei a fazer. Até porque ele dizia coisas que eu me sentia incapaz de pensar, ou pelo menos de dizer com a mesma segurança, e dizia-as num italiano forte , cativante . Marisa às vezes atirava-nos bolas de areia, outras vezes começava a gritar: «Acabem com isso , estou-me lixando para esse Dostoievski , estou-me nas tintas para os Irmãos Karamazov.» Então Nino interrompia­ -se bruscamente e afastava-se pela beira da água de cabeça baixa, até se transformar num pontinho . Eu passava um bocado com Marisa a falar do seu namorado , que afinal não podia vir vê-la em segredo , o que a fazia chorar. Entretanto , sentia-me cada vez melhor, nem podia crer que a minha vida pudesse ser assim. Talvez , pensava, as raparigas da Via dei Mille - aquela toda vestida de verde , por exemplo - tivessem uma vida como aquela. De três em três ou de quatro em quatro dias , Donato Sarratore volta­ va, mas ficava no máximo vinte e quatro horas , e partia . Dizia que não pensava em mais nada senão no dia 1 3 de Agosto , quando se instalaria em Barano durante duas semanas seguidas . Assim que o pai aparecia, Nino tornava-se uma sombra. Comia, desaparecia, reaparecia alta noite e não pronunciava uma palavra. Ouvia o pai com uma espécie de sorri­ zinho tolerante , e nunca mostrava concordar nem opor-se a qualquer coisa que ele dissesse . Só dava alguma opinião decisiva e explícita

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quando Donato mencionava o almejado 1 3 de Agosto . Então , passados dois minutos , recordava à mãe - à mãe , não a Donato - que a seguir ao feriado de 15 de Agosto tinha de regressar a Nápoles porque combi­ nara encontrar-se com alguns colegas de escola (planeavam reunir-se numa casa de campo em Avellino) , e também para começar a fazer os trabalhos de casa das férias . «É mentira» , sussurrava-me Marisa, «não tem trabalhos de casa nenhuns .» Mas a mãe elogiava-o , e o pai também. Aliás , Donato começava logo com um dos seus argumentos preferidos: Nino tinha muita sorte em estudar; ele só pudera frequentar até ao se­ gundo ano da escola industrial , depois teve de ir trabalhar; mas se tives­ se podido fazer os mesmos estudos que o filho , sabe-se lá até onde teria chegado . E concluía: «Estuda, Ninu , anda, ouve o que o pai diz , e faz o que eu não consegui fazer.» Aquele tom incomodava-o mais do que qualquer outra coisa. Por vezes , só para o evitar, chegava a convidar as duas , eu e Marisa, para sairmos com ele . Dizia em voz baixa aos pais, como se nós não fizésse­ mos senão atormentá-lo: «Querem ir comer um gelado , querem dar uma voltinha, eu acompanho-as .» Nessas ocasiões Marisa ia a correr preparar-se , toda contente , e eu lamentava-me porque tinha sempre os mesmos trapos para vestir. Mas parecia-me que pouco lhe importava que eu estivesse bonita ou feia. Assim que saíamos de casa ele começava a falar, Marisa sentia-se con­ trariada, dizia que melhor seria ter ficado em casa. Eu , pelo contrário , estava suspensa das palavras de Nino . Admirava-me muito que , na agitação do Porto , entre jovens e menos jovens que olhavam intencio­ nalmente para mim e para Marisa, e se riam, e tentavam meter conversa, ele não mostrasse nem um traço daquela disposição para a violência que existia em Pasquale , Rino , Antonio e Enzo , quando saíam connosco e alguém nos deitava um olhar a mais. Como nosso guarda-costas , de pouco valia. Talvez por estar absorvido pelas coisas que lhe passavam pela cabeça, pela mania de me falar delas , deixava que à nossa volta acontecesse de tudo . Foi assim que Marisa fez amizade com uns rapazes de Forio , que a vieram visitar a Barano , e ela levou-os connosco para a praia dos Ma­ ronti , e por isso passámos a sair todas as noites . Íamos os três até ao Porto , mas , uma vez lá chegados , ela ia-se embora com os novos amigos (quando é que Pasquale seria tão liberal com Carmela, ou Antonio com Ada?) , e nós passeávamos ao longo do mar. Depois encontrávamo-nos por volta das dez e voltávamos para casa.

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Uma noite , quando ficámos sós , Nino disse-me sem mais nem me­ nos que invejara desde miúdo a relação que havia entre mim e Lila. Via-nos de longe , sempre juntas , sempre a conversar, e gostaria de ter feito amizade connosco , mas faltara-lhe sempre a coragem. Depois sorriu e disse: «Lembras-te da declaração que eu te fiz?» «Sim.» «Gostava imenso de ti .» Fiquei toda afogueada, sussurrei estupidamente: «Obrigada.» «Pensava eu que seríamos noivos e ficaríamos os três juntos para sempre , eu , tu e a tua amiga.» «Juntos?» Riu-se de como era em criança. «Não percebia nada de noivados .» Depois perguntou-me por Lila. «Continuou a estudar?» «Não .» «E faz o quê?» «Ajuda os pais.» «Era óptima, ninguém conseguia apanhá-la, toldava-me a cabeça.» Disse mesmo assim (toldava-me a cabeça) , e se antes ficara decepcionada por ele ter dito que a declaração de amor fora só uma tentativa para se introduzir na minha relação com Lila, desta vez sofri de forma evidente , senti realmente uma dor no peito . «Ela mudou» , disse , «já não é assim .» E senti o impulso de acrescentar: «Ouviste o que os professores di­ zem de mim, na escola?» Felizmente consegui conter-me . Porém , de­ pois daquela conversa, tornou-se difícil contar a Lila o que me estava a acontecer, e deixei de lhe escrever. De qualquer maneira, ela não me respondia. Dediquei a minha atenção a Nino . Sabia que ele acordava tarde e inventava todo o género de desculpas para não tomar o pequeno­ -almoço com os outros . Esperava por ele , ia com ele para a praia, preparava-lhe as coisas e levava-lhas , tomávamos banho juntos . Mas quando ele se afastava para o largo não me sentia capaz de o acompa­ nhar. Voltava para a zona de rebentação e observava com apreensão o rasto que ele deixava, o pontinho escuro da cabeça. Ficava ansiosa quando o perdia de vista, e feliz quando o via regressar. Resumindo , amava-o e sabia que o amava e sentia-me contente por amá-lo .

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Mas entretanto o feriado de Agosto ia-se aproximando . Uma noite disse-lhe que não queria ir ao Porto , preferia ir passear até aos Maronti , a Lua estava cheia. Esperava que ele viesse comigo , renunciando a acompanhar a irmã, que insistia em ir ao Porto , onde tinha agora uma espécie de namorado com o qual , contava-me ela, trocava beijos e abra­ ços , traindo o outro namorado de Nápoles . Mas ele foi com Marisa. Eu , por uma questão de princípio , desci a estrada pedregosa que ia para a praia. A areia estava fria, negro-acinzentada à luz do luar, o mar mal se mexia. Não se via vivalma e pus-me a chorar de solidão . O que era eu , quem era? Sentia-me de novo bonita, já não tinha furúnculos, o sol e o mar tinham-me tornado mais esbelta, no entanto , a pessoa de quem eu gostava e que queria que gostasse de mim não mostrava interesse ne­ nhum pela minha pessoa. Que signos eram os meus, que destino? Pensei no bairro como uma voragem da qual era uma ilusão tentar sair. Depois senti a areia ranger e vi a sombra de Nino . Sentou-se a meu lado . Tinha de ir buscar a irmã dali a uma hora. Notei que estava nervoso , batia na areia com o calcanhar esquerdo . Não falou de livros , de repente come­ çou a falar do pai . «Dedicarei a minha vida» , disse , como se se tratasse de uma missão , «a tentar não me parecer com ele .» «É um homem simpático .» «Toda a gente diz isso .» «E então?» Fez uma careta sarcástica, que durante uns segundos o desfeou . «Como está a Melina ?» Olhei-o estupefacta. Eu tivera o cuidado de nunca falar em Melina, naqueles dias de conversas cerradas , e agora ele perguntava por ela. «Mais ou menos.» «Ele foi amante dela. Sabia muito bem que ela era uma mulher frágil , mas caçou-a na mesma, por pura vaidade . Faria mal a qualquer pessoa por vaidade , e sem se sentir responsável . Como está convencido de que faz toda a gente feliz , julga que tudo lhe é perdoado . Vai à missa todos os domingos. Trata os filhos com dedicação . Desfaz-se em atenções com a minha mãe . Mas trai-a constantemente . É um hipócrita, mete-me nojo.» Não soube o que dizer-lhe . No bairro podiam acontecer coisas terrí­ veis , pais e filhos chegavam muitas vezes a vias de facto , como Rino e Fernando , por exemplo . Mas a violência daquelas poucas frases cons­ truídas com cuidado fez-me mal . Nino odiava o pai com todas as suas forças , eis porque falava tanto dos Karamazov. Mas a questão não era

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essa. O que me perturbou profundamente foi que Donato Sarratore , por aquilo que vira com os meus olhos e ouvira com os meus ouvidos , não tinha nada de tão repelente , era o pai que qualquer rapariga ou rapaz gostaria de ter, e de facto Marisa adorava-o . Além disso , se o seu peca­ do era a capacidade de amar, eu não via nisso nada de particularmente mau; até do meu pai , a minha mãe dizia com raiva que sabia-se lá o que ele por aí pintava. Por isso , aquelas frases implacáveis , aquele tom acu­ sador, pareceram-me terríveis . Pensei que nem da minha mãe eu falaria assim. Murmurei: «Ele e Melina foram levados pela paixão , como Dido e Eneias . E pensa em Ascânio , a mãe morrera havia pouco , o pai devia estar de luto . São coisas que nos caem mal , mas são também muito comoventes .» «Jurou fidelidade perante Deus» , exclamou em tom brusco . «Não tem respeito por ela nem por Deus.» E deu um salto , muito agitado , com os lindos olhos a luzir. «Nem sequer tu me compreendes» , disse , e afas­ tou-se em passos largos . Alcancei-o , com o coração aos saltos. «Eu compreendo-te» , murmurei e dei-lhe o braço , suavemente . Nunca nos tínhamos tocado , o contacto queimou-me os dedos , larguei-o logo . Ele inclinou-se e beijou-me os lábios, um beijo muito leve . «Vou-me embora amanhã» , disse . «Mas o dia 1 3 é depois de amanhã.» Não respondeu . Regressámos a Barano falando de livros , depois fo­ mos buscar Marisa ao Porto . Sentia a boca dele na minha.

33 . Chorei toda a noite, na cozinha silenciosa. Adormeci ao alvorecer. Nella veio acordar-me e repreendeu-me , disse que Nino quisera tomar o pequeno-almoço no terraço , para não me incomodar. Já se fora embora. Vesti-me à pressa, ela notou que eu estava a sofrer. «Vai lá» , permitiu­ -me finalmente , «talvez ainda vás a tempo .» Corri até ao Porto , na es­ perança de chegar antes de o barco partir, mas ele já ia ao largo . Passei dias difíceis. Quando arrumei os quartos encontrei um marca­ dor de livros de cartolina azul que pertencia a Nino e escondi-o entre as minhas coisas . À noite , na cozinha, já na cama, cheirava-o , beijava-o , lambia-o com a ponta da língua e chorava. A minha paixão desesperada comovia-me , e o meu pranto alimentava-se a si próprio .

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Depois chegou Donato Sarratore e começaram os seus quinze dias de férias . Lamentou que o filho já se tivesse ido embora, mas ficou conten­ te por ele ir encontrar-se com os colegas em Avellino para estudar. «É um rapaz realmente sério» , disse-me , «como tu . Tenho orgulho nele , como calculo que o teu pai tenha orgulho em ti .» A presença daquele homem transmitia segurança e acalmou-me . Quis conhecer os novos amigos de Marisa, convidou-os uma noite para faze­ rem uma grande fogueira na praia. Ele próprio se encarregou de juntar toda a lenha que conseguiu encontrar, e ficou lá connosco até tarde . O rapaz com quem Marisa namoriscava arranhava a guitarra e Donato cantou , tinha uma bonita voz . Quando a noite já ia alta pôs-se também a tocar, e tocava bem, improvisou algumas músicas de dança. Alguns começaram a dançar, Marisa foi a primeira. Olhava para aquele homem e pensava: ele e o filho não têm absoluta­ mente nada em comum. Nino é alto , tem um rosto · delicado , a fronte enterrada sob os cabelos negros , a boca sempre entreaberta, com lábios convidativos; Donato , por sua vez, é de estatura média, os traços do rosto são vincados , tem grandes entradas no cabelo e a boca apertada, quase sem lábios . Nino olha tudo com olhos pensativos , que vêem para além das coisas e das pessoas e parecem assustar-se; Donato tem um olhar receptivo , que adora o aspecto das coisas e das pessoas e está sem­ pre a sorrir-lhes . Nino tem qualquer coisa a roê-lo por dentro , como Lila, o que é um dom e um sofrimento , nunca estão contentes , não se entregam, receiam aquilo que se passa em volta deles; este homem, não , parece apreciar todas as manifestações da vida, como se cada segundo vivido fosse de uma limpidez total . A partir daquela noite o pai de Nino pareceu-me um remédio sólido , não apenas contra o escuro para onde me atirara o filho ao ir-se embora, depois de um beijo quase impercep­ tível , mas também - apercebi-me disso com espanto - para a escuri­ dão em que Lila me mergulhara, por não responder às minhas cartas . Ela e Nino mal se conhecem, pensei , nunca se relacionaram, mas agora pa­ recem-me muito semelhantes: não precisam de nada nem de ninguém, e sabem sempre o que está certo e o que está errado . E se estiverem enga­ nados? O que tem de tão terrível Marcello Solara, o que tem de tão ter­ rível Donato Sarratore? Eu não percebia. Gostava de ambos , e agora sentia falta deles de maneiras diferentes , mas estava grata àquele pai odiado que dava importância a mim e aos outros jovens , proporcionava­ -nos alegria e tranquilidade naquela noite nos Maronti . De repente senti-me contente por nenhum dos dois estar presente na ilha.

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Recomecei a ler, escrevi uma última carta a Lila em que lhe dizia que , uma vez que nunca me tinha respondido , não voltaria a escrever-lhe . Liguei-me mais à farm1ia Sarratore , senti-me irmã de Marisa, de Pinuc­ cio e do pequeno Ciro , que gostava muito de mim e que só comigo não fazia birras , brincava calmamente , íamos os dois apanhar conchas . Li­ dia, cuja hostilidade inicial para comigo se transformara em simpatia e afecto , elogiava muito a precisão com que eu fazia tudo: pôr a mesa, arrumar os quartos, lavar a loiça, entreter o menino , ler e estudar. Uma manhã fez-me experimentar um vestido de praia que lhe ficava aperta­ do , e como Nella e Sarratore - chamado de urgência para dar uma opinião - acharam que me ficava muito bem , ofereceu-mo . Em certos momentos até parecia apreciar-me mais do que à filha. Dizia: «É man­ driona, vaidosa, eduquei-a mal , não estuda; ao passo que tu fazes tudo com muito juízo .» «Tal e qual como o Nino» , acrescentou uma vez , «SÓ que tu és bem-disposta e ele está sempre nervoso .» Mas , ao ouvir aque­ las críticas , Donato reagiu e começou a gabar o filho mais velho . «É uma jóia de rapaz» , disse , e pediu a minha concordância com o olhar, e eu fiz sinal que sim com grande convicção . Depois dos seus demorados banhos , Donato estendia-se a meu lado a secar ao sol e a ler o jornal , o Roma , a única coisa que lia. Eu achava estranho que uma pessoa que escrevia poemas , que até os publicara, nunca abrisse um livro. Não trouxera nenhum e nunca se interessara pelos meus. Por vezes lia-me em voz alta uma passagem de algum arti­ go , palavras e frases que teriam enfurecido Pasquale e certamente tam­ bém a professora Galiani . Mas eu ficava calada, não me parecia bem pôr-me a discutir com uma pessoa tão amável , e estragar a enorme esti­ ma que tinha por mim. Uma vez leu-me um artigo inteiro , do princípio ao fim , e a cada duas linhas voltava-se para Lidia a sorrir, e Lidia res­ pondia-lhe com um sorriso cúmplice . Quando acabou , perguntou-me: «Gostaste?» Era um artigo sobre a velocidade da viagem de comboio , em contras­ te com a da viagem de outros tempos , de caleche ou a pé , por caminhos campestres . Estava escrito com frases pomposas que ele lia com ênfase . «Sim, muito» , respondi . «Vê quem o escreveu; o que lês aqui?» Chegou-se para mim e pôs-me o jornal diante dos olhos . Li , emocio­ nada: «Donato Sarratore .» Lídia desatou a rir, e ele também . Deixaram-me na areia a tomar conta de Ciro , enquanto eles tomavam banho da forma habitual , abraça-

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dos um ao outro e falando-se ao ouvido . Olhei para eles e pensei , pobre Melina, mas sem guardar rancor a Sarratore . Mesmo admitindo que Nino tivesse razão e que de facto tivesse havido alguma coisa entre eles; mesmo admitindo , vamos lá, que Sarratore traía Lidia, mais ainda do que no passado , agora que o conhecia tão bem não conseguia considerá­ -lo culpado , tanto mais que a própria mulher não parecia considerá-lo culpado , embora naquela altura o tivesse forçado a abandonar o bairro . Quanto a Melina, também a compreendia. Conhecera a alegria do amor por aquele homem acima do vulgar: era revisor nos comboios , mas também era poeta, e jornalista. A mente frágil de Melina nunca mais conseguira adaptar-se à normalidade grosseira da sua vida sem ele . Comprazia-me com estes pensamentos . Estava contente com tudo , na­ queles dias , com o meu amor por Nino , com a minha tristeza, com o afecto de que me sentia rodeada, com a minha capacidade de ler, pensar, reflectir em solidão .

34 . Depois , em finais de Agosto , quando aquele período extraordinário estava prestes a terminar, aconteceram duas coisas importantes , de cho­ fre , no mesmo dia. Estávamos a 25 , lembro-me perfeitamente porque era o dia do meu aniversário. Levantei-me , preparei o pequeno-almoço para todos, e à mesa disse: «Hoje faço quinze anos» , e quando pronun­ ciei essas palavras veio-me à lembrança que Lila os fizera no dia 1 1 , mas , rodeada de tantas emoções , não me recordara. Embora segundo os nossos costumes se festejasse sobretudo o santo do nosso nome - os aniversários nesse tempo eram considerados irrelevantes - , os Sarrato­ re e Nella insistiram que se fizesse uma pequena festa ao serão . Fiquei contente . Eles foram preparar-se para ir para a praia, eu comecei a arru­ mar a cozinha, e nisto , chegou o carteiro . Assomei-me à janela e o carteiro disse que havia uma carta endere­ çada a Greco . Fui lá abaixo a correr, com o coração aos saltos. Excluía a hipótese de os meus pais me terem escrito . Era uma carta de Lila? De Nino? Era de Lila. Rasguei o sobrescrito . Lá dentro vinham cinco folhas bem cheias , que eu devorei , mas não percebi quase nada do que li . Ho­ je pode parecer estranho , mas passou-se mesmo assim. Ainda antes de ficar transtornada pelo conteúdo , impressionou-me o facto de a escrita conter a voz de Lila. E não só . Desde as primeiras linhas , veio-me à

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lembrança A Fada Azul, o único texto dela que eu lera antes daquele, sem contar com os trabalhinhos da escola primária, e compreendi o que é que naquela época distante me agradara tanto . A qualidade que existia em A Fada Azul era a mesma que me estava a impressionar agora. Lila sabia falar através da escrita; ao contrário de mim quando escrevia, ao contrário de Sarratore nos seus artigos e nos poemas , ao contrário até de muitos escritores que eu lera e ainda lia, ela exprimia-se através de fra­ ses tão bem construídas , e sem um erro , apesar de ela não ter estudado mais, mas - além disso - não deixava qualquer sinal de falta de natu­ ralidade , não se sentia o artifício da palavra escrita. Eu lia, e ao mesmo tempo via-a e ouvia-a. A sua voz era como um fluxo que me arrebatava e me fascinava como quando conversávamos uma com a outra, no en­ tanto estava perfeitamente depurada das escórias da linguagem colo­ quial , da confusão do discurso oral; possuía a viva ordem que eu imagi­ nava que o discurso apresentaria, se tivesse tido a felicidade de nascer da cabeça de Zeus e não dos Greco ou dos Cerullo . Envergonhei-me das páginas infantis que lhe escrevera, dos tons excessivos , das frivolidades , da alegria fingida, da dor falsa. Sabe-se lá o que Lila pensara de mim. Senti desprezo e rancor pelo professor Gerace , que me iludira ao dar-me nove em Italiano . Aquela carta teve como primeiro efeito fazer-me sen­ tir, aos quinze anos, no dia do meu aniversário , uma impostora. A esco­ la, comigo , tinha feito passar gato por lebre , e a prova estava ali , na carta de Lila. Depois , pouco a pouco , foram chegando também os conteúdos . Lila mandava-me os parabéns pelo meu aniversário . Ainda não me escrevera porque sentia-se contente por eu passar o tempo ao sol , por me dar bem com os Sarratore , por amar Nino , por gostar tanto de Ischia e da praia dos Maronti , e não queria estragar-me as férias com as suas histórias desagradáveis . Mas agora sentira necessidade de quebrar o silêncio . Logo depois da minha partida, Marcello Solara, com o consentimento de Fernando , começara a apresentar-se para jantar todas as noites . Che­ gava às oito e meia e ia-se embora às dez e meia em ponto . Trazia sempre qualquer coisa: bolos, bombons , açúcar, café . Ela não tocava em nada, não lhe dava confiança nenhuma, e ele olhava para ela em silên­ cio . Passada a primeira semana daquele suplício , uma vez que Lila fazia de conta que ele não estava lá, decidira surpreendê-la. Apresentara-se de manhã na companhia de um tipo corpulento , todo suado , que depositou na sala de jantar uma caixa de cartão enorme . Da caixa saiu um objecto de que todos tínhamos conhecimento , mas que no bairro muito poucos

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tinham em casa: um televisor, isto é , um aparelho com um écran , no qual se viam imagens , exactamente como no cinema, mas que não vi­ nham de um projector e sim pelo ar, e que no interior tinha um tubo misterioso que se chamava cátodo . Por causa desse tubo , mencionado constantemente pelo homem corpulento e suado , o aparelho não funcio­ nara durante dias . Após várias tentativas , ficara em condições , e agora meio bairro , incluindo a minha mãe , o meu pai e os meus irmãos , iam a casa dos Cerullo ver aquele milagre . Rino , não . Estava melhor, a febre passara-lhe por completo , mas deixara de falar com Marcello . Quando este aparecia, ele começava a dizer mal da televisão , e pouco depois , ou ia para a cama sem jantar, ou então andava a vadiar até alta noite com Pasquale e Antonio . Lila, então , dizia que adorava a televisão . Gostava sobretudo de vê-la com Melina, que comparecia todas as noites e se sentava em silêncio , muito concentrada. Era o único momento de paz. Quanto ao resto , todas as raivas se descarregavam em cima dela: as raivas do irmão , por tê-lo abandonado ao seu destino de escravo do pai , ao passo que ela se preparava para um casamento que faria dela uma senhora; as raivas de Fernando e de Nunzia, porque não era simpática para Solara, tratava-o com sete pedras na mão; e ainda as raivas de Marcello , que , apesar de ela não o ter aceitado , se sentia cada vez mais noivo, ou melhor, seu dono , e tendia a passar da devoção silenciosa a tentativas de a beijar, a perguntas desconfiadas sobre os lugares onde ela ia durante o dia, quem encontrava, se tivera outros namorados , se algum lhe tocara nem que fosse só com um dedo . Como ela não lhe respondia, ou , pior ainda, o arreliava, falando de beijos e abraços de namorados inexistentes , ele uma noite dissera-lhe ao ouvido , a sério: «Tu gozas comigo , mas lembras-te de quando me ameaçaste com o trinchete? Pois bem, se eu sei que gostas de outro , lembra-te bem disto , não me limito a ameaçar-te , mato-te e pronto .» De modo que ela não sabia como sair daquela situação , e continuava a trazer a arma consigo para qualquer emergência. Mas andava aterrorizada. Nas últimas páginas dizia que sentia à sua volta todo o mal do bairro . Aliás , dizia de modo obscuro: o mal e o bem estão misturados e fortalecem-se mutuamente . Marcello , para dizer a verdade , era realmente um bom arranjinho , mas o bom sa­ bia a mau e o mau sabia a bom, uma amálgama que lhe tirava o ar. Al­ gumas noites antes acontecera-lhe uma coisa que lhe metera realmente medo . Marcello tinha-se ido embora, a televisão estava apagada, a casa vazia, Rino andava por fora e os pais estavam-se a deitar. Ela encontra­ va-se sozinha na cozinha, a lavar a loiça, e sentia-se cansada, sem forças

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mesmo , quando de repente s e ouviu u m estoiro , vindo do lado dos ta­ chos de cobre . Lila virou-se de chofre e viu que a panela grande de cobre tinha explodido . Sem mais nem menos, sozinha. Estava pendura­ da no prego onde normalmente se encontrava, mas ao centro tinha um grande rasgão , com os bordos levantados e retorcidos , e a própria pane­ la estava toda deformada, como se já não pudesse conservar o seu as­ pecto de panela. A mãe aparecera a correr, em camisa de noite , e culpara-a de a ter deixado cair e de a ter destruído . Mas uma panela de cobre , mesmo que caia, não se parte e não se deforma daquela maneira. «É este tipo de coisas» , concluía Lila, «que me assusta. Mais do que o Marcello , mais do que seja quem for. E sinto que tenho de encontrar uma solução , senão , uma coisa após outra, parte-se tudo , tudo , tudo .» Despedia-se , repetia os parabéns , e, embora desejasse o contrário , em­ bora não visse a hora de eu regressar, embora precisasse urgentemente da minha ajuda, esperava que eu pudesse ficar em Ischia com a simpá­ tica dona Nella e nunca mais voltar para o bairro .

35 . A carta perturbou-me muito . O mundo de Lila, como era costume , depressa se sobrepôs ao meu . Tudo aquilo que eu lhe dissera por carta em Julho e Agosto pareceu-me banal , senti um frenesim de me redimir. Não fui à praia, tentei responder-lhe imediatamente com uma carta sé­ ria, que tivesse o tom essencial , claro e ao mesmo tempo coloquial , da dela. Mas se as outras cartas me tinham saído com facilidade - enchia páginas e páginas em poucos minutos, sem nunca as corrigir - , aquela escrevi-a, voltei a escrevê-la, e escrevi-a de novo mais uma vez . Mas o ódio de Nino pelo pai , e o peso que o caso com Melina tivera para que aquele horrível sentimento nascesse , não me saíram bem. A descrição da relação com a fanu1ia Sarratore pareceu-me desprovida de interesse: Donato , que na realidade era um homem notável , na carta parecia um pai de fanu1ia banal . E no respeitante a Marcello só consegui dar-lhe conselhos superficiais. A única coisa que parecia de facto verdadeira era a minha decepção , porque ela tinha televisão em casa e eu não . Resumindo , não consegui responder-lhe , apesar de me ter privado do mar, do sol , do prazer de estar com Ciro , com Pino , com Clelia, com Lidia, com Marisa, com Sarratore . Felizmente que Nella, a certa altura, veio fazer-me companhia no terraço e trouxe-me uma orchata. Feliz-

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mente que , quando voltaram da praia, os Sarratore se queixaram de eu ter ficado em casa e recomeçaram a festejar o meu aniversário . Lidia quis fazer um bolo coberto de creme pasteleiro , Nella abriu uma garrafa de vermute, Donato começou a cantar canções napolitanas , Marisa ofereceu-me um cavalo-marinho de estopa que comprara para si no Porto , na noite anterior. Acalmei-me , mas não conseguia esquecer Lila, metida em sarilhos , enquanto eu estava tão bem e era tão felicitada. Disse , de modo um pouco dramático , que recebera uma carta de uma amiga, que essa amiga precisava de mim, e por isso pensava ir-me embora antes do previsto . «Depois de amanhã, no máximo» , anunciei , mas com pouca convicção . Na verdade , disse-o só para ouvir Nella dizer que tinha muita pena, e Lidia dizer que Ciro ia sofrer com isso , e ver Marisa contrariada, e ouvir Sarratore exclamar, desolado: «E como vamos nós passar sem ti?» . Tu­ do coisas que me comoveram e tomaram a minha festa de anos ainda mais feliz . Depois Pino e Ciro começaram a dormitar, e Lidia e Donato foram deitá-los . Marisa ajudou-me a lavar a loiça, Nella disse-me que , se eu quisesse descansar mais um pouco , ela levantava-se para preparar o pequeno almoço . Protestei , isso era tarefa minha. Um a um, todos se retiraram, e fiquei só . Fiz a minha caminha no canto habitual e analisei a situação , para ver se havia baratas , se havia melgas . O meu olhar en­ controu as panelas de cobre . A escrita de q1a era muito sugestiva; olhei para as panelas com cres­ cente inquietação . Lembrei-me do gosto que ela tinha em vê-las brilhar, quando as lavava areava-as com muito cuidado . Nelas , não por acaso , situara o esguicho de sangue que espirrou do pescoço de dom Achille há cinco anos , quando foi apunhalado . Nelas centrara agora aquela sen­ sação de ameaça, a angústia causada pela decisão difícil que tinha de tomar, fazendo explodir uma delas como se fosse um sinal , como se a sua forma, de repente , tivesse resolvido ceder. Sabia eu imaginar aque­ las coisas sem ela? Seria capaz de dar uma vida a cada objecto , deixar que eles se contorcessem em uníssono com a minha vida? Apaguei a luz . Despi-me e meti-me na cama com a carta de Lila e o marcador de livros em tom pastel de Nino , as coisas mais preciosas que tinha naque­ le momento . Pela janela chovia a luz branca da Lua. Beijei o marcador como fazia todas as noites , tentei reler à luz ténue a carta da minha amiga. As pa­ nelas brilhavam, a mesa dava estalidos , o tecto exercia um peso opres-

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sivo , dos lados vinha a pressão do ar nocturno e do mar. Senti-me de novo humilhada pela capacidade de escrever de Lila, por aquilo a que ela sabia dar forma e eu não , enevoaram-se-me os olhos . Sentia-me fe­ liz, sim, por ela ser tão competente mesmo sem escola, sem os livros da biblioteca, mas essa felicidade tomava-me culposamente infeliz . Nisto , senti passos . Vi a sombra de Sarratore entrar na cozinha, des­ calço , com o seu pijama azul . Cobri-me com o lençol . Ele foi à torneira, encheu um copo de água, bebeu. Ficou uns segundos parado em frente do lava-loiça, pousou o copo , dirigiu-se para a minha cama. Acocorou­ -se ao meu lado , com os cotovelos apoiados na dobra do lençol . «Sei que estás acordada» , disse . «Sim.» «Não penses na tua amiga, fica.» «Ela tem problemas , precisa de mim.» «Eu é que preciso de ti» , disse , e, debruçando-se , beijou-me na boca sem a suavidade do filho , forçando-me os lábios com a língua. Fiquei imóvel . Ele afastou o lençol continuando a beijar-me com cuidado , com pai­ xão , procurou-me o peito com a mão e acariciou-mo sob a camisa. Depois largou-o , desceu a mão por entre as minhas pernas , pressionou dois dedos com força sobre as cuecas . Eu não disse nada, não fiz nada, estava aterrorizada por aquele comportamento , pela aversão que me causava, pelo prazer que todavia sentia. O bigode picava-me o lábio superior, a língua era áspera. Devagar, largou-me a boca, afastou a mão . «Amanhã à noite vamos dar um belo passeio pela praia, eu e tu» , disse , um pouco rouco , «quero-te muito e sei que tu também me queres . Não é verdade?» Eu não disse nada. Ele roçou-me de novo os lábios com os lábios , murmurou boa noite , levantou-se e saiu da cozinha. Eu continuei imó­ vel , não sei durante quanto tempo . Por mais que tentasse afastar a sen­ sação da sua língua, das suas carícias , da pressão da sua mão , não con­ seguia. Nino tentara avisar-me , sabia que iria acontecer? Senti um ódio irreprimível por Donato Sarratore e asco por mim, pelo prazer que me ficara no corpo . Por muito estranho que hoje possa parecer, tanto quan­ to me lembrava, até àquela noite nunca dera prazer a mim própria, não o conhecia, senti-lo em mim surpreendeu-me . Fiquei naquela posição não sei quantas horas . Depois , à primeira claridade , saí do torpor, guar­ dei as minhas coisas , desfiz a cama, escrevi duas linhas de agradecimen­ to a Nella e fui-me embora.

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A ilha estava quase silenciosa, o mar parado , só os odores eram in­ tensos . Com o dinheiro à conta que a minha mãe me entregara havia mais de um mês , apanhei o primeiro barco a sair da ilha. Quando ele se pôs em movimento , e a ilha, com as suas cores ténues das primeiras horas da manhã, ficou para trás , pensei que finalmente tinha alguma coisa para contar, a que Lila não poderia contrapor nada de tão memo­ rável . Mas soube imediatamente que a repugnância que sentia por Sar­ ratore e o asco que tinha por mim me impediriam de abrir a boca. Na verdade , é esta a primeira vez que procuro as palavras para aquele fim inesperado das minhas férias .

36. Encontrei Nápoles imersa numa canícula podre e malcheirosa. A mi­ nha mãe , sem dizer uma palavra sobre o meu aspecto - sem acne , preta do sol - repreendeu-me por ter voltado antes do previsto . «0 que fizeste?» , perguntou , «portaste-te mal e a amiga da professo­ ra pôs-te na rua?» Correu de modo diferente com o meu pai , que com os olhos a luzir me cobriu de elogios , entre os quais se destacou , repetido centenas de vezes: «Senhores , que linda filha que eu tenho ! » Quanto aos meus ir­ mãos, disseram com um certo desprezo: «Pareces uma negra.» Olhei-me ao espelho e até eu me admirei : o sol dera-me um loiro esplendoroso , mas o rosto , os braços , as pernas , pareciam pintados de ouro escuro . Enquanto estava rodeada das cores de Ischia, sempre entre caras queimadas , a minha transformação parecia-me própria do ambien­ te; agora, uma vez reintegrada no contexto do bairro , onde todos os rostos e todas as ruas continuavam de uma palidez doentia, pareceu-me excessiva, quase uma anomalia. As pessoas , os prédios , a rua larga, cheia de trânsito e de poeira, deram-me a impressão de uma fotografia mal impressa, como as dos jornais. Assim que pude, fui procurar Lila. Chamei-a do pátio, assomou-se à janela, saiu do prédio a correr. Abraçou-me , beijou-me , encheu-me de elogios como nunca fizera, até fiquei atrapalhada com todo aquele afecto tão explícito. Era a mesma, mas em pouco mais de um mês transformara­ -se . Já não parecia uma rapariga, mas sim uma mulher, uma mulher de , pelo menos , dezoito anos , idade que então me parecia avançada. Os velhos

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vestidos ficavam-lhe curtos e apertados , como se tivesse crescido dentro deles em poucos minutos , e cingiam-lhe o corpo mais do que o tolerável . Estava mais alta ainda, com as costas direitas , sinuosa. E o rosto pálido sobre o pescoço fino pareceu-me de uma beleza delicada, fora do normal . Percebi que estava nervosa, na rua olhou em volta e olhou para trás várias vezes , mas não me deu explicações . Disse apenas: «Vem comi­ go» , e quis que a acompanhasse à charcutaria de Stefano . E acrescentou , dando-me o braço: «É uma coisa que só posso fazer contigo , ainda bem que regressaste; pensava que tinha de esperar até Setembro .» Nunca havíamos feito aquele percurso até aos jardins tão chegadas uma à outra, com o passo tão certo , tão felizes por nos reencontrarmos . Disse-me que a s coisas pioravam de dia para dia. Ainda n a noite ante­ rior Marcello chegara com doces e espumante e oferecera-lhe um anel cravejado de diamantes . Ela aceitara-o e pusera-o no dedo , para evitar problemas na presença dos pais , mas pouco antes de ele se ir embora, à porta, devolvera-lho com maus modos. Marcello protestou , ameaçou-a, como fazia cada vez mais , e depois desatou a chorar. Fernando e Nunzia aperceberam-se imediatamente de que algo não corria bem. A mãe de Lila afeiçoara-se a Marcello , gostava das coisas boas que ele lhe levava para casa todas a noites , e tinha orgulho em ser proprietária de um tele­ visor; e Fernando sentia-se como se as suas atribulações tivessem termi­ nado , pois , graças ao parentesco com os Solara, podia encarar o futuro sem cuidados. De modo que , assim que Marcelo se foi embora, ator­ mentaram-na mais do que o habitual , para saberem o que se estava a passar. Resultado: pela primeira vez desde há muito tempo , Rino defen­ dera-a, gritando que se a irmã não queria um trambolho como Marcello , estava no seu santo direito de o recusar, e que , se eles insistissem em dar-lho , ele , ele pessoalmente , deitaria fogo a tudo , à casa, à sapataria, a si próprio e à família inteira. Pai e filho chegaram a vias de facto , Nunzia meteu-se no meio , e toda a vizinhança acordou . E não só . Rino atirou-se para cima da cama muito agitado , adormeceu imediatamente , e uma hora depois teve outro dos seus episódios de sonambulismo . Fo­ ram encontrá-lo na cozinha, a acender fósforo atrás de fósforo e a passá­ -los perto da torneira do gás , como se quisesse ver se havia fugas . Nunzia, aterrorizada, acordou Lila e disse-lhe: «Ü Rino quer realmente queimar-nos vivos .» Depois de ir ver o que se passava, Lila tranquilizou a mãe , explicando-lhe que Rino estava a dormir, e a dormir, ao contrário de quando estava acordado , queria certificar-se de que não havia fugas de gás . Ela levara-o para o quarto e deitara-o .

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«Não aguento mais» , concluiu , «tu não imaginas o que eu passo , te­ nho de sair desta situação .» Agarrou-se a mim, como se eu pudesse carregá-la de energia. «Tu estás bem» , disse-me , «tudo te está a correr bem. Tens de me ajudar.» Respondi-lhe que podia contar comigo para tudo e ela pareceu aliviada, apertou-me o braço e sussurrou: «Olha.» Vi ao longe uma espécie de mancha vermelha que irradiava luz . «0 que é?» «Então não vês?» Não estava a ver bem. «É o carro novo que o Stefano comprou .» O automóvel estava estacionado em frente da charcutaria, que fora ampliada, tinha agora duas entradas e estava à cunha. As clientes, à es­ pera de serem atendidas , lançavam olhares admirados àquele símbolo de bem-estar e de prestígio . No bairro nunca se vira uma viatura daque­ le género , toda de vidro e metal , com o tejadilho descapotável . Um carro de gente rica, não tinha nada a ver com o II 00 dos Solara. Dei umas voltas em torno do carro , enquanto Lila se conservava à sombra vigiando a rua, como se esperasse uma manifestação de vio­ lência de um momento para o outro . Stefano apareceu à porta da loj a , com a bata suja d e gordura, a cabeça grande e a testa alta , que davam a ideia de desproporção , mas não desagradável . Atravessou a rua , cumprimentou-me cordialmente e disse: «Estás com muito bom aspecto , pareces uma actriz.» Ele também estava bem. Andara ao sol como eu , se calhar éramos os únicos em todo o bairro com um aspecto tão saudável . Disse-lhe: «Como tu estás preto .» «Passei uma semana de férias .» «Onde?» «Em Ischia.» «Eu também estive em Ischia.» «Bem sei , a Lina disse-me . Procurei-te , mas não te vi.» Fiz sinal para o carro . «É bonito .» O rosto de Stefano mostrou uma expressão moderada de concordân­ cia. Fazendo um gesto para Lila, disse , com olhos divertidos : «Comprei-o para a tua amiga, mas ela não quer crer.» Olhei para Lila, que estava muito séria, à sombra, com uma expressão tensa. Ste-

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fano disse-lhe, vagamente irónico: «Agora a Lenuccia já veio , o que vais fazer?» Lila disse , como se a conversa não lhe agradasse: «Vamos lá. Mas lembra-te , convidaste-a a ela, e não a mim. Eu apenas vos acompanhei.» Ele sorriu e entrou na loja. «Ü que se passa?» , perguntei-lhe , desorientada. «Não sei» , respondeu-me, querendo dizer que não sabia com exactidão aquilo em que se estava a meter. Tinha aquele ar de quando precisava de fazer uma conta de cabeça, mas sem a expressão atrevida de sempre; es­ tava visivelmente preocupada, como se estivesse a fazer uma experiência de resultado incerto . «Tudo começou com a chegada deste automóvel» , disse-me . Stefano , primeiro em tom de brincadeira, mas depois cada vez mais a sério , jurara-lhe que comprara o carro para ela, pelo prazer de ao menos uma vez lhe abrir a porta para ela entrar. «Foi feito de propósito para ti» , dissera-lhe. E desde que lho entregaram, no final de Julho , pedi­ ra-lhe assiduamente , mas não de forma opressiva, com gentileza, primei­ ro , que fosse dar uma volta com ele e Alfonso, depois , com ele e Pinuccia, e depois , até , com ele e a mãe . Mas ela respondera sempre que não . Por fim, prometera-lhe: «Quando a Lenuccia regressar de Ischia, venho cá.» E agora ali estávamos , e logo se via o que ia acontecer. «Mas ele sabe do Marcello?» «Claro que sabe .» «E então?» «E então , insiste .» «Tenho medo , Lila.» «Lembras-te de quantas coisas fizemos que nos metiam medo? Espe­ rei por ti de propósito .» Stefano voltou sem bata, preto de cabelo , preto de cara, olhos pretos a brilhar, camisa branca e calças escuras . Abriu o carro , sentou-se ao volante , abriu a capota. Eu fiz menção de me enfiar no exíguo espaço traseiro , mas Lila impediu-me , instalou-se ela atrás . Acomodei-me pou­ co à vontade ao lado de Stefano e ele arrancou imediatamente , dirigin­ do-se para os novos prédios . O calor dispersou-se com o vento . Senti-me bem, inebriada pela ve­ locidade e também pelas tranquilas certezas libertadas pelo corpo de Carracci . Pareceu-me que Lila me explicara tudo sem me explicar nada. Sim, havia aquele carro desportivo novo e flamejante , comprado com a única finalidade de levá-la a dar uma volta, que começara agora mesmo .

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Sim, havia aquele rapaz que , embora soubesse de Marcello Solara, es­ tava a violar as regras viris sem qualquer ansiedade visível . Sim, havia eu , arrastada a toda a pressa para aquela história, para esconder com a minha presença palavras secretas entre eles , talvez mesmo uma amiza­ de . Mas que espécie de amizade? Com aquele passeio de automóvel , estava de certeza a acontecer algo de relevante , porém, Lila não soube­ ra, ou não quisera, dar-me os elementos necessários para eu compreen­ der. O que tinha ela em mente? Era impossível que não soubesse que estava a preparar um terremoto pior do que quando atirava pedacinhos de papel ensopados em tinta. E no entanto , era provável que não tivesse em vista nada de preciso . Ela era assim, destruía equilíbrios só para ver de que outro modo podia recompô-los . Por isso ali íamos nós numa corrida, cabelos ao vento , Stefano a guiar com satisfeita perícia, eu sen­ tada a seu lado com se fosse a namorada dele . Lembrei-me da maneira como olhara para mim , quando me disse que eu parecia uma actriz . Pensei na possibilidade de ele vir a gostar mais de mim do que gostava da minha amiga agora. Pensei com horror na eventualidade de Marcello Solara disparar sobre ele . A sua bonita pessoa de gestos seguros perderia consistência, como o cobre da panela de que Lila me falara na carta. A volta pelos novos prédios serviu para evitar passar em frente do bar Solara. «A mim não me importa se o Marcello nos vê» , disse Stefano sem ênfase , «mas se te importa a ti , assim está bem.» Atravessámos o túnel , dirigimo-nos para a Marina. Era o caminho que eu e Lila tínhamos percorrido havia muitos anos , quando a chuva nos apanhou . Mencionei esse episódio , ela sorriu , Stefano quis que contássemos . Contámos tudo , divertimo-nos e entretanto chegámos aos Granili . «0 que acham, corre bem, não?» «Muito veloz» , disse eu , entusiasmada. Lila não fez qualquer comentário . Olhava em volta, às vezes tocava­ -me no ombro para me indicar as casas em ruínas , a pobreza maltrapilha ao longo da estrada, como se nela visse a confirmação de qualquer coisa que eu devia perceber de imediato . Depois perguntou a Stefano , séria, sem preâmbulos : «Tu és realmente diferente?» Ele procurou-a no retrovisor. «De quem?» «Tu sabes.»

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Não respondeu logo . Depois disse em dialecto: «Queres que te diga a verdade?» «Sim.» «A intenção é essa, mas não sei como irá acabar.» Nesse instante tive a confirmação de que Lila devia ter-me ocultado não poucos pormenores . Aquele tom alusivo era a prova de que havia intimidade entre eles , de que tinham falado um com o outro mais ve­ zes e não a brincar, com seriedade . O que tinha eu perdido enquanto estivera em Ischia? Virei-me para olhar para ela, demorava a replicar, pensei que a resposta de Stefano a tivesse irritado , por ser vaga. Vi-a banhada de sol , com os olhos semicerrados , a blusa cheia de seio e de vento . «A miséria aqui é pior do que para os nossos lados» , disse . E depois , sem qualquer nexo , a rir: «Não penses que eu me esqueci de quando me quiseste picar a língua.» Stefano abanou a cabeça. «Eram outros tempos» , disse . «Cobarde hoje, cobarde amanhã; tinhas o dobro do meu tamanho .» Ele esboçou um sorrisinho embaraçado e, sem responder, acelerou na direcção do porto . A volta durou pouco menos de meia hora, voltámos pelo Rettifilo , pela Piazza Garibaldi . «Ü teu irmão não está bem» , disse Stefano quando já estávamos per­ to do bairro . Procurou-a de novo no retrovisor e perguntou: «Üs sapatos que estão na montra são os que vocês fizeram?» «Ü que sabes tu dos sapatos?» «Ü Rino não fala de outra coisa.» «E depois?» «São muito bonitos.» Ela fez os olhos pequeninos , estreitou-os até quase os fechar. «Compra-os» , disse no seu tom provocatório . «Por quanto os vendem?» «Fala com o meu pai .» Stefano deu uma decisiva volta em U que me atirou contra a porta, metemos pela rua da sapataria. «Ü que estás a fazer?» , perguntou Lila, agora alarmada. «Disseste-me para os comprar e vou comprá-los .»

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37 . Parou o carro em frente da sapataria, veio abrir-me a porta, estendeu­ -me a mão para me ajudar a sair. Não se preocupou com Lila, que se desembaraçou sozinha e ficou para trás . Eu e ele parámos em frente da montra, perante o olhar de Rino e Fernando , que nos observavam do interior da loja com uma curiosidade carrancuda. Quando Lila nos alcançou , Stefano abriu a porta da loja, deixou-me entrar primeiro , e a seguir entrou ele sem dar prioridade a Lila. Foi muito amável com pai e filho , perguntou se podia ver os sapatos . Rino foi a correr buscá-los , ele examinou-os e elogiou-os: «São leves mas resistentes , têm umas linhas muito bonitas mesmo .» Perguntou-me : «0 que achas , Lenu?» Eu disse , atrapalhada: «São muito bonitos .» Ele voltou-se para Fernando: «A vossa filha disse que trabalharam bastante neles , os três, e que têm em projecto fazer mais , mas para mulher.» «Sim» , disse Rino , olhando maravilhado para a irmã. «Sim» , disse Fernando perplexo , «mas não é para já.» «E não há, sei lá, um desenho , qualquer coisa para perceber melhor?» Rino disse à irmã, ligeiramente agitado , porque esperava uma recusa dela: «Vai-lhe buscar os desenhos .» Lila, continuando a surpreendê-lo , não opôs resistência. Foi às trasei­ ras da loja e voltou , estendendo as folhas de papel ao irmão , que as passou a Stefano . Estavam ali todos os modelos que ela imaginara havia quase dois anos. Stefano mostrou-me o desenho de um par de sapatos para mulher com o salto muito alto . «Comprava-los para ti?» «Sim.» Examinou de novo os desenhos . Depois sentou-se num banco e descalçou o sapato do pé direito . «Qual é o número?» «43 , mas que até podia ser um 44» , mentiu Rino . Lila, continuando a espantar-nos , ajoelhou-se em frente de Stefano e , com a ajuda da calçadeira, ajudou-o a enfiar o p é n o sapato novo . De­ pois , tirou-lhe o outro sapato e repetiu a operação .

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Stefano , que até ali fizera o papel de homem prático e expedito , ficou visivelmente perturbado . Esperou que Lila se erguesse e continuou sen­ tado mais alguns segundos, como que a retomar o fôlego . Depois pôs-se em pé e deu uns passos . «Estão apertados» , disse . Rino ensombrou-se , desapontado . «Podemos meter-tos na máquina e alargá-los» , interveio Fernando , mas num tom de incerteza. Stefano olhou para mim e perguntou-me: «Que tal me ficam?» «Bem» , respondi . «Então compro-os .» Fernando ficou impassível , Rino reanimou-se . «Ouve, Ste' , estes sapatos são um modelo exclusivo Cerullo, são ca­ ros .» Stefano sorriu , falou num tom afectuoso: «E achas que eu os comprava, se não fossem um modelo exclusivo Cerullo? Quando estão prontos?» Rino olhou para o pai , radiante . «Deixamo-los estar na máquina pelo menos três dias» , disse Fernan­ do , mas era evidente que podia ter dito dez , vinte , um mês , o que queria era ganhar tempo , perante aquela inesperada novidade . «Está muito bem. O senhor pensa num preço amigável e eu daqui a três dias venho buscá-los.» Dobrou as folhas com os desenhos e meteu-as no bolso , diante dos nossos olhos perplexos . Depois apertou a mão a Fernando e a Rino e dirigiu-se para a porta. «Üs desenhos» , disse Lila com frieza. «Posso trazer-tos dentro de três dias?» , perguntou Stefano em tom cordial e , sem esperar pela resposta, abriu a porta. Deu-me passagem e saiu atrás de mim. Já eu me acomodara no carro ao lado dele quando Lila nos alcançou . Estava zangada: «Pensas que o meu pai é estúpido , que o meu irmão é estúpido?» «Ü que queres dizer?» «Se pensas armar-te em palhaço com a minha farm1ia e comigo , estás enganado .» «Estás a ofender-me . Eu não sou o Marcello Solara.» «Então o que és?»

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«Sou comerciante . Os sapatos que desenhaste , nunca se viu coisa igual . E não me refiro só aos que comprei , refiro-me a todos .» «E então?» «Então deixa-me pensar, e daqui a três dias encontramo-nos .» Lila olhava-o fixamente , como se quisesse ler-lhe a mente , não se afastava do carro . Por fim disse uma frase que eu nunca teria tido a cora­ gem de pronunciar: «Olha que o Marcello já tentou comprar-me de todas as maneiras , mas a mim ninguém me compra.» Stefano olhou-a directamente nos olhos durante um longo instante . «Eu não gasto uma lira, se não achar que ela me pode render cem.» Ligou o motor e arrancámos . Agora tinha a certeza: o passeio de automóvel fora uma espécie de consenso a que chegaram, depois de mui­ tos encontros e de muito falarem. Disse baixinho , em italiano: «Por favor, Stefano , deixas-me à esquina? Se a minha mãe me vê de carro contigo , parte-me a cara.»

38 . A vida de Lila mudou de forma decisiva durante aquele mês de Se­ tembro . Não foi fácil , mas mudou . Quanto a mim , regressara de Ischia apaixonada por Nino , marcada pelos lábios e pelas mãos do pai dele , certa de que ia chorar noite e dia por causa da mistura de felicidade e asco que sentia dentro de mim. Mas afinal , nem fiz qualquer tentativa de dar forma às minhas emoções , tudo se redimensionou em poucas horas . Pus de lado a voz de Nino e a repugnância pelo bigode do pai . A ilha esbateu-se , desapareceu em qualquer canto secreto da minha mente . Abri espaço para aquilo que se estava a passar com Lila. Nos três dias que se seguiram ao espantoso passeio no descapotável , ela, com a desculpa das compras , foi várias vezes à charcutaria de Stefa­ no , mas pedindo-me sempre que a acompanhasse . Fi-lo com o coração aos saltos, receando uma possível aparição de Marcello , mas também satisfeita com o meu papel de confidente pródiga em conselhos , de cúm­ plice na maquinação de tramas , de aparente objecto das atenções de Ste­ fano . Éramos apenas rapariguinhas , embora nos considerássemos perfida­ mente desinibidas . Debatíamos os factos - Marcello , Stefano , os sapatos - com a nossa paixão habitual , e parecia-nos sempre que éramos capazes de fazer com que tudo batesse certo. «Digo-lhe assim» , conjecturava ela,

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e eu sugeria uma pequena variação: «Não, diz-lhe assim.» Depois , ela e Stefano falavam demoradamente a um canto atrás do balcão , enquanto Alfonso trocava meia dúzia de palavras comigo, Pinuccia atendia os clientes irritada, e Maria, na caixa registadora, observava apreensiva o filho mais velho , que nos últimos tempos pouco se interessava pelo traba­ lho , e dava ouvidos aos mexericos das bisbilhoteiras . Como é natural , improvisávamos . Enquanto durou aquele vaivém tentei perceber o que se passava realmente na cabeça de Lila, para poder estar em sintonia com os objectivos dela. A princípio tive a impressão de que ela pretendia simplesmente dar algum dinheiro a ganhar ao pai e ao irmão , vendendo a Stefano por um preço elevado o único par de sa­ patos produzido pelos Cerullo , mas depressa me pareceu que a intenção dela era, sobretudo , livrar-se de Marcello , aproveitando-se do jovem charcuteiro . Neste aspecto , ela foi decisiva quando lhe perguntei : «De qual dos dois gostas mais?» Encolheu os ombros . «Nunca gostei do Marcello , tenho-lhe asco .» «Ficavas noiva do Stefano , para correr com o Marcello de tua casa?» Pensou um pouco e respondeu que sim. A partir desse momento , o objectivo final de todas as nossas tramas pareceu-nos ser esse: lutar por todos os meios contra a intrusão de Mar­ cello na sua vida. O resto veio aglomerar-se em tomo desse objectivo quase por acaso , e nós limitámo-nos a dar-lhe um ritmo , e por vezes uma verdadeira orquestração . Ou pelo menos assim pensámos . Na rea­ lidade , toda a acção partiu sempre e apenas de Stefano . Três dias depois , pontualmente , ele foi à loja e comprou os sapatos , embora lhe ficassem apertados . Entre muitas hesitações , os dois Cerullo pediram-lhe vinte e cinco mil liras , mas na disposição de descerem até às dez mil . Ele nem pestanejou , e deu-lhes mais vinte mil em troca dos desenhos de Lila, dos quais - disse - gostava muito e pretendia man­ dá-los emoldurar. «Emoldurar?» , perguntou Rino . «Sim.» «Como um quadro de um pintor?» «Sim.» «E disseste à minha irmã que também ias comprar os desenhos dela?» «Sim.» Stefano não se ficou por ali . Nos dias seguintes apareceu novamente na sapataria, e anunciou ao pai e ao filho que alugara o espaço ao lado

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da loja deles . «Por agora está ali » , disse , «mas se um dia vocês decidi­ rem expandir-se , lembrem-se de que estou à vossa disposição .» Em casa dos Cerullo conversou-se muito , em voz baixa, sobre o que significaria aquela frase . «Expandir-nos?» Por fim Lila, uma vez que eles não chegavam lá sozinhos , disse: «Está a propor-vos transformar a sapataria numa oficina para fabricar os sapatos Cerullo .» «E o dinheiro?» , perguntou Rino cautelosamente . «Entra ele com ele .» «Disse-o a ti?» , alarmou-se Fernando , incrédulo , pressionado por Nunzia. «Disse-o a vocês dois» , disse Lila, indicando o pai e o irmão . «Mas ele sabe que os sapatos feitos à mão são caros?» «Vocês já lhe mostraram isso .» «E se não se venderem?» «Vocês perdem o trabalho que tiveram e ele perde o dinheiro .» «E é só isso?» «É só isso .» Toda a família viveu dias agitados . Marcello passou para segundo plano . Chegava à noite , às oito e meia, e o jantar ainda não estava pron­ to . Muitas vezes viu-se sozinho com Melina e Ada em frente do televi­ sor, enquanto os Cerullo confabulavam noutra divisão . Naturalmente , o mais entusiasta era Rino, que recuperou energias , co­ res , alegria, e, da mesma forma que se tomara amigo íntimo dos Solara, assim começou a tomar-se amigo íntimo de Stefano , de Alfonso , de Pi­ nuccia, e até da dona Maria. Quando , finalmente , todas as reservas de Fernando se diluíram, Stefano compareceu na loja e, após uma curta discussão , chegou-se a um acordo verbal , com base no qual ele enfrenta­ ria todas as despesas e os dois Cerullo dariam início à produção , tanto do modelo que Lila e Rino já haviam executado, como de todos os outros modelos , ficando assente que os eventuais lucros seriam divididos a meias . Tirou as folhas de papel do bolso e mostrou-lhos , um após outro . «Fazem este , este , este» , disse , «mas esperemos que não levem dois anos, como sei que aconteceu com os outros .» «A minha filha é rapariga» , justificou-se Fernando , embaraçado , «e o Rino ainda não aprendeu bem o ofício .» Stefano abanou cordialmente a cabeça. «A Lina, deixem-na estar sossegada. Têm de arranjar trabalhadores .» «E quem é que lhes paga?» , perguntou Fernando .

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«Sou também eu . Escolham dois ou três , livremente , de acordo com o vosso critério .» Fernando , perante a ideia de até ter empregados , entusiasmou-se e soltou-se-lhe a língua, com evidente contrariedade do filho . Falou de quando aprendera o ofício com o falecido pai . Contou como fora difícil o trabalho nas máquinas , em Casoria. Disse que o seu erro tinha sido casar-se com Nunzia, que tinha mãos fracas e vontade nenhuma de tra­ balhar, ao passo que se se tivesse casado com Ines , uma paixão da sua juventude que era muito trabalhadora, há muito que teria uma activida­ de só sua, melhor do que as marcas Campanile e Isaia, e com uma gama de modelos digna de ser exposta no recinto da Mostra d'Oltremare . Disse , por fim , que tinha na ideia sapatos lindos , coisa perfeita, que , se Stefano não tivesse fixado o pensamento naquelas maluquices de Lina, agora podiam ser produzidos e então , sim, quantos não se venderiam. Stefano ouviu pacientemente , mas depois insistiu que por agora só lhe interessava ver, executados com perfeição , os desenhos de Lila. Rino , então , pegou nos desenhos da irmã, examinou-os minuciosamente e perguntou-lhe com um ligeiro tom de troça: «Quando os tiveres emoldurados , onde é que os penduras?» «Aqui mesmo .» Rino olhou para o pai , que estava outra vez sério e não disse nada. «A minha irmã está de acordo com tudo?» , perguntou . Stefano sorriu : «E quem é que se atreve a fazer alguma coisa, se a tua irmã não esti­ ver de acordo?» Levantou-se , apertou vigorosamente a mão a Fernando e dirigiu-se para a porta. Rino acompanhou-o e, subitamente vencido por uma preo­ cupação sua, gritou-lhe da porta, enquanto Stefano se dirigia para o descapotável vermelho: «A marca dos sapatos continua a ser Cerullo .» Stefano acenou-lhe com a mão , sem se virar: «Uma Cerullo os inventou e Cerullo se chamarão .»

39 . Nessa mesma noite , antes de ir passear com Pasquale e Antonio , Rino disse: «Marce , já viste o carro que o Stefano comprou?»

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Marcello , entontecido pela televisão acesa e pela tristeza, nem res­ pondeu . Então , Rino tirou o pente do bolso, deu uma penteadela e disse, alegre: «Sabes que ele comprou os nossos sapatos por quarenta e cinco mil liras?» «Vê-se que tem dinheiro para deitar fora» , respondeu Marcello , e Melina rebentou a rir, não se sabe se por causa daquela boca ou do que estavam a transmitir na televisão . A partir dali , Rino arranjou maneira de enervar Marcello todas as noites , e o clima tomou-se cada vez mais tenso . Para mais , assim que Solara chegava, bem recebido por Nunzia, Lila desaparecia, dizia que estava cansada e ia dormir. Uma noite Marcello , com o moral muito em baixo , falou com Nunzia. «Se a sua filha vai dormir assim que eu chego , o que venho eu cá fa­ zer?» Esperava, evidentemente , que ela o confortasse , dizendo-lhe qual­ quer coisa que o encorajasse a perseverar na tentativa de conquistar o amor da rapariga. Mas Nunzia não soube o que lhe responder, e ele en­ tão gaguejou: «Ela gosta de outro?» «Claro que não .» «Eu sei que ela vai fazer as compras à charcutaria do Stefano .» «E onde há-de ela ir, meu filho , fazer as compras?» Marcello ficou calado , de olhos baixos. «Foi vista no carro com o charcuteiro .» «A Lenuccia também ia. O Stefano anda atrás da filha do porteiro .» «A Lenuccia não me parece boa companhia para a sua filha. Diga-lhe que nunca mais se encontre com ela.» Eu não era boa companhia? Lila não devia voltar a encontrar-se comi­ go? Quando a minha amiga me contou este pedido de Marcello , passei definitivamente para o lado de Stefano e comecei a enaltecer-lhe os mo­ dos discretos , a determinação calma. E por último disse-lhe: «É rico .» Mas ao dizer aquela frase apercebi-me de como continuava a alterar-se a riqueza com que havíamos sonhado em crianças . Os baús cheios de moedas de ouro, que uma procissão de criados de libré depositariam no nosso castelo quando publicássemos um livro como Mulherzinhas riqueza e fama - tinham-se evaporado para sempre. Talvez existisse ainda a ideia do dinheiro como cimento para consolidar a nossa existên­ cia, e impedir que ela se desmarginasse juntamente com as pessoas de -

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quem gostávamos . Mas o aspecto fundamental que agora prevalecia era o concreto , o gesto quotidiano , a negociação . Esta riqueza da adolescên­ cia partia de uma iluminação fantasiosa ainda infantil - os desenhos de sapatos nunca vistos - , mas materializara-se na insatisfação briguenta de Rino, que queria gastar como um ricaço , e no televisor, nos bolos e no anel de Marcello , que pretendia comprar um sentimento, e por fim, passo a passo , também naquele rapaz amável , Stefano , que vendia enchi­ dos , tinha um carro vermelho descapotável , gastava quarenta e cinco mil liras como se não fosse nada, emoldurava desenhos , não só queria nego­ ciar em queijo provolone como também em sapatos , investia em pelaria e numa equipa de trabalho , e parecia convencido de que era capaz de inaugurar uma nova época de paz e de bem-estar para o bairro . Em suma, era riqueza que se encontrava nos factos do dia-a-dia, e por isso sem esplendor e sem glória. «É rico» , ouvi que Lila repetia, e começámos a rir. Mas depois acres­ centou: «Também é simpático e bondoso» , e eu senti-me imediatamen­ te de acordo , eram qualidades que Marcello não possuía, mais uma ra­ zão para estar do lado de Stefano . No entanto , aqueles dois adjectivos confundiram-me , senti que davam o golpe final nas fantasias infantis . Nenhum castelo , nenhum baú - pareceu-me entender - voltariam a dizer respeito apenas a Lila e a mim , que tencionávamos escrever uma história como Mulherzinhas . A riqueza, ao ganhar forma em Stefano , estava a tomar o aspecto de um rapaz de bata suja de gordura, estava a criar feições , odor, voz , exprimia simpatia e bondade , era um tipo que nós conhecíamos desde sempre , o filho mais velho de dom Achille . Fiquei agitada. «No entanto , queria picar-te a língua» , disse-lhe . «Era um miúdo» , replicou ela comovida, melosa como nunca a ouvi­ ra, de modo que só naquele momento compreendi que ela fora muito mais além do que aquilo que me dissera por palavras . Nos dias que se seguiram tudo se foi tomando mais claro . Vi como falava com Stefano , e como ele parecia embevecido com a voz dela. Aderi ao pacto que eles tinham feito , não queria ficar de fora. E conspi­ rámos durante horas - nós duas , nós três - para arranjarmos maneira de mudar depressa as pessoas , os sentimentos , a disposição das coisas . Chegou um operário ao espaço que ficava ao lado da sapataria e deitou abaixo a parede divisória. A sapataria foi reorganizada. Surgiram três aprendizes , rapazes da província, eram de Melito , quase não se ouviam falar. Num canto continuaram a fazer-se arranjos , e no resto do espaço

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Fernando dispôs bancos , estantes , as suas ferramentas , as suas formas de madeira para os vários números, e começou , com uma energia repen­ tina e inesperada - inesperada num homem tão magro e devorado desde sempre por uma insatisfação rancorosa - a reflectir naquilo que ia fazer. Precisamente no dia em que os novos trabalhos iam principiar, Stefa­ no apareceu . Trazia uma embalagem feita com papel de embrulho . Puseram-se todos em pé de um salto , Fernando também, como se ele viesse fazer uma inspecção . Ele abriu a embalagem, e dentro havia um considerável número de pequenos quadros , todos do mesmo tamanho , com molduras estreitas de cor castanha. Eram as folhas de caderno de Lila, protegidas por vidro como se fossem relíquias preciosas . Pediu licença a Fernando para pendurá-los nas paredes , Fernando resmoneou qualquer coisa e Stefano pediu ajuda a Rino e aos aprendizes para pre­ garem os pregos . Só depois de os quadros estarem pendurados é que Stefano pediu aos três ajudantes que fossem tomar um café , e deu-lhes algumas liras . Assim que ficou sozinho com o sapateiro e o filho , anun­ ciou em voz baixa que queria casar com Lila. Fez-se um silêncio insuportável . Rino limitou-se a um sorrisinho sabichão , e Fernando , por fim, disse debilmente: «Stefano , a Lina está noiva do Marcello Solara.» «A sua filha não sabe disso .» «Que dizes tu?» Rino intrometeu-se , cheio de alegria: «Ele diz a verdade . Tu e a mãe deixam aquele merdoso vir a casa, mas a Lina nunca o quis nem o quer.» Fernando deitou um olhar maldoso ao filho . O charcuteiro disse com gentileza, olhando em volta: «Temos um trabalho principiado , não nos zanguemos . Só lhe peço uma coisa, dom Fernà: deixe que seja a sua filha a decidir. Se ela quiser o Marcello Solara, eu resigno-me. Gosto tanto dela que se ela for feliz com outro eu retiro-me , e entre mim e o senhor fica tudo como está agora. Mas se ela me quiser a mim - se me quiser a mim - , ninguém o poderá impedir, tem de ma dar.» «Estás a ameaçar-me» , disse Fernando , mas sereno , num tom de resignada constatação . «Não , estou a pedir-lhe que olhe pelo bem da sua filha.» «Eu é que sei qual é o bem dela.» «Sim, mas ela sabe melhor do que o senhor.»

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E aqui Stefano pôs-se em pé , abriu a porta, chamou-me , a mim que estava lá fora à espera, juntamente com Lila. «Lenu .» Entrámos . Que prazer nos dava sentirmos que estávamos no centro daqueles acontecimentos , as duas juntas , e que íamos encaminhá-los para uma solução . Lembro-me da enorme tensão daquele momento . Stefano dirigiu-se a Lila: «Digo-to diante do teu pai: amo-te muito , mais do que à minha própria vida. Queres casar comigo?» Lila respondeu , séria: «Sim.» Fernando atrapalhou-se um pouco e depois murmurou , com a mesma subserviência que em tempos passados manifestara em relação a dom Achille: «Estamos a fazer uma grande ofensa, não só ao Marcello , mas a todos os Solara. Agora quem é que diz isto àquele pobre rapaz?» Lila disse: «Eu .»

40 . Com efeito , dois dias depois , à noite , diante de toda a fallll1ia, excep­ to Rino , que andava a passear, antes de irem para a mesa, antes de liga­ rem a televisão , Lila perguntou a Marcello: «Levas-me a comer um gelado?» Marcello não quis crer nos seus ouvidos . «Um gelado? Sem termos comido primeiro? Eu e tu?» E perguntou imediatamente a Nunzia: «A senhora também quer vir?» Nunzia ligou o televisor e disse: «Não , Marce , obrigada. Mas não se demorem muito . Dez minutos , só , vão e voltem.» «Sim» , prometeu ele , feliz , «obrigado .» Repetiu obrigado pelo menos quatro vezes . Parecia-lhe que era che­ gado o momento tão esperado , Lila ia dizer-lhe que sim. Mas , assim que saíram do prédio , ela encarou-o e disse pausadamen­ te, com a fria crueldade que facilmente lhe ocorria desde os primeiros anos de vida: «Nunca te disse que te queria.» «Bem sei . Mas agora já me queres?»

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«Não .» Marcello , que era alto e corpulento, um rapaz são e fogoso de vinte e três anos , apoiou-se ao poste de um candeeiro com o coração destroçado . «É mesmo não?» «Não. Gosto de outro .» «Quem é?» «Stefano .» «Eu já sabia, mas não queria acreditar.» «Podes acreditar, é assim mesmo .» «Vou matar-te a ti e a ele .» «Comigo podes tentar já.» Marcello desencostou-se do candeeiro bruscamente , mas , com uma espécie de estertor, mordeu a mão direita fechada em punho até ela sangrar. «Gosto demasiado de ti , não sou capaz de o fazer.» «Então manda o teu irmão fazê-lo , ou o teu pai , ou qualquer amigo vosso , pode ser que eles sejam capazes . Mas esclarece-os bem de que têm de me matar primeiro a mim . Porque se tocarem seja em quem for enquanto eu estou viva, sou eu que vos mato , e tu sabes que o faço , começo por ti .» Marcello continuou a morder o dedo com fúria. Depois , uma espécie de soluço reprimido agitou-lhe o peito . Virou-lhe as costas e afastou-se . Ela gritou-lhe: «Manda alguém buscar o televisor, não precisamos dele .»

41 . Tudo aconteceu em pouco mais de um mês , e Lila finalmente parec­ eu-me feliz . Encontrara uma saída para o projecto dos sapatos , dera uma oportunidade ao irmão e a toda a fami1 ia, livrara-se de Marcello Solara e ficara noiva do rapaz abastado mais digno de estima do nosso bairro . O que podia ela querer mais? Nada. Tinha tudo , e eu , nada. Quando recomeçou a escola senti o seu cinzentismo mais do que o habitual . Fui reabsorvida pelo estudo e, para evitar que os professores me apanhas­ sem impreparada, comecei de novo a estudar até às onze da noite e a pôr o despertador para as cinco e meia. Vi Lila cada vez menos . Em compensação, estreitaram-se as relações com o irmão de Stefano , Alfonso. Apesar de ter trabalhado na charcutaria todo o Verão , passara

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nos exames de recuperação de modo brilhante, com sete em cada uma das disciplinas que teve de repetir: Latim, Grego e Inglês . Gino , que desejara que ele reprovasse , para poderem repetir o primeiro ano da secundária juntos, ficou decepcionado . Quando viu que nós dois , agora no segundo ano , íamos e voltávamos juntos da escola todos os dias , exasperou-se ainda mais e tomou-se mesquinho . Nunca mais dirigiu a palavra nem a mim, sua ex-namorada, nem a Alfonso , seu ex-companheiro de carteira, embora a sala dele fosse ao lado da nossa e nos encontrássemos muitas vezes nos corredores , assim como nas ruas do bairro. Mas fez ainda pior. Depressa me chegou aos ouvidos que dizia coisas horríveis de nós . Que eu estava apaixonada por Alfonso e lhe tocava durante as aulas , embora Alfonso não me correspondesse , porque como sabia bem, pois sentara-se ao lado dele durante um ano , ele não gostava de raparigas , só de rapazes . Contei isto a Alfonso Carracci , esperando que ele partisse a cara a Gino , como era obrigatório em tais casos , mas ele limitou-se a dizer com des­ prezo , em dialecto: «Toda a gente sabe que o paneleiro é ele .» Alfonso foi uma descoberta agradável e providencial . Dava uma im­ pressão de limpeza e de boa educação . Embora nas feições fosse muito parecido com Stefano , os mesmos olhos , o mesmo nariz e a mesma boca; embora, com o crescimento , o seu corpo estivesse a tomar formas idênticas , cabeça grande , pernas um bocado curtas em relação ao tron­ co; embora no olhar e nos gestos mostrasse a mesma suavidade , sentia nele uma total ausência daquela determinação que se escondia em cada célula de Stefano , e que , em minha opinião , acabava por reduzir a sua cortesia a uma espécie de esconderijo do qual sairia inesperadamente . Alfonso era um rapaz que transmitia tranquilidade , aquele tipo de ser humano , raro no bairro , de quem sabemos que não precisamos de espe­ rar nenhuma maldade . Durante o percurso poucas palavras trocávamos , mas não nos sentíamos embaraçados . Tinha sempre aquilo de que eu precisava, e, se não tinha, ia a correr buscar. Amava-me sem qualquer tensão , e eu afeiçoei-me a ele serenamente . No primeiro dia de escola acabámos por nos sentar na mesma carteira, um gesto audaz naquele tempo , e apesar de os outros rapazes fazerem troça dele por estar sem­ pre na minha companhia, e de as raparigas me perguntarem constante­ mente se éramos namorados , nenhum de nós pensou em mudar de lugar. Era uma pessoa de confiança. Se via que eu precisava de tempo para mim , ou esperava-me a uma certa distância, ou despedia-se e ia-se em­ bora. Se percebia que eu queria que ele ficasse a meu lado , ficava, mesmo que tivesse outra coisa para fazer.

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Servi-me dele para evitar Nino Sarratore. Quando nos vimos pela primeira vez depois de Ischia, à distância, Nino veio imediatamente ao meu encontro , muito amistoso , mas eu despachei-o com duas ou três frases frias . No entanto , gostava muito dele , bastava avistar a sua figura alta e magra para me ruborizar e o coração me bater desenfreadamente . Contudo , agora que Lila estava realmente noiva, oficialmente noiva ­ e com que noivo , um homem de vinte e dois anos, e não um rapazote , gentil , decidido e corajoso - , era mais urgente do que nunca eu arran­ jar também um noivo invejável , reequilibrando assim a nossa relação . Seria fantástico sairmos os quatro , Lila com o seu noivo e eu com o meu . É claro que Nino não tinha um descapotável vermelho . Andava no segundo ano do liceu , portanto não tinha uma lira. Mas era vinte centí­ metros mais alto do que eu , ao passo que Stefano era uns centímetros mais baixo do que Lila. E falava italiano como um livro aberto , quando queria. E lia e conversava sobre tudo , e era sensível às grandes questões da condição humana, ao passo que Stefano vivia encerrado na sua char­ cutaria, falava quase exclusivamente em dialecto , não fizera mais do que a escola comercial , na caixa registadora da loja tinha a mãe , que fazia contas melhor do que ele e, embora tivesse bom carácter, era so­ bretudo sensível à movimentação lucrativa do dinheiro . Porém, embora a paixão me devorasse , embora visse claramente o prestígio que adqui­ riria aos olhos de Lila se me ligasse a ele , pela segunda vez desde que o vira e me apaixonara não fui capaz de estabelecer uma relação . O motivo pareceu-me muito mais forte do que o dos tempos da infância. Vê-lo trazia-me imediatamente à lembrança Donato Sarratore , embora não fossem nada parecidos . E o asco e a raiva que me suscitava a recor­ dação do que o pai dele me fizera sem que eu fosse capaz de o repelir, estendiam-se a ele . É verdade que o amava. Desejava falar com ele , passear com ele , e por vezes pensava, cheia de raiva: porque te compor­ tas assim, o pai não é o filho e o filho não é o pai , faz o mesmo que Stefano fez com os Peluso . Mas não era capaz . Assim que imaginava que o beijava, sentia a boca de Donato , e uma onda de prazer e de nojo misturava pai e filho numa única pessoa. Um episódio que me alarmou veio complicar ainda mais a situação . Agora, Alfonso e eu tínhamo-nos habituado a regressar a casa a pé . Ía­ mos até à Piazza Nazionale e depois metíamos pelo Corso Meridionale . Era um passeio longo , mas falávamos dos trabalhos de casa, dos profes­ sores , dos nossos colegas , e era agradável . Mas uma vez , pouco depois dos pauis , no início da rua larga, virei-me e pareceu-me ver, no aterro

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da linha férrea, com a farda de revisor, Donato Sarratore . Estremeci de raiva e de horror, desviei logo o olhar. Quando olhei de novo , já lá não estava. Quer essa aparição tivesse sido real ou falsa, ficou-me gravado o som que o coração me fez no peito , como se fosse um tiro , e , não sei porquê , voltou-me à lembrança a passagem da carta de Lila, sobre o barulho que a panela de cobre fizera ao rebentar. O mesmo barulho regressou no dia seguinte , assim que avistei Nino . Então, assustada, procurei protecção no afecto por Alfonso , e tanto à entrada como à saída mantive-me perto dele . Assim que avistava a figura esguia do rapaz que amava, voltava­ -me para o filho mais novo de dom Achille , como se tivesse coisas ur­ gentes para lhe dizer, e afastávamo-nos conversando . Foi um período confuso , apetecia-me aconchegar-me a Nino e , ao invés , tinha o cuidado de estar colada a Alfonso . Aliás , receando que ele se aborrecesse e me trocasse por outras companhias , comportei-me sempre de modo muito gentil com ele , às vezes até lhe falava com doçura. Mas , assim que me apercebia de poder estar a encorajar a inclinação que ele tinha por mim, mudava de tom. «E se ele me interpreta mal e me faz uma declaração de amor?» , preocupava-me . Seria embaraçoso , teria de rejeitá-lo . Lila, da minha idade , estava noiva de um homem adulto , Stefano , e seria no mínimo humilhante para mim andar com um rapazinho , o irmão mais novo do noivo dela. A mente , entretanto , desenhava arabescos incontro­ láveis , devaneava. Uma vez em que regressava com Alfonso pelo Corso Meridionale , sentindo-o a meu lado como um escudeiro que me escol­ tava por entre os mil perigos da cidade , pareceu-me interessante que tocasse a dois Carracci , Stefano e ele , a função de protegerem, ainda que de formas diferentes , Lila e eu do mal do mundo , desse mal que experimentámos pela primeira vez quando subimos a escada até casa deles , para ir buscar as bonecas que o pai nos tinha roubado .

42 . Gostava de fazer associações daquele género , sobretudo se se relacio­ navam com Lila. Traçava, como se usasse um esquadro , linhas de liga­ ção entre momentos e factos distantes entre si , estabelecia convergências e divergências . Naquela época tornou-se um exercício quotidiano: tinha estado tão bem em Ischia como Lila estivera mal na desolação do bairro; tanto sofrera eu por ter de sair da ilha, como a felicidade dela aumentara.

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Parecia que , devido a uma qualquer magia maldosa, a alegria ou a dor de uma pressupunha a dor ou a alegria da outra. Achei que o aspecto físico também participava dessa oscilação . Em Ischia sentira-me bonita, e essa impressão não se dissipara depois do regresso a Nápoles . Durante a ma­ quinação constante , ao lado de Lila, para ajudá-la a desembaraçar-se de Marcello , houvera até momentos em que voltara a considerar-me mais bonita do que ela, e em alguns olhares de Stefano captara a possibilidade de lhe agradar. Mas Lila agora estava em vantagem, a satisfação redobra­ ra-lhe a beleza, ao passo que eu , desgastada pelos trabalhos da escola, consumida pela paixão frustrada por Nino, estava de novo a ficar feia. A cor saudável estava a debotar e o acne a regressar. E de repente , uma manhã surgiu também o espectro dos óculos . O professor Gerace interrogou-me sobre qualquer coisa que escreve­ ra no quadro e apercebeu-se de que eu não via quase nada. Disse-me que devia ir de imediato a um oftalmologista, escreveu-me isso no ca­ derno e quis ver a assinatura de um dos meus progenitores no dia se­ guinte . Voltei para casa, mostrei o caderno , estava cheia de sentimentos de culpa pela despesa que as lentes implicavam. O meu pai ensombrou­ -se , a minha mãe ralhou-me: «Estás sempre em cima dos livros , estra­ gaste a vista.» Pareceu-me muito mal . Quer dizer que fora castigada pela soberba de querer estudar? Então e Lila? Não tinha lido muito mais do que eu? Então porque é que ela tinha uma vista perfeita e eu via cada vez menos? Porque é que eu tinha de usar óculos para o resto da vida e ela não? A necessidade de usar óculos aumentou a minha mania de encontrar um desígnio que , no bem e no mal , ligasse o meu destino ao da minha amiga: eu , cega, e ela, um falcão; eu , com a pupila opaca, e ela conti­ nuando a semicerrar os olhos e a lançar olhares que viam ainda mais; eu agarrada ao braço dela, por entre sombras , e ela a guiar-me com um olhar apurado . Por fim o meu pai , graças às suas negociatas na câmara , arranjou o dinheiro . As fantasias atenuaram-se . Fui ao oftalmologista, ele diagnosticou-me uma forte miopia, e os óculos concretizaram-se . Quando me vi ao espelho , a minha imagem demasiado nítida foi um duro golpe: impurezas na pele , cara larga, boca grande , nariz grosso , e os olhos aprisionados na moldura da armação , que parecia desenhada com fúria por um desenhador raivoso , sob as sobrancelhas já de si de­ masiado espessas . Senti-me definitivamente desfigurada e decidi pô-los só em casa, ou , no máximo , quando tivesse de copiar alguma coisa do quadro . Mas um dia, à saída da escola, esqueci-me deles na carteira.

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Voltei à sala a correr, mas o pior já tinha acontecido . Na pressa que nos assaltava a todos depois do último toque da sineta, tinham ido parar ao chão . Tinham uma haste partida, uma lente quebrada. Comecei a chorar. Não tive coragem de ir para casa, refugiei-me em casa de Lila em busca de auxílio . Contei-lhe o que me acontecera, pediu-me os óculos, examinou-os . Disse-me para os deixar ficar. Expressou-se com uma de­ terminação diferente daquela que habitualmente tinha, mostrou-se mais calma, como se já não fosse preciso lutar até ao extremo pelas pequenas coisas . Imaginei qualquer intervenção miraculosa de Rino , com as ferra­ mentas de sapateiro , e voltei para casa esperando que os meus pais não reparassem que estava sem óculos . Uns dias depois , ao fim da tarde , ouvi que me chamavam do pátio . Lá em baixo estava Lila, tinha os meus óculos postos e, à primeira vista, o que me impressionou não foi o facto de estarem como novos, mas sim que lhe ficavam bem. Corri lá abaixo , a pensar: porque é que lhe ficam bem a ela, que não precisa de óculos, e a mim, que não posso passar sem eles , me desfiguram a cara? Assim que cheguei à porta, ela tirou os óculos divertida, batendo as pálpebras . Disse-me: «Fazem-me doer os olhos» , e pôs-mos na cara, exclamando: «Que bem que te ficam, deves usá-los sempre .» Entregara os óculos a Stefano , que os mandara arranjar por um oculista da baixa. Murmurei envergonhada que nunca lhe poderia pagar, e ela replicou com ironia, talvez com uma pontinha de perfídia: «Pagar em que sentido?» «Dar-te o dinheiro .» Sorriu e depois disse , orgulhosa: «Não é preciso , agora faço o que me apetece com o dinheiro .»

43 . A questão do dinheiro deu ainda mais força àquela impressão de que aquilo que me faltava, ela tinha, e vice-versa, num jogo contínuo de trocas e inversões , que , ora com alegria, ora com sofrimento , nos torna­ vam indispensáveis uma à outra. Ela tem o Stefano , disse para mim depois do episódio dos óculos , basta-lhe estalar os dedos e os meus óculos são arranjados num instante . E eu , o que tenho? Respondi que tinha a escola, um privilégio que ela perdera para sem­ pre . É essa a minha riqueza, tentei convencer-me . E com efeito , naque-

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le ano os professores , todos eles , começaram a elogiar-me de novo . As pautas das notas eram cada vez melhores e até o curso de Teologia por correspondência me correu bem, recebi como prémio uma bíblia de capa preta. Exibi os meus êxitos como se fossem a pulseira de prata da minha mãe , mas não sabia o que fazer a tanta competência. Na aula não havia ninguém com quem pudesse conversar sobre as coisas que lia, sobre as ideias que me ocorriam . Alfonso era um rapaz diligente , depois das fa­ lhas do ano anterior entrara nos eixos , e tinha já mais do que suficiente em todas as matérias . Mas quando tentava reflectir com ele sobre os Promessi Sposi, ou sobre os romances maravilhosos que eu continuava a ir buscar à biblioteca do professor Ferraro , ou mesmo sobre o Espírito Santo , ele limitava-se a ouvir e , por timidez ou ignorância, não dizia nada que estimulasse em mim outros pensamentos . Além disso , enquan­ to nos interrogatórios usava um bom italiano , quando falava comigo nunca abandonava o dialecto , e em dialecto era difícil conversar sobre a corrupção da justiça terrena, como se via bem durante o almoço em casa de dom Rodrigo , ou sobre as relações entre Deus , o Espírito Santo e Jesus, que embora fossem uma só pessoa, a meu ver, quando se divi­ diam em três , deviam forçosamente ordenar-se de acordo com uma hierarquia, e nesse caso , quem vinha primeiro e quem em último? Veio-me à ideia o que Pasquale me dissera uma vez: que embora a minha escola fosse um liceu clássico , não devia ser das melhores . Con­ cluí que ele tinha razão . Raramente via as minhas colegas de escola bem vestidas , como as raparigas da Via dei Mille . E nunca acontecia virem­ -nas buscar à saída rapazes elegantemente vestidos , com automóveis mais luxuosos do que os de Marcello ou de Stefano . As qualidades in­ telectuais também escasseavam . O único rapaz que gozava de uma fama idêntica à minha era Nino , mas agora, em face da frieza com que o tratara, ia-se embora de cabeça baixa, nem para mim olhava. O que fa­ zer, então? Sentia necessidade de me expressar, a cabeça estava cheia. Recorria a Lila, principalmente nas férias escolares . Encontrávamo-nos e faláva­ mos . Contava-lhe tudo em pormenor, sobre as aulas e os professores . Ela ouvia-me com atenção , e eu esperava que ela sentisse curiosidade e regressasse à fase em que , em segredo ou às claras , ia imediatamente à procura dos livros que lhe permitiriam acompanhar-me . Mas isso não aconteceu , era como se uma parte dela tivesse posto um freio firme na outra. Em vez disso , o que ela mostrou foi uma tendência para intervir

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de uma penada, geralmente de maneira irónica. Uma vez , só para dar um exemplo , contei-lhe do meu curso de Teologia e disse, para impres­ sioná-la com as questões que me andavam às voltas na cabeça, que não sabia o que pensar do Espírito Santo , que a sua função não era clara para mim . «0 que é?» , pensei em voz alta, «uma entidade subordinada ao serviço de Deus e de Jesu s , como um mensageiro? Ou uma emana­ ção das duas primeiras pessoas , um seu fluido milagroso? Mas , no pri­ meiro caso , como é possível que uma entidade com funções de mensa­ geiro seja um só , juntamente com Deus e o seu filho? Não será o mesmo que dizer que o meu pai , que é porteiro da câmara, é um só juntamente com o presidente e com o comandante Lauro? E se olharmos para a segunda hipótese , bem, um fluido , o suor, a voz , são parte da pessoa de quem emanam; portanto , que sentido faz considerar o Espírito Santo separado de Deus e de Jesus? Ou o Espírito Santo é que é a pessoa mais importante e as outras duas são uma sua forma de ser, ou não compreen­ do qual é a sua função .» Lila, recordo-me , estava a preparar-se para sair com Stefano . Iam a um cinema na baixa juntamente com Pinuccia, Rino e Alfonso . Olhava para ela enquanto vestia uma saia nova, um casaco novo , e era de facto outra pessoa agora, até os tornozelos já não eram dois palitos. Mas vi os olhos fazerem-se-lhe pequeninos , como quando tentava agarrar qualquer coisa que lhe escapava. Disse em dialecto: «Tu ainda perdes tempo com essas coisas , Lenu? Nós andamos a voar sobre uma bola de fogo . A parte que arrefeceu flutua sobre a lava. Nessa par­ te construímos os edifícios , as pontes e as estradas . De tempos a tempos a lava sai do Vesúvio , ou então provoca um terremoto que destrói tudo . Há micróbios por todo o lado , que nos fazem adoecer e morrer. Há guerras . Há por aí uma miséria que nos torna a todos cruéis . A cada segundo pode acontecer qualquer coisa que nos faz sofrer de tal modo , que não há lágrimas que cheguem. E tu , o que fazes? Um curso de Teo­ logia em que te esforças para compreender o que é o Espírito Santo? Esquece isso , quem inventou o mundo foi o Diabo , e não o Pai , o Filho e o Espírito Santo . Queres ver o colar de pérolas que o Stefano me ofe­ receu?» Foi isto que ela disse , mais ou menos, deixando-me confusa. E não só naquela ocasião , mas cada vez mais , até que aquele tom estabi­ lizou e se tornou o seu modo de me fazer frente . Se eu dizia alguma coisa sobre a Santíssima Trindade , ela, com meia-dúzia de palavras apressadas , mas quase sempre afáveis , acabava com qualquer possibili­ dade de conversarmos e começava a mostrar-me os presentes de Stefa­ no , o anel de noivado , o colar, um vestido novo , um chapeuzinho , en-

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quanto as coisas que me apaixonavam, com as quais fazia boa figura perante os professores , que por isso me consideravam óptima aluna, murchavam a um canto , desprovidas de sentido . Punha de lado ideias , livros . Entretinha-me a admirar todos aqueles presentes que contrasta­ vam com a casa pobre de Fernando , o sapateiro; experimentava os vestidos e os objectos de valor; notava quase de imediato que nunca me ficariam bem como ficavam a ela; e punha-me a andar.

44 . No papel de noiva, Lila foi muito invejada e provocou não pouco desagrado . Aliás , a sua maneira de ser já causava irritação quando ela era uma garota macilenta, quanto mais agora, que era uma mulher cheia de sorte . Ela própria me falou de uma hostilidade crescente da mãe de Stefano e, sobretudo , de Pinuccia. Ambas traziam claramente estampa­ dos no rosto os seus pensamentos maldosos . Quem é que a filha do sa­ pateiro julgava ser? Que poção maléfica dera a beber a Stefano? Como é que assim que ela abria a boca, ele abria a carteira? Quer vir armar-se em patroa na nossa casa? Se Maria se limitava a um amuo silencioso , Pinuccia não se continha, explodia, dirigindo-se ao irmão nestes termos: «Porque é que a ela compras tudo , e a mim, não só nunca me com­ praste nada, como as poucas vezes em que comprei qualquer coisa bo­ nita me criticaste , dizendo que estava a fazer despesas inúteis?» Stefano mostrava o seu meio sorriso tranquilo e não respondia. Mas , coerente com o seu feitio conciliador, começou a oferecer também pre­ sentes à irmã. O que deu origem a um desafio entre as duas raparigas , que iam ao cabeleireiro juntas e compravam roupas idênticas . Mas isso só serviu para azedar Pinuccia ainda mais . Ela não era feia, pouco mais velha do que nós , talvez mais bem feita, mas o efeito que qualquer peça de vestuário ou objecto fazia no corpo de uma e no da outra não tinha com­ paração . A primeira a reparar nisso foi a mãe. Maria, quando via Lila e Pinuccia prontas para sair, com penteados semelhantes , com vestidos parecidos , arranjava sempre maneira de disfarçar, e, por portas travessas , num tom fingidamente afável , criticava a futura nora por qualquer coisa que fizera dias antes , por exemplo , deixar a luz da cozinha acesa ou a torneira aberta, depois de ir beber um copo de água. Em seguida voltava­ -se para o outro lado , como se tivesse muito que fazer, e resmungava:

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«Voltem cedo .» Nós , as raparigas do bairro , depressa começámos a ter problemas idênticos . Nos dias festivos , Carmela, que insistia em ser tratada por Carmen , e Ada, e Gigliola, começaram a ataviar-se , sem o admitirem, sem o admitirem a si próprias , em competição com Lila. Gigliola, prin­ cipalmente , que trabalhava na pastelaria e que , embora não oficialmen­ te , andava com Michele Solara, comprava e pedia para ele lhe comprar coisas bonitas , de propósito para as exibir quando andava pelas ruas ou de automóvel . Mas não havia competição possível , Lila parecia inalcan­ çável , uma figurinha fascinante em contraluz . De início tentámos impedi-la, impor-lhe os velhos hábitos . Trouxe­ mos Stefano para o nosso velho grupo , mimámo-lo , apaparicámo-lo , e ele pareceu satisfeito , tanto mais que um sábado , talvez impelido pela sua simpatia por Antonio e Ada, disse a Lila: «Vê se a Lenuccia e os filhos da Melina amanhã à noite vão comer qualquer coisa connosco .» O «connosco» referia-se a eles os dois , mais Pinuccia e Rino , que agora gostava muito de passar o tempo livre com o futuro cunhado . Aceitá­ mos , mas foi uma noite difícil . Ada, com receio de fazer má figura, pediu um vestido emprestado a Gigliola. Stefano e Rino não escolheram uma pizzeria , mas sim um restaurante em Santa Lucia. Eu , Antonio e Ada nunca tínhamos estado num restaurante , coisa de gente rica, fomos dominados pela ansiedade: como nos vestimos , quanto custaria? En­ quanto eles , os quatro , foram na Giardinetta , nós apanhámos o autocar­ ro até à Piazza dei Plebiscito , e fizemos o resto do percurso a pé . Uma vez no destino , eles pediram com desenvoltura vários pratos e nós quase nada, receando que a conta fosse pesada para as nossas possibili­ dades. Passámos quase todo o tempo calados , porque Rino e Stefano falaram sobretudo de dinheiro e nunca se lembraram de envolver, pelo menos Antonio , em conversas de outro género . Ada, não resignada à marginalidade , toda a noite tentou atrair a atenção de Stefano , fazendo­ -lhe denguices excessivas que desagradaram ao irmão . Por fim, quando chegou a altura de pagar, descobrimos que Stefano já se encarregara do assunto , e se Rino não se incomodou nada com isso , Antonio voltou para casa aborrecido , pois era da idade de Stefano e Rino , e trabalhava como eles , e sentira-se tratado como um pedinte . Mas o facto mais sig­ nificativo foi que eu e Ada, com sentimentos diferentes , concluímos que num lugar público, fora da nossa intimidade de amigas , não sabíamos o que dizer a Lila, nem como tratá-la. Estava tão bem maquilhada, tão bem vestida, que parecia a condizer com a Giardinetta , com o descapo-

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tável , com o restaurante de Santa Lucia, mas fisicamente imprópria para entrar no metropolitano connosco , para viajar de autocarro , deslo­ car-se a pé , ir buscar uma pizza ao Corso Garibaldi , ir ao cinema paro­ quial ou ir dançar em casa de Gigliola. Naquela noite tomou-se evidente que Lila estava a mudar de catego­ ria. Ao longo de dias , de meses , tomou-se uma senhorinha que imitava os manequins das revistas de moda, as raparigas da televisão , as jovens que vira a passear na Via Chiaia. Para quem a via, desprendia-se dela um brilho , que era como uma violenta bofetada no rosto da miséria do bairro . O corpo de rapariguinha, de que ainda havia vestígios quando tramámos juntas o enredo que a levara ao noivado com Stefano , depres­ sa foi escorraçado para territórios escuros. À luz do sol surgiu em seu lugar uma jovem mulher que , quando ao domingo saía de braço dado com o noivo , dava a impressão de estar a pôr em prática uma cláusula do acordo existente entre ambos como casal . Stefano , com os seus pre­ sentes , parecia querer demonstrar ao bairro que , se Lila era bonita, po­ dia sê-lo cada vez mais , enquanto ela parecia ter descoberto a alegria de beber da fonte inesgotável da sua beleza, e sentir, e dar a ver, que ne­ nhum perfil bem desenhado era capaz de a conter de modo definitivo , pois um novo penteado , um vestido novo , uma nova maneira de maqui­ lhar os olhos ou a boca, eram apenas contornos mais rebuscados que dissolviam os anteriores . Stefano parecia procurar nela o símbolo mais evidente do futuro de bem-estar e de poder que almejava; e ela parecia fazer uso do sigilo que ele lhe impunha, para se proteger, e proteger o irmão , o pai e os restantes familiares , de tudo aquilo que confusamente enfrentara e desafiara desde pequena. Eu nada sabia ainda acerca daquilo a que ela em segredo , para si mesma, depois da desagradável experiência da passagem do ano , cha­ mava desmarginação . Mas conhecia a história da panela que explodiu , estava sempre à coca em qualquer canto da minha mente , pensava repe­ tidamente nela. E recordo-me de que uma noite , em casa, reli de propó­ sito a carta que ela me enviara para Ischia. Como era cativante o seu modo de falar de si própria, e como parecia já tão distante . Tive de re­ conhecer que a Lila que escrevera aquelas palavras tinha desaparecido . Na carta ainda existia a menina que escrevera A Fada Azul, a raparigui­ nha que aprendera latim e grego sozinha, que devorara metade da bi­ blioteca do professor Ferrara , e também aquela que desenhara os sapa­ tos agora emoldurados na sapataria. Mas na vida do dia-a-dia não a via, já não a ouvia. A Cerullo nervosa e agressiva parecia ter-se imolado .

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Embora continuássemos , tanto eu como ela, a morar no mesmo bairro , embora tivéssemos tido a mesma infância, embora vivêssemos ambas o nosso décimo sexto ano de vida, de repente encontrámo-nos em mundos diferentes . Eu , com o passar dos meses , ia-me transformando numa ra­ pariga desleixada, despenteada, caixa-de-óculos , inclinada sobre livros esfrangalhados , que exalavam o mau-cheiro dos volumes comprados com grande sacrifício no mercado de coisas usadas , ou arranjados pela professora Oliviero . Ela, passava de braço dado com Stefano, penteada como uma diva, com vestidos que a faziam parecer uma actriz ou uma princesa. Via-a da janela, sentia que a sua forma anterior se rompera e relem­ brava aquela passagem tão bonita da carta, a panela de cobre rebentada e retorcida. Era uma imagem que utilizava com frequência, cada vez que detectava uma fractura dentro dela ou dentro de mim . Sabia - tal­ vez esperasse - que nenhuma forma seria capaz de conter Lila, e que mais cedo ou mais tarde tudo voltaria a despedaçar-se .

45 . Depois da desagradável noite no restaurante em Santa Lucia, não houve outras oportunidades idênticas , não porque os noivos não voltas­ sem a convidar-nos , mas porque nos esquivámos , ora com uma desculpa, ora com outra. Porém, quando os trabalhos de casa não me tiravam todas as energias , deixava-me levar a um baile caseiro , a comer uma pizza com o nosso antigo grupo . Mas preferia sair quando tinha a certeza de que Antonio também estaria presente; havia algum tempo que tinha uma certa dedicação por mim, fazia-me uma corte discreta, cheia de atenções . Sim, a pele do rosto era brilhante e cheia de pontos negros , os dentes azulados aqui e ali , as mãos grosseiras , dedos robustos com os quais uma vez desaparafusara sem esforço os parafusos de um pneu furado de um carro velho que Pasquale arranjara. Mas tinha cabelo negro encaracola­ do , que dava vontade de acariciar, e , embora muito tímido , as poucas vezes que abria a boca dizia ditos espirituosos . Além disso , era o único que dava pela minha presença. Enzo raramente aparecia, tinha uma vida da qual pouco ou nada sabíamos , mas quando estava presente dedicava­ -se , à sua maneira indiferente , lenta, e não exageradamente , a Carmela. Quanto a Pasquale , parecia ter perdido o interesse pelas raparigas , depois de Lila o rejeitar. Fazia muito pouco caso de Ada, apesar de ela ser mui-

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to delambida com ele , embora repetisse constantemente que já não podia olhar mais para as nossas caras feias . Nesses serões , como é natural , mais cedo ou mais tarde acabávamos por falar de Lila, embora desse a impressão que ninguém queria men­ cionar o nome dela. Os rapazes sentiam-se todos um bocado desiludi­ dos , qualquer um deles gostaria de estar no lugar de Stefano . Mas o mais infeliz era Pasquale . Se não sentisse um ódio antigo pelos Solara, provavelmente ter-se-ia posto publicamente ao lado de Marcello contra a fami1 ia Cerullo . Os seus males de amor roíam-no por dentro , e ver Lila e Stefano juntos , mesmo só de relance , tirava-lhe a alegria de viver. No entanto , era por natureza um rapaz de bons sentimentos e ajuizado , e tinha o cuidado de controlar as suas reacções e de tomar o partido que lhe parecia justo . Quando se soube que Marcello e Michele , uma noite , tinham confrontado Rino , e , embora não lhe tocassem nem com um dedo , o haviam coberto de insultos, Pasquale tomara o partido de Rino sem hesitar. Quando se soube que Silvio Solara, pai de Michele e de Marcello , fora pessoalmente à sapataria renovada de Fernando e o tinha censurado , sem se exceder, por não ter sabido educar bem a filha, e depois , olhando em volta, comentara que ele podia fazer todos os sapa­ tos que quisesse , mas onde os ia vender depois , nunca encontraria um estabelecimento que lhe ficasse com eles , sem contar que , com tanta cola que ali havia, com todo aquele fio , e pez , e formas de madeira, e solas e palmilhas , em menos de nada tudo pegava fogo , Pasquale pro­ metera a si mesmo que , caso houvesse um incêndio na sapataria Cerullo , iria, com alguns companheiros seus de confiança, deitar fogo ao bar­ -pastelaria Solara. Mas a respeito de Lila era crítico . Dizia que ela devia ter fugido de casa, em vez de aceitar que Marcello fosse lá todas as noites cortejá-la. Dizia que ela devia ter partido a televisão com um martelo , em vez de se sentar a vê-la juntamente com quem se sabia que a comprara só para a ter a ela. E dizia, por fim , que ela era uma rapariga demasiado inteligente para se ter realmente apaixonado por um hipócri­ ta de um nabo como Stefano Carracci . Nessas ocasiões eu era a única que não ficava calada, desaprovava explicitamente as críticas de Pasquale . Contestava-o , dizendo coisas do género: não é fácil fugir de casa; não é fácil ir contra a vontade das pessoas que estimamos; nada é fácil , e a prova é que tu a criticas , em vez de te zangares com o teu amigo Rino , pois foi ele que a meteu na­ quela alhada com o Marcello , e se a Lila não tivesse arranjado maneira de se livrar do Marcello , teria de se casar com ele . E concluía fazendo

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o elogio de Stefano , que de todos eles , que conheciam Lila desde peque­ na e gostavam dela, fora o único que tivera a coragem de apoiá-la e de ajudá-la. Fazia-se então um profundo silêncio , e eu sentia-me orgulhosa de ter refutado todas as críticas feitas à minha amiga, num tom e numa linguagem que , para além do mais , os calara a todos. Mas uma noite a discussão tornou-se feia. Estávamos todos , Enzo também , a comer uma pizza no Rettifilo , num local onde uma pizza margherita e uma cerveja custavam cinquenta liras . Dessa vez foram as raparigas que começaram. Ada, creio , disse que achava Lila ridícula por andar pelo bairro sempre acabada de sair do cabeleireiro e vestida como a princesa Soraya, embora espalhasse veneno para as baratas em frente da porta de casa, e , uns mais , outros menos, todos nos rimos . Depois , palavra puxa palavra, Carmela disse , sem papas na língua, que achava que Lila aceitara Stefano por dinheiro , para dar estabilidade ao irmão e ao resto da família. Eu estava a dar início à habitual defesa oficial , quan­ do Pasquale me interrompeu e disse: «A questão não é essa. A questão é que a Lina sabe de onde veio aquele dinheiro .» «Ora, ora, queres trazer outra vez à baila dom Achille e o mercado negro , e as negociatas e a usura e todas as porcarias de antes e depois da guerra?» , observei eu . «Sim, e se a tua amiga agora aqui estivesse , dava-me razão .» «Ü Stefano é simplesmente um comerciante que sabe vender.» «E o dinheiro que investiu na sapataria dos Cerullo veio-lhe da char­ cutaria?» «Porquê , o que te parece?» «Veio do ouro das mães de família, que dom Achille tinha escondido dentro do colchão . A Lina arma-se em senhora à custa do sangue de toda a gente pobre deste bairro . E deixa que ele a sustente , a ela e a toda a farm1ia, ainda antes de se casar.» Eu ia responder-lhe , quando Enzo se intrometeu com o seu destaque habitual : «Desculpa, Pascà, o que significa "deixa que a sustente"?» Bastou-me ouvir aquela pergunta, para saber que as coisas iam acabar mal . Pasquale corou , ficou atrapalhado: «Sustentar significa sustentar. Quem é que paga, desculpa lá, quando a Lina vai ao cabeleireiro , quando compra roupas e malas? Quem é que investiu dinheiro na sapataria para que o sapateiro possa brincar aos fabricantes de sapatos?»

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«Üu seja, tu estás a dizer que a Lina não se apaixonou , não está noiva, nem está para casar com o Stefano , mas sim que se vendeu?» Ficámos todos calados . Antonio gaguejou: «Claro que não , Enzo , o Pasquale não quer dizer isso; tu sabes que ele quer bem à Lina, como todos nós queremos .» Enzo fez-lhe sinal para se calar. «Tu cala-te , Anta ' , deixa o Pasquale responder.» Pasquale disse , com ar sombrio: «Sim, vendeu-se . E esteve-se marimbando para o fedor do dinheiro que gasta todos os dias .» Nessa altura tentei de novo falar, mas Enzo tocou-me no braço . «Desculpa, Lenii , quero saber o que é que o Pasquale chama a uma mulher que se vende .» Aqui , Pasquale teve um impulso de violência que todos lhe lemos nos olhos , e disse aquilo que havia meses tinha vontade de dizer, de gritar a todo o bairro: «Prostituta, chamo-lhe prostituta. A Lina comportou-se e está a comportar-se como uma prostituta.» Enzo pôs-se em pé e disse , quase num sussurro: «Anda lá para fora.» Antonio saltou da cadeira, agarrou num braço de Pasquale , que que­ ria levantar-se , e disse: «Então , não exageremos, Enzo . O Pasquale está apenas a dizer uma coisa que não é uma acusação , é uma crítica que todos nós temos von­ tade de fazer.» Enzo respondeu , desta vez em voz alta: «Eu , não .» E dirigiu-se para a saída, anunciando: «Espero pelos dois lá fora.» Impedimos Pasquale e Antonio de o seguirem, não aconteceu nada. Limitaram-se a ficar amuados uns dias , depois tudo se normalizou .

46 . Contei esta altercação para mostrar como se passou aquele ano e qual o clima que as opções de Lila originavam, principalmente entre os rapa­ zes que em segredo ou explicitamente a tinham amado , a tinham deseja­ do , e com toda a probabilidade a amavam e a desejavam ainda. Quanto a mim, é difícil dizer a embrulhada de sentimentos em que me encontra-

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va. Defendia Lila e m todas a s ocasiões , e dava-me gosto fazê-lo , gostava de me ouvir falar com a autoridade de alguém que anda a estudar maté­ rias difíceis . Mas sabia que também seria capaz de contar com o mesmo prazer, até mesmo com algum exagero , que Lila estivera por trás de todas as movimentações de Stefano , e eu com ela, ligando um passo a outro passo como se fosse um problema de matemática, até chegar àquele re­ sultado: ter estabilidade , dar estabilidade ao irmão , tentar realizar o pro­ jecto da fabricação de sapatos , e também ter onde ir buscar dinheiro para mandar consertar os meus óculos se eles se partissem. Passava em frente da velha oficina de Fernando e experimentava um sentimento de vitória por ela. Lila, como era evidente , conseguira o que queria. A sapataria, que nunca tivera nenhuma tabuleta, agora exibia por cima da velha porta uma espécie de placa com a palavra «Cerullo» . Fernando , Rino e os três aprendizes estavam ocupados a juntar, pespon­ tar, martelar e esmerilar desde manhã até alta noite , debruçados sobre as mesas . Sabia-se que pai e filho discutiam muito . Sabia-se que Fernando afirmava que os sapatos , sobretudo os de mulher, não podiam ser feitos como Lila os inventara, que não passavam de uma fantasia de criança. Sabia-se que Rino afirmava o contrário e que ia ter com Lila e lhe pedia para intervir. Sabia-se que Lila respondia que já não queria saber do assunto , e que por isso Rino ia ter com Stefano e o arrastava até à ofi­ cina para que fosse ele a dar ordens precisas ao pai . Sabia-se que Stefa­ no ia com ele e olhava muito tempo para os desenhos de Lila emoldu­ rados na parede , sorria de si para si e dizia serenamente que queria os sapatos exactamente como se viam nas folhas quadriculadas , que as ti­ nha pendurado ali justamente para esse fim. Sabia-se , em suma, que tudo andava ao rallenti e que os trabalhadores , primeiro , recebiam ins­ truções de Fernando , e que depois Rino as alterava, e tudo parava e recomeçava-se , e que Fernando se apercebia das alterações e voltava a alterar, e chegava Stefano e ponto final , parágrafo , acabavam aos gritos e a partir coisas . Eu deitava uma olhadela e seguia em frente . Mas ficavam-me grava­ dos os pequenos quadros pendurados nas paredes . Dizia para mim: «Aqueles desenhos , para Lila, foram uma fantasia, o dinheiro não tem nada a ver, vendê-los não tem nada a ver. Esta trabalheira toda é o re­ sultado final de uma veia artística dela, celebrada por Stefano só por amor. É uma felizarda, por ser tão amada e por amar. É uma felizarda, por ser adorada por aquilo que é e por aquilo que sabe inventar. Agora que deu ao irmão o que o irmão queria, agora que o afastou dos perigos ,

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inventará outra coisa de certeza. Por isso não quero perdê-la de vista. Alguma coisa há-de acontecer.» Mas não aconteceu nada. Lila assentou no papel de noiva de Stefano . E até nas conversas que tínhamos , quando eu arranjava algum tempo , me pareceu sempre satisfeita com aquilo que era, como se já não visse nada para além disso , não quisesse ver mais nada, a não ser o casamen­ to , uma casa, filhos . Fiquei decepcionada. Parecia adocicada, sem as asperezas de sempre . Dei-me conta disso algum tempo depois , quando , pela boca de Gigliola Spagnuolo , me chegaram aos ouvidos boatos insultuosos a seu respeito . Gigliola disse-me com rancor, em dialecto: «A tua amiga agora parece uma princesa . Mas o Stefano sabe que quando o Marcello ia a casa dela, ela lhe fazia um broche todas as noites?» Eu ignorava o que fosse um broche . Conhecia a palavra desde miúda, mas o seu som sugeria-me só uma espécie de afronta, algo de muito humilhante . «Não é verdade .» «0 Marcello assim o diz .» «É um mentiroso .» «Ai sim? E também conta mentiras ao irmão?» «Foi o Michele que te disse?» «Sim.» Esperei que aqueles boatos não chegassem aos ouvidos de Stefano . Cada vez que voltava da escola, pensava: talvez seja melhor avisar Lila, antes que aconteça alguma coisa má. Mas receava que ela se enfureces­ se e que , devido à maneira como crescera e devido ao feitio que tinha, se dirigisse directamente a Marcello Solara com o trinchete . Mas por fim decidi-me; era melhor contar-lhe o que me disseram, pelo menos ela ficava a saber de tudo; e mais , estaria preparada para enfrentar a situa­ ção . Descobri que ela estava mais bem informada do que eu acerca do que era um broche . Percebi isso pelo facto de ela ter usado uma expres­ são mais clara, para me dizer que nunca faria essa coisa a homem ne­ nhum, pois metia-lhe nojo, quanto mais a Marcello Solara. Depois disse-me que o boato já chegara aos ouvidos de Stefano , e que ele lhe perguntara que tipo de relações houvera entre ela e Marcello durante o período em que ele frequentara a casa dos Cerullo . Ela respondera-lhe com raiva: «De nenhum tipo , estás doido?» Stefano apressara-se a res­ ponder que acreditava nela, que nunca tivera dúvidas , e que lhe fizera

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aquela pergunta s ó para que ela soubesse que Marcello andava a dizer porcarias a respeito dela. Mas entretanto fizera uma expressão ausente, de quem, mesmo sem querer, é influenciado por cenas de chacina que se lhe formam na mente. Lila reparara nisso e discutiram o assunto du­ rante muito tempo . Confessara-lhe que também ela sentia uma necessi­ dade de vingança. Mas de que servia isso? Falaram e voltaram a falar e decidiram, de comum acordo , subir um degrau mais acima do que os Solara, e da lógica do bairro . «Um degrau mais acima?» , perguntei-lhe , admirada. «Sim, ignorá-los: o Marcello , o irmão , o pai , o avô , todos . Fazer de conta que não existem.» E assim , Stefano continuara entregue ao seu trabalho sem defender a honra da noiva, Lila continuara com a sua vida de noiva sem recorrer ao trinchete ou a outra coisa, e os Solara continuaram a divulgar obsce­ nidades . Saí de lá estupefacta. O que se estava a passar? Não compreen­ dia. Parecia-me mais claro o comportamento dos Solara, mais coerente com o mundo que conhecíamos desde crianças . Mas ela e Stefano , o que tinham em mente , onde pensavam que viviam? Comportavam-se de uma maneira que não se encontrava sequer nos poemas que eu estu­ dava na escola, nos romances que lia. Estava perplexa. Não reagiam às ofensas , nem àquela, realmente intolerável , que lhes estavam a fazer os Solara. Mostravam gentileza e cortesia com toda a gente , como se fos­ sem John e Jacqueline Kennedy em visita a um bairro de indigentes . Quando saíam os dois a passear, com o braço dele em volta dos ombros dela, parecia que nenhuma das velhas regras era válida para eles; riam, brincavam, beijavam-se na boca. Via-os às voltas no descapotável , so­ zinhos mesmo à noite , sempre vestidos como actores de cinema, e pensava: vão sei lá para onde sem ninguém a acompanhá-los , e não às escondidas , com a aprovação dos pai s , com a aprovação de Rino , fa­ zendo o que lhes apetece sem dar importância ao que as pessoas dizem . Era Lila que andava a persuadir Stefano àqueles comportamentos que faziam deles o casal mais admirado e mais falado do bairro? Era aque­ la a última novidade que ela inventara? Queria sair do bairro continuan­ do no bairro? Queria arrastá-lo para fora de si mesmo , arrancar-lhe a velha pele e impor-lhe uma nova, adequada à que estava inventando para ela?

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47 . Tudo reentrou bruscamente nos carris habituais quando os boatos a respeito de Lila chegaram aos ouvidos de Pasquale . Aconteceu num domingo , quando eu , Carmela, Enzo , Pasquale e Antonio andávamos a passear na rua larga. Antonio disse: «Constou-me que o Marcello Solara anda a dizer a toda a gente que a Lina esteve com ele .» Enzo não pestanejou , Pasquale reagiu logo: «Esteve como?» Antonio ficou embaraçado , devido à minha presença e à de Carmela, e respondeu: «Tu percebeste .» Afastaram-se , falaram um com o outro . Vi e ouvi que Pasquale se enfurecia cada vez mais , que Enzo se tornava fisicamente mais compac­ to , como se já não tivesse braços , pernas , pescoço , e fosse um bloco de matéria dura. Porquê , perguntei-me , porque se enfurecem tanto? Lila não é irmã deles , nem sequer prima. No entanto sentem-se na obrigação de se indignarem , todos eles , mais do que Stefano , muito mais do que Stefano , como se fossem eles os noivos . Pasquale , principalmente , pare­ ceu-me ridículo . Ele , que havia pouco tempo dissera o que dissera, a certa altura levantou a voz e ouvimo-lo bem, com os nossos ouvidos: «Eu parto a cara àquele cagalhão , anda a fazê-la passar por prostituta. Mas se o Stefano lho permite , quem não lho permite de certeza é o abai­ xo-assinado .» Depois , silêncio , reuniram-se a nós , vagueámos indolen­ temente , eu a conversar com Antonio , Carmela entre o irmão e Enzo . Dali a pouco acompanharam-nos a casa. Vi-os afastarem-se , Enzo , que era o mais baixo , no meio , Antonio e Pasquale , um de cada lado . No dia seguinte e durante muitos dias houve um grande falatório acer­ ca do II 00 dos Solara. Fora reduzido a pedaços . E não só: os dois irmãos haviam sido agredidos com selvajaria, mas não sabiam dizer por quem. Juravam que tinham sido espancados numa ruazinha escura, por dez pessoas pelo menos , gente vinda de fora. Mas eu e Carmela sabíamos muito bem que os agressores eram só três e ficámos muito preocupadas . Esperámos pelas inevitáveis represálias , um dia, dois , três . Mas tomou­ -se evidente que as coisas tinham sido bem feitas . Pasquale continuou a vida de pedreiro , Antonio a de mecânico , Enzo nas suas voltas com a carroça. Já os Solara, durante algum tempo só se deslocavam a pé , mal­ tratados , um pouco perturbados , e sempre acompanhados por quatro ou

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cinco amigos . Confesso que me deu prazer vê-los naquele estado . Senti orgulho nos meus amigos . Juntamente com Carmen e Ada critiquei Ste­ fano e também Rino , por terem feito de conta que nada acontecera. De­ pois o tempo passou , Marcello e Michele compraram uma Giulietta verde e recomeçaram a comportar-se como donos do bairro . Sãos e sal­ vos , mais prepotentes do que antes . Sinal de que Lila talvez tivesse ra­ zão . Gente daquela laia tinha de ser combatida através de um estilo de vida superior, um estilo que eles nem eram capazes de imaginar. Quando estavam a decorrer os exames do segundo ano do secundário , ela anun­ ciou-me que na Primavera, ainda com dezasseis anos, se casaria.

48 . Aquela notícia abalou-me . Quando Lila me anunciou o casamento estávamos em Junho , a poucas horas das provas orais. Já era previsível , claro , mas agora que fora fixada uma data, 1 2 de Março , pareceu-me ter batido , por distracção , contra uma porta. Tive pensamenfos mesquinhos . Contei os meses , eram nove . Nove meses talvez fosse muito tempo , permitindo que a raiva pérfida de Pinuccia, a hostilidade de Maria, os boatos espalhados por Marcello Solara, que continuavam a voar de boca em boca por todo o bairro , como a Fama na Eneida , consumissem Ste­ fano e o levassem a romper o noivado . Senti vergonha de mim, mas não conseguia encontrar um desígnio coerente no afastamento dos nossos destinos . O facto de já haver uma data concreta deu também um carácter concreto à encruzilhada que iria afastar as nossas vidas uma da outra. E o pior foi não me restarem dúvidas de que a sorte dela seria melhor do que a minha. Senti mais forte do que nunca a insignificância do meu percurso escolar, vi claramente que o iniciara, anos antes , só para pare­ cer invejável aos olhos de Lila. E no fim de contas , ela agora já não atribuía qualquer importância aos livros. Desisti de me preparar para o exame , não dormi nessa noite . Pensei na minha magra experiência amo­ rosa. Beijara Gino uma vez , mal roçara nos lábios de Nino , e suportara os contactos fugazes e imundos do pai dele . Era tudo . Lila, por sua vez , em Março , com dezasseis anos , teria um marido , e dentro de um ano , aos dezassete , um filho , e depois mais outro , e outro , e outro . Senti-me uma sombra, chorei de desespero . No dia seguinte fui fazer o exame sem vontade nenhuma. Mas suce­ deu algo que me fez sentir melhor. O professor Gerace e a professora

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Galiani , que fazia parte do júri , elogiaram muito o meu trabalho de Italiano . Gerace , em especial , disse que a minha exposição melhorara muito . Fez questão de ler uma passagem ao resto do júri . E só ao ouvi­ -lo me apercebi daquilo que procurara fazer nos últimos meses , cada vez que tinha de escrever: livrar-me do meu tom artificial , das frases muito rígidas , tentar uma escrita fluente e sedutora como a de Lila na carta de Ischia. Quando ouvi as minhas palavras na voz do professor, enquanto a professora Galiani ouvia e aprovava em silêncio com a ca­ beça, compreendi que tinha conseguido . Não era a forma de escrever de Lila, naturalmente , era a minha. E aos meus professores parecia algo realmente fora do normal . Passei para o primeiro ano do liceu com dez em tudo , mas em minha casa ninguém se admirou nem me felicitou . Vi que estavam satisfeitos , isso sim , e fiquei contente , mas não deram importância nenhuma ao acontecimento . A minha mãe achou o meu sucesso escolar perfeitamen­ te natural , e o meu pai disse-me que fosse imediatamente a casa da professora Oliviero , para ela se lembrar de me arranjar a tempo os livros para o próximo ano . Quando ia a sair, a minha mãe gritou: «E se ela te quiser mandar outra vez para Ischia, diz-lhe que eu não estou bem e que tens de me ajudar em casa.» A professora elogiou-me , mas sem entusiasmo , não só porque tam­ bém ela já tinha como certo o meu bom aproveitamento , mas também porque não estava bem de saúde , o problema que tinha na boca inco­ modava-a muito . Não fez qualquer referência à minha necessidade de descanso , nem à prima Nella, nem a Ischia. Em vez disso , para minha surpresa, começou a falar de Lila. Vira-a na rua, de longe . Estava com o noivo , disse , o charcuteiro . Depois pronunciou uma frase que recor­ darei sempre: «A beleza que a Cerullo possuía na mente desde pequena não encontrou saída, Greco , e foi-lhe toda parar à cara, ao peito , às co­ xas e ao cu , lugares onde depressa desaparece , e é como se nunca a ti­ vesse tido .» Nunca a ouvira dizer um palavrão , desde que a conhecia. Naquele dia disse «CU» , e depois gaguejou: «Desculpa.» Mas não foi isso que me impressionou . Foi a mágoa, como se a professora se tivesse apercebido de que alguma coisa em Lila se desperdiçara porque ela, como profes­ sora, não a protegera e não a desenvolvera bem. Senti-me a sua aluna mais bem conseguida e fui-me embora aliviada. O único que me felicitou sem meios termos foi Alfonso , que também passou , com sete em tudo . Senti que a admiração dele era genuína, o

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que me deu prazer. Diante das pautas afixadas , levado pelo entusiasmo , na presença dos nossos colegas e dos respectivos pais , fez uma coisa inconveniente , como se se tivesse esquecido de que eu era rapariga e que não devia tocar-me . Apertou-me com força contra ele e deu-me um beijo na face , um beijo ruidoso . Depois ficou atrapalhado , largou-me de imediato , pediu desculpa, mas não se conteve e gritou: «Dez a tudo, impossível , dez a tudo .» No regresso a casa falámos muito do casamen­ to do irmão e de Lila. Como me sentia muito à vontade com ele , per­ guntei-lhe pela primeira vez o que pensava da futura cunhada. Levou tempo a responder-me . Depois disse: «Lembras-te daquele desafio que nos obrigaram a fazer na escola?» «Quem é que se conseguiria esquecer?» «Eu tinha a certeza de ganhar, todos vocês tinham medo do meu pai .» «A Lina também. Aliás , durante algum tempo tentou não te vencer.» «Sim, mas depois decidiu vencer e humilhou-me . Voltei para casa a chorar.» «Perder custa muito .» «Não foi por isso . Achei intolerável que todos tivessem terror do meu pai , eu em primeiro lugar, e aquela miúda não .» «Estavas apaixonado por ela?» «Estás a brincar? Sempre me fez sentir acanhado .» «Em que sentido?» «No sentido que o meu irmão tem mesmo muita coragem para casar com ela.» «0 que queres tu dizer?» «Quero dizer que tu és melhor, e que se tivesse sido eu a escolher, casaria contigo .» Também isso me deu prazer. Desatámos a rir, quando nos despedimos ainda ríamos . Ele estava condenado a passar o Verão na charcutaria, e eu , mais por decisão da minha mãe do que do meu pai , devia procurar um trabalho para o Verão . Prometemos encontrar-nos , irmos à praia juntos pelo menos uma vez . Não fomos . Nos dias seguintes andei às voltas pelo bairro , sem qualquer interes­ se . Perguntei a dom Paolo , o dono da mercearia da rua larga, se preci­ sava de uma caixeira. Nada. Perguntei ao vendedor de jornais. Também não precisava de mim. Fui falar com a dona da papelaria, ela começou a rir. Precisava, sim , mas não agora; disse-me que voltasse no Outono , quando reabriam as escolas . Fiz menção de me ir embora e ela chamou­ -me e disse:

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«Tu és uma rapariga muito séria, Lenu , tenho confiança em ti . Eras capaz de levar as minhas miúdas a banhos?» Saí da loja muito feliz . A senhora estava disposta a pagar-me - e a pagar-me bem - se eu levasse à praia as suas três meninas , durante todo o mês de Julho e os primeiros dez dias de Agosto . Mar, sol e di­ nheiro . Teria de ir todos os dias a um sítio entre Mergellina e Posillipo , do qual nada sabia, e que tinha um nome estrangeiro , chamava-se Sea Garden . Dirigi-me para casa muito excitada, como se a minha vida ti­ vesse dado uma volta decisiva. Ia ganhar dinheiro para os meus pais , tomar banhos de mar, ficar bonita por apanhar sol como no Verão pas­ sado . Como tudo é agradável , pensei , quando o dia está bom e todas as coisas boas parecem estar só à nossa espera. Poucos passos dera, e essa impressão de horas felizes consolidou-se . Encontrei Antonio , em fato-macaco, cheio de nódoas de gordura. Fiquei contente , qualquer pessoa que tivesse encontrado naquele momento de alegria seria bem acolhida. Ele vira-me passar e correra para me apanhar. Contei-lhe logo a respeito da senhora da papelaria, e ele deve ter-me lido no rosto que aquele era um momento feliz . Duran­ te meses estudara afincadamente , sentindo-me só e feia. Embora tivesse a certeza de amar Nino Sarratore , evitara-o sempre e nem fora ver se ele passara no exame e com que notas . Lila ia dar um salto definitivo para fora da minha vida, nunca mais poderia acompanhá-la. Mas agora sen­ tia-me bem e queria sentir-me ainda melhor. Quando Antonio , intuindo que a minha disposição era favorável , me perguntou se eu queria namo­ rar com ele , disse-lhe logo que sim, embora amasse outro , embora não sentisse por ele mais do que um pouco de simpatia. Tê-lo a ele como namorado , um adulto , da idade de Stefano , um trabalhador, pareceu-me uma coisa nada diferente da aprovação com dez em tudo , e de receber uma remuneração pela tarefa de levar as filhas da senhora da papelaria ao Se a Garden .

49 . Teve início o meu trabalho , e também o meu namoro . A senhora da papelaria arranjou-me uma espécie de passe , e eu todas as manhãs atra­ vessava a cidade com as três meninas , nos autocarros à cunha, e levava­ -as para aquele sítio cheio de cor, guarda-sóis , mar azul, plataformas de cimento , estudantes , mulheres abastadas com muito tempo livre , mulhe-

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res vistosas com rostos vorazes . Tratava com bons modos os banheiros que tentavam meter conversa. Olhava pela meninas , tomava longos banhos com elas , exibindo o fato de banho que Nella me fizera no ano anterior. Alimentava-as , brincava com elas , deixava-as beber tempo sem fim do repuxo de uma fonte de pedra, sempre atenta para que não escorregassem e partissem os dentes na pia. Regressávamos ao bairro no final da tarde . Devolvia as meninas à mãe e corria ao meu encontro secreto com Antonio , queimada do sol , salgada da água do mar. Íamos até aos pauis por ruas secundárias , tinha medo de ser vista pela minha mãe e , talvez ainda mais , pela professora Oliviero . Foi com ele que troquei os primeiros beijos verdadeiros . De­ pressa o deixei tocar-me nos seios e entre as pernas . Uma tarde , eu própria lhe apertei o pénis , escondido dentro das calças , duro , grosso , e quando ele o tirou para fora segurei-o na mão com prazer, enquanto nos beijávamos . Aceitei aquelas práticas com duas perguntas claras no pen­ samento . A primeira era: Lila faz estas coisas com Stefano? A segunda era: o prazer que sinto com este rapaz é o mesmo que senti na noite em que Donato Sarratore me tocou? Em ambos os casos , Antonio acabava por ser apenas um fantasma útil para evocar, por um lado , os amores entre Lila e Stefano , e por outro , a emoção forte , difícil de classificar, que o pai de Nino me provocara. Mas nunca me senti culpada. Ele era­ -me tão grato , manifestava uma tal dependência absoluta de mim por aqueles escassos contactos nos pauis , que depressa me convenci que ele é que estava em dívida para comigo , que o prazer que eu lhe proporcio­ nava era de longe superior àquele que ele me dava. Por vezes , ao domingo , ia comigo e com as meninas para o Sea Gar­ den . Gastava muito dinheiro com falsa desenvoltura, embora ganhasse muito pouco , e também detestava queimar-se ao sol . Mas fazia-o por mim, só para estar comigo , sem qualquer recompensa imediata, pois ao longo do dia não era possível beijarmo-nos ou tocarmo-nos . Também entretinha as meninas com palhaçadas e mergulhos de atleta. Enquanto ele brincava com elas , eu estendia-me ao sol a ler e dissolvia-me no interior das páginas como uma medusa. Numa dessa ocasiões , levantei os olhos um instante e vi uma rapariga alta, esguia, elegante , com um lindo biquíni vermelho . Era Lila. Já ha­ bituada a ter os olhares dos homens pousados nela, movia-se como se naquele lugar apinhado de gente não estivesse ninguém , nem sequer o jovem banheiro que a precedia, para acompanhá-la ao guarda-sol . Não me viu e eu não soube se devia chamá-la. Trazia óculos de sol e uma

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bolsa de tecido colorido . Ainda não lhe contara a respeito do meu traba­ lho , nem de Antonio . É provável que receasse a opinião dela, tanto so­ bre uma coisa como sobre a outra. Esperemos que ela me chame , pen­ sei , e voltei a olhar para o livro , mas já sem conseguir ler. Todavia, não demorei a olhar de novo naquela direcção . O banheiro abrira-lhe a ca­ deira de repouso e ela estava sentada ao sol . Entretanto Stefano estava a chegar, muito branco , fato de banho azul, na mão a carteira, o isquei­ ro , os cigarros. Beijou Lila nos lábios , como os príncipes fazem com as belas adormecidas e, por sua vez , sentou-se também numa cadeira de repouso . Mais uma vez , tentei ler. Estava havia muito tempo habituada a auto­ disciplinar-me , e desta vez consegui realmente , durante alguns minutos , captar o sentido das palavras , recordo-me de que o romance era Oblo­ mov . Quando ergui de novo os olhos , Stefano continuava sentado a olhar para o mar, Lila já lá não estava. Procurei-a com o olhar e vi que estava a falar com Antonio , e Antonio apontava para mim. Fiz-lhe um adeus animado , a que ela respondeu com idêntica animação , voltando­ -se de imediato para chamar Stefano . Tomámos banho os três juntos , enquanto Antonio olhava pelas filhas da senhora da papelaria. Foi um dia de aparente alegria. A certa altura Stefano levou-nos todos ao bar e pediu tudo o que era bom, sanduíches , bebidas , gelados , e as crianças abandonaram imediatamente Antonio e viraram todas as atenções para ele . Quando os dois rapazes começaram a falar de não sei que problemas do descapotável , conversa em que Antonio fez um brilharete , levei dali as garotas para que não os incomo­ dassem. Lila foi comigo . «Quanto te paga a dona da papelaria?» , perguntou-me . Disse-lhe quanto . «É pouco .» «A minha mãe acha que ela me paga de mais.» «Deves dar mais valor a ti , Lenu .» «Darei mais valor a mim quanto tiver de levar os teus filhos à praia.» «Dar-te-ei baús cheios de moedas de ouro , sei quanto vale passar o tempo contigo .» Olhei para ela, para ver se estava a brincar. Não estava, mas logo a seguir brincou , quando se referiu a Antonio: «Ele conhece o teu valor?» «Somos namorados há vinte dias .» «Gostas dele?»

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«Não .» «E então?» Desafiei-a com o olhar. «Tu gostas do Stefano?» Respondeu , séria: «Imenso .» «Mais do que dos teus pais , mais do que do Rino?» «Mais do que de todos , mas mais do que de ti , não .» «Estás a gozar comigo.» No entanto , pensei: mesmo que esteja a gozar comigo , é bom conver­ sarmos assim, ao sol , sentadas no cimento quente , com os pés na água; paciência, se não me perguntou que livro estou a ler; paciência, se não quis saber como me correram os exames da secundária; talvez nem tudo esteja terminado; mesmo depois de casada, alguma coisa perdurará en­ tre nós . Disse-lhe: «Venho para aqui todos os dias . Porque não vens também?» Entusiasmou-se com a ideia, falou com Stefano , que concordou . Foi um dia maravilhoso , em que todos , milagrosamente , nos sentimos à vontade . Depois o sol começou a declinar, eram horas de levar as meni­ nas à mãe . Stefano dirigiu-se à caixa, e ficou a saber que Antonio já pagara tudo . Lamentou muito e agradeceu calorosamente . Já na rua, assim que Stefano e Lila se afastaram no descapotável , repreendi-o . Melina e Ada lavavam as escadas dos prédios , e ele ganhava quatro liras na oficina. «Porque é que tu pagaste?» , quase lhe gritei em dialecto , zangada. «Porque eu e tu somos mais bonitos e mais finos» , respondeu .

50 . Afeiçoei-me a Antonio quase sem dar por isso . Os nossos jogos se­ xuais tomaram-se um pouco mais audazes , davam-nos mais prazer. Pensei que se Lila voltasse a aparecer no Sea Garden lhe perguntaria o que se passava entre ela e Stefano quando se afastavam sozinhos no carro . Faziam as mesmas coisas que eu e Antonio fazíamos , ou mais ainda, por exemplo as coisas que lhe atribuíam os boatos lançados pelos dois Solara? Não tinha mais ninguém com quem fazer comparações senão com ela. Mas não houve oportunidade de lhe fazer essas pergun­ tas , ela nunca mais foi ao Sea Garden .

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Em meados de Agosto o meu trabalho acabou , e acabou-se também a alegria do sol e do mar. A dona da papelaria ficou muito satisfeita com o modo como eu tomara conta das meninas , e embora elas , ao contrário do que eu lhes recomendara, contassem à mãe que às vezes um rapaz meu amigo ia connosco à praia e davam belos mergulhos com ele , ela , em vez de me censurar, abraçou-me e disse: «Ainda bem , descontrai-te um pouco por favor, és demasiado ajuizada para a tua idade .» E acrescentou com malícia: «Pensa na Lina Cerullo , as coisas que ela faz .» À tardinha, nos pauis , disse a Antonio: «Foi sempre assim, desde pequenas . Todos julgam que ela é má e eu boa.» Ele beijou-me e murmurou , irónico: «Porquê , então não é verdade?» Aquela resposta enterneceu-me e impediu-me de lhe dizer que tínha­ mos de nos deixar. Era uma decisão que me parecia urgente , afecto não era amor, eu amava Nino , sabia que iria amá-lo sempre . Pensava falar com ele calmamente , queria dizer-lhe: foi um tempo bom, ajudaste-me muito num momento em que estava triste , mas agora a escola vai reco­ meçar e este ano vou para o primeiro ano do liceu , tenho matérias no­ vas , vai ser um ano difícil , tenho de estudar muito; custa-me , mas temos de acabar. Sentia que era necessário , e todas as tardes ia para o nosso encontro nos pauis com o discurso preparado . Mas ele era tão afectuoso , tão apaixonado , que me faltava a coragem e ia adiando . Será no feriado de Agosto . Depois do feriado de Agosto . Até ao fim do mês . Dizia para comigo: não se pode beijar, acariciar uma pessoa, deixar que nos acari­ cie , e sentir só um pouco de afeição por ela; Lila gosta imenso de Ste­ fano , eu não gosto de Antonio . O tempo foi passando e nunca mais encontrava o momento certo para falar com ele . Andava preocupado . Com o calor, Melina geralmen­ te piorava, mas na segunda metade de Agosto piorou declaradamente . Voltara-lhe à lembrança Sarratore , a quem ela chamava Donato . Dizia que o tinha visto , dizia que ele viera buscá-la, e os filhos não sabiam como acalmá-la . Fiquei ansiosa, com medo de que Sarratore tivesse realmente aparecido nas ruas do bairro , e que não andasse à procura de Melina mas de mim. De noite acordava sobressaltada, com a impressão de ele ter entrado pela janela e se encontrar no meu quarto . Depois se­ renei , pensei : deve estar de férias em Barano , nos Maronti , aqui não , decerto , com este calor, as moscas , a poeira.

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Mas uma manhã, quando ia fazer as compras , ouvi chamar por mim. Voltei-me , e a princípio não o reconheci . Depois centrei o olhar no bigode preto , nas feições agradáveis douradas pelo sol , na boca de lábios finos . Segui em frente , ele veio atrás de mim. Disse que sofrera por não me encontrar em casa de Nella, em Barano , no outro Verão . Disse que não pensava senão em mim , que sem mim não podia viver. Disse que para dar uma forma ao nosso amor escrevera muitos poe­ mas , que gostaria de mos ler. Disse que queria encontrar-se comigo , falar comigo à vontade , e que , se eu me recusasse , se suicidava. Então parei e sussurrei-lhe que me deixasse em paz , que tinha um namorado e que nunca mais queria vê-lo . Ficou desesperado . Murmurou que esperaria por mim para sempre , que todos os dias ao meio-dia estaria à entrada do túnel , na rua larga. Abanei a cabeça energicamente , disse que nunca lá iria. Inclinou-se para me beijar, eu saltei para trás com um gesto de nojo , e ele fez um sorriso de contrariedade . Murmurou: «Tu és inteligente , és sensível , eu levo-te os poemas de que mais gos­ to» , e afastou-se . Fiquei aterrorizada, não sabia o que fazer. Decidi recorrer a Antonio . Nessa mesma tarde , nos pauis , disse-lhe que a mãe tinha razão , Donato Sarratore andava pelo bairro . Que fora ter comigo na rua. Que me pedi­ ra para dizer a Melina que estaria sempre à espera dela, todos os dias ao meio-dia, à entrada do túnel . Antonio ficou melancólico , murmurou: «0 que devo fazer?» Disse-lhe que eu própria o acompanharia ao local de encontro , e que falaríamos os dois claramente com ele sobre o estado de saúde da mãe . Não dormi toda a noite com a preocupação . No dia seguinte fomos ao túnel . Antonio estava taciturno , caminhava sem pressa, senti que ti­ nha um peso em cima dele que lhe afrouxava o passo . Uma parte dele estava furiosa, e a outra, cheia de acanhamento . Pensei com raiva: foi capaz de enfrentar os Solara por causa da irmã Ada, e por causa de Lila, mas agora está intimidado , apenas porque Donato Sarratore , para ele , é uma pessoa importante , de prestígio . Senti-lo naquele estado tornou-me mais determinada, tive vontade de o sacudir e de lhe gritar: tu não es­ creveste livro nenhum, mas és muito melhor do que aquele homem . Limitei-me a dar-lhe o braço . Quando Sarratore nos viu ao longe , tentou desaparecer à pressa no escuro do túnel. Chamei-o: «Senhor Sarratore .» Voltou-se com relutância.

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Disse-lhe , tratando-o por «senhor» , coisa que nesse tempo era fora do normal no nosso ambiente: «Não sei se se lembra do Antonio , é o filho mais velho da dona Melina.» Sarratore produziu uma voz aguda e muito afectuosa: «Claro que me lembro , olá Antonio .» «Eu e ele somos namorados .» «Ah , está bem.» «Falámos muito , e ele agora vai dizer-lhe tudo .» Antonio compreendeu que o seu momento chegara, e disse-lhe , mui­ to pálido e tenso , e esforçando-se para falar em italiano: «Estou muito contente de o ver, senhor Sarratore , eu não me esqueço . Ser-lhe-ei sempre grato por aquilo que fez por nós depois da morte do meu pai . Agradeço-lhe sobretudo por me ter arranjado emprego na ofi­ cina do senhor Gorresio , se aprendi um ofício , a si lho devo .» «Diz-lhe da tua mãe» , pressionei-o , nervosa. Ele irritou-se , fez-me sinal para me calar. Prosseguiu: «Mas o senhor já não vive aqui no bairro e a situação para si não é clara. A minha mãe , se ouve pronunciar o seu nome , perde a cabeça. E se o vir, se o vir nem que seja só uma vez , vai parar ao manicómio .» Sarratore atrapalhou-se: «Antonio , meu filho , eu nunca tive qualquer intenção de fazer mal à tua mãe . Tu lembras-te bem de como me esforcei por vocês . A única coisa que sempre quis foi ajudá-la a ela e a vocês todos .» «Então , se quiser continuar a ajudá-la, não a procure , não lhe mande livros, não apareça aqui no bairro .» «Isso não me podes pedir, não podes impedir-me de rever sítios que me são tão queridos» , disse Sarratore com uma voz cálida, artificial­ mente comovida. Aquela tonalidade indignou-me . Conhecia-a, ele usara-a muito em Barano , na praia dos Maronti . Era uma voz pastosa, acariciante , a voz que ele imaginava que um homem de categoria, que escrevia poemas e artigos no Roma , devia ter. Estive quase a intervir, mas Antonio , para meu espanto , antecipou-se . Curvou os ombros , encolheu a cabeça, e estendeu uma mão até ao tronco de Donato Sarratore , empurrando-o com os dedos fortes . Disse-lhe em dialecto: «Eu não o impeço . Mas prometo-lhe que se o senhor tirar à minha mãe o pouco tino que lhe resta, passa-lhe para sempre a vontade de re­ ver estes sítios de merda.»

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Sarratore empalideceu . «Sim» , disse à pressa, «já percebi , obrigado .» Girou sobre os calcanhares e pirou-se na direcção da estação . Dei o braço a Antonio , orgulhosa daquela saída dele , mas notei que tremia. Pensei , talvez pela primeira vez, no que teria sido para ele , em miúdo , a morte do pai , e depois o trabalho , a responsabilidade que lhe caíra em cima, o revés da mãe . Levei-o dali , cheia de afecto , e alarguei o meu prazo: deixo-o depois do casamento de Lila, disse para mim .

51. O bairro recordou-se daquele casamento durante muito tempo . Os preparativos interligaram-se com o lento , elaborado e conflituoso nasci­ mento dos sapatos Cerullo . Pareciam dois empreendimentos que , por um motivo ou por outro , nunca conheceriam fim. O casamento , para além de outras coisas , reflectia-se e não pouco na sapataria. Fernando e Rino trabalhavam muito , não só nos sapatos no­ vos , que por enquanto não rendiam nada, mas também em mil outros servicinhos que davam lucro imediato , receita essa que para eles era urgente . Precisavam de juntar bastante dinheiro , para garantir a Lila algum enxoval e fazer frente à despesa do copo-de-água, que queriam a todo o custo assumir, para não fazerem figura de pedintes . O resultado disso foi que durante meses a tensão esteve muito alta na casa dos Cerullo . Nunzia bordava lençóis noite e dia, e Fernando fazia cenas constantemente , chorando a época feliz em que , no seu boteco em que era o rei , colava, cosia e martelava tranquilo , com os preguinhos entre os lábios. Os únicos que pareciam serenos eram os noivos . Houve apenas dois pequenos instantes de atrito entre eles . O primeiro relacionou-se com a futura casa. Stefano queria comprar um pequeno apartamento no bairro novo , ao passo que Lila preferia um apartamento nos prédios velhos. Discutiram. A casa no bairro velho era maior mas era escura e não tinha vista nenhuma, como todas as casas daquela zona. O apartamento no bairro novo era mais pequeno , mas tinha uma banheira enorme , como a do anúncio da Palmolive , e um bidet, e dava para o Vesúvio . Foi inútil fazer notar que , enquanto o Vesúvio era um contorno instável e distante, que se dissolvia no céu nebuloso , a menos de duzentos metros passa­ vam, bem nítidos , os carris da linha férrea. Stefano estava seduzido

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pelo que era novo , pelos apartamentos com o chão a brilhar, pelas pare­ des brancas , e Lila depressa se rendeu . Mais do que outra coisa, o que importava era que com menos de dezassete anos seria dona de uma casa, com água quente a sair das torneiras , e que não era alugada, mas sim propriedade sua. O segundo motivo de atrito foi a viagem de núpcias . Stefano propôs como destino Veneza, e Lila, revelando uma linha de tendência que viria a marcar toda a sua vida, insistiu em não se afastar muito de Nápoles . Sugeriu uma estadia em Ischia , Capri , e talvez n a costa e m volta de Amalfi , tudo sítios onde nunca estivera. O futuro marido disse quase de imediato que concordava. Quanto ao resto , as tensões foram mínimas , mais do que outra coisa, reflexos de problemas internos das respectivas farm1ias . Por exemplo , s e Stefano i a à sapataria Cerullo , quando , a seguir, via Lila, acabava sempre por deixar escapar palavras pesadas acerca de Fernando e de Rino , e ela não gostava, saltava em defesa deles . Ele abanava a cabeça pouco convencido , começava a ver na história dos sapatos um investi­ mento excessivo de dinheiro , e no final do Verão , quando se registaram fortes tensões entre ele e os dois Cerullo , impôs um limite exacto ao faz e desfaz do pai , do filho e dos ajudantes . Disse que até ao fim de No­ vembro queria ver os primeiros resultados . Pelo menos os modelos de Inverno , para homem e para mulher, teriam de estar prontos a serem expostos na montra antes do Natal . Depois , cheio de nervos , fugiu-lhe da boca, falando com Lila, que Rino era sempre mais despachado a pedir dinheiro do que a trabalhar. Ela defendeu o irmão , ele replicou , ela exaltou-se e ele fez imediatamente marcha-atrás . Foi buscar o par de sapatos do qual nascera todo aquele projecto , sapatos que adquirira e nunca usara, guardados como testemunho precioso da história de am­ bos , e apalpou-os , cheirou-os , e comoveu-se ao dizer que sentia neles , via neles , sempre vira neles , as suas mãozinhas quase de criança, que tinham trabalhado ao lado das mãozonas do irmão . Encontravam-se no terraço da velha casa, aquele onde haviam disparado o fogo-de-artifício ao desafio com os Solara. Pegou-lhe nos dedos e beijou-lhos um a um, dizendo que nunca mais permitiria que voltassem a estragar-se . Foi a própria Lila que me contou este acto de amor, muito alegre . Fê-lo no dia em que me foi mostrar a casa nova. Que esplendor: pavi­ mentos feitos de grandes ladrilhos reluzentes, a banheira para tomar banho de espuma, os móveis entalhados da sala de jantar e do quarto , o frigorífico , e até telefone . Tomei nota do número , emocionada. Tínha-

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mos nascido e sido criadas em casas pequenas , sem um quarto para nós , sem um sítio para estudar. Eu ainda assim vivia, ela, em breve , não . Saímos para a varanda, que dava para a linha férrea e para o Vesúvio , e perguntei-lhe com cuidado: «Tu e o Stefano vêm aqui sozinhos?» «Sim, às vezes .» «E o que é que acontece?» Olhou-me, como se não percebesse . «Em que aspecto?» Senti-me embaraçada. «Beijam-se?» «Às vezes.» «E depois?» «Depois mais nada, ainda não somos casados.» Fiquei confusa. Seria possível? Tanta liberdade e nada? Tanto falató­ rio por todo o bairro , as obscenidades dos Solara, e eles nada mais que uns beijos?» «Mas ele não te pede?» «Porquê , o Antonio pede-te?» «Sim.» «Ele , a mim, não . Concorda que primeiro devemos casar-nos .» Mas pareceu-me tocada pelas minhas perguntas , assim como as res­ postas dela me tocaram. Ela nunca concedia nada a Stefano , embora saíssem sozinhos de automóvel , embora estivessem para casar, embora já tivessem casa própria e mobilada, a cama com os colchões ainda embalados . E ao invés , eu , que certamente não me casaria, há muito tempo que fora para além do beijo. Quando me perguntou , com genuína curiosidade , se eu dava a Antonio aquilo que ele me pedia, tive vergo­ nha de lhe dizer a verdade . Respondi que não e ela pareceu satisfeita.

52. Reduzi o s encontros nos pauis , até porque a escola i a começar em breve . Estava convencida de que Lila, precisamente por causa das aulas , dos trabalhos de casa, me deixaria de fora dos preparativos para o casa­ mento , habituara-se ao meu desaparecimento durante o ano escolar. Mas não f�i assim. Os conflitos com Pinuccia cresceram muito durante o Verão . Já não se tratava de roupas , nem de chapéus , nem de foulards ,

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nem de jóias . Pinuccia a certa altura disse ao irmão , na presença de Lila e de forma clara, que ou a sua noiva ia trabalhar para a charcutaria, se não já, pelo menos depois da lua-de-mel - trabalhar como toda a famí­ lia fazia desde sempre , como fazia também Alfonso sempre que a escola lho permitia - , ou então ela também deixaria de trabalhar. E desta vez a mãe apoiou-a de forma explícita. Lila não pestanejou , disse que podia começar imediatamente, amanhã mesmo, em qualquer função que a fann1ia Carracci lhe quisesse atribuir. Essa resposta, como todas as respostas de Lila desde sempre , embora tentando ser conciliadora, tinha qualquer coisa de temerário, de desde­ nhoso , que fez com que Pinuccia se exaltasse ainda mais . Tomou-se evi­ dente que a filha do sapateiro era agora considerada pelas duas mulheres uma feiticeira que viera fazer o papel de patroa, atirar dinheiro pela jane­ la fora sem mexer um dedo para o ganhar, e dominar o homem da casa com as suas artes , levando-o a fazer coisas muito injustas contra os do seu próprio sangue , isto é, contra a irmã carnal e até contra a própria mãe . Stefano , como era seu hábito , não respondeu imediatamente . Esperou que a irmã desabafasse , e depois , como se o problema de Lila e da sua colocação na pequena empresa familiar nunca tivesse sido levantado , disse calmamente que Pinuccia, em vez de trabalhar na charcutaria, fa­ ria melhor em ajudar a noiva nos preparativos para o casamento . «Já não precisas de mim?» , disparou ela. «Não . A partir de amanhã mando vir para o teu lugar a Ada, a filha da Melina.» «Foi ela que te sugeriu isso?» , gritou a irmã, apontando para Lila. «Isso não é da tua conta.» «Ouviste , mã' ? Ouviste o que ele disse? Julga-se o patrão absoluto , aqui dentro .» Fez-se um silêncio insuportável , e depois Maria levantou-se da cadei­ ra junto da caixa registadora e disse ao filho: «Arranja também alguém para este lugar aqui , porque eu estou can­ sada e não quero trabalhar mais.» Nessa altura Stefano teve uma pequena hesitação . Disse devagar: «Acalmemo-nos , eu não sou o patrão de nada, os assuntos da charcu­ taria não dizem respeito só a mim, mas a todos nós . Há que tomar uma decisão . Pinu , tu precisas de trabalhar? Não . Mamã, a senhora precisa de estar todo o dia sentada aí atrás? Não . Então , demos trabalho a quem precisa. Ao balcão ponho a Ada, e na caixa, depois penso . Senão , quem é que trata do casamento?»

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Não sei ao certo se Lila estaria de facto por trás da expu lsão de Pinuc­ cia e da mãe do dia-a-dia da charcutaria, e da admissão de Ada (decerto Ada ficou convencida disso , e sobretudo Antonio , que começou a falar da nossa amiga como se fosse uma fada boa) . O que sei ao certo é que não lhe agradou que a cunhada e a sogra tivessem tanto tempo livre para se dedicarem ao seu casamento . As duas mulheres complicaram-lhe a vida, havia conflitos por qualquer ninharia: as participações , a decoração da igreja, o fotógrafo, o grupo musical , a sala para a recepção , o menu, o bolo , as lembranças de casamento , as alianças , até a viagem de núp­ cias , uma vez que Pinuccia e Maria consideravam coisa reles ir a Sorren­ to, Positano , Ischia ou Capri . De modo que inesperadamente fui chama­ da, aparentemente para dar uma opinião a Lila sobre isto ou aquilo , e na realidade para apoiá-la numa luta difícil . Estava no início do primeiro ano do liceu , tinha muitas matérias no­ vas e difíceis. O meu habitual e obstinado esforço já me estava a exaurir, estudava com demasiado afinco . Mas um dia, quando vinha da escola, encontrei a minha amiga, que me disse à queima-roupa: «Por favor, Lenu , amanhã vens dar-me um conselho?» Não sabia sequer do que ela falava. Tinha sido interrogada a química e não fizera boa figura, o que me fazia sofrer. «Um conselho sobre o quê?» «Um conselho sobre o vestido de noiva. Não me digas que não , peço­ -te , porque se não vieres , ainda mato a minha cunhada e a minha sogra. Fui . Saí com ela , Pinuccia e Maria, muito contrariada. A loja era no Rettifilo , e recordo-me de ter metido uns livros num saco , esperando arranjar maneira de estudar. Foi impossível . Das quatro da tarde até às sete da noite vimos figurinos , apalpámos tecidos , e Lila experimentou vestidos de noiva expostos nos manequins da loja. Fosse o que fosse que ela vestisse , a sua beleza valorizava o vestido , e o vestido valoriza­ va-lhe a beleza. A rígida organza, o cetim mole , o tule nebuloso , fica­ vam-lhe bem. O corpete de renda, as mangas tufadas , ficavam-lhe bem. A saia larga ou a saia justa, a cauda mais comprida ou a mais curta, o véu esvoaçante ou o véu preso , a coroazinha de pedras artificiais, tal como a de pérolas e a de flor de laranjeira, tudo lhe ficava bem. Quase sempre via, obediente , os figurinos, ou experimentava os vestidos que eram bonitos nos manequins . Mas às vezes , quando já não aguentava as esquisitices das suas futuras parentes , surgia a Lila de outros tempos , que me olhava fixamente e dizia, irónica, alarmando a sogra e a cunha­ da: «E que tal se escolhêssemos um lindo cetim verde , ou uma organza

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vermelha, ou um bonito tule preto , ou , melhor ainda, amarelo?» Eu ti­ nha de dar uma risadinha, para indicar que a noiva estava a brincar, para que recomeçasse a apreciar tecidos e modelos com uma seriedade rancorosa. A modista não fazia senão repetir, entusiasmada: «Por favor, seja o que for que escolham, tragam-me as fotografias do casamento , que eu quero expô-las na montra, para poder dizer: esta rapariga foi vestida por mim.» Mas o problema era escolher. Cada vez que Lila se inclinava para um modelo , ou para um tecido , Pinuccia e Maria alinhavam a favor de outro modelo , de outro tecido . Eu estive sempre calada, um pouco entontecida por todas aquelas discussões e pelo cheiro dos tecidos novos . Depois Lila perguntou-me , irritada: «Ü que é que tu achas , Lenu?» Fez-se silêncio . Percebi de imediato , com um certo espanto , que as duas mulheres aguardavam aquele momento e o temiam. Pus em acção uma técnica que aprendera na escola e que consistia no seguinte: sempre que não sabia responder a uma pergunta, era pródiga na apresentação de premissas , com a voz segura de alguém que sabe perfeitamente onde quer chegar. Em primeiro lugar disse - em italiano - que gostava imenso dos modelos preferidos por Pinuccia e a mãe . Lancei-me , não em elogios , mas em argumentações que demonstravam como eles eram adequados às formas de Lila. No momento em que , como na aula com os professores , senti que tinha a admiração e a simpatia de mãe e filha, escolhi um dos figurinos ao acaso, realmente ao acaso , tendo o cuidado de não pegar em nenhum dos favoritos de Lila, e comecei a demonstrar que ele sintetizava as qualidades dos modelos que as duas mulheres apoiavam e as qualidades dos modelos que a minha amiga privilegiava. A modista, Pinuccia, e a mãe , concordaram imediatamente comigo . Lila limitou-se a olhar para mim com os olhos semicerrados . Depois regressou ao olhar habitual e disse que também estava de acordo . À saída , tanto Pinuccia como a mãe estavam de muito bom humor. Dirigiam-se a Lila quase com afecto e, ao fazerem comentários à com­ pra, chamavam-me à baila constantemente , com frases do tipo: como disse a Lenuccia, ou , a Lenuccia disse justamente . Lila arranjou manei­ ra de ficarmos um pouco para trás , no movimento de final de dia do Rettifilo . Perguntou-me: «Aprendes isso na escola?)) «Ü quê?)) «A usar as palavras para levar as pessoas à certa.))

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Senti-me ferida, murmurei: «Não gostas do modelo que escolhemos?�� «Gosto imenso .» «E então?» «Então , faz-me o favor de vires connosco todas as vezes que eu te pedir.» Fiquei chateada, perguntei-lhe: «Queres usar-me para levá-las à certa?» Percebeu que me tinha ofendido , apertou-me a mão com força: «Não era minha intenção ser indelicada contigo . Queria apenas dizer que sabes fazer com que te apreciem. A diferença entre mim e ti , desde sempre , é que de mim as pessoas têm medo e de ti não .» «Talvez porque tu és má» , disse-lhe , ainda mais chateada. «Pode ser» , respondeu , e percebi que a magoara, tal como ela me ma­ goara. Então, arrependida, acrescentei imediatamente, para remediar: «Ü Antonio era capaz de morrer por ti . Disse para te agradecer por teres dado trabalho à irmã.» «Foi o Stefano que deu trabalho à Ada» , respondeu ela. «Eu sou má.»

53 . A partir dali fui constantemente chamada para tomar parte nas deci­ sões mais disputadas , e por vezes - vim a descobrir - não a pedido de Lila, mas de Pinuccia e da mãe . Com efeito , fui eu que escolhi as lem­ branças de casamento . Fui eu que escolhi o restaurante na Via Orazio . Fui eu que escolhi o fotógrafo , convencendo-as a acrescentar ao serviço fotográfico um filme em super-8 . Dei-me conta, em todas as situações , de que enquanto e u me apaixonava por todas a s coisas , como s e cada uma daquelas questões fosse um treino para quando eu me casasse , Lila dava muito pouca atenção às diversas fases do seu casamento . Fiquei surpreendida, mas foi mesmo assim que aconteceu . Aquilo que real­ mente a motivava era estabelecer de uma vez por todas que , na sua fu­ tura vida de esposa e de mãe , e na sua casa, a cunhada e a sogra não meteriam o nariz . Mas não se tratava do habitual conflito entre sogra, nora e cunhada. Tive a impressão , pelo modo como me usava, e como manipulava Stefano , de que Lila se debatia para encontrar, a partir do interior da gaiola em que se encerrara, uma maneira de ser muito sua, ainda obscura para ela.

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Perdia, evidentemente , tardes inteiras a resolver as questões delas , estudava pouco e até faltei à escola duas ou três vezes . Como resultado , a pauta do primeiro trimestre não foi particularmente brilhante . A minha nova professora de Latim e Grego , a excelentíssima Galiani , andava comigo nas palmas das mãos , mas em Filosofia, em Química e em Ma­ temática, só consegui ter suficiente . Para mais , uma manhã meti-me numa grande alhada. Como o professor de Religião pronunciava cons­ tantemente diatribes contra os comunistas , contra o seu ateísmo , senti­ -me impelida a reagir, não sei se por causa do meu afecto por Pasquale , que sempre se dissera comunista, ou simplesmente porque senti que todo o mal que o padre dizia dos comunistas me dizia respeito directamente , por ser a queridinha da comunista por excelência, a professora Galiani . O que é facto é que eu , que fizera com bom aproveitamento um curso de Teologia por correspondência, levantei a mão e disse que a condição humana estava de modo tão evidente exposta à fúria cega do acaso que confiar em Deus, em Jesus e no Espírito Santo - uma entidade , este , totalmente supérflua, que apenas existia para compor uma trindade , no­ tavelmente mais nobre do que o simples binómio pai-filho - era a mesma coisa que coleccionar cromos enquanto a cidade arde no fogo do inferno . Alfonso viu imediatamente que eu me estava a exceder e puxou­ -me timidamente pela bata, mas eu não lhe dei ouvidos e prossegui até ao fim, até àquela comparação conclusiva. Pela primeira vez fui expulsa da sala e tive uma nota de censura no livro de ponto da aula. Quando me encontrei no corredor, primeiro senti-me desorientada o que acontecera, porque me comportara tão levianamente , de onde me viera a convicção absoluta de que as coisas que estava a dizer estavam certas e deviam ser ditas? - , e depois lembrei-me de que tivera conver­ sas daquelas com Lila, e compreendi que me metera naquele sarilho apenas porque , apesar de tudo , continuava a atribuir-lhe autoridade sufi­ ciente para me dar força para desafiar o meu professor de Religião . Lila já não abria um livro, já não estudava, pouco faltava para ser mulher de um charcuteiro e decerto iria parar à caixa registadora, para o lugar da mãe de Stefano , e eu? Eu fora buscar a ela a energia para inventar uma imagem que definia a religião como uma colecção de cromos enquanto a cidade arde no fogo do inferno? Quer dizer que não era verdade que a escola fosse a minha riqueza pessoal , distante , já, da sua influência? Chorei lágrimas silenciosas em frente da porta da sala de aula. Mas as coisas alteraram-se inesperadamente . Ao fundo do corredor surgiu Nino Sarratore . Depois do novo encontro com o pai dele , tinha

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ainda mais razão para me comportar como se ele não existisse , mas , naquela situação , reanimei-me ao vê-lo , enxuguei as lágrimas à pressa. Ele também se deve ter apercebido de que algo não estava bem e dirigiu­ -se para mim. Estava mais alto , tinha a maçã-de-adão muito saliente , as feições escavadas pela barba azulada, o olhar mais firme . Era impossível evitá-lo. Não podia voltar para a aula nem podia afastar-me para as casas de banho, pois ambas as coisas complicariam mais a minha situação se o professor de religião viesse à porta. Deixei-me ficar, e quando ele pa­ rou na minha frente e me perguntou porque estava cá fora, o que se passara, contei-lhe tudo. Franziu o sobrolho e disse: «Volto já.» Desapa­ receu , e regressou minutos depois com a professora Galiani . Ela cobriu-me de elogios . «Mas agora» , disse , como se estivesse a dar uma aula a mim e a Nino , «depois do ataque a fundo, chegou a hora da mediação .» Bateu à porta da sala, fechou-a atrás de si , e cinco minutos depois reapareceu com ar alegre . Eu podia entrar de novo , desde que pedisse desculpa ao professor pelo tom agressivo que usara. Pedi descul­ pa, oscilando entre a ansiedade por causa das prováveis represálias e o orgulho pelo apoio que recebera de Nino e da professora Galiani . Tive o cuidado de não revelar nada aos meus pais , mas contei tudo a Antonio , que foi , muito orgulhoso , transmitir a Pasquale o que acontece­ ra, o qual por sua vez encontrou Lila uma manhã e, dominado pela emo­ ção , pois ainda a amava, e não sabendo o que dizer-lhe , se agarrou à mi­ nha história como a uma tábua de salvação e lha contou . E foi assim que , num abrir e fechar de olhos, me tornei a heroína dos meus amigos de sempre, e também daquele grupo pequeno mas aguerrido de professores e alunos que contestavam os sermões do professor de religião . Entretanto , como verifiquei que o pedido de desculpa ao padre não bastara, esforcei­ -me para recuperar a credibilidade junto dele e dos outros professores que pensavam como ele . Separei as minhas palavras da minha pessoa, sem esforço. Tornei-me muito respeitadora, prestável , diligente e colaborante com todos os professores que se haviam mostrado hostis para mim, e depressa voltaram a considerar-me uma pessoa a quem se podiam perdoar certas afmnações extravagantes. Descobri que podia fazer como a profes­ sora Galiani , isto é, expor com firmeza as minhas opiniões , e ao mesmo tempo fazer a mediação , conquistando a estima de todos com comporta­ mentos irrepreensíveis . Numa questão de poucos dias pareceu-me ter re­ gressado , juntamente com Nino Sarratore, que andava no terceiro ano do liceu e naquele ano faria o exame de acesso à universidade , ao topo da lista dos alunos mais promissores do nosso esfarrapado liceu .

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Não ficou por ali . Umas semanas depois Nino pediu-me sem preâm­ bulos , com aquele seu ar sisudo , que escrevesse à pressa meia página de caderno , contando o duelo com o padre. «Para que fim?» Disse-me que colaborava com uma pequena revista que se chamava Nápoles, Asilo dos Pobres . Contara o episódio na redacção e disseram­ -lhe que , se fizesse um resumo disso a tempo , tentariam inseri-lo no próximo número . Mostrou-me a revista. Era um fascículo com cinquen­ ta páginas , de cor cinzento-sujo. Ele estava presente no índice , nome e sobrenome , com um artigo intitulado Os Números da Miséria . Lembrei­ -me do pai dele , e da satisfação , da vaidade com que me lera, nos Ma­ ronti , o artigo publicado no Roma . «Também escreves poesia?» , perguntei-lhe . Ele disse que não com uma energia tão desgostosa que prometi-lhe de imediato: «Está bem, vou tentar.» Voltei para casa muito agitada. Sentia a cabeça a abarrotar com as frases que ia escrever, e pelo caminho falei disso com Alfonso , em por­ menor. Ficou ansioso por minha causa, aconselhou-me a não escrever nada. «Será assinado em teu nome?» «Sim.» «Lenu , o padre vai ficar zangado outra vez e chumba-te; e puxa para o lado dele a de química e o de matemática.» Transmitiu-me a sua ansiedade e perdi confiança. Mas assim que nos separámos , a ideia de poder mostrar em breve a revista, o meu artigo , o meu nome impresso , a Lila, aos meus pais , à professora Oliviero , ao professor Ferrara , levou a melhor. Depois , logo remediava as coisas . Tinha sido muito estimulante receber o aplauso de quem me parecia melhor (a professora Galiani e Nino) , alinhando contra quem me pare­ cia pior (o padre , a professora de química, o professor de matemática) , mas comportando-me entretanto com os adversários de modo a não perder a sua simpatia e estima. Esforçar-me-ia para que isto se repetisse quando saísse o artigo . Passei a tarde a escrever e reescrever. Encontrei frases sintéticas e densas . Tentei dar à minha posição o máximo de dignidade teórica, re­ correndo a palavras difíceis . Escrevi: «Se Deus está em toda a parte , que necessidade tem ele de se difundir através do Espírito Santo?» Mas a meia página num instante se gastava, só com a premissa. E o resto?

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Recomeçava. Como fora treinada, desde a primária, a tentar e voltar a tentar com obstinação , por fim obtive um resultado satisfatório e come­ cei a estudar as lições para o dia seguinte . Mas em menos de meia hora voltaram-me as dúvidas , senti necessi­ dade de confirmações . A quem podia dar a ler o meu texto , para obter um parecer? À minha mãe? Aos meus irmãos? A Antonio? É evidente que não , a única era Lila. Mas pedir-lhe isso significava continuar a reconhecer nela uma autoridade, quando na verdade agora era eu que sabia mais do que ela. Por isso , a princípio resisti . Receava que ela li­ quidasse a minha meia página com um comentário depreciativo . Recea­ va ainda mais que esse comentário me ficasse a bailar na cabeça , sus­ citando-me pensamentos excessivos , que acabaria por transcrever para a minha meia página, comprometendo-lhe o equilíbrio . Mas por fim não resisti e fui procurá-la, esperando encontrá-la. Estava em casa dos pais . Contei-lhe da proposta de Nino e dei-lhe o caderno . Olhou para a página contra a vontade , como se a escrita lhe ferisse os olhos . Perguntou-me , exactamente como Alfonso: «Escreverão o teu nome?» Fiz sinal que sim. «Elena Greco , mesmo?» «Sim.» Estendeu-me o caderno: «Não sou capaz de te dizer se é bom ou não .» «Peço-te .» «Não , não sou capaz .» Tive de insistir. Disse-lhe , embora soubesse que não era verdade , que se ela não gostasse , ou se se recusasse mesmo a lê-lo , não o daria a Nino para imprimir. Por fim leu . Pareceu-me que ela se encolhia toda, como se lhe tivesse atirado um peso para cima. E tive a impressão de ela estar a fazer um esforço doloroso para libertar de qualquer recanto de si própria a velha Lila, aquela que lia, escrevia, desenhava, projectava, com a espontanei­ dade e a naturalidade de uma reacção instintiva. Quando conseguiu , tudo pareceu agradavelmente leve . «Posso apagar?» «Podes.» Apagou muitas palavras e uma frase inteira. «Posso deslocar uma coisa?» «Podes.»

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Fez um traço em volta de um período e deslocou-o , com uma linha ondulada, para o cimo da folha. «Posso copiar tudo para outra folha?» «Eu faço isso .» «Não , deixa-me fazer eu .» Sentou-se a transcrever. Quando me devolveu o caderno , disse: «És tão inteligente , é claro que têm de te dar sempre dez .» Percebi que não havia ironia, era de facto um elogio . Depois acrescentou , com uma dureza repentina: «Não quero voltar a ler nada do que tu escreves.» «Porquê?» Pensou um pouco . «Porque me faz doer» , e bateu no centro da cabeça com os dedos, desatando a rir.

54 . Voltei para casa feliz . Fechei-me na retrete para não incomodar o resto da família e estudei até quase às três da manhã, quando finalmen­ te fui dormir. Levantei-me às seis e meia para voltar a copiar o texto . Mas primeiro li-o , na bonita caligrafia redonda de Lila, uma caligrafia que se mantinha inalterada desde a escola primária, já muito diferente da minha, que se tomara mais pequena e mais simplificada. A página dizia exactamente o mesmo que eu escrevera, mas de modo mais límpi­ do , mais directo . O que apagara, o que deslocara, os pequenos acrésci­ mos e, de certa maneira, a caligrafia dela, fizeram-me sentir que eu fu­ gira de mim própria e agora ia a correr cem passos mais à frente , com uma energia e também uma harmonia que a pessoa que ficara para trás desconhecia que tinha. Decidi deixar o texto na letra de Lila. Levei-o a Nino assim mesmo , para conservar um sinal visível da sua presença nas minhas palavras . Ele leu-o , batendo muitas vezes as longas pestanas . No fim disse , com uma tristeza repentina e inesperada: «A professora Galiani tem razão .» «Em quê?» «Escreves melhor do que eu .» Embora eu protestasse , envergonhada, repetiu aquela frase outra vez , depois virou-me as costas sem se despedir e foi-se embora. Nem sequer

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me disse quando saía a revista, nem onde podia encontrá-la, e também não tive coragem de lhe perguntar. Aquele comportamento aborreceu­ -me. Tanto mais que enquanto ele se afastava reconheci , por breves se­ gundos , o andar do pai . Terminou deste modo aquele nosso novo encontro . Estragámos tudo uma vez mais. Durante uns dias Nino continuou a comportar-se como se escrever melhor do que ele fosse uma culpa que devia ser expiada. Eu irritei-me . Quando de repente voltou a ceder-me corpo , vida, presen­ ça, e me pediu que fizéssemos um bocado do caminho juntos, respondi­ -lhe com frieza que já tinha um compromisso , que o meu namorado me vinha buscar. Durante algum tempo deve ter pensado que o namorado era Alfonso , mas essas dúvidas desfizeram-se quando um dia, à saída, apareceu a sua irmã Marisa, que precisava de lhe dizer não sei o quê . Não nos víamos desde os tempos de Ischia. Correu ao meu encontro , fez-me uma grande festa, disse que tinha ficado aborrecida por eu não ter voltado para Ba­ rano naquele Verão . Como Alfonso estava comigo , apresentei-lho . Ela insistiu , uma vez que o irmão já se tinha ido embora, em andar parte do caminho connosco . Primeiro contou-nos , à sua maneira animada, todos os desgostos de amor. Depois , quando concluiu que eu e Alfonso não éramos namorados , deixou de se dirigir a mim e começou a falar com ele de forma cativante . Quando chegou a casa, de certeza que contou ao irmão que entre mim e Alfonso nada havia , pois prontamente , no dia seguinte , ele voltou a andar de roda de mim. Mas agora, bastava vê-lo para me enervar. Era frívolo como o pai , embora o detestasse? Pensava que as outras pessoas não podiam passar sem gostar dele , sem o amar? Era tão senhor de si que não tolerava outras virtudes senão as suas? Pedi a Antonio que me fosse buscar à escola. Obedeceu-me logo , de­ sorientado e ao mesmo tempo recompensado por aquele pedido . O que mais o deve ter surpreendido foi eu ali em público , diante de todos , lhe ter dado a mão , ter entrelaçado os meus dedos nos dele. Sempre me re­ cusara a passear daquela forma, tanto no bairro como fora, porque me dava a impressão de ser ainda pequena e de andar a passear com o meu pai . Daquela vez , fi-lo . Sabia que Nino estava a olhar para nós e queria que ele percebesse quem eu era. Escrevia melhor do que ele , ia publicar na revista em que ele publicava, era tão boa aluna como ele e mais do que ele, e tinha um homem, aqui está ele . Por isso não andaria de novo atrás dele como um animal fiel .

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55 . Também pedi a Antonio que me acompanhasse ao casamento de Lila, que não me deixasse sozinha, que falasse e , quiçá , dançasse sempre comigo . Receava muito aquele dia , sentia-o como um rompimento de­ finitivo , e queria ter ao lado alguém que me apoiasse . Esse pedido deve ter-lhe complicado a vida . Lila enviara convites para toda a gente . Nas casas do bairro , as mães, as avós , trabalhavam havia algum tempo a fazer as roupas , a procurar chapéus e bolsas , a dar voltas para comprar a prenda de casamento , sei lá, um serviço de copos , de pratos , de talheres. Não era tanto por Lila que faziam esse esforço; era por Stefano , que era muito boa pessoa, permitia que pagassem no fim do mês . Mas sobretudo porque um casamento era um acontecimen­ to em que ninguém podia fazer má figura , principalmente as raparigas sem namorado , que naquela altura tinham a possibilidade de arranjar um e de se arrumarem, casando-se por sua vez dentro de alguns anos . Por esta última razão é que quis que Antonio me acompanhasse . Não tinha qualquer intenção de oficializar a coisa - tínhamos o cuidado de manter a nossa relação em segredo absoluto - , mas desejava ter sob controlo a minha ansiedade de ser atraente . Queria, naquela ocasião , sentir-me composta , tranquila, com os meus óculos , o meu vestido po­ bre feito pela minha mãe , os sapatos velhos , e no entanto pensar: tenho tudo o que uma rapariga de dezasseis anos deve ter, não preciso de nada nem de ninguém . Mas Antonio não levou as coisas dessa forma. Amava-me , considera­ va-me a maior sorte que alguma vez tivera. Perguntava-se muitas vezes em voz alta , com uma sombra de angústia escondida sob uma aparência divertida , por que diabo é que eu o escolhera a ele , que era estúpido e não sabia juntar duas palavras . Na verdade , não via a hora de se apre­ sentar em casa dos meus pais , a fim de oficializar a nossa relação . Por isso , quando lhe fiz aquele pedido , deve ter pensado que finalmente me decidia a deixá-lo sair da clandestinidade , e endividou-se para mandar fazer um fato no alfaiate , sem contar com o que lhe custara a prenda de casamento , roupas para Ada e para os outros irmãos, uma presença apresentável para Melina. Eu não dei por nada . Fiz a minha vida entre a escola, os pareceres urgentes sempre que as coisas se ensari lhavam entre Lila, a cunhada e a sogra , e a agradável ansiedade pelo artigo que podia ver publ icado de u m momento para o outro . Estava intimamente convencida de que só

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existiria realmente a partir do momento em que o meu nome aparecesse impresso , Elena Greco , e ia vivendo na expectativa desse dia sem dar muita atenção a Antonio , que metera na cabeça que havia de completar a sua toilette para o casamento com um par de sapatos Cerullo . De vez em quando perguntava-me: «Sabes em que ponto eles estão?» Eu res­ pondia: «Pergunta ao Rino , que a Lina não sabe de nada.» Era verdade . Os Cerullo em Novembro convocaram Stefano , sem se preocuparem minimamente em mostrar primeiro os sapatos a Lila, que no entanto ainda vivia em casa deles . Stefano , pelo contrário , apresentou-se propositadamente com a noiva e com Pinuccia, pareciam os três saídos do écran da televisão . Lila disse-me que ao ver os sapatos que desenhara anos antes tomados realidade , sentira uma emoção fortíssima, como se tivesse aparecido uma fada e realizado um nosso desejo. Os sapatos eram tal e qual como ela os imaginara a seu tempo . Até Pinuccia ficou de boca aberta. Quis experimentar um modelo de que gostava e fez muitos elogios a Rino , dando a entender que o considerava o verdadeiro artífice daquelas obras-primas de leveza robusta, de harmonia dissonante. O único que se mostrou descontente foi Stefano . Interrompeu os parabéns que Lila dava ao irmão , ao pai e aos empregados , calou a voz melosa de Pinuccia, que felicitava Rino , erguendo um tornozelo para lhe mostrar o pé calçado de forma extraordinária, e, modelo após modelo , criticou as alterações feitas aos desenhos originais . Insistiu sobretudo na comparação entre o sapato de homem, tal como fora feito por Rino e Lila às escondidas de Fernando , e o mesmo sapato com os acabamentos introduzidos por pai e filho. «0 que é esta franja, que pespontas são estes , para que é esta fivela doura­ da?» , perguntou , aborrecido . E por mais que Fernando justificasse todas as alterações com questões de solidez , ou com a finalidade de disfarçar qualquer defeito de ideação , Stefano foi inabalável. Disse que investira ali demasiado dinheiro para obter uns sapatos vulgares , em vez de outros precisamente idênticos aos sapatos de Lila. Houve muitas altercações. Lila interveio discretamente em defesa do pai , disse ao noivo que não se exaltasse , que os seus desenhos eram fantasias de criança e que as alterações , aliás de pouca relevância, de­ certo eram necessárias . Mas Rino apoiou Stefano , e a discussão prolon­ gou-se por muito tempo . Só se interrompeu quando Fernando , comple­ tamente esgotado , se sentou num canto e disse , olhando para os quadros pendurados nas paredes: «Se queres os sapatos para o Natal , aceita-os assim. Se os quiseres exactamente como a minha filha os desenhou , arranja outro que os faça.»

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Stefano deu-se por vencido , e Rino também se deu por vencido . Pelo Natal os sapatos apareceram na montra, uma montra com a es­ trela de Belém feita de algodão . Fui até lá vê-los . Eram objectos elegan­ tes , com um acabamento refinado; bastava olhar para eles para se ter uma impressão de riqueza, que destoava da montra pobre , da paisagem desolada no exterior, do interior da sapataria, uma amálgama de peda­ ços de pele e de couro , bancos e sovelas e formas de madeira, e caixas de sapatos empilhadas até ao tecto , à espera de clientes . Mesmo com as alterações introduzidas por Fernando , eram os sapatos dos nossos so­ nhos infantis , não pensados para a realidade do bairro . O facto é que pelo N atai não se vendeu um único par. Só Antonio lá apareceu , pediu a Rino o número 44, experimentou-o . Depois contou­ -me o prazer que sentira ao sentir-se tão bem calçado , imaginando-se comigo no casamento , com o fato novo vestido e aqueles sapatos nos pés . Mas não concretizou a compra. Quando perguntou o preço e Rino lho disse , ficou de boca aberta: «Estás doido?» . E quando Rino lhe dis­ se: «Vendo-tos em prestações mensais» , respondeu-lhe a rir: «Assim compro uma Lambretta .»

56. N a altura Lila, ocupada com o casamento , não notou que o irmão , até ali alegre e brincalhão , embora exausto pelo trabalho , andava novamen­ te melancólico , a dormir mal , a irritar-se por uma ninharia. «É como uma criança» , disse ela a Pinuccia, como que a justificá-lo por certos impulsos , «muda de humor se não lhe satisfizerem os caprichos imedia­ tamente , não sabe esperar.» Ela, tal como Fernando , não sentiu a falta de vendas dos sapatos pelo Natal como um fiasco . Ao fim e ao cabo , a sua execução não seguira plano nenhum. Nascidos do desejo de Stefano de ver concretizada a pura veia artística de Lila, havia uns mais pesados e outros mais leves , cobriam quase todas as estações do ano . E isso era uma vantagem . As caixas brancas empilhadas no interior da sapataria Cerullo continham um sortido razoável . Era uma questão de esperar, e no Inverno , na Primavera ou no Outono , os sapatos seriam vendidos . Mas Rino ficou cada vez mais agitado . Depois do Natal , por sua ini­ ciativa própria foi falar com o dono da empoeirada sapataria ao fundo da rua larga e , embora soubesse que ele era unha com carne com os Solara, propôs-lhe que expusesse alguns sapatos Cerullo , sem compro-

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misso , só para ver a saída que tinham. O homem disse-lhe educadamen­ te que não , que aquele produto não era adequado para a sua clientela. Ele levou a mal , e dali resultou uma troca de palavrões de que se soube em todo o bairro . Fernando enfureceu-se com o filho , Rino censurou-o , e Lila voltou a sentir que o irmão era um elemento de desordem, uma manifestação das forças destrutivas que a haviam atemorizado . Quando saíam os quatro , Lila notava com apreensão que o irmão maquinava para ela e Pinuccia irem à frente e ele ficar cinco passos para trás , a conversar com Stefano . Geralmente , o charcuteiro ouvia-o sem dar si­ nais de irritação . Uma única vez Lila o ouviu dizer: «Desculpa, Rino , na tua opinião eu investi tanto dinheiro na sapataria assim , a fundo perdido , só por amor à tua irmã? Estão feitos , são boni­ tos , temos de os vender. O problema é que é preciso encontrar o merca­ do adequado .» Aquele «SÓ por amor à tua irmã» não lhe caiu bem. Mas deixou pas­ sar, porque aquelas palavras acabaram por ter um efeito positivo em Rino , que sossegou e começou a armar-se em estratega de vendas , so­ bretudo com Pinuccia. Dizia que era preciso fazer uma análise abran­ gente . Porque é que tantas boas iniciativas tinham falhado? Porque é que a oficina Gorresio tivera de desistir dos motociclos? Porque é que a boutique da retroseira durara só seis meses? Porque eram empreendi­ mentos de pouco fôlego . Os sapatos Cerullo , pelo contrário , em breve sairiam do mercado do bairro e se afirmariam em zonas mais ricas . Entretanto a data do casamento aproximava-se . Lila ia a correr provar o vestido de noiva, dava os últimos retoques à sua futura casa, lutava com Pinuccia e Maria que , entre tantas coisas , não toleravam as intru­ sões de Nunzia. As tensões cresceram ainda mais nas proximidades do dia 1 2 de Março . Mas não foi daí que vieram os choques capazes de abrir brechas . Foram dois acontecimentos em particular, um atrás do outro , que magoaram Lila profundamente . Uma tarde gelada de Fevereiro perguntou-me sem mais nem menos se podia acompanhá-la a casa da professora Oliviero . Nunca mais manifestara qualquer interesse por ela, nenhum afecto , nenhuma gra­ tidão . Mas agora sentia a necessidade de lhe levar o convite pessoal­ mente . Como nunca antes lhe contara os tons hostis que a professora usara tantas vezes a respeito dela, não achei oportuno falar-lhe nisso naquela ocasião , tanto mais que em tempos recentes ela me parecera menos agressiva, mais tendente para a melancolia, e talvez a acolhes­ se bem .

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Lila vestiu-se com um cuidado extremo. Fomos a pé até ao prédio onde morava a professora, a dois passos da igreja paroquial . Enquanto subimos a escada, notei que ela estava muito ansiosa. Eu estava habituada àquele percurso , àquelas escadas , mas ela não , não disse uma palavra. Rodei o botão da campainha, ouvi os passos arrastados da professora. «Quem é?» «Greco.» Abriu a porta. Tinha sobre os ombros uma romeira roxa, e metade do rosto coberto por uma écharpe . Lila sorriu e disse-lhe: «Professora, lembra-se de mim?» A professora Oliviero olhou para ela como fazia na escola quando Lila se portava mal , e depois dirigiu-se a mim , falando com dificuldade , como se tivesse comida na boca: «Quem é? Não a conheço .» Lila ficou confusa e disse muito depressa, em italiano: «Sou a Cerullo . Vim trazer-lhe o convite , vou casar. E ficaria muito feliz se viesse ao meu casamento .» A professora disse , dirigindo-se a mim: «A Cerullo conheço , mas esta não sei quem é .» Fechou-nos a porta na cara. Ficámos uns instantes paradas no patamar, depois toquei-lhe na mão , para a confortar. Ela retraiu-se , enfiou o convite por baixo da porta e desceu as escadas . Na rua falou sem parar de todas as maçadas burocrá­ ticas na câmara e na igreja, e de como o meu pai fora prestável . O outro desgosto , talvez mais profundo , veio surpreendentemente de Stefano e da história dos sapatos . Havia algum tempo que decidira que o padrinho de casamento seria um familiar de Maria, que emigrara para Florença depois da guerra e montara um pequeno negócio de velharias de proveniência vária, sobretudo objectos de metal . Esse familiar casara com uma florentina e adquirira o sotaque local . Por causa da sua pro­ núncia, gozava de um certo prestígio na família, motivo pelo qual já fora padrinho do crisma de Stefano . Porém , de um momento para o outro , o noivo mudou de ideias . Lila a princípio falou-me nisso como se fosse um sinal de nervosismo de última hora. Para ela, que o padrinho fosse este ou aquele era-lhe completamente indiferente , o essencial era decidir-se . Mas durante uns dias Stefano só lhe deu respostas vagas e confusas , não se conseguia compreender quem ia substituir o casal florentino . Depois , a menos de uma semana do casamento , a verdade veio à luz . Stefano comunicou-

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-lhe , como coisa firme , sem justificação nenhuma, que o padrinho seria Silvio Solara, o pai de Marcello e Stefano . Lila, que até àquele momento não admitira sequer a hipótese de al­ gum parente de Marcello Solara, ainda que muito distante , estar presen­ te no seu casamento , voltou a ser, durante alguns dias , a miúda que eu conhecia bem. Cobriu Stefano dos mais grosseiros insultos , disse que não o queria ver mais . Fechou-se na casa dos pais , deixou de tratar fos­ se do que fosse, não foi à última prova do vestido de noiva, não mexeu uma palha que tivesse a ver com o casamento iminente . Começou a procissão dos familiares . Primeiro foi a mãe , Nunzia, que lhe falou do bem da fanu1ia com consternação . Depois foi Fernando , austero , que lhe disse que se deixasse de criancices , pois para qualquer pessoa que quisesse ter um futuro no bairro era obrigatório ter como padrinho Silvio Solara. Por fim foi Rino , que em tom agressivo e com o ar do homem de negócios que só pensa no lucro , lhe explicou como as coisas eram: O Solara pai era como um banco , e, sobretudo , era o canal para colocar nas sapatarias os modelos Cerullo . «0 que queres tu fazer?» , gritou-lhe , com os olhos esbugalhados e raiados de sangue , «queres arruinar-me a mim e a toda a família, e todo o trabalho que fi­ zemos até agora?» Até Pinuccia apareceu , e disse-lhe , num tom um tanto fingido , que também lhe daria muito prazer que o padrinho fosse o comerciante de metais de Florença, mas era preciso raciocinar, não se podia cancelar um casamento e extinguir um amor por uma questão de tão pouca importância. Passou-se um dia e uma noite . Nunzia permaneceu muda a um canto sem se mexer, sem fazer nada em casa, sem dormir. Depois veio cha­ mar-me às escondidas da filha, para eu ir falar com ela e chamá-la à razão . Senti-me lisonjeada, pensei muito qual seria a minha posição . Estava em causa um casamento , uma coisa prática, complexa, palco de muitos afectos e interesses . Assustei-me . Eu , que agora era capaz de entrar em conflito com o Espírito Santo em público , desafiando a auto­ ridade do professor de religião , se estivesse no lugar de Lila nunca teria coragem de mandar o casamento às urtigas . Mas ela sim, ela seria capaz disso , apesar de se estar a um passo da celebração . O que fazer? Sentia que não seria preciso muito para reencaminhá-la naquela direcção , e que me daria muito prazer fazê-lo . Lá no fundo , era isso que eu real­ mente queria: trazer de volta a Lila pálida, de rabo-de-cavalo , olhos semicerrados de rapace , roupas coçadas . Deixar de ter aqueles ares , de se comportar como uma Jacqueline Kennedy dos subúrbios .

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Mas , para desgraça dela e de mim, pareceu-me uma acção mesqui­ nha. Julgando contribuir para o seu bem, não quis devolvê-la ao cinzen­ tismo da casa dos Cerullo , de modo que se me meteu na cabeça uma só ideia, e mais não fiz do que dizer-lha e voltar a dizer-lha com uma deli­ cadeza persuasora: o Silvio Solara, Lila, não é o Marcello e também não é o Michele; é errado confundir as coisas , sabe-lo melhor do que eu , tu própria mo disseste noutras ocasiões . Não foi ele que puxou a Ada para dentro do carro , não foi ele que disparou sobre nós na noite da passagem do ano , não foi ele que se plantou à força em tua casa, não foi ele que disse aquelas coisas horríveis a teu respeito; o Silvio será o padrinho e dará uma ajuda ao Rino e ao Stefano para venderem os sapatos, e é tudo; não terá qualquer peso na tua vida futura. Voltei a embaralhar as cartas que já conhecíamos bem. Falei do antes e do depois , da velha geração e da nossa, de como nós éramos diferentes , de como ela e Stefano eram diferentes . Este último argumento fez mossa, seduziu-a, voltei a ele com muita paixão . Ouviu-me em silêncio , queria, evidentemente , que a aju­ dassem a serenar, e pouco a pouco serenou . Mas li-lhe nos olhos que aquela atitude de Stefano lhe mostrara uma faceta dele que não conse­ guia ainda ver com clareza, e que por isso mesmo a assustava ainda mais do que as fúrias de Rino . Disse-me: «Se calhar não é verdade que gosta de mim .» «Como é que não gosta de ti? Faz tudo aquilo que tu dizes.» «Só quando não lhe ponho em risco o dinheiro verdadeiro» , disse , num tom de desprezo que nunca usara com Stefano Carracci . De qualquer maneira, voltou à circulação . Não se deixou ver na char­ cutaria, não foi à casa nova, não fez nada para tentar reconciliar-se . Esperou que fosse Stefano a dizer-lhe: «Obrigado , gosto muito de ti , sabes que há coisas que somos forçados a fazer.» Só então deixou que ele se aproximasse pelas costas e lhe beijasse o pescoço . Mas depois virou-se de chofre e disse-lhe , olhando-o nos olhos : «No meu casamento o Marcello Solara não pode , de maneira nenhuma, pôr os pés .» «Como é que eu faço isso?» «Não sei , mas tens de me jurar.» Ele soprou e disse a rir: «Está bem , Lila, eu juro .»

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57 . O dia 1 2 de Março chegou , um dia ameno , já primaveril . Lila quis que eu fosse cedo para a sua velha casa, que a ajudasse a lavar-se , a pentear-se , a vestir-se. Mandou a mãe embora, ficámos sós . Sentou-se à beira da cama em cuecas e soutien . A seu lado tinha o vestido de noiva, que parecia o corpo de uma morta; em frente , no chão de ladrilhos he­ xagonais, estava a tina de cobre cheia de água fumegante . Perguntou-me à queima-roupa: «Achas que estou a cometer um erro?» «Em quê?» «Em casar-me .» «Ainda estás a pensar na história do padrinho?» «Não , estou a pensar na professora. Porque é que ela não quis que eu entrasse?» «Porque ela é uma velha rabugenta.» Ficou calada um instante , a olhar para a água que brilhava na tina, e depois disse: «Aconteça o que acontecer, tu , continua a estudar.» «Mais dois anos. Depois , pego no diploma e acabou-se .» «Não , não pares . Eu dou-te o dinheiro , tens de continuar sempre a estudar.» Fiz um risinho nervoso , depois disse: «Obrigada, mas a certa altura acabou-se o estudo .» «Para ti , não . Tu és a minha amiga genial , tens de ser a melhor de todos, rapazes e raparigas .» Pôs-se em pé , tirou as cuecas e o soutien , e disse: «Vá lá, ajuda-me , senão atraso-me .» Nunca a tinha visto nua, envergonhei-me . Hoje posso dizer que foi a vergonha de pousar com prazer o olhar no seu corpo , de ser a testemu­ nha participante da sua beleza de rapariga de dezasseis anos , poucas horas antes que Stefano lhe tocasse , a penetrasse , a deformasse , talvez, engravidando-a. Nessa altura foi apenas uma tumultuosa sensação de inconveniência necessária, uma situação em que não se pode voltar os olhos para outro lado , não se pode desviar a mão sem reconhecer a nos­ sa perturbação , sem a declarar precisamente com esse retraimento , sem entrar em conflito com a imperturbada inocência de quem te está per­ turbando , sem exprimir, com essa rejeição , a violenta emoção que te domina, e por isso te obrigas a ficar, a pousar o olhar nas costas de ra-

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paz , nos seios com os mamilos inteiriçados , nas ancas estreitas e nas nádegas rijas , no sexo negro , nas longas pernas , nos joelhos macios , nos tornozelos sinuosos , nos pés elegantes; e fazes de conta que nada se passa, quando afinal tudo está a acontecer, presente , ali , no quarto pobre e escuro , em redor a mobília miserável , sobre um pavimento irregular manchado de água, e agita-se-te o coração , inflamam-se-te as veias . Lavei-a com gestos lentos e cuidadosos , primeiro com ela acocorada no recipiente , e depois pedindo-lhe que se pusesse em pé , e ainda tenho nos ouvidos o ruído da água a gotejar, e ficou-me a impressão de que o cobre da tina era de uma consistência não diferente da carne de Lila, que era lisa, rija, calma. Tive sentimentos e pensamentos confusos: abraçá­ -la, chorar com ela, beijá-la, puxar-lhe os cabelos , rir, fingir competên­ cias sexuais e instruí-la com voz douta, distanciá-la com as palavras , justamente no momento de maior proximidade . Mas por fim ficou-me apenas o pensamento hostil de que a estava a lavar da cabeça às solas dos pés , de manhã cedo , só para que Stefano a sujasse durante a noite . Imaginei-a, nua como estava naquele momento , cingida ao marido , no leito da casa nova, enquanto o comboio estrepitava por baixo das jane­ las , e a carne violenta dele entrava nela com um golpe seco , como a rolha de cortiça empurrada pela palma da mão para dentro do gargalo de uma garrafa de vinho . E de repente pareceu-me que o único remédio para a dor que estava sentindo , que sentiria, era encontrar um recanto bastante retirado para que Antonio me fizesse a mim, às mesmas horas , exactamente a mesma coisa. Ajudei-a a enxugar-se , a vestir-se , a enfiar o vestido de noiva que eu - eu , pensei com um misto de orgulho e sofrimento - escolhera para ela. O tecido ganhou vida, sobre a sua candura correu o calor de Lila, o vermelho da boca, os olhos escuros e duros . Por último calçou os sapa­ tos que ela própria desenhara. Pressionada por Rino , que se ela os não calçasse sentiria uma espécie de traição , escolhera um par com o salto baixo , para evitar parecer muito mais alta do que Stefano . Olhou-se ao espelho , levantando um pouco o vestido . «São feios» , disse . «Não é verdade .» Riu-se com nervosismo . «Mas sim, olha: os sonhos da mente acabaram debaixo dos pés .» Voltou-se com uma expressão repentina de pavor: «0 que é que me está para acontecer, Lenu?»

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58 . Na cozinha esperavam-nos impacientes , já prontos havia um bocado , Fernando e Nunzia. Nunca os vira tão bem arranjados . Naquele tempo os pais dela, os meus , todos os pais me pareciam velhos . Não fazia grande distinção entre eles e os avós matemos e paternos , criaturas que aos meus olhos levavam , todas , uma espécie de vida fria, uma existên­ cia sem nada em comum com a minha, com a de Lila, de Stefano , de Antonio , de Pasquale . As pessoas realmente consumidas pelo calor dos sentimentos , pelo ímpeto dos pensamentos , éramos nós . Só agora, en­ quanto escrevo , é que me apercebo pela primeira vez de que Fernando naquela época não devia ter mais do que quarenta e cinco anos , Nunzia era uns anos mais nova, de certeza, e os dois, naquela manhã , ele de camisa branca e fato escuro , com o rosto de Randolph Scott, e ela toda de azul, com um chapeuzinho azul e véu azul, faziam um bonito par. O mesmo se aplica aos meus pais, sobre cujas idades posso ser mais pre­ cisa: o meu pai tinha trinta e nove anos e a minha mãe trinta e cinco . Olhei muito para eles , na igreja. Senti com enfado que naquele dia os meus êxitos escolares não os consolavam nada, e até provavam, sobre­ tudo à minha mãe , que não passavam de uma inútil perda de tempo . Quando Lila, esplendorosa na nuvem de ofuscante alvura do vestido e do véu vaporoso , avançou pela igreja do Sagrado Coração pelo braço do sapateiro , e foi juntar-se a Stefano , que estava muito bonito , no altar coberto de flores - bendito florista, que as fornecera com abundância - , a minha mãe , embora o seu olho dançarino parecesse voltado para outro lado , olhou para mim , para fazer-me sentir que ali estava eu , a caixa-de-óculos , longe do centro das atenções , ao passo que a minha amiga má conquistara um marido abastado , uma actividade económica para a fatn1lia, uma casa que ainda por cima lhe pertencia, com banhei­ ra, frigorífico , televisão e telefone . A cerimónia foi longa, o pároco fê-la durar uma eternidade . À entra­ da da igreja, os familiares e amigos do noivo encontravam-se todos de um lado , e os familiares e amigos da noiva, do outro . O fotógrafo tirou fotografias durante o tempo todo , com flash e reflectores , enquanto o jovem ajudante filmava as fases mais importantes da cerimónia. Antonio sentou-se devotadamente a meu lado durante o tempo todo , com o fato novo feito pelo alfaiate , delegando em Ada, aborrecida por­ que , na qualidade de caixeira da charcutaria do noivo , aspirava a um lugar melhor, a tarefa de se instalar ao fundo da igreja, ao lado de Me-

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lina, e de a vigiar, assim como os outros irmãos . Uma vez ou duas sussurrou-me qualquer coisa ao ouvido , mas não lhe respondi . Devia limitar-se a estar ao meu lado , sem mostrar nenhuma intimidade espe­ cial , para evitar os mexericos . Corri os olhos pela igreja apinhada, as pessoas estavam aborrecidas e, tal como eu , olhavam em volta. Sentia­ -se um perfume intenso de flores , um odor a roupas novas . Gigliola estava bonita, e Carmela Peluso também. E os rapazes não lhes ficavam atrás . Enzo , e sobretudo Pasquale , pareciam querer demonstrar que ali , no altar, ao lado de Lila, teriam feito melhor figura do que Stefano . Quanto a Rino , enquanto o pedreiro e o vendedor de fruta e hortaliça se encontravam ao fundo da igreja, como sentinelas do bom êxito da ce­ rimónia, ele , o irmão da noiva, quebrando a ordem dos alinhamentos familiares , fora instalar-se ao pé de Pinuccia, na zona dos familiares do noivo , também ele impecável com o seu fato novo , sapatos Cerullo nos pés , que luziam tanto como o cabelo cheio de brilhantina. Que pompa ! Era evidente que todos os que receberam convite não quiseram faltar, comparecendo , aliás , vestidos com todo o luxo , facto que , por aquilo que eu sabia, por aquilo que todos sabiam, significava que não poucos - a começar talvez por Antonio , sentado a meu lado - tiveram de pedir dinheiro emprestado . Nessa altura olhei para Silvio Solara, corpu­ lento , de fato escuro , em pé ao lado do noivo , com muito oiro a cintilar nos pulsos . Olhei para a mulher, Manuela, vestida de cor-de-rosa, co­ berta de jóias , estacionada ao lado da noiva. Era dali que vinha o dinhei­ ro para aquela pompa. Morto dom Achille , aquele homem de tez arro­ xeada, olhos azuis , grandes entradas , e aquela mulher magra, de nariz comprido e lábios finos , é que emprestavam dinheiro a todo o bairro (ou , melhor dizendo , era Manuela que geria os lados práticos dessa ac­ tividade . Famoso e temido era o livro de registo de capa vermelha, em que ela anotava quantias e prazos) . Com efeito , o casamento de Lila era um negócio , não só para o florista, não só para o fotógrafo , mas sobre­ tudo para aquele casal , que , entre outras coisas , fornecera também o bolo e as lembranças do casamento . Reparei que Lila nunca olhou para eles . Nem se virou sequer para Stefano , o seu olhar esteve sempre fixo no padre . Achei que vistos as­ sim, de costas , não eram um casal bonito . Lila era mais alta, ele mais baixo . Lila espalhava em redor uma energia que ninguém podia ignorar, ele parecia um homenzinho apagado . Lila mostrava-se extremamente concentrada, como se fizesse questão de compreender perfeitamente o que significava aquele ritual , ele , pelo contrário , de vez em quando vira-

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va-se para a mãe , ou trocava risinhos com Silvio Solara, ou coçava le­ vemente a cabeça. A certa altura senti-me ansiosa. Pensei: e se Stefano realmente não fosse aquilo que parece? Mas abandonei esse pensamen­ to por dois motivos . Em primeiro lugar, ambos os noivos disseram o sim de modo límpido e claro , entre a comoção geral , e trocaram alianças , beijaram-se , e eu tive de me convencer de que Lila já estava casada. E depois aconteceu que , de repente , desviei a atenção dos noivos . Lem­ brei-me de ter visto toda a gente , excepto Alfonso , procurei-o com os olhos entre os parentes do noivo e da noiva. Localizei-o ao fundo da igreja, quase escondido por uma coluna. Acenei-lhe , ele respondeu , veio na minha direcção . Mas atrás dele apareceu , esplendorosa, Marisa Sar­ ratore . E logo a seguir, magro , de mãos nos bolsos , despenteado , com o casaco e as calças coçados que levava para a escola, Nino .

59 . Seguiu-se um confuso aglomerado em tomo dos noivos, que saíram da igreja acompanhados pelos sons vibrantes do órgão e pelo flash do fotógrafo . Lila e Stefano pararam no adro , entre beijos e abraços , o caos dos automóveis e os nervosismo dos familiares que tinham de ficar à espera, enquanto outros , nem sequer do mesmo sangue - mas mais importantes , mais amados , mais ricamente vestidos , as senhoras com chapéus extravagantes? - , entravam de imediato nos carros e eram levados à Via Orazio , ao restaurante . Alfonso estava muito bem vestido . Nunca o vira de fato escuro , ca­ misa branca, gravata. Sem as modestas roupas da escola, sem a bata da charcutaria, não só me pareceu alto para os seus dezasseis anos, como , de repente , também fisicamente diferente do irmão Stefano . Estava mais alto , mais esguio e bonito , achei-o parecido com um bailarino es­ panhol que vira na televisão , olhos grandes , lábios carnudos , sem sinal de barba por enquanto . Marisa, pelos vistos , atrelara-se a ele , a relação crescera, deviam andar a encontrar-se sem eu ter dado por nada. Alfon­ so , apesar de me ser tão dedicado , deixara-se levar pela cabeleira enca­ racolada de Marisa e pela sua tagarelice incessante , que o dispensava, a ele que era tão tímido , de preencher os vazios das conversas? Eram namorados? Duvidava, ele ter-me-ia dito . Mas as coisas estavam clara­ mente a correr bem, pois até a convidara para o casamento do irmão . E ela, para obter a autorização dos pais , arrastara Nino consigo .

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Portanto ali estava ele , no adro da igreja, o jovem Sarratore , comple­ tamente deslocado , com as suas roupas coçadas , alto de mais , magro de mais , cabelo comprido de mais e despenteado , as mãos demasiado mer­ gulhadas nos bolsos das calças , com o ar de quem não sabe onde se há-de meter, de olhos nos noivos como toda a gente , mas sem interesse nenhum, só para pousá-los em qualquer coisa. Essa presença inesperada contribuiu muito para a desordem emotiva daquele dia. Cumprimentámo­ -nos na igreja, um sussurro apenas , olá, olá. Nino depois foi atrás da irmã e de Alfonso , eu fui agarrada firmemente por um braço , pela mão de Antonio , e , embora me libertasse imediatamente , acabei por me en­ contrar na companhia de Ada, Melina, Pasquale , Carmela, Enzo . Agora, no meio do burburinho , enquanto os noivos se metiam num grande au­ tomóvel branco juntamente com o fotógrafo e o ajudante, para irem tirar fotografias ao Parco della Rimembranza, fiquei ansiosa, receando que a mãe de Antonio reconhecesse Nino , que lhe lesse no rosto algum traço de Donato . Mas foi uma preocupação infundada. Nunzia, a mãe de Lila, levou-a consigo , muito esmorecida, juntamente com Ada e os filhos mais pequenos, para um automóvel que logo se afastou . Na verdade ninguém reconheceu Nino , nem sequer Gigliola, nem Carmela, nem Enzo . nem repararam em Marisa, embora ela conservasse traços da menina que fora. De momento , os dois Sarratore passaram completamente despercebidos. E entretanto Antonio empurrava-me na direcção do automóvel velho de Pasquale , e juntaram-se-nos Carmela e Enzo , e já nos íamos embora e eu não sabia dizer senão: «Onde estão os meus pais? Esperemos que alguém lhes dê atenção .» Enzo respondeu que os vira num carro qualquer, portanto não havia mais nada a fazer, arrancámos , e mal tive tempo de lançar um olhar a Nino , ainda parado no adro com uma expressão desorientada, junto de Alfonso e Marisa que falavam um com o outro , e perdi-o de vista. Fiquei nervosa. Antonio, sensível às minhas mudanças de humor, sussurrou-me ao ouvido: «Ü que foi?» «Nada.» «Alguma coisa te aborreceu?» «Não .» Carmela riu-se: «Aborreceu-a a Lina ter-se casado , e ela queria casar-se também.» «Então e tu , não querias casar também?» , perguntou Enzo . «Eu , se dependesse de mim, casava-me já amanhã.»

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«E com quem?» «Eu bem sei com quem.» «Caluda>> , disse Pasquale , «que a ti ninguém te quer.» Descemos em direcção à Marina, Pasquale conduzia com garra. An­ tonio afinara-lhe o carro tão bem, que ele tratava-o como um carro de corrida. Lançava-se , fazendo um grande estrépito e ignorando os sola­ vancos devidos às estradas em mau estado . Aproximava-se a grande velocidade dos carros dianteiros , como se quisesse abalroá-los , travava poucos centímetros antes de lhes bater, guinava bruscamente e ultrapas­ sava-os . Nós , as raparigas , soltávamos gritos de terror, ou fazíamos re­ comendações indignadas , que o faziam rir e o estimulavam a fazer ainda pior. Antonio e Enzo nem pestanejavam, no máximo faziam co­ mentários pesados acerca dos automobilistas vagarosos , baixavam o vidro e , enquanto Pasquale os ultrapassava, gritavam insultos . Foi durante esse percurso até à Via Orazio que comecei a sentir-me claramente uma estranha, que a minha própria estranheza tomava infe­ liz . Crescera com aqueles rapazes , achava os seus comportamentos nor­ mais , a sua linguagem violenta era a minha. Mas havia seis anos que seguia diariamente um percurso que eles ignoravam completamente , e que eu , pelo contrário , enfrentava de forma tão brilhante que revelara ser a mais competente . Com eles não podia usar nada daquilo que aprendia todos os dias , tinha de conter-me , de certo modo autodegradar-me . Aqui­ lo que eu era na escola, ali era obrigada a pô-lo entre parêntesis , ou a usá-lo à traição , para os intimidar. Perguntei-me o que fazia eu naquele automóvel . Estavam ali os meus amigos , é certo , estava o meu namora­ do , íamos para a festa do casamento de Lila. Mas essa festa, precisamen­ te , confirmava que Lila, a única pessoa de quem eu ainda precisava apesar das nossas vidas divergentes , já não pertencia àquele mundo , e , faltando ela, qualquer ligação entre mim e aqueles jovens esgotara-se . Então porque não estava na companhia de Alfonso , com quem partilha­ va a origem e a fuga? E, sobretudo , porque não me detivera para dizer a Nino: fica, vem ao copo-d' água, diz-me quando sai a revista com o meu artigo , vamos falar os dois , vamos escavar uma toca que nos ponha à parte desta forma de conduzir de Pasquale , da sua vulgaridade , dos tons de voz violentos de Carrne la e de Enzo , e também - sim, também - de Antonio?

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60 . Fomos os primeiros jovens a entrar na sala da festa de casamento . O meu mau humor cresceu . Silvio e Manuela Solara estavam já instala­ dos a uma mesa, juntamente com o comerciante de metais , a sua con­ sorte florentina e a mãe de Stefano . Os pais de Lila encontravam-se também sentados a uma mesa comprida com outros familiares , os meus pais, Melina, e Ada, que estava impaciente e acolheu Antonio com ges­ tos de raiva. A banda ocupava o seu lugar, os músicos iam experimen­ tando os instrumentos e o vocalista o microfone . Andámos às voltas , embaraçados . Não sabíamos onde sentar-nos, nenhum de nós se atrevia a perguntar aos criados de mesa, Antonio estava colado a mim, esforçan­ do-se para me distrair. A minha mãe chamou-me , fiz de conta que não ouvi . Voltou a chamar­ -me , e eu , nada. Então levantou-se e veio ter comigo com o seu passo claudicante . Queria que me fosse sentar ao lado dela. Recusei-me . Ela sibilou: «Porque é que o filho da Melina anda sempre de roda de ti?» «Ninguém anda de roda de mim, mã' .» «Julgas que eu sou estúpida?» «Não .» «Vem sentar-te ao pé de mim.» «Não .» «Vem, já te disse . Não te mandamos estudar para tu te deixares estra­ gar por um operário que é filho de uma maluca.» Obedeci-lhe , ela estava furiosa. Começaram a chegar outros jovens , todos amigos de Stefano . Com eles vi Gigliola, que me chamou para junto dela. A minha mãe impediu-me . Pasquale , Carmela, Enzo e Anto­ nio finalmente sentaram-se com o grupo de Gigliola. Ada, que conse­ guira livrar-se da mãe , confiando-a a Nunzia, veio dizer-me ao ouvido: «Vem.» Tentei levantar-me , mas a minha mãe agarrou-me um braço com raiva. Ada fez uma cara de contrariada e foi sentar-se ao lado do irmão , que de vez em quando olhava para mim, e eu fazia-lhe sinal , levantando os olhos para o tecto , de que estava prisioneira. A banda começou a tocar. O vocalista, na casa dos quarenta, quase calvo , de feições delicadas , cantarolou qualquer coisa para experimen­ tar. Chegaram mais convidados , a sala encheu-se . Ninguém escondia a fome , mas , evidentemente , era preciso esperar pelos noivos . Tentei de novo levantar-me e a minha mãe sibilou: «Tens de estar ao pé de mim.»

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Ao pé dela . Pensei em como era contraditória sem se aperceber disso , com as suas raivas , com aqueles gestos autoritários . Não queria que eu estudasse , mas como agora estudava, considerava-me melhor do que os jovens com quem eu crescera, e concluía, como aliás eu própria acaba­ ra de concluir, que o meu lugar não era junto deles . Porém, obrigava-me a estar ao pé dela para me proteger sabe-se lá de que mar tempestuoso , sabe-se lá de que abismo ou precipício , tudo perigos que naquele mo­ mento , aos olhos dela, eram representados por Antonio . Mas estar ao pé dela significava estar no seu mundo , tornar-me completamente idêntica a ela. E se me tornasse idêntica a ela, quem é que seria indicado para mim senão Antonio? Entretanto chegaram os noivos , entre aplausos entusiásticos . A banda começou imediatamente a tocar a marcha nupcial . Liguei indissoluvel­ mente à minha mãe , ao seu corpo , a estranheza que continuava a cres­ cer-me cá dentro . Ali estava Lila, felicitada por todo o bairro , parecia feliz . Sorria, elegante , cortês , de mãos dadas com o marido . Estava lin­ da. Desde pequena que tinha os olhos nela, na sua evolução , para esca­ par à minha mãe. Enganei-me . Lila permanecera ali , claramente vincu­ lada àquele mundo , do qual ela imaginava ter colhido o melhor. E o melhor era aquele rapaz , aquele casamento , aquela festa, o jogo dos sa­ patos para Rino e para o pai . Nada que tivesse a ver com o meu percur­ so de rapariga estudiosa. Senti-me completamente só . Os noivos foram obrigados a dançar no meio dos flashes do fotó­ grafo . Voltearam pela sala , precisos nos movimentos . Tenho de con­ cluir, pensei : do mundo da minha mãe , nem sequer Lila, apesar de tudo , conseguiu fugir. Mas eu tenho de ser capaz , não posso continuar a ser condescendente . Tenho de apagá-la, como sabia fazer a profes­ sora Oliviero , quando se apresentava em nossa casa para lhe impor o que era para meu bem . Estava a prender-me por um braço , mas eu ti­ nha de ignorá-la, recordar-me de que era a melhor em italiano , latim e grego , recordar-me de que enfrentara o professor de religião , recordar­ -me de que ia sair um artigo com a minha assinatura, na mesma revis­ ta em que escrevia um rapaz bonito e inteligente do terceiro ano do liceu . Nesse momento entrou Nino Sarratore . Vi-o antes de ver Alfonso e Marisa, vi-o e pus-me em pé de um salto . A minha mãe tentou segurar­ -me pela orla do vestido , mas eu puxei pelo vestido . Antonio , que não tirava os olhos de mim, animou-se , deitou-me um olhar convidativo . Mas eu , num movimento contrário ao de Lila e Stefano , que iam ocupar

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os seus lugares ao centro da mesa, entre o casal Solara e o casal de Flo­ rença, dirigi-me para a entrada, para Alfonso , Marisa e Nino .

61 . Arranjámos lugar. Falei de modo genérico com Alfonso e Marisa, esperava que Nino se decidisse a dirigir-me a palavra. Entretanto Anto­ nio aproximou-se por trás de mim , inclinou-se e disse-me ao ouvido: «Guardei um lugar para ti .» Sussurrei: «Vai-te embora, a minha mãe percebeu tudo .» Olhou em volta hesitante , muito intimidado . E regressou à sua mesa. Ouviu-se um ruído de descontentamento na sala. Os convidados mais rancorosos tinham começado a notar as coisas que não estavam correc­ tas . O vinho não era da mesma qualidade em todas as mesas . Alguns já iam no primeiro prato , enquanto a outros ainda não fora servido o ante­ pasto . Havia quem dissesse em voz alta que onde estavam sentados os familiares e amigos do noivo o serviço era melhor do que nas mesas em que se encontravam os familiares e amigos da noiva. Senti como detes­ tava aquelas querelas , o seu crescente tom conflituoso . Ganhei ânimo e puxei Nino para a conversa, pedi-lhe que me falasse do seu artigo acer­ ca da miséria em Nápoles , contando pedir-lhe logo a seguir, com natu­ ralidade , notícias sobre o próximo número da revista e sobre a minha meia página. Ele deu início a uma conversa muito interessante e muito informativa a respeito do estado da cidade . Impressionou-me a sua se­ gurança. Em Ischia ainda tinha as feições do rapazinho atormentado , agora achei-o muito mais maduro . Como era possível que um rapaz de dezoito anos falasse da miséria, não no aspecto genérico e num tom consternado , como fazia Pasquale , mas apresentando factos concretos , de forma distanciada, citando dados precisos? «Onde aprendeste essas coisas?» «Basta ler.» «0 quê?» «Os jornais , as revistas , os livros que tratam desses problemas .» Eu nunca tinha sequer folheado um jornal ou uma revista, só lia ro­ mances . A própria Lila, no tempo em que lia, nunca lera mais do que os velhos romances esfrangalhados da biblioteca. Eu estava atrasada em tudo , Nino podia ajudar-me a recuperar terreno .

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Comecei a fazer-lhe mais e mais perguntas , ele respondia. Sim, res­ pondia, mas não dava respostas brilhantes como Lila, não tinha a mesma capacidade de tomar tudo sedutor. Compunha discursos com a expressão do estudioso , cheios de exemplos concretos, e cada pergunta minha era um pequeno impulso que provocava uma avalanche . Falava sem parar, sem floreados , sem ironia, duro , cortante . Alfonso e Marisa depressa se sentiram isolados . Marisa disse: «Chiça, que chato que o meu irmão é» , e começaram a conversar os dois . Nino e eu também ficámos isolados . Não ouvimos mais nada do que se passava à nossa volta, não sabíamos o que nos serviam nos pratos , nem o que comíamos e bebíamos . Eu esforçava-me para arranjar perguntas para lhe fazer, e ouvia muito aten­ ta as suas respostas caudalosas . Mas depressa me apercebi de que o fio dos seus discursos era constituído por uma única ideia fixa, que animava cada frase: a rejeição de palavras pouco claras , a necessidade de detectar problemas com clareza, de sugerir soluções praticáveis e de intervir. Eu ia sempre acenando que sim, declarava-me de acordo com tudo . Só as­ sumi um ar de perplexidade quando ele disse mal da literatura. «Se querem ser vendedores de fumo» , repetiu duas ou três vezes, muito irri­ tado com os seus inimigos , ou seja, aqueles que vendem fumo , «escre­ vam romances , terei muito gosto em lê-los; mas se é preciso alterar as coisas , então aí a conversa é outra.» Na realidade - foi o que me pare­ ceu perceber - servia-se da palavra «literatura» para criticar quem ar­ ruinava a cabeça das pessoas com aquilo a que ele chamava conversa inútil . A um meu protesto passageiro , por exemplo , respondeu assim: «Demasiados maus romances de cavalaria, Lenu , fazem um Dom Qui­ xote; mas , com todo o respeito por Dom Quixote , nós aqui em Nápoles não temos necessidade de lutar contra moinhos de vento , é só coragem desperdiçada. Do que precisamos é de pessoas que saibam como funcio­ nam os moinhos e que os ponham a funcionar.» Daí a pouco já desejava poder conversar todos os dias com um rapaz daquele nível . Quantos erros cometera com ele; que estupidez tinha sido querê-lo , amá-lo , e no entanto evitá-lo sempre . Culpa do pai . Mas tam­ bém culpa minha: eu - eu , que tanta raiva tinha à minha mãe - per­ mitira que o pai lançasse a sua abjecta sombra sobre o filho? Arrependi­ -me , deleitei-me com o meu arrependimento , com o romance em que me sentia imersa. De vez em quando levantava a voz , para superar o clamor da sala, a música, e ele fazia o mesmo . Às vezes olhava para a mesa de Lila: ria, comia, falava, nem se apercebera de onde me encon­ trava, da pessoa com quem estava a falar. Por outro lado , raramente

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olhava para a mesa de Antonio , receava que me fizesse sinal para ir para junto dele . Mas sentia que tinha os olhos em cima de mim e que estava nervoso , a ficar furioso . Paciência, pensei , de qualquer modo já decidi , amanhã deixo-o; não posso continuar com ele , somos demasiado diferentes . É certo que me adorava, que se dedicava totalmente a mim , mas como u m cachorrinho . Estava encantada com a maneira como Nino falava comigo , sem qualquer subserviência. Expunha-me o seu futuro , as ideias com base nas quais o construiria. Ouvi-lo estimulava-me a mente , quase como Lila em tempos o fazia. A sua dedicação por mim fazia-me crescer. Ele , sim, libertar-me-ia da minha mãe , ele que tudo o que queria era libertar-se do pai . Senti tocarem-me no ombro , era de novo Antonio . Disse , triste: «Vamos dançar.» «A minha mãe não quer» , sussurrei . Retorquiu nervoso , em voz alta: «Estão todos a dançar, qual é o problema?» Fiz um sorriso embaraçado a Nino , ele sabia que Antonio era o meu namorado . Olhou para mim sério , voltou-se para Alfonso . Fui dançar. «Não me apertes.» «Não te estou a apertar.» Reinava uma grande algazarra e uma alegria embriagada. Dançavam os jovens , os adultos e as crianças . Mas eu sentia o que havia realmente por trás da aparência festiva. As caras torcidas dos familiares da noiva, principalmente das mulheres , revelavam um descontentamento belico­ so . Haviam-se sacrificado para comprar a prenda e a roupa que traziam vestida, endividaram-se , e agora eram tratados como pedintes , com vi­ nho de má qualidade e atrasos intoleráveis no serviço? Porque é que Lila não intervinha, porque é que não protestava com Stefano? Eu co­ nhecia-os . Continham a raiva por amor de Lila, mas no fim da festa, quando ela fosse mudar de roupa, quando regressasse vestida com o traje de viagem, quando já tivesse distribuído as lembranças , quando já se tivesse ido embora, toda elegante , ao lado do marido , então rebenta­ ria uma rixa monumental , que daria origem a ódios que durariam meses e anos , e a despiques e ofensas que envolveriam maridos , filhos , todos eles com a obrigação de mostrar às mães e às irmãs e às avós que sa­ biam ser homens . Eu conhecia-os . Via os olhares ferozes que os rapazes dirigiam ao vocalista e aos músicos , que olhavam de maneira incorrecta para as suas namoradas , ou se lhes dirigiam com expressões alusivas . Via como Enzo e Carmela falavam enquanto dançavam e via também

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Pasquale e Ada sentados à mesa. Era evidente que antes da festa termi­ nar começariam a andar juntos , e depois ficavam noivos , e com toda a probabilidade dentro de um ano , dentro de dez anos , casariam. Via Rino e Pinuccia. No caso deles tudo aconteceria mais depressa . Se a fábrica de sapatos Cerullo se concretizasse a sério , dentro de um ano no máxi­ mo teriam uma festa de casamento não menos faustosa do que aquela. Dançavam, olhavam-se nos olhos, estreitavam-se com força. Amor e interesse . Charcutaria mais sapatos. Prédios velhos mais prédios novos . Eu era como eles? Ainda era? «Quem é aquele?» , perguntou Antonio . «Quem achas que é? Não o reconheces?» «Não .» «É o Nino , o filho mais velho do Sarratore . E aquela é a Marisa, lem ­ bras-te dela?» Não se importou nada com Marisa, mas com Nino , sim. Disse , ner­ voso: «E tu primeiro levas-me ao Sarratore , para o ameaçar, e depois pões ­ -te a conversar durante horas com o filho? Mandei fazer o fato novo para estar a ver como tu te divertes com aquele , que nem sequer cortou o cabelo e nem pôs uma gravata?» Largou-me no meio da sala e dirigiu-se em passo rápido para a porta de vidros que dava para o terraço . Fiquei sem saber o que fazer durante alguns segundos . Ir ter com Antonio . Voltar para junto de Nino . Tinha os olhos da minha mãe em cima de mim, embora o seu olho estrábico parecesse olhar noutra direc­ ção . Tinha os olhos do meu pai em cima de mim, e aquele olhar era feio . Pensei : se voltar para junto de Nino , e não for ter com Antonio ao ter­ raço , será ele a deixar-me , e para mim é melhor assim. Atravessei a sala enquanto a orquestra continuava a tocar e os pares continuavam a dançar. Sentei-me no meu lugar. Nino pareceu não ter feito o mínimo caso daquilo que se passou . Agora estava a falar, da sua forma torrencial , da professora Galiani . Estava a defendê-la perante Alfonso , que eu bem sabia como a detesta­ va. Dizia ele que também acabava por discordar dela muitas vezes - era demasiado rígida - , mas como professora era extraordinária, sempre o encorajara, transmitira-lhe a capacidade de estudar. Tentei inserir-me na conversa. Sentia urgência em deixar-me agarrar de novo por Nino , não queria que ele começasse a discutir com o meu companheiro de turma como até instantes antes discutira comigo . Tinha necessidade - para

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não ir a correr fazer as pazes com Antonio e dizer-lhe entre lágrimas: sim, tens razão , não sei o que sou nem o que realmente quero, uso-te e depois deito-te fora, mas a culpa não é minha, sinto-me metade e meta­ de , perdoa-me - de que Nino me puxasse de modo exclusivo para dentro das coisas que ele sabia, para dentro das suas capacidades , que me reconhecesse como sua semelhante . Por isso quase lhe tirei as pala­ vras da boca e, enquanto ele se esforçava para retomar o discurso inter­ rompido, enumerei os livros que a professora me emprestara desde o início do ano e os conselhos que me dera. Fez que sim com a cabeça, um pouco amuado , e recordou-se de que a professora, tempos antes , lhe emprestara também um desses textos , e começou a falar sobre ele . Mas eu tinha uma necessidade crescente de recompensas que me distraíssem de Antonio , e perguntei-lhe , sem nexo nenhum: «Quando sai a revista?» Olhou-me com um ar duvidoso , ligeiramente apreensivo: «Saiu há duas semanas .» Tive um sobressalto de alegria e perguntei-lhe: «Onde a encontro?» «Vendem-na na livraria Guida. De qualquer maneira, posso arranjar-ta eu .» «Obrigada.» Hesitou e depois disse: «Mas o teu texto não saiu , concluíram que não havia espaço .» Alfonso fez imediatamente um sorriso de alívio , e murmurou: «Ainda bem.»

62 . Tínhamos dezasseis anos . Eu estava diante de Nino Sarratore , Alfon­ so e Marisa, e esforçava-me para sorrir, dizia com fingida indiferença: «Está bem, há-de haver outra oportunidade»; Lila encontrava-se na outra extremidade da sala - era a noiva, a rainha da festa - , e Stefano falava-lhe ao ouvido e ela sorria. O longo e cansativo almoço de casamento estava a terminar. A banda tocava, o vocalista cantava. Antonio , de costas , comprimia no peito a dor que eu lhe causara e olhava para o mar. Enzo talvez estivesse murmuran­ do a Carmela que gostava dela. Rino de certeza que já assim fizera com Pinuccia, que falava com ele olhando-o nos olhos . Pasquale , muito pro-

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vavelmente , vagueava pela sala assustado , mas Ada arranjaria maneira, antes da festa terminar, de lhe arrancar da boca as palavras necessárias . Havia algum tempo que se repetiam os brindes com alusões obscenas , e nessa arte destacava-se o negociante de metais . O chão estava salpicado de molho que esguichara de um prato que uma criança deixou cair, de vinho derramado pelo avô de Stefano . Engoli as lágrimas . Pensei: talvez publiquem o meu texto no próximo número, talvez Nino não tenha insis­ tido o suficiente , talvez seja melhor eu mesma tratar disso . Mas não disse nada, continuei a sorrir, até arranjei forças para dizer: «Aliás , já discuti uma vez com o padre , discutir segunda vez seria inútil .» «Exactamente» , disse Alfonso . Mas nada atenuava a desilusão . Lutava para me libertar de uma espé­ cie de turvação na cabeça, uma queda de tensão dolorosa, e não conse­ guia. Concluí que considerara a publicação daquelas poucas linhas , e a minha assinatura impressa, o sinal de que eu tinha realmente um desti­ no , que a canseira de estudar me elevava, sem dúvida, a algum lugar, que a professora Oliviero tivera razão em impulsionar-me para a frente e em abandonar Lila. «Sabes o que é a plebe?» «Sim, professora.» Na­ quele momento eu soube o que era a plebe , com muito mais precisão do que quando , anos antes , ela mo perguntara. A plebe éramos nós . A plebe era aquela luta por comida e vinho , aquela altercação sobre quem é que devia ser servido primeiro e melhor, aquele chão sujo que os criados de mesa pisavam para a frente e para trás , aqueles brindes cada vez mais ordinários . A plebe era a minha mãe , que tinha bebido e agora estava encostada ao ombro do meu pai , que estava sério , e ria-se , de boca es­ cancarada, das alusões sexuais do comerciante de metais . Riam-se to­ dos , até Lila, com o ar de quem tem um papel a desempenhar e o leva até ao extremo . Provavelmente nauseado pelo espectáculo em cena, Nino levantou-se e disse que se ia embora. Combinou com Marisa regressarem a casa juntos e Alfonso prometeu acompanhá-la, à hora combinada, até ao lu­ gar estabelecido . Ela pareceu muito orgulhosa de ter um cavaliere tão educado . Perguntei a Nino , hesitante: «Não queres cumprimentar a noiva?» Fez um gesto largo , balbuciou qualquer coisa a respeito do vestuário e , sem um aperto de mão sequer, um aceno qualquer a mim ou a Alfon­ so , dirigiu-se para a porta com o seu andar bamboleante . Sabia entrar e sair do bairro como queria, sem se deixar contaminar. Podia fazê-lo , era

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Elena Ferrante

capaz de fazê-lo , talvez tivesse aprendido anos antes , na altura da tu­ multuosa mudança que quase lhe custara a vida. Duvidei que eu fosse capaz de fazê-lo . Estudar não chegava. Podia ter dez nos trabalhos , mas aquilo era apenas escola; a revista, por sua vez , cheirara o meu texto , o texto que era meu e de Lila, e não o impri­ mira. Nino sim, podia tudo . Tinha o rosto , os gestos , o andar de alguém que faria sempre melhor. Quando ele desapareceu , pareceu-me ter desa­ parecido a única pessoa em toda a sala que tinha a energia para me levar dali para fora. Depois tive a impressão de a porta do restaurante se ter fechado com uma rajada de vento . Na verdade , não houve vento , nem tão-pouco bater de portas . Simplesmente aconteceu aquilo que era previsível que acon­ tecesse . Apareceram, apenas para o bolo de noiva e para as lembranças do casamento , os bonitos e elegantes irmãos Solara. Circularam pela sala, cumprimentando este e aquele com o seu ar de patrões . Gigliola lançou os braços ao pescoço de Michele e levou-o a sentar-se a seu lado . Lila, com um rubor repentino na garganta e em tomo dos olhos , puxou o marido energicamente pelo braço e disse-lhe qualquer coisa ao ouvi­ do . Silvio fez um ligeiro gesto de cabeça aos filhos , Manuela olhou-os com orgulho de mãe . O vocalista começou a cantar Lazzarella , imitando sofrivelmente Aurelio Fierro . Rino convidou Marcello a sentar-se , com um sorriso amigável . Marcello sentou-se , desapertou a gravata, cruzou as pernas . O imprevisível só nessa altura se revelou . Vi Lila perder a cor, tomar­ -se pálida como era em miúda, mais branca do que o vestido de noiva, e os olhos tiveram aquela repentina contracção que os transformava em duas fendas . Tinha uma garrafa de vinho na frente , e temi que o seu olhar a trespassasse com uma violência tal que a fizesse em mil estilha­ ços , com o vinho a esguichar por todo o lado . Mas ela não estava a olhar para a garrafa. Olhava para mais longe , olhava para os sapatos de Mar­ cello Solara. Eram sapatos Cerullo para homem. Não o modelo que estava à ven­ da, não era aquele com a fivela dourada. Marcello tinha calçados os sapatos comprados tempos antes por Stefano , seu marido . Era o par que ela executara juntamente com Rino , fazendo e desfazendo durante me­ ses , arruinando as mãos .

Índice

Índice das Personagens

Prólogo Infância

-

-

Apagar o rasto História de dom Achille

Adolescência

-

História dos sapatos

9

11 17 67

ÜBRAS DA AUTORA NESTA EDITORA Crónicas do Mal de Amor

ÚLTIMOS LIVROS NESTA COLECÇÃO 1 89 . Vladimir Nabokov: Ada ou Ardor 1 90 . Cormac McCarthy: A Travessia 1 9 1 . Dalton Trevisan: O Vampiro de Curitiba 1 92 . Dalton Trevisan : Novelas nada Exemplares 1 9 3 . Dalton Trevisan : A Polaquinha 1 94 . Clarice Lispector: Um Sopro de Vida (Pulsações) 1 95 . Junot Díaz:

É assim Que A Perdes

1 96 . Clarice Lispector: Laços de Família 1 97 . Irene Némirovsky : O Vinho da Solidão 1 98 . Denis Johnson : Anjos 1 99 . Luigi Pirandello: O Falecido Mattia Pascal 200 . Vladimir Nabokov : Riso na Escuridão 20 1 . Dalton Trevisan : Guerra Conjugal 202 . Dalton Trevisan : A Trombeta do Anjo Vingador 203 . Vladimir Nabokov: A Verdadeira Vida de Sebastian Knight 204 . Alice Munro : Amada Vida 205 . Hjalmar Sõderberg: O Jogo Sério 206 . Vladimir Nabokov: Lolita 207 . Michel Houellebecq: As Partículas Elementares 208 . Vladimir Nabokov: Pnin 209 . Cormac McCarthy : O Conselheiro 2 1 0 . Kate Atkinson : Vida Após Vida 2 1 1 . A . M . Homes: Assim para Nós Haja Perdão 2 1 2 . Jhumpa Lahiri: A Planície 2 1 3 . Alice Munro : Vidas de Raparigas e Mulheres 2 1 4 . Rachel Kushner: Os Lança- Chamas 2 1 5 . Isaac B ábel : Contos e Diários 2 1 6 . Hermann Broch: A Morte de Virgílio 2 1 7 . Elena Ferrante: Crónicas do Mal de Amor 2 1 8 . Margaret Atwood: Ressurgir 2 1 9 . Katherine Anne Porter: A Torre Inclinada e Outros Contos 220 . Nathan Filer: O Choque da Queda 22 1 . Alice Munro : Falsos Segredos 222 . Marguerite Duras : Moderato Cantabile 223 . Marguerite Duras : Olhos Azuis Cabelo Preto 224 . Saul Bellow : Agarra o Dia 225 . Michel Houellebecq: Plataforma 226 . Saul Bellow : Henderson , o Rei da Chuva 227 . Alice Munro : Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento 228 . Flannery O ' Connor: O Céu É dos Violentos 229 . Saul Bellow : O Planeta do Sr. Sammler 230 . Cormac McCarthy: Filho de Deus

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