Dos Calundus Ao Candomblé
November 17, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Do Calundu ao Candomblé Presentes no Brasil durante todo período colonial, os rituais de fé africanos ganhar am seu primeiro templo no início do século XIX, erguido nos fundos de uma igreja em Salvador Desde o século XVII se tem notícias de cultos africanos em terras brasileiras. De fa to, há cerca de vinte anos uma imensa massa de informações sobre o que se convencionou chamar calundu colonial começou a ser revelada por historiadores e antropólogos brasi leiros, que, investigando nos arquivos públicos e da Santa Inquisição, se depararam não apenas com novos dados mas também com novas interpretações sobre um tema até então mal con hecido. Os animadores desses misteriosos cultos de origem africana começaram então a ocupar a cena historiográfica. Os adeptos dos calundus organizavam suas festas públicas na residência de uma pessoa importante da comunidade, ou então em casas também destinadas a outras ocupações. Não tin ham templos propriamente ditos, mas também não se tratava de simples cultos domésticos , uma vez que tinham um calendário de festas, iniciavam vários fiéis em diferentes funções e eram freqüentados por um número razoavelmente grande de pessoas, inclusive branco s, vindos de diversos arraiais. Ademais, o sacerdote principal tinha condições de ga nhar bem a vida com o atendimento individual e se tornar financeiramente indepen dente ao prestar à população serviços essenciais que o Estado colonial não assegurava sati sfatoriamente. A documentação da época permite identificar três tipos de sacerdócio, às vezes reunidos numa mesma pessoa, como Luzia Pinta, que era calunduzeira, curandeira e adivinhadeira. Isso significa que, além de oficiantes religiosos, esses personagens sabiam prepa rar tisanas, cataplasmas e ungüentos aliviavam os males corriqueiros habit antes da colônia, eram também capazesque de curar doenças mais graves como ados tuberculose, a varíola e a lepra, usando os recursos da farmacopéia tradicional, participaram in clusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em meados do século XIX; também sabiam curar distúrbios mentais ou espirituais, usando tratamentos combinados e co mplexos. Na cidade de Rio Real, no interior baiano, o Santo Ofício identificou o c aso de um senhor empresário que pagou caro por pelo menos duas escravas curandeira s afamadas, montando com elas uma espécie de clínica onde se praticavam vários tipos d e cura, e dividindo com elas todos os lucros. Desses registros, surgiram notícias de curandeiros e adivinhadores sendo recebidos em monastérios, nos meios ricos, on de eram bem pagos, e até agraciados pelo rei de Portugal por bons serviços prestados . A eficiência dos saberes africanos era pública e notória, mas na prática sua existência questionava o monopólio da cura atribuído à Igreja e mesmo à medicina oficial. Como o escravismo se configurava como um regime de opressão, sempre se pensou que os calundus tivessem sido duramente perseguidos. Mas, de fato, se isso fosse rea lidade, seus líderes jamais poderiam ter se estabelecido estavelmente, como, por e xemplo, Luzia Pinta, que se manteve atuante durante vinte anos na cidade mineira de Sabará. Na verdade, existia no seio da classe governante um debate constante a respeito da melhor maneira de controlar a massa escrava e liberta. Se a política tirânica parece ter predominado nos períodos de crise, em grande parte do tempo foi a política moderada que predominou. Assim, desde o século XVII os calundus funcionav am normalmente no Brasil, pelo menos até que seus líderes se tornassem muito visíveis, angariassem clientela branca ou se envolvessem em revoltas. Faziam parte da pai sagem social porque eram funcionais, respondiam a várias necessidades de uma popul ação carente e não pretendiam ser seitas secretas. Sua vocação era se tornar, como na África , instituições públicas reconhecidas. Desse lado do Atlântico, os calundus de diversas origens africanas, como a banta ( das regiões ao Sul da África, como Angola, Congo, Moçambique) e jeje (da África Ocidenta l, atual República de Benin), por exemplo, acabaram aderindo ao Catolicismo. Já o si ncretismo com os cultos ameríndios deu-se apenas com os bantos, misturarando tradições
africanas, católicas e indígenas no mesmo ritual, dando origem ao que se convencion ou chamar umbanda, e algo tão característico do Brasil e de alguns países latinos. Quando falamos do Calundu Jeje, do Pasto de Cachoeira, que era uma organização tipic amente urbana, e o primeiro a ter como endereço uma rua, embora de periferia. Já o c andomblé do Accu é um dos vários cultos jejes que começaram a funcionar no Recôncavo Baian o em meados do século XIX, situados em freguesias urbanas apenas no nomes eram, na verdade, chácaras cercadas de mata atlântica. Esses cultos jejes eram mais marcadamente comunitários e com fortes tradições litúrgicas , as que foram implantadas na Bahia. Nesse processo, receberam apoio dos calundu s bantos existentes, que detinham um saber ritual acumulado, bem adaptado ao mei o. O próximo passo, ousado, nessa trajetória de constituição da religião afro-brasileira, seriabuscar precisamente organizar o Foi culto cidade, no exibi-lo instituição que urbana ima, sua oficialização. emna Salvador, bairrocomo da Barroquinha, essalegít t ransição foi tentada com relativo sucesso. Segundo as tradições orais dos nagôs (africanos iorubas, originários de regiões da Nigéria, Benin e Togo) baianos, o primeiro candomblé de sua linhagem foi fundado em terras situadas atrás da capela de Nossa Senhora da Barroquinha, no centro histórico de Sal vador. Segundo se conta, existia uma irmandade de negros ali funcionando, cujos associados teriam sido os fundadores africanos. Hoje, esse candomblé é um dos maiore s e mais respeitados do Brasil, chama-se oficialmente Ilê Axé Iyá Nassô Oká, em homenagem à sua fundadora principal, mas é popularmente conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federação. Segundo as tradições orais da Casa Branca, a grande novidade introduzida pelo terrei ro da Barroquinha foi ter organizado, pela primeira vez, o candomblé como sociedade.
CalunduQue poderia significar isso? Vamos dar uma voltinha na África, para ter um a visão mais abrangente dessa história. Em meados da década de 1830 a capital do maior dos Estados nagô-iorubás, o império de Oyó, foi saqueada pelas tropas fundamentalistas do califado de Sokotô e do emirado de Ilórin. Começaria então um grande êxodo da população de sa região, fundando uma nova capital e reorganizando as forças do império em um territór io mais ao sul. De fato, a queda da capital de Oyó provocou uma guerra civil destr uidora, que se prolongaria até o final do século. Verdadeiras multidões de prisioneiro s dessa guerra vieram parar na Bahia como escravos, de modo que, em meados do sécu lo XIX, mais da metade da população escrava baiana já era nagô-iorubá. Subgrupos étnicos de todas as regiões ocupadas pelos iorubás na África Ocidental, a chamada Iorubalândia, com o oyós, ijexás, ketos, efans, dentre vários outros, trouxeram suas divindades para o e xílio, as quais foram sendo assentadas no terreiro da Barroquinha. Ao mesmo tempo al gumas associações urbanas daquela origem, chamadas egbés, foram sendo organizadas clan destinamente na Bahia, desde as primeiras décadas do século XIX. A maioria desaparec eu com o tempo, deixando, entretanto, alguns traços visíveis, títulos, máscaras, cantiga s ou objetos de culto, associações femininas cívico-religiosas. Além do bem sucedido cul to dos orixás, também ficou pra contar a história o culto dos Eguns (almas de mortos), que mantém apenas alguns terreiros, mas dá ainda hoje mostras de vitalidade. Por causa desse grande contingente nagô-iorubá, a Bahia foi levada em consideração pelos estrategistas da reorganização do Império. As tradições contam que vieram pessoas dos esc alões superiores dos estados iorubás, em missão secreta, para organizar os cultos asse ntados na Barroquinha e articulá-los aos egbés baianos. A mais importante delas foi Iyá Nassô, personalidade do primeiro escalão do cerimonial do palácio de Oyó. Essas pessoa s criaram uma nova forma de organização, ao estruturar o grande candomblé de Ketu tal qual é conhecido hoje. O candomblé da Barroquinha foi o espaço que abrigou um grande acordo político reunindo os nagô-iorubás da Bahia, sob a liderança dos partidários das divindades Oxóssi de Ketu e Xangô de Oyó. Lembremos das duas festas principais do calendário da Casa Branca que c omemoram sua fundação: a principal, dedicada a Oxóssi, no dia de Corpus Christi, e a s
egunda, dedicada a Xangô, no dia de São Pedro. O compromisso da elite dirigente foi firmado na estrutura espacial básica do candomblé: o terreiro, no seu conjunto, pert ence a Oxóssi, o onilé, o senhor da terra, enquanto que o barracão central, lugar da f esta pública, pertence a Xangô, o onilê, o senhor do palácio. O acordo entretanto contou com vários outros subgrupos iorubanos aliados. Do ponto de vista ritual, o caráter fundamentalmente inovador do candomblé da Barroq uinha foi que, pela primeira vez na história da religião africana, o culto de todos os orixás foi reunido no mesmo templo, o que pressupõe uma ordem unificada das hiera rquias dos diversos cultos, sob o comando da iyalorixá, a sacerdotisa suprema. Além do mais, as lideranças dos egbés iorubanos da Bahia foram convocadas, recebendo título s no culto dos principais orixás. Essas lideranças eram eventualmente dirigentes de organizações oficiais, como a irmandade do Senhor dos Martírios ou a devoção feminina da S enhora Boa Morte, fundada na igreja da Barroquinha. O candomblé deixou portanto de serda apenas uma casa de culto para tornar-se uma organização político-social-religi osa complexa.
Na composição do candomblé da Bahia, as diferentes etnias da Iorubalândia, como os ijexás e efans, numericamente mais expressivos do lado de cá, não poderiam ser ignoradas. A ssim, no barracão da festa pública, foram plantados quatro pilares centrais represen tando os quatro cantos do país iorubá, cada pilar dedicado a um dos regentes da casa , ao Oxóssi de Ketu, ao Xangô de Oyó, à Oxum de Ijexá e ao Oxalá de Efan. Essas são as quatro tradições mantidas na Casa Branca: os candomblés de Ketu na Bahia não seguem apenas a tr adição jeje-nagô, mas também as tradições de outras etnias: oyó (ou iorubá-tapá), ijexá e aon (mesma coisa?) Calundu A memória relata que, adauma certa altura, terreiro da Barroquinha foi invad ido pelas oral forças policiais província, sendo oo candomblé obrigado a abandonar o loca l, mas ninguém tem a menor idéia de quando se deu a mudança. Sabemos que, em 1855, a C asa Branca já funcionava no lugar onde atualmente se encontra, no bairro da Federação. A década de 1850 foi de predomínio do grupo conservador liderado por Francisco Gonçal ves Martins, um homem da linha dura que havia sido chefe de Polícia durante o gran de levante dos malês, em 1835. 1851 foi o ano de chegada da ideologia do progresso ao Brasil, quando então as elites sociais tentaram esquecer o passado colonial e adotar um modelo moderno de sociedade, no rastro da Europa e da América. Nesse nov o contexto, era preciso provar ao mundo que éramos ocidentais civilizados e para tan to incrementamos a imigração européia visando limpar nossa raça, o que, segundo doutrinas científicas então prestigiosas, era a única maneira de nos habilitarmos ao progresso. A perseguição ao candomblé da Barroquinha foi parte dessa política, que o obrigou a proc urar o seu lugar. A tirania colonial, mantida mesmo depois da independência política, não poderia jamais permitir que uma organização africana se tornasse centro. Por isso o candomblé da Barroquinha foi obrigado a recuar para a periferia, para o engenho Velho da Federação, onde até hoje gloriosamente se encontra, dividindo espaço na cidade de Salvador com outros terreiros, como o Gantois e o Axé Opô Afonjá, que mantêm viva a fé que atravessou o oceano. Referencia: Revista de História da Biblioteca Nacional e Professor Renato da Silve ira
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