PVI 002 - Linguagem e Desenvolvimento Humano

July 8, 2024 | Author: Anonymous | Category: N/A
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A Prática da Vida Intelectual Mário Chainho Aula 2 – Linguagem e Desenvolvimento Humano

Índice 1. Resumo da aula anterior 2. A linguagem como elemento interno e externo 3. Linguagem e desenvolvimento humano 4. A função representativa e as primeiras traduções da realidade 5. As dificuldade em desenvolver o uso da função expressiva 6. A função apelativa Resumo A linguagem é um elemento tanto interno como externo a nós e sempre existe uma tensão entre as duas coisas. O desenvolvimento humano utiliza-se da linguagem. São analisadas as relações entre as duas coisas usando as funções da linguagem, segundo Karl Bühler. A função representativa centra-se no referente e é utilizada pela criança para fazer as primeiras traduções da realidade. Trata-se de uma função basilar que suporta as outras e pode ser aperfeiçoada durante toda a vida, mas temos também de corrigir as deficiências da primeira infância. A função expressiva centra-se no emissor e só com um grande esforço chega a um grande nível de perfeição, devido à necessidade de desenvolver recursos expressivos e um estado de introspecção. A função apelativa centra-se na tentativa de influenciar o destinatário da mensagem e, embora os seus fins sejam os da vida activa, ela oferece também material para a vida contemplativa.

Na aula de hoje vamos continuar ainda a falar de aspectos introdutórios e que nos ajudam a delinear o percurso que vamos seguir aqui. Vamos andar um pouco à volta de algumas questões relacionadas com a linguagem. O desenvolvimento humano é essencialmente uma expansão em quantidade e qualidade do uso da linguagem. Uma pessoa com o corpo atrofiado pode perfeitamente se desenvolver humanamente, contudo, se ela tiver um corpo de atleta mas não possuir linguagem alguma é como se fosse apenas um ser humano em potencial. Para destrinçar um pouco este papel da linguagem vamos usar como instrumento a classificação das funções da linguagem do Karl Bühler.

1. Resumo da aula anterior Na aula introdutória disse que este curso não pretende abarcar todo o domínio da vida intelectual. Também não pretendo fazer concorrência a ninguém, menos ainda ao professor Olavo de Carvalho e ao COF (Curso Online de Filosofia). Estou aqui tentando atacar uma certa carência relacionada com o Método da Confissão. Claro que no COF o Método da Confissão está presente, foi explicado e é continuamente exemplificado, e o que aqui tento fazer é apenas dar um reforço. Como ajudar as pessoas a colocar em prática o Método da Confissão? Este é o meu ponto de partida. O Método da Confissão é o testemunho sincero, feito em solidão, que torna não apenas o nosso conhecimento mais claro mas também amplia a nossa visão das coisas. Falamos aqui do Método da Confissão como um processo cognitivo e não do exame de consciência prévio à confissão ritual, embora existam relações entre as duas coisas. Trabalhar a aplicação deste método significa, do meu ponto de vista, trabalhar concertadamente a solidão, a sinceridade e, claro, o testemunho. Este último tem alguns subitens:

atenção,

memória,

imaginação,

linguagem

e

expressão.

Felizmente, a cultura literária já nos dá uma grande ajuda em vários destes elementos. Infelizmente, o uso que as pessoas fazem da literatura parece estar ainda bastante aquém daquilo que é necessário para os fins do Método da Confissão, ainda que possa ser de altíssimo nível sob outros aspectos.

2. A linguagem como elemento interno e externo A linguagem não é uma coisa que temos inteiramente à nossa disposição e que possamos usar a nosso bel-prazer, como acontece com uma peça de roupa ou com um meio de transporte, que são coisas que permanecem sempre exteriores a nós. A linguagem é também algo que usamos mas ela é tanto exterior como interior a nós, o que já a coloca numa posição peculiar. Não usamos a linguagem da mesma forma que usamos os braços e as pernas. A linguagem é como se fosse um instrumento emprestado, pelo que ela nunca é bem nossa. Mas também não temos de a devolver porque ela não tem um dono, mas temos de a utilizar ou vamos perdê-la. Ou seja, a linguagem que usamos vem de outras pessoas e precisamos dos outros para mantê-la ou ela deixa de falar por nós. As pessoas que passam muito tempo em solidão, caso não se trate de algum tipo de treino especial, começam a ter dificuldades em falar e as próprias palavras começam a varrer-se da memória. Todos nós temos esta experiência de “perder palavras” apenas pela falta de uso. Por outro lado, a linguagem é o nosso instrumento mais interior. Podemos usar o corpo para transmitir muitas informações e mesmo sem a nossa vontade consciente já transmitimos inúmeros sinais através de gestos, olhares, alterações na respiração, etc. Esta parte da expressão não-verbal pode ser trabalhada por si só, seja na programação neurolinguística ou (de forma mais honesta) nas artes performativas. Por exemplo, na representação, o actor não pode entrar em palco e ficar imóvel apenas

declamando o texto, a não ser que o seu papel seja fazer exactamente isso. Mas também existe treino da linguagem não-verbal na mímica, na dança e até na música, aqui de forma indirecta. Contudo, o leque de coisas que a linguagem verbal pode transmitir é muito maior, mais versátil e pode se adaptar de forma quase mágica àquilo que pensamos, sentimos, desejamos, imaginamos. Por isso por vezes dizemos algo como “é exactamente isto que eu penso” ou “eu sinto exactamente assim como estou a dizer”, que não são frases para serem entendidas literalmente mas que expressam um maravilhamento ao vermos a linguagem se aproximar tanto de nós. Daqui resulta uma questão, que vou apenas assinalar, de saber se somos nós que usamos a linguagem ou se é a linguagem que nos usa a nós. Em termos funcionais, quando falamos ou escrevemos somos nós que usamos a linguagem, como é óbvio. A não ser por algum problema mental ou devido a algum estado emocional especial, não damos por nós a falar “do nada” mas sabemos que a nossa vontade (ou falta dela) dirigiu aquelas palavras e percebemos o rumo que o nosso discurso vai ter porque estamos no comando. Por vezes, podemos ficar transtornados e dizer coisas irreflectidas, que não correspondem ao que pensamos ou sentimos, mas foi uma emoção cega que nos conduziu a língua. Aí dizemos que “não estava em mim”. Esta imagem da pessoa estar “fora de si” por um uso inapropriado da linguagem já é bem representativa. Vamos esquecer agora aquelas situações em que a pessoa só consegue dizer a verdade quando está fora de si, o que também acontece, especialmente em ambientes compressivos. A questão de saber se a linguagem fala por nós ou não vai mais fundo do que nestas situações e revela-se em todo o seu esplendor não naqueles momentos em que estamos “fora de nós mesmos” mas precisamente quando achamos que as palavras estão a traduzir fielmente os nossos pensamentos, desejos, aspirações, etc. Estão a traduzi-los ou estão a criá-los? Temos aqui o dilema do histérico (usando o critério de

identificação de Olavo de Carvalho): eu estou a dizer o que estou a ver ou estou a ver o que estou a dizer?A situação de falar para depois ver e sentir em conformidade acontece constantemente a grande parte da população, especialmente nos dias de hoje com toda a parafernália de meios de manipulação de consciência em acção. Mesmo quando eu faço um esforço frio para distinguir as minhas percepções do meu discurso e me discipline para ver primeiro e falar depois, é inevitável que o meu discurso diga apenas parte do que vi e que acabe por se sobrepor ao que vi. O meu vocabulário vai direccionar automaticamente a minha percepção, ou seja, o meu olhar, os meus ouvidos. Assim, os meus sentidos estão atentos para algo para o qual eu já tenho um nome. E a minha forma de ver as coisas vai ser muito semelhante à forma como outras pessoas, que partilham do mesmo idioma que eu, também vêem as coisas. É como se dissesse, com algum exagero, que outra pessoa poderia ver por mim que não faria diferença. Eu posso tentar contrariar isto deliberadamente e prestar atenção em coisas para as quais não tenho nome ou que nem sequer consiga apresentar uma descrição, mas não posso fazer isto permanentemente. Na maior parte do tempo vou ter uma espécie de “olhar colectivo”, mesmo quando estou a tentar ser o mais sincero possível. Com isto não estou sugerindo que o ser humano não tem qualquer identidade real e que essa coisa da identidade seria apenas uma construção social ou linguística. Portanto, vamos esclarecer aqui algumas coisas. Nós não somos substâncias separadas que subsistem em si e por si, como acontece com Deus. Vivemos num universo que nos impõe certas condições materiais e temporais. Pertencemos a uma espécie que nos dá certas qualidades e faculdades. Crescemos numa determinada cultura, que nos fornece certos símbolos e também uma linguagem. Se não fosse esta partilha de qualidades e instrumentos que temos com outras pessoas, a convivência humana não seria possível. Cada pessoa teria as suas percepções únicas, numa chave única; teria de criar a sua linguagem e,

claro, não poderia comunicar com ninguém. Por outro lado, não nos diferenciamos uns dos outros apenas numericamente ou apenas por uma série de acasos que nos deram certos instrumentos. Existe algo que nos diferencia uns dos outros e que é um fundo de identidade própria e uma força decisória associada. É curioso que no ser humano isso acaba por ter também uma espécie de tradução física, porque sabemos que não existem dois rostos iguais e nem dois tons de voz que sejam exactamente idênticos. Claro que por vezes encontramos rostos e vozes muito semelhantes, o que causa espanto precisamente por ser tão raro. Nas espécies animais as variações de aparência e sons produzidos entre os espécimes é muito menor e em algumas espécies parece que os indivíduos foram todos produzidos em série a partir do mesmo molde. Claro que um especialistas consegue encontrar facilmente diferenças entre animais e plantas que ao leigo são invisíveis. Esta dupla natureza do ser humano permite a cada um de nós construir uma biografia pessoal inigualável que segue paralelamente a uma biografia colectiva feita de eventos que partilhamos em comum com outras pessoas, por exemplo, na família, na empresa, na escola, no país. Existe um jogo permanente entre uma identidade colectiva e uma identidade pessoal. Não dá para apagar uma sem apagar a outra, embora tenhamos muitas vezes essa tentação. Podemos querer apagar a nossa identidade colectiva porque achamos que o mundo se tornou num rebanho de idiotas ou porque estamos a pensar na salvação da alma ou por outra razão qualquer. Porém, se eu perder totalmente o contacto com os outros também irei perder aos poucos a linguagem que uso para falar comigo mesmo ou com Deus. E se renuncio totalmente ao contacto com o outro deixarei de ter um espelho onde me reflectir. A tentação inversa é a de dissolver a identidade pessoal numa identidade colectiva. Contudo, o sujeito que é um perfeito idiota útil ao serviço da causa ainda tem que ter algum fundo de identidade para continuar a ser útil. Se ele perder totalmente a identidade pessoal, então,

está pronto para entrar no hospício e perderá toda a utilidade. Por isso, a ideia de um totalitarismo perfeito, de um controlo mental total da população, parece utópica. Algum limite o processo deve ter a partir do qual começa a se invalidar a si mesmo e talvez até entre em colapso repentino, com consequências imprevisíveis. Quando uma coisa má acaba não está garantido que na sequência não venha outra ainda pior. Agora, onde está esse limite ninguém parece saber. Pela observação dos eventos das últimas décadas, o processo de controlo mental não tem um fim à vista e parece que há ainda muita margem de manobra para que as pessoas continuem dissolvendo a sua identidade pessoal numa estupidez colectiva antes de se tornarem totalmente inúteis. Para terminar este ponto, vamos voltar ao problema da linguagem, esse elemento que é tanto interior como exterior a nós. O problema não é se temos uma linguagem em comum com outras pessoas mas se a nossa linguagem é pobre, quase toda feita de termos utilitários de lugares comuns para agrado das massas. Quando isso é assim é inevitável sermos arrastados pelos eventos, o que impossibilita a obtenção de uma clarividência suficiente para tomarmos as decisões fundamentais em consciência. Parto do princípio de que todos aqui têm uma disposição para enriquecer a linguagem e a personalidade, que são coisas concomitantes. Claro que essa disposição nunca é tão firme como desejaríamos e falta sempre muita coisas mas essa é a nossa cruz e ao mesmo tempo a recompensa por sermos humanos, que é o privilégio de nos podermos orientar para algo acima de nós mesmos.

3. Linguagem e desenvolvimento humano A construção da personalidade assim como o desenvolvimento da consciência e da inteligência são impossíveis sem a linguagem. A linguagem faz parte do núcleo das coisas que nos são mais próprias, e

acaba por ser algo mais interior do que as sensações e as emoções. As nossas percepções e as nossas emoções são basicamente as mesmas que têm todos os seres humanos e também são largamente partilhadas por muitos animais. Já o mundo interior de cada pessoa é único, sendo composto das ambições, memórias, aberturas para a realidade, escolhas, etc. São estes elementos interiores aqueles que podemos personalizar, não as percepções, as sensações e nem sequer os raciocínios. E são estes elementos que são a matéria da construção da nossa personalidade. A linguagem e a imaginação são os mediadores da dialéctica entre a consciência que busca intensificar-se, construindo a história do eu, e o mundo exterior, fornecedor de materiais heterogéneos. Contudo, a linguagem é uma coisa que vem de fora, como já vimos. Assim, ela tanto é um instrumento para a nossa individuação como pode ser um factor que contribui para a nossa massificação. Isto é sempre assim e nunca terá solução. Geralmente não é um grande problema mas pode tornar-se numa catástrofe quando a linguagem pública é pobre, repetitiva e se volta contra a própria percepção. Aqueles que são mais atentos a estas questões dão-se conta do problema aos vinte, trinta, quarenta ou cinquenta anos. Contudo, tudo isto tem origem muito cedo, na tenra infância. É nesta altura que se começa a decidir o desenvolvimento ou atrofiamento humano. Hoje fala-se muito em adolescência prolongada mas isto parece-me uma perspectiva demasiado optimista. Já regredimos para a infantilização generalizada. Uma das consequências disso é a seguinte: a linguagem deixa de ser vista como um meio de traduzir a realidade e torna-se apenas numa forma de influenciar os outros. Nesta aula vou falar sobre as relações entre o desenvolvimento humano e a linguagem. Vou centrar-me sobretudo nos primeiros anos de vida, o que pode parecer algo remoto e sem grande interesse. O trauma da adolescência e da sua não superação, que hoje é regra, leva à criação de uma espécie de compensação, um fingimento: as pessoas passam a fazer de conta que nasceram aos 18 ou 20 anos. Mas se nós trazemos connosco

influências genéticas, astrais e coisas do género, tanto ou mais vamos trazer as marcas da primeira infância, onde as principais funções cognitivas começaram a ser desenvolvidas. Se alguma coisa começou cedo a dar para o torto, temos que voltar lá atrás e ver onde perdemos o rumo. Não se trata de uma volta à infância, que por um lado é impossível e, por outro lado, nós ainda somos aquelas crianças de alguma forma. O desenvolvimento humano, não é a abolição de fases anteriores, é a sua integração, pelo que algo daquilo que fomos ainda é possível contemplar e trabalhar de alguma forma. Existem inúmeras formas de descrever as relações entre linguagem e desenvolvimento humano. Vou usar como recurso a descrição das funções da linguagem feita por Karl Bühler, que o professor Olavo refere com frequência. Não nos interessa aqui o enfoque específico da teoria da linguagem mas vamos apenas usar alguns conceitos, que muitos já conhecem, porque são úteis à descrição que temos em vista. O enfoque aqui é sempre a descrição dos problemas, objectos, situações, etc., tais como eles me aparecem mas também de forma a serem reconhecidos por qualquer pessoa com um mínimo de inteligência e boa vontade. O nosso foco é o Método da Confissão e é por esse “prisma” ou “intenção” que irei abordar os temas por princípio. Claro que são possíveis muitos outros enfoques e podem ser feitos mais desenvolvimentos. Karl Bühler fala em três funções da linguagem: a representativa ou nominativa, centrada no referente; a expressiva, centrada no emissor; e a apelativa, centrada no destinatário. Existem outros autores que têm teorias um pouco diferentes sobre as funções da linguagem. Por exemplo, Roman Jakobson fala em seis funções da linguagem, ampliando a classificação de Bühler. As três funções suplementares da linguagem que ele apresenta interessam sobretudo a quem estuda a linguagem em si mesma. Para nós, que estamos a ver a relação entre a linguagem e o desenvolvimento humano num estágio infantil, levar em consideração seis funções da linguagem iria introduzir uma complexidade desnecessária. Mas é sempre bom saber que

existem outros sistemas de classificação porque podemos chegar a situações em que as três funções da linguagem apresentadas pelo Karl Bühler parecem ser insuficientes e precisamos de considerar alternativas, nem que seja para concluir que nenhuma serve e temos de ser nós a criar o nosso sistema de classificação1.

4. A função representativa e as primeiras traduções da realidade Comecemos, então, pela função representativa, que está associada às primeiras traduções que fazemos da realidade. As crianças passam muito rapidamente por algumas fases de uso da linguagem. Numa fase inicial, pré-verbal, o bebé chora e pode fazer alguns gestos para mostrar que tem algumas necessidades a serem supridas: ele tem fome, tem frio, tem calor, tem cólicas, tem a fralda suja, tem sono mas luta contra o sono. O bebé chora e os pais tentam adivinhar o problema, porque a criança só tem um sinal (que é o próprio choro) para representar várias coisas diferentes. Os sinais que o bebé emite são essencialmente reacções a estados corporais e ocasionalmente ele pode fazer um sorriso para o rosto da mãe. Note-se que nos primeiros meses os bebés vêm mal, de forma pouco nítida e apenas a curta distância. Aparentemente, não conseguem ver certas cores nem determinadas formas. Acresce que o bebé não sabe ainda muito bem onde estão os limites do seu corpo, por isso ele aperta o pé como se fosse uma coisa misteriosa. Tudo o que acontece ao bebé é como se acontecesse ao “mundo”, embora ele já tenha a percepção de que há algo mais para além daquilo que ele tem directamente acesso: já está aí a presença do ser. Mas a situação dele é como a de estar num segundo útero, um pouco mais dilatado, com mais coisas mas com menos segurança do que no útero materno. Tudo custa ao bebé. Ele precisa de mamar durante longos minutos para obter um pouco de leite. Depois fica com dor de barriga, quando esta passa fica com

prisão de ventre ou com diarreia. E isto é quando tudo corre bem. Quando a criança começa a usar a linguagem, entre um e dois anos de idade, ela já apurou bastante a visão e entende que ela não é o mundo e sabe que existem coisas “lá fora”. Note-se que a ideia ou vivência de um segundo útero não é abandonada, passa para um terceiro útero, que é composto pela família e pelo ambiente próximo. Depois passa para um quarto útero, que já inclui a escola escola e alguns lugares que ela costuma frequentar. Estas expansões são próprias do desenvolvimento humano mas a vida intelectual exige que se saia do útero, ou que o útero passe a ser o mundo inteiro ou Deus, para usar a imagem de São Paulo: “Pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (Actos 17:28). Mas isto não implica ser um “cidadão do mundo” ou ser muito viajado, embora alguma da experiência de vida e de desaculturação seja necessária. Sair do útero para entrar numa vida intelectual significa a libertação de certas condições mentais provincianas, seja em termos geográficos ou temporais. A vida intelectual, ao menos como aqui a vemos, é conseguir fazer uma subida do concreto e particular para o universal, mas também conseguir fazer uma descida em sentido inverso. Para isto obviamente que precisamos de uma boa amostra do leque de experiências humanas possíveis. Contudo, toda a experiência humana torna-se infrutífera para os nossos fins se não se transforma em linguagem. Há pessoas que tiveram experiências de vida muito ricas mas é como se tudo tivesse passado por elas sem deixar marcas. Por vezes a experiência até deixou marcas no corpo mas não se consolidou num acréscimo de visão. Assim, são coisas que simplesmente “aconteceram”, como se o sujeito estivesse apenas implícito, e os eventos ficam a boiar na memória. São como as palavras de um bêbado quando se senta ao lado de um surdo. As pessoas que não reflectem sobre a sua própria experiência não conseguem ver as relações de causa-efeito entre acontecimentos, não percebem quando poderiam ter tomado decisões que alterariam o rumo dos

acontecimentos e assim por diante. É o que se chama de falta de consciência biográfica. No máximo a pessoa tem uma consciência biológica, sabe que está numa certa fase da vida, que deverá viver mais tantos anos, que pode ficar doente, que pode engordar, que os cabelos vão clarear e outras coisas do género. Mas hoje até a própria consciência biológica está em causa devido às ilusões de juventude perpétua, e todos os produtos e hábitos que as pessoas adquirem e que lhes criam, ao menos por algum tempo, a sensação de que se desvincularem da sua própria idade. A transformação da experiência em linguagem é um processo natural. As crianças estão num meio que tem coisas e ali existe uma linguagem que dá nome às coisas. Então, elas começam a absorver tudo isso e ficam fascinadas com o processo. Ver a imagem de um elefante e dizer “é um elefante” é como se fosse um processo mágico: dizer o nome do ente é tomar posse dele, de certa forma. Nós dizemos que as crianças são naturalmente curiosas mas é algo mais profundo que isso. “Que animal é este?”, pergunta a criança quando vê um bicho. Ela não quer saber um nome apenas para aumentar o seu leque de palavras ou simplesmente para saber como se chama aquela criatura. O que ela realmente quer é tomar posse daquele animal. Claro que não é uma posse material, é uma posse mental, aliás, toda a posse é mental mas esquecemo-nos disto e passamos a substituí-la por símbolos materiais. Ao dizer o nome do animal, este já não é uma coisa estranha para a criança, já não é um ente externo, eventualmente ameaçador, mas passa a ser algo que veio para dentro do seu mundo mental e passou a ocupar um lugar lá. Ao mesmo tempo, se um dia tiver que lidar com aquele animal já não se sente totalmente despreparada. Quando a criança já tem um bom conjunto de entes nomeados, o processo pode entrar numa segunda fase, que é o de classificação. Existem entes muitos parecidos uns com os outros, ao ponto de causarem diversos erros de nomeação, enquanto outros são claramente distintos. A distinção entre animais e plantas é uma das mais essenciais e uma das primeiras a serem feitas. As classificações que as crianças fazem podem se aproximar

das normas científicas ou podem ser apenas funcionais ou mesmo totalmente imaginárias (por exemplo, a criança pinta os desenho de um sapo e de um elefante de cor-de-rosa e diz que são irmãos, mas de certa forma ela sabe que isso é apenas válido na sua imaginação). Existem os animais da quinta, animais do mar, animais “fofinhos”, monstros, etc. Assim, os entes passam a ocupar determinadas casas do mundo mental delas. Este processo nunca termina, ou nunca deveria terminar, porque há sempre novos entes que vamos tendo conhecimento. No fundo, é um processo de nomeação em dois andares: a nomeação directa e a classificação. Em biologia a classificação é a inclusão dos entes em espécies, géneros, famílias, ordens, classes, divisões, reinos e domínios. Mas este é apenas um sistema de classificação, existem muitos outros criados para abranger os vários tipos de entes e de fenómenos possíveis, alguns deles que são puramente abstractos. E como todo o ente pode ser encarado sob diversos pontos de vista, os sistemas de classificação podem entrar em conflito. Por exemplo, o sistema de classificação da biologia pode entrar em choque com o pseudo-sistema de classificação da ideologia de género. Este choques poderiam ser facilmente evitados se fossem explicitados quais são os pontos de vista pressupostos, as finalidades, o âmbito, os critérios usados, os fundamentos, etc. No entanto, nós vemos que quase todas as discussões no mundo não produzem qualquer luz, porque cada lado está empenhada apenas em ver as coisas desde a sua perspectiva e frequentemente nem conseguem explicar essa perspectiva ao outro, apenas conseguem colocar-se nela mais ou menos bem e dizer o que estão a ver desde aquele ponto de vista. Muitas vezes nem sequer temos uma disputa entre pontos de vista diferentes mas os debatadores simplesmente estão a falar de objectos diferentes. E pior ainda, esses objecto nem sequer têm de existir, podem ser apenas construções mentais. Mas isso não vai diminuir em nada o afã de discutir. Agora a discussão

pode entrar em velocidade de cruzeiro porque já não há mais uma realidade que faça as partes se deterem e prestar contas. Estas situações podem ocorrer por falta de método. Os jovens passam milhares de horas na escola mas ninguém os ensina a estabelecer os pressupostos de uma discussão séria. Mas cada vez mais a debate é desonesto por vontade das partes: cada lado entra no jogo com a firme disposição de não ver as coisas como o outro lado as vê. Então, torna-se apenas numa disputa de força psicológica e aí têm vantagem os psicopatas, o pessoal desonesto com forças importantes por trás, etc. Um intelectual sério não entra nestes debates para discutir educadamente. A função dele é apontar os erros fundamentais, desmascarar a fraude. Já alertava Aristóteles que só se deve discutir com quem aceita os princípios da discussão honesta. Conhecer todos os sistemas de classificação até aos últimos pormenores e conseguir articulá-los é algo virtualmente impossível, mas mesmo que alguém conseguisse fazer isso não obteria daí o conhecimento de um único ente mas teria apenas critérios de identificação. A própria complexidade do processo desencoraja o leigo de saber o nome das coisas e a sua posição num sistema de classificação, porque é como entrar numa repartição pública e enfrentar uma burocracia infernal. Mas de alguma forma temos que contar com isto porque é uma orientação básica. Tudo remonta, em última análise, ao sistema de classificação de Aristóteles e sempre podemos chamá-lo para arbitrar as questões. Aristóteles sabia que a linguagem era um instrumento, contudo, as palavras nem sempre são dóceis à nossa manipulação. Então, ele percebeu que era necessário fazer uma purificação da linguagem, o que já tinha começado a ser realizado por Sócrates e Platão mas Aristóteles operou isso de forma mais sistemática. Antes dos livros de lógica, que em si são “apenas” uma propedêutica, ou seja, um ensino prévio, estão os tratados sobre a interpretação (diríamos hoje semântica) e sobre as categorias. Seja por causa desta burocracia classificatória, seja por outros motivos, o processo de nomeação vai perdendo o seu encanto à medida que

a criança entra na juventude. Acontece que a motivação inicial, que era a presença dos entes, como que desaparece e é substituída pelo processo mental da classificação, seja científica ou por algum critério utilitário ou relacionado com o divertimento. Podemos “agradecer” esta perda de interesse ao sistema de ensino obrigatório, com as suas aulas enfadonhas e também com a famosa “socialização” nos intervalos das aulas, que obriga os jovens a aprender uma linguagem ridícula para serem aceites por um bando de imbecis. Quando a presença das coisas é colocada entre parênteses podem começar a surgir perguntas como: “a realidade é real?” Não é coincidência que os jovens que passam pelo processo normal de ensino se sintam atraídos por argumentos relativistas ou por utopias, consoante a inclinação de cada um. Se o dito mundo real perdeu todo o encanto e sentido, o mundo das ideias aparece como um refúgio e como a verdadeira realidade que estaria encoberta pelo véu de ilusões por onde nos movemos. Todo o processo de classificação dá-nos apenas entes estáticos, uma espécie de formas platónicas, que traduzem o impacto da sua presença. Mas os entes do mundo real não estão pairando imóveis no mundo das ideias, estão agindo e em relação uns com os outros, encontram-se em diversas situações. Assim, uma linguagem não pode ser apenas constituída de nomes, precisa de verbos, adjuntos adnomiais, adjuntos adverbiais, complementos e assim por diante. A linguagem assim composta já pode começar a traduzir a realidade e o processo de aperfeiçoamento da mesma não tem limite. Não apenas pode ser aperfeiçoado ao longo da vida de cada um de nós como é aperfeiçoado ao longo de gerações. Claro que não é um progresso

linear.

A

geração

actual

de

escritores

não

escreve

necessariamente melhor do que a anterior e essa melhor do que a que a precedeu assim sucessivamente. Para isso acontecer, a actual geração de escritores teria de ter apreender tudo o que a anterior sabia em termos do uso da linguagem e ainda acrescentar algo mais. Na realidade, o que vemos

ao longo da História são subidas e quedas vertiginosas na qualidade da escrita e da compreensão da linguagem. E em termos de grande blocos culturais, também não podemos dizer que os melhores escritores de hoje superam os melhores da Antiguidade que escreviam em latim, grego ou sânscrito. Podem superá-los em alguns aspectos mas não noutros. Tudo isto ainda se enquadra dentro do uso representativo da linguagem. Dentro deste domínio, cada um de nós tem que fazer uma questão a si mesmo: estou satisfeito com a minha capacidade de descrever objectos e situações? Completamente satisfeito nem Shakespeare devia estar no fim da vida. Vamos pensar num exemplo banal. Vou supor que ontem fiz compras numa nova loja e quero descrever a um amigo como foi essa experiência. Ele pode estar interessado em alguns produtos que se encontram lá mas é uma pessoa muito ocupada e não quero que perca tempo com algo que afinal não valia a pena. Vou ter de explicar tudo à primeira e não vai haver tempo para questões. Porque essas questões querem dizer que o meu relato tem lacunas importantes, tem ambiguidades que conduzem a mal-entendidos, tem demasiados termos genéricos (“encontrei uma coisa”), etc. Podem também imaginar uma carta, não sei se alguém aqui já escreveu uma carta. Leva muito tempo a chegar, tem que ser tudo pensado. O meu critério é o seguinte: para ter uma capacidade descritiva suficiente para aplicar o Método da Confissão eu tenho que conseguir imaginar, em relação a uma situação banal, todo o relato que eu faria a um terceiro, incluindo as reacções de um leitor ou ouvinte. Se isto pode parecer algo muito difícil mas não é, requer apenas um pouco de prática. E conseguir fazer isto não significa que você já se tornou um escritor, é preciso muito mais do que isto. O professor Olavo dá muitas dicas sobre como aperfeiçoar estes aspectos da linguagem e não é preciso tentar inventar coisas novas apenas para ser diferente. Desde logo, é preciso enriquecer o vocabulário, e aí voltamos à fase infantil: o que é isto? Note-se que é basicamente a mesma

questão de Sócrates e a motivação era basicamente a mesma: ante o espanto provocado pela presença do ser, tanto Sócrates como a criança perguntam: o que é? Claro que num nível filosófico não nos contentamos apenas com um nome mas vamos mais fundo, mas se nem o nome temos dificilmente vamos a parte alguma. Se não temos o nome das coisas elas realmente são apenas “coisas”, presenças inertes sem significado para nós. E claro que por vezes temos que nos contentar com um nome provisório. Então, sei o nome das plantas, árvores e animais que estão nos ambientes pelos quais me desloco? Consigo identificar as cores do céu em diferentes fases do dia ou as cores dos objectos da minha sala? Sei o nome dos utensílios que estão na minha cozinha? Se vocês têm um familiar ou amigo com uma oficina, sabem o nome daquelas ferramentas? Para cada ambiente em que nos encontramos podemos fazer este questionamento e ir atrás dos termos em falta. Portanto, este é o método de ir das coisas às palavras. Claro que a literatura obriga-nos constantemente a fazer o oposto, ir das palavras às coisas. São duas formas de enriquecer o vocabulário que se complementam. Mas isto é apenas o início do enriquecimento do vocabulário. Temos que ir atrás também de objectos com os quais não temos contacto directo e de coisas que estão aí mas não são “palpáveis”, como os elementos da sociedade. Para isso, a consulta de alguma documentação técnica pode nos ajudar mas interessa-nos sobretudo a grande literatura. Alguns escritores são úteis neste ponto porque têm um vocabulário rico. Não vou dizer para vocês lerem Aquilino Ribeiro, que tem um vocabulário avassalador (mas quem quiser pode se aventurar), mas Camilo Castelo Branco é muito mais acessível. Pode ser lido consultando o diccionário apenas duas ou três vezes por página, o que não é difícil de fazer com um smartphone. Se você precisa de consultar o diccionário dezenas de vezes por página para ler Camilo, isso quer dizer que o seu vocabulário está muito deficiente. Não é para se sentir humilhado mas esta observação deve ser vista como um estímulo para melhorar este aspecto.

Há uma coisa que acontece com frequência: pessoas que descobrem que são fracas num certo aspecto, fazem um esforço para melhorar nesse ponto e acabam por ficar muito acima da média. Existem muitos exemplos disto. Homens fortes que eram muito débeis na infância. Crianças com dificuldades de aprendizagem que se tornaram nos melhores alunos. Indivíduos de carácter intempestivo e brutal que se tornam em paz de alma. E muitas vezes a transformação ocorre por uma espécie de vergonha pelo estado actual. Não vou dizer que devemos ter uma permanente vergonha pelo nosso estado actual mas acho que algum descontentamento é bastante útil. Eu sei que é mais comum a ideia de “tentar melhorar sempre”, mas o que é que se deve melhorar? Há um certo desconforto natural (não falo do desconforto histórico) que já nos indica por onde devemos começar a melhorar. Para ganhar alguma sensibilidade para a estrutura da língua portuguesa algum estudo do latim pode ser muito útil, porque ler ou escrever na língua latina é fazer análise sintáctica. E é também bastante útil perceber a gramática em uso através dos grandes escritores. O estudo da gramática em si é sempre algo problemático. Sempre que consulto algum fórum de especialistas da língua encontro uma série de pessoas que sabem todos os termos técnicos mas que escrevem horrivelmente. Não é que o estudo da gramática faça necessariamente mal mas quando está associado ao pedantismo não traz bons resultados. Portanto, quem se sentir inclinado a estudar gramática pura e dura, força, mas tenha cuidado para não começar a escrever e a falar pior. Se você começa a falar e as pessoas começam a rir sem que você tenha feito uma piada, isso é um indício precioso. Claro que é preciso ter sempre uma gramática à mão e fazer consultas sempre que se tem dúvidas. No Brasil encontram-se facilmente os livros do Napoleão Mendes de Almeida, não apenas a Gramática Latina e a Gramática Metódica de Língua Portuguesa mas também o Dicionário de Questões Vernáculos. A linguagem viva e incisiva dele ajuda-nos a nos livrarmos do vício do

pedantismo. E depois temos que nos aventurar em exercícios alguns descritivos. Vou descrever o meu animal doméstico, ou um evento que foi marcante para mim, ou um edifício que me fascina. Aqui vamos ter que ir novamente em busca de vocabulário específico, porque por maior que seja o nosso arsenal, nunca teremos todas as palavras à mão. Chamo atenção que neste exercício, ao menos numa fase inicial, não vamos colocar as nossas emoções, sentimentos, etc. Isso já seria entrar na função expressiva. O resultado pode sair um pouco artificial mas são apenas exercícios e ajudam a distinguir as funções da linguagem, o que também ajuda a distinguir entre o que é dado e o que é construído. Para melhorar esta distinção é instrutivo elaborar alguns manuais simples, que são coisas frias, que qualquer um pode entender. Eu uso muito isso no trabalho, faço manuais de instruções para tudo. Alguns exercícios mais elaborados, que também fala o professor Olavo, que usam bastante a imaginação, consistem em partir de um filme e elaborar um roteiro e vice-versa (podemos pegar um conto, por exemplo, e pensar num filme).

5. As dificuldade em desenvolver o uso da função expressiva A função representativa é a primeira que colocamos em prática numa linguagem articulada, mas o que vem depois? Entre a função expressiva e a apelativa, qual é aquela que a criança vai desenvolver primeiro ou vai desenvolver mais? Não pode ser a função expressiva porque o fulaninho ainda não tem um eu consolidado, ou seja, ainda não se sente propriamente autor dos seus actos, para desespero dos pais. Não é que a criança não tenha nenhuma consciência de si, claro que tem, e até é curioso ver que com apenas um ano de idade os bebés já são apanhados com aquele ar de estarem a fazer algo que não deviam. Mas obter uma linguagem que possa expressar convenientemente os próprios estados e pensamentos é uma

conquista difícil, demorada e, na verdade, a maior parte das pessoas não avança nisto quase nada durante a vida inteira. É difícil fazer esta introspecção porque tentamos olhar para nós mas, tirando a nossa figura externa, não existe algo que esteja imóvel e que se ofereça para ser observado. Quando eu olho para mim mesmo o que é que eu vejo? Não falo em olhar para o espelho mas olhar para a personalidade, para as memórias, ideias, desejos, anseios, temores, etc. Essas coisas vão “passando por nós” mas quando tento fazer uma introspecção de forma consciente parece que elas se escondem assustadas. Além disso, não existe uma coisa chamada “minha personalidade” que possa observar desde fora. Nós obtemos alguma ideia do que seja a nossa personalidade a partir de indícios, ou seja, a partir de atitudes, escolhas, renúncias, etc. Mas mesmo assim, olhando para um acto específico, será que eu decidi fazer tal coisa devido a um traço da minha personalidade ou por força das circunstâncias? Mas ceder às circunstâncias é ou não um traço da minha personalidade? Estas são questões que uma criança não tem condições de conceber e tal mostra que o uso expressivo da linguagem é necessariamente muito rudimentar nos primeiros anos. A criança praticamente só vai expressar necessidades fisiológicas e continuará a ser assim por toda a vida se não fizer um esforço consciente para melhorar este aspecto. Eu vejo frequente que o estilo de escrita de muitas pessoas é ainda “fisiológico”, ou seja, elas podem estar a falar de arte, política ou religião mas parece que se estão queixando de uma dor de barriga. Conseguir dar um relato profundo e fiel do mundo interior é trabalho dos grandes poetas e escritores, e mesmo assim eles esforçam-se uma vida inteira apenas para dar testemunho de um pequeno pedaço das almas. Mas, apesar das dificuldades, algo desta capacidade temos que desenvolver para poder colocar em prática o Método da Confissão. Se eu pensar nas minhas ideias, que também fazem parte do meu mundo interior, também é notória a dificuldade em expressá-las. Em geral, as pessoas precisam até de algum estímulo para relatarem alguma das suas

ideias: “o que é que você pensa disso?” Mas mesmo aí a pessoa começa a fazer um relato que é meio um exercício de memória e meio uma argumentação automática e não consegue explicar o motivo de pensar assim, ou seja, desconhece a história daquela ideia dentro dela. Este é um ponto sobre o qual Olavo de Carvalho insiste bastante e que eu quero noutras aulas dar alguns exemplos concretos. Agora não vamos adiantar mais. O desenvolvimento da capacidade expressiva obviamente que se faz muito à custa da frequência com a grande literatura, mas não só. Precisamos de desenvolver a capacidade introspectiva, o que implica trabalhar em solidão. E a aceitação da solidão tem que ser feita junto a uma busca da sinceridade. Ou seja, já estamos bem dentro do âmbito do Método da Confissão, pelo que é algo que vamos trabalhar continuamente.

6. A função apelativa Das três funções da linguagem, segundo Karl Bühler, uma é natural, que é a representativa ou nominativa, e outra é quase antinatural, que é a expressiva. Não é realmente antinatural porque o ser humano tem uma certa inclinação para explorar o seu mundo interior mas tal oferece inúmeras dificuldades, desde logo, a difícil aquisição de ferramentas de introspecção e de expressão. Mas também entram em jogo factores “emocionais”, ou seja, ficamos com medo ou com vergonha do que podemos encontrar dentro de nós. Então, as pessoas acham que expressar o seu mundo interior é algo impossível ou ganham aversão a isso. Assim, contentam-se em obter uma capacidade expressiva muito rudimentar, normalmente na forma de um emocionalismo vulgar ou da vitimização. Falta-nos, então, ver a terceira função da linguagem, a função apelativa, que consiste em usar o discurso sobretudo tendo em vista certos efeitos que se pretendem causar nos destinatários da mensagem. Claro que

as três funções aparecem frequentemente misturadas ou mesmos confundidas, pelo que são classificações que servem sobretudo para afinarmos a visão sobre o uso da linguagem, não são para as tomarmos em sentido absoluto. A função apelativa é também natural e tem que ser porque o ser humano apenas sobrevive se conseguir agir sobre os outros, e para agir sobre outros dependemos quase sempre da linguagem (embora o exercício efectivo do poder dependa bastante de sinais não verbais). O homem é um animal muito desprotegido e com falta de ferramentas naturais, por isso precisa de algum tipo de comunidade para sobreviver que já tem em si a solução para algumas das suas carências. O sujeito que não consegue ter um poder mínimo sobre os outros ou morre ou vai se tornar num mendigo, num sem-abrigo, ou num indigente que alguém terá que cuidar como se fosse uma criança de colo. Portanto, todos temos que desenvolver o uso apelativo da linguagem em alguma medida. Não basta comunicar aquilo que pretendemos mas temos que fazê-lo de modo a ter alguma eficácia no destinatário da mensagem. Se o nosso objectivo é produzir algum efeito no outro, então, algo temos que conhecer dele. Digamos que há aqui uma abertura não para um mundo de coisas mas para um mundo de iguais. Eu quero causar algum impacto sobre alguém que é um semelhante a mim em alguma medida e para isso tenho de conhecê-lo e, como resultado, fico também a conhecer um pouco mais sobre mim mesmo. Isto será um uso saudável da função apelativa. Por aqui já vemos que o desenvolvimento da função expressiva da linguagem se apoia não apenas na função nominativa, que é a base de todas, mas também na apelativa, dado que esta funciona também como um instrumento de auto-conhecimento. Estas observações servem para mostrar que não podemos pensar na função apelativa apenas nos seus usos patológicos, no embuste, na manipulação, na instilação de ódios, etc. E mesmo este uso patológico não pode ser totalmente descartado. Por um lado, pode ser a causa de situações

deprimentes, de desgraças, monstruosidades, etc. Por outro lado, imaginemos o que seria a vida de um grande líder ou de um general em campanha se estes meios “desonestos” estivessem totalmente vedados. Temos aqui um líder lidando com um grande número de pessoas numa situação de crise e ele apenas pode dizer a verdade da forma mais transparente, sem esconder coisa alguma. Às vezes um líder pode usar de uma sinceridade brutal e isso resultar. Um general pode convocar os soldados não para a vitória mas para a morte e estes ficam mais motivados, porque sentem o apelo do heroísmo trágico. Mas isto são excepções. Em geral, o líder vai ter que medir muito bem as suas palavras e vestir uma certa personagem. E na verdade é isto que as pessoas que estão às suas ordens esperam, não de um relatório clínico. Toda a gente tem uma certa intuição dos usos possíveis da linguagem. Sabem que numa altura a linguagem deve ser usada de forma mais precisa e noutras ela deve ser exagerada ou contida, indo além ou ficando aquém dos factos de modo a provocar um certo efeito psicológico. Mas hoje até mesmo este instinto das funções da linguagem está em causa. Com isto não estou obviamente a fazer uma apologia da mentira, da manipulação, do engano. Há sempre uns idiotas que gostam de ver tudo preto no branco e não conseguem distinguir as diversas situações de discurso. Uma coisa é a vida religiosa, outra a é vida intelectual e outra ainda é a vida militar ou política. Por exemplo, no âmbito da vida intelectual, esconder informações importantes é uma falha gravíssima, porque viola directamente os fins últimos da própria actividade. Quer dizer, as pessoas estão ali buscando o conhecimento, a verdade, mas aparece um sujeito que desvia a atenção da pista certa e tenta direccionar as atenções para outro lado. Obviamente que isto é imperdoável. Agora, imaginemos a situação de um exército que está numa situação crítica e o general tem que decidir rapidamente se vão atacar ou se vão retirar. Ele vai tomar a decisão e, mesmo que decida falar para todo o exército, não vai contar tudo o que sabe, mesmo se tivesse tempo para isso. Há certas informações que

poderiam levantar dúvidas ou afectar a moral das tropas. A avaliação do general é probabilística mas ele tem que aparecer perante as tropas com uma aura quase de infalibilidade. Podemos até recordar dois filmes interessantes a este respeito, por oferecerem perspectivas contrastantes. Um deles é o filme sobre o general Patton, que mostra a perspectiva de topo, do líder que se acreditava quase infalível e era mesmo. Quase tudo o que ele decidia no teatro de batalha estava certo, assim como eram certas as decisões que ele achava que deviam ser tomadas a respeito da condução da Segunda Guerra Mundial, que se tivessem sido seguidas teriam poupado inúmeros sofrimentos. Por exemplo, ele queria levar o seu exército até Berlim e depois de vencida a guerra iria usar a ajuda do exército alemão para derrotar os soviéticos. Imaginem, a Alemanha de derrotada, destruída e humilhada de um momento para o outro passaria a estar do lado dos vencedores. Em vez disso, Berlim foi dada aos soviéticos e depois eles ficaram com metade da Europa. Claro que a ideia de Patton poderia nunca ser realizada por inúmeros factores. A força de personalidade do general Patton, o seu fervor, a sua veia disciplinadora, a sua compaixão pelo soldado ferido, o seu praguejar contra o cobarde, os seus resultados em batalha – ele ganhou uma batalha de tanques ao general Rommel, a “raposa do deserto”, especialista em batalhas de tanques –, tudo isto fez com que a sua aura de invencibilidade se transmitisse aos soldados, que começaram a achar que poderiam fazer qualquer coisa. As maiores dificuldades de Patton foram com o seu relacionamento com jornalistas e com os líderes políticos e militares, ou seja, com aquelas pessoas que arriscam muito menos que o soldado comum mas têm um cinismo invencível. Como passou o general Patton o seu espírito de vitória e mesmo de glória para os seus soldados? Obviamente que não foi com prelecções de tipo escolar ou com demonstrações lógicas. Não foi usando a função representativa da linguagem, embora ela tenha que ser usada também,

especialmente para com os colaboradores mais próximos quando se tratava de dar ordens no terreno. Mas o influxo de mentalidade é algo que requer o uso apelativo da linguagem e não apenas a linguagem verbal. A função apelativa está quase sempre associada a um elemento teatral para ter alguma eficácia e o próprio Patton admitia que era uma prima donna. Este elemento teatral é um elemento de lisonja feito público, é uma espécie de agrado. Uma coisa é fazer um discurso num registo frio, plano, sem ênfases, ser apenas um veículo que carrega as palavras. Outra coisa é acrescentar uma certa pose, ênfases diversas, mostrar empenho. É algo que dá trabalho e que se bem feito cria automaticamente um público, como se fosse um pequeno encantamento. Claro que isto faz com que muitos achem que tudo se resume a pose, afetação, teatro, e cria-se uma autêntica indústria em redor. Isto não é uma coisa de hoje e quase que podemos identificar as diferentes culturas pelas suas formas de afetação. A diferença é que, até recentemente em termos históricos, a teatralização era uma coisa que acontecia em circunstâncias pré-definidas, no ambiente da corte, por exemplo, e estava reservada a certas pessoas. A população restante podia levar uma vida muito mais espontânea. Mas hoje a afetação e a teatralização é algo a que poucos escapam. Desde cedo, os pais estimulam as crianças a criarem personagens. A televisão, ou youtubers, tudo isso é um incitamento à mais baixa teatralização. Um outro filme que serve de contraste ao filme do general Patton é The Thin Red Line, de Terrence Malick. No Brasil ficou conhecido como Além da Linha Vermelha e em Portugal como A Barreira Invisível. Nenhuma das traduções transmite muito bem o sentido do título original, porque também não é fácil traduzir. Há um certo efeito criado por expressões em língua inglesa que muito dificilmente se consegue traduzir para outras línguas. Neste filme o cenário é exótico e quase onírico. É quase o oposto do filme do general Patton, em que tudo era conhecido para ele. A acção é

passada no norte de África, Sicília e França e Patton acreditava que já tinha estado lá noutras vidas. Há até uma cena em que ele insiste para que o motorista faça um desvio e vão dar dar às ruínas de Cartago, e ele diz que reconhece o local, que se lembra quando a cidade caiu. Seja como for, eram terrenos conhecidos seus e ele conseguia traçar planos para os vários cenários. No filme The Thin Red Line não apenas o cenário é desconhecido, como é desconhecido o carácter do inimigo. Os japoneses eram na altura uma incógnita para os americanos. Então, não estamos na situação em que pudesse aparecer alguém com as certezas e a personalidade inflexível do general Patton. Aliás, como que a simbolizar essa falta de crença, o filme começa com um soldado que tinha deserdado e foi reintegrado à força. Há um tenente-coronel que pretende tomar uma ilha aos japoneses, mas durante a incursão no terreno o oficial que ia na frente recusa-se a cumprir a ordem de avançar porque aquilo parecia-lhe uma missão suicida e acaba por ser substituído. Este oficial fica sempre no dilema de saber se a sua desobediência foi justificada ou não. Não vou falar mais do filme mas quero apenas deixar esta ideia da incerteza, que é o estado em que nos encontramos na maior parte dos casos, mas por vezes é preciso tomar uma decisão. A ficção moderna tem muita carência deste elemento de incerteza. O que existem são enigmas, mas no final percebemos que a situação já oferecia todos os elementos para tomar a decisão certa. No mundo real isso raramente acontece e por isso muita da ficção que se faz hoje acaba não só por viciar a imaginação como por corromper o senso moral. E como agir quando a função apelativa não funciona mais? Acontece que algumas instituições já estão preparadas para isso, porque sabem que não podem ficar dependentes de um líder carismático. Então, criam hierarquias rígidas, sistemas de substituição, punições, etc., como acontece com a instituição militar. As empresas bem firmadas, certas famílias e instituições também garantem de alguma forma que não são muito dependentes da função apelativa, ou seja, são sistemas hierárquicos

fechados e não democráticos. A democracia moderna é essencialmente uma ilusão para o povo e para as famílias pequeno-burguesas acharem que são donas dos seus destinos quando na realidade a democracia é dominada por elementos não democráticos. Voltando atrás, onde começa o uso da função apelativa? Começa logo assim que a criança começa a usar a linguagem. Até podemos dizer que é antes disso porque cada choro do bebé já contém algum apelo. Contudo, mal começa a falar percebe que é mais fácil dizer o nome da coisa que deseja do que simplesmente chorar, mas é apenas uma troca de sinais para tentar expressar a mesma ordem. A criança descobre que ao dizer uma frase os pais ficam muito contentes com isso e o discurso passa ter dois objectivos, por um lado, dar nomes às coisas, por outro, provocar uma reacção na audiência. Se tiver um irmãozinho vai descobrir rapidamente que a linguagem serve também para irritá-lo. Portanto, as funções representativas e apelativas andam muito próximas nos primeiros anos. A função apelativa serve essencialmente para três funções, que são escolhidas mediante uma avaliação que fazermos em relação ao destinatário: se o outro nos parece muito fraco, tentamos fazer dele nosso escravo; se ele é um pouco mais forte mas não muito ameaçador, tentamos irritá-lo; e se ele nos parece forte e ameaçador, vamos lisonjeá-lo. Isto é como a criança descobre o uso da linguagem se tiver um irmãozinho, com algum exagero, obviamente. No entanto, não será muito exagerado quando a criança é desde cedo despejada numa creche. Ali ela vai aprender a falar com crianças estranhas e com adultos que muitas vezes pouco ligam para ela. Então, hoje a norma e jogar as crianças muito cedo num ambiente hostil. Em muitos países, antes de nascerem os bebés já estão inscritos numa creche, ou seja, os pais já começaram a se desvincular dos filhos e começam a enganar-se a si mesmos pela traição que vão cometer dizendo que as crianças precisam de socialização e essas coisas. Mesmo que as

creches tenham as melhores condições, elas não são o ambiente familiar. Claro que em alguns casos a criança tem um melhor ambiente numa creche do que em casa e frequentemente os pais não têm mesmo alternativa a não ser colocar as crianças nestas instituições. Não estamos aqui a fazer o julgamento em abstracto de todas as famílias. Contudo, se os pais, em vez de assumirem isto como a solução única possível, passam a acreditar que é a solução ideal, então, eles já desistiram mesmo de ser pais. E isto já ganhou uma validação social, ou seja, as pessoas acham que são melhores pais quando abdicam de ser pais e entregam os filhos a uma creche e depois a uma escola do Estado. Alguns pais pressentem que estiveram algo ausentes da vida dos filhos e tentam compensar isto com bens exteriores, ou com viagens, idas a restaurantes ou algo assim. Não percebem que a verdadeira lacuna foi estarem ausentes da construção do mundo interior dos filhos. Se a linguagem da criança é desenvolvida num ambiente hostil, seja por ser numa creche sobrelotada ou numa família dita “disfuncional”, é quase inevitável que a função apelativa se desenvolva num sentido animalesco. Ou seja, a linguagem vai servir sobretudo para criar relações de submissão e dominação. Eventualmente neste tipo de ambiente as crianças vão adquirir precocemente a capacidade de manipular tendo em vista provocar efeitos em terceiros, com intrigas, por exemplo. É uma capacidade, sem dúvida, e algo disto todos temos que adquirir. Mas imaginem o que é uma criança, com uma noção muito precária dos valores morais, adquirir logo muito cedo um treino avançado em manipulação. Aquele vício é quase impossível sair dela, mesmo que ela venha a perceber que em teoria é errado. Se o desenvolvimento destas capacidades vier mais tarde, conhecendo já bem o mundo, por assim dizer, abre-se o leque de possibilidades de influência. Já não é apenas aquela dualidade animalesca de submissão-dominação mas percebemos que podemos também inspirar nos outros coragem, bondade, segurança, temperança, etc. Como nota final, mais uma vez realço que a função representativa ou

nominativa tem de estar sempre presente ou não estamos a dizer nada. Refiro-me à expressão verbal. Se aliarmos as funções representativa e expressiva estamos no domínio da vida contemplativa e aparentemente seria este o nosso foco, a vida intelectual e o Método da Confissão. A função apelativa estaria reservado apenas à vida activa, contudo, não é assim. A vida intelectual, como a vemos aqui, precisa contemplar ou confessar algo e grande parte do seu material é dado pela vida activa. Não podemos fazer apenas uma contemplação distante, temos de entender as coisas no cenário onde elas se dão, por isso, temos de levar em conta as dificuldades e os dramas da vida prática. Assim, são também importantes para nós os grandes discursos de influência, os discursos da retórica. Notese que Sócrates tinha sido um herói de guerra e vários dos filósofos présocráticos foram personagens bastante destacadas no seu tempo. Se Platão fosse um incapaz não teria criado uma das escolas mais famosas da Antiguidade. Se Aristóteles tivesse sido apenas um teórico inconsequente não teria sido tutor de Alexandre. Não eram pessoas que por falta de capacidade para a vida prática se tinham voltado para a vida contemplativa. Pelo contrário, elas conheciam bem a vida prática e sabiam reflectir sobre ela e ainda chegar a outros domínios. O que não podemos fazer é nos deixarmos arrastar pelos fins da vida prática quando estamos na via contemplativa. As duas coisas podem se interpenetrar em alguma medida mas seguem fins distintos. Um intelectual que esteja ao serviço de uma ideologia ou que tenha que se submeter a um certo regime burocrático obviamente que não está a seguir os fins da vida contemplativa. As únicas pessoas que podem dar uma visão isenta e personalizada são os intelectuais públicos, que não têm por trás nem o Estado, nem alguma instituição pública ou privada, nem partido algum, nem sequer uma religião. Eles podem eventualmente participar de algumas destas coisas mas quando falam como intelectuais públicos usam apenas a autoridade do seu testemunho.

Notas: 1. Nos artigos abaixo, o primeiro fala das relações dos sistemas de Karl Bühler e Roman Jakobson e o segundo fala resumidamente de 4 sistemas de classificação. https://www.algosobre.com.br/gramatica/funcoes-da-linguagem.html https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/funcoes-dalinguagem-outra-vez/7438

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