1-História Da Música Brasileira

August 21, 2024 | Author: Anonymous | Category: N/A
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História da Música Brasileira Prof. Andrey Garcia Batista Prof. Darlan Carlos Dias

Indaial – 2020 1a Edição

Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof. Andrey Garcia Batista Prof. Darlan Carlos Dias

Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. B333h Batista, Andrey Garcia História da música brasileira. / Andrey Garcia Batista; Darlan Carlos Dias. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 276 p.; il. ISBN 978-65-5663-328-2 ISBN Digital 978-65-5663-324-4 1. Música popular brasileira - História. - Brasil. I. Dias, Darlan Carlos. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 780.981

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Apresentação Caro acadêmico, seja muito bem-vindo à disciplina de História da Música Brasileira! Este livro traz uma introdução a este instigante e vasto tema. Nosso propósito é fornecer uma base de conhecimento sobre a trajetória histórica da música brasileira em linhas gerais, desde as suas origens, nos tempos do descobrimento e colonização, até o contexto mais recente da cultura urbana moderna. Também observaremos, de modo breve, pontos na história do Brasil relevantes para o entendimento da história de nossa música. O livro está dividido em três unidades de conteúdo. A Unidade 1 trata da música erudita brasileira, cujo surgimento está ligado à vida musical dos primórdios do Brasil. Discorreremos sobre as origens da nossa música, abordando antigos registros históricos sobre a música indígena e a cultura musical trazida da Europa pelos padres jesuítas. Na sequência, discutiremos aspectos gerais da atividade musical do período colonial e, chegando ao século XIX, examinaremos a música erudita durante uma fase em que ocorreram eventos históricos importantes, como a Independência e a República. Assim, chegaremos ao Brasil do século XX e à moderna música de concerto, observando transformações que ocorreram na música dessa fase e conhecendo suas principais personalidades. Nas unidades seguintes, entraremos especificamente no tema da música popular. A Unidade 2 aborda as origens da música popular no Brasil, em que conheceremos fatores históricos e socioculturais que estimularam o surgimento dos primeiros gêneros musicais populares. Nesta unidade, veremos mudanças fundamentais ocorridas na cultura musical brasileira entre os séculos XIX e XX. Você poderá aprofundar seu entendimento sobre o processo de formação e ascensão da música popular urbana no Brasil. Por fim, a Unidade 3 apresenta a música popular em sua fase de consolidação e maturidade, já na conjuntura da vida urbana moderna, a partir de meados do século XX. Você percorrerá a história observando o contexto em que novos gêneros musicais nasceram e se desenvolveram. Relacionando esse estudo com fatores que influenciaram a música brasileira o período, discorreremos a respeito dos personagens e dos movimentos musicais historicamente representativos. Para que possa fazer estudos complementares, estão distribuídas diversas dicas ao longo do livro. São recomendações de bibliografia, vídeos, filmes etc. E o mais importante: fique atento às dicas com indicações de audição das obras musicais mencionadas no livro. São exemplos representativos de cada época, a fim de lhe auxiliar na assimilação do conteúdo e fazer correlações com o texto. Faça o download das partituras indicadas; ouça as músicas com atenção, observando-as como objetos de estudo; e procure evitar quaisquer juízos de valor ou condicionamentos prévios, por conta do gosto pessoal.

Os textos a seguir consistem em um material conciso e, como mencionado, possuem caráter introdutório. Considerando a extensão e a complexidade do assunto, não há aqui a intenção de esgotarmos os temas tratados. Ainda assim, este livro — fundamentado em estudos científicos de pesquisadores renomados — pretende possibilitar que você, acadêmico, adquira um embasamento preliminar consistente sobre a história da música no Brasil, algo tão importante para a formação do estudante de Música. Espero que seus estudos, com a ajuda deste material, sejam esclarecedores. Desejo que isso sirva como um convite para se aprofundar no que mais lhe interessar, agora ou em suas pesquisas futuras. Bons estudos! Prof. Andrey Garcia Batista Prof. Darlan Carlos Dias

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.   Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE.   Bons estudos!

LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

Sumário UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO SÉCULO XX.................................... 1 TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL.......... 3 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 3 2 MUSICOLOGIA: O ESTUDO ACADÊMICO DA MÚSICA....................................................... 4 3 ORIGENS: PERÍODO COLONIAL – PRIMEIRA METADE (c.1500-c.1650)............................. 5 3.1 AS ORIGENS DAS TRADIÇÕES NÃO ESCRITA E ESCRITA DA MÚSICA BRASILEIRA . .................................................................................................................................. 6 3.2 MÚSICA DOS POVOS INDÍGENAS............................................................................................ 8 3.3 OS PRIMEIROS REGISTROS....................................................................................................... 11 4 OS JESUÍTAS NO BRASIL............................................................................................................... 16 4.1 MÚSICA NAS AMÉRICAS PORTUGUESA E ESPANHOLA................................................ 19 5 CRONOLOGIA................................................................................................................................... 23 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 24 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 27 TÓPICO 2 —A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX.......... 29 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 29 2 PERÍODO COLONIAL – SEGUNDA METADE (c.1650-c.1800)................................................ 29 2.1 PRIMEIROS CENTROS DE PRODUÇÃO MUSICAL.............................................................. 30 2.1.1 Pernambuco........................................................................................................................... 31 2.1.2 Bahia....................................................................................................................................... 32 2.1.3 São Paulo . ............................................................................................................................. 34 2.2 O CENÁRIO MUSICAL MINEIRO NO SÉCULO XVIII......................................................... 37 2.3 CRONOLOGIA.............................................................................................................................. 43 3 O SÉCULO XIX.................................................................................................................................... 44 3.1 PERÍODO JOANINO (1808-1821): A CORTE PORTUGUESA NO BRASIL......................... 44 3.2 INDEPENDÊNCIA E PERÍODO IMPERIAL (1822 – 1889)..................................................... 50 3.3 CRONOLOGIA.............................................................................................................................. 58 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 60 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 63 TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX.............................................. 65 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 65 2 A TRANSIÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX........................................................................ 65 2.1 ROMANTISMO NO BRASIL....................................................................................................... 65 2.2 PRIMEIROS REFLEXOS DA CULTURA POPULAR............................................................... 69 2.3 CRONOLOGIA.............................................................................................................................. 73 3 INÍCIO DO SÉCULO XX: O MODERNISMO.............................................................................. 73 3.1 O NACIONALISMO E A IDENTIDADE MUSICAL DO BRASIL......................................... 76 3.1.1 Heitor Villa-Lobos................................................................................................................ 77 3.1.2 Outros nomes da escola nacionalista................................................................................. 81 3.2 CRONOLOGIA.............................................................................................................................. 83

4 NOVAS TENDÊNCIAS NO SÉCULO XX..................................................................................... 83 4.1 O MOVIMENTO MÚSICA VIVA................................................................................................. 84 4.2 COMPOSITORES INDEPENDENTES........................................................................................ 85 4.3 VANGUARDA NO BRASIL . ...................................................................................................... 89 4.3.1 O movimento Música Nova.................................................................................................. 90 4.4 CRONOLOGIA.............................................................................................................................. 92 LEITURA COMPLEMENTAR............................................................................................................. 93 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 98 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 100 UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO.......................................................................................................... 101 TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL....................................... 103 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 103 2 CONTEXTO HISTÓRICO.............................................................................................................. 103 2.1 A CONTRIBUIÇÃO AFRICANA.............................................................................................. 105 3 AS ORIGENS DA MÚSICA POPULAR EM IMAGENS.......................................................... 108 3.1 INSTRUMENTOS MUSICAIS................................................................................................... 108 3.2 MÚSICA NO COTIDIANO........................................................................................................ 111 3.3 DANÇAS....................................................................................................................................... 113 3.3.1 Os batuques ........................................................................................................................ 114 3.3.2 Os fandangos....................................................................................................................... 117 4 CRONOLOGIA................................................................................................................................. 119 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 120 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 122 TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX...................... 125 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 125 2 ABORDAGEM HISTÓRICA.......................................................................................................... 125 3 LUNDU .............................................................................................................................................. 127 3.1 O LUNDU NA ICONOGRAFIA............................................................................................... 128 4 MODINHA ........................................................................................................................................ 130 5 A MÚSICA DE BARBEIROS.......................................................................................................... 135 6 A MÚSICA DE SALÃO E A INFLUÊNCIA EUROPEIA........................................................... 138 6.1 A NOVIDADE DAS DANÇAS EUROPEIAS.......................................................................... 139 6.2 FUSÕES COM ELEMENTOS AFRO-BRASILEIROS.............................................................. 141 7 CRONOLOGIA................................................................................................................................. 146 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 147 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 149 TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950.............................................. 151 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 151 2 A TRANSIÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX ..................................................................... 153 3 O CHORO.......................................................................................................................................... 155 3.1 O MAXIXE.................................................................................................................................... 156 3.2 PRIMEIROS CHORÕES.............................................................................................................. 158 4 NOVO SÉCULO, NOVAS TENDÊNCIAS.................................................................................. 166 4.1 O SAMBA...................................................................................................................................... 170 4.1.1 Origens do samba urbano................................................................................................. 170 4.1.2 Subgêneros do samba......................................................................................................... 173

4.2 A MÚSICA E O RÁDIO ............................................................................................................. 175 4.3 REGIONALISMOS...................................................................................................................... 178 5 CRONOLOGIA................................................................................................................................. 183 LEITURA COMPLEMENTAR........................................................................................................... 186 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 191 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 193 UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO................................................................................................. 195 TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)...................................................................... 197 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 197 2 BOSSA NOVA................................................................................................................................... 198 3 MPB..................................................................................................................................................... 206 4 JOVEM GUARDA............................................................................................................................ 213 5 TROPICÁLIA..................................................................................................................................... 217 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 225 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 226 TÓPICO 2 — A DÉCADA DE 1970.................................................................................................. 227 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 227 2 A MPB MODERNA.......................................................................................................................... 228 2.1 RIO-SÃO PAULO......................................................................................................................... 229 2.2 MINAS GERAIS: CLUBE DA ESQUINA................................................................................. 230 2.3 NORDESTE................................................................................................................................... 232 3 MOVIMENTO BLACK RIO........................................................................................................... 235 4 MÚSICA INSTRUMENTAL E FUSÕES JAZZÍSTICAS........................................................... 236 5 ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 1970........................................................................................ 238 6 OUTRAS TENDÊNCIAS RELEVANTES..................................................................................... 241 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 242 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 243 TÓPICO 3 — DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS................ 245 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 245 2 ANOS 1980......................................................................................................................................... 246 2.1 INFLUÊNCIAS DA MÚSICA POP NO BRASIL..................................................................... 246 2.2 BROCK: NOVA FASE DO ROCK BRASILEIRO..................................................................... 247 2.3 OUTRAS TENDÊNCIAS............................................................................................................ 251 3 ANOS 1990......................................................................................................................................... 252 3.1 MÍDIA, INDÚSTRIA FONOGRÁFICA E INTERNET........................................................... 253 3.2 FUSÕES E NOVAS VERTENTES.............................................................................................. 254 4 ATUALIDADE................................................................................................................................... 255 LEITURA COMPLEMENTAR........................................................................................................... 257 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 261 AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 262 REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 263

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO SÉCULO XX OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer o panorama da história da música erudita no Brasil; • conhecer aspectos gerais sobre a musicologia no contexto brasileiro; • compreender o contexto das origens da música no Brasil; • contextualizar a trajetória da música no Brasil colonial; • identificar os principais aspectos e contrastes entre a cultura musical das Américas Portuguesa e Espanhola, relacionados com a atuação dos jesuítas; • entender a importância dos primeiros centros de produção musical do Brasil no período colonial, bem como do cenário musical de Minas Gerais no século XVIII; • identificar o contexto histórico e as características da música erudita brasileira ao longo do século XIX; • compreender a discussão em torno da busca por uma identidade nacional na música erudita brasileira; • conhecer as principais correntes estéticas da música erudita brasileira do século XX.

PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL TÓPICO 2 – A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX TÓPICO 3 – MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

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TÓPICO 1 —

UNIDADE 1

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO Ao longo desta unidade, estudaremos a história da música erudita, ou tradição de música escrita. Em nosso estudo, vamos discorrer sobre os assuntos de maior importância no panorama desta tradição musical seguindo etapas cronológicas, em uma divisão que se aproxima dos períodos históricos do Brasil. Vejamos quais: • • • • •

Período colonial – primeira metade: 1500-c.1650. Período colonial – segunda metade: c.1650-c.1800. Período joanino: 1808-1821. Império: 1822-1889. República: a partir de 1889.

FIGURA 1 – PERÍODOS DA HISTÓRIA DO BRASIL

FONTE: O autor

Neste tópico, abordaremos as origens da música no Brasil e seus primeiros registros até a primeira metade do período colonial. Antes, todavia, veremos uma breve introdução sobre o campo do saber humano que estuda a música e sua história: a musicologia.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

2 MUSICOLOGIA: O ESTUDO ACADÊMICO DA MÚSICA Como a música e a vida humana se relacionam? Quais fatores — sociais, culturais, econômicos, filosóficos, políticos — influenciaram a música nos diferentes tempos? Quais forças históricas agem sobre a música e que transformações ela sofre? Questões como essas são debatidas pela musicologia, área das ciências humanas que se dedica ao estudo sistemático da música, bem como sua inserção no contexto histórico e sociocultural como uma atividade humana multifacetada. Fundamentada cientificamente e buscando compreender a música como um “fenômeno estético e cultural”, a musicologia, “enquanto ciência, obviamente distingue-se da prática musical, que é uma manifestação artística” (CASTAGNA, 2008a, p. 9-10). Tradicionalmente, seu maior interesse é a música erudita ocidental, mas nas últimas décadas seu escopo e métodos vêm se abrindo para novos objetos de estudo e de investigação.

NOTA

A musicologia também aborda assuntos como teoria e análise musical, estética e teoria crítica, psicologia, cognição musical, semiótica, acústica e psicoacústica, organologia, entre outros. (CASTAGNA, 2008a; HARPER-SCOTT; SAMSON, 2009).

A musicologia histórica trata da música do passado e se vincula à história, empregando teorias e métodos científicos semelhantes aos usados por historiadores (CASTAGNA, 2008a; HARPER-SCOTT; SAMSON, 2009). Tendo por base a pesquisa documental, a musicologia histórica dialoga com áreas da museologia, pesquisa arquivística, paleografia, filologia, iconografia, história da arte e outras. No estudo da música produzida no Brasil em outras épocas (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2008a), são frequentes procedimentos: • A pesquisa em papéis antigos contendo notação musical. Uma fonte musical pode ser um documento impresso ou manuscrito; este, por sua vez, pode ser um manuscrito autógrafo (produzido pela mão do próprio autor) ou uma cópia feita por terceiros. • A recuperação de obras por meio da análise, transcrição e edição do texto musical (mesmo fragmentos que foram perdidos podem ser reconstruídos por meio do estudo do estilo da época, da lógica musical da obra, ou das técnicas e do sistema musical usados pelo compositor), o que possibilita a posterior publicação e gravação de obras restauradas.

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

• Estudos que vão além da partitura, envolvendo o exame de fontes textuais e iconográficas que contenham informações sobre a música de determinada época. • Organização e catalogação de acervos, incluindo digitalização de fontes para acesso on-line. Na musicologia histórica brasileira, a divulgação dos resultados das pesquisas (artigos, periódicos, eventos acadêmicos, concertos, edições de obras etc.) tem sido essencial para promover a produção de conhecimento sobre música e estimular a reflexão sobre ela — e, assim, buscar respostas para perguntas como aquelas que vimos no início deste item.

NOTA

Grande parte da atividade musicológica depende do acesso a documentos em museus, bibliotecas, arquivos públicos, instituições religiosas ou mesmo em coleções particulares, além de alguns acervos digitais acessíveis na web. No Brasil, fontes primárias para pesquisa quase sempre estão sob risco por conta do descaso da sociedade com o patrimônio histórico e da falta de financiamento e recursos para sua conservação, sendo frequentes o dano ou a perda permanente de documentação (BIASON, 2008; CARDOSO, 2004; CASTAGNA, 2008b; COTTA, 2001). Portanto, os esforços dos musicólogos brasileiros são essenciais para a preservação da memória musical do nosso país. Procure conhecer e valorizar o trabalho de pesquisadores desta área (vários serão citados neste livro).

3 ORIGENS: PERÍODO COLONIAL – PRIMEIRA METADE (c.1500-c.1650) O período de 1500 a meados do século XVII foi marcado pelo início do processo de ocupação e exploração econômica do território brasileiro, sob domínio de Portugal (a América Portuguesa). Nessa fase, dois ciclos econômicos — o paubrasil e, mais tarde, a cana-de-açúcar — davam início à exploração da mão de obra escrava de índios e africanos, enquanto chegavam à colônia os primeiros padres jesuítas e o projeto de cristianização. As origens da música no Brasil remontam a esse cenário, ou seja, iniciava-se um longo e intrincado processo histórico envolvendo a interação de elementos das culturas indígena, africana e europeia. Das misturas entre esses mundos tão diferentes surgiriam práticas musicais diversificadas, resultantes das complexas fricções e hibridações que este encontro causou. Nos séculos seguintes, por meio da contínua aculturação, assimilação e ressignificação de elementos culturais, construíram-se no país ricas manifestações musicais que constituem um traço preponderante da identidade cultural 5

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

brasileira (CALDAS, 2010; WISNIK, 2000). “Pode-se ver que o longo processo de colonização europeia da América acarretou transformações profundas nos povos envolvidos, que transformaram-se mutuamente, sob influências multirraciais e multiculturais, cuja complexidade nos fascina” (COTTA, 2001, p. 73). Não obstante, cada um dos variados tipos de música surgidos ao longo dos mais de 500 anos da história brasileira sofreu diferentes graus de mistura, assim como suas derivações (gêneros, estilos, tendências, repertórios, ritmos etc.), pois a parcela de contribuição cultural de cada etnia variou em diferentes momentos da história. Influências ocorreram de forma desigual, assimétrica, e os limites entre as diferentes culturas não são claros, pois, ao longo da história, o convívio e a fusão entre seus elementos deixaram suas fronteiras menos nítidas (BÉHAGUE, 1999).

3.1 AS ORIGENS DAS TRADIÇÕES NÃO ESCRITA E ESCRITA DA MÚSICA BRASILEIRA Percorreremos a história da música no Brasil adotando uma classificação temática respaldada por Castagna (2010) e Wisnik (2000), seguindo duas linhas de estudo baseadas em duas grandes tradições musicais: a tradição não escrita e a tradição escrita. Esta classificação pode auxiliar no entendimento sobre como ocorreu a continuidade de cada uma das tradições e, ao mesmo tempo, das transformações pelas quais cada uma passou. Para compreendê-las, é necessário observar que ambas surgiram no período colonial, quando o país iniciava seu processo de formação sociocultural e identitária, e que produziram marcas duradouras na cultura brasileira, fundamentais para entendermos as origens de nossa música. Nesse sentido, as duas tradições musicais possuem raízes em duas grandes categorias que coexistiram na música do Brasil colonial, classificadas por Castagna (2010) da seguinte forma: • A música tradicional, ligada à tradição oral dos povos indígenas, africanos e europeus que viveram no país. Ao seu surgimento estão vinculados processos de aculturação, ocorridos nos tempos da colônia, entre as três culturas. Essa grande tradição musical também é chamada de tradição não escrita (WISNIK, 2000). Incluindo até mesmo as culturas musicais anteriores ao descobrimento do Brasil, a categoria se caracteriza pela espontaneidade com que a música era produzida: era a partir das interações sociais e da miscigenação entre diferentes grupos étnicos (incluindo comunidades iletradas) que acontecia sua difusão, assimilação e transformação, por meio da transmissão oral. Outro traço importante era o caráter não profissional da sua produção. A partir do fim do século XIX, esta categoria passou a ser definida como música folclórica e/ou música popular. 6

TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

• A música profissional, que envolveu o uso da notação musical em sua criação e produção. Portanto, pode-se denominar essa cultura musical de tradição escrita (WISNIK, 2000), na qual o texto musical escrito (a partitura) desempenha uma função essencial. Também são importantes o aspecto técnico e o estudo formal. Sua inserção no Brasil foi gradual, condicionada, sobretudo, por sua demanda e uso para fins religiosos. No período colonial, a música era produzida em espaços em que a atuação dos músicos geralmente era profissional (ou semiprofissional) — como igrejas —, o que exigia financiamento das atividades (por exemplo, contratações, compra de instrumentos, partituras etc.), sofrendo maior influência de fatores econômicos e políticos. Mais tarde, no início do século XX, esse tipo de música passou a ser chamado pelo termo música erudita. São também utilizados termos como música clássica, música de concerto, música artística, música histórica, música culta, música séria etc. (alguns dos quais são imprecisos e geram controvérsia, mas são recorrentes). Nesta tradição também podemos incluir as práticas da música coral e da música de câmara. As tradições escrita e não escrita “apresentam desenvolvimentos próprios e, como também acontece em muitos outros países, cruzam-se em certos momentos” (WISNIK, 2000, s.p.). Assim, é um equívoco imaginar a música popular e a música erudita como duas linhas paralelas e separadas. Ao contrário disso, ambas exerceram influência mútua em diferentes momentos da história, e os cruzamentos e mesclas entre elas têm “uma importância específica”, o que é “uma das marcas singulares da produção musical brasileira” (WISNIK, 2000, s.p.).

TUROS ESTUDOS FU

Vamos voltar à tradição não escrita nas Unidades seguintes. Por ora, veremos somente um breve comentário nos próximos itens sobre música indígena nos primeiros registros históricos.

Quanto à segunda tradição, objeto de interesse desta unidade, em termos gerais, podemos dizer que a prática de escrever música foi trazida para o Brasil em meados do século XVI, e também absorveu certa dose de traços multiculturais, embora tenha seguido os rígidos padrões europeus durante quase quatro séculos (BÉHAGUE, 1999; BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003). “A música erudita no Brasil foi um fenômeno de transplantação. Por isso, até na primeira década do século XX, ela mostrou sobretudo um espírito subserviente de colônia” (ANDRADE, 2015, s.p.). Durante esse período, houve na tradição escrita uma predominância de música vocal religiosa:

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Sendo raras as obras profanas ou as composições exclusivamente instrumentais. Esse fenômeno decorreu do fato de ter sido a devoção religiosa, no caso católica, a principal forma de agregação e manifestação social imposta no ambiente colonial (CASTAGNA, 2003, v. 5, p. 1).



O estudo histórico da música escrita depende, no entanto, da existência de documentação. Fontes musicais datadas entre 1500 e 1700 são quase inexistentes, visto que a maior parte da produção musical brasileira anterior a 1800 está desaparecida. O que se sabe a respeito da música do período colonial brasileiro vem de informações contidas majoritariamente em fontes textuais (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003).

NOTA

Vale lembrar que, no Brasil, a tradição da música escrita percorreu um caminho que não coincide com os períodos da história da música na Europa; por isso, para nos referirmos a estilos ou tendências estéticas, é preciso cautela com termos como “barroco”, “clássico” ou “romântico”, cujo significado no contexto brasileiro é apenas aproximado (CASTAGNA, 2003). Isso decorre da óbvia diferença entre os dois contextos históricos, além de outros fatores, tais como: • a sociedade brasileira foi formada por culturas e etnias diferentes, e as condições econômicas para a produção de música no Brasil e na Europa eram distintas; • ainda que a música erudita do Brasil tenha absorvido elementos de outros lugares da Europa, inicialmente, a maior influência foi Portugal (de lá vinham repertórios, partituras, instrumentos, livros, músicos), e o contexto era muito diferente de outros países que foram centrais no desenvolvimento desse tipo de música, como França, Alemanha ou Itália.

Nas fontes históricas das origens do Brasil vemos esboçados os primeiros traços da nossa vida musical. Isso nos leva a temas específicos: as culturas indígenas e africanas, a atuação musical dos padres jesuítas e o início da tradição de música escrita vinda da Europa. No contexto da colonização da América, estes elementos estão todos interligados, como veremos a seguir.

3.2 MÚSICA DOS POVOS INDÍGENAS A música tem enorme importância na vida tradicional das sociedades indígenas. Ela aparece em muitas ocasiões, podendo ser tocada ou cantada diariamente durante horas, por meses a fio; [...] é parte fundamental da vida, não simplesmente uma de suas opções. O que nós relegamos a um segundo plano como optativo, ou ‘lazer’, ocupa um lugar mais central na percepção dos grupos: formador da experiência social, parte integral das atividades de subsistência, garantia da continuidade social e cosmológica (SEEGER apud MORAES, 2001, p. 86).

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

Na história ocidental, um dos fatores que marcaram a fase de transição entre os séculos XV e XVI foi a série de missões de navegação com fins mercantis promovidas por reinos ibéricos, como as comandadas por Cristóvão Colombo, em 1492, e em 1500, por Vicente Pinzón e Pedro Álvares Cabral. No momento em que ocorreu aquilo que, sob a ótica europeia, foi chamado de “descoberta do Novo Mundo”, havia uma grande quantidade de grupos humanos nativos vivendo nestes territórios. Nessas comunidades, a música esteve presente por milênios, intimamente ligada à vida cotidiana das pessoas. Os povos ameríndios teriam se originado de populações ancestrais vindas da Ásia, as quais, estabelecidas na América, espalharam-se por todo o continente e formaram, gradualmente, grande variedade de culturas (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; BUENO, 2016; CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018; SILVA; SILVA, 2009).

NOTA

De acordo com as teorias científicas mais aceitas, fluxos migratórios teriam cruzado o estreito de Bering em um longo processo, iniciado entre 10.000 e 15.000 anos atrás. Contudo, evidências recentemente descobertas indicam presença humana nas Américas entre 45.000 e 100.000 anos, incluindo vestígios de outros povos, além dos asiáticos (ROMERO, 2014; SILVA; SILVA, 2009).

Assim, as práticas musicais na América podem ter sido tão diversificadas quanto os grupos étnicos aos quais pertenciam. Todo o extenso continente americano era caracterizado pela diversidade. Cada povo era único, ainda que muitas sociedades indígenas tivessem traços culturais comuns (RAMOS, 1988; SILVA; SILVA, 2009). A multiplicidade cultural foi se diluindo à medida em que a vida dos nativos passou pelas mais violentas mudanças durante o processo de ocupação europeia. Especialmente na ampla região das terras baixas sulamericanas, as quais abrangem o atual território brasileiro, populações inteiras sofreram rápida extinção devido a doenças, perseguição ou extermínio. Por volta de 1570, o primeiro grupo contatado por Cabral na região de Porto Seguro, da etnia Tupiniquim, já estava extinto. Ao término dos primeiros 100 anos de colonização, a população ameríndia estava reduzida em cerca de 80%. Os povos que sobreviviam foram submetidos à diminuição territorial, escravidão, crise identitária e deculturação. Grande parte da música indígena desapareceu, igualmente ao que ocorreu com outros elementos da cultura destas etnias: suas formas de organização social e política, sua cosmologia, seus hábitos alimentares e habitacionais, seus rituais, sua arte (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; CASTAGNA, 2003; 2012; SCHWARCZ; STARLING, 2018).

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

A invasão europeia teve o efeito de erradicar muitas das diferenças sociopolíticas que existiam antes do século XVI. [...] Tudo indica, pois, que a conquista europeia produziu uma certa uniformização cultural, destruindo, embora parcialmente, a grande diversidade que há quinhentos anos existia na América do Sul (RAMOS, 1988, p. 9-10).

Pouco se sabe sobre a música dos povos pré-cabralinos. Considerando que não possuíam escrita e sua música transmitida oralmente, além do fato de que a maioria da população desapareceu, reconstruir sua história é uma tarefa que beira o impossível. Há poucos registros que possam evidenciar como era vida musical; não existem informações anteriores a 1500, e as informações sobre períodos posteriores são escassas. Ainda assim, é possível constatar a existência dessa música nos primeiros testemunhos feitos em épocas subsequentes ao descobrimento. Em um primeiro momento, a música dos índios causou estranheza e curiosidade nos europeus, o que pode ter motivado estes relatos (a seguir, veremos exemplos). Não obstante, ainda que a música nativa tenha participado da formação de nossa cultura musical — pois a contribuição do indígena na formação da sociedade brasileira é evidente —, é muito difícil definir o grau de influência que exerceu: Música indígena já existia há milênios na costa leste da América do Sul. [...], Contudo, apesar da curiosidade europeia, a música indígena foi objeto de proibições, por parte da Igreja e do governo português, durante todo o período colonial, contribuindo pouco para a prática musical das demais etnias do país (CASTAGNA, 2003, v. 1, p. 1).

No presente, o pouco que se sabe sobre a música indígena é resultado da observação da música que sobreviveu pela transmissão oral entre os povos ainda existentes, e de pesquisas e estudos iniciados no século XIX, e realizados até hoje.

NOTA

A etnomusicologia estuda a música não europeia (ou não ocidental) de diferentes etnias e/ou culturas (sociedades nativas, culturas tradicionais, música folclórica, música popular etc.), analisando a música na cultura e as funções sociais que ela possui, ou “não exatamente a música, mas sim o homem que a produz” (CASTAGNA, 2008a, p. 10). É uma ciência distinta que se aproxima da antropologia e da sociologia, mas que dialoga com a musicologia. A Associação Brasileira de Etnomusicologia — ABET disponibiliza textos científicos gratuitos sobre música indígena, (além de outros temas, como música folclórica e a música popular). Basta acessar: .

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

3.3 OS PRIMEIROS REGISTROS Evidências da presença da música no início do período colonial do Brasil estão na documentação histórica produzida nos séculos XVI e XVII. Entre as fontes estão textos, como documentos oficiais, cartas, manuscritos, literatura e imagens.

NOTA

Documentos antigos podem conter imprecisões, informações fragmentadas, e até casos em que a descrição de fatos foi misturada à ficção. Isso exige do pesquisador uma postura cuidadosa, sendo necessário articular vários tipos de informação de diversas fontes, em um processo investigativo complexo, antes de chegar a conclusões. De qualquer forma, essas fontes fornecem elementos relevantes para o estudo da música do passado.

Entre as fontes mais remotas, há um particular tipo de registro textual: os relatos de viagem. O mais antigo relato é a Carta a El Rei D. Manuel, de 1º de maio de 1500, redigida pelo escrivão Pero Vaz de Caminha, que comunicava a chegada da frota de Cabral à costa brasileira.

NOTA

No famoso documento, Caminha reportou os dias em que a tripulação permaneceu no litoral em contato com os nativos, descrevendo brevemente suas danças e o uso de instrumentos. Também narrou uma ocasião em que portugueses e indígenas dançaram juntos ao som de uma “gaita”: E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziamno bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito (CAMINHA, 2018 [1500], s.p.). Segundo a bibliografia, o nome gaita pode se referir à gaita de foles, instrumento comum na Europa Ocidental; ou a um tipo de aerofone de palheta dupla (semelhante a um oboé); ou, ainda, a uma espécie de flauta (POCHÉ; SCHECHTER, 2001; SADIE, 1994).

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Os descobrimentos ocorridos em 1492 e 1500 encorajaram a vinda de viajantes para a América. “No século XVI, estiveram em moda os relatos de viagens e centenas de livros foram produzidos para atender ao público que os apreciava” (CASTAGNA, 2003, v. 2 p. 2-3). Contando aventuras e descrevendo (do ponto de vista europeu) os atributos exóticos do Novo Mundo, as publicações dos aventureiros se tornaram uma febre na Europa. Notícias sobre música estão em alguns desses escritos e, ainda que muito breves, têm grande importância. Encontros em áreas litorâneas fizeram com que europeus tivessem contato com grupos indígenas como o Tupinambá; algumas etnias tiveram sua música comentada ou descrita, e episódios musicais foram relatados. Vejamos exemplos que tratam da música indígena, a qual costumava ser noticiada em razão da proximidade entre viajantes e índios (CASTAGNA, 2010). • 1542: o missionário espanhol Gaspar de Carvajal passa pela foz do rio Amazonas. Posteriormente, escrevera sobre alguns dos instrumentos musicais que viu: “muitas trombetas e tambores, órgãos que tocam com a boca (flautas de pã) e arrabéis de três cordas” (CARVAJAL apud CASTAGNA, 2010, p. 6). • 1548: o aventureiro e mercenário alemão Hans Staden parte para o Novo Mundo e, mais tarde, em 1557, ao retornar à Europa, publica um relato de viagens ao Brasil. No livro, o estrangeiro narra um período de nove meses em que foi feito prisioneiro pelos Tupinambás, e menciona rituais indígenas envolvendo danças, cantos e instrumentos sagrados, como o maracá (CASTAGNA, 2010; LIMA, 2015). • 1557: o missionário francês Jean de Léry chega a uma colônia da França estabelecida no litoral do atual Rio de Janeiro. Mais tarde, em 1578, publicará a História de uma viagem feita à terra do Brasil, contendo descrições da música indígena; a terceira edição do livro (LÉRY, 1585) inclui trechos transcritos de cinco cantos nativos. Léry relata uma cerimônia que teria durado horas: “durante este tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão harmonioso que ninguém diria não conhecerem música” (LÉRY apud KIEFER, 1997, p. 10). FIGURA 2 – TRECHOS DE MÚSICA INDÍGENA TRANSCRITOS, POR JEAN DE LÉRY

FONTE: Léry (1585, p. 159-285)

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

NOTA

As transcrições de Jean de Léry são os únicos exemplos conhecidos de notação da música tradicional da etnia Tupinambá. No entanto, devido à grande diferença entre as culturas musicais indígenas e europeias, e às próprias limitações do sistema de notação musical europeu, tais transcrições são consideradas apenas aproximações, devido à impossibilidade de se registrar a maior parte dos detalhes e características daquela música (LIMA, 2015).

Há documentos citando a música tradicional africana no Brasil. Passada a fase inicial do descobrimento, os primeiros grupos de africanos escravizados começaram ser trazidos para o Brasil na década de 1530. Por volta de 1549, a colonização portuguesa começou a ganhar maior vulto. Com a maior exploração da mão de obra escrava, crescia a quantidade de africanos trazidos para o Brasil, sobretudo depois que Portugal começou a obter resultados no cultivo da cana-de-açúcar (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018). O lucrativo tráfico de escravos foi abolido no final do século XIX. Relatos posteriores à fase inicial da colonização, portanto, já mencionam a presença das populações negras e sua música no cotidiano da colônia. Contudo, são poucas as fontes que noticiam a música africana, a qual não despertava nos brancos a mesma curiosidade que a indígena. Ao mesmo tempo, devemos considerar o contexto da escravidão: os autores da época deram pouca atenção a essa música, pois somente a força braçal dos africanos importava, havendo desprezo por sua cultura. Portanto, as menções nos documentos costumam ser infrequentes e superficiais até final do século XVIII (CASTAGNA, 2003, 2010). Além disso, também aparecem na documentação notícias de índios e negros executando música europeia, e não a sua própria música. Analisemos um exemplo do início do século XVII: • 1610: o aventureiro francês Pyrard de Laval, após passar cerca de dez anos em viagens, visita o litoral do Brasil por dois meses. Em livro publicado em 1611 (LAVAL, 1858), o viajante conta sobre momentos em que se divertiu ao presenciar a música e a dança dos negros, as quais ocorriam nas ruas, durante os poucos momentos de lazer permitidos aos escravos africanos nos domingos e nos dias santos. Laval ainda menciona um grupo de músicos orientado por outro francês, natural de Provença, que ele conhecera na Bahia. Um rico senhor de engenho da região tinha um grupo em sua propriedade, e “este francês, que estava em sua casa, era músico e tangedor de instrumentos; e servia-lhe para ensinar música a vinte ou trinta escravos, que todos juntos formavam uma consonância de vozes e instrumentos, que tangiam sem cessar” (LAVAL, 1858, p. 279). Quanto aos escravos músicos citados nessa passagem, não fica claro se eram africanos, podendo igualmente ser uma referência a um grupo de indígenas escravizados. 13

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Além dos relatos escritos, há as imagens. Adiante, veremos fontes iconográficas representativas do período mostrando traços da cultura indígena na América Portuguesa dos séculos XVI e XVII (BIBLIOTECA NACIONAL, 1974; KIEFER, 1997; LIMA, 2015; MAGALHÃES-CASTRO, 2012).

NOTA

A iconografia é o estudo das imagens (CASTAGNA, 2008a). Pinturas, esculturas, desenhos, xilogravuras, litogravuras, iluminuras etc., são documentos históricos importantes para os estudos musicológicos. Associada às fontes textuais e musicais, a iconografia pode ajudar a completar eventuais lacunas de informação. São de interesse para a musicologia as fontes visuais que contêm informações como: • Dimensões de um instrumento musical antigo, e detalhes sobre construção e materiais. • Indicações sobre determinada técnica de execução instrumental vistas em cenas retratando músicos tocando; pistas sobre ritmo e andamento, que podem ser detectados a partir de gestos e movimentos coreográficos representados em cenas de dança. • Aspectos sobre o contexto em que a música estava presente, como grupos de músicos e/ou cantores, sua quantidade, disposição física e a maneira como a música era apresentada no espaço físico (igrejas, teatros, ar livre, ambientes domésticos etc.). Conheça estudos sobre iconografia musical na base de dados do Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil — RIdIM. O material está disponível em: .

A imagem a seguir, produzida pelo francês Theodor de Bry em c.1590, é uma gravura que ilustra uma reedição de relatos de viajantes como Staden e Léry, tendo também como base textos e outras gravuras da época.

FIGURA 3 – ÍNDIOS DANÇANDO E USANDO O CHOCALHO MARACÁ (c.1590), POR THEODOR DE BRY

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

Como veremos nas próximas figuras, ao longo do período colonial, a música nativa atraía a atenção de artistas europeus que vinham para o Brasil. Um exemplo é a pintura Dança dos Tarairiú (c.1645), de Albert Eckhout, artista que esteve no Nordeste durante o período da ocupação holandesa (1630-54) e retratou o cotidiano da colônia em suas obras.

FIGURA 4 – DANÇA DOS TARAIRIÚ (c.1645), POR ALBERT ECKHOUT

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

A imagem seguinte — mais tardia, datada do séc. XVIII —, é um desenho do naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, que retrata um indígena com um instrumento de sopro.

FIGURA 5 – USO DE BUZINA POR ÍNDIO DA AMAZÔNIA, (c.1790), POR ALEXANDRE R. FERREIRA

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

TUROS ESTUDOS FU

Mais tarde, no século XIX, artistas como Jean-Baptiste Debret e Johann Rugendas também se interessaram pela vida musical do Brasil, e mais imagens como estas foram produzidas. Na Unidade 2, continuaremos examinando a tradição da música não escrita. Logo, veremos mais exemplos de iconografia musical, em especial sobre a música afro-brasileira.

4 OS JESUÍTAS NO BRASIL Um dos tópicos mais relevantes e complexos no estudo das origens da música brasileira é o período de cerca de dois séculos (1549-1759) que delimitou a atuação da Companhia de Jesus no Brasil colonial. Nas primeiras décadas do século XVI, a colonização começou muito lentamente. Em 1532, ocorreu a fundação de São Vicente e, dois anos depois, a criação do sistema de capitanias hereditárias. No entanto, foi somente em 1549 que a colônia se firmaria de vez com a implantação do Governo-Geral (com Tomé de Souza no cargo), com a fundação de Salvador e outros eventos. Nesse ano, o padre Manuel da Nóbrega e os primeiros clérigos da Companhia de Jesus — os chamados padres inacianos ou jesuítas —chegaram ao Brasil (BIASON, 2008; HOLLER, 2006a; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Esta é uma data importante na tradição da música escrita, pois marca “o início de uma atividade musical de feições europeias” no Brasil (CASTAGNA, 2003, v. 1, p. 1).

NOTA

A Companhia de Jesus é uma das várias ordens religiosas católicas que atuaram (e ainda atuam) no Brasil. Fundada em 1534, por Inácio de Loyola, para “cristianizar o mundo antes que os protestantes o fizessem” (CASTAGNA, 2010, p. 9), sua criação foi uma das medidas tomadas pela Igreja Romana na era da Contrarreforma (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; HOLLER, 2006a; SCHWARCZ; STARLING, 2018).

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

A principal incumbência dada aos padres jesuítas foi a catequização e conversão dos índios, o que envolvia o uso da música religiosa europeia como um dos principais recursos para atração e persuasão dos nativos. Outras ordens religiosas também mantinham atividades semelhantes, mas a atuação dos inacianos foi mais influente (BÉHAGUE, 2001a; HOLLER, 2006a). Padres da Companhia de Jesus estabeleciam aldeias, onde reuniam índios convertidos, chamadas missões ou reduções. Em muitos desses assentamentos — sobretudo nos mais prósperos e duradouros, como as missões dos territórios guaraníticos —, a vida era organizada, igualitária e pacífica (MIRANDA NETO, 2012; PAIM, 2012). A prática musical atendia às necessidades da catequização e era parte do cotidiano. Além do ensino de música, o trabalho dos inacianos também envolvia esforços como estudar as línguas nativas (e os padres rapidamente aprenderam), para as quais os cantos católicos eram traduzidos (CASTAGNA, 2010). Inicialmente, religião e música foram estratégicas para os planos de exploração comercial, tendo em vista que a aproximação era uma forma de aprender sobre os costumes, o comportamento e a dinâmica social das comunidades indígenas. O poder de atração da música contribuía para um convívio pacífico, e assim a dominação muitas vezes ocorria de maneira não violenta (CASTAGNA, 2003, 2010, 2014; CALDAS, 2010; HOLLER, 2006a; TINHORÃO, 2004). A resistência dos nativos à aproximação do branco era diminuída, por exemplo, por meio do ensino de música aos curumins (crianças indígenas), sendo estes “interlocutores entre os padres e os [índios] adultos [...], normalmente arredios à presença dos europeus” (AGUILAR, 2018, p. 189). Em 1554 já havia índios músicos e, em 1580, a música feita por eles teria alcançado um nível significativo de desenvolvimento (CASTAGNA, 2010). No século seguinte, fontes indicam a prática de música sacra com a participação de índios músicos bem treinados: por volta de 1600, os nheengaribas ou nheengaraíbas (“músicos da terra”), eram “índios capazes de reproduzir todas as manifestações musicais básicas do culto cristão e que normalmente viajavam de aldeia em aldeia levando seus instrumentos musicais, normalmente charamelas” (CASTAGNA, 2003, v. 3, p. 2).

NOTA

Os índios também participavam de encenações teatrais religiosas, os chamados autos, que foram trazidos pelos jesuítas e possuem suas raízes em dramas sacros da Era Medieval. No Brasil, os autos estão ligados à origem de festas e danças populares ainda existentes no interior do país (CASTAGNA, 2003; TINHORÃO, 2004; WISNIK, 2000).

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Ainda que fontes musicais desse cenário não tenham sobrevivido, estudos em fontes textuais a respeito dos jesuítas (AGUILAR, 2018; HOLLER, 2006a, 2006b; CASTAGNA, 2003, 2010, 2012, 2014) vêm expondo características deste universo musical: • Havia predomínio da prática de música vocal sacra, com textos em latim (língua da liturgia católica). • Os inacianos ensinavam aos nativos o cantochão e o canto de órgão (nomes da época para o canto gregoriano e a música vocal polifônica, respectivamente), que eram os principais tipos de música religiosa executados por índios nas cerimônias. • A música também era parte das festas, procissões e comemorações do calendário católico. • Os textos das orações e cantos eram traduzidos para línguas nativas como o tupi. • Eram usados instrumentos — flautas doces, charamelas, violas, rabecas, órgãos, entre outros — quase sempre construídos pelos próprios índios com materiais disponíveis na região. • Na música polifônica (canto de órgão), os cantores eram acompanhados por pequenos conjuntos instrumentais, como grupos de flautas doces; no entanto, peças polifônicas vocais também podiam ser tocadas somente com instrumentos. • Para os curumins eram ensinados flauta doce e canto. • Em menor número, o repertório abrangia canções de origem ibérica em português e espanhol, e cantos adaptados pelos jesuítas usando melodias indígenas com texto cristão (no entanto, a música indígena foi logo abandonada e proibida). O jesuíta José de Anchieta (1534-1597) é conhecido por sua obra literária e por ter compilado a gramática da língua tupi, entre outros feitos. Anchieta costumava adaptar versos religiosos à melodias de canções profanas trazidas da cultura ibérica; essa prática é conhecida como divinização (BUDASZ, 1994, 1996; TINHORÃO, 2004).

DICAS

Venid a sospirar com Jesu amado é uma versão de José de Anchieta para Venid a sospirar al verde prado, de um anônimo europeu do século XVI. Ouça em: .

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TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

FIGURA 6 – RETRATO DE ANCHIETA

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

A seguir, vamos discorrer sobre a música no contexto das Américas Portuguesa e Espanhola, buscando ampliar a compreensão acerca das origens da música no Brasil e das questões indígena e jesuítica.

4.1 MÚSICA NAS AMÉRICAS PORTUGUESA E ESPANHOLA Considerando a vasta extensão territorial das Américas, as diferentes experiências de ocupação, povoamento e exploração econômica implantadas nas colônias mantidas por Portugal e Espanha pressupõem que as condições em que a música era produzida eram muito variadas. No que diz respeito à exploração das riquezas naturais e à maneira (muitas vezes violenta) como as ocupações aconteciam, a colonização espanhola guarda semelhanças com a portuguesa. No entanto, a Espanha iniciou precocemente o povoamento, adotando um modelo político que dava certa autonomia às colônias; enquanto na América Portuguesa, a ocupação foi lenta e tardia, e o poder era mais centralizado. O Brasil demorou a tornar-se português [...], em parte porque os índios o dominavam de fato — a presença lusitana restringindo-se a pequenos pontos isolados na costa — em parte porque Portugal, concentrado nos ‘fumos da Índia’, não se interessou inicialmente em explorá-la (AMADO; FIGUEIREDO, 2001, p. 43)

No início do século XVI, “a exploração dos recursos naturais era um pressuposto e uma motivação de primeira ordem” para Portugal (COTTA, 2001, p. 73), e o comércio marítimo a ela associado era prioridade. A expansão territorial envolvia riscos: no exemplo do Brasil, o vasto litoral era vulnerável e passou a ser 19

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

disputado por outros reinos, como França e Holanda. “Portugal só se decidiu pela colonização onde e quando esteve à beira de perder largas terras, caso típico do Brasil” (AMADO; FIGUEIREDO, 2001, p. 19). Assim, em termos gerais, com o comércio sendo o principal objetivo da Coroa portuguesa, parece não ter havido preocupação com o desenvolvimento cultural e civilizacional em suas colônias — ao passo que em áreas hispânicas, como México e Peru, existiam universidades já na década de 1550. Nestes lugares, desde muito cedo, existiam oficinas de impressão musical, por exemplo. No México se imprimia música em 1539; no Peru, partituras de música polifônica a quatro vozes eram impressas na década de 1630. No Brasil, a tipografia foi proibida até 1808, e a atividade de impressão musical surgiu somente na década de 1830, no Rio de Janeiro (BANEGAS, 1998; BIASON, 2008; BINDER; CASTAGNA, 1998; CASTAGNA, 2010; VEIGA, 2004). Na música jesuítica também são vistas diferenças importantes entre os dois contextos (o contexto da América Portuguesa e o contexto da América Espanhola), sobretudo quando se trata da documentação histórica conhecida na atualidade. Embora a Companhia de Jesus tivesse princípios que guiassem a sua ação enquanto ordem religiosa, sua atuação junto às populações indígenas aconteceu de forma desigual nas duas Américas (HOLLER, 2006b). Mesmo depois de alcançar algum êxito, as aldeias brasileiras eram mais efêmeras, e muitas sofreram decadência a partir do século XVII, “quando o número de índios aldeados começou a diminuir sensivelmente” (CASTAGNA, 2003, v. 3, p. 2), o que pode ter prejudicado suas atividades musicais. [Os jesuítas] tiveram que encarar duas tarefas de realização extremamente complexa: na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do século XVII lutaram contra a resistência dos índios a esse processo, enquanto nos períodos subsequentes lutaram contra o desaparecimento dos mesmos índios, devido aos avanços da colonização. Por outro lado, os indígenas brasileiros se viram entre a deculturação promovida pelos jesuítas em nome do ideal cristão, e a submissão à colonização branca, por escravidão, morte ou, no mínimo, expulsão de seus territórios nativos (CASTAGNA, 2003, v. 3, p. 1).

Os jesuítas procuravam evitar o contato dos índios convertidos com o homem branco, a violência e as doenças. Apesar disso, aldeias jesuíticas próximas à costa foram extintas pelo crescimento dos primeiros centros urbanos, ocasionando maior e mais frequente contato dos indígenas com populações brancas (CASTAGNA, 2010; HOLLER 2006a, 2006b). A crescente proximidade aumentou a perseguição e escravização. Entre 1580 e 1640, durante um período de junção dos reinos de Portugal e Espanha (União Ibérica), as fronteiras firmadas pelo antigo tratado de Tordesilhas (1494) se tornaram indistintas e confusas, o que estimulou exploradores paulistas (os bandeirantes) a adentrarem terras espanholas. No Nordeste, aumentava a demanda por mão de obra escrava nos canaviais, e os bandeirantes que supriam 20

TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

mercados de escravos (como São Paulo) viam as aldeias jesuíticas mais próximas (por exemplo, no Paraná) como uma atraente fonte de lucro. “Caçados como animais nas áreas de onde eram originários ou para onde haviam se mudado desde o litoral”, os índios fugiam para regiões cada vez mais distantes (AMADO; FIGUEIREDO, 2001, p. 48) e a escravidão resultava em morte e doenças. Tudo isso afastava os índios das atividades mantidas pelos padres — e, portanto, da prática musical, “não lhes restando tempo e energia para se dedicarem às tarefas religiosas, entre elas a confecção e a execução de instrumentos, o estudo, a cópia e a composição de música” (CASTAGNA, 2010, p. 12). Além disso, mesmo que os nativos fossem protegidos pelos padres, havia “indícios de que os regulamentos não eram obedecidos” e suspeitas de exploração dos indígenas por parte dos próprios jesuítas: “notórios defensores da liberdade dos índios, eram acusados de utilizá-los para seus propósitos” (HOLLER, 2006a, p. 38). No Brasil, mesmo após esse declínio, os inacianos permaneceriam atuando e, algumas reduções se conservaram até o século XVIII. A Companhia de Jesus tinha boa situação econômica, acumulando terras, rebanhos e bens materiais (HOLLER, 2006a, 2006b; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Contudo, o que antes servia aos interesses da Coroa passou a ser visto como uma ameaça. Após uma complexa trama de eventos e fatores políticos. Isso resultou, em 1759, na expulsão dos jesuítas do Brasil e do reino de Portugal — e, posteriormente, de outros países. Com isso, quase toda a documentação sobre a música dos ambientes jesuíticos da América Portuguesa desapareceu, ou seja, aproximadamente 200 anos de manuscritos e documentos, possivelmente contendo materiais musicais, foram destruídos ou confiscados (e parte atualmente está em arquivos na Europa). Não restaram fontes musicais. A atuação musical dos jesuítas certamente influenciou a formação da cultura brasileira ou de identidades culturais regionais; porém, é difícil determinar até que ponto isso ocorreu, devido à interrupção desse processo com a expulsão (HOLLER, 2006a, p. 2).

Na América Espanhola, até o século XVIII, missões ainda se mantinham e prosperavam, mesmo após o fim de muitas das aldeias situadas no Brasil. Muitas reduções espanholas ficavam em regiões interioranas, mais afastadas da movimentação urbana e de possíveis riscos à população indígena (CASTAGNA, 2010; HOLLER, 2006a). Isso possibilitou maior autonomia às comunidades, e seus membros podiam se envolver mais nas atividades musicais —como a construção de instrumentos, até os mais sofisticados como o órgão (BANEGAS, 1998). Além da música, há exemplos notáveis de arte sacra feita nas aldeias espanholas, ainda preservados. Entre as reduções que desfrutaram de maior independência estiveram as fundadas nos territórios guaranis — atualmente, regiões da Bolívia, do Paraguai, da Argentina e partes do Sudeste e Sul do Brasil. As missões “alcançaram um estágio extraordinário de desenvolvimento, construindo seus próprios instrumentos e executando música europeia de relativa complexidade técnica” (CASTAGNA, 1994, p. 1). 21

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

DICAS

Para você se ambientar com o século XVIII e as reduções jesuíticas, assista A Missão, com Jeremy Irons e Robert De Niro nos papéis principais. Embora seja ficcional, o filme foi inspirado na história de missões no contexto das Guerras Guaraníticas e do declínio jesuítico na década de 1750.

FONTE: . Acesso em: 24 abr. 2020.

Mais tarde, cerca de oito anos depois da expulsão do reino português, os inacianos foram igualmente banidos das colônias espanholas. No entanto, a perda de documentos não foi tão drástica quanto a que ocorreu em muitos lugares no Brasil: muitas reduções espanholas, por serem afastadas, foram simplesmente abandonadas. Parte da documentação pode ter sobrevivido devido a isso. “Várias partituras passaram de mão em mão entre os índios até serem redescobertas no século XX” (HOLLER, 2006b, p. 352). Outro fato importante é que, nos territórios hispânicos, a cultura musical nascida nas missões se manteve e “várias comunidades locais continuaram a praticar, até hoje, muitas das obras utilizadas nos séculos XVII e XVIII, sendo responsáveis por sua preservação” (CASTAGNA, 2003, v. 5, p. 1). É notória a abundância de informações sobre a prática musical nas reduções jesuíticas da América Espanhola, desde a chegada dos primeiros jesuítas, em 1610, até sua expulsão em 1767 [...]. O legado desta atuação é rico, não obstante seu estado de conservação e, além de instrumentos musicais, foram descobertas partituras, muitas já publicadas e gravadas (HOLLER, 2006b, p. 344).



Vários nomes de músicos que atuaram no ambiente jesuítico espanhol são conhecidos. Um deles é o compositor e organista italiano Domenico Zipoli (16881726), o qual veio para a América do Sul em 1717 e se estabeleceu em Córdoba (atual região central da Argentina). Muitas de suas obras foram compostas na 22

TÓPICO 1 — INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL

América, sendo executadas e incorporadas ao repertório das reduções espanholas. A produção de Zipoli é, portanto, um indicativo do nível de desenvolvimento musical alcançado naquelas comunidades (CASTAGNA, 2012; HOLLER, 2006b; STEVENSON, 2001).

DICAS

Fique por dentro do assunto! Ouça Misa San Ignacio, de Domenico Zipoli, em: .

5 CRONOLOGIA Dessa forma, finalizando o Tópico 1, como principais eventos ocorridos durante a primeira metade do período colonial brasileiro, podemos destacar:

QUADRO 1 – SINOPSE DOS EVENTOS HISTÓRICOS DO TÓPICO 1

ANO 1492 1494 1500 1500 c.1530-40 1532 1534 1539 1542 1548 1549 1549 c.1550 c.1554

EVENTO Viagem de Colombo. Tratado de Tordesilhas. Viagens de Pinzón e Cabral. Carta de Caminha. Primeiros africanos escravizados são trazidos para o Brasil. Fundação de São Vicente. Capitanias hereditárias. América Espanhola: impressão musical no México. Viagem de Gaspar de Carvajal. Viagem de Hans Staden. Governo Geral e fundação de Salvador. Chegada dos jesuítas América Espanhola: universidades no México e no Peru. Prática de música sacra entre índios.

1557 1580-1640 c.1600 1610 1630-1654 c.1640 1717 1759

Viagem de Jean de Léry. União Ibérica. Nheengaribas (índios músicos) Pyrard de Laval relata conjunto de escravos músicos na Bahia. Holandeses em Pernambuco. Música em imagens de artistas como Albert Eckhout. América Espanhola: Domenico Zipoli. Expulsão dos jesuítas. FONTE: O autor

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RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • A musicologia é o campo da ciência que se dedica ao estudo sistemático da música como um fenômeno multifacetado e inserido no contexto histórico e sociocultural. • A musicologia histórica pesquisa especificamente a música de tempos anteriores, e envolve o estudo de manuscritos mantidos em acervos, a restauração de obras e a edição, gravação e publicação de repertório antigo, além da produção de textos científicos sobre história da música. • A música no Brasil se originou por meio da interação entre elementos culturais ameríndios, africanos e europeus, com processos de aculturação, assimilação e ressignificação iniciados no século XVI. • Ao longo dos mais de 500 anos, complexas fricções e hibridações deram origem a diferentes tipos de música, e cada um deles sofreu graus de mistura cultural, pois a contribuição dada por cada etnia se deu de forma desigual, em diferentes momentos da história do Brasil. • Na história da música brasileira estão presentes duas grandes tradições: a tradição de música escrita — a música erudita — e a tradição de música não escrita — a música de transmissão oral (tradicional, folclórica e popular). • No Brasil, a tradição de música escrita possui uma história peculiar, e sua trajetória não coincide com os períodos da história da música europeia. • A música da maioria dos povos ameríndios pré-cabralinos é desconhecida, apesar de sua existência ser relatada em documentos históricos da época do descobrimento e da colonização. • Apesar da grande contribuição das culturas indígenas na formação da sociedade brasileira, a influência da música indígena na música brasileira é menos percebida. • A primeira metade do período colonial brasileiro é pouco documentada e, entre os registros existentes do início do período, destacam-se os relatos de viajantes e as imagens retratando prática musical. • O mais antigo relato sobre música no Brasil é a carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500.

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• No século XVI, viajantes como Gaspar de Carvajal e Hans Staden noticiaram a presença da música e o uso de instrumentos nas culturas indígenas. • O missionário Jean de Léry deixou relatos sobre música indígena, incluindo tentativas de transcrição de cantos que ouviu dos índios tupinambás. • O aventureiro francês Pyrard de Laval registrou um grupo musical formado por escravos músicos na Bahia, em 1610. • A iconografia é o estudo de fontes visuais visando à obtenção de informações sobre a música por meio de imagens. • Em 1549, inicia-se no Brasil a cultura musical que seguia padrões europeus (tradição de música escrita), influenciada pela atuação dos padres da Companhia de Jesus. • A música sacra europeia foi utilizada pelos jesuítas como ferramenta para cristianização de povos nativos, e as missões ou reduções possuíam atividades musicais. • No século XVII, índios músicos treinados — chamados de nheengariba — eram conhecedores das práticas musicais da igreja católica. • Os índios participavam dos autos, uma espécie de peça teatral religiosa de origem medieval. Os autos jesuíticos estão ligados às origens de várias festas e danças populares do interior do Brasil. • Na música jesuítica havia um predomínio de música sacra vocal, com textos em latim, mas comumente cantos e orações eram traduzidos para línguas indígenas. • Os jesuítas ensinavam aos indígenas o canto gregoriano e a música vocal polifônica, chamados na época de cantochão e canto de órgão, respectivamente. • O repertório jesuítico também possuía canções ibéricas em português e espanhol, bem como melodias indígenas recebiam versões com texto cristão. • A prática da divinização consistia em adaptar um texto religioso à melodia de canções profanas, como fazia o jesuíta José de Anchieta. • Os instrumentos musicais usados pelos jesuítas incluíam flauta, charamela, órgão, viola, rabeca. Era comum que a música polifônica vocal fosse executada com instrumentos. • O canto e a flauta doce faziam parte do ensino de música para as crianças indígenas.

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• Os jesuítas foram expulsos da América Portuguesa em 1759, e praticamente toda a documentação sobre a música jesuítica desapareceu. • Nas colônias hispânicas, a impressão musical fora iniciada no século XVI, e as reduções jesuíticas atingiram maior desenvolvimento da música e de atividades a ela ligadas — como a construção de instrumentos —, sendo parte significativa do repertório da época conhecido, devido às fontes musicais que sobreviveram em maior número. • O italiano Domenico Zipoli, compositor do contexto jesuítico espanhol, veio para a América do Sul em 1717, e suas obras fizeram parte do repertório musical das missões.

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AUTOATIVIDADE 1 Analise as afirmativas a seguir sobre a música no Brasil durante a primeira metade do período colonial: I- É possível reconstruir a música tupinambá com grande precisão, devido ao alto grau de detalhamento das transcrições feitas por Jean de Léry, no século XVI. II- A vinda dos jesuítas está ligada ao início da prática musical nos moldes europeus. III- A música europeia teve rápida disseminação no Brasil, pois Portugal tinha como prioridade amplo projeto de desenvolvimento civilizatório e cultural nas colônias. IV- O uso de instrumentos musicais pelos índios aparece em fontes iconográficas. Agora, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente as afirmativas I, II e IV estão corretas. b) ( ) Somente as afirmativas I e III estão corretas. c) ( ) Somente as afirmativas II e IV estão corretas. d) ( ) Todas as afirmativas estão corretas. 2 Sobre a música no contexto jesuítico, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) A maior parte do repertório jesuítico era formada por música vocal profana. b) ( ) Nheengaribas era o nome dado pelos índios aos padres europeus que ensinavam música. c) ( ) Muitas fontes musicais do cenário jesuítico colonial brasileiro são conhecidas atualmente. d) ( ) O ensino de música para crianças indígenas era baseado no canto e na flauta doce. 3 (FUNDAÇÃO UNIVERSA, 2015) Considerando a história da música brasileira e a catequese, prática utilizada pelos colonizadores para incutir nos indígenas a cultura, a música e a religião europeias, assinale a alternativa CORRETA:

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

a) ( ) Vítimas de epidemias e massacres constantes, os indígenas se afastaram dos colonizadores, passando a viver em regiões mais remotas. Por esse motivo, a contribuição indígena na formação da música brasileira é considerada pequena pelos historiadores. b) ( ) Os indígenas brasileiros contribuíram maciçamente para a música brasileira contemporânea. 27

c) ( ) A catequese pautava-se pela valorização das expressões artísticas e musicais ameríndias. Nesse contexto, podem ser destacados as interpretações e os estudos de músicas indígenas feitos por padres jesuítas. d) ( ) No período colonial brasileiro, os índios, após assimilarem rapidamente a tradição musical europeia, tornaram-se peritos em compor trovas e canções de amor.

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TÓPICO 2 —

UNIDADE 1

A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX 1 INTRODUÇÃO Este tópico trata da ascensão da música de matriz europeia — a tradição escrita. Continuaremos abordando o processo de desenvolvimento desta tradição musical, a qual teve estreita relação com fatos que impactaram a história brasileira, como os ciclos do açúcar e do ouro e, mais tarde, a vinda da corte portuguesa ao Brasil e a independência. Veremos aspectos específicos da música no Brasil colonial, entre meados do século XVII o período final do século XVIII. Também vamos tratar sobre a documentação existente e as fontes musicais mais antigas do Brasil, bem como os primeiros exemplos musicais conhecidos, reconstruídos em gravações atuais.

2 PERÍODO COLONIAL – SEGUNDA METADE (c.1650-c.1800) Nessa fase do período colonial, destacam-se fatores importantes, como a economia açucareira no Nordeste (seu auge e declínio) e a descoberta das minas de ouro no interior do Brasil, causando intensas mudanças na vida da colônia. A presença da música nessa etapa é atestada pela documentação que sobreviveu até os nossos dias; porém, muitas das informações (quando existem) são vagas e fragmentadas. Restam fontes musicais, mas em pequeno número quando comparadas, por exemplo, à quantidade de compositores identificados por meio de fontes textuais. Além disso, a maior parte dos registros sobre a música dos séculos XVII e XVIII se reporta à atividade musical ligada à Igreja (BÉHAGUE, 2001a; BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003). Sobre a música com função religiosa (CASTAGNA, 2001b, 2003, 2010), podemos destacar que: • Havia predomínio de música vocal composta para coro, podendo ser policoral (mais de um coro), baseada nos textos preexistentes usados no culto católico, como o missal, contendo os textos da missa, o antifonário, o gradual e outros, em geral, em latim. • Os termos antigos para os tipos de composição eram cantochão, para o canto gregoriano, e canto de órgão ou canto figurado, no caso da música polifônica, como já vimos no Tópico 1.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

• Quanto ao uso da polifonia, há repertório escrito em estilo antigo, nos moldes renascentistas (cujo modelo é Giovanni Pierluigi da Palestrina, 1525 – 1594), mas outras obras refletem o estilo moderno (a estética barroca). Esta terminologia é usada com base na distinção proposta por Claudio Monteverdi (1567-1643). Entre a metade e o final do período, tornam-se perceptíveis as influências do estilo pré-clássico (Itália e Portugal) e, adiante, do estilo clássico e da ópera. • Alguns compositores do período colonial também produziram tratados de cunho didático, visando ao ensino de teoria, solfejo e música polifônica. O estudo aprofundado da teoria musical necessária para produzir música polifônica, mais elaborada e complexa, era chamado de música especulativa. Já o termo música prática se referia à prática envolvida no simples ato de cantar ou tocar. Nessa fase, destaca-se a produção musical do Nordeste (mais voltada à estética barroca) e, mais tarde, das regiões mineiras (por influência do préclassicismo). Outros lugares, como São Luís, Belém, Rio de Janeiro e São Paulo também são historicamente relevantes, mas tiveram desenvolvimento mais tardio (BÉHAGUE, 2001a; CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997).

2.1 PRIMEIROS CENTROS DE PRODUÇÃO MUSICAL Nos ambientes rurais do Nordeste, a música estava presente nos engenhos de cana, onde existiram grupos de escravos músicos (como o exemplo descrito por Pyrard de Laval, abordado no Tópico 1). Mas a vida musical do século XVII se intensificava em centros urbanos, como Olinda e Salvador, cujas populações cresciam com as migrações atraídas pelo crescimento econômico do mercado açucareiro (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Mais tarde, no século XVIII, o ouro provocou algo parecido na região do atual estado de Minas Gerais. Acompanhando o crescimento das cidades, o catolicismo se firmava territorialmente, por meio da fundação de novas igrejas, e a música religiosa era cada vez mais necessária, por ser um importante componente relacionado à dinâmica da religião, em especial na liturgia do culto católico. Isso favoreceu o estabelecimento de uma produção musical regular e profissional (ou semiprofissional), devido ao aumento no número de espaços em que havia tal demanda. O mercado de cana-de-açúcar atraiu a migração de portugueses e “o Nordeste assistiu a uma assimilação maciça da cultura lusitana, que obviamente incluiu a prática da música segundo o gosto português da época” (CASTAGNA, 2003, v. 7, p. 1). Assim, o repertório praticado na região era formado basicamente por obras europeias trazidas de Portugal e/ou compostas por portugueses.

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

Entretanto, em meados do século XVII, iniciou-se uma produção local com o gradual surgimento dos primeiros compositores ligados ao meio sacro. A produção ainda seguia modelos lusitanos, o que eventualmente levou compositores baianos e pernambucanos a estudarem em Portugal (CASTAGNA, 2003, 2010). Apesar do aumento na produção, pouco se sabe sobre a música, mesmo porque a documentação é desconhecida, com poucas exceções. Nos núcleos urbanos, havia maior atividade nos templos de maior porte: nas catedrais e nas igrejas matrizes, a demanda por música trouxe da Europa a figura do mestre de capela, cujo papel foi essencial na fase dos primórdios da composição musical no Brasil (CASTAGNA, 2003).

NOTA

O termo capela tem acepção mais ampla do que “pequena igreja” ou qualquer outro espaço físico destinado ao culto religioso; no contexto da música, segundo o Dicionário Grove, capela significa “grupo de músicos assalariados que serviam a uma instituição eclesiástica”, podendo ainda se referir a músicos que trabalhavam “na casa ou na corte de um prelado, de um monarca ou um nobre” (SADIE, 1994, p. 168; APEL, 1974; FERREIRA, 2004; KENNEDY, 1996). A palavra também pode ter o significado mais específico de “grupo de cantores” — ao qual se associa a expressão à capela (do italiano a cappella ou alla cappella, “na capela”, “em estilo capela”), significando qualquer música vocal sem acompanhamento instrumental. O profissional responsável pela música, nessas instituições, era o mestre de capela, cargo cujas tarefas incluíam a composição do repertório, preparo de cópias, execução, ensaios, direção dos músicos e cantores e ensino de música (AMMER, 2004; CASTAGNA, 2003, 2004; HAGGH; POINDEXTER, 2001; SADIE, 1994).

2.1.1 Pernambuco Fundadas na década de 1530, Recife e Olinda estão entre as cidades mais antigas do litoral brasileiro, onde a prática musical remonta a 1564. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a música em Pernambuco foi estimulada pelo sucesso econômico do açúcar e pela rica elite surgida no local, a qual financiava e consumia a produção artística. Já foram descobertos cerca de 600 nomes nesse contexto, entre compositores, instrumentistas, cantores, regentes e teóricos (BÉHAGUE, 2001e; CASTAGNA, 2003, 2010; KIEFER, 1997). Entre os nomes de compositores conhecidos estão:

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

• Em Olinda: Gomes Correia (século XVI), primeiro mestre de capela; José do Nascimento (?-1733); Antônio da Silva Alcântara (1771-?), o qual teria produzido número expressivo de obras, como música instrumental para violino e para grupos de sopros, além de várias peças sacras para coro e orquestra, incluindo obras policorais. • Em Recife: Manoel da Cunha (c.1650-1734); Inácio Ribeiro Noia (1688-1773), mestre de capela e renomado compositor de sua época; Luís Álvares Pinto (1719-1789). Sabe-se pouco sobre a cena musical pernambucana e seus compositores, porque toda a sua produção está desaparecida. Algumas obras de Luís Álvares Pinto são a única exceção. Compositor e teórico, descendente de africanos, estudou em Portugal e foi professor de membros da nobreza portuguesa; foi mestre de capela em Recife, e esteve entre os compositores mais renomados do Nordeste em sua época. Sobreviveram duas obras didáticas suas: Arte de solfejar, de 1761, e o Músico e Moderno Sistema para Solfejar sem Confusão, de 1776. Outras duas composições são conhecidas: Salve Regina, para três vozes e baixo; e Te Deum laudamus, para quatro vozes e baixo, datada de c.1760, que está entre as mais antigas composições do Brasil de que se conhece a autoria. A escrita polifônica com imitações melódicas é distintiva do estilo musical destas obras, possuindo semelhanças com o estilo barroco português do século XVIII (BÉHAGUE, 2001a; BINDER; CASTAGNA, 1998; CASTAGNA, 2003; RÖHL, 2016).

DICAS

Ouça algumas das obras de Luís Álvares Pinto: • Te Deum laudamus (c.1760), disponível em: . Peças que fazem parte do Músico e Moderno Sistema para Solfejar sem Confusão (1776): • Lições de Solfejo, disponível em: . • Divertimento Harmônico n.º 1: Beata virgo, disponível em: . Partitura (IMSLP), disponível em: .

2.1.2 Bahia Salvador foi capital da colônia desde sua a fundação, em 1549, até 1763. Associada ao êxito econômico no ciclo do açúcar e no tráfico de escravos, sua relevância política fez surgir uma importante cena de música sacra cujo núcleo era a Sé de Salvador, a igreja mais importante do Brasil até a primeira metade do século XVIII (CASTAGNA, 2003). Em Salvador, foram mestres de capela: Bartolomeu Pires, entre 1560 e 1586, Joaquim Corrêa, entre 1661 e 1665, aproximadamente, 32

TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

e Antônio de Lima Carseres, entre 1666 e 1669, entre outros (BÉHAGUE, 2001g; KIEFER, 1997). Na Sé, entre sua fundação, em 1551, até meados do século XVII, a música era formada, basicamente, pelo cantochão. Por volta de 1670, começara a produção de canto de órgão por mestres treinados nesta arte (CASTAGNA, 2003). Igualmente ao que ocorreu em Pernambuco, quase toda a documentação musical baiana do período está perdida. A seguir, apresentamos personagens da Bahia nessa fase, cuja produção musical está desaparecida (BÉHAGUE, 2001e, 2001g; CASTAGNA, 2003, 2010): • Eusébio de Matos (1629-1692), compositor de música religiosa (irmão de Gregório de Matos, o famoso poeta, que também era músico e compositor de canções). • João de Lima (século XVII), pernambucano que atuou na Bahia, renomado na época, foi o primeiro mestre de capela a implantar a prática de música polifônica e seu estudo teórico (música especulativa). • Frei Agostinho de Santa Mônica (1633-1713), português que veio para o Brasil por volta de 1680. No contexto baiano, pode ter sido o mais importante compositor de música polifônica de seu tempo. Há indícios de que foi prolífico, e sua obra incluía mais de 40 missas, além de obras policorais; • Padre Caetano de Mello Jesus (fl. c.1760), teórico, compositor e mestre de capela. De sua obra, resta somente Escola de canto de órgão (c.1759-60), manuscrito de quatro volumes (dois perdidos), que é o mais antigo tratado de teoria musical escrito no Brasil. Além dos registros sobre a prática musical na Igreja, há também fontes sobre a música profana na Bahia. No século XVIII, surgiram casas de espetáculos como o Teatro da Câmara Municipal, em 1728, e a Casa da Ópera da Praia, de 1760 (BÉHAGUE, 2001g). Havia música nas associações que promoviam as artes e a cultura, como as academias literárias, e um exemplo desses ambientes sobreviveu: a Cantata acadêmica, de autor desconhecido, dedicada ao patrocinador de uma destas academias em Salvador. FIGURA 7 – CANTATA ACADÊMICA: DETALHE DA FOLHA DE ROSTO E UMA PÁGINA DA ÁRIA

FONTE: ; . Acesso em: 22 mar. 2020.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Conhecida também como Recitativo e Ária, a peça para soprano, dois violinos e baixo, com texto em português, possui um estilo entre o barroco e o préclássico. O manuscrito da Cantata acadêmica é de 1759, sendo “a mais antiga data já encontrada em papéis de música copiados no país” (CASTAGNA, 2010, p. 18). Não há consenso sobre a autoria da peça e, apesar de já ter sido atribuída a Caetano de Mello Jesus, “ainda não existem elementos suficientes para se conhecer o autor da cantata” (CASTAGNA, 2003, v. 7, p. 10; ver tb. BÉHAGUE, 2001a).

NOTA

Que tal conhecer a Cantata acadêmica? A seguir, apresentamos os endereços: Recitativo (“Heroe, egregio, douto, peregrino”), disponível em: . Ária (“Se o canto enfraquecido”), disponível em: .

2.1.3 São Paulo No período colonial, a música em São Paulo não alcançou o mesmo desenvolvimento observado nas cidades do Nordeste, embora sejam conhecidos nomes de mestres de capela que teriam atuado já na primeira metade do século XVII. Esse contexto, embora mais tardio, legou uma quantidade maior de fontes históricas, incluindo manuscritos musicais (CASTAGNA, 2003). No fim do período colonial, destaca-se André da Silva Gomes (1752-1844), compositor lusitano, mestre de capela em São Paulo a partir de 1774. De suas composições restam cerca de 130 peças (completas e fragmentos), que incluem 17 missas e outras obras sacras, além de um tratado (Arte Explicada do Contraponto). Mais voltado ao barroco em suas primeiras obras (influência trazida de Portugal), seu estilo se voltou ao classicismo após sua mudança para o Brasil (CASTAGNA, 2010; DUPRAT, 1995; PERES, 2004).

DICAS

Ouça Christe, da Missa a cinco vozes, cordas e trompas, de Silva Gomes. Está disponível no seguinte endereço: .

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

Entre as fontes musicais do Brasil, um dos exemplos mais interessantes vem do contexto paulista. Em 1984, em um acervo da cidade de Mogi das Cruzes, o historiador Jaelson Trindade encontrou, por acaso, em um livro antigo, um maço de 28 papéis que continham música manuscrita: “as folhas serviam de recheio para a capa e contracapa de couro do Livro de Foral da Vila de Mogi das Cruzes, aberto em 1748 [...], em mau estado. A capa trazia a aba superior descolada, a lateral quase... a curiosidade fez o resto!” (TRINDADE; CASTAGNA, 1996, p. 2). As folhas não continham data; estudos de datação feitos posteriormente estimam que tenham sido copiadas por volta da década de 1730. A coleção de partituras ficou conhecida no meio musicológico como Grupo de Mogi das Cruzes, sendo o mais antigo manuscrito musical copiado no Brasil conhecido até agora (CASTAGNA, 2001a, 2001b, 2003, 2010; TRINDADE, 1984; TRINDADE; CASTAGNA, 1996). É possível que os documentos do Grupo de Mogi das Cruzes tenham sido parte do acervo pessoal de Faustino do Prado Xavier (c.1708-1800), identificado como um dos copistas, que foi mestre de capela em Mogi entre 1729 e 1736, aproximadamente. As folhas contêm 16 obras de autoria anônima, quase todas sacras, em estilo antigo e compostas em Portugal, sendo representativas do repertório português que vinha para o Brasil entre os séculos XVII e XVIII (CASTAGNA, 2001a, 2001b, 2003, 2010; TRINDADE; CASTAGNA, 1996).

DICAS

Conheça Matais de incêndios, de autoria anônima (séc. XVIII). É uma das obras do Grupo de Mogi das Cruzes. Ouça em: . Baixe a partitura em: .

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

FIGURA 8 – UMA DAS FOLHAS DO GRUPO DE MOGI DAS CRUZES (c. 1730)

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

NOTA

Além da notação musical, manuscritos podem conter informações ocultas, as quais somente aparecem por meio de exame físico (tipos de papel e de tinta, estilo de notação, caligrafia etc.). Estudos assim podem ajudar, por exemplo, a estabelecer a data ou a autoria de uma obra, ou se um manuscrito é autógrafo ou uma cópia. Outras pistas são reveladas por meio da identificação de padrões de deterioração do papel surgidos do manuseio ou da perfuração feita por insetos (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2001a).

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

2.2 O CENÁRIO MUSICAL MINEIRO NO SÉCULO XVIII Ao longo do século XVII, sertanistas exploraram terras ao norte de São Paulo e, na década de 1690, encontraram ouro. A economia do açúcar no Nordeste vinha decaindo, e a descoberta causou enorme impacto na vida da colônia. Migrações em massa vieram de outras partes do Brasil, de Portugal e de outros países. A mineração “fixou parte da população que atraiu (inclusive muitos escravos), colonizou e urbanizou as principais áreas onde ocorreu” (AMADO; FIGUEIREDO, 2001, p. 48). Surgiram cidades como Mariana (fundação c.1696); Sabará (f. final séc. XVII); São João del-Rei (c.1705); Vila Rica (1711; atual Ouro Preto); Arraial do Tejuco (1713; atual Diamantina); e São José del-Rei (1718; atual Tiradentes). Nestas regiões, a exemplo do que foi visto no Nordeste durante o século anterior, outra vez a riqueza foi decisiva no surgimento de um mercado musical profissional (ou semiprofissional), além de impulsionar a produção artística de modo geral. Na região das Minas, na medida em que se formava uma cultura urbana, contrastando com a atmosfera rural de outros lugares da colônia, a música passou a ter maior importância social. Nas chamadas confrarias, ordens terceiras e irmandades (associações religiosas que atuavam junto às igrejas e promoviam celebrações e festas cristãs, além de oferecer serviços aos seus sócios como batismo, casamento, honras fúnebres etc.), músicos e compositores tinham intensa atividade profissional. Além das igrejas, a prática musical acontecia em outros espaços — dos quais as casas da ópera são exemplos, como a de Sabará (c.1730, a mais antiga das Américas) e a de Vila Rica —, o que também indica certo desvio do uso da música com função religiosa (BÉHAGUE, 2001c; CASTAGNA, 2003, 2012; KIEFER, 1997). O crescimento das cidades favoreceu a miscigenação entre populações brancas e africanas e/ou afrodescendentes. Em grande número, e socialmente situados entre brancos e africanos escravizados, indivíduos mestiços — chamados, à época de “pardos” ou “mulatos” — engendraram uma nova classe social e passaram a trabalhar em ofícios manuais especializados típicos da vida urbana, como barbeiros, sapateiros, alfaiates, ferreiros, artesãos. As artes e a música também eram consideradas tarefas manuais e estavam à altura de tais atividades; assim, muitos deles se tornavam artistas e músicos. O aumento na população e no número de irmandades gerou forte demanda por serviços musicais, passando a ser atendida por estes músicos. Quebrava-se, portanto, um predomínio dos brancos, sobretudo em funções de maior prestígio envolvendo direção e composição (BÉHAGUE, 2001c; CASTAGNA, 2003, 2012; KIEFER, 1997; MONTEIRO, 2006). Mas isso não significa que os artistas não enfrentassem dificuldades. A existência desta classe de músicos era algo que incomodava membros da elite, como se percebe nas palavras de um desembargador da época, José João Teixeira Coelho:

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Aqueles mulatos que não se fazem absolutamente ociosos, se empregam no exercício de músicos, os quais são tantos na Capitania de Minas que, certamente, excedem o número dos que há em todo o Reino. Mas em que interessa ao Estado essa aluvião de músicos? (COELHO [1780] apud CASTAGNA, 2012, p. 38-39).

Nas igrejas, a música profissional iniciou entre as décadas de 1710 e 1720, e usou basicamente o repertório de Portugal (cantochão e polifonia no estilo antigo) até meados do século XVIII, quando aparece a atividade composicional. A concorrência entre irmandades (e entre os próprios músicos, acirrada mais tarde pela crise no ouro) estimulava o trabalho autoral. Isso levou a cena mineira a absorver — e misturar — tendências estilísticas mais recentes da Europa do estilo moderno (barroco) e do pré-clássico (CASTAGNA, 2003).

NOTA

Você já ouviu falar em “barroco mineiro”? Este termo da história da arte é eventualmente utilizado para denotar (de modo inadequado) a música mineira do Brasil colonial. Talvez isso se deva, em parte, ao fato de que a música foi composta na mesma época e lugar em que floresceu a arte barroca (pintura, escultura e arquitetura) de artistas como Aleijadinho e Ataíde (KIEFER, 1997). Todavia, “quase todos os compositores mineiros cultivaram um tipo particular de estilo homofônico próximo dos estilos préclássicos” (BÉHAGUE, 2001c, s.p., tradução nossa), eventualmente mesclado a rudimentos barrocos. Essa música, portanto, por ter sido pouco estudada até agora, e por restar pouca documentação da época, não pode ser definida estritamente como “barroca”, pois não há consenso sobre seu estilo (CASTAGNA, 2003).

Quanto aos compositores, sabe-se pouco sobre suas vidas, e apenas pequena quantidade de obras sobreviveu. A seguir, elencaremos alguns dos principais nomes de compositores afro-brasileiros ligados ao trabalho musical nas irmandades (BÉHAGUE, 2001c; BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003, 2004, 2010, 2012; KIEFER, 1997): • Ignácio Parreiras Neves (c.1730-c.1793): compositor, diretor e cantor. Em Vila Rica, atuou na Irmandade de São José dos Homens Pardos. Com características dos estilos barroco e pré-clássico, três peças suas sobrevivem: Antífona de Nossa Senhora, Credo (possivelmente parte de uma missa), e Oratória ao menino Deus, único oratório sacro conhecido do período colonial.

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

DICAS

Ouça a Antífona de Nossa Senhora, de Ignácio Parreiras Neves! Está disponível em: .

• Manoel Dias de Oliveira (c.1734-1813): trabalhou como regente e compositor para irmandades na vila de São José del-Rei. Da sua produção restam em torno de 30 obras sacras, em latim e em português, as quais agrupam elementos barrocos e pré-clássicos. Compôs também música profana.

DICAS

Conheça Missa de Oitavo Tom, de Manoel Dias de Oliveira, integrante do projeto Acervo da Música Brasileira (AMB): Restauração e Difusão de Partituras, em que foram publicadas obras dos séculos XVIII e XIX contidas em manuscritos do acervo do Museu da Música de Mariana (MG). Ouça a obra em: . Acesse a edição de Paulo Castagna, disponível em: .

• Francisco Gomes da Rocha (c.1754-1808): cantor, regente e fagotista, teria sido um dos músicos mais renomados de Vila Rica. Escreveu em torno de 200 obras, das quais são conhecidas apenas cinco, como Novena de Nossa Senhora do Pilar (1789) e Spiritus Domini (1795).

DICAS

Ouça a Novena de Nossa Senhora do Pilar (1789), de Gomes da Rocha, em: .

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

• Marcos Coelho Neto (1746-1806), pai, e Marcos Coelho Neto (1763-1823), filho: dois compositores homônimos. Ambos eram trompistas e trabalharam em irmandades como a de São José dos Homens Pardos, de Vila Rica. Sabese pouco a respeito da obra de ambos; do filho, que foi autor de muitas peças (atualmente desaparecidas), são conhecidos alguns exemplos como as Ladainhas de Nossa Senhora e o hino Maria Mater Gratiæ. • João de Deus de Castro Lobo (1794-1832): viveu em uma fase mais tardia do cenário mineiro. Atuou no século XIX, quando havia maior assimilação de elementos do estilo clássico e do virtuosismo da ópera italiana, os quais são bastante proeminentes na música religiosa escrita por ele. Além de organista e regente, também foi mestre de capela em Mariana. Restam aproximadamente 40 obras sacras de sua autoria.

DICAS

Ouça Matinas do Espírito Santo, de Castro Lobo, também parte do Acervo da Música Brasileira. Está disponível em: .

Além desses compositores, José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805) é o nome que mais se destaca. Também de origem mestiça, Emerico estudou com o mestre de capela da sua cidade natal, Manuel da Costa Dantas. A partir de 1776, atuou em Arraial do Tejuco e trabalhou em várias irmandades, tendo sido organista na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, local em que tocou entre 1789 e 1795 (CASTAGNA, 2003, 2012).

DICAS

Em Minas, surgiram importantes organeiros (artesãos que projetavam, construíam e consertavam órgãos), como Manuel de Almeida e Silva, que instalou o órgão da Igreja do Carmo na década de 1780. Esse instrumento, executado regularmente por Lobo de Mesquita, foi restaurado recentemente. Ouça o órgão e conheça sua história em: .

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

FIGURA 9 – ÓRGÃO HISTÓRICO ALMEIDA E SILVA/LOBO DE MESQUITA (c.1787)

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

Em Tejuco, possivelmente Emerico compôs várias de suas obras — inclusive algumas sobreviveram em manuscritos autógrafos, como Tércio, de 1783 (observe a figura a seguir), e a Missa para a Quarta-feira de Cinzas, de 1778, sua composição mais antiga atualmente conhecida. Lobo de Mesquita também trabalhou em Vila Rica, região em que teve contato com o compositor Francisco Gomes da Rocha e outros. A partir de 1801, atuou no Rio de Janeiro, levando influências da música mineira. Esses deslocamentos podem ter sido motivados pela necessidade de melhores condições de trabalho, em virtude do declínio da economia em Minas no fim do século XVIII. Sua produção pode ter chegado a centenas de peças; foram identificadas cerca de 85, e 50 estão preservadas. Sua obra é o exemplo mais representativo da incorporação do estilo pré-clássico no Brasil (CASTAGNA, 2003, 2010, 2012; SOUZA, 2004).

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

FIGURA 10 – PARTITURA DE TÉRCIO (1783), COM ASSINATURA DE LOBO DE MESQUITA

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

DICAS

Ouça exemplos da música sacra de Lobo de Mesquita, e perceba os elementos pré-clássicos: • Missa para a Quarta-feira de Cinzas (1778), disponível em: . • Salve Regina – Antífona de Nossa Senhora (1787), disponível em: . • Tércio (1783), disponível em: archive.org/details/Tercio. Acesso em: 22 mar. 2020. Baixe a partitura em: bit.ly/2kHrleY.

O legado de Lobo de Mesquita e de outros compositores do período colonial é relevante não apenas pela assimilação dos estilos europeus ou pela sua produção composicional em si. O que também contribui para sua importância histórica é o fato de esses músicos terem enfrentado todo tipo de adversidades que a vida na colônia impunha e, mesmo assim, alcançado um nível artístico significativamente alto, dadas as condições em que sua produção acontecia. 42

TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

Lobo de Mesquita viveu no mesmo período de Mozart, Haydn e Beethoven, que compuseram música de uma beleza sonora incomparavelmente maior ao de toda a música de seus contemporâneos no Brasil e no continente americano da época. Maior, aliás, que a música de seus contemporâneos na própria Europa. Mas é preciso considerar que esses compositores não foram descendentes de escravos africanos, nem nascidos em uma possessão europeia na América; não foram tratados com devastador preconceito pela sociedade branca da época, e não tiveram que aprender música em condições precárias, a partir de poucos recursos e com escassos mestres; não enfrentaram a forte competição profissional e a luta pela sobrevivência em meio a condições de vida bem mais desfavoráveis que as do Velho Mundo; não enfrentaram a rejeição do próprio Estado e não tiveram a maior parte de suas composições perdidas ou mutiladas e nem impressas somente dois séculos após sua morte. Se Mozart, Haydn e Beethoven tivessem nascido e vivido como mulatos em Minas Gerais no século XVIII, provavelmente não teriam feito mais do que lá fez Lobo de Mesquita. Talvez aqui esteja a maior beleza deste músico americano: a superação de seus limites (CASTAGNA, 2012, p. 40).

2.3 CRONOLOGIA O quadro sinóptico a seguir resume os principais eventos que influenciaram a história da música erudita na segunda metade do período colonial (c.1650-c.1800). QUADRO 2 – SINOPSE DE EVENTOS HISTÓRICOS — ITEM 2

1535-37 fundação de Olinda e Recife 1549 fundação da capital Salvador c.1650-1700 primeiras composições no Brasil música polifônica no Nordeste • frei Agostinho de Santa Mônica chega c.1670-80 à Bahia bandeirantes paulistas descobrem as minas • fundação das primeiras c.1690 cidades mineiras 1728 Teatro da Câmara Municipal, Salvador c.1730 MSS do Grupo de Mogi das Cruzes, anônimos • Casa da Ópera de Sabará 1759 MS da Cantata Acadêmica, anônimo da Bahia Escola de canto de órgão, de C. Mello Jesus • Te Deum laudamus, de Luís c.1759-60 Álvares Pinto 1763 a capital é transferida de Salvador para o Rio de Janeiro 1774 André da Silva Gomes chega a São Paulo 1778 Missa para a Quarta-feira de Cinzas, de Lobo de Mesquita órgão Almeida e Silva/Lobo de Mesquita, igreja N. Sr.ª do Carmo, c.1787 Diamantina 1789 Inconfidência Mineira (fenômeno ligado à crise do ouro) 1801-05 Lobo de Mesquita trabalha no Rio de Janeiro 1808 vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro FONTE: O autor

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

3 O SÉCULO XIX Tudo aconteceu em um intervalo relativamente curto: o Brasil passou a sediar a corte de Portugal. Depois, viu sua condição de território ultramarino colonial mudar para a de reino unido e, logo depois, ainda se tornaria um império independente. Assim foi o início de um novo e agitado período histórico no Brasil, em que mudanças importantes também ocorreriam na vida musical e cultural. O século XIX foi uma época de transformações sucessivas, instabilidades econômicas, geopolíticas e sociais, e eventos profundamente marcantes, como a independência, o fim da escravidão e da monarquia e o advento da República. Nesse século, mesmo que em outras cidades houvesse produção importante, o Rio de Janeiro passou a ser o principal centro musical, especialmente devido a sua nova situação política: capital do Império. A quantidade de documentação da época é maior do que a de séculos anteriores, embora existam lacunas e muitas obras estejam perdidas (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003). A tradição escrita se transformou na medida em que a música passou a ter outras funções sociais além da religiosa, a qual predominou nos três séculos anteriores. Nessa nova fase, mais cosmopolita, agora eram absorvidos o classicismo e fortes influxos da ópera italiana, além de novas tendências da música instrumental (música para grupos de câmara, música para piano etc.). Com o crescimento da classe média urbana, crescia a prática musical doméstica. Até o fim do século, enquanto a música sacra entrava em um gradual declínio, elementos da estética do romantismo europeu também seriam incorporados, e a rotina de eventos musicais se intensificaria em teatros e casas de ópera. Além disso, embora padrões europeus prevalecessem, a música escrita começava a receber, ao longo do século XIX, as primeiras influências oriundas da cultura popular brasileira.

3.1 PERÍODO JOANINO PORTUGUESA NO BRASIL

(1808-1821):

A

CORTE

Em 1763, a capital do Brasil foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro. Por ser um porto próximo da região das minas, décadas antes a cidade do Rio se tornara a principal porta de entrada (de suprimentos, para uma crescente população) e saída (para o ouro) da colônia. Desde meados do século XVIII, a rotatividade de pessoas e riquezas intensificou a vida musical do local — principalmente a música religiosa carioca, que recebia influxos do cenário musical mineiro (BÉHAGUE, 2001f; CASTAGNA, 2003). Na década de 1800, a ameaça de conflito com Napoleão levou a família real portuguesa a se transferir para o Brasil. Em março de 1808, chegaram ao Rio de Janeiro a rainha Maria I, o príncipe regente dom João e milhares de membros da corte. A cidade se tornou o centro do poder do reino, e a agitação causada pela presença da nobreza estimulou mais ainda a atividade artística. 44

TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

NOTA

Dom João abriu os portos da colônia ao comércio com outros países e autorizou o funcionamento das primeiras fábricas no Brasil. No período joanino, foram criadas escolas, academias e instituições como a Imprensa Régia e a Biblioteca Real (atual Biblioteca Nacional) — além do primeiro grande teatro brasileiro, o Teatro Real de São João (1813), destinado à música e à ópera. Além disso, em 1815 foi instituído o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Esses fatores marcaram o “começo do fim” do sistema colonial e a gestação da ideia de um país independente (CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018).

Ainda em 1808, três meses depois de sua chegada, o príncipe d. João fundou a Capela Real, sediada na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo (atual praça XV, na região central do Rio), a qual dispunha de orquestra e coro com atividades constantes (BÉHAGUE, 2001f; CARDOSO, 2004). Elogiada por visitantes estrangeiros, a música da Real Capela logo ganhou fama internacional.

FIGURA 11 – VISTA DA PRAÇA DO PALÁCIO (c.1835), POR J.-B. DEBRET

FONTE: https://on.nypl.org/3aHdnyf >. Acesso em: 22 mar. 2020.

Em 1815, a Capela Real era o principal centro musical do continente americano. Lá atuavam 150 músicos e cantores (CASTAGNA, 2003). A proeminência do Rio como polo musical e os incentivos da Coroa atraíam músicos de Portugal, de outros países da Europa e de outros lugares do Brasil. Ao mesmo tempo, o gosto dos portugueses (agora presentes no Rio de Janeiro em maior número) fazia crescer a demanda por outros tipos de música, o que causou grande impacto na cena musical carioca das décadas seguintes:

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Dos compositores e intérpretes passou-se a exigir a criação de obras religiosas mais virtuosísticas e o trabalho com gêneros profanos ainda pouco praticados no Brasil, como a ópera e a música instrumental. O Rio assistia à chegada de um estilo cortesão de consumo, com o qual ainda não estava habituado, mas que a ele teria rapidamente de se adaptar (CASTAGNA, 2003, v. 8, p. 7).

Um dos dirigentes da Capela Real foi José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), atualmente considerado um dos mais importantes compositores da música brasileira (BÉHAGUE, 2001a). Nascido em uma família de descendentes de escravos, tinha 16 anos quando escreveu Tota pulchra es Maria (1783), sua mais antiga obra conhecida. No Rio, trabalhou para irmandades semelhantes às mineiras. Tornou-se padre em 1792, e foi mestre de capela da Sé a partir de 1798.

FIGURA 12 – RETRATO DE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

Em 1808, a música do experiente compositor, de uma qualidade que “excedia em muito o que se podia esperar numa colônia de Portugal”, teria deixado dom João surpreso (KIEFER, 1997, p. 53). Isso teria levado o príncipe a dar a direção da Capela Real a ele. José Maurício trabalhou no cargo até 1811, quando foi obrigado a dividir suas funções com outro músico. Conhecido por suas óperas em vários lugares da Europa, o respeitado compositor lusitano Marcos Portugal (1762-1830) veio para o Rio acompanhado de um grupo de músicos profissionais e, sob ordens de dom João, assumiu o posto de mestre-compositor da Real Capela. Assim, José Maurício, embora continuasse vinculado à corte, diminuiu sua atividade de composição para a Capela e passou a atender mais à demanda por música existente nas irmandades (CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997; MATTOS, 1970, 1997). 46

TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

José Maurício era admirado por seus contemporâneos pela sua inteligência e criatividade; o compositor austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858) o considerava “o maior improvisador do mundo”. A maior parte de sua obra é sacra; destacam-se o Requiem (1816; dedicado à rainha Maria I) e a Missa de Santa Cecília (1826). Em pouca quantidade, o padre compôs também música profana, óperas e música instrumental, como a abertura Zemira (1803) para orquestra. Atuando como professor, manteve por 28 anos um curso de música gratuito no Rio. Escreveu o Compêndio de Música e Método de Pianoforte (c.1821), contendo as primeiras peças pianísticas de caráter didático compostas no Brasil. A obra de José Maurício remete à música sacra italiana e portuguesa, mas a influência mais evidente vem do classicismo vienense, sobretudo de Joseph Haydn. O gosto musical da corte portuguesa e sua influência sobre o público carioca também são percebidos na obra mauriciana — cuja religiosidade, mais marcante no estilo inicial, deu lugar, em suas peças mais tardias, a elementos operísticos e aos traços mais cosmopolitas do classicismo (BÉHAGUE, 2001a; CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997; MATTOS, 1970, 1997; MEYER, 1999; SADIE, 1994; TRILHA, 2019).

NOTA

José Maurício escreveu centenas de composições; hoje em dia, são conhecidas cerca de 240, o que se deve em grande parte à musicóloga Cleofe Person de Mattos (1913-2002), responsável por catalogar a sua obra (MATTOS, 1970). Manuscritos raros do compositor estão preservados na Biblioteca Alberto Nepomuceno, da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Acervo Musical do Cabido Metropolitano.

FIGURA 13 – PARTITURA DA NOVENA DE S. BÁRBARA EM RÉ MAIOR (1810)

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

DICAS

Conheça a música de José Maurício Nunes Garcia: • Tota pulchra es Maria (1783) está disponível em: . • Abertura Zemira (1803) está disponível em: . • Novena de Santa Bárbara em Ré Maior (1810) está disponível em: . • Lição n.º 5 do Método de Pianoforte (1821): . • Por fim, Requiem (1816) está disponível em: .

Na década de 1820, após a volta da corte a Portugal e com a retração que o mercado musical carioca sofreu com a independência do Brasil — além de mudanças no gosto musical do público —, José Maurício e Marcos Portugal, os mais importantes músicos da corte joanina, passariam seus últimos anos doentes e na pobreza. Ambos faleceram em 1830 (CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997; MATTOS, 1997). Também foram compositores no Rio de Janeiro durante o período joanino: • Sigismund Neukomm (1778-1858): músico austríaco que viveu no Rio entre 1816 e 1821, nomeado por dom João para lecionar música. Foi aluno de Joseph Haydn em Viena, entre 1797 e 1804. Divulgou a música de Haydn e de Mozart no Brasil; sua presença influenciou compositores brasileiros, especialmente José Maurício, de quem o austríaco era grande admirador. Deixou registros importantes sobre a vida musical carioca, noticiando, por exemplo, a primeira execução, na América, do Requiem de Mozart, em 1819, sob a regência de José Maurício (CASTAGNA, 2003; MEYER, 1999; SADIE, 1994). Durante sua estada no Brasil, Neukomm escreveu cerca de 45 obras (MEYER, 1999). O músico registrou seu trabalho em um catálogo pessoal que iniciou em 1804 e manteve até sua morte; sua obra chega a 1300 títulos. Foi pioneiro na música de câmara inspirada em melodias tradicionais, como O Amor Brasileiro, para pianoforte, e L’Amoreux, para flauta e pianoforte, baseadas, respectivamente, em um lundu e em uma modinha; escritas em 1819, estas são as mais antigas obras eruditas do Brasil baseadas em temas populares (BÉHAGUE, 2001a; MEYER, 1999; SADIE, 1994).

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

DICAS

Ouça O Amor Brasileiro (1819), de Sigismund Neukomm, em: .

• Damião Barbosa de Araújo (1778-1856): compositor e violinista baiano que trabalhou, a partir de 1813, na corte e na Capela Real. Por volta de 1828 foi para Salvador, atuando como mestre de capela. Viveu durante a transição entre colônia e império e, assim como seus contemporâneos, acompanhou as tendências da ópera italiana e do classicismo. Por ter sido mais tardio, além de ter se distanciado do estilo barroco de seus antecessores baianos (dos quais poucas obras sobreviveram), Araújo teve um número maior de peças preservadas; são conhecidas hoje cerca de 23 composições suas (BÉHAGUE, 2001a; CASTAGNA, 2003; MARIZ, 2000; SADIE, 1994).

DICAS

Ouça Memento Baiano, de Damião Barbosa de Araújo, acessando: .

• Gabriel Fernandes da Trindade (c.1799-1854): compositor, violinista e cantor mineiro que atuou no Rio e esteve ligado à Capela Real. Escreveu música de câmara, como os três Duetos Concertantes para dois violinos (c.1814), as mais antigas obras camerísticas instrumentais conhecidas do Brasil, e também canções. Uma parte de suas composições foi impressa a partir da década de 1830, o que ajudou na preservação da sua obra.

DICAS

A obra integral de Trindade foi publicada no projeto Patrimônio ArquivísticoMusical Mineiro — PAMM (CASTAGNA, 2011). Ouça o Dueto Concertante n.º 3 em: .

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

3.2 INDEPENDÊNCIA E PERÍODO IMPERIAL (1822 – 1889) Em 1820, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves entrou em um tenso impasse: adeptos da chamada Revolução do Porto queriam que Portugal voltasse a ser o centro do poder e exigiam que a coroa retornasse para Lisboa. O movimento ainda reivindicava que o modelo político e econômico do reino retrocedesse ao antigo sistema colonial — o que refrearia o processo de emancipação natural pelo qual o Brasil vinha inevitavelmente passando desde 1808, sobretudo após as melhorias que a colônia experimentou durante o período joanino. Com cerca de 4.000 pessoas ligadas à corte, dom João VI (que herdou o trono em 1816, após a morte da rainha Maria I) retornou à Europa em 1821, ficando o Brasil nas mãos do príncipe Pedro (1792-1834). Com o sentimento antilusitano e a ideia de independência bastante irradiados, Pedro, contando com o apoio de pessoas da corte e de setores da sociedade, decidiu romper com Portugal em 7 de setembro de 1822 (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; SCHWARCZ; STARLING, 2018). A conquista da autonomia, no entanto, teve como decorrência uma grande crise econômica e política para os dois lados, o que, no caso do Brasil, afetou diretamente a vida musical. Tornou-se mais difícil a realização de atividades musicais profissionais, em especial, as de maiores proporções, como a música coral e orquestral que se via nas igrejas e nos teatros, que sempre envolvia muitos músicos e cantores. Com a crise, a Capela Real (após 1822, chamada de Capela Imperial) passou por drástica redução em suas atividades, pois a música feita na capital tinha a corte portuguesa como sua mais importante consumidora (CASTAGNA, 2003). A quantidade de pessoas empregadas na Capela Real, comparada ao que havia em 1815 — em torno de 150 músicos —, cerca de dez anos depois havia caído para menos que a metade; em 1831, este número foi reduzido a um quinto. Outro espaço importante da vida musical carioca, o grande Teatro Real de São João (também renomeado como Teatro Imperial), além de sofrer os efeitos da crise, foi destruído por um incêndio em 1824 (CASTAGNA, 2003; MARIZ, 2000). Mesmo reduzida, a atividade musical do Rio continuava na Capela Imperial e nas igrejas — ou em pequenos teatros na cidade, onde crescia a música operística. Apesar de todo o declínio na vida artística, a música ainda tinha como um dos seus maiores aficionados o próprio imperador dom Pedro I. Pedro era músico e foi aluno de José Maurício, Marcos Portugal e Neukomm; atuou como clarinetista na orquestra da corte. Em sua produção autoral há algumas obras sacras (missa, Te Deum) e hinos, como o Hino Constitucional (1821) e o Hino da Independência (1822), sua obra mais famosa (MARIZ, 2000; SADIE, 1994).

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

NOTA

Em razão da contínua transformação dos gostos musicais que ocorreu no Rio de Janeiro desde os tempos de dom João (devido, sobretudo, à crescente influência da ópera), surgiu na fase pós-independência um gosto por um tipo de música cantada: os hinos patrióticos. No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, os hinos raramente eram cantados pelo povo das ruas ou em ocasiões públicas; o costume consistia em executá-los nos palcos dos teatros, por solistas ou coro, com orquestra, ao estilo operístico (CASTAGNA, 2003).

FIGURA 14 – PRIMEIROS SONS DO HINO DA INDEPENDÊNCIA (1922), POR AUGUSTO BRACET

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

Além do colapso econômico, o novo império ainda passou por recorrentes instabilidades internas. Mais tarde, em 1831, quando dom Pedro I abdicou do trono imperial, seu herdeiro — o futuro imperador dom Pedro II — ainda não havia completado seis anos de idade. Nesse ano iniciou o chamado período regencial, caracterizado pelo aumento da crise — econômica, política, social —, agravada por revoltas e guerras civis em todo o Brasil: “o país era grande, e a corte desconhecia as especificidades de suas diferentes regiões, que vistas de longe pareciam quietas, serenas, e davam a impressão de que continuariam assim para sempre” (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 243). Os já reduzidos incentivos à música decairiam ainda mais, e como consequência poucos compositores novos surgiram durante a fase. A Proclamação da Independência não produziu, como se poderia esperar, efeitos muito notórios na prática musical do período. O desenvolvimento da prática musical que se observou, sobretudo no Rio de Janeiro, deveu-se ao desenvolvimento cultural que já vinha se operando no país em função da urbanização, do crescimento econômico e do aumento das relações exteriores do Brasil (CASTAGNA, 2003, v. 8, p. 12).

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Apesar da crise, durante a década de 1830 ocorreu um fato marcante para a tradição da música escrita: o estabelecimento da atividade editorial de música no Brasil. Partituras já eram comercializadas nos séculos anteriores, mas as impressas, sobretudo, vinham da Europa — mesmo porque, até 1808, eram proibidas fábricas e quaisquer atividades de manufatura na colônia, o que incluía a tipografia. No Brasil, as primeiras impressões de música foram feitas na Bahia, por volta de 1811. A atividade, porém, somente se firmou de maneira regular entre 1834 e 1837, com a abertura da oficina gráfica do francês Pierre Laforge, no Rio de Janeiro — onde foram publicadas obras de vários autores, incluindo José Maurício, dom Pedro I, Gabriel Fernandes da Trindade e Francisco Manuel da Silva (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2010; VEIGA, 2004).

DICAS

Veja um exemplo de partitura impressa por Laforge. É uma canção de Gabriel Fernandes da Trindade, disponível no acervo digital da Biblioteca Nacional. Acesse: .

O mercado de partituras passou a atender a uma crescente demanda por material musical destinado à prática doméstica. Frente à decadência da música profissional e semiprofissional nas igrejas e teatros, fazer música em casa era um lazer que se tornava cada vez mais difundido. Além disso, com a tendência ao cosmopolitismo em cidades de maior porte, onde havia maior contato com influxos culturais que vinham de outros países (sendo o Rio de Janeiro talvez o exemplo mais típico), a vida privada nos ambientes domésticos da crescente classe média urbana adotou costumes burgueses importados da Europa. Um deles era a prática musical doméstica, em que havia uma preferência por canções acompanhadas por instrumentos de corda dedilhada, como guitarra portuguesa, viola ou violão — ou, no caso das famílias mais ricas, pelo piano (BIASON, 2008; CASTAGNA, 2003). Vale lembrar, no entanto, que as cidades eram “ilhas contadas, cercadas pelo ambiente rural, sendo a escravidão onipresente” (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 278) e que esta classe urbana abrangia uma parcela ínfima da população — a qual, em sua maioria, em um país pobre e recém-saído da condição colonial, ainda mantinha muito da cultura e dos hábitos típicos da vida rural.

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

DICAS

No início do século XIX, o Brasil começou a receber os primeiros pianos importados da França, da Inglaterra e de Portugal. Nas décadas seguintes, além de ser visto como “moderno”, o piano passou a ser considerado um “investimento de capital”, “um produto de grande valor comercial, servindo, até, como forma de pagamento de dívidas” (PEREIRA, 2010, p. 266), sendo, portanto, algo acessível exclusivamente às classes mais altas. Por volta de 1850, o piano já havia se tornado “o instrumento obrigatório” nas famílias mais abastadas (CASTAGNA, 2003, v. 8, p. 21).

Nesse cenário envolvendo as edições impressas e a prática doméstica, o repertório abrangia, além de canções, gêneros musicais como a modinha e o lundu, árias de óperas e de operetas, peças para piano, e a música influenciada pelas danças de salão que vinham de Portugal e do resto da Europa, como valsa, polca, mazurca, habanera, schottisch e outras. “Música erudita ou popular? Nem erudita — haja vista a não utilização de linguagens literárias ou musicais complexos — e nem popular, uma vez que essa música se destinava às elites” (CASTAGNA, 2003, v. 1, p. 3). Assim, com a produção de música religiosa diminuindo, “a cena musical do século XIX foi dominada pela ópera e pela música de salão” (BÉHAGUE, 2001a, s.p.).

TUROS ESTUDOS FU

Na Unidade 2, abordaremos as origens da música popular urbana e trataremos dos gêneros modinha e lundu, além das danças e da música de salão do século XIX.

Em 1840, iniciava o reinado de dom Pedro II (aos seus 15 anos), em uma era de contradições: embora a economia mostrasse sinais de recuperação com o novo ciclo econômico do café, em breve o país teria enormes gastos com a Guerra do Paraguai; o mesmo jovem império independente, o qual queria conquistar uma boa reputação junto a outros países, mantinha o tráfico de escravos, “gênero de negócio que jogava o Brasil dentro do grupo de ‘nações bárbaras’, imagem em tudo oposta à feição civilizada que o império brasileiro começava a divulgar” (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 274). Contudo, a partir dos anos 1850, uma década mais estável economicamente, começava uma nova fase de efervescência nas atividades musicais destinadas às classes altas. No Rio, agitava-se a vida social da elite nos frequentes bailes, saraus e festas. A ópera estava em seu auge (CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018). 53

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

A partir de cerca de 1850, restabeleceu-se a prática regular de música para o teatro, mas a música religiosa entrou em acentuada decadência. Surgiram os compositores de música para piano e entrou em funcionamento o primeiro conservatório de música, no Rio de Janeiro. O gênero musical que mobilizava a elite com maior intensidade era a ópera, cujas partituras até então eram quase somente importadas (CASTAGNA, 2003, v. 1, p. 3).

NOTA

As origens da ópera no Brasil remontam às antigas casas da ópera, pequenos teatros existentes já no século XVIII, como os de Salvador, Sabará e Ouro Preto, locais em que era executado repertório trazido de Portugal, de compositores quase sempre europeus. Naquela época, ópera podia também significar “peça de teatro”, simplesmente, havendo música ou não (CASTAGNA, 2003).

A ópera era a “atividade musical (comercial) mais intensa” e, desde o período joanino, a “principal forma de entretenimento da alta sociedade carioca” (SOUZA, 2004 p. 356). Com o incentivo oficial de dom Pedro II, óperas eram a atração em teatros subsidiados pelo governo, com apresentações de obras de Rossini, Verdi e Bellini (BÉHAGUE, 2001a). Na segunda metade do século XIX, o Brasil começaria a incorporar ideais estéticos do romantismo europeu. Esta influência é vista na produção composicional brasileira sobretudo em obras instrumentais — em formações como orquestra e conjuntos de câmara, além da música para instrumento solo (principalmente para piano).

TUROS ESTUDOS FU

No tópico seguinte, estudaremos a fase de transição entre os séculos XIX e XX, e vamos analisar o romantismo no Brasil com mais detalhes.

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

Também nesse período, os concertos passaram a ser mais frequentes, mas só se tornariam uma atividade regular no Rio nas últimas três décadas do século XIX. Comparados às óperas, operetas e comédias musicais (as quais lotavam teatros), concertos ocorriam em menor número e não recebiam o mesmo apoio. Isso levava os músicos a organizá-los por iniciativa particular, por meio, por exemplo, de clubes e sociedades musicais (BÉHAGUE, 2001a; CASTAGNA, 2003; SOUZA, 2004; VERMES, 2008). Um dos principais apoiadores de iniciativas assim era o compositor e professor Francisco Manuel da Silva (1795-1865), com um relevante papel na fase entre a morte do padre José Maurício (de quem foi aluno) e o surgimento de Carlos Gomes. Silva ajudou a promover o ensino de música e a atividade musical em geral; na década de 1840, participou ativamente da fundação do Imperial Conservatório de Música (atual Escola de Música da UFRJ). Escreveu música sacra, algumas valsas e hinos. Sua obra mais conhecida é o Hino ao Sete de Abril, de 1831 (em homenagem ao movimento que levou à abdicação de dom Pedro I, com versos de Ovídio Saraiva de Carvalho). A peça foi oficialmente reconhecida em 1922 como o Hino Nacional Brasileiro —porém com outro texto, escrito em 1909 por Osório Duque-Estrada (CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997; MARIZ, 2000; SADIE, 1994; SOUZA, 2004).

DICAS

Francisco Manuel da Silva também parece ter recebido fortes influências da música italiana. Ouça a Sonata n.º 1 do Op. 64 (1828) de Niccolò Paganini (1782-1840), e perceba a grande semelhança entre o desenho melódico do motivo principal da peça e a primeira frase do Hino Nacional. Está disponível em: . Agora, ouça o Hino ao Sete de Abril (1831), interpretado à maneira da época, com o texto original: .

FIGURA 15 – FRANCISCO MANUEL DA SILVA

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Ainda na década de 1850, surgiu o debate em torno da criação de uma ópera nacional, cujo intuito era desenvolver a produção operística no Brasil em todos os seus aspectos, envolvendo desde a composição e execução musical, o preparo dos artistas, até a montagem cênica. No entanto, ainda havia um propósito maior: unir o bel canto e a língua nacional. Em 1857, foi criada a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional (posteriormente, Empresa de Ópera Nacional), que a cada ano deveria apresentar pelo menos uma nova ópera brasileira. Seus membros, entre os quais estava Francisco Manuel da Silva, defendiam que a ópera deveria ser cantada em português, e que obras estrangeiras deveriam ser adaptadas ou traduzidas. Suas atividades eram destinadas à elite; a instituição teve vida curta e foi desativada em 1863 (BÉHAGUE, 2001a; CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997; MARIZ; 2000). Pelo menos três compositores brasileiros surgiram com o movimento da ópera nacional, associados ao nome da academia: • Elias Álvares Lobo (1834-1901): compositor, regente e professor. Compôs obras sacras (Missa de São Pedro de Alcântara, de 1858, em homenagem a dom Pedro II), canções, e música para bandas de sopros. Sua ópera A Noite de São João, com libreto escrito por José de Alencar, estreou no Rio em 1860, sendo a primeira ópera escrita no Brasil abordando uma temática brasileira, e possuía texto e música de autores brasileiros (CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997; SADIE, 1994). • Henrique Alves de Mesquita (1830-1906): compositor de óperas e operetas. Fez parte de seus estudos em Paris, onde sua opereta, La Nuit au Château, teve sucesso. Escreveu canções (modinhas), peças para piano e aberturas sinfônicas. Sua obra também incorporou elementos da música europeia de salão (CASTAGNA, 2003; SADIE, 1994).

DICAS

Ouça a polca La Brésilienne, de Henrique Alves de Mesquita. Está disponível em: .

• Antônio Carlos Gomes (1839-1896): compositor e regente. Aprendeu música sob influência do pai, que era regente de banda. Com 23 anos ingressou no Imperial Conservatório, no Rio; em 1861, estreou sua primeira ópera, A Noite do Castelo. Com a ajuda de Francisco Manuel da Silva e do imperador, obteve uma bolsa para estudar na Europa a partir de 1864. Influenciado por nomes como Verdi, Bellini, Rossini e Donizetti, escreveu oito óperas, entre elas: Fosca (1873) e Lo Schiavo (O Escravo, 1889, com temática abolicionista), além de algumas operetas e comédias musicais, um oratório, canções em italiano, modinhas, peças camerísticas e para piano (CASTAGNA, 2003; SADIE, 1994). 56

TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

FIGURA 16 – ANTÔNIO CARLOS GOMES

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

Carlos Gomes foi “o primeiro compositor brasileiro cuja obra alcançou larga repercussão na Europa” (KIEFER, 1997, p. 83), depois da estreia, em Milão, da ópera que se tornou o seu maior sucesso, Il Guarany (O Guarani), em 1870 — considerada o ápice da sua carreira (BÉHAGUE, 2001a). No Brasil, embora a música de Gomes tenha sido bem recebida à época, ainda hoje muitas de suas obras não foram publicadas (BÉHAGUE, 2001b). Sua figura mítica foi muito mais celebrada do que sua música, hoje pouco conhecida (exceto, talvez, pelo tema da abertura sinfônica de Il Guarany, usado por décadas como vinheta do programa de rádio A Voz do Brasil). Pela primeira vez em nossa história, um autor nacional tornou-se bem-sucedido no mercado musical europeu (no século XIX foram realizadas, na Europa, mais récitas de óperas de Carlos Gomes que de Richard Wagner). [...] O compositor tornou-se o primeiro “herói” musical brasileiro, assim lembrado até hoje, apesar do esquecimento quase total de sua produção (CASTAGNA, 2003, v. 1, p. 3).

O sucesso do compositor em outros países era motivo de orgulho e ocorreu em um momento histórico importante: poucas décadas depois da independência, o Brasil ainda estava no começo do processo de autoafirmação de sua identidade como nação no cenário internacional. O músico, contudo, dividiu (e ainda divide) opiniões na crítica e no público. Depois de 1864, Carlos Gomes “passou a maior parte do resto de sua vida na Itália, e seus ideais de composição tornaram-se inteiramente italianos” (BÉHAGUE, 2001b, s.p.); tendo emergido do movimento da ópera nacional, isso foi visto por muitos como um desvio de suas origens, mesmo com a referência ao Brasil nos libretos de Il Guarany e Lo Schiavo (KIEFER, 1997; TRAVASSOS, 2000). Quanto a sua música, “há quem procure enxergar um criptonacionalismo nos seus temas e na sua facilidade melódica” (SADIE, 1994, 57

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

p. 378), ou seja, há um intenso debate acerca da presença (ou não) de elementos musicais da cultura brasileira em Carlos Gomes (e em qual grau). Um exemplo de aproximação do popular, muito citado, é A Cayumba – Dança dos Negros, para piano, de 1857, uma das primeiras obras do Brasil de temática negra. Apesar de ser uma polca de salão, a peça traz em sua terceira seção ritmos derivados de danças afro-brasileiras (CASTAGNA, 2003). Vale lembrar, todavia, que experiências intencionais e/ou manifestas de tradução da cultura popular para a música escrita (a escola nacionalista) ainda levariam décadas para acontecer.

DICAS

Você pode assistir à ópera Il Guarany na íntegra, em uma montagem de 1996, sob a regência de Júlio Medaglia. O endereço é o seguinte: . E que tal conhecer uma faceta diferente de Carlos Gomes? Ouça suas obras instrumentais: • A Cayumba – Dança dos Negros (1857), disponível em: . • Sonata em Ré Maior ‘Burrico de Pau’, para cordas (1894), disponível em: .

Da ópera nacional e de Carlos Gomes seguiremos para o último tópico, para que possamos compreender, em linhas gerais, a questão da identidade musical nacional no século XX, e os novos caminhos que a tradição de música escrita começou a trilhar no Brasil.

3.3 CRONOLOGIA A seguir, veja a sinopse cronológica resumindo alguns dos principais eventos que influenciaram a história da música erudita brasileira do século XIX.

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TÓPICO 2 — A TRADIÇÃO DA MÚSICA ESCRITA NOS SÉCULOS XVII, XVIII E XIX

QUADRO 3 – SINOPSE DE EVENTOS HISTÓRICOS – ITEM 3

1763 transferência da capital para o Rio de Janeiro 1798

José Maurício Nunes Garcia é nomeado mestre-de-capela na Sé do Rio de Janeiro

1808

D. João e a corte chegam ao Rio • criação da Capela Real; José Maurício assume a direção

1811 Marcos Portugal chega ao Rio de Janeiro c.1814 Duetos Concertantes, de Gabriel Fernandes da Trindade 1815 Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves morte da rainha Maria I • Requiem, de José Maurício • coroação do rei D. 1816 João VI • Sigismund Neukomm chega ao Rio José Maurício rege o Requiem de Mozart • O Amor Brasileiro, de S. 1819 Neukomm 1820 Portugal: Revolução do Porto 1821 D. João VI retorna a Portugal • Método de Pianoforte, de José Maurício 1822 Independência do Brasil 1826 Missa de Santa Cecília, de José Maurício abdicação de D. Pedro I • Hino ao Sete de Abril, de Francisco Manuel da Silva c.1834-37 Rio: tipografia de Pierre Laforge inicia impressão de partituras 1831

1840 D. Pedro II inicia reinado 1841-48 implantação do Imperial Conservatório de Música do Rio de Janeiro 1857

fundação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional • A Cayumba (Dança dos Negros), de Carlos Gomes

1860 A Noite de São João, ópera de Elias Álvares Lobo 1865-70 Guerra do Paraguai 1870 Milão: estreia de Il Guarany, ópera de Carlos Gomes 1888 Lei Áurea extingue a escravidão 1889 proclamação da República FONTE: O autor

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RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A maior parte da produção musical de todo o período colonial está perdida. Existe, no entanto, uma maior quantidade de registros históricos a respeito da música da segunda metade do período colonial (séculos XVII e XVIII). Sobrevivem algumas fontes musicais, mas num número pequeno se comparado à quantidade de compositores de que se tem notícia através de fontes textuais. • A segunda metade do período colonial se caracteriza por um aumento na prática de música sacra, havendo maior atividade musical profissional durante a fase, sendo a profissão de mestre de capela particularmente importante. • A música religiosa era predominantemente vocal (coral ou policoral), escrita com base nos textos preexistentes usados no culto católico, geralmente em latim. • Os termos usados na época para os tipos de composição eram cantochão, para o canto gregoriano, e canto de órgão ou canto figurado, no caso da música polifônica. Esta, por sua vez, era escrita em estilo antigo (renascentista), estilo moderno (barroco) e, mais tarde, nos estilos pré-clássico e clássico. • O estudo da teoria musical associada à música polifônica era chamado de música especulativa. • A produção local de música escrita teve início nas igrejas de cidades do Nordeste a partir de c.1650, em função do surgimento dos primeiros compositores. Esta produção, no entanto, não é conhecida. • As partituras mais antigas do Brasil são conhecidas como Grupo de Mogi das Cruzes, e foram copiadas em 1730, aproximadamente, contendo música portuguesa anônima. • O mais antigo manuscrito conhecido de música composta no Brasil do qual se conhece a data é o da Cantata acadêmica, de 1759, peça profana de compositor anônimo da Bahia, formada por duas partes: Recitativo e Ária. • Entre composições cuja autoria é conhecida, uma das mais antigas do Brasil é Te Deum Laudamus (c.1760), de Luís Álvares Pinto. • O texto Escola de canto de órgão, de 1760, escrito por Caetano de Mello Jesus, é considerado o mais antigo tratado sobre teoria musical escrito no Brasil.

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• No Brasil colonial, os primeiros centros de produção musical foram Olinda, Recife, Salvador, bem como as principais cidades de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, locais em que predominava a música sacra. • No contexto das cidades mineiras, surgiu uma classe urbana de músicos profissionais, entre os quais a grande maioria era formada por afrodescendentes ou mestiços, muitos deles ligados ao trabalho musical das chamadas irmandades. • A música mineira do período colonial é erroneamente chamada de “barroco mineiro”, pois ainda não há consenso acadêmico a respeito de sua configuração estilística. • José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita é o compositor mais importante do cenário mineiro do século XVIII, e sua obra é representativa do estilo préclássico praticado no Brasil. • A partir do início do século XIX, no chamado período joanino, o principal centro musical do Brasil passou a ser o Rio de Janeiro, com a criação da Capela Real e a fundação do Teatro Real de São João. • A presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro foi um dos fatores que contribuíram para uma mudança do gosto musical, cujos efeitos foram vistos ao longo do século XIX, como o declínio da música sacra e a ascensão da ópera e da música de salão. • O compositor de maior destaque no início do século XIX foi José Maurício Nunes Garcia, atualmente considerado um dos nomes mais importantes da história da música erudita brasileira. • Outros importantes compositores atuaram no período joanino, como Marcos Portugal, Sigismund Neukomm e Damião Barbosa de Araújo. • As obras de Neukomm O Amor Brasileiro e L’Amoreux foram as primeiras composições feitas no Brasil inspiradas em temas brasileiros de origem popular. • Gabriel Fernandes da Trindade escreveu os Duetos Concertantes, mais antigas obras camerísticas instrumentais conhecidas do Brasil. • Após a Independência do Brasil, a crise econômica dificultou a produção de música orquestral. Com isso, cresceu a prática musical doméstica. • A impressão de partituras se tornou uma atividade regular no Rio a partir da década de 1830, com a abertura da tipografia do francês Pierre Laforge. • Francisco Manuel da Silva, compositor do Hino Nacional Brasileiro, desempenhou papel relevante como apoiador do ensino de música e da atividade musical em geral, participando da criação de instituições voltadas para estes fins. 61

• A ópera, no Brasil, atingiu seu auge de popularidade e influência ao longo do século XIX. Na época surgiu o movimento da ópera nacional, o que resultou na primeira ópera composta e encenada no Brasil com temática brasileira, A Noite de São João, de Elias Álvares Lobo. • Com suas óperas, Carlos Gomes foi o primeiro compositor brasileiro a alcançar sucesso em outros países, sobretudo na Itália: Il Guarany (1870) foi sua obra mais famosa. Sua peça para piano A Cayumba – Dança dos Negros (1857) foi uma das primeiras a conter elementos rítmicos de danças da cultura popular brasileira.

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AUTOATIVIDADE 1 Analise as afirmativas a seguir sobre a produção musical no Brasil colonial: I- Atualmente, são conhecidas muitas das composições produzidas no cenário pernambucano. PORQUE II- Havia diversos músicos e compositores atuando nos primeiros centros de produção musical, como ocorreu em Pernambuco. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As duas afirmativas são verdadeiras, e a segunda justifica a primeira. b) ( ) As duas afirmativas são verdadeiras, mas a segunda não possui relação com a primeira. c) ( ) A primeira afirmativa é verdadeira e a segunda é falsa. d) ( ) A primeira afirmativa é falsa e a segunda é verdadeira. 2 São compositores afrodescendentes ligados ao contexto mineiro do século XVIII: a) ( ) Ignácio Parreiras Neves – Marcos Coelho Neto – Marcos Portugal. b) ( ) Faustino do Prado Xavier – Luís Álvares Pinto – Henrique Alves de Mesquita. c) ( ) Caetano de Mello Jesus – Manoel Dias de Oliveira – Damião Barbosa de Araújo. d) ( ) Manoel Dias de Oliveira – Francisco Gomes da Rocha – Ignácio Parreiras Neves. 3 Analise as afirmativas sobre a história da música do Brasil nos séculos XVIII e XIX: I- Os manuscritos conhecidos como Grupo de Mogi das Cruzes são as partituras mais antigas de música composta no Brasil. II- A música dos compositores mineiros do século XVIII é estritamente barroca, por isso é comum que este recorte histórico seja definido pelo termo “barroco mineiro”. III- No século XIX, o gosto musical do público carioca sofreu transformações por influência da nobreza, e isso é percebido na obra do padre José Maurício. IV- Em 1819, Gabriel Fernandes da Trindade escreveu L’Amoreux, uma das primeiras peças de música de câmara inspirada em melodias populares brasileiras. V- A impressão de partituras iniciou em 1811, no Rio de Janeiro, com Pierre Laforge. 63

Agora, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As afirmativas I e II estão corretas. b) ( ) As afirmativas I e III estão corretas. c) ( ) Somente a III está correta. d) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas.

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TÓPICO 3 —

UNIDADE 1

MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, abordaremos o encontro da tradição da música escrita com o mundo moderno do século XX. Começaremos observando a transição entre as últimas décadas do século XIX e o início do século XX no Brasil, período em que ocorreram eventos de mudança e de otimismo: a extinção da escravidão (1888) e o fim da monarquia (1889).

2 A TRANSIÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX A República era mais um passo em direção à modernidade. Era preciso abandonar valores arcaicos: no meio musical, “a percepção compartilhada de otimismo ante o início de uma nova etapa ensejou iniciativas de reforma” (VERMES, 2016, p. 86). Entretanto, novamente modelos europeus seriam adotados — novidades vindas da cultura germânica e da Belle Époque francesa —, e a eles a música erudita brasileira se manteve atrelada por mais algum tempo.

2.1 ROMANTISMO NO BRASIL O romantismo começou a exercer maior influxo no Brasil por volta de 1870, cerca de 40 anos após sua ascensão na Europa. As influências alemãs e francesas, portanto, foram tardias, o que pode ter sido causado pelo forte vínculo que o Brasil manteve com as culturas portuguesa e italiana (CASTAGNA, 2003; KIEFER, 1997). Para contextualizar este fenômeno, é preciso compreender que, no Brasil, o romantismo era mais que um modelo estético a ser seguido: a tendência musical também se adequava às concepções de sociedade que estavam em voga à época (LARSEN, 2018). Ao longo da segunda metade do século XIX, ocorreu gradual fenômeno sociocultural de “separação radical das culturas do povo e da elite” (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 1, grifos do autor), o que intensificou a distinção entre a música “popular” e a música “culta”. Castagna (2003, v. 12, p. 1) explica que:

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

A cultura popular começava a ser expurgada do convívio com a elite, sendo cada vez mais considerada um sinal de atraso, ignorância e barbárie. Esse fenômeno foi o resultado de tendências internacionais do século XIX, cujo centro de irradiação foi a França, mais especificamente no governo de Napoleão III (1851-1870), marcado por um intenso processo de industrialização e reurbanização. O povo, ou a população ‘proletária’, necessário porque trabalhava nas fábricas, passou a se aglomerar em guetos e ruelas medievais, sobretudo em Paris. Considerado “perigoso”, pelo perigo das rebeliões e revoltas populares, sua cultura e seus costumes passaram a ser odiados pela elite.

NOTA

As tendências internacionais, citadas por Castagna (2003), chegaram ao Brasil, onde a industrialização e a população urbana haviam crescido no final do século XIX. A reurbanização que expulsara populações pobres do centro de Paris encorajou medidas semelhantes em cidades brasileiras, como a construção da Avenida Central, no Rio de Janeiro (c.1904-06), apelidada de “bota-abaixo”: “a cidade colonial tornou-se um entrave à modernidade [...], daí a necessidade de destruí-la e construir uma nova urbe ordenada segundo os preceitos e necessidades de uma sociedade capitalista” (RAMINELLI, 1997, p. 200; CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018).

O entusiasmo com a recém-iniciada República alimentava discursos em torno da necessidade de modernização do país, baseados em ideais de “ordem” e “progresso”. Assim, “desprezava-se tudo o que evocasse o passado colonial — incluindo grupos sociais e manifestações culturais — e se adotavam hábitos e ideias europeus” (VILLELA, 2016, p. 28). Para as elites intelectuais da Primeira República, a modernização das artes era uma ideia atrelada à noção de evolução. Acreditando que a Europa estava em um estágio de desenvolvimento cultural e humano mais avançado, cabia aos compositores, artistas e autores, “elevar” a arte nacional e, para isso, acreditavam que o caminho que se apresentava era o de seguir as artes europeias (LARSEN, 2018, p. 28).

Isso reforçava a crença em uma “hierarquia” dos gostos musicais, e a música ligada ao povo, ou à cultura rural, ou às origens coloniais, era situada em um nível “inferior”: no Rio de Janeiro, “músicos engajados na consolidação de uma cena musical erudita procuravam isolar essas práticas e repertórios do convívio com a música considerada vulgar” (VERMES, 2016, p. 100). Em suma, durante o período de transição, a música brasileira, sua produção e seu consumo refletiram três fenômenos:

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

1. Separação dos conceitos de música popular e música culta (elite); 2. Importação da música culta europeia (na época o romantismo francês e alemão); 3. Incorporação seletiva e disciplinada da cultura popular nos meios urbanos. (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 4).

Durante a Belle Époque brasileira, o romantismo foi incorporado principalmente por músicos ligados ao Instituto Nacional de Música, no Rio, e o Conservatório Dramático e Musical, em São Paulo. Nessa fase, foram também construídos novos teatros: em Manaus, no Rio de Janeiro e em São Paulo — espaços grandes e modernos, destinados à ópera e concertos de pianistas e de música orquestral (CASTAGNA, 2003).

FIGURA 17 – RIO: AVENIDA CENTRAL E O TEATRO MUNICIPAL, c.1910.

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

Entre os compositores brasileiros que se distanciaram do estilo italiano, passando a adotar elementos alemães e franceses típicos do romantismo tardio (APEL, 1974; BÉHAGUE, 2001a; CASTAGNA, 2003; SADIE, 1994), estão: • Leopoldo Miguez (1850-1902): estudou na Europa e absorveu influências do alemão Richard Wagner (1813-1883). Compôs música de câmara, obras orquestrais (poemas sinfônicos, sinfonias) e peças para piano.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

DICAS

Conheça a obra orquestral de Leopoldo Miguez Poema Sinfônico n.º 3, ‘Prometeu’, Op. 21 (1892). : . Baixe a partitura no IMSLP: .

• Henrique Oswald (1852-1931): vinculou-se à tendência francesa, recebendo influências de Gabriel Fauré (1845-1924), Camille Saint-Saëns (1835-1921) e Claude Debussy (1862-1918). Escreveu música de câmara, música orquestral e se destacou por suas peças para piano de alto nível de refinamento (BÉHAGUE, 2001d). Com pouco interesse pela cultura popular do Brasil, sua produção foi “essencialmente europeia e romântica” (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 7).

DICAS

Ouça obras para piano de Henrique Oswald: • Il Neige!... (1902), disponível em: . • Noturno n.º 2, Op. 6, disponível em: .

FIGURA 18 – HENRIQUE OSWALD

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

• Francisco Braga (1868-1945): compositor e regente, cuja maior influência foi a escola alemã de Wagner. Escreveu poemas sinfônicos, além de duas óperas, música de câmara e música sacra (SADIE, 1994). É o compositor do Hino à Bandeira (1906).

DICAS

Ouça Episódio Sinfônico (1898), de Francisco Braga. A obra está disponível em: .

2.2 PRIMEIROS REFLEXOS DA CULTURA POPULAR Mesmo com todos os discursos que acentuavam a distinção entre cultura popular e alta cultura, ocorreu no Brasil um gradativo aumento do interesse por música tradicional ou popular — o que pode ser explicado por uma característica do próprio romantismo europeu: curiosamente, o ideal romântico de música artística possuía forte ligação com a cultura dos povos, e “ao mesmo tempo que se distanciava da arte popular, procurava incorporá-la” (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 6).

NOTA

Ao se distanciar de aspectos valorizados pelo classicismo (como a racionalidade e o equilíbrio nas formas) em favor de maior liberdade, expressividade e originalidade, o romantismo nutriu um gosto por sonoridades exóticas, o que resultou na absorção de melodias e ritmos de origem popular pela música romântica. Na história da música europeia do século XIX, a cultura popular como fonte de inspiração é algo bastante nítido, por exemplo, nas regiões em que o romantismo se expressou sob a forma de correntes nacionalistas (Rússia, Escandinávia e outras).

No contexto brasileiro, os compositores também recorreram a elementos e sonoridades do folclore e na música popular — seu uso, porém, era condicionado a sua transformação em música “culta”: a música popular deveria ser “disciplinada”, 69

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

“civilizada”, e assim, melodias e ritmos tradicionais eram “envoltos em roupagem europeia”, submetidos à harmonização e à textura de acordo com os modelos românticos (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 7-8). Elementos tidos como pertencentes às culturas populares eram empregados a partir de uma dinâmica colonial, ou seja, seu valor em seu próprio contexto era anulado para então ser incorporado à “verdadeira” arte, como era então considerada a música de concerto nos discursos oficiais, históricos, literários e jornalísticos. [...] A música de concerto, com seus espetáculos dirigidos às elites, não apresentava como característica principal o nacionalismo musical e sim a modernização técnica (LARSEN, 2018, p. 149-150).

NOTA

Ainda que alguns autores se refiram às primeiras inserções de elementos brasileiros na música erudita como uma espécie de “pré-nacionalismo” (MARIZ, 2000), é preciso considerar, conforme alerta Castagna, que: Não se trata tanto de uma tendência estética nacionalista, mas apenas de uma manifestação patriótica, através da inserção de temática brasileira nas composições musicais. A preocupação básica era inserir em composições absolutamente convencionais, de acordo com a estética europeia contemporânea, índices ou referências ao Brasil, fossem esses poéticos ou musicais (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 8, grifo do autor). Isso nos remete ao ideal do bel canto e da ópera em português, surgido nos tempos da ópera nacional, conforme estudamos no Tópico 2. Esse movimento foi retomado no período final do século XIX por músicos como Alberto Nepomuceno, criador da frase “não tem pátria o povo que não canta em sua língua” — sendo “bastante indicativa do ideal ‘civilizador’ da elite, pois a música das camadas populares já eram cantadas na língua (ou melhor, nas línguas) do país há séculos” (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 7).

No século XIX, estes reflexos populares aparecem na obra de Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913). O pianista e compositor é comumente mencionado por A Sertaneja, peça para piano publicada em 1869, e considerada uma das primeiras composições eruditas de inspiração popular, ao lado de A Cayumba (1857), de Carlos Gomes. Em A Sertaneja, Cunha faz citações de canções tradicionais, sendo uma delas Balaio, meu bem, balaio, a qual recebeu um tratamento textural e harmônico tipicamente romântico, desenvolvido dentro do estilo virtuosístico em voga à época (BÉHAGUE, 2001a; CASTAGNA, 2003; TRAVASSOS, 2000).

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

DICAS

Ouça A Sertaneja, Op. 15 (1869), de Brasílio Itiberê da Cunha, acessando: .

No período de transição entre os séculos XIX e XX, outros importantes compositores seguiram esta tendência. Podemos destacar: • Alberto Nepomuceno (1864-1920): personagem proeminente da música brasileira desta fase. Suas primeiras obras foram escritas por volta de 1887. Viveu na Noruega, Alemanha e França, e viu de perto a influência que nomes como Wagner e Debussy exerciam na Europa. A maior parte de sua obra não contém elementos locais (LARSEN, 2018); algumas composições, porém, tiveram importância central no surgimento uma música de caráter nacional e na descoberta da riqueza rítmica da música popular (BÉHAGUE, 2001a). Por exemplo, sua peça sinfônica Série brasileira, estreada em 1897, “utilizava temas e um instrumento folclórico (reco-reco), escandalizando a crítica” (CASTAGNA, 2003, v. 12, p. 7); o 4º movimento, ‘Batuque’, explora ritmos de danças afrobrasileiras.

DICAS

Conheça algumas das obras de Alberto Nepomuceno: • ‘Batuque’, 4º movimento da Série Brasileira (c.1888-96), está disponível em: . • ‘Galhofeira’ (1894), n.º 4 das Quatro peças líricas (Op. 13), está disponível em: . • Romance (1908) está disponível em: .

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

FIGURA 19 – RETRATO DO MAESTRO ALBERTO NEPOMUCENO

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

• Alexandre Levy (1864-1892): compositor e pianista; era filho do fundador da Casa Levy de Pianos (SP). Estudou na França em 1887; no Brasil, além de músico, foi crítico musical. Em seus escritos para a imprensa, costumava defender a modernização da música. Traços brasileiros são percebidos numa espécie de “trilogia” composta entre 1887 e 1890: Suíte brasileira (tendo um dos movimentos intitulado ‘Samba’) e Variações sobre um tema popular brasileiro, ambas para orquestra, e Tango Brasileiro, para piano. A maior parte de sua produção, no entanto, foi baseada no estilo europeu. Seu irmão, Luís Henrique Levy (18611935), também foi compositor e pianista. Em sua produção predominam peças para piano (CASTAGNA, 2003; VILLELA, 2016).

DICAS

Ouça as referências populares e folclóricas nas obras de Alexandre Levy: • Variações sobre um tema popular brasileiro (1887) está disponível em: . • Tango Brasileiro (1890) está disponível em: .

DICAS

Acesse gravações de obras de Alberto Nepomuceno, Alexandre Levy, Francisco Braga, Leopoldo Miguez e outros compositores no portal Domínio Público. O endereço é o seguinte: .

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

2.3 CRONOLOGIA No quadro a seguir, apresentamos os eventos que marcaram o período de transição entre os séculos XIX e XX, marcado pela crescente influência do romantismo europeu no Brasil.

QUADRO 4 – SINOPSE DE EVENTOS HISTÓRICOS – ITEM 2

1869 A Sertaneja, Op.15, de Brasílio Itiberê da Cunha c.1870 1888 c.1888-96 1889 1890 1887-90 1894 1896

início do período de maior influência do romantismo no Brasil Lei Áurea Série Brasileira, de Alberto Nepomuceno proclamação da República Rio de Janeiro: extinção do Imperial Conservatório e criação do Instituto Nacional de Música ‘trilogia’ de Alexandre Levy (Variações, Suíte Brasileira e Tango Brasileiro) Quatro peças líricas, Op.13, de Alberto Nepomuceno Manaus: Teatro Amazonas

1904 São Paulo: fundação do Conservatório Dramático e Musical 1909 Rio: Teatro Municipal 1910 São Paulo: Teatro Municipal FONTE: O autor

3 INÍCIO DO SÉCULO XX: O MODERNISMO Na Europa da virada do século XX, crescia a influência das correntes artísticas que buscavam superar a tradição romântica, propondo novos caminhos estéticos: nas artes, surgiam movimentos como impressionismo, cubismo, expressionismo. Na música, diferentes tendências surgidas durante a fase são atualmente designadas pelo termo modernismo, incluindo a música pós-tonal, atonal, politonal, entre outras (CASTAGNA, 2003; GRIFFITHS, 1998).

NOTA

As ousadias na linguagem harmônica da fase mais radical do romantismo tardio podem ter ajudado no surgimento de uma “crise” no tonalismo (e nos mecanismos da harmonia tonal; encadeamento, resolução, cadências etc.) — e no declínio da própria estética musical romântica. Debussy costumava dizer que Wagner era “um belo crepúsculo, que foi confundido com uma aurora” (GRIFFITHS, 1998, p. 24). A “crise” coincide com a exploração de novas sonoridades (escala de tons inteiros, modos, cromatismos, uso irrestrito da dissonância) e a ruptura com convenções de forma, textura, ritmo. Entre as obras consideradas marcos da música moderna (GRIFFITHS, 1998; LEIBOWITZ, 1981) estão:

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

• Claude Debussy (1862-1918): Prelúdio para A Tarde de um Fauno (Prelude à l’Après-midi d’un Faune, 1894). • Arnold Schoenberg (1874-1951): Segundo Quarteto de Cordas (1908); Pierrot Lunaire (1912) • Igor Stravinsky (1882-1971): A Sagração da Primavera (1913).

As tendências modernas apontavam para a possibilidade de ruptura com tradições da música europeia. Enquanto isso, no Brasil, com o aumento da população nas cidades, a música popular já era uma parte indissociável do cotidiano urbano (sobretudo após o surgimento, na década de 1900, do mercado fonográfico). Ao mesmo tempo, o folclore se tornava objeto de um interesse cada vez maior por parte da intelectualidade da época. Folclore e cultura popular passaram a exercer uma tensão sobre a cultura erudita, e o modernismo brasileiro logo procurou “instituir um novo modo de relacionamento entre a alta cultura — dos letrados, academias conservatórias, salões — e as culturas populares” (TRAVASSOS, 2000, p. 16). É difícil estabelecer um marco inicial preciso do modernismo no Brasil; há certo consenso, no entanto, a respeito de seu início simbólico: a década de 1920 — mais especificamente o ano de 1922, a partir do icônico evento da Semana de Arte Moderna (SCHWARCZ; STARLING, 2018; TRAVASSOS, 2000). A tendência terminou por volta de 1945. Dentro desse recorte cronológico, podem ser identificadas duas fases no modernismo brasileiro (TRAVASSOS, 2000). A primeira fase foi marcada pela atualização e inovação estética, com críticas ao romantismo e ao “passadismo”, ou seja, uma fase “combativa”, “destrutiva”. Foram marcantes as atitudes iconoclastas vistas na Semana de 1922, a qual preconizou novas estéticas e criticou a tradição — por vezes com certa dose de ironia: nas apresentações da semana, “foi executada uma peça de Erik Satie, paródia à marcha fúnebre de Chopin. Ilustrava-se a crítica irreverente dos modernistas franceses ao romantismo” (TRAVASSOS, 2000, p. 23). Também entra nessa fase uma parcela da produção de alguns compositores — entre eles VillaLobos, visto pelos críticos como um “demolidor” das tradições vigentes. No entanto, mesmo havendo maior liberdade criativa, a fase não se configurou em uma “mudança radical de postura estética, mas sim como uma espécie de segundo tempo do nosso romantismo” com uma linguagem mais moderna (KIEFER, 1997, p. 64, grifo do autor). A própria Semana de Arte Moderna “não chega a ser propriamente a realização acabada da modernidade, mas insiste em ser seu índice, daí um certo desequilíbrio entre o que se alardeia e o que se mostra” (WISNIK apud CONTIER, 2013, p. 114). “Considera-se mesmo que o modernismo chegou à música, no Brasil, com sua força combativa amortecida” (TRAVASSOS, 2000, p. 24), pois a influência romântica continuou até as décadas de 1910 e 1920. As correntes modernas — como o impressionismo de Debussy, e depois o politonalismo de Stravinsky — foram assimiladas no Brasil de modo bastante gradual (CASTAGNA, 2003). 74

TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

São alguns dos compositores representativos da fase inicial da tendência modernista, sob a influência da música francesa de Debussy: • Glauco Velásquez (1884-1914): compositor brasileiro que influenciou contemporâneos como Gallet e Villa-Lobos. Escreveu música de câmara (um quarteto, quatro trios, duos para violoncelo e piano), peças para piano, canções e peças para coro, além de uma ópera inacabada (BEHAGUE, 2001h; CASTAGNA, 2003).

DICAS

Ouça o 1º movimento do Trio n.º 4 (c.1912), de Glauco Velásquez. A obra está disponível em: .

• Luciano Gallet (1893-1931): compositor e pianista. Além de Debussy e Glauco Velásquez, recebeu influência do francês Darius Milhaud (1892-1974) — membro do Grupo dos Seis, formado por modernistas franceses — com quem conheceu a música moderna de Schoenberg e Stravinsky. Suas primeiras obras refletem o estilo impressionista. Mais tarde, interessado na música folclórica brasileira, vinculou-se à tendência nacionalista, produzindo composições como Nhô Chico (1927), para piano, com amplo uso de sonoridades inspiradas no folclore. Em 1926, Gallet escreveu Suíte Turuna, sua primeira obra nacionalista, sob orientação de Mário de Andrade (MARIZ, 2000; SADIE, 1994).

DICAS

Ouça algumas das obras para piano de Luciano Gallet! • Prelúdio Hieroglifo (1922) está disponível em: . • Nhô Chico (1927) está disponível em: .

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Já a segunda fase do modernismo abordou a temática da nação e da realidade brasileira, pois buscou uma estética musical nacional, conhecida também por fase “construtiva”. Nessa fase, surgiu a necessidade de amadurecer conceitos e propostas acerca de temas como a identidade brasileira e a cultura popular, o que passou a ocupar lugar central no debate sobre o cenário musical. Depois da ruptura, o caminho para a construção de uma música nacional estava aberto, e o modernismo assumiu feições nacionalistas, como veremos adiante.

3.1 O NACIONALISMO E A IDENTIDADE MUSICAL DO BRASIL No começo dos anos 1920, artistas e intelectuais (em um número ainda pequeno) tinham curiosidade cada vez maior em relação às manifestações musicais do povo. Ao mesmo tempo, o modernismo havia criado uma tendência ao distanciamento dos padrões românticos. Desde o início da década de 1920 crescia o interesse pela música popular enquanto manancial temático em potencial para as futuras atividades de composição de música de características nacionais. O latente espírito musical nacionalista manifestava-se, até então, pela discussão, nos meios eruditos, de procedimentos teóricos que norteassem uma forma de composição “nacional”, diferente das experiências românticas que existiram desde Brasílio Itiberê [da Cunha], Alberto Nepomuceno e os irmãos Levy já considerados “passadistas” demais para serem tomados como modelos (CASTAGNA, 2003, v. 14, p. 5).

A busca da música nacional era, no entanto, repleta de desafios. As primeiras correntes nacionalistas europeias do século XIX, por exemplo, exaltavam as particularidades de “regiões relativamente pequenas e bastante homogêneas do ponto de vista linguístico e cultural”, (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 283), o que não se aplicava no caso do Brasil, diversificado, miscigenado e de dimensões continentais. Além disso, mesmo que alguns traços da cultura brasileira fossem perceptíveis na música de concerto desde o século XIX, uma música nacional não existia; o Brasil, que desde o início da colonização seguia invariavelmente modelos culturais provenientes da Europa, deparava-se agora com o projeto de construção de uma estética musical nacional para a qual não havia um modelo a ser seguido. Na conciliação entre a cultura popular e a alta cultura proposta pelo modernismo (TRAVASSOS, 2000), as particularidades da rica cultura brasileira apontavam um caminho, que seria construído nos anos seguintes com muito debate. O conceito estético que informa qualquer tipo de nacionalismo é o de valorizar e dar visibilidade às características de um país, por parte dos seus nativos. [...] O nacionalismo não é, pois, uma causa. Então ele não é gerador de pensamento e, por conseguinte, de música. Ele é, sim, um efeito social cuja manifestação em arte é motivada pela efervescência social que o gerou (BRANDÃO, 2014, p. 189-190).

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

Segundo Castagna (2003), o ponto inicial do nacionalismo musical é São Paulo, local em que Luciano Gallet e Mário de Andrade (1893-1945), escritor, crítico, folclorista e musicólogo, pesquisavam melodias tradicionais brasileiras. A partir de 1926 — quando Gallet compôs Suíte Turuna, uma das primeiras obras essencialmente nacionalistas — nasciam as primeiras discussões a respeito do folclore no âmbito da música escrita. Andrade defendia o diálogo entre os elementos nacionais e o legado da música europeia, propondo, para esta, a renovação da sua linguagem e de suas técnicas (CASTAGNA, 2003). Gallet e Mário buscavam o estudo sistemático da música popular ou folclórica, contudo: não para o arranjo ou harmonização de melodias e ritmos, como o fizeram Itiberê, Nepomuceno e Levy, mas para a compreensão dos princípios musicais essenciais, teóricos e não aparentes utilizados na geração da música folclórica brasileira, visando sua transferência para composições de concerto. Esse pensamento, essencialmente “modernista”, afastava-se dos princípios românticos que geraram as primeiras obras de concertos com elementos brasileiros, para sonhar com uma música erudita que fosse inteiramente reconhecida como “brasileira” (CASTAGNA, 2003, v. 14, p. 6).

FIGURA 20 – MÁRIO DE ANDRADE

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

3.1.1 Heitor Villa-Lobos O carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi um personagem fundamental dessa fase da música brasileira. É considerado o compositor mais hábil e pluralista do modernismo (CASTAGNA, 2003). Tornou-se uma das mais importantes figuras da música ocidental do século XX, e sua relevância histórica e estética é reconhecida por ter criado “estilos de composição únicos”, em que conseguiu unir “as técnicas europeias contemporâneas e os elementos reinterpretados da música nacional” (BÉHAGUE, 2001i, s.p.). 77

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

FIGURA 21 – HEITOR VILLA-LOBOS

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

Villa-Lobos iniciou seus estudos com o pai, músico amador. Em casa, faziam música de câmara; seus primeiros instrumentos foram o violoncelo e o clarinete. Ainda jovem, conheceu a cena erudita carioca, mas acabou mergulhando na vida musical dos chorões, nas ruas do Rio: Foram os idiomas [musicais] populares da cidade natal da virada do século que o cativaram, exercendo uma influência duradoura em sua obra. De fato, ele aprendeu a tocar violão — síntese da cultura popular e sujeito à desaprovação da alta sociedade — por conta própria, fora de casa (BÉHAGUE, 2001i, s.p.).

Villa-Lobos era um músico curioso e um ouvinte ansioso e atento, e como compositor, foi essencialmente um autodidata; incorporou com espontaneidade a linguagem impressionista, mas suas influências foram múltiplas, sobretudo por ter conhecido Maurice Ravel, Manuel de Falla, o pianista Artur Rubinstein, Edgard Varèse, Sergei Prokofiev, Milhaud e Stravinsky (BÉHAGUE, 2001i). Segundo Castagna (2003), são percebidas quatro fases no trabalho composicional de Villa-Lobos: • Entre 1900 e 1917: fase caracterizada por misturas de elementos pósromânticos e modernos vistos em Debussy e Stravinsky, com afastamento dos padrões românticos tradicionais; essa fase foi marcada por períodos de intensa produção, e além da influência estrangeira, abrange obras de inspiração popular (BÉHAGUE, 2001i; MOREIRA, 2014).

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

DICAS

Ouça, da primeira fase de Villa-Lobos: • Trio n.º 2 (1915): . • Suíte Popular Brasileira, para violão (1908-12): .

• Entre 1917 e 1923: fase em que Villa-Lobos inicia sua orientação nacionalista, ainda que a maior inspiração não fosse tanto a música popular, mas a “evocação livre da natureza selvagem”; as obras mostram um compositor “combativo, rude e direto”, tentando “desenvolver uma sonoridade moderna, com elementos brasileiros (quaisquer que fossem)” (CASTAGNA, 2003, v. 14, p. 21). Nestas obras aparecem a influência do modernismo francês e sobretudo de Stravinsky, como no balé Amazonas e no poema sinfônico Uirapuru, ambos de 1917. Se as composições europeias desse período estavam apoiadas em sólida tradição, Villa-Lobos apoiava-se desorganizadamente em todo o tipo de material novo que chegava ou surgia no Brasil. Mário de Andrade achava Villa-Lobos mais genial que Stravinsky, justamente pela falta dessa tradição (CASTAGNA, 2003, v. 14, p. 21).

DICAS

Obras da segunda fase de Villa-Lobos: • Balé Amazonas (1917): . • Poema sinfônico Uirapuru (1917): • Choro n.º 1 para violão (1920): .

• Entre 1923 e 1930: fase de grande ousadia e inovação; nessa época, VillaLobos viveu na França e pôde conhecer obras recentes dos compositores mais importantes da Europa naquele momento, como Paul Dukas, Ravel, Varèse, Prokofiev, Stravinsky. Nesta fase, Villa-Lobos deu sequência à inovadora série intitulada Choros (iniciada em 1920 com o Choro n.º 1, citado acima), totalizando 16 obras (duas estão perdidas), nas quais juntou sonoridades populares com elementos pós-tonais e desenvolveu uma gama diversificada e complexa de recursos harmônicos (CASTAGNA, 2003; MOREIRA, 2014). 79

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

DICAS

Ouça Choros n.º 6, numa gravação regida pelo próprio Villa-Lobos: .

• A partir de 1930: fase em que Villa-Lobos absorveu significativa influência do neoclassicismo, nova tendência surgida na Europa em compositores como Paul Hindemith, Prokofiev e Stravinsky, voltada à simplificação e à clareza formal da música clássica do século XVIII (barroco e classicismo). Isso é percebido nas suas Bachianas Brasileiras (1930-45), série de composições em que o compositor privilegiou o equilíbrio melódico e formal, inspirado na música barroca de J. S. Bach (CASTAGNA, 2003). Da fase também vem New York Skyline Melody (1939), obra para piano composta a partir de uma fotografia panorâmica de Nova York. Villa-Lobos concebeu os desenhos melódicos a partir de uma linha formada pelo contorno dos arranha-céus de Manhattan (FELICISSIMO, 2015).

DICAS

Obras da última fase de Villa-Lobos: • ‘Ária’, parte das Bachianas Brasileiras n.º 5: . • Link para a série completa das Bachianas Brasileiras: . • New York Skyline Melody (1939): . Partitura: . Sobre o processo composicional desta peça, recomendo a leitura de Felicissimo (2015).

NOTA

Na década de 1930, Getúlio Vargas assumiu o governo da República. Com anuência do presidente, Villa-Lobos promoveu uma campanha em larga escala pela educação musical, por meio do ensino de canto coral (canto orfeônico) em escolas. Para o projeto, foi compilado um repertório de música brasileira baseado em folclore e canções patrióticas. Villa-Lobos promoveu apresentações de canto orfeônico, de cunho cívico, com milhares de vozes: 30.000 cantores em 1935; em 1940 e 1943, em torno de 40.000 (BÉHAGUE, 2001i; LISBOA, 2005; SADIE, 2004; TRAVASSOS, 2000).

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

3.1.2 Outros nomes da escola nacionalista Após o seu surgimento, o nacionalismo musical se tornou uma corrente estética bastante influente no Brasil. Com o caminho aberto por pioneiros como Velásquez, Gallet e Villa-Lobos, outros compositores passaram a incorporar cada vez mais elementos populares e folclóricos às suas obras. A busca da linguagem erudita brasileira atraiu artistas inovadores, cuja contribuição alcançou reconhecimento pela relevância de sua produção composicional (MARIZ, 2000). No nacionalismo musical brasileiro, no grupo de artistas considerados os mais proeminentes do movimento — ao lado de Villa-Lobos, Francisco Mignone e outros — está Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993). . Algumas de suas peças são consideradas marcos da música nacionalista, como Dança Brasileira (1828), e sua primeira sonata (Sonata n.º 1 para violoncelo e piano, de 1931), na qual Guarnieri citou uma das melodias da música Tupinambá registradas por Jean de Léry no século XVI. Autor de uma extensa obra, Guarnieri também sofreu influência de Mário de Andrade, de quem foi seguidor (CASTAGNA, 2003).

FIGURA 22 – CAMARGO GUARNIERI

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

DICAS

Conheça obras importantes do nacionalista Camargo Guarnieri: • Dança Brasileira (1928), disponível em: . • Sonata n.º 1 para violoncelo e piano (1931), disponível em: . • Sinfonia n.º 2, “Uirapuru” (1945), disponível em: . • Ponteio n.º 49 (1959), disponível em: .

Além de Camargo Guarnieri, entre os compositores mais representativos da música erudita brasileira de orientação nacionalista, podemos também destacar: • Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948). • Francisco Mignone (1897-1986). • Dinorá de Carvalho (1905-1980). • Brasílio Itiberê (1896-1967). • Fructuoso Viana (1896-1976). • Alceo Bocchino (1918-2013).

DICAS

Conheça um pouco da obra de outros compositores nacionalistas importantes! • Suíte Brasileira n.º 1 (1936), parte I, ‘Velha modinha’: . • Reisado do Pastoreio (1930): . • Festa do Santo Rei (1949): .

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

3.2 CRONOLOGIA Estão listados a seguir alguns dos eventos históricos mais relevantes no contexto do modernismo musical brasileiro.

QUADRO 5 – SINOPSE DE EVENTOS HISTÓRICOS – ITEM 3

1894 França: Prelúdio para A Tarde de um Fauno, de Claude Debussy 1908 Áustria: Segundo Quarteto de Cordas, de Arnold Schoenberg (atonalismo) c.1909-12 quatro Trios, de Glauco Velásquez 1912 Áustria: Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg (expressionismo) 1913 França: estreia de A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky 1914-18 1917 1920-29 1922 1926 1927 1928 1930 1930-45 1931 1937-45 1936 1939 1939-45 1949

Primeira Guerra Mundial balé Amazonas e poema sinfônico Uirapuru, de Villa-Lobos série Choros, de Villa-Lobos São Paulo: Semana de Arte Moderna Suíte Turuna, de Luciano Gallet Nhô Chico, de Luciano Gallet Dança Brasileira, de Carmargo Guarnieri início da Era Vargas série Bachianas Brasileiras, de Villa-Lobos Sonata n.º 1, de Camargo Guarnieri regime do Estado Novo de Getúlio Vargas Suíte Brasileira n.º 1, de Lorenzo Fernandez New York Skyline, de Villa-Lobos Segunda Guerra Mundial Festa do Santo Rei, de Dinorá de Carvalho FONTE: O autor

4 NOVAS TENDÊNCIAS NO SÉCULO XX Ao longo da década de 1920, a corrente nacionalista, mesmo com as críticas que recebeu desde seu surgimento, foi celebrada como uma tendência inovadora, cuja preocupação com a busca da identidade musical nacional ajudou a projetar o Brasil na cena erudita internacional e revelou grandes nomes como Villa-Lobos e Guarnieri. No entanto, nas décadas seguintes, o nacionalismo foi bastante criticado. O que antes era considerado aventuroso e inovador — devido à postura questionadora perante o academicismo, o tradicionalismo e a imitação dos padrões europeus — havia se tornado, segundo seus críticos, uma tendência conservadora

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

e demasiadamente rígida na defesa de seus preceitos. Os nacionalistas, “sujeitos avessos a inovações que pudessem colocar em perigo tudo o que fora construído em nome do nacionalismo musical” (REMIÃO, 2018, p. 26), também eram alvo de desconfiança devido a sua controversa ligação com o regime do Estado Novo, que lhes rendeu acusações de terem trocado a causa estética pela pauta política. O modernismo nacionalista se havia se reduzido à condição de “arte institucional” (REMIÃO, 2018, p. 25).

4.1 O MOVIMENTO MÚSICA VIVA Na década de 1930, o personagem que simbolizou a chegada de novos conceitos musicais ao Brasil — os quais intensificaram ainda mais este debate — foi o músico alemão Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), flautista, compositor, regente, teórico e educador, que veio ao Rio de Janeiro em novembro de 1937. Koellreutter difundiu no Brasil as técnicas do dodecafonismo (ou serialismo), desenvolvidas por Schoenberg e seus seguidores (a Segunda Escola Vienense). No Rio, o músico iniciou a publicação do boletim periódico Música Viva, que mais tarde (1938-39) motivou a formação de um grupo com o mesmo nome, reunindo músicos e compositores que eram seus alunos. O grupo Música Viva se tornou uma espécie de movimento: [que] sustentou-se num conjunto convergente de atividades — cursos, palestras, concertos, recitais, audições experimentais, edições (revista e partituras), programas de rádio, etc. —, possibilitando àquelas pessoas encontrarem estímulo para definir suas próprias trajetórias e, acima de tudo, perspectivas mais amplas de interação em seu tempo e sociedade (KATER, 2001, p. 14).

Além de preconizar o uso da técnica serial, o debate sobre novas possibilidades expressivas e estilísticas e as posturas defendidas por Koellreutter geraram intensa controvérsia. Em 1946, ele e o grupo Música Viva publicaram o texto que ficou conhecido como Manifesto da Música Viva, em que o nacionalismo era criticado em favor de uma expressão musical com maior liberdade criativa e de “tudo o que favorece o nascimento e crescimento do novo, escolhendo a revolução e repelindo a reação” (MARIZ, 2000, p. 298). Assim, “o aparecimento do grupo Música Viva [...] produziu uma fratura no bloco nacionalista fortalecido no modernismo” (TRAVASSOS, 2000, p. 63-64).

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

FIGURA 23 – HANS-JOACHIM KOELLREUTTER

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

DICAS

Em 1950, Camargo Guarnieri publicou a Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil, fazendo duras críticas à escola de Koellreutter e a conceitos que o músico alemão vinha difundindo entre seus alunos. Na carta, o nacionalista Guarnieri manifestava, de forma agressiva, sua preocupação com a formação musical dos jovens compositores e acusava o dodecafonismo de ser uma “corrente formalista”, “antibrasileira”, que levaria “à degenerescência do caráter nacional de nossa música” (GUARNIERI, 1950). Quer ler este documento? Está disponível em: .

4.2 COMPOSITORES INDEPENDENTES A atuação de Koellreutter como músico, compositor e professor influenciou o surgimento de uma nova safra de compositores, sobretudo seus alunos. Apesar da intensa polêmica entre nacionalistas e dodecafonistas, em meados do século XX (coincidindo com o período pós-guerra), surgiu uma geração de compositores que abrange artistas considerados independentes, por não pertencerem necessariamente a nenhuma corrente estética específica. Nesse recorte cronológico, também aparecem compositores chamados de pósnacionalistas: ainda que a herança nacionalista esteja presente na música de muitos deles, percebe-se em sua obra uma maior diversidade de estilos composicionais e uma abertura às tendências contemporâneas — aspectos que visam, sobretudo, à busca por um estilo individual (MARIZ, 2000). 85

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Pelo menos quatro compositores importantes fizeram parte do Música Viva, e, sob a influência de Koellreutter, tiveram uma fase dodecafônica. Contudo, após se desligarem do grupo, seu interesse se voltou novamente à música de inspiração folclórica e popular (BÉHAGUE, 2001a). São eles: • César Guerra-Peixe (1914-1993): violinista, regente, compositor e pesquisador. Em sua obra, fez experiências mesclando elementos do folclore à técnica serial (BÉHAGUE, 2000a; REMIÃO, 2018). Pesquisou o folclore e a música nordestina; publicou textos importantes sobre estes temas, como Maracatus do Recife (GUERRA-PEIXE, 1955).

FIGURA 24 – CÉSAR GUERRA-PEIXE

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

DICAS

Ouça Mourão (1951), de Guerra-Peixe! Basta acessar: .

• Eunice Katunda (1915-1990): pianista e compositora. Em algumas de suas composições uniu a técnica dodecafônica a elementos brasileiros. Sua obra foi considerada original e inovadora. Compôs para orquestra, piano, violão, coro e formações de câmara (MARIZ, 2000; SCHECHTER; ANTONIO, 2001).

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

FIGURA 25 – EUNICE KATUNDA

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

DICAS

Ouça ‘Canto de reis’ (1952), n.º 2 dos Estudos folclóricos de Eunice Katunda. Está disponível em: .

• Claudio Santoro (1919-1989): compositor, violinista e regente. Conheceu a técnica serial com Koellreutter. Rompeu com o dodecafonismo e seguiu para uma fase nacionalista por volta de 1949, com sua Sinfonia n.º 3. Nos anos 1960, fez experiências com elementos absorvidos das novas tendências vanguardistas que surgiram naquela década. Seu estilo é eclético; Santoro é considerado um dos grandes expoentes da música brasileira deste período (BÉHAGUE, 2000a; MARIZ, 2000; SADIE, 1994). FIGURA 26 – CLAUDIO SANTORO

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

DICAS

Conheça obras de Claudio Santoro! • Sonata n.º 4 (1950), para violino e piano, está disponível: . • Paulistana n.º 1 (1953): .

• Edino Krieger (1928): compositor e regente. Sua obra possui características que vão desde o impressionismo, em suas primeiras composições, até uma linha neoclássica com traços nacionalistas, além de incursões atonais e dodecafônicas. Escreveu para orquestra, formações de câmara e piano, como sonatas e estudos. Canticum naturale (1972) está entre suas obras mais importantes (BÉHAGUE, 2000a; MARIZ, 2000; SADIE, 1994).

FIGURA 27 – EDINO KRIEGER

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

DICAS

Ouça, de Edino Krieger: • Abertura Brasileira (1955): . • Divertimento, para cordas (1959): . • Canticum Naturale, para soprano e orquestra (1972): .

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

Entre outros compositores proeminentes surgidos nessa fase, considerados independentes e/ou pós-nacionalistas (MARIZ, 2000), estão: • Bruno Kiefer (1923-1987). • José Penalva (1924- 2002). • Osvaldo Lacerda (1927-2011). • Ernst Widmer (1928-1990). • Edmundo Villani-Côrtes (1930). • Lindembergue Cardoso (1939-1989). • Marlos Nobre (1939). • José Antônio de Almeida Prado (1943-2010). • Ronaldo Miranda (1948). • Ernani Aguiar (1950).

DICAS

Não deixe de conhecer alguns exemplos interessantes da obra destes compositores. • Ernst Widmer: Rondo mobile (1968) . • Villani-Côrtes: Miniaturas Brasileiras (‘Cantiga de Ninar’ e ‘Baião’) . • Ronaldo Miranda: Concertino para piano e orquestra (1986) . • Ernani Aguiar: Violoncelada (1993) .

4.3 VANGUARDA NO BRASIL A partir do período pós-guerra, as concepções estéticas e o trabalho composicional de nomes como John Cage (1912-1992), Karlheinz Stockhausen (1928-2007) e Pierre Boulez (1925-2016) começaram a chegar ao Brasil. A chamada música de vanguarda — incluindo correntes da música eletroacústica, da música aleatória, da música concreta, do serialismo total e o minimalismo —, espelhava características pós-modernas e se conectava com elementos de outras artes, como as performances, o happening e a poesia concreta, dialogando com as artes plásticas, a arquitetura, a poesia, o teatro e o cinema.

NOTA

O termo vanguarda deriva do francês avant-garde e se refere a qualquer manifestação nas artes que esteja à frente das convenções estéticas vigentes nos meios artísticos, ou do gosto do público.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

4.3.1 O movimento Música Nova As tendências das vanguardas europeia e norte-americana tiveram como principal representante no Brasil o grupo Música Nova, o qual reunia compositores com “ideias estéticas afins ao que se fazia de mais radical e antiacadêmico no campo da música erudita da época, como a música aleatória e eletroacústica” (REMIÃO, 2018, p. 29). Em março de 1963, o grupo publicou o Manifesto Música Nova, defendendo um “compromisso total com o mundo contemporâneo”, e visando ao “desenvolvimento interno da linguagem musical (impressionismo, politonalismo, atonalismo, músicas experimentais, serialismo, processos fonomecânicos e eletroacústicos em geral)” (MARIZ, 2000, p. 337). Entre os compositores ligados ao grupo Música Nova estão: • Gilberto Mendes (1922-2016). • Willy Corrêa de Oliveira (1938). • Damiano Cozzela (1929-2018). • Rogério Duprat (1932-2006). • Julio Medaglia (1938).

FIGURA 28 – GILBERTO MENDES

FONTE: . Acesso em: 22 mar. 2020.

Gilberto Mendes foi a figura central da vanguarda brasileira. Sua concepção composicional envolveu o uso de materiais sonoros diversificados, além do aspecto humorístico, presente em obras como Beba Coca Cola, de 1967, e Santos Football Music, de 1969 (ZAGO, 2000). Gilberto Mendes foi aluno de Boulez e Stockhausen em Darmstadt, na Alemanha, entre 1962 e 1968; a partir de 1963, idealizou e organizou o Festival Música Nova, na cidade de Santos. O festival ainda ocorre, e costuma dar destaque a criações atonais, seriais e eletroacústicas, e outras tendências de vanguarda (SADIE, 1994; ZAGO, 2000).

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

DICAS

Conheça, de Gilberto Mendes, a obra Beba Coca-Cola (1967), poema de Décio Pignatari para coro. Obra disponível em: .

Além do vínculo com a corrente vanguardista, alguns dos compositores trabalharam na música popular. Durante os anos 1960, Medaglia, Cozzela e Duprat se aproximaram do movimento conhecido como Tropicália, fazendo importante contribuição como arranjadores em álbuns de Caetano Veloso, os Mutantes, Gilberto Gil e outros artistas.

TUROS ESTUDOS FU

Na Unidade 3, vamos estudar a Tropicália com mais detalhes. Vamos examinar melhor este interessante cruzamento entre a música popular e a vanguarda erudita.

Atualmente, a música brasileira conta com diversos artistas de renome, os quais atuam em diferentes expressões de vanguarda: música eletrônica, eletroacústica, experimental, minimalismo (MARIZ, 2000). A seguir, elencamos nomes de alguns dos principais expoentes da música contemporânea brasileira: • Walter Smetak (1913-1984). • Jorge Antunes (1942). • Jocy de Oliveira (1936). • Denise Garcia (1955). • Flo Menezes (1962). • Dimitri Cervo (1968).

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

DICAS

Conheça exemplos de obras de compositores da música contemporânea brasileira. • Walter Smetak: Interregno (1980) . • Jorge Antunes: Apoteose de Rousseau, poema sinfônico (2015) . • Jocy de Oliveira: Encontro desencontro (1985) . • Denise Garcia: Tríplice andar (2013), para marimba e vibrafone . • Flo Menezes: Laçoentrelaço (2013) . • Dimitri Cervo: Abertura Brasil (2012) .

4.4 CRONOLOGIA Veja abaixo o resumo cronológico dos principais eventos históricos ligados ao contexto da música contemporânea e das novas tendências surgidas no século XX.

QUADRO 6 – SINOPSE DE EVENTOS HISTÓRICOS – ITEM 4

1923 1937 1937-45 1939 1939-45 1946 1949 1950 1951 1963

primeiras obras dodecafônicas de Schoenberg Koellreutter chega ao Brasil regime do Estado Novo de Getúlio Vargas grupo Música Viva Segunda Guerra Mundial Manifesto Música Viva Sinfonia n. 3, de Cláudio Santoro Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil, de Camargo Guarnieri Mourão, de César Guerra-Peixe Manifesto Música Nova • Festival Música Nova FONTE: O autor

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

LEITURA COMPLEMENTAR 500 ANOS DE MÚSICA NO BRASIL: UM BALANÇO ESPECULATIVO Gerard Béhague 500 anos de Brasil: uma co-memoração bastante problemática que, sem dúvida, incita a reflexão, ao debate e até a polêmica. Como bem dizia meu falecido professor, Gilbert Chase, história não passa de um diálogo com os mortos, mas, evidentemente, quem dialoga são os vivos. Nós mesmos formulamos questões históricas, de acordo com as nossas próprias ideologias e perspectivas num tempo e espaço bem definidos. Tais perspectivas raramente coincidem com as das épocas históricas que questionamos, o que tende a invalidar a tal autenticidade histórica. Faz-se mister encontrar o equilíbrio entre o pensamento histórico original e a interpretação do mesmo pela ideologia contemporânea. É também necessário lembrar que a história “escrita” difere muitas vezes da história oral. Neste final do século XX, pareceria, a priori, que a enorme diversidade atual de expressões musicais no Brasil tem pouco ou nada a ver com as épocas anteriores da história musical brasileira. Como não há câmbio sem continuidade, essas expressões resultam de uma percepção privilegiada da continuidade histórica de um passado mais ou menos longínquo dentro de uma tradição musical determinada. A identidade do Brasil, enquanto nação e cultura, tem tido várias manifestações e imagens musicais diferentes durante toda a sua história. É tentador, portanto, fazer um balanço dessas manifestações, não num sentido de rebater os argumentos da construção da identidade oficial que imagina uma cultura única e homogênea mas, pelo contrário, num sentido mais real da identidade múltipla, pluriétnica e polissêmica da cultura musical nacional atual. Para isso, me proponho aqui voltar a examinar brevemente as premissas da construção de identidade nacional em algumas das tradições musicais do país, para tirar algumas conclusões sobre a possível interpretação do perfil musical brasileiro neste fim de século. Esse balanço é um tanto especulativo e simbólico no que diz respeito às várias interpretações do sentido histórico dessa famosa “flor amorosa de três raças tristes”, como qualificava a música brasileira o poeta Olavo Bilac. Tem, por objetivo primordial, esboçar o pano de fundo histórico que determina as inter-relações atuais entre ideologia e música. Primeiro, me parece fundamental reconhecer que as fronteiras estabelecidas em relação às origens portuguesas (e ibéricas, de modo mais geral), africanas e indígenas, como indicava Mário de Andrade no seu famoso Ensaio, já, há tempo, se encontram cada vez menos nítidas. Da mesma forma, a bem conhecida dicotomia entre música de tradição escrita e de tradição oral está cada dia menos pronunciada.

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UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

Durante todo o nosso século estudiosos da música no Brasil encararam as suas várias tradições de acordo com a ideologia predominante de um período determinado referente à percepção da constituição de grupos sociais, considerados em termos de origem ou herança cultural e étnica, de sua suposta posição dentro de uma estratificação social dada, e de seu lugar geográfico (seguindo a distinção clássica de rural e urbano, ou de regional e nacional). Para Guilherme de Melo, a história da música no Brasil não passa de influências: indígenas, jesuíticas (sobre essas), portuguesas, africanas e espanholas, bragantina (desde João VI até D. Pedro II) e republicana. Os elementos fundamentais sobre os quais se exercem tais influências não são elucidados. Só se considera os elementos que vinham de fora, sem a mínima preocupação em identificar sobre o que supostamente e exatamente essas influências operam, já que, para ele, a pedra fundamental da arte musical do Brasil é apenas o resultado dessas várias influências. Por outro lado, para Renato Almeida a “Sinfonia da Terra” do Brasil se forma a partir de elementos naturais em que se constrói o próprio fundamento musical nacional. Diz ele: “O brasileiro [...] inspirado na terra e libertando-se de todas as influências estranhas, para melhor se afirmar, cria a sua música e os que desprezarem essa inspiração nada construirão de definitivo, porque fora do meio as obras são precárias”. No entanto esse feliz idealismo, ele só considera a verdadeira “História da música brasileira” como fazendo parte da tradição erudita, tratando o que ele rubrica como “música popular” fora de coordenadas históricas. Por isso, só pôde entrever o “alvorecer da música no Brasil” a partir da chegada na Bahia em 1552, com o bispo Pedro Fernandes Sardinha, do mestre de capela Francisco Vacas. Assim em diante, até a década de 1990, numa visão privilegiadíssima dessa história musical, confirmada pelos trabalhos de Luiz Heitor, Vasco Mariz, Bruno Kiefer, e tantos outros mais. É de estranhar a falta de ressonância das lições de Mário de Andrade que se bem se refere (no famoso Ensaio) à “música artística” por um lado e “popular” por outro, os fatores determinantes de sua classificação são sempre de ordem social. Para ele, música “brasileira” é toda música nacional com ou sem “caráter étnico”, desde a música sacra do padre José Maurício, as sinfonias e poemas sinfônicos acadêmicos do fim do século XIX, até as peças de teatro de revista da Chiquinha Gonzaga e os tangos para piano de Ernesto Nazareth. Essa visão global é precisamente o que preconizou mais tarde o grande escritor cubano Alejo Carpentier, ao caracterizar a música latinoamericana nos seguintes termos: “a música latinoamericana deve ser aceita em bloco, tal e como ela é, admitindo-se que suas expressões mais originais podem da mesma forma sair das ruas como vir das academias...”. Para Carpentier, foram músicos dos campos, instrumentistas de bairros populares e pobres, pianistas de cinema que deram a essa música cartão de identidade, impacto e estilo. “E aí está a diferença”, diz ele, “entre a história musical da Europa e a história musical da América Latina, onde, em épocas ainda recentes, uma boa canção local podia nos pareceres de maior enriquecimento estético que uma sinfonia mediocremente realizada que nada acrescentava à bagagem sinfônica universal”. Não chega a repudiar, por isso, os grandes valores da chamada música erudita. 94

TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

Um bom número de musicólogos brasileiros ou brasilianistas insistiram nos seus estudos em estabelecer fronteiras das tradições musicais de acordo com a estratificação existente num momento dado. Deste modo, se percebem essas tradições dentro de um modelo em quatro partes: música tradicional ou “primitiva” das comunidades indígenas, música folclórica-rural de vários grupos, música popular urbana de vários grupos mestiços, e música das elites urbanas dominantes. Este tipo de classificação, no entanto, peca pela falta de reconhecimento de que a estratificação não é fixa e que as identidades socioculturais ou étnicas podem variar consideravelmente em tempo e espaço e de acordo com os vários contextos em que essas identidades são negociadas e para objetivos bem definidos. Os limites e as fronteiras dessas tradições se encontram ligadas à questão de identidade e devem ser, por conseguinte, repensadas com atenção especial aos vários fatores que contribuem à construção de identidade contemporânea. Como bem disse o historiador Richard Morse num magnífico ensaio de 1995, “identidade não é ‘caráter nacional’ conforme diagnóstico psiquiátrico social, mas uma consciência coletiva de função histórica”. Identidade, diz ainda “começa com autorreconhecimento tácito”. O que parece essencialmente relevante, portanto, é articular as relações entre música e os vários contextos de construção (ou autorreconhecimento) de identidade de grupos e indivíduos dentro desses grupos. Houve uma tendência no Brasil em considerar a cultura musical nacional como sendo monolítica, resultando muitas vezes em generalizações ingênuas, simplistas ou reducionistas sobre as várias tradições musicais. A verdadeira diversidade das músicas brasileiras se tornou mais clara a partir dos anos 1960, devido ao trabalho de campo mais intenso por parte de vários pesquisadores. No entanto, não se tem acumulado até hoje suficiente conhecimento empírico sobre os vastos repertórios destas tradições para permitir comparações significativas entre as várias expressões regionais. É o caso, por exemplo, das comunidades indígenas que apresentam uma organização e atividades sociais das mais variadas, e grau de autonomia ou relativa integração bem diversa. Os estilos musicais de algumas dessas comunidades sofreram vários graus de aculturação que resultam em uma dupla musicalidade: uma ancestral, tradicional, e a outra assimilada e adaptada da cultura mestiça (exemplo dos Suyá do Alto Xingu que aprenderam a dançar música caipira e sertaneja para divertimento social). Da mesma forma, tivemos a tendência em estabelecer correspondências entre tradições de música folclórica (“luso-brasileira”, “afro-brasileira” etc.) e grupos étnicos bem definidos, sem preocupar-se do fato bem generalizado de que expressões musicais transcendem muitas vezes a herança étnica. [...] Um dos exemplos mais notáveis é o da Marujada do Recôncavo, estudada e documentada pelo amigo Ralph Waddey, pesquisador durante muito tempo das realidades da música baiana tradicional. [...] Considerando esse tipo de performance, poderíamos perguntar-nos se não existe uma contradição assombrosa para os participantes que continuam muito ligados a sua cultura religiosa e profana predominantemente afro-baiana. A Marujada e outros bailados dramatizam a luta entre o bem (isto é, o cristianismo) e o mal (o paganismo, incluindo religiões africanas). Fica claro que as lições violentas do colonialismo exigiram a derrota 95

UNIDADE 1 — MÚSICA NO BRASIL: DAS ORIGENS AO

política e espiritual das comunidades colonizadas através dessas danças dramáticas onde os participantes desempenham o papel de sua própria submissão e derrota. Qual poderia ser, então, o significado dessas atividades no mundo de hoje? Não é nem resistência nem discrepância. Não há contradição se consideramos que o negro baiano reconhece que a sua cultura expressiva é múltipla e que, como brasileiro, não é nem africano nem português. O ser brasileiro implica vários níveis de identidade que resultam em ambiguidades complexas. Outro exemplo seria o samba de viola também do Recôncavo, se bem lembrado hoje por relativamente pouca gente, que tem (como o seu nome indica) a viola (de origem portuguesa) como instrumento principal do conjunto, mas limitado a ostinatos rítmicos e harmônicos. [...] Temos que encarar, portanto, essa magnífica fluidez natural, bem característica desse Brasil, no próprio conceito de etnicidade e de tradições musicais. Por outro lado, a herança portuguesa na cultura brasileira é vista de maneiras bem diversas. Por exemplo, num dos seus CDs mais recentes, Eu tô de pé (1998), Bezerra da Silva gravou o samba de Otacílio da Mangueira e Ary do Cavaco, É ladrão que não acaba mais, que atribui ao Álvares Cabral o início de uma tradição de roubo pouco invejável. Claro que a colonização simboliza roubo: a apropriação da terra dos índios nativos, a exploração das riquezas naturais, o genocídio cultural brasílico, mas representa também a fonte de uma nova civilização mestiça da qual surgiram durante esses cinco séculos expressões musicais das mais variadas e originais, das danças dramáticas, os romances, as modinhas, as rodas infantis e a cantoria até a música sacra colonial de Pernambuco e Bahia, Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. E, como lembrava o patriarca da musicologia brasileira, é “pela ponte lusitana que a nossa musicalidade se tradicionaliza e justifica na cultura europeia”. Mas, já na segunda metade do século XX, a ponte lusitana não passa de um fato meramente histórico. A determinação do nacional em música só se torna proposta concreta a partir do momento em que o Brasil é visto pela maioria como uma entidade cultural e política mais ou menos autônoma, o que não ocorre até aproximadamente meados do século XIX, e isso, apesar do segundo império que evidentemente não favorece a formação de consciência nacional, já que persiste o vínculo com o passado lusitano colonizador. No entanto, na composição erudita, a partir da década de 1870, aparecem elementos conscientizadores do potencial expressivo local. O nacionalismo romântico de um Brasílio Itiberê com a sua Sertaneja, do Carlos Gomes com alguns trechos de suas óperas, e, um pouco mais tarde, com Alexandre Levy, representa um passo tímido de afirmação local. Mesmo o lado mais verde-amarelo do Alberto Nepomuceno é bastante artificial. São verdadeiramente os músicos populares como o Callado, a Chiquinha Gonzaga e finalmente Ernesto Nazareth que dão carteira de identidade nacional à música. O caso Heitor Villa-Lobos é único na história da música do século XX. Apesar de nação independente desde 1822, o Brasil continuou até o fim da segunda guerra mundial a ser intelectualmente e artisticamente uma colônia da

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TÓPICO 3 — MÚSICA ERUDITA NO BRASIL DO SÉCULO XX

Europa (pelos menos na tradição erudita). Os meios musicais oficiais carioca e paulista das primeiras décadas do século foram dominados por valores artísticos pós-românticos franceses, italianos e alemães. Por uma série de fatores VillaLobos estava predestinado a tornar-se o libertador simbólico da música (erudita) brasileira. E conseguiu, pelo menos em parte, pelo fato de seu verdadeiro interesse, empatia, afinidade e autêntica vivência com a música popular urbana da sua juventude. O Brasil de Villa-Lobos é também um Brasil histórico com os seus próprios fetiches do nacional em música. A busca da essência da brasilidade estava evidentemente limitada ao fetichismo da época, como, por exemplo, a idealização (um tanto romântica) da cultura popular rural como a verdadeira fonte de identidade nacional, excluindo gêneros de música popular urbana por causa de sua suposta impureza. Tal atitude foi o resultado do que José Miguel Wisnik chamou de “visão centralizada, homogênea e paternalista da cultura nacional”. Hoje a questão não é mais Tupi or not Tupi, mas sim como definir a possível compatibilidade entre o pós-modernismo e o nacionalismo. Para isso, haverá que repensar e atualizar o conceito de nacionalismo no Brasil. O perfil musical brasileiro neste fim de século é claramente fragmentado. Temos que repensar criticamente os velhos paradigmas que foram moldados durante as últimas gerações na bigorna de percepções e pressuposições essencialmente eurocêntricas e americanocêntricas. Na base, esse represamento crítico requer uma penetração mais profunda das “realidades” da sociedade atual ou grupos sociais bem diferenciados (em termos ideológicos, socioeconômicos e políticos), e do passado e presente desses grupos através da expressão de suas identidades musicais. O estudo dessas expressões precisa ocupar um lugar maior para um novo levantamento conceitual dos limites e das fronteiras das tradições musicais e suas constantes superposições. É bem claro que na medida em que pessoas de grupos sociais diferentes compartilham cada vez mais o mesmo espaço, as velhas fronteiras tendem a desaparecer. As escolhas estéticas se tornam então mais numerosas e complexas, e com elas o sentido de nação homogênea. [...] FONTE: BÉHAGUE, G. 500 anos de música no Brasil: um balanço especulativo. 1999. . Acesso em: 22 mar. 2020.

CHAMADA

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RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A fase de transição entre os séculos XIX e XX coincide com o período em que o romantismo europeu exerceu maior influência no Brasil, a partir de c.1870, com tendências musicais recebidas da França e da Alemanha. • O romantismo importado da Europa se encaixou na concepção de sociedade vigente no Brasil, onde vinha ocorrendo um fenômeno sociocultural de separação entre as culturas do “povo” e da “elite”, o que acentuou a ideia de distinção entre música “popular” e música “culta”. • Estão entre os compositores vinculados à escola romântica Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e Francisco Braga. • Outra corrente de compositores brasileiros da escola romântica recorreu a elementos musicais da cultura popular, ainda que tais elementos fossem “disciplinados”, recebendo o tratamento harmônico e textural de acordo com os estilos europeus em voga. Esta tendência inclui compositores como Brasílio Itiberê da Cunha, Alexandre Levy, Luís Henrique Levy e Alberto Nepomuceno. • Um dos primeiros exemplos de inserção de elementos populares é a obra para piano A Sertaneja (1869), de Brasílio Itiberê da Cunha. • Alberto Nepomuceno foi um compositor de destaque durante o período de transição. Sua obra possui poucos elementos nacionais, mas foi importante por ter contribuído para o surgimento da música nacional décadas depois. • No início do século XX, entre os primeiros compositores que seguiram tendências modernas estão Glauco Velásquez e Luciano Gallet, influenciados pela estética impressionista de Debussy. • O modernismo musical no Brasil se estabeleceu de maneira gradual, mas a década de 1920 é considerada seu ponto inicial — sobretudo a Semana de Arte Moderna, em 1922. • O modernismo de orientação nacionalista foi influenciado pelas ideias a respeito de cultura popular gestadas por personagens relevantes como Mário de Andrade e Luciano Gallet; isso ocorreu especialmente a partir do ano de 1926, quando Gallet compôs Suíte Turuna, uma das primeiras obras nacionalistas.

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• O maior nome do nacionalismo musical do Brasil é Heitor Villa-Lobos, compositor que buscou nova linguagem estilística, misturando diferentes tendências ao longo de sua carreira. • Durante a era Vargas, Villa-Lobos foi responsável por implantar um projeto de educação musical em massa, por meio do ensino de canto coral (canto orfeônico) em escolas, cujo repertório era baseado em folclore e canções de conteúdo cívico. • Entre outros importantes compositores da escola nacionalista estão Camargo Guarnieri, Oscar Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Dinorá de Carvalho, Brasílio Itiberê, Fructuoso Viana e Alceo Bocchino. • Camargo Guarnieri escreveu obras que são marcos da música nacionalista como Dança Brasileira (1928) e Sonata n.º 1 (1931). • O movimento Música Viva surgiu no Brasil através do instrumentista e compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter, que difundiu entre compositores brasileiros novas tendências de composição, como a técnica dodecafônica de Schoenberg. • O grupo Música Viva publicou um manifesto em 1946 defendendo uma maior liberdade criativa, criticando o nacionalismo musical. • Camargo Guarnieri publicou a Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil em 1950, fazendo duras críticas ao movimento liderado por Koellreutter. • Koellreuter influenciou vários compositores novos, especialmente alunos seus que estiveram ligados ao movimento Música Viva, como Cláudio Santoro, Eunice Katunda, César Guerra-Peixe e Edino Krieger. • A geração de compositores independentes e pós-nacionalistas inclui Bruno Kiefer, José Penalva, Osvaldo Lacerda, Ernst Widmer, Edmundo Villani-Côrtes, Lindembergue Cardoso, Marlos Nobre, Almeida Prado, Ronaldo Miranda e Ernani Aguiar. • O Manifesto Música Nova, publicado por Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira, Damiano Cozzela, Julio Medaglia e Rogério Duprat, em 1963, defendia a exploração de linguagens experimentais contemporâneas, como a música eletroacústica e a música aleatória, sendo um marco da música de vanguarda no Brasil. • São compositores representativos da música contemporânea brasileira Walter Smetak, Jorge Antunes, Jocy de Oliveira, Denise Garcia, Flo Menezes e Dimitri Cervo.

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AUTOATIVIDADE 1 (ENADE, 2009) Em 1950, Camargo Guarnieri publicou a Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil. Sobre esse documento, é INCORRETO afirmar que: FONTE: . Acesso em: 5 maio 2020.

a) ( ) Provocou uma reação que culminou com a Semana de Arte Moderna. b) ( ) Apresentava interesse pela formação musical dos jovens compositores. c) ( ) Considerava que o dodecafonismo degenerava a identidade musical brasileira. d) ( ) Expressava que o dodecafonismo aludia ao formalismo. 2 (ENADE, 2011) No século XX, Villa-Lobos instituiu nas escolas públicas brasileiras o canto orfeônico, com o objetivo de democratizar o acesso à música. Sobre o canto orfeônico, analise as afirmativas a seguir: I- O canto orfeônico visava, entre outros aspectos, o desenvolvimento do civismo, da disciplina e da educação artística. II- Para constituir o repertório do canto orfeônico, Villa-Lobos fez uma seleção de canções do folclore brasileiro e de músicas de caráter nacionalista. III- Além do canto coletivo, outra característica do canto orfeônico era a expressão corporal, com o intuito de auxiliar na técnica e projeção da voz.

FONTE: . Acesso em: 5 maio 2020.

É CORRETO o que se afirma em: a) ( ) I, apenas. b) ( ) III, apenas. c) ( ) I e II, apenas. d) ( ) II e III, apenas. 3 Sobre a música erudita brasileira do século XX, é CORRETO afirmar que: a) ( ) Koellreutter difundiu suas ideias por meio do movimento Música Nova. b) ( ) Villa-Lobos, por ser um compositor moderno, rejeitou os preceitos do neoclassicismo do século XX. c) ( ) Gilberto Mendes foi um dos incentivadores da música de vanguarda no Brasil. d) ( ) Luciano Gallet e Mário de Andrade estudaram a música popular e folclórica tendo como objetivo a harmonização e o arranjo de melodias.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender aspectos gerais a respeito das origens da música popular no Brasil; • conhecer as fontes iconográficas da música tradicional afro-brasileira dos séculos XVII a XIX; • relacionar as danças tradicionais com o surgimento dos primeiros gêneros musicais populares no Brasil; • conhecer e analisar temas importantes da história da música popular brasileira entre os séculos XVIII e XIX; • analisar os aspectos do contexto histórico da música popular entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX; • compreender a importância do choro como um dos gêneros fundamentais nas origens da música popular urbana no Brasil; • conhecer o contexto histórico das origens do samba; • identificar alguns dos gêneros de música popular mais relevantes entre os que estiveram em voga no início do século XX; • relacionar o papel das novas mídias surgidas no século XX, como a fonografia e o rádio, com o cenário da música popular; • percorrer o cenário musical popular até cerca de 1950, identificando manifestações como os regionalismos e as influências estrangeiras.

PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL TÓPICO 2 – MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX TÓPICO 3 – MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

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TÓPICO 1 —

UNIDADE 2

PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO Depois de percorrer a trajetória da música erudita brasileira, examinaremos, a partir de agora, aspectos da história da música popular – ou, em outras palavras, a tradição da música não escrita no Brasil (WISNIK, 2000?) –, nossa segunda linha de estudo. Vamos discorrer algumas das principais questões acerca da tradição musical popular no Brasil, buscando compreender seus laços com a vida social ao longo da história, desde o período colonial, época em que se originou. Neste tópico, recorreremos novamente aos registros iconográficos, uma importante fonte de informação a respeito da música de tradição oral.

2 CONTEXTO HISTÓRICO Neste primeiro tópico, consideraremos, por enquanto – a título de introdução ao assunto –, o termo música popular na acepção de música tradicional (de transmissão oral, não escrita), conforme o contexto do Brasil colonial, seguindo a direção teórica dada por Castagna (2003) e Wisnik (2000?), já exposta na Unidade 1.

NOTA

Vale destacar que a formação de uma cultura musical popular ocorreu tardiamente no Brasil: A forma de colonização, os interesses políticos lusitanos em consolidar a posse da colônia e a própria forma de expropriação que os portugueses implantaram no Brasil contribuíram sensivelmente para o surgimento tardio de uma cultura brasileira, da qual a música popular é parte fundamental (CALDAS, 2010, p. 2). Além disso, o termo música popular, como é entendido hoje, está associado ao contexto da vida moderna, na acepção de “música popular urbana”, referindo-se a uma cultura musical que se desenvolveu a partir do final do século XIX e primeiras décadas do século XX em circunstâncias socioculturais e mercadológicas específicas (BÉHAGUE, 2001; CASTAGNA, 2003). Isso será abordado no Tópico 3.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

Manifestações musicais tradicionais são predominantemente coletivas, um “ato comunitário” no qual “não há público, não há autor, não há obra, quase todos os ouvintes são participantes” (CANDÉ, 2001, p. 27) e estão em constante transformação, pois sua transmissão ocorre de forma oral. Se estas características conferem, por um lado, o atributo de “não escrita” a esta categoria de música, por outro, isso também significa que ela prescinde de sistemas notacionais, ou seja, não depende da escrita para existir e se desenvolver, e que está profundamente ligada à oralidade, à escuta e à memória dos indivíduos de determinado grupo (BLACKING, 1973; CASTAGNA, 2010; MERRIAM, 1964). Portanto, nos primeiros séculos da história do Brasil, a música de tradição oral – manifestada espontaneamente, produzida de maneira não profissional – teve um processo de desenvolvimento gradual e indistinto. Suas origens têm uma história de contornos pouco definidos e repleta de lacunas, sobretudo no que diz respeito à documentação histórica, às datas e aos personagens (quase sempre anônimos) que participaram dessa construção cultural secular. Assim, uma grande parte da nossa música popular do passado é hoje desconhecida (CASTAGNA, 2003, 2010; MENEZES BASTOS, 2007; WISNIK, 2000?). Apesar de existir uma quantidade considerável de dados historiográficos a dar suporte à hipótese da existência de uma vida musical significativa no Brasil, nas esferas erudita e popular, desde o século XVII e mesmo antes disto, até hoje se sabe muito pouco – em termos propriamente musicais – sobre como era ela antes de meados do século XVIII (MENEZES BASTOS, 2007, p. 10). As origens da música popular remetem a um período de aculturação de elementos portugueses, indígenas e africanos, nos primeiros séculos da Colônia, que podemos considerar inconsciente, em dois sentidos: pouco estudado e quase inacessível ao trabalho historiográfico, ao mesmo tempo que constitutivo de alguns traços definidores e permanentes da cultura brasileira (WISNIK, 2000?, s.p.).

A partir do argumento de Wisnik (2000?) de que as origens da música popular no Brasil são “quase inacessíveis ao trabalho historiográfico”, surge outro ponto importante: a questão das fontes históricas. Diferentemente da música escrita (da qual conhecemos exemplos antigos graças aos meios físicos em que foram notados, chegando aos dias atuais), a música popular do período colonial foi pouco documentada. Musicais ou textuais, são poucos os registros – mesmo porque, em comparação, os dois tipos de música exerciam funções sociais muito diferentes: manifestações musicais tradicionais estavam ligadas ao vínculo identitário e cultural, à integração, à socialização, danças, rituais, entre outros elementos da herança cultural de cada povo e/ou etnia. Além disso, a música do povo nem sempre era aceita pelo poder vigente, e, no caso das etnias indígenas e africanas, era comumente reprimida, sofrendo até mesmo a proibição sistemática; ao mesmo tempo, populações que tinham pouca visibilidade social dificilmente tinham acesso à educação formal, à alfabetização e à informação (CASTAGNA, 2003; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Sobre essa questão, Castagna (2012, p. 30) avalia: 104

TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

Não é uma pergunta fácil de responder, pois esse tipo de música dificilmente era escrito, embora tenha chegado até nós um pouco das tradições musicais dos povos americanos que presenciaram o domínio europeu. Mas a documentação da época nos revela que as autoridades monárquicas e religiosas determinavam uma espécie de apartheid, de separação entre a música de origem europeia e as sonoridades tradicionais indígenas e africanas.

Todavia, é importante observar que as forças socioculturais e históricas muitas vezes contrárias não impediram o processo de interação entre as diferentes culturas presentes em nosso país, um fenômeno que permitiu a formação de uma “música mestiça” – na qual a África deixou marcas culturais importantes (BÉHAGUE, 2001; FRYER, 2000; WISNIK, 2000?).

2.1 A CONTRIBUIÇÃO AFRICANA A colonização portuguesa no Brasil e na África formou um triângulo comercial constituído pelas rotas de navegação traçadas no Atlântico. Impulsionado pela compra e venda de mercadorias, mas tendo como base o mercado de escravos, o triângulo comercial favoreceu a gradual construção de uma cultura sincrética – com expressiva influência da África –, que Fryer (2000) chama de “triângulo cultural do Atlântico”. FIGURA 1 – O TRIÂNGULO CULTURAL DO ATLÂNTICO

FONTE: Adaptado de Fryer (2000, p. 11)

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

No Brasil, o comércio escravista durou cerca de quatro séculos. Os principais portos, situados nas maiores cidades litorâneas da colônia, ao receber o grande número de indivíduos africanos que eram trazidos para o trabalho escravo, ao mesmo tempo absorviam os influxos do grande triângulo cultural. Entre os grandes centros estavam: Recife, Salvador e, sobretudo, o Rio de Janeiro, que se sobressaiu como centro comercial a partir de meados do século XVIII. A influência da cultura africana foi constante desde o início das Grandes Navegações, no século XV. Em Lisboa, por exemplo, o trabalho escravo de africanos já era explorado na década de 1440, e, em meados do século XVI, a capital portuguesa tinha a maior população de escravos de toda a Europa (AMADO; FIGUEIREDO, 2001; FRYER, 2000; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Mais tarde, um relato do início do século XIX registrou essa influência exercida pela população negra na capital portuguesa, bem como o movimento de elementos culturais que a cidade recebia: Muitos deles trabalham como marinheiros. Graças a eles, em grande parte, a comunidade negra de Lisboa se manteve em contato constante com as músicas e as danças de Angola (de Luanda e Benguela em particular) e do Brasil (sobretudo de Salvador, Recife e Rio de Janeiro). Os navios que ligam estes portos entre si – e com Lisboa – carregam consigo esta música e estas danças ao longo do triângulo de comércio do Atlântico, que desde o século XVI funcionou também como um triângulo cultural (LINK; HINCKLEY, 1801 apud FRYER, 2000, p. 3).



Apesar do apartheid cultural a que se refere Castagna (2012), no Brasil as rígidas restrições oficiais não impediram cruzamentos culturais durante o período de origem da música popular. Mesmo com o rigor e a crueldade do sistema escravista vigente no Brasil, os africanos conseguiram manter vivas muitas das características da sua cultura. Havia também na sociedade brasileira certa permeabilidade a elementos culturais, o que permitiu que a música de transmissão oral absorvesse fortes traços herdados da África, sobretudo rítmicos, presentes na dança e na expressão vocal e instrumental das populações africanas, além de elementos como o canto responsorial e o estilo vocal (BÉHAGUE, 2001; SCHWARCZ; STARLING, 2018; WISNIK, 2000?). Com esta contribuição (além dos elementos ameríndios e europeus), a linguagem rítmica se desenvolveu no Brasil com grande diversidade (assim como em outras regiões do continente americano onde a cultura africana esteve presente), resultante de “séculos de sincretismo” e ligada “às estratégias ambivalentes de adaptação e de resistência do escravo” (WISNIK, 2000?, s.p.). Essa herança cultural está na raiz de manifestações musicais cultivadas até hoje em várias regiões do país, como jongo, caxambu, coco, maracatu, tambor-de-crioula, samba de roda (BÉHAGUE, 2001; FRYER, 2000).

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TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

NOTA

A importância da contribuição africana vai além da música popular. A presença negra teve um papel decisivo no processo de transformação pelo qual a música (tanto escrita quanto não escrita) passou ao longo dos séculos XVIII e XIX (CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000). Recapitulando a Unidade 1, muitos compositores que se destacaram na música erudita eram de ascendência africana (como Álvares Pinto, Lobo de Mesquita e José Maurício). É o caso de outros personagens históricos menos conhecidos – mas não menos importantes –, como Maria Joaquina da Conceição Lapa. Por volta de 1795, Lapinha, como era conhecida, fez sucesso em cidades de Portugal executando árias de óperas. A cantora negra protagonizou “a primeira ocasião em que um brasileiro foi à Europa especificamente para uma tournée de apresentações musicais”, as quais a Gazeta de Lisboa noticiou “sem poupar elogios” (CASTAGNA, 2010, p. 1). Vimos que instrumentistas ligados à Igreja e às irmandades religiosas eram quase sempre negros ou mestiços, além do costume recorrente de organizar orquestras de escravos. Conforme relata Fryer (2000), no século XVII, nos grupos e orquestras mantidos pelos donos de propriedades rurais, era comum que africanos escravizados demonstrassem uma capacidade de rápido aprendizado dos fundamentos da música europeia. Assim, no século seguinte, a fusão entre elementos musicais portugueses/europeus e africanos era cada vez mais acentuada, o que “acelerou o surgimento”, apesar de tardio, “na segunda metade do século XVIII, de uma música popular nacional, que não era mais portuguesa ou africana, mas distintamente brasileira” (FRYER, 2000, p. 2). A respeito desta interação cultural entre música erudita europeia e as populações afro-brasileiras, o autor discorre: O processo de aculturação funciona nos dois sentidos, pelo menos na música. O florescimento de orquestras de escravos em todo o país, além do treinamento de muitos músicos negros para tocar música ‘erudita’, também ajudou muito a validar e tornar amplamente aceitável a peculiar abordagem dos escravos ao fazer música. Orquestras negras tocavam música ‘clássica’ com impressionante habilidade. E quando [os negros] eram convocados para tocar danças europeias, tendiam a ‘mesticizar’ o ritmo, introduzindo um certo grau de síncope, uma ‘batida’ e um ‘swing’ – que os portugueses (pelo menos alguns deles, que em Portugal já estavam acostumados com estes ritmos contagiantes) descobriram ser muito do seu gosto. No que diz respeito à música popular, essa era a cultura musical em que seus filhos nasceriam e encarariam como natural (FRYER, 2000, p. 136).

Além da grande diversidade de manifestações musicais e danças em que o ritmo é o elemento essencial, no Brasil, o legado africano também deixou uma contribuição importante na tradição de instrumentos musicais, como veremos em exemplos iconográficos.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

3 AS ORIGENS DA MÚSICA POPULAR EM IMAGENS Vamos retomar o assunto da iconografia musical. Nosso foco a partir de agora é a cultura afro-brasileira retratada em imagens, que foram produzidas no Brasil entre os séculos XVII e XIX. Apesar de haver pouca documentação textual e musical sobre esse recorte cronológico, vários artistas que testemunharam o cotidiano do país durante a época deixaram imagens – desenhos, gravuras, pinturas – que mostram pistas de como as raízes da música popular se desenvolveram, e que podem nos ajudar a compreender o contexto em que as práticas musicais aconteciam.

3.1 INSTRUMENTOS MUSICAIS Neste tipo de fonte visual, são comuns as representações de instrumentos musicais, principal evidência da presença da prática musical. Por vezes, percebese também a ligação da música com o fenômeno de interação entre as culturas africana e europeia. Segundo Castagna: Não podemos saber, ao certo, até que ponto a música desses povos foi reproduzida no continente americano nos dois primeiros séculos de colonização e como se relacionou com as novas condições sociais que encontraram naquele período. Mas há indícios do surgimento de práticas musicais com fusão de elementos de culturas africanas e europeias já no século XVII [...] (CASTAGNA, 2003, p. 4).

Tais indícios são apontados por Castagna (2003; 2010) em um interessante e raro exemplo, presente na documentação do século XVII: por volta da década de 1640, o viajante holandês Johann Nieuhof testemunhou a ocorrência da música de matriz africana na costa do Nordeste e produziu a gravura Negros tocando em cabaças – “Neegers speelende op Kalabaßen” – (NIEUHOF, 1682, p. 215). FIGURA 2 – NEGROS TOCANDO EM CABAÇAS, POR JOHANN NIEUHOF

FONTE: Nieuhof (1682, p. 215)

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TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

Mostrando instrumentos – o caracaxá, um tipo de reco-reco feito de cabaça, de origem africana, usado no Brasil até hoje, e o pandeiro (cuja longínqua origem remonta ao Oriente Médio e à Europa) –, a imagem foi publicada na Europa em 1682 no livro Memorável Viagem de Johann Nieuhof ao Brasil. Segundo Castagna (2010), essa pode ter sido a primeira representação de indivíduos de etnia africana tocando instrumentos na América Portuguesa, sendo, possivelmente, a mais antiga imagem deste tipo na iconografia da história da música brasileira. Considerando que as fontes textuais raramente continham descrições mais detalhadas, ainda mais se tratando da música dos negros, imagens como a gravura de Nieuhof são particularmente elucidativas no que diz respeito à presença da cultura musical africana no Brasil do período colonial. Exemplos como este são raros, uma vez que a cultura dos povos africanos foi “considerada estranha à comunidade”, e suas manifestações “foram sistematicamente ignoradas” (CASTAGNA, 2003, p. 4). Contudo, se em épocas mais remotas (séculos XVI e XVII) a música africana não despertava interesse nos europeus, mais tarde, nos séculos seguintes, a quantidade de registros produzidos passou a ser maior e mais frequente – sobretudo em fontes iconográficas. No final do século XVIII, o naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, já citado na Unidade 1, produziu interessantes desenhos retratando instrumentos africanos que viu no Brasil. A partir de reproduções de documentos arquivados na Biblioteca Nacional, temos duas imagens de Ferreira que mostram detalhadamente um lamelofone e um pluriarco. O lamelofone, de origem angolana, também é conhecido pelos nomes kalimba, mbira, malimba ou marimba. O pluriarco é um tipo de harpa-alaúde que era usado no Brasil, e ainda é comum na África Central e Ocidental (FRYER, 2000; KUBIK, 2001; KUBIK; COOKE, 2001).

FIGURA 3 – LAMELOFONE, POR ALEXANDRE RODRIGUES FERREIRA

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

FIGURA 4 – PLURIARCO, POR ALEXANDRE RODRIGUES FERREIRA

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

O exemplo seguinte, produzido no século XIX, é uma litogravura de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), artista francês que esteve no Brasil entre 1816 e 1831 e deixou um trabalho rico em informações históricas. Entre seus registros da música no Brasil, Debret retrata em O Cantor Cego o lamelofone e o berimbau (também chamado urucungo, orocongo, oricongo), outro instrumento de origem angolana (BÉHAGUE, 2001; BIBILIOTECA NACIONAL, 1974; CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000; LIMA, 2004; MAGALHÃES-CASTRO, 2012).

FIGURA 5 – O CANTOR CEGO, POR JEAN-BAPTISTE DEBRET

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

3.2 MÚSICA NO COTIDIANO As fontes iconográficas mostram a música na vida cotidiana de cidades e ambientes rurais. Assim como outras obras de arte do período, a litogravura de Debret – que vimos na Figura 5 – retrata a presença da música no convívio social diário – nesse caso, em uma prática que era recorrente: tocar na rua como forma de subsistência. Outra imagem do artista francês, em um contexto semelhante, mostra a música afro-brasileira em uma ocasião festiva. Repare nos lamelofones e no idiofone semelhante aos atuais guiro e reco-reco:

FIGURA 6 – MARIMBA – PASSEIO DE DOMINGO À TARDE, POR JEAN-BAPTISTE DEBRET

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

Outro exemplo de uso da música no dia a dia eram as chamadas canções de trabalho, em que os africanos escravizados cantavam em pequenos grupos durante atividades braçais (BÉHAGUE, 2001; FRYER, 2000). O viajante norteamericano Thomas Ewbank (1792-1870) esteve no Rio de Janeiro em 1846 e presenciou uma dessas cenas, cujo relato foi publicado no livro Vida no Brasil (1856): Cada grupo de carregadores de café tem um líder que comumente agita um chocalho, ao som do qual cantam seus companheiros, que vêm atrás, [cada um] com uma carga de 70 quilos sobre a cabeça e os ombros, com o corpo inclinado para a frente, num ritmo de trote ou corrida (EWBANK, 1856, p. 117-118).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

FIGURA 7 – CARREGADORES CANTAM DURANTE O TRABALHO NAS RUAS DO RIO EM 1846, RETRATADOS POR THOMAS EWBANK

FONTE: Ewbank (1856, p. 117)

Diversos artistas retrataram aspectos da vida musical coletiva nas comunidades afro-brasileiras entre os séculos XVII e XIX, tanto em cenas rurais quanto urbanas. Essa característica aparece representada em obras de Frans Post (1612-1680), Carlos Julião (1740-1811), Joaquim Guillobel (1787-1859), Augustus Earle (1793-1838) e outros. As fontes iconográficas que retratam a música praticada em grupo são de especial interesse para o estudo das origens da música popular, sobretudo por ilustrarem a relação entre a música e as danças populares.

DICAS

Importante: conheça mais exemplos interessantes de iconografia sobre a música afro-americana, produzidos nos séculos XVII, XVIII e XIX. • Plantação no Brasil (1656), do holandês Frans Post, um dos primeiros artistas europeus que pintaram cenas do Brasil. O quadro retrata a paisagem do Nordeste colonial e mostra uma cena de dança. Conheça a obra no site do Museu Thyssen de Madrid: bit.ly/2Z03QRi. • Imagens reunidas pelo projeto Slavery Images (Imagens da Escravidão), que, entre outros temas, reúne iconografia sobre a música afro-americana. Entre os exemplos que tratam do Brasil estão Festa de Reis (c.1770), de Carlos Julião, e Capoeira (c.1820), de Augustus Earle, respectivamente em: bit.ly/39qQj6q e bit.ly/3akfbN8. • Imagens do portal Brasiliana Iconográfica, que disponibiliza um acervo virtual de imagens sobre a história do Brasil. Desenhos produzidos pelo português Joaquim Guillobel também mostram instrumentos; veja um exemplo (c.1819-22) em: bit.ly/32S1hz3.

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TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

3.3 DANÇAS As origens da música não escrita estão profundamente vinculadas às práticas de dança presentes na cultura de vários grupos étnicos, em diferentes regiões do Brasil. Nesse sentido, há uma rica documentação iconográfica que contém testemunhos elucidativos sobre a dança no que diz respeito a um de seus aspectos mais essenciais: o elemento visual. Essas fontes, ao mostrarem a dança, revelam pistas significativas sobre a música. Continuando, portanto, a abordar a iconografia, analisaremos imagens da dança significativas para o estudo da história da música popular. Fazem parte deste tipo de documentação obras de vários artistas, como Paul Harro-Harring (1798-1870) e Johann Moritz Rugendas (1802-1858), sendo este um dos mais citados em estudos de iconografia musical no Brasil, devido a exemplos como Capoeira ou Dança da Guerra (BIBLIOTECA NACIONAL, 1974; CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000; MAGALHÃES-CASTRO, 2012). FIGURA 8 – DANÇA DE MÚSICOS NEGROS, POR PAUL HARRO-HARRING

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

FIGURA 9 – CAPOEIRA OU DANÇA DA GUERRA, POR JOHANN MORITZ RUGENDAS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

O vínculo entre a expressão musical e a expressão corporal tem uma especial importância no contexto brasileiro; considerando que “música e dança são muitas vezes inseparáveis”, é comum que “o nome de uma dança também seja aplicado à música que a acompanha” (BÉHAGUE, 2001, s.p.). Isso nos leva a dois fenômenos musicais que se desenvolveram durante o período do Brasil colonial – ilustrados pelas fontes iconográficas – designados historicamente pelos termos batuques e fandangos.

3.3.1 Os batuques O termo batuques (na forma singular, batuque) era “uma denominação portuguesa genérica para todo tipo de dança de negros” (CASTAGNA, 2003, p. 12), e que pode ter surgido em virtude do caráter profundamente rítmico e percussivo da música africana (BÉHAGUE, 2001; CASTAGNA, 1999; FRYER, 2000; SADIE, 1994). Embora possa ter existido como um gênero próprio de dança de roda, de origem congolesa ou angolana, “o termo adquiriu uma conotação mais geral, significando danças afro-brasileiras acompanhadas por percussão pesada” (BÉHAGUE, 2001, s.p.). “Aos olhos dos estrangeiros, qualquer forma de expressão musical em que houvesse a predominância de instrumentos de percussão era, eventualmente, chamado de batuque” (MONTEIRO, 2007, p. 11). O contexto em que o termo aparece na documentação quase sempre compreende a dança/música feita em grupo, ligada, portanto, a momentos de socialização: [O termo] tinha um significado generalizado, referindo-se a danças coletivas com tambores e outros instrumentos de alto volume sonoro, em contraste com a música individual de arcos, alaúdes de tubos, lamelofone e pluriarcos, como retratado nas pinturas do Rio de Janeiro no início do século XIX (KUBIK apud FRYER, 2000, p. 95; grifo nosso).

Correspondendo, possivelmente, a vários tipos de música negra, os batuques são mencionados nos documentos sem maiores detalhes e sem uma distinção clara entre eles, mesmo porque, como vimos, havia certo desdém pela cultura africana/afro-brasileira; Castagna (2012, p. 30) lembra que “a legislação brasileira combateu fortemente os encontros musicais africanos”. Assim, além de genérica, a expressão batuques era também um tanto depreciativa, uma vez que parecia colocar todas as danças e as musicalidades de matriz africana num amontoado indistinto (FRYER, 2000). “Manifestações [musicais] de origem africana foram geralmente consideradas, naquela época, uma prática a ser abolida e não um fenômeno a ser estudado” (CASTAGNA, 2010, p. 13). Apesar dos impedimentos, havia circunstâncias em que a proibição às danças africanas era menos rígida, sobretudo em ambientes rurais. Por vezes, era permitido (e até mesmo recomendado), por parte de instâncias de poder, que os escravos pudessem ter, por exemplo, momentos de participação em festas religiosas e outras ocasiões. Assim, essa contradição pode ter evitado a extinção dos batuques, os quais tiveram uma sobrevida e, pela via da transmissão oral, chegaram até os séculos XIX e XX sob a forma de influência sobre novas expressões e gêneros musicais – como o samba de roda (CASTAGNA, 1999; FRYER, 2000). 114

TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

NOTA

A influência dessas manifestações foi absorvida tanto na música popular quanto na música erudita, como é o caso da obra orquestral ‘Batuque’ – 4º movimento da Série Brasileira, de Alberto Nepomuceno (CASTAGNA, 1999).

É possível conhecer traços desta manifestação musical por intermédio das figuras a seguir, as quais mostram cenas de dança coletiva retratadas, respectivamente, por Johann Rugendas e pelo pesquisador alemão Carl Friedrich von Martius (1794-1868). FIGURA 10 – DANÇA DO BATUQUE, POR JOHANN RUGENDAS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020. FIGURA 11 – O BATUQUE EM SÃO PAULO, POR CARL FRIEDRICH VON MARTIUS

FONTE: Spix e Martius (1823b, p. 34)

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

Nestes exemplos, quanto aos instrumentos, Martius retratou dois de percussão (uma espécie de reco-reco e um xilofone com ressonadores feitos de cabaça); na gravura de Rugendas aparece um músico tocando o lamelofone enquanto o grupo marca o ritmo da dança com palmas (FRYER, 2000). Entretanto, além do uso dos instrumentos, o que mais se destaca nos exemplos são as representações dos elementos presentes na dança, para os quais os artistas certamente estiveram atentos. Nessa linha, Apel (1974) e Béhague (2001) apontam as características mais marcantes dos batuques – algumas delas perceptíveis nas imagens –, como: • Acompanhamento com palmas. • Formação dos dançarinos em roda e também em pares. • Canto responsorial: frases cantadas por um solista são respondidas pelo grupo, alternadamente. • Percussão sincopada, com grande destaque (em geral, idiofones e membranofones). • Movimento coreográfico da “umbigada”: o toque de abdômen entre dois dançarinos. A umbigada era uma particularidade das “danças de roda ao ar livre introduzidas pelos escravos africanos e adotadas pelos seus descendentes” (TINHORÃO, 2004, p. 88), e tornou-se um “recurso coreográfico que se difundiu por todo o país em gêneros que ainda são observados entre populações de origem negra” (CASTAGNA, 2003, p. 12). Nas rodas de dança, a umbigada servia para sinalizar a troca de par entre os dançarinos, ou podia ser usada para “tirar para dançar” alguém que estivesse fora do círculo, como um convite para a pessoa entrar na roda de dança (BÉHAGUE, 2001; FRYER, 2000; TINHORÃO, 2004).

NOTA

Para Fryer (2000), a imagem de Martius, apesar do nome dado ao desenho (O Batuque em São Paulo), pode igualmente ser uma representação de outra dança – o lundu – a qual será abordada no Tópico 2.

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TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

3.3.2 Os fandangos O termo fandango é de origem ibérica e se refere a uma dança popular da Espanha de ritmo ternário rápido, com palmas e sapateado, acompanhada por violão e castanholas. Em Portugal, o nome também é usado para certos tipos de dança com sapateado (APEL, 1974; CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000; KATZ, 2001; SADIE, 1994).

FIGURA 12 – O FANDANGO DA ESPANHA, POR PIERRE CHASSELAT

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

Historicamente, no contexto brasileiro, da mesma forma que batuque, a palavra era uma denominação genérica: os fandangos abrangiam danças de origem ibérica com tais características coreográficas, que foram gradativamente assimiladas no Brasil. Essas manifestações foram incorporadas às tradições populares – nesse caso, dizem mais respeito à música e à dança disseminadas entre populações de origem predominantemente luso-brasileira/mestiça (as quais não deixaram de absorver influências importantes das culturas indígena e africana). Segundo Béhague (2001), o termo fandango ainda é utilizado em várias regiões brasileiras para identificar danças populares festivas, ou “folias”, de maneira geral. Na acepção de “baile popular em que se pratica o sapateado” (SADIE, 1994, p. 311), a palavra costuma ser usada para denotar diversos tipos de dança com esta particularidade coreográfica, atualmente ainda encontradas nas Regiões Sudeste e Sul do Brasil (BÉHAGUE, 2001). As diferentes danças englobadas pela palavra têm origens de difícil rastreio; no entanto, embora já tenham se transformado e adquirido características próprias e distintivas, muitas delas ainda carregam sinais de uma ligação histórica com os antigos fandangos de Portugal e Espanha (BÉHAGUE, 2001; FRYER, 2000), frequentemente contendo elementos coreográficos em comum: 117

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

• Dança envolvendo coreografias ritmadas com sapateado. • Acompanhamento com palmas e estalar de dedos e, em alguns casos, a percussão com castanholas. • Os gestos de dança com braços voltados para o alto, curvados sobre a cabeça. • Formações em roda, em filas e sobretudo em pares.

NOTA

Ligações entre os antigos fandangos e danças tradicionais existentes atualmente podem ser vistas em danças de sapateado praticadas nas regiões de Cananéia (SP) e Paranaguá (PR), como o fandango caiçara e o fandango de tamancos. Veja o fandango do litoral do Paraná em: youtu.be/3eg-vDlkxXc. Outras danças e culturas musicais típicas de regiões centrais do Brasil, especialmente do Sudeste, como o catira ou cateretê – de origem provavelmente indígena, com elementos da cultura guarani (ANDRADE, 2015; SADIE, 1994) –, podem ter incorporado elementos ibéricos ao longo dos séculos. Veja uma apresentação do catira em: youtu.be/ S09RejvYeUQ. Em regiões sulinas ligadas à cultura gauchesca, também aparecem danças sob o nome fandango, com características como formações em roda e em pares, palmas, estalos de dedos e, principalmente, o sapateado; podem ter sido influenciadas pela quadrilha e outras danças de salão europeias do século XIX. Entre as atuais danças do Sul associadas ao termo estão balaio, anu, chula, chimarrita, maçanico, tatu, tirana e outras (BÉHAGUE, 2001; LAMBERTY, 1992). A ideia de agrupamento de diferentes danças levou o pesquisador modernista Mário de Andrade a considerar que os fandangos, no Brasil, seriam uma espécie de forma popular de suíte, semelhante às suítes europeias surgidas a partir do século XVI (ANDRADE, 2015).

Relatos do século XIX mencionam a prática do fandango entre indivíduos negros, como também há referências a respeito do batuque sendo dançado entre grupos brancos (FRYER, 2000). Um exemplo da iconografia, de Augustus Earle, retrata uma dança de rua com o nome Cena de Fandango Negro, apresentado a seguir.

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TÓPICO 1 — PRIMÓRDIOS DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL

FIGURA 13 – CENA DE FANDANGO NEGRO, POR AUGUSTUS EARLE

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

Apesar do nome, Earle pode ter testemunhado o batuque, levando-se em conta detalhes como as palmas, o tambor, o lamelofone, e o que parece ser a umbigada entre os dançarinos retratados no centro da imagem. Considerando o processo de aculturação ocorrido no Brasil, e as contínuas interseções e interações culturais ao longo da história, é importante ressaltar que os batuques e os fandangos foram fenômenos musicais que se cruzaram e, de alguma maneira, exerceram influência recíproca; seu estudo, portanto, precisa levar em conta a dificuldade de classificação desta categoria de música – principalmente devido ao fato de que fronteiras étnicas e culturais no Brasil eram (e ainda são) pouco nítidas (BÉHAGUE, 1999; 2001; FRYER, 2000). De qualquer modo, os batuques e os fandangos deixaram uma significativa influência nas origens da música popular do Brasil, e a interação entre estes dois fenômenos culturais produziu interessantes desdobramentos, como o lundu.

4 CRONOLOGIA QUADRO 1 – EVENTOS HISTÓRICOS DO TÓPICO 1

ANO c.1640 1656 c.1770 c.1790 1794-95 c.1817-20 c.1819-22 c.1820-22 c.1835 c.1835 c.1840 1846

EVENTO Iconografia: Negros tocando em cabaças, por Johann Nieuhof. Iconografia: Plantação no Brasil, quadro de Frans Post retratando dança africana. Iconografia: Festa de Reis, por Carlos Julião. Iconografia: desenhos de Alexandre Rodrigues Ferreira. Apresentações da cantora Maria Joaquina da Conceição Lapa em Portugal. Iconografia: O Batuque em São Paulo, por Martius. Iconografia: desenhos de instrumentos por Joaquim Guillobel. Iconografia: Capoeira e Cena de Fandango Negro, por Augustus Earle. Iconografia: O cantor cego, por Jean-Baptiste Debret. Iconografia: música presente em imagens, de Johann Moritz Rugendas. Iconografia: Dança de músicos negros, por Paul Harro-Harring. Relatos de Thomas Ewbank. FONTE: O autor

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RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • No Brasil, as origens da música de tradição não escrita são de difícil estudo, devido à pouca documentação histórica existente. • A música de povos tradicionais é predominantemente coletiva, possuindo funções sociais vinculadas à cultura em que está inserida, e sua transmissão ocorre principalmente por meio da oralidade. • A música popular tem suas origens ligadas ao processo de formação da cultura brasileira, caracterizada pelo sincretismo e pela miscigenação resultante da interação entre culturas diferentes. • Apesar da separação cultural imposta pelo poder vigente entre a música europeia e as manifestações musicais ameríndias e africanas, havia no Brasil certa permeabilidade a elementos culturais, motivo pelo qual a música brasileira incorporou muitas influências musicais trazidas pelas etnias africanas. • A influência africana também é percebida na história da música erudita. • Importantes testemunhos sobre a música de matriz africana dos séculos XVII a XIX chegaram aos dias de hoje sob a forma de registros iconográficos. • A imagem Negros tocando em cabaças, feita pelo holandês Johann Nieuhof, é possivelmente a mais antiga representação de uma cena de música africana na história da música brasileira. • Dois instrumentos originários da África Ocidental, o lamelofone e o pluriarco, foram retratados pelo naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira no final do século XVIII. • Jean-Baptiste Debret retratou instrumentos musicais, como o berimbau e o lamelofone, em cenas do cotidiano das populações afrodescendentes. • Canções de trabalho eram praticadas por africanos escravizados. Um testemunho textual e iconográfico foi publicado pelo norte-americano Thomas Ewbank, o qual visitou o Rio de Janeiro em 1846. • Na iconografia musical, pode-se citar ainda obras de Frans Post, Carlos Julião, Joaquim Guillobel e Augustus Earle, que representaram instrumentos e ocasiões da vida musical coletiva de populações africanas/afrodescendentes.

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• Dois fenômenos musicais surgidos durante o período colonial são designados pelos termos genéricos batuques e fandangos. • As danças genericamente classificadas como batuques eram de caráter coletivo e possuíam propriedades como o uso de percussão sincopada, o acompanhamento com palmas, o canto responsorial, a dança em roda e em pares e a umbigada. • O batuque foi retratado pelos artistas Johann Moritz Rugendas e Carl Friedrich von Martius. • No Brasil, os fandangos também surgiram como uma denominação genérica para vários tipos de dança de origem ibérica, caracterizados pela coreografia com sapateado e braços voltados para o alto, palmas, estalar de dedos e a percussão com castanholas. Diversas danças e manifestações musicais do Brasil foram influenciadas pelos fandangos, e este nome ainda é usado para denotar festejos e danças populares existentes.

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AUTOATIVIDADE 1 A música popular possui suas origens conectadas ao processo de formação da cultura brasileira, caracterizada pelo sincretismo e pela miscigenação resultante da interação entre distintas culturas. Em relação ao desenvolvimento da música brasileira, analise as seguintes afirmativas: I- Entre as fontes que documentam instrumentos musicais africanos no Brasil, há registros feitos pelo naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira. II- Augustus Earle registrou as canções de trabalho no Rio de Janeiro, em 1846. III- A litogravura Capoeira ou Dança da Guerra, de Jean-Baptiste Debret, é um exemplo de registro iconográfico retratando danças no Brasil. IV- O lamelofone é um instrumento de origem angolana, e aparece em várias fontes iconográficas. V- Johann Nieuhof deixou um importante registro iconográfico da música africana no século XVII. Agora, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas. b) ( ) As afirmativas I, II e IV estão corretas. c) ( ) As afirmativas I, IV e V estão corretas. d) ( ) As afirmativas II, III e V estão corretas. 2 No Brasil, as origens da música de tradição não escrita são de difícil estudo, em razão de pouca documentação histórica. Com o material de pesquisa existente, contudo, podemos indicar como alternativa INCORRETA: a) ( ) As rotas de navegação entre a Europa, a costa brasileira e a África Ocidental formaram um triângulo cultural no Atlântico, favorecendo a construção de uma cultura sincrética no Brasil. b) ( ) A rígida separação cultural que existiu durante a história do Brasil, uma espécie de apartheid cultural, impediu totalmente a interação entre culturas diferentes. c) ( ) As origens da música popular ocorreram em um período pouco documentado, portanto, ainda pouco estudado e quase inacessível ao trabalho historiográfico. d) ( ) Uma grande parte da música popular do Brasil do passado é hoje desconhecida. 3 Podemos afirmar que a música de povos tradicionais é predominantemente coletiva, possuindo funções sociais voltadas à cultura em que está inserida, e sua transmissão envolve principalmente a oralidade. Nesse sentido, analise as seguintes afirmativas: 122

I- Os batuques normalmente envolviam elementos como o canto responsorial e o acompanhamento com palmas. II- Mário de Andrade levantou a hipótese de que os fandangos, no Brasil, seriam uma espécie de forma popular de suíte, semelhante às suítes europeias. III- O movimento coreográfico da umbigada é uma das principais características dos fandangos. IV- Os batuques e os fandangos foram fenômenos musicais que exerceram influência recíproca e deixaram uma herança cultural importante nas origens da música popular do Brasil. Agora, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As afirmativas I, II estão corretas. b) ( ) As afirmativas I e III estão corretas. c) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas. d) ( ) As afirmativas I, II e IV estão corretas.

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TÓPICO 2 —

UNIDADE 2

MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, examinaremos a música popular no Brasil a partir do enfoque em temas específicos, situados em um recorte cronológico, o qual vai de meados do século XVIII até a segunda metade do século XIX. Nesse recorte, podemos observar que a música de transmissão oral passa por diversas transformações, marcadamente influenciadas por novos processos de interação cultural que ocorriam na sociedade. Entre as tendências que se desenvolveram nesse período estão dois gêneros ligados às origens da música popular no Brasil: o lundu e a modinha, bem como outros dois fenômenos musicais historicamente relevantes, a música de barbeiros e, mais tarde, a música de salão, que assinalou o advento de novos tipos de música dançante oriundos da Europa (CASTAGNA, 2003).

2 ABORDAGEM HISTÓRICA No tópico anterior, contextualizamos a relação entre as danças populares e música, em um contraste em que a transmissão oral era preponderante, sendo quase sempre o único meio de difusão deste tipo de manifestação musical no Brasil colonial. No recorte que analisaremos agora, veremos que a música das classes populares passou por transformações importantes, sobretudo no século XIX, quando ocorreram interessantes convergências entre as tradições escrita e não escrita. Além das adversidades resultantes da estrutura social escravocrata e da herança econômica colonial, certos discursos que pregavam a separação entre a cultura popular e a dita “alta cultura” não impediram as influências mútuas entre as duas tradições – fato que é representativo do processo de mistura cultural visto na história da música brasileira (WISNIK, 2000?). Um exemplo disso foi o mercado de música impressa, que, além do repertório da tradição sacra/erudita, começou a difundir, pelo meio escrito, gêneros musicais que haviam surgido na trama da tradição oral, como o lundu e a modinha – dois fenômenos que surgiram do trânsito multidirecional de informações e influências culturais no triângulo do Atlântico, e que se tornaram aceitos em um amplo espectro social (CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000; LEME, 2004; MENEZES BASTOS, 2007). 125

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

Nessa fase, a intensificação das relações de comércio no Atlântico também favoreceu a importação de certas tendências europeias, as quais foram assimiladas por uma população de classe média que começava a emergir nos primeiros grandes centros urbanos. Esse processo impulsionou a música como forma de lazer doméstico e a demanda por repertório. Voltando às figuras, dois exemplos, de Debret e Rugendas, respectivamente, ajudam a visualizar o uso doméstico da música como forma de lazer, no contexto que vai do final do século XVIII até a primeira metade do século XIX (CASTAGNA, 2003; LIMA, 2004). Rugendas mostra a vida musical no convívio das classes mais altas, e, ao retratar o musicista como o centro das atenções, parece querer mostrar a importância da música nessa camada social – em que, sob a influência europeia, novos comportamentos e hábitos se disseminavam, como veremos adiante. FIGURA 14 – DISTRAÇÃO DEPOIS DO JANTAR, POR DEBRET

FONTE: Adaptada de . Acesso em: 29 out. 2020. FIGURA 15 – TRAJES DE SÃO PAULO, POR RUGENDAS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

3 LUNDU O termo de origem africana lundu (ou lundum, landu, landum, londu) se refere a uma dança sincrética que era praticada no Brasil e mesclava rudimentos africanos e ibéricos. Inexistem registros sobre as origens e as características mais antigas desta dança, mas estima-se que tenha surgido no século XVIII; as primeiras evidências documentais aparecem em fontes datadas das últimas décadas daquele século (a partir de c.1780). Quanto ao aspecto coreográfico, o lundu é frequentemente descrito na literatura especializada como uma mistura de elementos africanos das danças de roda (Angola e Congo) com a coreografia dos fandangos portugueses e espanhóis (CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000; MENEZES BASTOS, 2007; SANDRONI, 2001; WISNIK, 2000?). Caracterizado, pois, pelo elemento coreográfico da umbigada com que o bailarino tirava o par para o centro da roda, e da marcação por palmas do ritmo de estribilho sempre repetido, o lundu reunia os dois elementos que, acrescidos do castanholar dos dedos com as mãos erguidas sobre a cabeça – imitados do fandango –, lhe iam conferir sua maior originalidade (TINHORÃO, 2004, p. 101-102, grifo nosso).



Segundo Fryer (2000), tal fusão de elementos musicais e coreográficos no lundu teria sido, portanto, resultado de uma adaptação afro-brasileira, “atlanticizada”, do fandango – já que este, por sua vez, estava entre as tradições musicais ibéricas que mais transitavam no triângulo cultural do Atlântico durante aquela época. Ainda que fosse vista como uma dança “licenciosa” e “lasciva” por autoridades e pela Igreja, o lundu se tornou conhecido em diferentes regiões do Brasil e em praticamente todas as classes sociais, um fato marcante, em se tratando de música oriunda das tradições populares. O gênero também fez muito sucesso em Portugal (MONTEIRO, 2007; TINHORÃO, 2004). Esta peculiaridade situa o lundu na história como uma espécie de força cultural que ajudou a romper com a “incomunicabilidade entre as camadas sociais” (KRAUSCHE, 1983, p. 15). Sobre esse tema, Fryer explica que: no período de uma geração, uma classe média urbana emergiu com renda suficiente para adquirir entretenimento e seus instrumentos musicais. Começando em Salvador e no Rio de Janeiro, a música popular brasileira surgiu no século XVIII principalmente para satisfazer as demandas culturais desta classe média urbana. E, acima de tudo, era da dança e da música negras que o público brasileiro de classe média mais gostava, especialmente seus membros mais jovens. Moças de respeitáveis famílias aprendiam a tocar Rossini, Mozart e Beethoven no piano, mas também adoravam inclinar-se nas suas sacadas para assistirem à população negra dançando nas ruas e praças abaixo; e um número cada vez maior delas dançava o lundu ou danças semelhantes (FRYER, 2000, p. 138-139).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

A ampla aceitação do lundu aumentou sua influência, bem como seu reconhecimento, mais tarde, no século XX, como gênero musical tipicamente brasileiro, embora suas raízes fossem africanas e ibéricas (BÉHAGUE, 2001; CASTAGNA, 2003, 2012; MONTEIRO, 2007; TINHORÃO, 2004). Surgido como dança, e posteriormente transformado em canção, o lundu “desempenhou um papel central na ascensão de uma cultura musical popular distintamente brasileira no século XVIII” (FRYER, 2000, p. 11).

3.1 O LUNDU NA ICONOGRAFIA Recorrendo novamente às fontes iconográficas, podemos verificar a presença da mistura de elementos no lundu em duas das célebres imagens produzidas pelo artista bávaro Johann Moritz Rugendas. Bastante conhecidas na iconografia musical brasileira, as litogravuras, produzidas no século XIX, confirmam o caráter sincrético da dança: Além da difusão social, Rugendas também atesta uma ligação direta entre o lundu e certas danças ibéricas (portuguesas ou espanholas) como o fandango e o bolero, nas quais eram utilizadas as castanholas, os estalos dos dedos e o acompanhamento das violas (CASTAGNA, 2003, p. 13).

A obra reproduzida na Figura 16 registra uma cena noturna, em que o lundu acontece ao ar livre. Na imagem, um casal branco dança no centro da cena; o homem, em trajes portugueses, tem os braços elevados e toca castanholas. A forma como a dançarina foi representada, com as mãos à cintura e o corpo curvado, parece aludir à coreografia da umbigada (CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000). FIGURA 16 – LUNDU, POR RUGENDAS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

Na segunda litogravura (Figura 17), Rugendas apresenta a dança em outro ambiente social, com a presença predominante de indivíduos negros e mulatos em uma casa simples; o lundu é acompanhado por um lamelofone. Apesar do contexto social diferente, pode-se observar que os movimentos da coreografia são semelhantes aos mostrados na primeira imagem (CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000).

FIGURA 17 – LUNDU, POR RUGENDAS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

O lundu se difundiu como uma forma de música instrumental dançante. Além do elemento rítmico sincopado oriundo da música africana, o lundu instrumental possuía semelhanças com tipos de música instrumental de dança originários da península Ibérica, que remontam ao século XVI – sendo, portanto, mais um fator indicativo da influência que o lundu absorveu do fandango da Espanha e de Portugal (CASTAGNA, 2003; MONTEIRO, 2007; WISNIK, 2000?). O lundu instrumental mais antigo que se conhece é de autoria anônima e foi documentado no Brasil entre os anos de 1817 e 1820, aproximadamente, pelos pesquisadores Carl Friedrich Von Martius e Johann Baptist Von Spix. A peça foi publicada posteriormente como Landum, Dança Popular Brasileira (Landum, Brasilian Volkstanz) no livro Viagem ao Brasil (1823). Um trecho da transcrição está reproduzido a seguir (SPIX; MARTIUS, 1823a).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

DICAS

Ouça Landum, Dança Popular Brasileira em arranjo do grupo Vox Brasiliensis, em: youtu.be/AB7NbxdRsU8. Baixe a partitura completa em: bit.ly/37ZyRpE.

FIGURA 18 – N.º IX: LANDUM, DANÇA POPULAR BRASILEIRA, TRECHO DA TRANSCRIÇÃO DE SPIX E MARTIUS (COMPASSOS 1 A 47)

FONTE: Spix e Martius (1823a, p. 11)

4 MODINHA No século XVIII, em Portugal, o termo moda designava “um tipo genérico de canção séria de salão, que incluía cantigas, romances e outras formas poéticas, compostas por músicos de alta posição profissional” (CASTAGNA, 2003, p. 1). A modinha surgiu como uma maneira de cantar as modas, e acabou se tornando um tipo particular de canção camerística muito difundido em Portugal – e depois, no Brasil, onde, composta e tocada por músicos brasileiros, também sofreu influência africana, absorvendo o elemento da síncope rítmica (FRYER, 2000; TINHORÃO, 2004). “Podese situá-la entre a fronteira da prática cortesã e da prática popular” (MONTEIRO, 2007, p. 19). 130

TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

NOTA

Um fato curioso pode ser identificado nas origens da modinha, relacionado a um fenômeno histórico e cultural que aconteceu na Europa, durante a segunda metade do século XVIII: ao mesmo tempo que emergiam as classes médias e burguesas, ocorria uma mudança nos hábitos e no gosto musical da nobreza: Surgiu uma prática musical doméstica ou de salão destinada a um entretenimento mais leve e menos erudito que aquele proporcionado pela ópera e pela música religiosa. Assim, a música doméstica urbana, praticada por amigos e familiares em festas ou momentos de lazer, privilegiou formas [musicais] de pequeno número de intérpretes, de fácil execução técnica e de restrito apelo intelectual (CASTAGNA, 2003, p. 1). Esse fenômeno sociocultural fez surgir gêneros semelhantes de canção em diferentes países – França: ariette; Itália: canzonetta; Espanha: seguidilla; Alemanha/ Áustria: Lied; Portugal: modinha –, geralmente praticados nos saraus domésticos do século XVIII. O mesmo processo ocorreu no Brasil, mas intensificou-se um pouco mais tarde, no século XIX, quando o hábito de se tocar música em casa passou a ser mais comum entre populações urbanas das classes média e alta (CASTAGNA, 2003).

Em Lisboa, coletâneas contendo modinhas escritas surgiram na década de 1790. Publicações como o Jornal de Modinhas (que circulou quinzenalmente de 1792 a 1796) continham canções geralmente destinadas à execução em pequenas formações, como canto (solo ou dueto) acompanhado por cravo, guitarra portuguesa e outros instrumentos (CASTAGNA, 2003). FIGURA 19 – CAPA DO JORNAL DE MODINHAS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), nascido no Rio de Janeiro, de origem afro-brasileira, teria sido um dos principais responsáveis por difundir em Portugal um novo tipo de canção, a moda brasileira, e também o lundu. Caldas Barbosa chegou a Lisboa em 1770, e cerca de cinco anos depois começou a se tornar conhecido devido ao seu peculiar estilo poético. A respeito deste personagem, não parece haver consenso entre pesquisadores quanto a ter sido compositor ou não, uma vez que ainda há disputas a respeito de melodias que possam ter sido compostas por ele. Sua maior contribuição pode ter sido, portanto, sua atuação como letrista em suas cantigas e modinhas (nomes que o próprio autor dava aos seus trabalhos). A novidade nos textos do brasileiro era o modo ousado como ele tratava assuntos amorosos nas canções, o que causava controvérsia entre os membros da alta sociedade portuguesa. Sob o pseudônimo Lereno Selinuntino, publicou seus textos pela primeira vez em 1798, na coletânea Viola de Lereno (CASTAGNA, 2003; IHGB, 1973; KRAUSCHE, 1983; SADIE, 1994; TINHORÃO, 2004).

FIGURA 20 – DOMINGOS CALDAS BARBOSA

FONTE: IHGB (1973, p. 448-449)

No Brasil, a modinha foi incorporada à vida cotidiana, e tornou-se um dos passatempos musicais preferidos das elites na prática musical doméstica, individual ou coletiva (saraus e pequenos recitais); o gosto pelo gênero impulsionou o consumo de música composta para tal fim. Sua execução era acompanhada por instrumentos de corda de origem ibérica, como a viola portuguesa e o violão (e, mais tarde, o piano, quando este se tornou uma febre entre as famílias de elite, em meados do século XIX). A modinha, adaptada às temáticas locais, agradava a todas as classes sociais e circulava tanto nas salas das famílias ricas quanto nas ruas; o gênero influenciou o surgimento das serestas e serenatas de rua, práticas que se difundiram em cidades brasileiras ao longo do século XIX e chegaram ao século XX (CALDAS, 2010; CASTAGNA, 2003; MONTEIRO, 2007; TINHORÃO, 2004). 132

TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

Acaso são estes é um exemplo de modinha do início do século XIX, também coletada no Brasil pelos viajantes Spix e Martius, entre 1817 e 1820. A peça foi publicada com o título Canção Popular Brasileira, de São Paulo (Brasilianische Volkslieder von St. Paulo) (SPIX; MARTIUS, 1823a).

DICAS

Ouça Acaso são estes, modinha coletada por Spix e Martius, em: youtu.be/7q4FYGwsBY. Acompanhe com a partitura, baixe-a no endereço: bit.ly/3dtKGpa.

O mais antigo exemplo conhecido de modinha cantada no Brasil é Quando o mal se acaba, que foi anotado em 1806 na vila de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, pelo cônsul da Rússia no Brasil (CASTAGNA, 2003). Grigóry Ivanovitch Langsdorff (1774-1852) transcreveu a canção anônima sob o título Ária Brasileira (Brasilianische Arie). Sobre o ambiente social que presenciou, Langsdorff deixa o seguinte relato: À noite, as pessoas se encontram em pequenos grupos de familiares, onde se dança, brinca, ri, canta-se e contam-se anedotas, conforme a tradição portuguesa. Os instrumentos musicais mais usados são a viola e o chocalho. A música é cheia de expressão, terna e sentimental. As canções são de conteúdo modesto, frequentemente reiterando temas como amor por mulheres, corações sangrentos e feridos, desejos e saudades (LANGSDORFF, 1818 apud CASTAGNA, 2003, p. 8).

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FIGURA 21 – N.º I: CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA, DE SÃO PAULO, TRECHO DA TRANSCRIÇÃO DE SPIX E MARTIUS (COMPASSOS 1 A 8)

FONTE: Spix e Martius (1823a, p. 2) FIGURA 22 – TRECHO DA MODINHA QUANDO O MAL SE ACABA (ÁRIA BRASILEIRA), TRANSCRITA POR LANGSDORFF EM 1806

FONTE: Adaptada de Langsdorff (1818 apud CASTAGNA, 2003, p. 8-9)

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

5 A MÚSICA DE BARBEIROS Cabe apontar a referência para um fenômeno cultural típico da embrionária vida urbana brasileira nos períodos colonial e imperial – a música de barbeiros –, o qual ilustra a relação entre a música e a vida social da época, mais especificamente no Rio de Janeiro e em Salvador (TINHORÃO, 2002): As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade [...] do que as de hoje. Tinham, entretanto, seus lados cômicos: um deles era a música de barbeiros à porta. Não havia festa em que se passasse sem isso: […] meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiros, ordinariamente negros, armados, este com pistão desafinado, aquele com uma trompa diabolicamente rouca, formavam uma orquestra desconcertada, porém estrondosa, que fazia as delícias dos que não cabiam ou não queriam estar dentro de uma igreja (ALMEIDA [1853] apud TINHORÃO, 2002, p. 127).



Durante um período que teve início na segunda metade do século XVIII, abrangendo os últimos anos do Brasil colonial, e que continuou ao longo do século XIX, ocorria em centros urbanos um gradual aumento do número de indivíduos africanos e afrodescendentes que viviam sob um regime de trabalho escravo relativamente menos rígido. Chamados na época de “negros de ganho”, escravos exerciam ofícios para os quais havia procura nas cidades, como pedreiros, carpinteiros, vendedores de frutas e verduras, estivadores; assim, obtinham renda para seus senhores e, às vezes, pequenas somas para sua própria subsistência (FRYER, 2000; KRAUSCHE, 1983; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Entre as profissões urbanas estava a do barbeiro, uma função que era quase sempre exercida por negros. A habilidade manual era um requisito importante, pois o barbeiro também era dentista, fazia pequenas cirurgias e “sangrias”. Era comum que aprendessem a tocar instrumentos, sobretudo por causa da natureza da sua atividade: “fazer barba ou aparar cabelos era questão de minutos” (TINHORÃO, 2004, p. 157), e, portanto, “a profissão de barbeiro era a única a deixar tempo vago para a aprendizagem de outros trabalhos” (DINIZ, 2008, p. 21). Ao mesmo tempo, a clientela das barbearias gostava de se distrair com música, ou seja, o interesse pela aprendizagem musical entre estes indivíduos era estimulado pelo aumento na demanda por entretenimento entre a população urbana (FRYER, 2000; JEHA, 2017; MONTEIRO, 2007; TINHORÃO, 2002, 2004). Para os senhores, as habilidades musicais do trabalhador escravo eram vantajosas, pois aumentavam seu valor de venda, sobretudo por haver, além da demanda urbana por música, um mercado que visava à formação de bandas musicais nas fazendas mais ricas (FRYER, 2000; KRAUSCHE, 1983; MONTEIRO, 2007). O norte-americano Thomas Ewbank presenciou um leilão de escravos em 1846, e relatou:

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

O catálogo continha oitenta e nove lotes, e cada lote tinha um número correspondente, para que os compradores, ao percorrerem a lista, pudessem comparar as mercadorias com sua descrição. Estes bens eram seres vivos. Cada lote era um homem ou uma mulher, um menino ou uma menina. Havia cinquenta e três homens [...] – carpinteiros, pedreiros, ferreiros [...] e um cirurgião barbeiro, o qual, como a maioria na sua profissão, era músico: “N.º 19 – 1 Rapaz, Barbeiro, bom sangrador e músico” (EWBANK, 1856, p. 282; tradução e grifo

nossos).

Diniz (2008) nos remete a uma imagem de Debret, por meio da qual é possível imaginar o tempo livre na tranquila rotina dos barbeiros:

FIGURA 23 – BARBEARIA, POR DEBRET

FONTE: Adaptada de . Acesso em: 29 out. 2020.

Desde o século XVIII, tornara-se uma prática comum entre os barbeiros músicos a formação de pequenos conjuntos instrumentais, atuando principalmente em festas, de todo tipo, “religiosas, profanas e até oficiais” (DINIZ, 2008, p. 21). O repertório dos grupos de rua abrangia a música instrumental baseada nos gêneros populares que estavam em ascensão – modinhas, lundus, fados etc. –, somados a elementos de música europeia (MONTEIRO, 2007). A atuação dos barbeiros nas festas de igreja aparece descrita em um testemunho do século XIX: Eles são contratados também para tocar à porta das igrejas durante as festas. Todas as pessoas que compõem as bandas nestas ocasiões são barbeiros. Em cada comércio há um arco, em que são pendurados diferentes produtos para venda; em uma barbearia, o arco é sempre rodeado de instrumentos musicais (WALSH [1830] apud FRYER, 2000, p. 140).

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

Ewbank (1856) retratou uma dessas ocasiões festivas, como vemos próxima imagem, que mostra músicos de rua tocando na Festa do Divino Espírito Santo, em 1846, no Rio de Janeiro.

FIGURA 24 – MÚSICOS PARTICIPANDO DA FESTA DO ESPÍRITO SANTO, EM 1846

FONTE: Ewbank (1856, p. 250)

Os relatos vão além da descrição do cotidiano social. O artista Debret, por exemplo, deixou um interessante comentário a respeito do estilo musical dos barbeiros: O oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre negro ou pelo menos mulato. Esse contraste chocante para o europeu não impede ao habitante do Rio de Janeiro entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas, em verdade arranjadas ao seu jeito (DEBRET apud JEHA, 2017, p. 5, grifo nosso).



Quanto ao “jeito” de tocar desses instrumentistas populares, pesquisadores afirmam que os barbeiros músicos teriam ajudado a construir uma tradição da música instrumental brasileira – a interpretação melódica tocada de uma maneira “chorada”, ou seja, improvisada, ornamentada e com um swing requebrado característico – que originaria, mais tarde, a música dos conjuntos de chorões e o gênero/repertório hoje conhecido por choro (DINIZ, 2008; KRAUSCHE, 1983; TINHORÃO, 2002, 2004).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

NOTA

A música dos barbeiros começou a declinar por volta de meados do século XIX. O surgimento de bandas militares a partir da década de 1830 começaria gradualmente a absorver músicos, principalmente em virtude da possibilidade de profissionalização da atividade – o que também influenciou o desenvolvimento de toda uma cultura musical de bandas de sopro (que envolve repertório, associações para formação de bandas, os antigos coretos nas praças etc.), ainda presente em muitos lugares do Brasil (DINIZ, 2008; TINHORÃO, 2004).

6 A MÚSICA DE SALÃO E A INFLUÊNCIA EUROPEIA O trecho a seguir, escrito por um jornalista na década de 1850, é um exemplo de como a cultura popular era vista no século XIX por uma parte da sociedade brasileira. Jornais daquela época podem ser vistos como um indicador bastante representativo do pensamento das classes mais abastadas, como um termômetro do que se preconizava para a sociedade a respeito “do progresso, do nacionalismo e do discurso civilizador” (GONÇALVES; HOLLER, 2010, p. 356). Mesmo havendo influências multidirecionais entre os diferentes tipos de música, mesmo com o intenso intercâmbio cultural do Atlântico e toda a diversidade de tendências já presente na vida musical brasileira, manifestações musicais populares tinham pouco espaço na imprensa, e quando noticiadas, eram geralmente tratadas de forma depreciativa. Isto que se chama folia do Espírito Santo é dessas coisas que não tem pé nem cabeça, e que só servem para nos envergonhar na presença de pessoas estranhas, que estejam na terra. O que dizer – andar pelas ruas de uma cidade civilizada, uma música infernal composta de uma mal tocada viola, de uma enfumaçada rabeca e de um insuportável tambor? Será isto culto religioso? (O MENSAGEIRO, 1856 apud GONÇALVES; HOLLER, 2010, p. 357).

No século XIX era comum esse tipo de reação, tanto no Brasil quanto em outros países, por parte das classes altas e médias – uma espécie de “pânico moral” perante manifestações culturais de classes pobres, operárias ou médio-baixas (SHUKER, 2005). A cultura popular era associada aos costumes destes grupos, e, assim, seus comportamentos, valores e crenças eram vistos como “irritantes, inúteis, imorais, e por vezes, ameaçadores e perigosos” (SHUKER, 2005, p. 14). Surgia daí uma vontade de controle sobre a cultura popular, e quando não era deliberadamente proibida, era preciso que fosse “disciplinada” ou “moralizada” (CASTAGNA, 2003).

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

Os próprios músicos, mesmo quando originários de classes baixas, incluindo mulatos e negros, assumiam a ideologia da elite, policiandose na forma de manifestar sua arte. Ocorria um fenômeno muito parecido com o que se verificara no período colonial, quando os escravos assumiam a religiosidade portuguesa, mascarando seus costumes africanos com a simbologia católica. Agora, os ritmos, danças e canções de origem popular, muitos deles já centenários, eram envoltos em roupagem europeia e reapresentados de forma “chique” e “civilizada” (CASTAGNA, 2003, p. 1).



Na década de 1840, quando iniciou o governo de dom Pedro II (o Segundo Reinado), começava uma fase de mudanças relevantes na sociedade brasileira, e também na música. Nesse cenário de transformação, o modelo a ser seguido, mais do que nunca, era a música europeia. Ligado a uma tendência de “internacionalização da cultura das elites brasileiras” (CASTAGNA, 2003, p. 1), o ideal eurocêntrico alcançou seu auge a partir da década de 1870, mas ao longo daquele século já vinha ganhando força na mentalidade vigente entre as classes sociais mais altas.

6.1 A NOVIDADE DAS DANÇAS EUROPEIAS Entre 1840 e 1850, o Brasil absorveu a tendência da música de salão, termo que se refere à adaptação de vários tipos de música instrumental dançante que estavam em voga na Europa, como a valsa, a quadrilha, a contradança, a mazurca, a schottish, a redowa e, principalmente, a polca (BÉHAGUE, 2001; BLOES, 2006; CASTAGNA, 2003). Essas danças importadas compunham um repertório de música leve destinado a bailes e outros eventos sociais semelhantes, promovidos pela elite e para a elite. Relembrando o argumento de Castagna (2003, p. 3): “música erudita ou popular? Nem erudita – haja vista a não utilização de linguagens literárias ou musicais complexas – e nem popular, uma vez que essa música se destinava às elites”. A polca, oriunda da região da Boêmia, foi uma das mais influentes. Na Europa, a febre da polca na estava no seu auge quando a dança chegou ao Brasil. Por volta de julho de 1845, segundo apontam evidências históricas, a dança foi apresentada pela primeira vez no país, no Teatro São Pedro, no Rio de Janeiro (BLOES, 2006; FRYER, 2000).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

FIGURA 25 – UM TÍPICO SALÃO DE DANÇA EUROPEU DO SÉCULO XIX

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

FIGURA 26 – CÉLULA RÍTMICA CARACTERÍSTICA DA MAZURCA

FONTE: Adaptada de Castagna (2003, p. 10) FIGURA 27 – CÉLULA RÍTMICA CARACTERÍSTICA DA REDOWA

FONTE: Adaptada de Castagna (2003, p. 9)

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

FIGURA 28 – MOTIVOS RÍTMICOS TÍPICOS DA POLCA

FONTE: Adaptada de Castagna (2003, p. 4-5)

6.2 FUSÕES COM ELEMENTOS AFRO-BRASILEIROS O discurso de rejeição à cultura popular estava fortemente presente em certas camadas da sociedade. Entretanto, interações culturais continuavam acontecendo na sociedade, e o pretendido afastamento cultural entre “povo” e “elite”, quando existia, nem sempre era rígido. Ainda que de forma seletiva – adaptados, “disciplinados” em um processo de estilização –, gêneros musicais de origem popular eram incorporados pelas classes mais altas (CASTAGNA, 2003). “Com o lundu cantado e a modinha, a influência musical africana, embora atenuada, entrava no salão pela primeira vez” (FRYER, 2000, p. 11). Ao mesmo tempo, a música que vinha da Europa, importada pelas elites, acabava igualmente recebendo influxos de elementos brasileiros populares. Cabe lembrar de outros exemplos: desde o século XVIII, tendências musicais brasileiras faziam sucesso em Portugal, como no caso do lundu e das modinhas de Caldas Barbosa; ou as peças para piano de Sigismund Neukomm, escritas na década de 1810, inspiradas em temas populares. As influências musicais, portanto, transitavam em uma via de mão dupla. Já vimos o caso da gráfica de Pierre Laforge, no Rio, que simbolizou o advento da atividade editorial regular voltada à música. Depois de seu surgimento, a partir de meados da década de 1830, a impressão de partituras vinha se firmando como um novo mercado que atendia a uma demanda cada vez maior de material musical sobretudo para a prática doméstica (LEME, 2004). Esse fator impulsionou a circulação não somente de valsas e polcas europeias, mas de música popular sob formatos estilizados. O lundu, adaptado como canção, e, sobretudo, a modinha, estiveram entre os tipos de música mais difundidos por intermédio da partitura impressa; foram publicadas centenas de modinhas, de diversos autores, ao longo do século XIX.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

NOTA

O “LUNDU-CANÇÃO” Ainda que a dança do lundu tivesse alcançado sucesso nos dois lados do Atlântico, sua aceitação pelas classes mais abastadas nos salões do século XIX dependeu de algumas mudanças – foi preciso certa estilização do lundu para que ele fosse, aos poucos, sendo assimilado entre as elites. Além do lundu-canção, o gênero também foi transformado em peças instrumentais, como os lundus para piano; este tipo de adaptação se tornou muito comum no século XIX (BÉHAGUE, 2001; CALDAS, 2010; CASTAGNA, 2003; KRAUSCHE, 1983; MONTEIRO, 2007).

A modinha do século XVIII, mais “brejeira”, foi moldada, no século seguinte, pelas tendências europeias absorvidas pelas crescentes classes médias e altas; a ela foi incorporada a influência romântica das árias da ópera italiana e das valsas (BÉHAGUE, 2001; PAIVA, 2010; TINHORÃO, 2002, 2004). A modinha, portanto, passou “do estilo espirituoso para um clima de sentimento à flor da pele” (SADIE, 1994, p. 612).

NOTA

No século XIX, compositores ligados à tradição sacra/erudita também escreveram modinhas – como José Maurício Nunes Garcia, Marcos Portugal, Gabriel Fernandes da Trindade, Francisco Manuel da Silva, Henrique Alves de Mesquita, Carlos Gomes – sobretudo para piano e voz, a formação instrumental mais costumeira neste caso (CASTAGNA, 2003; MATTOS, 1997). Conheça um exemplo: Beijo a mão que me condena, modinha de José Maurício Nunes Garcia (publicada por Laforge, c.1840). Está disponível em: youtu.be/Yb0lnukEWds.

Quanto às danças europeias, os músicos brasileiros foram ajustando-as ao seu estilo de execução e interpretação, somado ao sotaque rítmico africano; assim, a valsa e a polca foram “abrasileiradas”. Além da Europa, tendências musicais chegavam igualmente de outros lugares do triângulo cultural do Atlântico, e o Brasil logo assimilaria formas musicais como a habanera (de origem cubana, com raízes ibéricas), entre outras (BLOES, 2006; FRYER, 2000).

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

Segundo Sandroni (2001, 2002), embora tenha se tornado conhecida na bibliografia especializada com o nome “ritmo de habanera”, a célula rítmica a seguir caracteriza um grande conjunto de gêneros musicais, todos de origem ibero-afro-americana, que se desenvolveram ao longo do século XIX. Tais gêneros são encontrados ainda hoje em tradições musicais em toda a América Latina, do Caribe à Argentina.

FIGURA 29 – CÉLULA RÍTMICA DA HABANERA

FONTE: Adaptada de Sandroni (2002, p. 102)

Conforme o autor, este motivo rítmico tem semelhança com o tresillo, ritmo assimétrico que resulta da soma de três acentuações – 3+3+2 – distribuídas em oito pulsações.

FIGURA 30 – A CÉLULA RÍTMICA DO TRESILLO

FONTE: Adaptada de Sandroni (2002, p. 103)

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

NOTA

Sendo provavelmente de origem africana, o tresillo pode ter aparecido na América no início do século XIX e é recorrente até hoje em lugares que tiveram ligação histórica com a escravidão e com a presença de grupos africanos, sobretudo no Brasil. O tresillo é um elemento típico em gêneros caribenhos, e aparece também em várias manifestações musicais brasileiras e do sul do continente americano, como o tango argentino e a milonga. O padrão rítmico 3+3+2 pode ser encontrado na música brasileira de tradição oral, por exemplo, nas palmas que acompanham o samba de roda baiano, o coco nordestino e o partido-alto carioca; e também nos gonguês dos maracatus pernambucanos (SANDRONI, 2001, p. 28).

Esse processo de mistura e adaptação envolveu aqueles gêneros que já eram vistos como “brasileiros”, como o lundu, e resultou em híbridos como a polca-lundu: surgido por volta de 1850, este gênero é considerado um fator que daria origem, mais tarde, ao maxixe e ao tango brasileiro (BÉHAGUE, 2001; MENEZES BASTOS, 2007). “Com a chegada da polca, mais o tango e a habanera, com os quais se funde, o lundu vem a estar na origem do maxixe, o primeiro gênero da música popular urbana moderna, no fim do século XIX e começo do XX” (WISNIK, 2000?, s.p.). Em peças que caracterizam o repertório de polca-lundu para piano da segunda metade do século XIX, há construções rítmicas que se assemelham com os padrões da habanera e do tresillo. Algumas dessas células estão listadas a seguir, na Figura 31. Note que as diferentes alturas na notação rítmica correspondem a diferenças entre grave e agudo, normalmente estruturas de baixo e acordes nas linhas de mão esquerda. Tais elementos influenciaram gêneros surgidos mais tarde, como o maxixe e o samba.

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TÓPICO 2 — MÚSICA POPULAR NO BRASIL DOS SÉCULOS XVIII E XIX

FIGURA 31 – CÉLULAS RÍTMICAS COMUNS NA POLCA-LUNDU PARA PIANO

FONTE: O autor

Para concluir este tópico, vale observar a síntese, feita por Wisnik (2000?), das tendências presentes na música popular brasileira em meados do século XIX – e assim já podemos antecipar alguns dos assuntos que serão abordados no Tópico 3. A polca será progressivamente adaptada a jeitos de executar que testemunham a dicção, as inflexões ornamentais e a rítmica ligada aos perfis decantados na tradição popular brasileira. Tocada pelos chamados “pianeiros”, que a reinterpretam segundo os motivos sincopados da umbigada e do lundu, ou pelos grupos instrumentais ligados à antiga música de “barbeiros”, formados por flauta clarinete e oficleide, a polca dá origem ao maxixe e ao choro, dois gêneros fundamentais para o surgimento da moderna música popular urbana. Num processo análogo, a valsa europeia é assimilada ao ambiente do choro e da seresta em cadências plangentes (WISNIK, 2000?, s.p.).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

7 CRONOLOGIA QUADRO 2 – EVENTOS HISTÓRICOS DO TÓPICO 2

ANO EVENTO 1770 Caldas Barbosa chega em Lisboa. 1792 Jornal de Modinhas, Lisboa. 1798 Viola de Lereno, publicação de Caldas Barbosa em Lisboa. Transcrição de Quando o mal se acaba (Ária Brasileira) por Langsdorff, primeiro registro da modinha no Brasil. Transcrições de Landum, Dança Popular Brasileira e Acaso são estes, por Spix e c.1817-20 Martius. c.1830 Surgimento de bandas militares. 1806

c.1834-37 Rio: tipografia de Pierre Laforge inicia impressão de partituras. c.1835 Iconografia: imagens de Debret: imagens de Rugendas retratando o lundu. c.1840

Laforge publica Beijo a mão que me condena, modinha de José Maurício Nunes Garcia.

c.1840-50 Período em que inicia a influência da música de salão europeia no Brasil. c.1845 A dança da polca chega ao Brasil. 1846 Visita de Thomas Ewbank ao Brasil. c.1850 Surgimento da polca-lundu. FONTE: O autor

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RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O lundu era uma dança sincrética, surgida provavelmente no século XVIII, e que misturava características afro-brasileiras dos batuques, como a umbigada e a dança em roda, com elementos ibéricos dos fandangos, como os sapateados, os gestos com mãos e braços voltados para o alto, o estalar dos dedos e o toque de castanholas. • O pintor alemão Johann Moritz Rugendas retratou o lundu em imagens que revelam seus detalhes, além do contexto social em que a dança estava inserida. • O lundu se difundiu como uma forma de música instrumental dançante. • O mais antigo registro musical do lundu é a melodia Landum, Dança Popular Brasileira, transcrita por Spix e Martius entre 1817 e 1920 e publicada na obra Viagem ao Brasil. • A modinha surgiu como uma maneira de cantar as modas portuguesas e tornouse um tipo de canção famosa em Portugal e no Brasil. Domingos Caldas Barbosa foi um dos responsáveis por difundir a modinha e o lundu em Lisboa. • Acaso são estes é um exemplo de modinha do início do século XIX, também coletado no Brasil pelos viajantes Spix e Martius, entre 1817 e 1820. • O mais antigo exemplo conhecido de modinha cantada no Brasil é Quando o mal se acaba, transcrito em 1806 pelo russo Grigóry Ivanovitch Langsdorff, na vila de Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina. • A música de barbeiros é um importante fenômeno sociocultural ocorrido entre os séculos XVIII e XIX, que está associado ao aumento no número de profissões urbanas em cidades como Rio de Janeiro e Salvador. Os barbeiros eram em geral negros ou mestiços, e a maioria deles aprendia a tocar instrumentos. • Segundo relatos do século XIX, músicos africanos ou afrodescendentes participavam de festejos religiosos, como a Festa do Divino Espírito Santo. Era comum que fossem formados grupos musicais compostos por barbeiros músicos para estas ocasiões. • A música de barbeiros foi influente na formação da música popular, sobretudo na tradição do choro.

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• No século XIX, entre as elites, eram recorrentes os discursos que depreciavam a cultura popular e preconizavam modelos europeus. No entanto, isso não impediu os cruzamentos entre cultura de elite e a cultura popular. • Ao longo do século XIX, uma nova fase de influências estrangeiras chegaria ao Brasil, sobretudo a partir da década de 1840, por meio das danças de salão europeias como a polca, a valsa, a mazurca, a contradança, a schottish, a redowa. • Gêneros que se estabeleceram como manifestações musicais brasileiras, como o lundu e a modinha, também sofreram transformações em virtude das influências europeias. • A recepção das tendências da música europeia de salão e de outras formas musicais disseminadas no triângulo cultural do Atlântico fez surgir gêneros musicais híbridos, como a polca-lundu – a qual influenciou, mais tarde, o surgimento de outras danças e ritmos, como o maxixe e o samba.

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AUTOATIVIDADE 1 Sabemos que o lundu era uma dança sincrética, surgida provavelmente no século XVIII, e que misturava características afro-brasileiras dos batuques com elementos ibéricos dos fandangos. Quanto às características do lundu e da modinha, analise as seguintes afirmativas: I- O lundu mais antigo do Brasil foi composto no século XVIII por Spix e Martius. II- O lundu era uma dança africana, que foi importada para o Brasil e se disseminou exclusivamente entre as classes mais pobres da população brasileira. III- O lundu se tornou conhecido como um tipo de música instrumental dançante. IV- A modinha e o lundu (adaptado como canção) estiveram entre os gêneros mais difundidos no século XIX através da partitura impressa. Agora, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As afirmativas II e III estão corretas. b) ( ) As afirmativas III e IV estão corretas. c) ( ) As afirmativas I, II e III estão corretas. d) ( ) As afirmativas I, III e IV estão corretas. 2 A modinha surgiu como uma maneira de cantar as modas portuguesas e tornou-se um tipo de canção famosa em Portugal e no Brasil. Nesse contexto, podemos afirmar que: a) ( ) A modinha tem relação com um fenômeno que ocorreu em vários países europeus no século XVIII, quando surgiram gêneros de canção voltados para a prática em saraus domésticos. b) ( ) A célula rítmica básica da polca-lundu é idêntica à da redowa. c) ( ) A polca foi assimilada no Brasil e se transformou no fenômeno conhecido como música de barbeiros. d) ( ) A peça Quando o mal se acaba, escrita pelo compositor Domingos Caldas Barbosa, é um exemplo representativo da modinha do século XVIII. 3 Como vimos neste tópico, os gêneros que se estabeleceram como manifestações musicais brasileiras também sofreram transformações em virtude das influências europeias. Nesse sentido, associe os itens utilizando o código a seguir: I- Polca. II- Tresillo. III- Lundu.

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( ) Dança de salão originária do centro da Europa, da região da Boêmia. Chegou ao Brasil em 1945 e foi bastante influente na música brasileira. ( ) Ritmo construído sobre a sequência de acentuações 3+3+2. ( ) Dança sincrética que era praticada no Brasil e mesclava elementos africanos e ibéricos. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) II – I – III. b) ( ) III – I – II. c) ( ) II – III – I. d) ( ) I – II – III.

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TÓPICO 3 —

UNIDADE 2

MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, partindo das últimas décadas do século XIX, analisaremos o contexto histórico até a metade do século XX, discorrendo sobre a formação de um novo cenário cultural no qual a música popular ascendeu e se concretizou como um fenômeno típico da vida moderna. Veremos que, no início desse recorte cronológico, formou-se um ambiente cada vez mais propício, em termos de mercado, consumo e difusão, à consolidação da música popular de feições modernas – um fenômeno cultural que emergia e se desenvolvia em vários países, além do Brasil – que a literatura especializada identifica por meio do termo música popular urbana.

NOTA

Como definir a música popular em sua forma moderna? Segundo Simon Frith, há consenso científico em torno dos seguintes conceitos: • Música feita comercialmente, inserida num tipo específico de sistema legal (direitos autorais, copyright) e econômico (mercado, distribuição). • Música produzida com o uso de tecnologias que sofrem mudanças constantes, particularmente no que se refere às formas de registro e armazenamento sonoro. • Música que é significativamente vivenciada como uma experiência veiculada, ou seja, atrelada à mídia de massa do cinema, rádio e televisão. • Música que é feita principalmente para o prazer, com particular importância para os prazeres sociais e corporais da dança e do entretenimento público. • Música que é formalmente híbrida, reunindo elementos que cruzam fronteiras sociais, culturais e geográficas (FRITH, 2004, p. 3-4; HARPER-SCOTT; SAMSON, 2009, p. 190).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

O termo música popular urbana se refere ao contexto histórico da música popular nos últimos 150 anos, aproximadamente, e a sua relação com a indústria cultural e a comunicação de massa. Entre o final do século XIX e início do século XX, estando cada vez mais vinculada a novos papéis e funções na sociedade e ao crescente consumo de bens culturais, essa nova conformação da música popular passou a se diferenciar da música de transmissão oral em função de mudanças no contexto social e também por estar indissociavelmente ligada à recém-criada indústria fonográfica e, mais tarde, aos novos meios de difusão como o rádio, o cinema e a televisão. Trata-se de “uma música urbana, de consumo, para atender necessidades dos meios de comunicação de massa que estavam nascendo e com promessas de um futuro pródigo” (SUZIGAN, 1990, p. 48). O mercado, as tecnologias e outras novidades acabaram por engendrar novas formas de distinção entre a música popular produzida e consumida nas cidades – por isso, moderna, urbana – e as manifestações musicais populares de caráter tradicional/ rural (denotadas por termos como música folclórica), vinculadas à oralidade e à coletividade (CASTAGNA, 2010; WISNIK, 2000?). De agora em diante, o termo música popular será usado neste texto como sinônimo de música popular urbana, portanto. A profunda relação que a música popular passou a ter com esse modelo de modernidade capitalista, no entanto, não necessariamente diminui seu valor artístico e sua importância sociocultural. Diante do caráter essencialmente contraditório da cultura de massa, os fortes laços da música popular com o sistema de produção e consumo frequentemente foram (e ainda são) alvo de críticas. Quase sempre baseadas em discursos simplistas, generalizantes e hierarquizantes, tais críticas rotulam, por exemplo, a indústria cultural como “perversa” (responsável por disseminar produtos de baixo nível moral e artístico) e a música popular como “inferior”, “comercial”, “superficial”, “degenerada” etc.; ou, ainda, acusam esta de “contaminar” outras categorias de música supostamente mais autênticas ou elevadas (HAMM, 1995; MENEZES BASTOS, 2007). A música popular é vista como uma dupla degeneração: da folclórica, devido à perda de sua propalada autenticidade; da erudita, como consequência da falência de sua atribuída sofisticação. [...] Isto é tomado como base para a sua desqualificação como tradição (MENEZES BASTOS, 2007, p. 7-8).

Além disso, a música não escrita passou por contínuas transformações ao longo dos séculos (aculturação, misturas, incorporação de influências externas etc.); é o caso da música de raízes orais (como o lundu) sendo adaptada para a esfera da música escrita, como ocorreu no mercado de partituras impressas no Brasil do século XIX. E na ascensão da música popular urbana – inserida em um processo de modernização que era reflexo do que estava acontecendo na sociedade – percebe-se mais um sinal dos influxos mútuos e das interações que ocorreram entre as tradições musicais brasileiras, escrita e não escrita, ao longo da história (ARAGÃO, 2015; CASTAGNA, 2003; WISNIK, 2000?). Sobre este tema, autores comentam: 152

TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

Esse movimento cruzado de encontros entre o popular e o erudito sinaliza a permeabilidade constitutiva da música praticada no Brasil, ao mesmo tempo que denuncia o fato de que a tradição não escrita pode, muitas vezes, desdobrar-se nas franjas da tradição escrita, ou ter a escrita como instrumento de desenvolvimento (WISNIK, 2000?, s.p.). Diferentemente das músicas folclóricas modais, as músicas populares tonalizadas passaram a depender cada vez menos da oralidade, sem dela abdicar, e a se apoiar cada vez mais na escrita musical, tanto para sua execução como para sua divulgação; o advento da gravação sonora e do rádio trariam novos horizontes para a difusão oral. Na época atual, as músicas populares espalharam-se por todo o planeta e não se acomodam mais aos princípios que lhes deram origem na Europa. Elas assumem diversificadíssimas formas e sistemas musicais, modais ou tonais, e incursionam nos campos eletroacústicos e digitais, amparadas por um sistema de divulgação calcado não apenas na partitura impressa, mas especialmente na gravação e na difusão sonora, de acordo com mutantes tecnologias (SILVA, 2019, p. 3). A música popular, produto típico do novo mundo urbano-industrial surgido no século XX, é um termômetro sutil dos complexos processos de transformação e inter-relação entre significados tradicionais e modernos, refletindo as experiências sempre cambiantes das várias camadas sociais que conformam nosso mundo (CARVALHO, 1991, p. 9).

2 A TRANSIÇÃO ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX No que diz respeito à história da música brasileira, a capital Rio de Janeiro já ocupava uma posição de destaque pelo menos desde o início do século XIX, quando passou a ser uma espécie de modelo cultural para o restante do país. Mais tarde, na transição entre os séculos XIX e XX, entre o final do Segundo Reinado e a Primeira República, a capital firmou-se como o símbolo do ideal de modernidade e da intensificação da vida urbana. Durante um recorte cronológico que durou cerca de 50 anos – aproximadamente entre 1870 e 1920 – apareceram os primeiros sinais do surgimento e posterior ascensão de uma música popular urbana moderna no Brasil, cujo centro era o Rio de Janeiro (BÉHAGUE, 2001; OLIVEIRA, 2013). Para a música popular, esse período também pode ser considerado uma Belle Époque. Nessa fase ocorreu um processo de modernização da música, envolvendo a “crescente diversificação de formas musicais e de contextos sociais de consumo” (BÉHAGUE, 2001; s.p.). Surgiram novas tecnologias de mídia: a fonografia, o cinema e mais tarde, o rádio. No Rio de Janeiro, estava ocorrendo o progressivo desenvolvimento e a “cristalização” de gêneros musicais urbanos, como o maxixe, a marcha carnavalesca (OLIVEIRA, 2013; RITTO, 2016; RUIZ; LEMINSKI, 2010). A música popular passou a ocupar um lugar central na cultura e na construção da identidade nacional do país.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

NOTA

O termo francês Belle Époque (“bela época”) se refere ao período da história europeia que teve início aproximadamente na década de 1880, e se caracterizou pelo progresso econômico, por grandes avanços científicos, tecnológicos e culturais, e, sobretudo, pelo ideal de modernidade. Embora consagrado, o termo é bastante criticado, pois, segundo historiadores, a época era “bela” somente para uma parcela privilegiada da sociedade; e, apesar do nome, o período foi marcado por grandes contrastes sociais e tensões que causaram a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), evento que marca o fim da Belle Époque: “um fenômeno tão maligno quanto a Grande Guerra não podia surgir de uma época de ouro” (TUCHMAN, 1990, p. 16).

A promulgação da Lei Áurea, em 1888, e o consequente declínio na produção agrícola em determinadas áreas – como no Nordeste, região que também sofreu violentas secas no final do século XIX – foram fatores que impulsionaram uma nova onda de migrações internas no Brasil. No clima de otimismo com o advento da República, o crescimento da industrialização estimulava o deslocamento de populações das regiões rurais para os grandes centros urbanos. Era, portanto, o começo de um novo ciclo de aumento populacional nas cidades. O principal cenário era o Rio de Janeiro, que, na condição de protagonista em toda esta movimentação, “funcionava como chamariz cultural” (SCHWARCZ; STARLING, 2018, p. 326). A capital, além de atrair pessoas que buscavam oportunidades e emprego, foi o ambiente em que aconteceu um intenso processo de cruzamento entre culturas diferentes (BÉHAGUE, 2001; BLOES, 2006; CASTAGNA, 2003; DINIZ, 2008; KRAUSCHE, 1983).

NOTA

Vale a pena recapitular o que foi citado no Tópico 3 da Unidade 1: no Brasil, a virada do século XX foi uma época em que a população dos grandes centros foi influenciada pela ideia de modernidade – uma mentalidade que estava em alta, sobretudo após a proclamação da República, ansiando pelo abandono de um mundo rural, colonial, e de transição para uma vida urbana, moderna, espelhada nos modelos de urbanização e civilização da Belle Époque europeia. As cidades passaram por intensas transformações na configuração do espaço urbano, o que foi um fator decisivo na forma como a música passou a ser consumida no cotidiano, tanto no âmbito erudito quanto na música popular. Cabe lembrar também que esse período coincide cronologicamente com a era de maior influência do romantismo europeu na música erudita brasileira (CASTAGNA, 2003; LARSEN, 2018; RAMINELLI, 1997; SCHWARCZ; STARLING, 2018; TINHORÃO, 2004).

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

Fatores como a modernização urbana e a “diversificação da sociedade carioca” levaram a uma “maior demanda por entretenimento” (DINIZ, 2008, p. 30): a música popular passou a ser praticada e consumida em novos ambientes de socialização tipicamente urbanos, como cafés, clubes, salões de dança e teatros (e, mais tarde, os cinemas e os cineteatros), em que pianistas ou pequenos grupos instrumentais tocavam regularmente. No Rio, havia música ao vivo nos chamados “cafés-concerto”, “cafés-cantantes” e “chopes-dançantes”, e em lugares como a luxuosa Confeitaria Colombo (fundada em 1894). Em lojas como a Casa Mozart e a Casa Carlos Gomes, dedicadas à venda de instrumentos, pianistas tocavam partituras para os clientes e faziam demonstrações de pianos. O repertório que se ouvia no Rio de Janeiro incluía excertos de óperas e de sinfonias, música de câmara, e gêneros como a polca, a valsa, o lundu e a modinha, a polca-lundu e o maxixe (BÉHAGUE, 2001; BLOES, 2006; CASTAGNA, 2003; RITTO, 2016; TINHORÃO, 2004).

NOTA

Nos pequenos teatros do final do século XIX, florescia o teatro de revista, gênero teatral popular de humor que “passava em revista” os acontecimentos recentes da sociedade. As chamadas revistas comumente envolviam música e dança, e o teatro se tornou “uma porta aberta para compositores, músicos e cantores talentosos, transformandose no principal meio de lançamento e divulgação da música popular até o advento do rádio” (DINIZ, 2003, p. 23).

3 O CHORO Nesse contexto de passagem do século XIX para o XX surgiu o choro, um importante marco na Belle Époque da música popular carioca e uma grande inovação musical. Vários autores consideram o choro como uma decorrência daquele cenário musical que vinha se formando desde meados do século XIX, em que as danças europeias assimiladas pelos músicos populares, somadas às tradições musicais afro-brasileiras, deram origem a novas tendências musicais (ARAGÃO, 2015; CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000). Assim, englobando vários dos gêneros que foram surgindo e se disseminando desde c.1850 (polca, valsa, mazurca, tango, habanera, lundu, polca-lundu etc.), o choro teria surgido mais como um estilo de interpretação do que propriamente como um gênero em si ou uma forma musical: era uma maneira de tocar criada pelos chorões, na qual havia grande abertura para o improviso e ornamentação, associada ao modo “chorado”, doce, ou sentimental de interpretar as linhas melódicas, além dos padrões rítmicos sincopados, “gingados”, característicos do estilo de acompanhamento (CASTAGNA, 2003; KRAUSCHE, 1983). 155

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

A década de 1870 foi muito importante para o desenvolvimento do gênero, quando emergiram diversos conjuntos baseados na reunião de três instrumentos: a flauta, o violão e o cavaquinho. Os instrumentistas, sempre muito habilidosos, reuniam-se informalmente para executar uma música sentimental e chorosa, baseadas em modulações e melodias trabalhadas que exigiam de seus executantes extrema competência (BLOES, 2006, p. 56).

3.1 O MAXIXE O maxixe surgiu no Rio de Janeiro por volta de 1870, e sua história está intimamente ligada ao fenômeno do choro e dos chorões. Primeiramente, a palavra se referia a um modo de dançar a música de salão em suas diferentes variações; mas a influência de formas musicais como o antigo lundu e a mais recente polca-lundu fez com que o maxixe fosse aos poucos se estabelecendo como um gênero musical – cuja importância histórica está justamente na relação essencial que ele possuía com o repertório dos chorões. O maxixe foi o primeiro gênero desta nova música popular que despontava no final do século XIX, de feições urbanas e modernas (WISNIK, 2000?). A dança do maxixe se popularizou em diferentes classes sociais. Conquistou salões e ganhou espaço em espetáculos teatrais como as operetas e as revistas, nos quais a dança era usada como atrativo cênico; no entanto, sofreu igualmente forte rejeição, sendo considerada uma dança indecente, um ultraje aos “bons costumes” (DINIZ, 2003; KRAUSCHE, 1983). Para termos uma melhor compreensão do contexto social do maxixe, vejamos o que apontam os autores: As polcas amaxixadas, difundidas na classe média através de um florescente comércio de partituras que atende à demanda de repertório para moças pianistas confinadas ao espaço doméstico [...], são parentes dos maxixes difundidos nos clubes carnavalescos e nos teatros de revista, ligados à vida boêmia e contíguos ao ambiente sociocultural de pobres negros e mestiços. Assim, essa música popular urbana, que se constitui em elemento de atração para elites e classe média (quando assimilada sob a cobertura da polca ou do “tango brasileiro” estilizados ao piano), é ao mesmo tempo ambiguamente rejeitada e muitas vezes perseguida e proibida pela polícia (enquanto maxixe ou batuque, índices dos “folguedos da malta” próximos da desordem sexual, da ameaça social e da escravidão recente). Os movimentos de contraditória recusa e aceitação do maxixe e do samba pelas elites e pelas instituições oficiais constituem um exemplo daquela “dialética da malandragem” através da qual a música popular, de fenômeno marginal, transformar-se-á pouco a pouco em índice e símbolo do Brasil moderno (WISNIK, 2000?, s.p.). O maxixe representou a principal forma de “pressão” que a cultura popular exerceu sobre a cultura da elite, refluindo para os centros urbanos à medida que era expulsa. Esse refluxo, no entanto, era feito sob uma roupagem “civilizada”, com a transformação do maxixe em dança de salão (CASTAGNA, 2003, p. 5).

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

FIGURA 32 – A DANÇA DO MAXIXE, POR K-LIXTO (CALIXTO CORDEIRO)

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

Como forma musical, o maxixe surgiu como uma necessidade de acompanhar os novos passos de dança que eram introduzidos nas danças europeias, quando estas entraram nos salões de classes sociais mais baixas; “Assim, o gênero maxixe está enraizado na liberdade, criatividade e esforço dos músicos de choro ao adaptar suas músicas a esses novos passos originais” (BLOES, 2006, p. 58). A grande controvérsia em torno da dança – e da própria palavra maxixe, que carregava certa conotação depreciativa – fez com que muitos músicos evitassem esse termo: nas composições, costumava-se “disfarçar” o maxixe com o uso de outros nomes, como polca, polca-lundu, polca brasileira, tango, tango brasileiro, tango característico, tanguinho (BLOES, 2006; CASTAGNA, 2003).

FIGURA 33 – CÉLULA RÍTMICA CARACTERÍSTICA DO MAXIXE

FONTE: O autor

NOTA

Nessa época, não somente o maxixe era visto com grande preconceito, mas a música popular como um todo, principalmente devido ao discurso que pregava a separação entre as culturas popular e erudita. O compositor Francisco Mignone relatou, certa vez, que “escrever música popular era coisa desqualificante mesmo” (MIGNONE apud TRAVASSOS, 2000, p. 11). O fato é que certos artistas ligados ao cenário da música de concerto também tinham uma produção popular; muitos músicos da escola erudita trabalhavam em cafés, cinemas e salões tocando repertório popular para complementar a renda (mesmo já

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

existindo instituições que promoviam a música erudita e a ópera, o mercado de trabalho era pequeno e o mundo dos concertos nem sempre era rentável). Além disso, compositores como Villa-Lobos ganharam experiência tocando música popular na juventude – além do próprio Mignone, que utilizava o pseudônimo “Chico Bororó” para assinar maxixes, tangos, valsas e outras composições populares (BLOES, 2006; TRAVASSOS, 2000).

Nas suas duas formas – dança e música –, o maxixe transitou pelo Atlântico e ganhou notoriedade internacional: No Brasil, os guardiães da moralidade pública atacavam a dança do maxixe por causa da sua sensualidade; mas o Dancing Times de Londres [1913] a qualificava como “fácil” e “elegante”; [...] “sua simplicidade lânguida a torna uma agradável mudança em relação aos giros acrobáticos de nossas importações norte-americanas” (FRYER, 2000, p. 255).

Nas primeiras décadas do século XX, o gênero se tornou bastante conhecido na Europa e nos Estados Unidos, onde maxixes compostos por brasileiros tiveram partituras publicadas (CASTAGNA, 2003; MENEZES BASTOS, 2007; RITTO, 2016).

3.2 PRIMEIROS CHORÕES Os chamados grupos de chorões apareceram no Rio de Janeiro por volta de 1870, como um desdobramento da tendência da música de salão. As origens desse fenômeno estão de certo modo ligadas à confluência de vários elementos históricos do século XIX, que incluem os escravos músicos que atuavam nas fazendas e nas festas de igreja e a vida musical das cidades, envolvendo barbeiros, músicos de rua e a prática musical doméstica. Além destes, outro fato importante é que ao longo da segunda metade do século XIX, sobretudo no Rio de Janeiro, formou-se uma população urbana de classe média baixa composta por empregados assalariados, entre os quais a prática musical era algo comum. Muitos eram músicos amadores ou semiprofissionais que tocavam em clubes, salões, bailes de carnaval e outros ambientes, atendendo o aumento na demanda por atividades musicais, somada à influência da música de salão em espaços de entretenimento (ARAGÃO, 2015; CASTAGNA, 2003; TINHORÃO, 2002). Toda essa movimentação formou, segundo Castagna, um mercado musical periférico: A maior parte desses músicos eram negros e mulatos. Não eram vadios ou, como foi comum nas décadas de 20 e 30, “malandros”. Todos tinham empregos de baixo salário, geralmente como funcionários públicos, militares ou policiais, alguns atuando também como músicos em bandas. Esses grupos tocavam o mesmo tipo de música que circulava na elite – polcas, mazurcas, valsas, tangos, quadrilhas

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

etc., mas sem o caráter “chique” exigido nos salões refinados. Havia, entre eles, indistintamente, os que tocavam por partitura ou de ouvido, mas destacaram-se mais aqueles que conheciam a escrita musical e eram capazes de produzir arranjos. Seu instrumental era normalmente os instrumentos de madeira (flauta, clarineta, clarone), de metal (bombardino, oficleide, trombone), de cordas (violão, cavaquinho, bandolim) e de percussão (pandeiro, reco-reco). Note-se a herança das bandas nesses grupos, já que os instrumentos utilizados eram essencialmente aqueles que podiam ser tocados em pé, sendo incomuns o violoncelo, e o piano, além dos violinos, reservados à música culta (CASTAGNA, 2003, p. 1).

FIGURA 34 – GRUPO DE CHORÕES CARIOCAS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

Antes de denotar o gênero musical, o nome choro também se referia aos conjuntos dos chorões (SANDRONI, 2001), cuja base era flauta, cavaquinho e violão. Os choros, com o tempo, incorporaram percussão à base rítmica das cordas (violão, violão de sete cordas e pandeiro); os instrumentos solistas se diversificaram, podendo ser sopros (como flauta, clarinete, saxofone) ou cordas (cavaquinho ou bandolim). Mais tarde a formação instrumental passou a ser chamada de regional (ou conjunto regional, regional de choro etc.). Instrumentos das formações mais antigas do século XIX, como bombardino e oficleide, caíram em desuso. O surgimento da figura do pianeiro está igualmente associado ao contexto dos chorões. O termo se referia aos pianistas de música popular, que tocavam piano sem ter necessariamente uma formação musical escolar (ou ainda, aqueles que se dedicavam ao repertório popular mesmo após terem passado pela formação erudita). Quando compunham, costumavam incorporar sonoridades e ritmos populares em suas obras. Atuando sozinhos ou fazendo parte da formação dos choros, tocavam em cafés, bares, salas de espera de 159

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

cinemas e outros ambientes. Os pianeiros eram “músicos intuitivos, mais ou menos dotados que, em processos de transposição, conseguiram grafar, anotar e sistematizar as características rítmico-melódicas dos conjuntos populares dos choros e das serestas” (BLOES, 2006, p. 62). Entre os principais personagens históricos ligados ao fenômeno musical do choro e dos chorões estão: • Joaquim Callado (1848-1880), instrumentista e compositor. De origem mestiça, era filho de um professor de música e regente de banda, com quem aprendeu flauta e piano ainda na infância. A partir de 1856, estudou composição e regência com Henrique Alves de Mesquita. Tornou-se professor de flauta no Imperial Conservatório de Música em 1871. Organizou o conjunto O Choro Carioca, um dos mais famosos grupos do Rio na época. Influenciou na formação instrumental básica do regional. Callado compôs em torno de 70 obras, entre as quais uma das mais conhecidas é a polca Uma Flor Amorosa (1880), tema consagrado no repertório tradicional das rodas de choro em todo o país até hoje. Por ter sido o primeiro grande flautista do choro, e por seu legado de inovação e influência, é considerado o “pai dos chorões” (BLOES, 2006; CASTAGNA, 2003; DINIZ, 2003, 2008). FIGURA 35 – RETRATO DO FLAUTISTA JOAQUIM CALLADO, POR ANGELO AGOSTINI

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

DICAS

Ouça composições de Joaquim Callado: • Querida por todos, escrita em homenagem a Chiquinha Gonzaga (c.1867): youtu.be/FooDQiAL3UM. Ouça a polca Uma Flor Amorosa (1880), uma das melodias mais conhecidas de Callado, em dois estilos de interpretação diferentes – o primeiro gravado em c.1904, e o segundo, nos dias atuais – em: bit.ly/2Qg1mYq e youtu.be/nymVeYdlY4k.

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

• Chiquinha Gonzaga (Francisca Edwiges Neves Gonzaga; 1847-1935), pianista, compositora e regente. Entrou no mundo dos chorões por meio de Joaquim Callado. Aos 29 anos, depois de dois casamentos desfeitos, sobrevivia ensinando piano; ganhou fama com a polca Atraente, em 1877. Por volta de 1883, passou a compor música para peças de teatro, operetas e teatro de revista, “sofrendo, no entanto, o preconceito dos empresários do setor por sua condição de mulher e separada” (CASTAGNA, 2003, p. 8). Além das polcas e maxixes para piano e da música teatral que deram notoriedade a sua obra, em 1899 compôs sua primeira marcha carnavalesca, Ó, Abre Alas!, que foi um grande sucesso no Carnaval de 1902 e se tornou um “protótipo” do gênero (MAGALDI, 2001, s.p.). Sua atuação como compositora deixou uma grande contribuição para o repertório pianístico popular do Brasil; Chiquinha “não hesitou em incorporar ao seu piano toda a diversidade que encontrou, sem preconceitos. Assim, terminou por produzir uma obra fundamental para a formação da música brasileira” (DINIZ, 2011, s.p.). Sua opereta A Corte na Roça, apresentada em 1885, foi a primeira obra teatral brasileira a ter música composta por uma mulher, cuja estreia foi sob sua regência. Assim, Chiquinha Gonzaga foi também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Outra de suas operetas, Forrobodó, de 1912, foi apresentada em torno de 1.500 vezes. Em 1917, atuou na fundação da primeira instituição brasileira de proteção aos direitos autorais (BLOES, 2006; CASTAGNA, 2003; DINIZ, 2003; DINIZ, 2011; MAGALDI, 2001; RITTO, 2016).

FIGURA 36 – CHIQUINHA GONZAGA EM 1877

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

DICAS

Ouça algumas composições famosas de Chiquinha Gonzaga: • Atraente, polca, de 1877: youtu.be/o8rB0ofBYR8. • Gaúcho (corta-jaca), maxixe/tango brasileiro, de 1895; conheça em duas versões: youtu.be/T7PlEGSOIK0 e youtu.be/4wfrA54BMZg. Acesse partituras de obras de Chiquinha Gonzaga em: www.chiquinhagonzaga.com/ acervo.

• Anacleto de Medeiros (1866-1907), compositor, instrumentista e regente da famosa Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro. Com o grupo, o maestro Anacleto deixou alguns dos primeiros registros fonográficos do repertório que estava em voga entre as bandas e grupos de choro da virada do século.

TUROS ESTUDOS FU

Discorreremos adiante o surgimento da gravação sonora e o início do mercado fonográfico no Brasil.

FIGURA 37 – ANACLETO DE MEDEIROS E A BANDA DO CORPO DE BOMBEIROS

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

NOTA

O compositor Henrique Alves de Mesquita, ligado ao movimento da ópera nacional, foi o principal professor dos primeiros chorões. Entre seus alunos estavam Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Joaquim Callado e Viriato Figueira (DINIZ, 2008).

• Ernesto Nazareth (1863-1934), compositor e pianista. Começou a compor na adolescência, escrevendo aos 14 anos a polca-lundu Você bem sabe. No Rio de Janeiro, tocava em cafés e em antessalas de cinemas, como o Cine Odeon; “boa parte do público ia até o cinema só para ouvir o pianista e não ficava para a exibição do filme” (RITTO, 2016, p. 83). Esta rotina o inspirou a escrever o tango brasileiro Odeon (1909), uma de suas obras mais famosas. O compositor também mantinha certo contato com músicos do meio erudito, e sua música era elogiada por Luciano Gallet e Darius Milhaud. Nazareth ainda tocou em uma pequena orquestra que tinha Heitor Villa-Lobos como violoncelista. Compôs cerca de 200 obras, a maioria delas para piano. Peças como Brejeiro (1893) e Apanhei-te, cavaquinho! (1914) se tornaram clássicos do repertório de choro (CASTAGNA, 2003; DINIZ, 2003; RITTO, 2016).

FIGURA 38 – ERNESTO NAZARETH EM 1926

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

DICAS

Ouça obras para piano de Ernesto Nazareth: • Odeon, tango brasileiro (1909): youtu.be/_KvW6Ijk-X4. • Escorregando, choro (1923): youtu.be/cEbqVj6XYKU. • Apanhei-te, cavaquinho (1914): youtu.be/X5_3mgt4iYc. Saiba mais sobre o compositor, acesse: www.ernestonazareth150anos.com.br.

NOTA

Na bibliografia sobre história da música brasileira, Ernesto Nazareth aparece citado tanto por autores que escrevem sobre música erudita – como Vasco Mariz (2000) – quanto por aqueles que tratam da música popular. Sua obra costuma ser vista como um importante encontro entre tradições, um cruzamento que desafiou categorizações e a dicotomia popular/erudito. Nazareth escrevia música popular com um alto grau de sofisticação, contendo traços do tratamento harmônico, textura e forma oriundos da escrita pianística do século XIX – sonoridades que remetem a compositores como Chopin, uma de suas principais influências (RITTO, 2016; WISNIK, 2007). “Suas valsas, polcas e tangos, ao mesmo tempo que incorporavam a rítmica da música popular, utilizavam refinada harmonia romântica” (CASTAGNA, 2003, p. 9).

• Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho; 1897-1973), compositor, arranjador, flautista e saxofonista, um dos nomes mais importantes da história da música brasileira. Começou a tocar cavaquinho com dez anos de idade. Teve contato com a flauta na adolescência, e aos 15 anos já era conhecido por seu virtuosismo e capacidade de improvisação no instrumento. Por volta de 1918, Pixinguinha e outros músicos formaram um dos últimos grandes conjuntos instrumentais de chorões da Belle Époque, o grupo Os Oito Batutas, que tinha a participação de João Pernambuco, Donga e outros nomes proeminentes da cena musical carioca. Autor de Carinhoso – talvez o tema mais conhecido de todo o repertório do choro –, Naquele tempo, Rosa (c.1917), Lamentos (c.1928), Pixinguinha deixou uma extensa obra e foi essencial no amadurecimento e na consolidação do choro como gênero musical (CASTAGNA, 2003; DINIZ, 2003).

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

FIGURA 39 – OS OITO BATUTAS EM 1919; PIXINGUINHA ESTÁ À DIREITA, COM A FLAUTA

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

DICAS

Ouça gravações originais de Pixinguinha: Pixinguinha e seu Conjunto (1941): • Carinhoso (c.1920?): youtu.be/Jy5Dl8GwC1w. • Lamentos (c.1928): youtu.be/XI7ZVxv2KT8. Pixinguinha e Benedito Lacerda (1946): • Naquele tempo (c.1917): youtu.be/Ml-1tS_o9tM. Conheça gravações e partituras disponibilizadas pelo Instituto Moreira Salles, no vasto acervo digital dedicado ao compositor, em: pixinguinha.com.br.

NOTA

No choro, o estilo de interpretação sempre foi muito valorizado, sobretudo a expressividade melódica que caracterizou o gênero desde sua origem; envolvendo a improvisação e o virtuosismo, esse aspecto situa o solista em um papel de especial importância. Assim, o choro se tornou uma escola de grandes músicos de cavaquinho, bandolim, clarinete, saxofone e outros instrumentos. Nessa tradição se destacam sobretudo os flautistas, como Joaquim Callado e Pixinguinha; além destes, podemos citar outros grandes flautistas: • Viriato Figueira da Silva (1851-1883). • Agenor Bens (c.1870-c.1950). • Patápio Silva (1880-1907). • Benedito Lacerda (1903-1958). • Altamiro Carrilho (1924-2012).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

A tradição do choro seguiu atraindo artistas e músicos, e, passada a fase da Belle Époque, continuaria sendo uma tendência relevante da música brasileira ao longo do século XX – mesmo com certo declínio que o gênero sofreu nas décadas de 1950 e 60 (ARAGÃO, 2015; TINHORÃO, 2002). Surgiram grupos importantes como o Conjunto Regional de Benedito Lacerda, que, além de ajudarem a consagrar o repertório “clássico” dentro do gênero, também tiveram um papel decisivo na consolidação do regional, formação instrumental surgida nos tempos de Joaquim Callado. Com algumas variações, a tradição do regional chegou ao século XXI – assim como a própria tradição do choro, que se mantém viva por meio de encontros, festivais, e até escolas de música dedicadas ao gênero, o que se deve em parte a movimentos de resgate do choro ocorridos nas décadas de 1970 e 90 (ARAGÃO, 2015).

NOTA

Outros músicos importantes do choro: • Zequinha de Abreu (1880-1935), compositor do clássico Tico-tico no fubá (1917). • Jacob do Bandolim (1918-1969), ligado ao regional Época de Ouro, fundado em c.1960. • Waldir Azevedo (1923-1980), bandolinista e cavaquinista, autor de Brasileirinho (c.1949). • Raphael Rabello (1962-1995), violonista virtuose ligado ao revival do choro nos anos 1970.

4 NOVO SÉCULO, NOVAS TENDÊNCIAS A primeira tecnologia de gravação sonora remonta a 1857, quando Édouard-Léon de Martinville (1817-1879) desenvolveu o fonoautógrafo, que registrava graficamente as vibrações sonoras e não tinha a capacidade de reproduzir o som gravado; o dispositivo era destinado somente a estudos de acústica. Registrar sons através do gravador também concretizou uma das grandes utopias da arte musical ocidental, acabando com a efemeridade das configurações sonoras, que só podiam ser transmitidas e preservadas mudas como partituras. Agora podiam ser fixadas e repetidas – assim como também as imagens e os objetos no domínio das artes plásticas – mantendo-se sempre disponíveis a um grande número de pessoas. Assegurou-se assim um grande repertório de música que soa e ressoa, independentemente de partituras, beneficiando, inclusive, inúmeros gêneros musicais de tradição oral de todo o mundo, que, antes da era do fonógrafo, estavam fadados ao desaparecimento (OLIVEIRA PINTO, 2008, p. 102)

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

A música está presente em quase todas as atividades cotidianas que realizamos. [...] Anteriormente ao surgimento de um suporte físico para a música e seu consequente armazenamento, sua audição dependia da execução ao vivo dos músicos, existindo somente naquele momento (RUIZ; LEMINSKI, 2010, p. 678).



Em 1877, Thomas Edison (1847-1931) desenvolveu o fonógrafo, mecanismo que registrava os sons em um cilindro revestido com uma folha de estanho e que permitia reproduzir o que havia sido gravado. A intenção de Edison era reproduzir mensagens de voz falada. Vários inventores fizeram tentativas de aperfeiçoar o processo inventado por Edison, e logo começariam os primeiros registros de música. Em 1887, Emile Berliner (1851-1929) criou o gramofone, um dispositivo de manuseio mais prático que, em vez de cilindros, reproduzia discos, os quais eram gravados por intermédio de um processo que permitia que fossem posteriormente copiados em grande número. Todavia, tanto o fonógrafo quanto o gramofone eram sistemas rudimentares baseados em um processo meramente mecânico, em que o som provinha da tênue vibração da agulha na superfície dos discos e cilindros, sendo amplificada acusticamente por uma espécie de corneta. Mais tarde, o mercado fonográfico ganhou uma inovação revolucionária: a gravação elétrica, que melhorou substancialmente a qualidade sonora da gravação. Por volta de 1925, companhias como a Victor Talking Machine Company começariam a gravar discos com equipamento elétrico; e em 1935, a gravação em fita magnética foi lançada pela empresa alemã Basf (CASTAGNA, 2003; FRITH, 2007; GONÇALVES, 2011; HOLMES, 2006; RUIZ; LEMINSKI, 2010; TINHORÃO, 2004).

FIGURA 40 – HIS MASTER’S VOICE, PINTURA DE BARRAUD (1856-1924)

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

O marco inicial da atividade fonográfica no Brasil foi a fundação da Casa Edison em 1902, no Rio de Janeiro, por iniciativa do empresário tcheco-americano Fred Figner (1866-1947). Naquele ano, foi lançado o lundu Isto é Bom, de autoria de Xisto Bahia (1841-1894), interpretado pelo cantor Baiano (Manuel Pedro dos Santos; 1870-1944), sendo a primeira gravação sonora em disco realizada no Brasil (CASTAGNA, 2003; FRANCESCHI, 2002; GONÇALVES, 2011; VEDANA, 2006). 167

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

Os discos eram chamados de “chapas”, e logo se popularizaram. As vendas cresceram rapidamente, e, assim, muitas das tendências da música popular urbana que vinham se concretizando desde o final do século XIX foram incorporadas pelo novo mercado; vários grupos de chorões, por exemplo, tiveram músicas gravadas, e o advento da fonografia foi também um dos fatores que ajudaram a consolidar o choro (ARAGÃO, 2015; CASTAGNA, 2003; GONÇALVES, 2011; OLIVEIRA, 2013).

FIGURA 41 – BAIANO (1870-1944), UM DOS PRINCIPAIS INTÉRPRETES DA CASA EDISON

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

FIGURA 42 – ANÚNCIO DA CASA EDISON

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

DICAS

Conheça um pouco das origens da fonografia no Brasil ouvindo gravações da Casa Edison: • Isto é Bom, lundu de Xisto Bahia, gravado pelo cantor Baiano em 1902 – primeira gravação em disco realizada no Brasil: youtu.be/Pn08p-sNf9o. • Cruzes, minha prima! (c.1875), polca de Joaquim Callado interpretada pelo flautista Agenor Bens (gravação c.1913): youtu.be/2p0w6F_C9s8. • Brejeiro (1893), de Ernesto Nazareth, gravado em c.1904 por Anacleto de Medeiros e a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro: youtu.be/rhBOccqPnOw.

A partir de c.1912, foi implantada a primeira fábrica de discos no Brasil, a Odeon, que passou a produzir os discos da Casa Edison (que até esta data eram fabricados fora do país). O crescente mercado estimulou o surgimento de outras empresas fonográficas na mesma época, como a Casa A Eléctrica, estabelecida em c.1911, em Porto Alegre. A gravadora rio-grandense lançou a marca Discos Gaúcho e começou a gravar artistas em 1913; e em 1914, passou contar com sua própria fábrica de discos (FRANCESCHI, 2002; VEDANA, 2006).

4.1 O SAMBA O samba emergiu como um fenômeno da música urbana ambientado no século XX, mas suas origens, ligadas a raízes culturais rurais no Rio de Janeiro e na Bahia, remontam a tempos anteriores (BÉHAGUE, 2001; OLIVEIRA, 2016). Originalmente, a palavra samba não necessariamente correspondia a nenhum tipo específico de música, pois, sendo uma derivação dos antigos batuques, denotava a dança e o evento social em que ela ocorria (FRYER, 2000). O samba se transformou em gênero musical ao passar por uma transição entre suas origens rurais e o mundo urbano, recebendo os influxos da recente música popular moderna: “pouco a pouco, o samba já não será mais só da Bahia, nem só da roça, nem só dos negros” (SANDRONI, 2001, p. 90).

4.1.1 Origens do samba urbano Migrações ocorridas na década de 1890 e nas primeiras décadas do século XX levaram muitos afro-brasileiros originários da Bahia a se estabelecerem no Rio de Janeiro. Comunidades de baianos traziam na sua bagagem musical o samba de roda, dança que se desenvolveu nas regiões agrícolas da Bahia, especialmente em torno da área do Recôncavo; a ligação com os batuques aparece na própria raiz do termo samba, que pode estar em semba, palavra de origem angolana para “umbigada” (BÉHAGUE, 2001; CASTAGNA, 2003; FRYER, 2000). 170

TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

Habitando áreas no centro do Rio, essas populações praticaram sua música no cotidiano carioca principalmente por meio das casas das “tias baianas” – senhoras mais velhas que tinham um papel de liderança nas comunidades (SCHWARCZ; STARLING, 2018) –, onde era comum que acontecessem festas dançantes, além de saraus de choro. Nesse contexto, a personagem mais célebre foi Hilária Batista de Almeida (1854-1924), conhecida como Tia Ciata; sua casa era um ponto de encontro de músicos e compositores como Pixinguinha, Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos; 1890-1974), João da Baiana (João Machado Guedes; 1890-1974), Sinhô (José Barbosa da Silva; 1888-1930). FIGURA 43 – DONGA, PIXINGUINHA E JOÃO DA BAIANA

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

Os saraus da casa da Tia Ciata são considerados uma pista importante para rastrear as origens do samba urbano, sobretudo por causa de Pelo Telefone, o primeiro samba a ser gravado em disco, de 1917 – que apesar de ter a autoria registrada por Donga, teria surgido como um canto de autoria coletiva e anônima que era parte do repertório das festas da casa. Pelo Telefone também foi um hit no carnaval daquele ano. Questões sobre a autoria à parte, na gravação é perceptível a semelhança entre o samba e o maxixe, característica dos sambas mais antigos (BÉHAGUE, 2001; FRYER, 2000; SANDRONI, 2001; SCHWARCZ; STARLING, 2018).

DICAS

Ouça a gravação original de Pelo Telefone (c.1917), em: bit.ly/38PDuRR.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

FIGURA 44 – SELO DO DISCO CONTENDO A GRAVAÇÃO DE PELO TELEFONE, ODEON/CASA EDISON

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

No período de 1917 a c.1930 ocorreu a ascensão do samba, havendo uma fase de maturação durante os anos 1920, que o consolidou como gênero da música popular urbana (BÉHAGUE, 2001; CASTAGNA, 2003; SANDRONI, 2001). O principal fenômeno que ocorre com o samba nas décadas de 10 e 20, em decorrência de sua urbanização, é semelhante ao que ocorreu com o maxixe. Sem perder o caráter de dança cantada, o samba urbano foi perdendo o caráter de dança de roda improvisada e se transformando em dança de pares nos salões ou dança de blocos nos bailes de carnaval. Além disso, seu canto foi sendo conformado aos padrões verificados nas danças de salão ou de chorões, que exigia maior variedade harmônica e melódica e utilização de um instrumental cada vez mais rico, como o das “orquestras típicas” da década de 20 (CASTAGNA, 2003, p. 3).



A Belle Époque da música popular no Rio de Janeiro ainda seria marcada pelo advento de um novo estilo de samba, que se tornou bastante influente: o samba do Estácio, que se originou no bairro carioca Estácio de Sá no final dos anos 1920. Isso causou uma separação, com uma nova categoria que se distinguia do samba considerado “antigo”, associado aos músicos da casa da Tia Ciata, como Pixinguinha e Donga (SANDRONI, 2001). “O tipo de samba que teria sido criado no Estácio logo se difundiu, influenciando os compositores de outras áreas da cidade, generalizando-se e tornando-se um sinônimo de samba moderno, de samba tal qual o reconhecemos hoje em dia” (SANDRONI, 2001, p. 131). O samba do Estácio, um samba “carioca”, se distanciou dos resquícios de maxixe do samba antigo, “baiano”, passando a se basear em novas fórmulas rítmicas, como o exemplo a seguir, em que Sandroni (2001) chama de “padrão do tamborim”.

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

FIGURA 45 – O “PADRÃO DO TAMBORIM” DO SAMBA DO ESTÁCIO

FONTE: Adaptada de Sandroni (2001, p. 34)

Na história do samba, o estilo do Estácio costuma ser associado a compositores como Ismael Silva (1905-1978), Bide (Alcebíades Barcelos; 19021975), Noel Rosa (1910-1937) (SANDRONI, 2001). FIGURA 46 – NOEL ROSA

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

DICAS

Ouça a gravação original de Com que roupa? de Noel Rosa (c.1930), em: youtu.be/2drjG0j-xNo.

4.1.2 Subgêneros do samba Na década de 1920 iniciou-se o processo de ramificação do samba em subgêneros variados. Nessa década, o samba passou a ter maior destaque no carnaval com o surgimento das primeiras escolas de samba no Rio de Janeiro, dando origem ao samba-enredo; nos bailes e clubes, transformou-se em uma 173

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

espécie de dança de salão moderna acompanhada por orquestra, originando o samba de gafieira; e a fusão com elementos do choro gerou um híbrido, o sambachoro. Assim, a partir de 1930, sua aceitação nos mais diferentes contextos sociais fez com o que o samba se diversificasse cada vez mais, sendo o gênero mais importante da música popular até o surgimento da bossa-nova na década de 1950 (BÉHAGUE, 2001; CASTAGNA, 2003; KRAUSCHE, 1983; SANDRONI, 2001). Outras ramificações do samba urbano incluem: • O samba-canção, também chamado de samba de meio de ano, que, contrastando com os sambas alegres e dançantes da época de carnaval, tinha um caráter mais introspectivo, com letras melancólicas, ênfase na melodia, andamento mais lento e harmonia elaborada. • O samba de morro (ou batucada) e o samba de partido alto, remanescentes do samba de roda (o samba rural), essencialmente percussivos, possuindo elementos em comum, como o canto responsorial em roda com versos improvisados. • O samba comercial clássico, produzido entre c.1930 e 1950, que projetou intérpretes como Carmen Miranda (1909-1955), Francisco Alves (1898-1952), Elizeth Cardoso (1920-1990). • O samba-exaltação, uma forma de samba-canção com tema laudatório, geralmente exaltando a pátria; o exemplo mais conhecido é Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso, que ganhou elaborado arranjo orquestral de Radamés Gnattali. • O samba-de-breque, caracterizado por pausas (break) que dão espaço para improvisos e falas, normalmente tem caráter bem-humorado; se popularizou através de artistas como Moreira da Silva (1902-2000).

NOTA

Alguns compositores importantes da história do samba: • • • • • • • •

Heitor dos Prazeres (1898-1966). Ary Barroso (1903-1964). Cartola (Angenor de Oliveira; 1908-1980). Ataulfo Alves (1909-1969). Adoniran Barbosa (João Rubinato; 1910-1982). Assis Valente (1911-1958). Nelson Cavaquinho (Nelson Antônio da Silva; 1911-1986). Wilson Batista (1913-1968).

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

FIGURA 47 – CARMEN MIRANDA (1938)

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

DICAS

Ouça alguns exemplos de subgêneros do samba: • Samba-choro: E o mundo não se acabou, de Assis Valente, gravado por Carmen Miranda em 1938: youtu.be/abVNWgeonOY. • Samba-de-breque: Acertei no milhar, de Geraldo Pereira e Wilson Batista, gravado em 1940 por Moreira da Silva: youtu.be/3RFU0-bjNO4. • Samba-canção: Preciso Me Encontrar (1976), de Cartola: youtu.be/VPgBKEECkMw. • Samba-exaltação: Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, gravação de 1939, com Francisco Alves e arranjo orquestral de Radamés Gnattali: youtu.be/faPQcBEjsjU.

4.2 A MÚSICA E O RÁDIO Desde seu início, a radiodifusão no Brasil, enquanto fenômeno de massa, causou profundas transformações culturais. O rádio concretizava um ideal de integração nacional por meio da comunicação, encurtando as distâncias continentais do país; assim, seu advento causou um impacto significativo na produção, na recepção e no consumo da música popular. Ícone de modernidade até a década de 1950, [o rádio] cumpriu um destacado papel social tanto na vida privada quanto na vida pública, promovendo um processo de integração que suplantava os limites físicos e os altos índices de analfabetismo do país (CALABRE, 2004, p. 7).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

NOTA

A radiodifusão teve origem nos Estados Unidos, onde por volta de 1920 surgiu a KDKA, a primeira emissora de rádio. Na Europa, rádios regulares começaram a operar regularmente na Inglaterra e na França em 1922. Nesse mesmo ano também aconteceria a primeira transmissão radiofônica no Brasil, em uma demonstração pública ocorrida em 7 de setembro, no Rio de Janeiro, durante a Exposição Nacional, evento que era parte das comemorações dos 100 anos da Independência. A primeira emissora de rádio brasileira surgiu em 1923, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada por Henrique Morize e Edgar Roquette Pinto. Nas décadas seguintes, apesar das dificuldades e do alto custo de equipamento e manutenção, a atividade radiofônica só crescia. Novas emissoras eram criadas todos os anos, e por volta de 1940 cerca de 70 empresas de rádio atuavam no Brasil (CALABRE, 2004; SCHWARCZ; STARLING, 2018).

Sendo o grande palco das novidades que surgiam na música da época, o rádio foi determinante para um novo tipo de profissionalização da atividade musical, estimulando a formação de um novo mercado de trabalho para músicos, cantores, compositores, arranjadores, copistas – sobretudo devido à programação baseada na transmissão de performances musicais executadas ao vivo em grandes auditórios com plateia. Em 1928, as rádios começaram a transmitir programas dedicados à música popular. No Rio, emissoras maiores mantinham suas próprias orquestras, empregavam instrumentistas e regentes, e tinham contratos com artistas como Carmen Miranda, Linda Batista e Francisco Alves (CALABRE, 2004; OLIVEIRA, 2013, 2016). Por volta de 1932, quando a legislação passou a permitir a veiculação radiofônica de anúncios, surgiu um “mercado potencial de produção de jingles”; com o rádio, “o mercado musical se transformou de tal forma que os anos 1930 e 1940 são chamados por alguns pesquisadores de ‘A Época de Ouro da Música Brasileira’” (OLIVEIRA, 2013, p. 5-6) O impacto que o rádio causou na música a partir década de 1930 é representado pelo surgimento de emissoras no Rio de Janeiro, como a Rádio Mayrink Veiga e a Rádio Nacional. O trabalho destas rádios revelou talentos como o compositor Radamés Gnattali. • Radamés Gnattali (1906-1988) foi pianista, compositor e arranjador. Devido a sua produção de música sinfônica, Radamés por vezes é citado na historiografia da música erudita como sendo um compositor da escola nacionalista; no entanto, seu nome também é associado à cena popular e à Rádio Nacional devido ao seu trabalho como arranjador. Em 1939, fez pela primeira vez um arranjo orquestral para um samba (Aquarela do Brasil, de Ary Barroso), o que é considerado um marco da inovação estilística na linguagem do arranjo. A peculiaridade e a importância de sua obra, portanto, situam Radamés Gnattali como um dos muitos exemplos de artistas brasileiros que representam os cruzamentos entre o popular e o erudito (BLOES, 2006; LIMA, 2008; STROUD, 2008; WISNIK, 2000?). 176

TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

DICAS

Em sua Suíte Retratos, estreada em 1964, Radamés Gnattali prestou uma homenagem a artistas da história do choro, sendo uma das obras mais notáveis do compositor: [a obra] conquistou ao longo dos anos um lugar cativo tanto no cenário da música de concerto quanto no ambiente do choro. [...] Estruturalmente, cada movimento é construído a partir de um modelo, ou seja, de cada compositor foi escolhida uma peça que serviria de roteiro para o processo criativo dos retratos. Assim, o primeiro movimento foi baseado no choro Carinhoso, de Pixinguinha; o segundo elaborado sobre a valsa Expansiva, de Ernesto Nazareth; o terceiro sobre o schottisch Três Estrelinhas, de Anacleto de Medeiros; e o movimento final sobre o maxixe Gaúcho, também chamado de “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga (LIMA, 2008, p. 1). Ouça versões da Suíte Retratos em: youtu.be/ZE-MLyoa7lI e youtu.be/ZCn957Zacbs.

FIGURA 48 – RADAMÉS GNATTALI EM 1950

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

O rádio foi igualmente um canal de recepção de novas tendências musicais estrangeiras, sobretudo de gêneros que circulavam entre países do Atlântico: formas musicais e danças vindas dos Estados Unidos, como o fox-trot, o swing e o one-step, e de países da América Latina, em especial da América Central e Caribe, como o bolero e a rumba (OLIVEIRA, 2013; TINHORÃO, 2004).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

4.3 REGIONALISMOS A década de 1930 foi uma fase em que a discussão sobre a identidade nacional estava fervendo no debate público, na imprensa, nas artes e na música (modernismo nacionalista), e nos círculos acadêmicos e intelectuais. O país, ainda jovem, com pouco mais de um século de independência e poucas décadas de república, encontrava-se dividido entre o ideal de modernidade e seu passado colonial e escravocrata ainda muito recente. Já discorremos sobre como a capital, Rio de Janeiro, era o grande centro cultural do país, e ao mesmo tempo um símbolo importante no imaginário da sociedade brasileira nessa dicotomia entre “urbano” e “rural”, “modernidade” e “atraso”. A partir do ano de 1930, no governo de Getúlio Vargas, houve novo crescimento na industrialização, e, por conseguinte, ocorreu um novo ciclo de aumento na população urbana. As migrações internas vindas do Nordeste e do centro do país se deslocavam em direção às capitais e traziam uma bagagem cultural bastante vinculada à vida do campo, à economia agrícola e à herança colonial das regiões interioranas do Brasil profundo, pois “a cultura da maioria das cidades brasileiras ainda tinha uma forte orientação rural” (BÉHAGUE, 2001, s.p.). Esse fator sociocultural fez com que a música popular urbana – e todo o mercado a ela atrelado, envolvendo fonografia e rádio – passasse a absorver manifestações dos vários tipos de “música regional” de caráter rural (OLIVEIRA, 2013).

FIGURA 49 – O VIOLEIRO, POR ALMEIDA JR. (1850-1899)

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

Se por um lado havia uma quantidade expressiva de gêneros musicais que vinham se consolidando na cena musical do Rio, por outro, muitas das manifestações musicais do país estavam alheias àquela movimentação cultural centrada na capital, por existir uma oposição bastante acentuada entre o Rio de Janeiro (em posição hegemônica) e as demais regiões. 178

TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

Nos anos 30 a ideia de “cultura popular urbana” era dada pela cultura popular do Rio de Janeiro, pois a capital federal era o modelo, o paradigma, de “urbanidade” e “civilização”. [...] Neste processo, outros gêneros musicais, embora extremamente populares em todo o país, foram deslocados para a ideia de “regional” (OLIVEIRA, 2013, p. 4).

Esse contexto, no entanto, começou a mudar a partir das décadas de 1930 e 40. A ascensão da radiodifusão logo transformou o cenário, e vários artistas de norte a sul se tornaram conhecidos em âmbito nacional. As emissoras de rádio cariocas, sobretudo a Rádio Nacional, tiveram um papel essencial na circulação de culturas musicais populares vistas como periféricas em relação à capital, e em certo ponto esta delimitação “urbano” versus “rural” se tornou nebulosa. Assim começa a absorção de uma forma de música também considerada “regional”, a música caipira – ou música sertaneja: Seu nome faz referência à palavra “sertão”, que tem seu significado relacionado ao interior, ao campo e às zonas rurais. Historicamente, o termo “sertão” se desenvolveu como oposto ao urbano. Durante o século XIX, com a progressiva intensificação da vida urbana no país – simbolizada pela cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil entre 1763 e 1960 – todas as áreas do país, excluindo as áreas urbanas, eram denotadas como “sertão”. A expressão “música sertaneja” surge na Belle Époque e denotava gêneros musicais de fora do Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2013, p. 2-3).

Oliveira (2013) explica que, inseridos no mercado fonográfico e radiofônico, os gêneros musicais passaram por um processo de estabilização e diferenciação durante as décadas de 1930 e 40, e o significado de “sertanejo” como sinônimo de tudo que estivesse “fora do Rio de Janeiro” começou a dar lugar à conotação de “música do centro-sul” – de regiões interioranas sobretudo do Sudeste –, “uma área também denotada pela palavra caipira, em um quadro que se completou na segunda metade dos anos 40” (OLIVEIRA, 2013, p. 6). Começava a se desconstruir, portanto, a ideia de polarização entre vida urbana e “sertão”, bem como a noção que reunia toda e qualquer cultura de “fora da capital” sob os termos guarda-chuva “sertão”, “sertanejo” e “regional”. Ao mesmo tempo, criava-se aos poucos uma distinção entre o “sertanejo” (de regiões do interior de São Paulo, Minas Gerais, Goiás etc.) e a cultura de outras partes do país, como o Nordeste, e o extremo Sul, personificados em artistas como Luiz Gonzaga e Pedro Raymundo. As primeiras gravações de música sertaneja foram lançadas em 1929, por influência do paulista Cornélio Pires (1884-1958), que atuava como pesquisador e divulgador da cultura caipira, publicando livros com textos e poesias que coletava, promovendo apresentações musicais e teatrais. Pires incentivou a gravação de música caipira, e entre os primeiros artistas a serem gravados estavam as duplas Mandi e Sorocabinha e Mariano e Caçula (MATOS; FERREIRA, 2015; OLIVEIRA, 2013). 179

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

DICAS

Ouça gravações de época de música caipira: • Músicas gravadas por Mandi e Sorocabinha (c.1930), em: youtu.be/BP_SU43uUlg. • Toada de Cururu (1930), por Mariano e Caçula: youtu.be/aFNePgjoFk8.

Além da cultura caipira e da música sertaneja, a radiodifusão abriu portas para a diversidade de manifestações musicais espalhadas pelo país. Na programação das rádios Nacional e Mayrink Veiga era comum que fossem incluídos números musicais de artistas de vários lugares do Brasil, de norte a sul. Esse fato deu visibilidade à música de artistas regionais importantes, entre os quais podemos citar: • Pedro Raymundo (1906-1973), acordeonista, cantor e compositor, natural de Laguna (SC). A partir de 1929, fixou-se no Rio Grande do Sul; tocava um repertório variado, incluindo choro, valsas, jazz. Lá entrou em contato com o movimento tradicionalista gaúcho, interessando-se pelo folclore do Sul e os gêneros de música gauchesca. Em 1943, o músico fez sua primeira viagem ao Rio e se apresentou no auditório da Rádio Mayrink Veiga – trajado com a indumentária típica gauchesca –, com grande sucesso. Sua fama se confirmou no mesmo ano com a gravação da valsa Saudades de Laguna e do xote Adeus, Mariana; e em 1958, o artista já tinha gravado mais de 60 discos no formato 78 RPM (MARCON, 2009; SPINDOLA, 2014). FIGURA 50 – PEDRO RAYMUNDO

FONTE: Adaptada de . Acesso em: 29 out. 2020.

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

DICAS

Ouça duas músicas de Pedro Raymundo em gravações históricas feitas em 1943: • Saudades de Laguna, valsa instrumental: youtu.be/knd0zNNEsa8. • Adeus, Mariana, xote: youtu.be/zFY6BM14jgo.

• Luiz Gonzaga (1912-1989), cantor, compositor e acordeonista pernambucano. Foi um dos nomes mais importantes da música popular do Nordeste, que exerceu ampla influência sobre um grande número de artistas. Começou a aprender música com seu pai, o sanfoneiro Januário. Luiz Gonzaga também esteve entre os músicos regionais que ganharam visibilidade através das rádios cariocas. Abandonou o repertório de música estrangeira por volta do início da década de 1940 em favor da música nordestina; em 1941, na Rádio Nacional, obteve sucesso no programa de calouros conduzido por Ary Barroso. Tornouse conhecido com o baião, gênero cujo nome pode ter derivado do lundu baiano, uma variação nordestina do lundu. Em parceria com Humberto Teixeira, compôs alguns dos seus maiores sucessos, que lhe renderam a notoriedade nacional, como Baião (1946) e Asa Branca (1947). Ficou conhecido como “Rei do Baião” e “Gonzagão”. Sua obra e sua imagem ajudaram a firmar a música nordestina no cenário nacional. Em um fato curioso da sua carreira, Luiz Gonzaga, certa vez, teria se encontrado com Pedro Raymundo na Rádio Nacional, no Rio, e ao ver os trajes típicos usados pelo sulista, teria tomado a decisão de usar a indumentária de vaqueiro tradicional do Nordeste (COSTA, 2012; FRYER, 2000; MARCON, 2009; OLIVEIRA, 2013). “Quando Pedro Raymundo veio para cá vestido até os dentes de gaúcho, eu me senti nu. Eu disse: por que é que o Nordeste não tem sua característica? Eu tenho que criar um troço. Só pode ser Lampião... Vou imitar esse senhor, mas ninguém vai perceber que eu estou imitando. Ele é gaúcho, eu vou ser cangaceiro” – Luiz Gonzaga, entrevista concedida a Ziraldo; Pasquim, 1971 (MANN, 2002 apud MARCON, 2009, p. 85-86).

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

FIGURA 51 – LUIZ GONZAGA EM 1955

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

DICAS

Ouça gravações históricas de Luiz Gonzaga: • Baião (1946): youtu.be/TaZfkQAx4vk. • Asa Branca (1947): youtu.be/YWjqdlIL1Ao.

• Jackson do Pandeiro – José Gomes Filho (1919-1982), compositor e intérprete paraibano; ao lado de Luiz Gonzaga, é outro artista proeminente na história da música nordestina, e talvez um dos nomes mais influentes entre os artistas da música popular brasileira. Sua carreira iniciou em meados da década de 1940, com um repertório voltado quase que exclusivamente ao samba. Todavia, o grande sucesso de Sebastiana em 1953 causou uma mudança em sua trajetória, e seu nome e imagem permaneceram definitivamente associados à música nordestina e a formas musicais reunidas sob o termo forró. Sua esposa Almira Castilho (1924-2011) foi sua parceira de composição, gravação e palco. O “Rei do Ritmo” tinha um estilo de cantar muito pessoal, repleto de improvisos e variações nas melodias, sincopando, deslocando e “quebrando” habilmente o ritmo das frases. Foi um grande entusiasta do coco, gênero oriundo de áreas litorâneas do Nordeste, além do baião e outros ritmos regionais, e deixou uma extensa obra discográfica. Embora seja um pouco mais tardio em relação ao recorte que estamos analisando, é importante situar que, assim como ocorreu com outros artistas, sua carreira foi beneficiada pela abertura dada na mídia, nas décadas anteriores, às sonoridades regionais (ALTIERI DE CAMPOS, 2016; KRAUSCHE, 1983). 182

TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

FIGURA 52 – JACKSON DO PANDEIRO

FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

DICAS

Conheça um pouco da obra de Jackson do Pandeiro: • Sebastiana (1953), coco, gravação de 1972: bit.ly/2GC9Qaq. • Cantiga do Sapo (1959): youtu.be/nChyVUae-_w. • Chiclete com Banana (1959), samba-coco: youtu.be/HchlpECpogo.

5 CRONOLOGIA QUADRO 3 – EVENTOS HISTÓRICOS

ANO

EVENTO

1870-1920

Fenômeno dos chorões durante o período da Belle Époque da música brasileira.

1870

Rio de Janeiro: surgimento do maxixe.

1877

Atraente, polca de Chiquinha Gonzaga.

1877

Thomas Edison inventa o fonógrafo.

1880

Uma Flor Amorosa, polca de Joaquim Callado.

1885 1887 1888 1889

A Corte na Roça, opereta de Chiquinha Gonzaga. Emile Berliner desenvolve o gramofone. Lei Áurea. Proclamação da República.

1893

Brejeiro, de Ernesto Nazareth.

183

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

1896

Fundação da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, sob regência de Anacleto de Medeiros.

1899

Ó, Abre Alas!, marcha carnavalesca de Chiquinha Gonzaga.

c.1912

Rio de Janeiro: fundação da Casa Edison por Fred Figner; primeira gravação: Isto é Bom, lundu de Xisto Bahia, pelo intérprete Baiano. Reformas urbanas no Rio de Janeiro. Odeon, tango brasileiro de Ernesto Nazareth. Porto Alegre: fundação da gravadora Casa A Eléctrica e da marca Discos Gaúcho. Rio: início da fabricação de discos pela Odeon para a Casa Edison.

1917

Pelo Telefone, primeiro samba gravado em disco.

1917

Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu.

c.1918 1920 c.1920

Formação do grupo Os Oito Batutas. Primeira emissora de rádio, nos Estados Unidos. Carinhoso, de Pixinguinha.

1922

Primeira transmissão radiofônica no Brasil.

1923

Rio: fundação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.

c.1925

Gravação elétrica.

1926

Rio: fundação da Rádio Mayrink Veiga.

1929

Música sertaneja entra na indústria fonográfica por meio de Cornélio Pires.

1930 c.1930

Início do primeiro governo de Getúlio Vargas. Com que roupa? de Noel Rosa.

1934

Formação do Conjunto Regional de Benedito Lacerda.

1934

Alemanha: Companhia Basf cria a fita magnética.

1936

Rio de Janeiro: início das atividades da Rádio Nacional. E o mundo não se acabou, samba-choro de Assis Valente, gravado por Carmen Miranda. Aquarela do Brasil, de Ary Barroso; arranjo de Radamés Gnattali. Adeus, Mariana, xote de Pedro Raymundo. Baião, de Luiz Gonzaga. Brasileirinho, de Waldir Azevedo. Sebastiana, coco, por Jackson do Pandeiro.

1902 1904-06 1909 c.1911

1938 1939 1943 1946 c.1949 1953

FONTE: O autor

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TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

DICAS

A seguir, alguns acervos digitais para você explorar. • Acervo Cleofe Person de Mattos: www.acpm.com.br. • Acervo Curt Lange: curtlange.lcc.ufmg.br. • Acervo digital Chiquinha Gonzaga: www.chiquinhagonzaga.com/acervo. • Acervo digital Ernesto Nazareth 150 Anos: www.ernestonazareth150anos.com.br. • Acervo Musical do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro: www.acmerj.com.br. • Arquivo Nacional: arquivonacional.gov.br. • Biblioteca Alberto Nepomuceno, Escola de Música da UFRJ – acervo digital: www. docpro.com.br/escolademusica/bibliotecadigital.html. • Biblioteca Nacional: bndigital.bn.gov.br. • Biblioteca Nacional da França – biblioteca digital Gallica: gallica.bnf.fr. • Catálogo de publicações de Música Sacra e Religiosa Brasileira (séculos XVIII e XIX): musicasacrabrasileira.com.br. • Funarte: www.funarte.gov.br. • IMSLP – International Music Score Library Project: imslp.org. • Instituto Antônio Carlos Jobim: jobim.org/acervodigital. • Instituto Moreira Salles: ims.com.br/acervos/musica. • Museu da Inconfidência – base de dados de musicologia MIMUS: musicologia.museus. gov.br. • Museu da Música de Mariana: mmmariana.com.br. • Open Music Library: openmusiclibrary.org. • Pixinguinha 120 anos – IMS: pixinguinha.com.br. • Portal Domínio Público – biblioteca digital: www.dominiopublico.gov.br. • Repertório Internacional de Iconografia Musical no Brasil: www.ridim-br.mus.ufba.br. • Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora: slaveryimages.org.

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UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

LEITURA COMPLEMENTAR A CANÇÃO COMO ANTROPOLOGIA Allan de Paula Oliveira Introdução Em sua narrativa sobre a história da música nos últimos 250 anos, Tim Blanning (2012) chama a atenção do leitor para a onipresença da música na vida moderna. Exatamente por esta razão, o título de seu livro é o “Triunfo da Música”: o que se observa nestes dois séculos e meio é o alargamento e a expansão cotidiana da experiência musical, em um nível inaudito. Blanning dá a sua narrativa o índice de uma redenção. O leitor sai de seu livro com um certo “otimismo” com relação à forma como a modernidade – entendida como o estilo de vida no Ocidente nos últimos 250 anos – expandiu a experiência da música. Outros autores, alguns já transformados em clássicos da literatura sobre música e sociedade (SCHAFER, 1994; ATTALI, 2009) também desenvolveram tal tema, observando-o, contudo, de forma mais crítica e apontando aspectos negativos desta expansão cotidiana da música. Música ambiente, vinhetas em aparelhos telefônicos, propagandas, caixas de som em porta-malas de veículos: experiências que se tornaram opressoras. De certa forma, é tal opressão que fornece o pano de fundo para a expressão adorniana de “Regressão da Audição”. Independentemente do valor dado a esta expansão cotidiana da experiência musical, minha proposta neste pequeno texto é chamar a atenção para uma forma específica deste espraiamento, uma forma musical tão cotidiana, prosaica, que se tornou a base do que chamamos de “música popular” no século XX: a canção. O escritor britânico Nick Horby, em uma obra autobiográfica intitulada “31 Songs” explora bem esse fato: como muito da memória individual no século XX está atrelada a canções. O mesmo se pode dizer da memória coletiva de um determinado grupo social ou geração. É o que transparece, por exemplo, no livro do jornalista norte-americano Mark Kulansky (2013), sobre “Dancing in the Street”, canção produzida no cenário da soul music em 1964 e que se tornou, junto com outras, o índice de um fenômeno importante da música popular nos EUA dos anos 1960: a confluência de universos musicais até então mantidos em paralelo – o soul, o folk e o rock. Enfim, se a evocação da memória no século XIX tinha fortes apelos visuais, onde deslocamentos espaciais apareciam como tópicas destacadas nos textos (PRATT, 2005), o século XX vai introduzir o elemento sonoro nestas evocações. E, neste sentido, a forma “canção” tem um papel de destaque. Não cabe aqui, pelos limites deste texto, uma definição de canção, embora uma definição talvez não seja possível. Vaz (2000) define-a como “campo sistêmico” que articula diversos domínios: letra e música, a voz, certos padrões de referencialidade. Seu texto, bastante devedor de uma abordagem semiótica, nos convida a lembrar que as canções são cantadas, ou seja, devem muito de seu 186

TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

estatuto ao fato de serem emitidas por alguém. A mesma ideia, também relacionada a leituras semióticas, aparece como central na abordagem, bastante influente no Brasil, de Luiz Tatit (1996). Menos devedores das ideias de Charles Peirce, mas muito atentos também à fato da canção ter na voz cantada um ponto central de sua prática, outros autores apontam na “performance” como categoria central de compreensão de significados da canção – vide a coletânea organizada por Cláudia Neiva de Mattos e outros autores (MATTOS; TRAVASSOS; MEDEIROS, 2001). Há autores que discutem o peso das letras – em geral um domínio que ganha destaque nas análises das canções, em detrimento da música (FRITH, 1989). Rafael José de Menezes Bastos, por sua vez, tenta recuperar tanto o aspecto melódico (MENEZES BASTOS, 1999) quanto o dos arranjos (MENEZES BASTOS, 2013) na produção de significados das canções. O mesmo, em grande medida, propõe Philip Tagg em texto onde propõe uma forma de análise da música popular (TAGG, 1982). Todos estes trabalhos operam menos por definições do que por delimitações da canção e é muito mais produtivo vê-los como complementares do que como excludentes. O que me interessa aqui, contudo, é uma outra dimensão da canção que, na falta de um termo melhor, chamarei de “antropológica”. Por ela, refiro-me ao fato de a forma canção articular, em uma unidade específica (em termos de forma e dimensão), diferentes tradições musicais. Em suma, ao fato da canção articular unidade e diferença, operando, em grande medida, uma redução desta última. Não é coincidência que o início do referido espraiamento da forma canção em um nível mundial tenha ocorrido de forma contemporânea ao desenvolvimento da antropologia: ambas são produto de um momento da história moderna onde o Ocidente toma consciência de si mesmo e cria mecanismos de produção, cristalização e redução das diferenças. O que este texto, de forma muito introdutória, pretende sugerir é que a forma canção é um destes mecanismos. A canção como forma moderna O uso da canção como forma de expressão musical tem, no final do século XIX e começo do século XX, um momento importante. Neste período a canção atrelou-se aos diversos gêneros de música popular que estavam se cristalizando enquanto gêneros discursivos. “Cristalizar-se enquanto gênero discursivo” significa adquirir uma certa estabilidade, reconhecida socialmente, em termos de estrutura, forma e conteúdo. Esta é a definição de “gêneros do discurso” dada por Bahktin (2003). O que a segunda metade do século XIX e as três primeiras décadas do século XX assistiriam foi este processo de cristalização de diversos gêneros da música popular: bolero, maxixe, danzón, tango, samba, son, jazz, blues, dentre outros. É importante frisar que esta cristalização nunca é um processo encerrado, o que dá a estes gêneros, internamente, uma dinâmica interna marcada por conflitos por definição. “O que é um samba?” nunca foi um consenso. Tampouco, um tango. No entanto, por volta de 1920, tanto o termo “samba” quanto o termo “tango” delimitavam uma prática musical reconhecível. Eram termos em torno dos quais a comunicação era possível. Esta possibilidade de uso na comunicação é central na compreensão do que Bahktin entende por “estabilidade” do gênero discursivo. 187

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

O caso do samba pode nos oferecer um paradigma. Cristalizado a partir de uma série de processos sociais e musicais que foram intensificados no último quartel do século XIX – processo de migração de população pobre (majoritariamente negra) liberada pela desarticulação do sistema escravista, adensamento urbano e desenvolvimento do espaço do lazer na esfera pública no Rio de Janeiro, crescimento do carnaval como festa popular urbana, dentre outros – o samba torna-se “estável”, reconhecível de forma mais ampla, na década de 1910. Um mito das origens insiste em tomar 1917 como uma data de referência, a partir do uso do termo para denotar uma gravação musical. Não interessa o “primeiro samba gravado”, mas sim apontar a década de 1910 como o período onde o termo passa a servir como indicador de um gênero musical, um rótulo, um termo de referência para a audição e o debate público sobre a música. A década de 1920, contudo, traria uma novidade. Aos poucos, ao termo samba foi sendo atrelada a forma “canção”. “Samba-canção” indicava uma outra variedade do samba e, com o tempo, foi se cristalizando, tornando-se reconhecível a uma comunidade mais amplas de ouvintes e músicos. O mito de origem, neste caso, recai sobre “Ai, Iô Iô”, na gravação de Araci Cortes, em 1929. Assim como o primeiro samba gravado, a primazia de gravação do samba-canção não é a questão central aqui. Interessa observar que, ao longo da década de 1920, acompanhando sobretudo o crescimento do carnaval, o termo “canção” foi atrelado ao samba. As décadas de 1930 e 1940 são, geralmente, vistas como o “auge” do samba-canção e muitos dos grandes nomes da história do samba – Noel, Assis Valente, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Custódio Mesquita, dentre outros – transitaram em torno dessa variante. Vale observar, inclusive, que “Chega de Saudade”, a mítica canção tomada como o surgimento da Bossa Nova, em 1959, era um samba-canção. O que caracterizava esta variante? A resposta a esta pergunta exige uma postura relacional. Caracterizava em relação a quê? A referência era o samba voltado para o carnaval, de andamento mais rápido e, até a década de 1920, preso a formas comunitárias de produção, o que significava a ausência de uma “função autor” marcada. Muitos versos eram improvisados em torno de estrofes fixas, sem que uma autoria fosse estabelecida. Sandroni (2001) aponta como a gravação de “Pelo Telefone”, em 1917, envolveu a fixação de versos e o estabelecimento de uma autoria – e de como isto gerou protestos em ambientes marcados por um forte ethos de comunidade, como as casas de mãe de santo onde muitos dos primeiros sambas carnavalescos foram produzidos. Ao indexar “canção” ao termo samba, a referência, em termos de estabelecimento de diferença, era este samba carnavalesco, mais acelerado, improvisado e coletivo. Neste sentido, o samba-canção se caracterizava por seu andamento mais lento, seus versos fixos, sua autoria determinada. Ademais, usava de forma mais intensa a temática amorosa, o que permitia interseções com outros gêneros musicais, tais como o bolero e o tango. Não era um samba para o carnaval. E, de fato, por volta de 1932 – momento chave na história da música popular no Brasil, à medida que foi o ano em que o Estado permitiu o uso da música na propaganda 188

TÓPICO 3 — MÚSICA POPULAR: DA BELLE ÉPOQUE A 1950

comercial, o que modificou o universo da produção musical – era corrente a ideia de que o “samba-canção” era o “samba de meio de ano”, oposto ao samba do carnaval (e ao outro gênero musical que, naquele período, anos 1920, se tornara referência na festa, a marchinha). Gostaria de isolar, neste ponto, dois aspectos: a entrada da temática amorosa e o aspecto mais lento do samba-canção. Ambos correspondiam a movimentos mais amplos da música popular, que ocorriam em diversos locais, de forma concomitante. No caso da temática amorosa, tal movimento escapa aos limites deste texto, mas é útil relacioná-las com as transformações da expressão pública das relações amorosas no Ocidente, processo que nos remete à passagem do século XVIII para o XIX (ILLOUZ, 2007). Tais transformações estão no cerne da popularidade da modinha no Brasil e em Portugal do século XIX, na popularização do bolero e da habanera em todo o mundo atlântico e, inclusive, na cristalização de canções românticas no universo da música considerada clássica – tais como os lieder de compositores como Schubert e Schumann, populares em capitais europeias do século XIX (4). A canção, neste sentido, aparece como uma forma ideal para a expressão do amor (e, por consequência, da “dor-de-cotovelo”). O segundo aspecto é o interesse maior desse texto. Refiro-me ao fato de o “samba-canção” ser mais lento e, por isso, não voltado para a festa do carnaval. Ou seja, um samba não dançante. Esse é um ponto que ainda me parece pouco apontado nas delimitações do universo cancioneiro: o índice de que “canção não se dança”. E tal ponto ganha relevância quando observamos que a cristalização dos gêneros de música popular está diretamente relacionada à dança. Tango, bolero, habanera, danzón, maxixe, son, jazz, cumbia: todos estes gêneros, cristalizados entre 1860 e 1930, eram dançados e de forma específica, como dança de par. O samba, por sua vez, não era dançado em pares, mas coletivamente, no carnaval. Talvez seja mais preciso confrontar o samba-canção com o maxixe, esse sim uma dança de pares. Em suma, o universo da música popular, no final do século XIX e começo do século XX, era um universo de dança, e a sugestão que faço aqui é que “canção” significou a supressão da dança ou da centralidade do elemento coreográfico. O mesmo ocorreu com o tango e o surgimento de “tango-canção”, também na década de 1910. No caso do tango e do tango-canção ocorreu um processo de descentramento da coreografia em prol da expressão lírica, com a valorização do texto das canções, e em favor de determinados arranjos instrumentais, tais como as orquestras de bandoneons (popularizadas a partir da década de 1930). Assim como o samba-canção, o tango-canção é antes de tudo algo para ser ouvido e não bailado. É claro que este descentramento da dança teve suas particularidades para cada gênero, ocorrendo em maior ou menor grau de acordo com o contexto. Todavia, o que os exemplos do samba e do tango nos oferecem como índices – ou seja, pequenos aspectos que podem desvelar processo mais amplos – é esta oposição entre “dança” e “canção”. “Canção” aqui aparece como o codificador para uma forma específica de escuta, centrada numa fruição não-coreográfica. 189

UNIDADE 2 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: ORIGENS E ASCENSÃO

Tanto o samba quanto o tango são dois exemplos relacionados à desenvolvimentos urbanos. No entanto, a forma “canção” também foi usada para capturar, ou formatar, práticas musicais que, no começo do século XX, eram vistas como folclóricas ou primitivas. Foi o caso da música caipira, registrada em disco a partir de 1929 (ALONSO, 2015). Variedades tradicionais como o catira, o cururu, o cateretê foram sendo gravadas de forma que seus aspectos coreográficos fossem sendo escamoteados. O caso do cururu, que combinava dança e desafios cantados, é paradigmático: se descrições do cururu no final do século XIX enfatizavam seu aspecto coreográfico, uma descrição produzida em 1946 pelo folclorista João Chiarini referia-se à dança como “algo do passado”. E com o sucesso massivo, em 1951, de “O Menino da Porteira”, cururu-canção gravado pela dupla Luizinho e Limeira, o cururu é reduzido a uma forma de acompanhamento rítmico de canções na música sertaneja (OLIVEIRA, 2004). Este último exemplo nos convida a pensar em como a forma “canção” aparece como uma formatação moderna daquilo que era visto como folclórico ou exótico. A canção, nesse sentido, opera como uma possibilidade de condensar (e, consequentemente, reduzir) diferenças em um formato comum. Estudos sobre world music têm chamado a atenção para este ponto: como este “gênero musical” – cristalizado a partir da década de 1980 – opera pelo uso de elementos específicos (sobretudo timbres e ritmos) no formato canção (FELD, 2000; STOKES, 2012). É neste sentido que estou referindo à “canção como antropologia”: uma articulação das diferenças em uma ideia de unidade, em uma narrativa que pressuponha o comum. Em 1955, Lévi-Strauss, de forma melancólica, lembrava em “Tristes Trópicos” que o relato dos antropólogos era “o começo do fim” das sociedades estudadas por eles. É verdade que o relato era uma tentativa de “salvaguardar” as diferenças – vale lembrar o peso que a ideia de “inventário” teve em escritos lévistraussianos – mas também era verdade que ele operava dentro dos limites impostos pela modernidade: a diferença era reduzida à experiência de uma narrativa. A canção, de certa forma, faz o mesmo: o aspecto coreográfico ou mesmo aspectos comunitários são reduzidos a uma forma que caiba em um disco, em um CD, em um arquivo de pen-drive. [...] FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

CHAMADA

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RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A música popular urbana se desenvolveu no contexto histórico dos últimos 150 anos e está indissociavelmente relacionada com a indústria cultural e as tecnologias de comunicação de massa. No Brasil, o surgimento desta música popular de caráter moderno esteve associado ao processo de intensificação da vida urbana no país ocorrido na transição entre os séculos XIX e XX. • No final do século XIX iniciou-se um processo de modernização em centros urbanos como o Rio de Janeiro, o que fez surgir novos espaços e ambientes sociais onde se produzia e consumia música popular. • O choro foi um fenômeno cultural surgido no Rio de Janeiro por volta de 1870, derivado da influência da música europeia de salão somada a tradições musicais afro-brasileiras (como o lundu) e à confluência de fatores históricos do século XIX, como a música de barbeiros e prática musical doméstica. • O choro reunia vários gêneros da segunda metade do século XIX, como a polca, a valsa, a habanera e a polca-lundu, e teria surgido como um estilo de interpretar as melodias de maneira sentimental, “chorada”, com grande abertura para improvisação e ornamentação melódica, com bases rítmicas sincopadas, “gingadas”. • O maxixe é primeiro gênero musical urbano moderno do Brasil, e seu surgimento está diretamente ligado ao contexto histórico do choro e dos chorões. • A palavra maxixe era vista com preconceito devido à controvérsia em torno da dança, considerada indecente por uma parcela da sociedade brasileira. Isso fez com que muitos compositores adotassem outros nomes para o maxixe, como polca, polca-lundu, polca brasileira, tango brasileiro, tango característico. • O teatro de revista era um gênero teatral popular de humor, no qual havia música e dança, sendo um dos eventos sociais que ajudaram a popularizar o maxixe. • Compositores da música erudita também escreviam música popular; Francisco Mignone utilizava o pseudônimo “Chico Bororó” para assinar maxixes, tangos, valsas e outras composições populares. • Os chorões surgiram por volta de 1870, sob a influência da música de salão, em uma fase em que houve crescimento da população urbana no Rio, sobretudo de uma classe assalariada em que havia muitos músicos amadores ou semiprofissionais. 191

• Os pianeiros eram pianistas de música popular que faziam parte do contexto do choro e dos chorões. • A palavra choro também era uma denominação dada aos conjuntos dos chorões, baseados em flauta, cavaquinho e violão. Mais tarde, a formação ficou conhecida como regional, conjunto regional ou regional de choro. • Entre os primeiros grandes nomes do choro estão Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e Pixinguinha. • Na história do choro, há uma importante tradição de flautistas, entre os quais destacam-se Viriato Figueira da Silva, Agenor Bens, Patápio Silva, Benedito Lacerda, Altamiro Carrilho. • O ano de 1902 marca o início do mercado fonográfico no Brasil, quando foi realizada a primeira gravação em disco, o lundu Isto é Bom, de Xisto Bahia, interpretado pelo cantor Baiano. • As origens do samba estão na cultura trazida da Bahia por populações afrodescendentes que migraram para a capital Rio de Janeiro. As casas das “tias baianas”, como a Tia Ciata, tornaram-se um ponto de encontro de músicos e compositores, como Pixinguinha, João da Baiana, Donga, Sinhô e outros. • Pelo Telefone foi o primeiro samba a ser gravado em disco, em 1917, fato que marca a ascensão do samba como música popular urbana. • Um novo estilo de samba surgiu no bairro carioca Estácio de Sá no final dos anos 1920, e seu surgimento ajudou a formar o samba moderno; o samba do Estácio é associado a músicos como Ismael Silva, Bide e Noel Rosa, entre outros. • Ocorreu na década de 1920 uma grande diversificação do samba em subgêneros, como o samba-choro, o samba-enredo, o samba de gafieira, o samba-canção, o samba de partido alto, o samba-exaltação, o samba-de-breque. • A atividade de radiodifusão iniciou no Brasil, em 1923. Tornou-se um importante canal de divulgação de artistas da música popular a partir de 1928. O crescimento de emissoras como a Rádio Nacional e a Rádio Mayrink Veiga favoreceu o mercado musical, sobretudo nas décadas de 1930 e 40. • O mercado da fonografia e do rádio absorveram e favoreceram a circulação de vários tipos de música popular de regiões distantes da capital, denotadas pelo termo “música regional”, a partir das décadas de 1930 e 40. • Cornélio Pires incentivou a gravação de música sertaneja, e entre os primeiros artistas a serem gravados estavam as duplas Mandi e Sorocabinha e Mariano e Caçula. • Através das grandes rádios cariocas, músicos regionais tiveram seu trabalho divulgado, como Pedro Raymundo, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. 192

AUTOATIVIDADE 1 (ENADE, 2011) As pesquisas acerca da música popular têm evidenciado que as tecnologias e as mídias de cada período histórico sempre desempenharam importante papel no processo de registro e circulação musical. No Brasil, os meios de registro e difusão de música, bem como seus períodos de consolidação, representam fontes fundamentais para a pesquisa e a compreensão da música popular. A partir do texto apresentado e considerando o período de 1830 a 1960, conclui-se que: FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

I- A impressão de partituras se estabeleceu no Brasil a partir da década de 1830, mas seu papel não foi relevante para o registro e circulação de música popular. II- O processo de gravação comercial possibilitou o registro e a difusão de diversos gêneros da música brasileira, sendo iniciado a partir da primeira década do século XX. III- O surgimento do rádio no Brasil, a partir de 1940, definiu novas formas de circulação e acesso à música popular nacional. IV- A projeção da televisão, que se consolidou a partir dos anos de 1950, estabeleceu novos parâmetros para as práticas musicais, associando o som à imagem do artista. É CORRETO apenas o que se afirma em: a) ( ) I e III. b) ( ) II e IV. c) ( ) I, II e III. d) ( ) II, III e IV. 2 (ENADE, 2006) No presente ano comemora-se o 100.º aniversário de nascimento do compositor gaúcho Radamés Gnattali, falecido em 1988. Autor de obras que se inserem tanto no repertório da música popular como no repertório da música de concerto, ele homenageou, em cada um dos movimentos de sua Suíte Retratos (para bandolim, orquestra e conjunto regional), quatro compositores que considerava fundamentais na formação da música instrumental brasileira. Esses compositores são: FONTE: . Acesso em: 29 out. 2020.

a) ( b) ( c) ( d) (

) Baden Powell, João Gilberto, Sivuca e Dorival Caymmi. ) Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, Villa-Lobos e Osvaldo Lacerda. ) Noel Rosa, Ary Barroso, Egberto Gismonti e Tom Jobim. ) Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga.

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3 Acerca dos subgêneros de samba, associe os itens, utilizando o código a seguir: I- Samba-de-breque. II- Samba de partido alto. III- Samba-canção. ( ) Caracterizado por pausas (break) que dão espaço para improvisos e falas, tem caráter bem-humorado. ( ) Predomínio da percussão e do canto responsorial em roda com versos improvisados ( ) Contrasta com a música alegre do carnaval, com andamento mais lento, tem caráter introspectivo, letras melancólicas e ênfase na melodia. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) I – II – III. b) ( ) II – I – III. c) ( ) III – II – I. d) ( ) I – III – II.

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender o desenvolvimento da música popular brasileira na segunda metade do século XX; • identificar os principais movimentos da música popular nesse período; • perceber o crescimento da indústria fonográfica até o fim do século XX; • conhecer as tendências musicais da década de 1970 e suas regionalidades.

PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960) TÓPICO 2 – A DÉCADA DE 1970 TÓPICO 3 – DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

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TÓPICO 1 —

UNIDADE 3

MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960) 1 INTRODUÇÃO Referente à história da música popular brasileira na segunda metade do século XX em diante, esta unidade trata dos movimentos musicais surgidos nas décadas de 1950 e 60, com a Bossa Nova, a MPB (com os festivais de música), a Jovem Guarda e a Tropicália. Em seguida, abordaremos as tendências musicais da década de 1970 e suas regionalidades. Por último, o pop e o rock dos anos de 1980, bem como os desdobramentos da indústria musical no fim do século XX. Com a popularização do rádio e da TV, com o desenvolvimento da indústria fonográfica no Brasil, o consumo da música popular brasileira na segunda metade do século XX aumenta expressivamente. A música brasileira passa por processo de democratização, passando a fazer parte do cotidiano das diferentes camadas da sociedade. Importantes movimentos surgem nesse período, tornando-se grandes referências da cultura brasileira. A segunda metade do século XX foi palco de grandes transformações políticas no Brasil e que afetariam amplamente os movimentos artísticos e a produção musical no país. O Brasil passava por um importante período de industrialização e acabava de entrar na chamada República Nova. Em 1953, surgiu o Ministério da Educação e Cultura, criado pelo governo federal durante o segundo mandato de Getúlio Vargas, reconhecendo a importância da cultura como motor econômico. Em 1960, o país muda sua capital para Brasília, sob o mandato de Juscelino Kubitschek. O governo sofre com turbulências políticas, e em 1964 tivemos o início do regime militar. Com a popularização da televisão a partir da década de 1950 e a importante participação dos artistas, aos poucos, melhores equipamentos de gravação se tornaram acessíveis a indústria musical nacional. Além dos sistemas de gravação e prensagem dos discos, a popularização do violão e do microfone tiveram grande impacto na música desse período. Posteriormente, os instrumentos eletrificados, como a guitarra e o contrabaixo, ganhariam notoriedade, tornando-se, então, elementos importantes na construção da música popular brasileira.

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2 BOSSA NOVA Ainda na década de 1940, o meio musical buscava novos caminhos para o samba-canção, que já estava um tanto desgastado no mercado. Nesse sentido, destaca-se o arranjador e compositor Radamés Gnattali, que trabalhou na RCA Victor, desenvolvendo orquestrações para músicas de artistas como Orlando Silva (1915-1978), Ary Barroso (1903-1964) e Dick Farney (1921-1987). Como característica, Gnattali compunha arranjos modernistas para samba-canções, sobretudo para a voz de Farney, que passou a se destacar no cenário nacional. Segundo Cáurio (1989), as orquestrações modernistas de Gnattalli podem ser consideradas as ideias precursoras para o surgimento da bossa nova. O gênero da bossa nova vai se consolidar como um movimento no final da década de 1950, na Zona Sul do Rio de Janeiro, sobretudo nos bairros de Copacabana e Ipanema, em apartamentos de classe média, nos bares e nas praias. O aspecto intimista da bossa nova e as festas em apartamentos no litoral carioca são fundamentais para compreender a estética musical deste movimento. Seguindo ideias como as de Gnattali, outros compositores passaram a misturar samba-canção com arranjos do jazz americano. O resultado é a mistura de síncopes de samba com acordes sofisticados e dissonantes, diferente de tudo que fora produzido até então. Todavia, essa história na verdade começa não nos apartamentos, mas em um porão de um prédio no Rio de Janeiro. Em 1946, o recém-eleito presidente Eurico Gaspar Dutra proibiu os jogos de azar em todo o território brasileiro. Com isso, os cassinos foram fechados e os músicos que costumavam tocar constantemente nesses lugares acabaram perdendo importante parte do mercado de trabalho. Entre eles estava Dick Farney, que já gozava de certo prestígio, mas que ficou sem perspectiva de atuação no país. Arriscou o que parecia improvável, seguir carreira de cantor nos Estados Unidos. Ainda em 1946, embarca para os Estados Unidos e poucos meses depois as notícias sobre a carreira do cantor no exterior passam a chegar no Brasil (CASTRO, 2016). Fruto do sucesso no exterior, em 1949, foi criado o Sinatra-Farney Fan Club, pelas meninas Joca e as irmãs Didi e Teresa, no porão de um prédio no bairro da Tijuca, área nobre do Rio de Janeiro. O fã-clube trazia no nome os dois principais cantores para os jovens daquela época, um americano, outro brasileiro. Enquanto Farney ganhava notoriedade devido à carreira que construía fora do Brasil, Frank Sinatra não era considerado apenas um grande músico, mas um importante símbolo sexual de sua geração (CASTRO, 2016). Todos que frequentavam o clube sabiam ao menos cantar, dançar ou tocar algum instrumento. Era uma exigência para todos os sócios. Nos poucos menos de dois anos de existência, passaram pelo fã-clube diversos futuros artistas. Entre eles estavam Jhonny Alf (1919-2010), Paulo Moura (1932-2010), João Donato (1934-), Luiz Eça (1936-1992), Dóris Monteiro (1934-) e Nora Ney (1922-2003). No começo, os jovens se reuniam no clube apenas para ouvir música, sobretudo jazz, 198

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em uma velha vitrola de 78 rpm. Mais tarde o clube recebeu a doação de um piano e, aos poucos, começaram a receber jam sessions, sketches, saraus, oficinas, entre outras atividades. O espaço do clube acabou ficando pequeno e as atividades passaram a percorrer grandes clubes e boates de todo o estado do Rio de Janeiro. Depois de voltar dos Estados Unidos, em 1949, vez ou outra Farney passava pelo fã-clube. Acabou criando intimidade com os fãs, que passaram a frequentar a casa do cantor, assim como ele frequentava a casa de seus admiradores. No fim de 1950, com a morte da mãe de Didi e Teresa, o Sinatra-Farney Fan Club acabou por encerrar as atividades. Entretanto, com o tempo, os músicos que passaram pelo clube acabaram se profissionalizando no meio musical (CASTRO, 2016). Na década de 1950, os clubes de fãs se proliferaram pela cidade do Rio de Janeiro. Mesmo após o fim do Sinatra-Farney, a reunião entre os amigos para fazer jam sessions continuou. Agora, já adultos, os ex-membros Sinatra-Farney se encontravam em outros clubes, mas também em suas casas e apartamentos. Com alguns dos antigos sócios já atuantes no mercado musical, como Johnny Alf, que em 1952 lançava seu primeiro disco, as músicas já não eram mais as mesmas dos tempos de Sinatra-Farney. Outros amigos músicos também passaram a fazer parte da turma, como o guitarrista Durval Ferreira (1935-2007), o gaitista Maurício Einhorn (1932-) e o multi-instrumentista Bebeto Castilho (1939-), que junto com Luiz Eça formariam no futuro o Tamba Trio. Assim, o cenário para o surgimento da bossa nova estava construído. Seja nos encontros para jam sessions, nas festas em apartamentos de classe média, na profissionalização dos músicos e na busca por novos rumos para a música brasileira, o Sinatra-Farney influenciou uma geração pelo gosto do jazz e pela busca de novas sonoridades. As reuniões em casas e apartamentos se tornaram o reduto de formação de novos músicos que viriam a fazer parte do movimento. Todavia, o cantar baixinho e a batida clássica do violão, tão presentes na bossa nova, ganham notoriedade com João Gilberto (1931-2019). O baiano, que havia sido aluno de Gnattali por alguns meses, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1957. Queria mostrar para outros músicos as técnicas que estava desenvolvendo. Até este período era muito comum que na música brasileira os violonistas apenas dedilhassem notas no instrumento. João passou a tocar várias cordas simultaneamente, em blocos, reforçando o aspecto percussivo do instrumento. Segundo Castro (2016), João Gilberto apresentou o seu estilo de tocar para vários músicos na cidade, mas sem grande sucesso. Foi Roberto Menescal (1937-) que, em uma festa de bodas de prata de seus pais, teve que lidar com um desconhecido: um tal João que bateu a porta e pediu emprestado um violão. Após muita insistência, Menescal acaba entregando um violão a João Gilberto, que lhe apresenta a canção Hô-bá-lá-lá. Menescal fica deslumbrado com a maneira de tocar do compositor. De tão surpreso, foge da festa, levando João Gilberto junto. Rodou noite adentro pelas festas em apartamentos, para apresentar a descoberta aos amigos músicos, entre eles Nara Leão (1942-1989) e Ronaldo Bôscoli (19281994). 199

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A voz de João Gilberto era um instrumento – mais exatamente, um trombone – de altíssima precisão, e ele fazia cada sílaba cair sobre cada acorde como se as duas coisas tivessem nascido juntas. O que era espantoso, porque o homem cantava num andamento e tocava em outro. Na realidade, não parecia cantar – dizia as palavras baixinho, como Menescal já ouvira outros fazendo. Mas ele sentia que João Gilberto, se quisesse, seria capaz de se fazer ouvir lá na sala, com ou sem a festa. João Gilberto cantou “Hô-bá-lá-lá” cinco ou seis vezes, com mínimas alterações, mas cada versão parecia melhor do que a anterior. E que diabo de ritmo era aquele que ele fazia? Menescal não resistiu. Pegou-o pelo braço, com violão e tudo, e saiu com ele pela noite. Ia exibi-lo aos amigos (CASTRO, 2016, p. 135).

João Gilberto passa a figurar nas reuniões de jovens amigos de Menescal no Rio de Janeiro. Um dos destinos mais comuns era o apartamento da família de Nara Leão. Entre os frequentadores mais assíduos estavam Carlos Lyra (1933-) e Ronaldo Bôscoli, que tiveram grande importância histórica nesse período. Fundaram uma academia de violão, em que os jovens do Rio de Janeiro aprendiam a tocar o instrumento, bem como assimilavam novas ideias musicais. A academia de violão era um dos meios utilizados para difundir as músicas dos amigos compositores. O apartamento de Nara Leão era onde muitos artistas se encontravam. Foram nessas reuniões que se juntaram músicos ainda amadores, como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão, Chico Feitosa (1935-2004), Luiz Eça, com músicos profissionais – João Gilberto, Tom Jobim (1927-1994), Vinicius de Moraes (1913-1980), Sílvia Teles (1934-1966), Alaíde Costa (1935-), Baden Powell (19372000) e outros (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000).

FIGURA 1 – REUNIÃO NO APARTAMENTO DE NARA LEÃO, DA ESQUERDA PARA A DIREITA, TOM JOBIM, VINICIUS DE MORAES, RONALDO BÔSCOLI, ROBERTO MENESCAL E CARLOS LYRA

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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Um outro frequentador do apartamento de Nara era o fotógrafo Chico Pereira (1921-1999). Segundo Castro (2016), em 1957 Chico promoveu uma reunião em sua casa, e entre os convidados estava seu amigo André Midani (1932-2019), produtor francês erradicado no Brasil e que na época era o chefe do departamento de repertório internacional da gravadora Odeon. Chico apresentou alguns jovens talentos a Midani, entre eles Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, Nara Leão, Carlos Lyra e Eumir Deodato (1943-). Midani procurava por artistas que pudessem inserir a Odeon no mercado de discos voltados ao público jovem. Após ouvi-los por uma hora, Midani tira um papel em branco do bolso e pede para todos assinarem. Estava assumindo um compromisso com aqueles músicos. Quando chegasse o momento, aquele papel, que não tinha valor jurídico, valeria como um acordo entre os jovens e a gravadora. Enquanto isso, João Gilberto atraía todo tipo de gente ao bar do Hotel Plaza, Zona Sul do Rio de Janeiro. Tocava acompanhado por importantes músicos, como a cantora Claudette Soares (1937-), o pianista Luiz Eça, o acordeonista João Donato e o baterista Milton Banana (1935-1999). O lugar voltou a ser reduto dos boêmios, como já fora anos antes quando Johnny Alf se apresentava ali. João Gilberto, aos poucos, vai se tornando nome importante no cenário musical da região. Era comum que os músicos se encontrassem no Plaza no fim de noite e entre os frequentadores estava Tom Jobim (CASTRO, 2016). João Gilberto também passa a frequentar a casa do fotógrafo Chico Pereira, que foi responsável por aproximar João de Tom Jobim. Na época, Tom Jobim trabalhava para a gravadora Odeon e viu no estilo de João Gilberto uma possibilidade de modernização do samba. Tom lembrou da composição Chega de saudade, em parceria com seu amigo Vinicius de Moraes, e sugeriu uma gravação. Entretanto, encontrou certa resistência dentro da Odeon para gravar o artista. Tom anteviu de saída as possibilidades da batida, que simplificava o ritmo do samba e deixava muito espaço para as harmonias ultramodernas que ele próprio estava inventando. Mas ainda seria preciso trabalhar nesse ritmo, testar canções novas e outras que já tinha, para ver como ficavam. Abriu a gaveta e tirou partituras contendo coisas que ainda estavam pela metade ou em fase de acabamento. Uma delas, já pronta, dormia havia mais de um ano naquela pilha: “Chega de saudade” (CASTRO, 2016, p. 167).

Enquanto isso, Tom Jobim consegue encaixar João em outro projeto. O disco Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso (1920-1990), lançado em 1958 pelo selo Festa, é um marco da bossa nova, sendo considerado o primeiro do gênero. Originalmente, a ideia parte do Departamento de Difusão Cultural do Itamaraty, de lançar discos de vinil com obras literárias de escritores brasileiros, para difundir a cultura brasileira. Como na época Vinicius de Moraes era diplomata, além de crítico de cinema e reconhecido escritor e compositor, viu-se com bons olhos a possibilidade de lançar um disco dele com canções de sua parceria com Jobim. Cogitou-se primeiramente que as músicas fossem interpretadas por Dolores Duran (1930-1959), mas foi recusada devido ao alto cachê pedido pela cantora. De qualquer forma, Vinicius preferia Elizeth, sua amiga e que pedia um valor muito menor (CASTRO, 2016). 201

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A produção do álbum contou com a parceria de seu grande amigo Tom Jobim, que, além de contribuir com as letras, foi o responsável pelos arranjos das músicas. A participação especial de João Gilberto e sua técnica peculiar no violão despertou admiração dos outros profissionais do projeto, sobretudo Jobim. Inicialmente, o disco não teve tanto impacto no meio musical, devido à pouca publicidade e a tiragem pequena. Posteriormente, com o sucesso de João Gilberto e da bossa nova é que o álbum ganha notoriedade.

FIGURA 2 – CAPA DO DISCO CANÇÃO DO AMOR DEMAIS, INTERPRETADO POR ELIZETH CARDOSO, PRODUZIDO POR TOM JOBIM, COM LETRAS DE VINICIUS DE MORAES E PARTICIPAÇÃO DE JOÃO GILBERTO

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

NOTA

Ouça o disco Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso, considerado o primeiro disco de bossa nova: bit.ly/37ZCcaa.

Enquanto isso, Tom Jobim tentava convencer Aloysio de Oliveira (19141995), diretor da Odeon, a gravar João Gilberto. Para convencer Aloysio, Tom contou com a ajuda de André Midani e Ary Barroso. No fim do ano de 1958 João Gilberto lança um compacto de 78 rpm com duas músicas. De um lado a gravação de Chega de saudade, composição de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A produção contou com Jobim no piano e na regência da orquestra. No outro lado do disco João Gilberto registrou sua canção Bim bom, composta anos antes. O compacto 202

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teve grande impacto no cenário musical e rapidamente passou a tocar em diversas rádios pelo país. Com o sucesso, em 1959 João Gilberto grava um álbum completo intitulado Chega de saudade. A música Chega de saudade tocava nas mais diversas rádios do país.

FIGURA 3 – CAPA DO DISCO DE JOÃO GILBERTO

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

NOTA

Ouça o disco Chega de saudade, de João Gilberto, que transformou a bossa nova em um grande fenômeno musical: youtube.com/watch?v=Fum0TM-PAfM.

Com o sucesso de João Gilberto, os artistas da bossa nova deixam os apartamentos e passam a tocar nas principais casas de shows, boates e clubes do país. Entretanto, a ruptura estética causou uma avalanche de críticas, principalmente a João Gilberto, o qual os críticos chamavam de desafinado e afeminado. Mesmo assim, a bossa nova teve grande aceitação do público jovem, que rapidamente se identificou com o movimento. Nelson Motta (2000, p. 6) faz a seguinte observação sobre os primeiros shows da bossa nova: “Eles se apresentavam de maneira mais informal e intimista, as músicas pareciam mais leves e melodiosas e as letras falavam de situações e pessoas parecidas com a vida que se levava nos apartamentos, nas praias e nas ruas de Copacabana naqueles anos bacanas”.

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NOTA

No YouTube ainda é mantido o canal oficial do João Gilberto, o qual possui parte significativa de sua produção, com álbuns completos e gravações ao vivo. Está disponível em: youtube.com/user/TheGlassVevo.

No ano de 1962, em Nova York no Carnegie Hall, aconteceu o Festival de Bossa Nova, que lançou definitivamente o gênero para o mundo e contou com artistas como Tom Jobim, João Gilberto, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Sérgio Mendes (1941-) e Luiz Bonfá (1922-2001). A partir disso, os bossa-novistas viajaram o mundo, inclusive morando parte da carreira no exterior. Neste mesmo ano, Tom Jobim e Vinicius de Moraes compuseram Garota de Ipanema, que se tornou um sucesso internacional. Os principais nomes da bossa nova tiverem suas composições gravadas em diversas outras línguas por diferentes músicos, tornando-se o mais representativo movimento de música brasileira da história. Principais artistas do movimento: • João Gilberto (1931-2019): revolucionou a música brasileira criando uma nova batida no violão. É considerado um dos mais importantes músicos brasileiros do século XX, tendo ganhado inúmeros prêmios de música pelo mundo, inclusive quatro Grammys. • Tom Jobim (1927-1994): maestro, compositor, arranjador, cantor, pianista e violonista, foi um dos maiores expoentes da música brasileira do século XX. Foi um dos principais responsáveis pela popularização da bossa nova, tendo contribuído com a produção de diversos artistas do Brasil e do mundo. • Radamés Gnattali (1906-1988): arranjador, compositor e pianista, desenvolveu arranjos modernistas para sambas que permitiram o surgimento da bossa nova. Foi professor de João Gilberto, parceiro de trabalho de Tom Jobim e atuou como arranjador para diversos artistas com Dick Farney e Orlando Silva. • Johnny Alf (1929-2010): compositor, cantor e pianista, foi um dos precursores da bossa nova, sobretudo em termos melódicos e harmônicos com seu disco Rapaz de bem, de 1953. • Vinicius de Moraes (1913-1980): foi escritor, poeta, dramaturgo, compositor, cantor e diplomata. Na bossa nova fez parceria histórica com Tom Jobim. Tem vasta produção no campo da música, da literatura, do teatro e do cinema, tendo suas composições gravadas pelos principais músicos da bossa nova. Destacamse ainda parcerias com os músicos João Gilberto, Baden Powell, Carlos Lyra, Toquinho, Cláudio Santoro, Edu Lobo e Chico Buarque. 204

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• Carlos Lyra (1936-): cantor, violonista e compositor, foi uma das figuras mais importantes da bossa nova, tendo fundado com Menescal a Academia de Violão, que influenciou os jovens no Rio de Janeiro na década de 1950. • Roberto Menescal (1937-): compositor, violonista e guitarrista, foi um dos principais artistas da bossa nova. Tocou com diversos artistas como Nara Leão, Sylvia Teles, Maysa, Dorival Caymmi, Lúcio Alves e Elis Regina. • Baden Powell (1937-2000): compositor e violonista, é considerado um dos maiores violonistas da história. Com produção vasta no campo musical, teve importantes parcerias com artistas como Vinicius de Moraes, Billy Blanco e Toquinho, tendo lançado discos em diferentes países pelo mundo, com destaque para Os Afro-sambas, em parceria com Vinicius, e aclamado pela crítica. • Nara Leão (1942-1989): compositora, cantora e violonista, foi uma das principais figuras femininas de seu tempo. Fez importantes parcerias com Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Chico Buarque. Mais tarde, participou ativamente do movimento Tropicália. • Elizeth Cardoso (1920-1990): cantora, é considerada uma das maiores intérpretes da história da música brasileira. Também chamada de A Divina, trabalhou com os mais importantes músicos e compositores de seu tempo, tendo sua voz inaugurado a bossa nova com o disco Canção do amor demais. • Maysa (1936-1977): cantora, compositora e atriz, foi uma das mais importantes cantoras de sua geração, ganhando diversos prêmios pelo Brasil. Trabalhou com importantes músicos, como Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas e Bebeto Castilho. • Ronaldo Bôscoli (1928-1994): compositor, produtor musical e jornalista, foi um dos grandes fomentadores da bossa nova, compôs importantes canções em parcerias com Roberto Menescal, Carlos Lyra, entre outros. Como produtor musical trabalhou com importantes artistas: Elis Regina, Jair Rodrigues e Roberto Carlos.

NOTA

O filme brasileiro Os Desafinados, produzido por Walter Lima Jr. e lançado em 2008, é uma ficção inspirada em diversas histórias de artistas da bossa nova e de outros movimentos brasileiros. A obra retrata a repercussão internacional da bossa nova no começo da década de 1960 e o cenário musical da época. Está disponível em: youtube. com/watch?v=1rGMPY3Z4-I.

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3 MPB O termo MPB, que significa música popular brasileira, surgiu entre artistas como um sinônimo para a bossa nova, aproximadamente em 1959. De forma escrita, apareceu pela primeira vez em um texto de Ary Barroso, na contracapa do disco Bossa Nova, de Carlos Lyra. Primeiramente, referia-se como MPB às composições bossa-novistas, que aos poucos já abandonavam o elitismo e sua influência jazzísticas. A bossa nova se popularizava rapidamente e cada vez mais se misturava a outros gêneros musicais brasileiros, como o samba de morro e a música nordestina (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). Nesse período, segundo Tinhorão (1974), a bossa nova, que se fazia muito mais presente entre estudantes de classe média, enfrentava o grande desafio de se aproximar mais do povo. A política desenvolvimentista do governo da época se mostrava incapaz de absorver a mão de obra das primeiras gerações de universitários. Isso fez com que os estudantes passassem a se preocupar muito mais com o campo da política, o que, consequentemente, acabou refletindo na produção artística nacional e vice-versa. Impulsionados pelo momento conturbado que atravessava a política brasileira, no fim da década de 1950 e começo da década de 1960, o meio artístico começa a tomar novos rumos. Nasce no Rio de Janeiro o Centro Popular de Cultura (CPC), criado por artistas e estudantes, por meio da União Nacional dos Estudantes (UNE). As universidades se transformaram em importantes centros culturais. As produções artísticas de cunho sociopolítico da época passaram a ser assuntos recorrentes entre estudantes e o meio artístico cultural. Eram influenciados, sobretudo, pelo grupo Teatro de Arena e a peça Eles não usam black tie, que estreou em 1958, de Gianfrancesco Guarniere (1934-2006), com participação de Augusto Boal (1931-2009), e pelo movimento do Cinema Novo, com Ruy Guerra (1931-) e Glauber Rocha (1939-1981). No campo musical, destacase Carlos Lyra, como precursor desta transformação, com composições como a Canção do subdesenvolvido, de 1962 (MELLO, 2003). FIGURA 4 – CAPA DO FILME DIRIGIDO POR LEON HIRSZMAN

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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Aos poucos os compositores abandonaram temáticas individuais nas canções (como o amor) e se dedicaram a representar a angústia do povo brasileiro, sobretudo no que diz respeito à pobreza e ao subdesenvolvimento do país. Como relata Mello (2003, p. 35), “eles perceberam que a canção, além de expressar seus sentimentos pessoais, também poderia abordar a realidade concreta. A partir desse momento, suas obras dão um salto imenso e inesperado”. Assim, os músicos passam a se preocupar muito mais com a visão de mundo, não necessariamente com o momento, mas com o futuro, com aquilo que ainda está por vir. O regime militar de 1964 amplifica esse sentimento, fazendo com que as canções de protesto se tornassem porta-vozes da nova geração de jovens de classe média, que se identificavam com os novos caminhos da música brasileira (TINHORÃO, 1974). É a partir disso que surge uma segunda geração de bossa-novistas, liderados por Edu Lobo (1943-), Chico Buarque (1944-), Sérgio Ricardo (19322020) e Geraldo Vandré (1935-). Essa nova safra de compositores, que passam a representar os anseios dos estudantes universitários da época, abandonam aos poucos a sofisticação dos arranjos musicais da década anterior e começam a se dedicar a canções de protestos. Impulsionados pela disseminação dos instrumentos eletrificados (guitarra, contrabaixo, piano, entre outros) e o sucesso internacional dos Beatles, são popularizados por todo o Brasil os shows em universidades, o que acaba atraindo o interesse das redes de TV. Com a perspectiva de novos rumos para a música brasileira, é a partir de 1965 que se populariza o termo MPB (ou MMPB, moderna música popular brasileira). Com o sucesso da Jovem Guarda em meados da década de 1960, o termo MPB passa a ser amplamente utilizado para designar a música feita no país por novos compositores que não abordassem diretamente gêneros americanos como o rock, o soul e o blues, embora fosse evidente a influência do pop rock. (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). Com a popularização da televisão e a profissionalização do mercado musical no Brasil, a música passou a ser importante tema de programas de TV. A massificação da música, a partir da televisão nos anos de 1965, com os festivais de música televisionados, foi um fator preponderante para a popularização do termo MPB. Tito Fleury (1918-2012), radialista e na época diretor na Rádio Excelsior, já havia idealizado a Primeira Festa da Música Popular Brasileira, um concurso de composições dos mais variados gêneros populares. Realizado no Guarujá, o evento reuniu diversas outras atividades e foi veiculado pela Rádio Record, em 1960. Havia promessas de transmissão televisiva pela TV Record e pela TV Rio, mas ambas desistiram, bem como outras emissoras de rádio. O evento acabou não tendo muita repercussão, principalmente pela falta de nomes conhecidos entre os finalistas (MELLO, 2003). 207

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Foi em 1965, na extinta TV Excelsior, que aconteceu o Primeiro Festival de Música Popular Brasileira, idealizado pelo produtor Solano Ribeiro (1939-) e com a grande final no Guarujá. Na época, a TV Excelsior era líder de audiência no Brasil, e, com a direção de Solano, o festival acabou sendo um grande sucesso. Inspirado no Festival Sanremo, da Itália, que já havia revelado diversos compositores europeus para o mundo, o evento contou com a participação de grandes compositores do período, e teve como vencedora a música Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, com interpretação da cantora Elis Regina. O segundo lugar ficou com Valsa do amor que não vem, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, e interpretada pela já experiente Elizeth Cardoso. Participaram ainda Francis Hime (1939-), Caetano Veloso (1942-) e Chico Buarque (1944-) entre os compositores, e uma grande seleção de intérpretes: Wilson Simonal (1938-2000), Geraldo Vandré (1935-), Agnaldo Rayol (1938-), Altemar Dutra (1940-1983), Cauby Peixoto (19312016), Orlando Silva (1915-1978), entre outros (MELLO, 2003)

FIGURA 5 – CAPA DO DISCO COMPACTO DO PRIMEIRO FESTIVAL DE MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

A música Arrastão, como vencedora do Primeiro Festival de Música Popular Brasileira, torna-se precursora de uma nova geração de composições que popularizaram o termo MPB. Surge como um novo gênero, uma espécie de música de festival, que traz nas letras novas mensagens. A interpretação épica de Elis Regina levantou a plateia, inaugurando um novo modelo de atuação da música na televisão brasileira. Nesse novo modelo, a participação do público é fundamental, principalmente pela possibilidade de as pessoas acompanharem de casa a safra de cantores e compositores. Segundo Mello (2003, p. 51), “esse público tinha liberdade de avaliar de imediato a nova canção, influenciado ou não pelas plateias. Liberdade de avaliar era um direito de cada cidadão, num país em que a liberdade de pensar vinha sendo tolhida pouco a pouco havia quase um ano”.

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TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)

A partir disso, os festivais de música passaram a ser um dos pontos fortes da TV brasileira. Da mesma forma, o termo MPB passou a ser amplamente utilizado, designando essa nova leva de músicos que traziam nas composições os anseios da sociedade da época, motivados principalmente pelas transformações políticas. O próprio Ribeiro (2002, p. 16), produtor e idealizador evento, comenta: Os festivais romperam o ritual das gravadoras e do rádio, tendo se transformado na grande porta para o novo. Também passou a ser nova a postura da televisão em relação à música popular, tendo sido, ao mesmo tempo, sua maior divulgadora e beneficiária. O termo MPB se firmou tirado dos títulos que dei ao “1º Festival Nacional da Música Popular Brasileira”, da TV Excelsior, e do “2º Festival da MPB”, que ficou mais conhecido como o Festival da Record.

No final de 1965, a TV Excelsior já planeja a segunda edição do festival. Entretanto, devido a desacordos entre o produtor Solano Ribeiro e a direção da emissora sobre o formato do evento e as tentativas de influência do patrocinador, Ribeiro pede demissão. Somado a isso, com o início do regime de 1964 e os atos institucionais, o novo governo já perseguia e prendia opositores ao regime, como o músico Carlos Lyra. A TV Excelsior, que havia apoiado João Goulart, começava a enfrentar dificuldades. Seu proprietário, Mário Wallace Simonsen, teve seus bens sequestrados pelo governo, e veio a falecer em março de 1965. Isso causou o declínio da emissora, que passou a enfrentar problemas de produção. O Segundo Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, que teve como vencedora a música Porta-Estandarte, de Geraldo Vandré e Fernando Lona (1937-1977), interpretada por Tuca (1944-1978) e Airto Moreira (1941-), não alcançou o sucesso de audiência da edição passada (MELLO, 2003). Nesse período, muitos artistas que haviam participado do primeiro festival da Excelsior alavancaram suas carreiras, atuando inclusive na apresentação de programas de TV. Elis Regina e Jair Rodrigues (1939-2014) passaram a apresentar o programa O fino da bossa, produzido e exibido pela TV Record entre 1965 e 1967, e que se tornou um grande sucesso na TV brasileira. A popularidade do programa era tamanha que a dupla gravou três LPs juntos, entre eles o Dois na bossa. Em 1966, o produtor Solano Ribeiro oferece para a TV Record a produção de um festival de música. A Record já tinha a ideia de produzir um festival, o segundo, em vista daquele realizado em 1960, e não em relação ao primeiro da TV Excelsior (MELLO, 2003). Nesse período, o regime militar já havia prendido diversos estudantes e interditado diretórios da UNE. Acusava de subversivos os compositores e intérpretes participantes dos festivais de música que recorrentemente se posicionavam a favor dos estudantes. Como cita Mello (2003, p. 89), “havia uma disposição muito forte entre esses novos compositores, egressos da vida universitária, em colocar a música a serviço da luta política do momento. Como uma postura, como uma demanda”. 209

UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

O segundo festival da TV Record, como ficou conhecido, representou bem o cenário. Duas canções acabaram empatadas em primeiro lugar: A Banda, de Chico Buarque, interpretada pelo próprio Chico Buarque e Nara Leão; e Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros (1943-), interpretada por Jair Rodrigues, Trio Maraiá e Trio Novo. Ambas as composições criticam de forma inteligente e sutil a política brasileira, retratando a vida difícil de seu povo. Assim como outras, acabaram se tornando verdadeiros hinos desse período, e consagradas historicamente.

FIGURA 6 – JAIR RODRIGUES INTERPRETANDO A MÚSICA DE GERALDO VANDRÉ

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

Até o início da década de 1970, diversos outros festivais de música foram televisionados no Brasil. A TV Record realizou ainda mais três edições de seu festival, enquanto que a TV Rio, posteriormente TV Globo, realizou sete edições do Festival Internacional da Canção. Nesse período, as emissoras de TV sofreram com seguidos incêndios, inclusive no mesmo dia. Apesar de nunca terem sido devidamente esclarecidos, os proprietários na época acreditavam em atos terroristas (MELLO, 2003).

DICAS

Diversos especiais sobre os festivais de música foram produzidos pelas emissoras de televisão. Alguns podem ser encontrados no YouTube, como o festival produzido pela TV Record em 1967: youtube.com/watch?v=kB5XJR6w2C4&t=4772s.

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TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)

Segundo Tinhorão (1974), a insistência em criticar o poder militar, com canções de protesto, foi determinante para que as autoridades reagissem ao movimento que se configurava como a MPB, aumentando a repressão sobre seus artistas. Diversos músicos desse período, como Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil (1942-) e Chico Buarque, foram presos, tiveram suas obras censuradas e acabaram se exilando em outros países. A perseguição aos artistas nacionais representa a desastrosa política cultural da época. Apesar da grande quantidade de compositores lançados pelos festivais de música, muitos dos artistas tiveram suas carreiras prejudicadas e passaram a atuar no exterior. O exílio e a censura dificultaram por anos o acesso da população brasileira à produção dos principais representantes da MPB.

NOTA

A era dos festivais, livro de Zuza Homem de Mello, também é o título de uma coletânea em CD produzida pela Universal Music com 28 gravações históricas. As músicas foram selecionadas por Zuza, e ilustram o livro e a transformação da MPB na época dos festivais televisionados das décadas de 1960 e 70.

Principais músicos do período: • Geraldo Vandré (1935-): compositor reconhecido como um dos mais importantes da MPB, venceu o segundo festival da TV Record com a música Disparada, em parceria com Théo de Barros e interpretada por Jair Rodrigues. Sua canção Prá não dizer que não falei de flores, segunda colocada no Terceiro Festival Internacional da Canção, da TV Globo, tornou-se um hino contra o regime militar no Brasil. Com isso, teve inúmeras obras censuradas, foi perseguido e preso. Passou anos exilado e acabou abandonando precocemente a carreira musical. • Elis Regina (1945-1982): considerada uma das maiores cantoras da história da música brasileira, foi a primeira grande artista a ser lançada pelos festivais de música na década de 1960, sendo uma das maiores revelações de todos os tempos, tendo se apresentado em grandes eventos e festivais do mundo. Gravou composições de boa parte dos mais importantes artistas brasileiros do século XX: Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo, Milton Nascimento, Ivan Lins, Belchior, Renato Teixeira, Aldir Blanc e João Bosco. Foi também apresentadora de televisão, tendo feito importante parceria com Jair Rodrigues no programa O fino da bossa pela TV Record.

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

• Jair Rodrigues (1939-2014): uns dos grandes representantes da cultura negra no Brasil, é considerado o primeiro músico do país a incorporar elementos do Rap ainda nos anos 1960. No segundo festival da TV Record, interpretou a canção vencedora Disparada, de Geraldo Vandré, inaugurando uma nova estética musical. • Edu Lobo (1943-): compositor e multi-instrumentista, é um dos músicos mais importantes da MPB, tendo feito parcerias com diversos artistas como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Ruy Guerra, Gianfrancesco Guarnieri, Hermeto Pascoal, Chico Buarque, Maria Bethânia. Foi vencedor de dois festivais na década de 1960, um da TV Excelsior e outro da TV Record. • Chico Buarque (1944-): músico e escritor, é um dos mais importantes compositores brasileiros do século XX, com extensa obra musical, literária e dramaturga. Como compositor e intérprete, conquistou três festivais importantes da década de 1960, dois da TV Record e um da TV Globo, além de outros dois terceiros lugares. Ganhou outros inúmeros prêmios e honrarias de suas obras, incluído um Grammy Latino e seis Prêmios Jabuti. • Caetano Veloso (1942-): cantor e compositor, é um dos músicos brasileiros de maior renome internacional. Reconhecido pelas suas composições poéticas, a canção Alegria, alegria é um dos maiores hinos da MPB. Possui vasta produção musical que lhe rendeu diversos prêmios na carreira, como os inúmeros troféus no Grammy Latino, além de compor trilhas sonoras para muitos filmes e espetáculos teatrais. Censurado e preso durante o regime militar, exilou-se na Inglaterra, onde continuou produzindo até seu retorno. • Gilberto Gil (1942-): grande revelação dos festivais de música e um dos maiores representantes da cultura negra no país, o cantor e compositor coleciona em sua carreira diversos prêmios pelo mundo, como dois Grammy Award e dois Grammy Latino. Também ocupou importantes cargos públicos, exercendo a função de ministro da Cultura e vereador em Salvador. • Milton Nascimento (1942-): cantor, compositor e multi-instrumentista é um dos mais reconhecidos artistas da MPB. Sua vasta produção conta com mais de 30 álbuns lançados, trilhas sonoras para filmes e diversas participações em outros trabalhos. Suas composições foram gravadas por diversos artistas brasileiros como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Fafá de Belém, Simone, bem como de importantes artistas internacionais: Pat Metheny, Wayne Shorter, Björk, Peter Gabriel, Esperanza Spalding e Sarah Vaughan. Recebeu diversos prêmios pelo mundo, incluindo dois títulos de Doutor Honoris Causa, um pela Universidade Estadual de Minas Gerais e outro pela Berklee College of Music, de Massachusetts, Estados Unidos.

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TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)

4 JOVEM GUARDA O rock norte-americano teve ascensão no início da década de 1950 e rapidamente se espalhou pelos países ocidentais. Chega ao Brasil em meados da mesma década, com as rádios tocando Rock around the clock, grande sucesso de Bill Haley e seus Cometas. A estética rockeira passou a influenciar fortemente o comportamento dos jovens, com o uso das calças jeans, as jaquetas de couro e o twist, uma dança acelerada com acrobacias que misturava boogie woogie e swing. Representou a rebeldia dos jovens com relação às gerações anteriores, contestando os valores vigentes, constituindo-se em meados do século XX como uma contracultura (PAVÃO, 1989). A rápida expansão do rock permitiu o desenvolvimento de um mercado de consumidores e aficionados no Brasil. Os primeiros cantores e compositores vão surgir no cenário brasileiro a partir de 1957, reproduzindo os ritmos do rock com letras em português. Nesse período se destacam artistas como os irmãos Tony (1936-) e Celly Campello (1942-2003), Sérgio Murilo (1941-1992) e Ed Wilson (1945-2010). Entretanto, a bossa nova predominava entre os jovens, sobretudo no Rio de Janeiro, onde a mercado musical era efervescente. Motta (2000, p. 23) comenta que “o rock parecia não se ambientar bem no calor do Rio ensolarado, sua agressividade e seus casacos de couro não combinavam com o clima relaxado e cordial da cidade nem com seu humor e simpatia”. Apesar do pouco espaço, no final dos anos 1950 e começo dos anos 60, programas sobre o gênero eram comuns na rádio e na televisão brasileira. “Os brotos comandam” era apresentado por Sérgio Galvão (1935-2016) na Rádio Bandeirantes, em São Paulo, e por Carlos Imperial (1935-1992) na Rádio Guanabara, do Rio de Janeiro. Posteriormente, Sérgio também passou a apresentar o programa Alô brotos, na TV Tupi de São Paulo, maior audiência do gênero. Ainda na Rádio Bandeirantes, Enzo de Almeida Passos (1928-1991) apresentava o Festival de Brotos. Já na Rádio Mayrink, do Rio de Janeiro, uma das líderes de audiência na época, o radialista Jair de Taumaturgo (1920-1970) apresentava o programa Alô brotos e produzia o Hoje é dia de rock, apresentado por Isaac Zaltman (1927-1998). Na Rádio Globo, do Rio de Janeiro, Chacrinha (1917-1988) apresentava A Parada é do Rock, enquanto Luiz de Carvalho (1923-2008), a Revista do Rock no ar. Aos poucos, os programas de rock foram conquistando audiência e maior espaço na rádio e televisão (PAVÃO, 1989). Segundo Pavão (1989), enquanto Bill Haley (1925-1981) tornou o rock um gênero musical conhecido, foi com Elvis Presley (1935-1977) nos anos 1950 e Beatles nos anos 1960 que o movimento ganhou maior popularidade, sendo as maiores expressões do gênero. A partir de 1964, com o sucesso mundial dos Beatles, o rock passou a ser conhecido no Brasil como “iê-iê-iê”, devido às letras de músicas, como She loves you. 213

UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

Nesse período, o cantor Ronnie Cord (1943-1986) já ganhava certa notoriedade no cenário nacional, alcançando boa vendagem a partir do sucesso da música Rua Augusta. Com isso, chamou atenção para os artistas do gênero, incluindo Roberto Carlos (1941-) e Erasmo Carlos (1941-). Roberto havia acabado de desistir da bossa nova, e começava a chamar a atenção com a repercussão da canção Parei na contramão, do seu primeiro álbum de rock Splish splash. O disco teve a participação de Renato e seus Blue Caps, que também pediam passagem no cenário musical da época (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). Com os singles de 1964 É proibido fumar, gravada por Roberto Carlos, e Festa de arromba na voz de Erasmo Carlos, ambas compostas em parceria entre eles, a dupla começou a chamar maior atenção. No início de 1965, no programa Festival da Juventude, da TV Excelsior, Roberto Carlos recebe o troféu Grandes ídolos da juventude como cantor mais popular. Na TV Record, por É proibido fumar, o cantor também recebe o troféu Chico Viola, aos melhores discos do ano. Também são premiados Ronnie Cord, por Rua Augusta e Demetrius (1942-2019), por Ritmo da chuva, todos cantores de rock. Na busca por atrair o público jovem, a TV Record planejava um programa de rock para as tardes de domingo. A ideia inicial era que fosse apresentado por Roberto Carlos e Celly Campelo. Entretanto, Celly, já considerada a rainha do rock brasileiro, abandona precocemente a vida artística com apenas 20 anos de idade. O programa foi ao ar em 1965, como o nome Jovem guarda, apresentação de Roberto Carlos e os parceiros Erasmo Carlos e Wanderléa (1946-). Acabou sendo um grande sucesso de audiência, permanecendo na programação da emissora até 1969. Isso acaba alavancando a carreira do trio e o rock alcança maior reconhecimento no Brasil, fazendo com que o gênero musical fique conhecido pelo nome do programa de televisão (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000).

FIGURA 7– WANDERLÉA, ROBERTO CARLOS E ERASMO CARLOS

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)

Com o sucesso, o trio passou a ser o centro do movimento no país. Isso contribuiu para a popularização de uma nova safra de rockeiros: Vanusa (1947-2020), Ronnie Von (1944-), Os Vips, Os Brasões, entre outros. Entretanto, enquanto o rock norte-americano era símbolo de uma contracultura, da rebeldia das novas gerações, a Jovem Guarda caracterizava-se por sua ingenuidade, uma espécie de versão leve de sua principal influência. A partir da segunda metade da década de 1960, a Jovem Guarda rivalizou audiência com a bossa nova e os festivais da MPB, influenciando uma geração de jovens curiosos por uma nova estética. Os instrumentos eletrificados, sobretudo a guitarra, tornaram-se um símbolo das novas tendências musicais.

DICAS

Roberto Carlos estrelou uma trilogia de filmes que carregavam seu nome, todos dirigidos por Roberto Farias. Entre eles está Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, uma comédia musical de 1968 cujo álbum com a trilha sonos é um dos discos mais importantes da Jovem Guarda. O filme está disponível em: youtube.com/watch?v=bgFbmh1JVYg.

Os integrantes da Jovem Guarda participaram dos festivais de música televisionados da década de 1960, mas não tiveram grande aceitação no meio. Com o surgimento da Tropicália, no início da década de 1970, houve um esvaziamento da Jovem Guarda. A Tropicália utilizava alguns elementos do “iêiê-iê”, como os instrumentos eletrificados, mas diferentemente da Jovem Guarda, apresentava maior consciência social. Aliado a isso, o movimento já demonstrava certo esgotamento criativo e o cansaço de seus participantes, o que levou o movimento ao declínio. Mesmo assim, continuou influenciando diversos artistas e programas televisivos nas décadas posteriores (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). Principais artistas do movimento: • Roberto Carlos (1941-): com a popularidade alcançada pela Jovem Guarda, tornou-se um dos mais influentes cantores da música brasileira do século XX. Possui vasta produção musical, boa parte em parceria com Erasmo Carlos, sendo o artista solo com mais álbuns vendidos na história da música brasileira, incluindo gravações em espanhol, inglês, italiano e francês, além de três filmes com o seu nome. Notabiliza-se pela quantidade de prêmios que ganhou pelo mundo, entre eles Grammy Latino e Grammy Award.

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

• Erasmo Carlos (1941-): cantor, compositor, multi-instrumentista, ator e escritor, possui grande produção, boa parte em parceria com Roberto Carlos. Ao longo da carreira trabalhou com diversos artistas da música brasileira: Reinaldo Rayol, Renato e seus Blue Caps, Chico Buarque, Milton Nascimento, Lulu Santos, Zeca Pagodinho, Arnaldo Antunes, Frejat, Adriana Calcanhoto, Marisa Monte, Kid Abelha. • Celly Campello (1942-2003): precursora do rock no Brasil. Despontou no cenário musical ainda aos 16 anos. Gravou grandes sucessos como Banho de lua e Estúpido cupido. Participou de filmes, programas de televisão e diversos singles, parte em parceria com seu irmão Tony Campello. Abandonou precocemente a carreira artística, aos 20 anos de idade, no começo da década de 1960. Nos anos 1970 retomou a carreira, mas já sem grande impacto no cenário musical. • Tony Campello (1936-): atuando como cantor e produtor musical, é um dos precursores do rock no Brasil, fazendo sucesso no fim da década de 1950 e início dos anos 1960. • Wanderléa (1946-): cantora, compositora, atriz e instrumentista, é um dos grandes nomes femininos da Jovem Guarda. Na televisão e cinema, foi apresentadora, participou de diversos filmes e teve algumas de suas composições como tema de novelas. • Ronnie Von (1944-): cantor, compositor, apresentador e ator, construiu ampla carreira na música, no rádio e na televisão brasileira, principalmente como apresentador de programas de auditório e como ator e compositor de trilhas sonoras de filmes e novelas. • Jerry Adriani (1947-2017): cantor, ator e apresentador, tem vasta produção fonográfica, além de amplo trabalho na rádio, na televisão e no cinema. • Vanusa (1947-2020): a cantora e compositora começou a carreira muito cedo, ainda com 16 anos de idade. Com considerável produção fonográfica, passeou por diversos gêneros da música brasileira – rock, MPB, pop –, além de muitas participações na televisão. • Renato e seus Blue Caps: uma das bandas precursoras do rock no Brasil, tornou-se conhecida por fazer versões em português de sucesso internacionais. Ganharam notoriedade na rádio e televisão brasileira participando de diversos programas. São umas das bandas mais longínquas em atividade na história da música brasileira. • Os Incríveis: banda que ficou conhecida pelo rock e por versões de músicas instrumentais e de músicas italianas como Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones, alcançou notoriedade como banda de base para a cantora Rita Pavone e de programas de auditório.

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TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)

• The Fevers: reconhecido como um grupo vocal-instrumental da Jovem Guarda, foi banda base para diversos artistas nacionais – Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wilson Simonal, Jorge Ben.

5 TROPICÁLIA Liderados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, a Tropicália – ou Tropicalismo – foi um movimento musical brasileiro da década de 1970. Teve participação de importantes artistas, como Maria Bethânia (1946-), Gal Costa (1945-), Tom Zé (1936-), Torquato Neto (1944-1972), Capinam (1941-), Nara Leão, Rita Lee (1947), Os Mutantes, Rogério Duprat (1932-2006), Damiano Cozzella (1929-2018) e Júlio Medáglia (1938-). Misturando elementos da música erudita, do folclore e da vanguarda musical da época, destacam-se por incorporarem nas composições instrumentos eletrificados a gêneros populares (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). O Tropicalismo defendeu as raízes culturais e as relações de identidade, confrontando o moderno e o arcaico, o nacional e o estrangeiro, a cultura erudita e a de massa. A partir disso, evidencia-se uma intenção poéticomusical, na experimentação de sonoridades e no questionamento sobre hábitos e comportamentos. Dessa forma, abordam significativamente o campo comportamental da sociedade, com relação à corporalidade, à sexualidade e à estética (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). O núcleo do que futuramente seria o Tropicalismo, formado por Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia, inicia-se em Salvador, na Bahia. Como artistas, tiveram importante participação no Teatro Vila Velha, desde sua fundação em 1964, quando tocaram na festa de inauguração do lugar, com show organizado por Caetano. A partir disso, passam a fazer parte do grupo musical do Teatro Vila Velha e logo chamam a atenção de artistas e da mídia local (CALADO, 1997). Já atuando no Rio de Janeiro e em São Paulo, os futuros tropicalistas se destacam em espetáculos promovidos pelo diretor Augusto Boal. O grupo logo passa a fazer breves excursões pelo país, enquanto cada um desenvolve gradativamente sua carreira individual. Nesse período, aproximam-se de outros artistas, principalmente a partir do Centro Popular de Cultura, no Rio, e do Teatro de Arena, em São Paulo. Entre eles estão os compositores Torquato Neto, Geraldo Vandré e Edu Lobo, os cineastas Glauber Rocha e Ruy Guerra, e o ator e diretor de teatro Gianfrancesco Guarnieri. Desse contato com outros artistas, os tropicalistas acabam influenciados pela poética de produções contemporâneas, sobretudo Caetano Veloso (CALADO, 1997).

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

O ano de 1967 foi extremamente importante para o surgimento do Tropicalismo. Os irmãos Caetano e Gal foram contratados pela Phillips para gravar um disco em dupla. Assim como Gil, eles já haviam gravado alguns singles, mas sem grande repercussão. Com produção de Dori Caymmi (1943-), arranjos de Roberto Menescal, Francis Hime e Caymmi, foram registradas doze faixas, entre elas oito composições de Caetano. Apesar de o disco não ter feito grande sucesso, possibilitou maior reconhecimento da dupla (CALADO, 1997). Percebendo as inquietações do irmão, que não havia ficado satisfeito com o disco e buscava por novos caminhos musicais, Bethânia recomenda a Caetano que prestasse mais atenção à Jovem Guarda. Fã de Roberto Carlos, Bethânia acreditava que a Jovem Guarda poderia ser uma influência positiva para novos rumos. Caetano conhecia algumas músicas, principalmente de Roberto Carlos, que a essa altura tocavam incessantemente nas rádios do país. Entretanto, acreditava que as músicas da Jovem Guarda eram comerciais demais e nunca deu nenhuma atenção ao movimento. Com a insistência da irmã, acaba por assistir a um programa da Jovem Guarda na TV Record. Percebe que a irmã tinha razão, que havia uma poética contundente no visual pop do programa, muito diferente da bossa nova. Bethânia recomendou ainda que o irmão abandonasse o violão e passasse a utilizar guitarra: “O violão é muito pouco para você! Escolha um instrumento que tenha o mesmo grito, que tenha o seu gesto” (CALADO, 1997, p. 94). Não tardou a Caetano e Gil incorporarem instrumentos eletrificados em suas composições. Ainda, em 1967, a TV Record realizou o Terceiro Festival da Música Popular Brasileira, e a dupla de compositores Gil e Caetano conseguiu passar para finalíssima, cada um com uma canção. Caetano apresentou a canção Alegria, alegria, acompanhado dos rockeiros da banda Beat Boys. Gil, que já havia chegado à final da edição passada com a composição Ensaio geral, interpretada por Elis Regina, nesta edição entrou acompanhado pelos Os Mutantes, e executou a música Domingo no parque. Com a influência do nacionalismo do governo militar, o público não foi muito receptivo ao ver no palco instrumentos característicos do rock norteamericano. Calado (1997, p. 139) comenta que “no momento em que os Beat Boys surgiram no palco do Teatro Paramount, com suas guitarras e cabelões, vestidos de cor-de-rosa, as vaias já começaram”. Mesmo assim, as canções acabaram bem recebidas pelo festival e bem avaliadas pelo júri. Alegria, alegria, de Caetano, alcançou a quarta colocação e ainda se tornaria no futuro um hino dos movimentos estudantis contra o regime militar e um grande sucesso nacional. Já Domingo no parque, de Gil, ficou com a segunda colocação e ainda recebeu prêmio de melhor arranjo.

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FIGURA 8 – CAETANO VELOSO, GILBERTO GIL, NARA LEÃO E OS BEAT BOYS NO PROGRAMA DIVINO MARAVILHOSO

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

Com o destaque alcançado pelo festival, a gravadora Phillips tratou de acelerar o processo de produção de um novo álbum para cada um da dupla. Entretanto, segundo Calado (1997), os dois se mostravam descontentes com suas gravações anteriores, Gil com compactos lançados pela RCA e Caetano com o disco em parceria com Maria Bethânia lançado pela Phillips. Na visão deles, aquelas gravações não refletiam o pensamento dos compositores na época. Somado a isso, Caetano estava deslumbrado com a poética de Terra em transe, filme do diretor Glauber Rocha, e da peça Rei da vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa (1937-) e escrita por Oswald de Andrade (1890-1954) em 1933. A influência dessas obras é fundamental para que Caetano Veloso compusesse a canção Tropicália, que vai dar nome ao movimento (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). Durante a gravação do primeiro disco de Caetano, a canção por ele escolhida para abrir o álbum ainda não tinha nome. Para o compositor, era a música central do seu trabalho. Ao mostrar as canções para seu amigo fotógrafo Luís Carlos Barreto, este também se interessou mais pela mesma canção e perguntou qual era o nome dela. Quando Caetano respondeu que ainda não tinha um título, Barreto sugeriu o nome “tropicália”. Segundo o fotógrafo, a música remetia a uma instalação de Hélio Oiticica (1937 -1980), que havia visto semanas atrás no MAM do Rio. Entretanto, mesmo depois de compartilhar a ideia com a produção do disco, que aprovou o título, Caetano foi relutante em aceitar esse nome (CALADO, 1997).

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FIGURA 9 – INSTALAÇÃO DE HÉLIO OITICICA

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

NOTA

A obra Tropicália, de Hélio Oiticica é uma instalação de ambiente labiríntico, imagético, com caminhos de areia, plantas, araras, poemas e um aparelho de televisão. Segundo o autor, é um ambiente tropical, como se fosse o fundo de uma chácara. Ao penetrar na obra, o espectador se depara com um ambiente ruidoso e de imagens com a capacidade de invadir diversos sentidos, da visão, da audição, do tato e do olfato. O trabalho caracteriza-se pela pesquisa sensorial, marca registrada do artista (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CULTURA BRASILEIRAS, 2020).

Tropicália – a recém-lançada canção de Caetano Veloso, que o próprio Barreto ajudara a batizar, semanas antes, ligando-a à obra homônima de Hélio Oiticica – tinha tudo a ver com o delírio tropical de Terra em Transe, de Glauber, ou com a antropofagia oswaldiana da peça O Rei da Vela, cuja temporada carioca começara havia três semanas (CALADO, 1997, p. 173).

Entretanto, mais uma vez, Gilberto Gil e Caetano não estavam satisfeitos com a gravação de seus respectivos discos. A inexperiência com o trabalho em estúdio, bem como o conhecimento musical ainda insuficiente para expor suas ideias, foi frustrando cada vez mais os compositores. Devido a sua irreverência e bom humor, Gil se abalava um pouco menos, enquanto que Caetano ficava cada vez mais descontente, o que interferia inclusive no processo de gravação (CALADO, 1997).

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TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)

Motta (2000) relata que, após o festival da Record e do lançamento dos discos de Gil e Caetano, as entrevistas que os compositores davam, bem como suas apresentações anárquicas na televisão, não deixavam dúvidas de que algo novo estava surgindo. Entretanto, considera que o trabalho realizado pelos compositores até então era de difícil compreensão, mas que inegavelmente rompiam os estilos estabelecidos e restauravam valores musicais nacionais, negados pelos movimentos históricos anteriores, sobretudo da Jovem Guarda, que seguia tendências do mercado fonográfico internacional. No início de 1968, em uma conversava de bar em Ipanema, os amigos Nelson Motta, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl e Luiz Carlos Barreto conversavam entusiasmados sobre o Cinema Novo, o Teatro Oficina e os discos de Caetano e Gil. Debatiam sobre o fato de que, apesar de não serem articuladas, estas manifestações artísticas se aproximavam esteticamente, o que indicava a formação de um novo movimento que ainda não possuía nome. Imaginavam que era necessária uma festa de celebração, uma espécie de batismo modernista, um evento cafona para inaugurar esse novo movimento. Entretanto, a ideia da festa não passava de uma brincadeira (MOTTA, 2000). No dia seguinte, Motta, que trabalhava em uma coluna no jornal Última Hora, com a falta do que noticiar, dedica todo seu espaço do jornal para escrever sobre as conversas da noite passada. Com o nome de A cruzada tropicalista, o texto, que não passava de uma fantasia, celebrava o atual momento da arte brasileira a partir de uma festa imaginária, com elementos de várias referências nacionais. Na época, a palavra “tropicalismo” apareceu em diversas obras artísticas e já fazia parte da linguagem comum. A publicação debochava do nacionalismo exacerbado pela visão política da época e do tradicionalismo da sociedade brasileira, ironizava os gostos nacionais e exaltava as preferências de intelectuais (MOTTA, 2000). Mesmo com tom de deboche, a coluna foi levada a sério e teve grande repercussão nacional nos diversos veículos de mídia. A palavra “tropicalismo” passou a ser amplamente utilizada para se referir a arte de Gil e Caetano, mesmo que ninguém soubesse realmente o que isso queria dizer. Houve um grande choque na comunidade artística. Muitos amigos da dupla passaram a considerar aquilo uma traição, uma afronta, sobretudo pela já incorporação de elementos do rock no trabalho dos compositores. O afastamento do tipo de música de Tom Jobim e João Gilberto foi considerada por artistas como um atraso para a arte brasileira, algo que parecia inconcebível. Enquanto isso os jovens estudantes, unidos contra a regime militar, dividiam-se entre o fascínio e as críticas mais contundentes ao movimento (MOTTA, 2000). Entretanto, no início, Caetano e Gil não estavam muito à vontade com o que estava acontecendo. Gil estranhou o fato de ter seu trabalho associado a um movimento cultural do qual nunca tinha ouvido falar. Já Caetano não havia gostado muito de uma música sua se chamar Tropicália, quem dera estar associado 221

UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

a um movimento com esse nome. Como Gil e Caetano já procuravam uma palavra para definir o tipo de música que estavam produzindo, e com toda aquela repercussão, acabaram aceitando o termo. Logo, Caetano apareceria no programa do Chacrinha vestindo um camisolão estampando de bananas (CALADO, 1997). Nessa época, Caetano era o grande destaque da música no país e com a repercussão o nome Tropicalismo acabou pegando. Surgiram blocos de carnaval com o tema, coleções de moda, e o assunto se tornou recorrente nos diferentes veículos de mídia, que produziram até debates sobre o tema. Isso causou preocupação inclusive em Hélio Oiticica e Nelson Motta, com a possibilidade de banalização do nome e do movimento (CALADO, 1997). Em maio de 1968, os tropicalistas gravam o disco coletivo Tropicalia ou Panis et Circenses. Caetano coordenou o disco e fez a escolha do repertório e Rogério Duprat desenvolveu os arranjos. Participaram ainda do disco o Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé, Capinam e Torquato Neto. A capa foi desenvolvida pelo artista plástico Rubens Gerchman, utilizando uma fotografia de Olivier Perroy, com figurinos de Rita Lee e Guilherme Araújo, com nítida influência do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Com diversas canções inéditas e o forte apelo estético, os arranjos de Duprat reforçaram a poética das músicas, que possuem diversas citações da cultura brasileira (CALADO, 1997). FIGURA 10 – CAPA DO DISCO

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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TÓPICO 1 — MÚSICA POPULAR URBANA NO BRASIL: GRANDES TENDÊNCIAS E GÊNEROS MUSICAIS (1950-1960)

Entre críticas negativas e elogios, até os jornalistas que chegaram a criticar o movimento, como Chico de Assis e Nelson Motta, renderam-se à genialidade do disco. Com festas de lançamento no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, seguido pelo primeiro programa de televisão dos tropicalistas, com participação de grandes nomes como Jô Soares, Grande Otelo e Chacrinha, o Tropicalismo se tornou o maior movimento musical de sua época. Com a popularização da MPB e do Tropicalismo, que se opunham ao regime militar, e o aumento da censura e perseguição a artistas pelo governo, Caetano Veloso e Gilberto Gil acabam presos em São Paulo no fim de 1968. Foram levados para prestar depoimento à Polícia Federal. Todavia, na época, Gil e Caetano não possuíam nenhuma ligação com partidos políticos, muito menos com o comunismo. Após semanas presos, foram soltos e transferidos para Salvador, onde tiveram que permanecer em prisão domiciliar. Em meados de 1969, com autorização dos militares, os dois acabam se exilando em Londres (CALADO, 1997). Antes de sair do país, Caetano Veloso havia gravado voz e violão para um novo disco, que foi terminado com arranjos de Duprat. Mesmo no exílio, Gil e Caetano continuaram produzindo em Londres, lançando novos trabalhos. Voltam para o Brasil em 1973, retomando a carreira no país, agora prestigiados no meio artístico. Influenciados pela bossa nova, principalmente por João Gilberto, e incorporando elementos diversos como a cultura popular, a música erudita e o rock norte-americano, o Tropicalismo causou grande impacto no cenário musical do Brasil. Tornou-se um dos mais importantes movimentos artísticos da história da música brasileira, obtendo reconhecimento mundial e influenciando novas gerações de artistas das mais diversas linguagens. Tropicalia ou Panis et Circenses é reconhecido com um dos mais importantes discos do século XX, tornando-se um marco da música brasileira. Principais artistas do movimento: • Caetano Veloso (1942-): um dos precursores do Tropicalismo, o cantor e compositor é um dos músicos brasileiros de maior renome internacional. Reconhecido pelas suas composições poéticas, sua canção Tropicália é que dá nome ao movimento. Possui vasta produção musical, que lhe rendeu diversos prêmios na carreira, como os inúmeros troféus no Grammy Latino, além de compor trilhas sonoras para muitos filmes e espetáculos teatrais. • Gilberto Gil (1942-): um dos principais idealizadores do Tropicalismo, o cantor e compositor é um dos maiores representantes da cultura negra no país. De renome internacional, coleciona em sua carreira diversos prêmios pelo mundo, como Grammy Award e Grammy Latino. Também ocupou importantes cargos públicos, exercendo a função de ministro da Cultura e vereador em Salvador.

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

• Gal Costa (1945-): cantora, compositora e multi-instrumentista, alcançou grande sucesso no já no começo da década de 1970, tornando-se a grande representante do Tropicalismo após o exílio de Gil e Caetano. Com vasta produção fonográfica e muitas participações na televisão, é a única cantora brasileira a integrar a sala da fama do Carnegie Hall, em Nova Iorque. • Maria Bethânia (1946-): cantora e compositora, é considerada uma das mais importantes artistas da MPB, tendo sido a primeira mulher a vender mais de um milhão de discos no Brasil. Além da vasta produção fonográfica, com mais de 30 discos lançados, tem importante participação no teatro, no cinema e na televisão brasileira. • Nara Leão (1942-1989): compositora, cantora e violonista, foi uma das principais figuras femininas de seu tempo. Migrou da bossa nova para o Tropicalismo, participando ativamente do movimento. • Tom Zé (1936-): cantor, compositor, arranjador e multi-instrumentista, é considerado um dos maiores expoentes da música brasileira devido a sua originalidade. Possui uma reconhecida carreira internacional, sobretudo por ter trabalhado com o produtor David Byrne, ex-integrante do grupo Talking Heads. • Rogério Duprat (1932-2006): maestro, compositor e arranjador, se tornou um dos principais responsáveis pelo sucesso do tropicalismo, a partir de arranjos criativos e bem elaborados. Tem grande importância também para a música erudita brasileira, tendo participado do manifesto “Música Nova” em 1963. • Torquato Neto (1944-1972): poeta, jornalista e letrista, fez parcerias com importantes compositores da MPB, principalmente bossa-novistas e tropicalistas, além da participação em alguns filmes. Faleceu precocemente ao cometer suicídio um dia depois de completar 28 anos. • Capinam (1941-): poeta e compositor, é considerado um dos mais importantes escritores da Bahia, tendo feito parcerias com diversos compositores da MPB, sobretudo bossa-novistas e tropicalistas. • Os Mutantes: uma das mais importantes bandas de rock do Brasil, foi fundada em 1966 por Arnaldo Batista, Rita Lee e Sérgio Dias. Como banda base em shows ao vivo e gravações de estúdio, acompanhou diversos artistas da Jovem Guarda e do Tropicalismo, participando inclusive do disco Tripicalia ou panis et circenses. Nas diversas formações da banda, também fizeram parte outros renomados músicos brasileiros: o baixista e produtor Liminha, as cantoras Zélia Duncan e Bia Mendes, e os bateristas Dinho Leme e Rui Motta. • Beat Boys: apesar de ser uma importante banda de rock brasileiro, foi formada por músicos argentinos no início dos anos 1960, em São Paulo. Tiveram importante participação no Festival de Música Popular, da TV Record, em 1967, acompanhando Caetano Veloso na música Alegria, alegria, e Gilberto Gil com Domingo no parque. 224

RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu que: • A bossa nova foi um importante movimento musical surgido em meados do século XX. Misturando elementos de samba e jazz, o gênero ficou conhecido internacionalmente. Nomes como João Gilberto e Tom Jobim se tornaram grandes referências musicais, influenciando diversos outros artistas no Brasil e no mundo. • A MPB diz respeito a uma nova safra de compositores que surgiram a partir dos festivais de música televisionados no Brasil. Os festivais revelaram grandes nomes para o cenário nacional, tornando-se um importante celeiro de novos artistas e um marco na produção musical nacional. Também conhecidas como canções de protesto, muitas das composições se tornaram verdadeiros hinos das manifestações promovidas por estudantes contra o regime militar. • A Jovem Guarda foi o primeiro grande movimento do rock no Brasil. Seu nome passou a ser utilizado após o sucesso de um programa homônimo da TV Record apresentado pelos principais representantes do movimento: Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. • A Tropicália ou Tropicalismo foi um dos mais importantes movimentos da história da arte brasileira, liderados por Caetano Veloso e Gilberto Gil. O movimento é um marco na cultura brasileira, tanto pela pesquisa de novas possibilidades artísticas, quanto pela valorização da arte nacional. Incorpora diversos artistas de diferentes linguagens como o teatro, o cinema, as artes visuais e a literatura. O termo “tropicália”, originariamente, é o título de uma instalação de Hélio Oiticica, batizou uma música de Caetano e acabou dando nome ao movimento.

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AUTOATIVIDADE 1 Os movimentos da música popular brasileira das décadas de 1950 e 60 possuem artistas que são considerados grandes representantes destas manifestações. O trabalho dos artistas ao longo da carreira é pautado pela representação destes movimentos, influenciando muitos outros artistas. Acerca dos compositores, associe os itens utilizando o código a seguir: I- João Gilberto e Tom Jobim. II- Chico Buarque e Geraldo Vandré. III- Roberto Carlos e Erasmo Carlos. IV- Gilberto Gil e Caetano Veloso. ( ( ( (

) Tropicalismo. ) Jovem Guarda. ) Bossa Nova. ) MPB.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) II – I – III – IV. b) ( ) I – III – II – IV. c) ( ) IV – III – I – II. d) ( ) IV – III – II – I. 2 Um dos fatos marcantes da música brasileira na década de 1960 foi a inserção dos instrumentos eletrificados. Nesse sentido, duas bandas de rock se destacaram no cenário nacional por acompanharem diversos cantores da Jovem Guarda e do Tropicalismo, tendo participado de importantes festivais de música popular, programas de televisão e produções fonográficas. Estamos fazendo referência aos grupos: a) ( b) ( c) ( d) (

) Secos e Molhados e Os Mutantes. ) Os Mutantes e Beat Boys. ) Jovem Guarda e Tropicalismo. ) Beat Boys e Beatles.

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TÓPICO 2 —

UNIDADE 3

A DÉCADA DE 1970 1 INTRODUÇÃO A década de 1970 foi um período de importantes transformações em todo o mundo. O homem havia acabado de pisar na Lua e, com isso, entre outros fatores, terminava a corrida espacial e armamentista protagonizada por Estados Unidos e União Soviética. Enquanto os americanos sofriam uma crise no petróleo, outros países emergiam economicamente, sobretudo na Europa e na Ásia. Já na África, diversos países declararam independência nesse período. O mundo todo sofria uma grande transformação social. Para o Brasil, a década de 1970 começou com a Seleção Brasileira de Futebol sendo campeã da Copa do Mundo, no México. A crise do petróleo impactou o país, que sofreu recessões econômicas e contraindo dívidas externas. Até o fim da década, o país sofreria com a inflação e a queda do poder aquisitivo da população, colocando em xeque a política do país. O meio musical entrou na “era da discoteca”, com o surgimento da “disco music”, fazendo sucesso em todo o mundo. O LP se populariza no mercado fonográfico, acompanhado da estereofonia (gravações de áudio com dois canais, lado direito e lado esquerdo). Enquanto isso, os festivais de rock e seus mais diversos gêneros se multiplicavam pelo globo, indicando uma nova geração de jovens dispostos a quebrar paradigmas. Os movimentos musicais da década de 1960 (bossa nova, MPB e tropicália) tinham alcançado prestígio na sociedade brasileira. A música teve significativa importância no desenvolvimento da televisão brasileira, conquistando um púbico efetivo a partir dos programas de auditório e dos festivais de música. A indústria fonográfica se firmou no mercado nacional com a abertura de novas gravadoras e o aumento considerável na produção de mídias, fazendo com que o meio musical se desenvolvesse profissionalmente com maior rapidez. Com o Ato Institucional nº 5, em 1968, o regime militar se tornou ainda mais repressivo com relação à produção cultural. Aqueles que puderam deixaram o Brasil, e se exilaram principalmente em países da América do Sul e da Europa. Com isso, houve certo esvaziamento da produção no meio artístico (TINHORÃO, 1998).

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2 A MPB MODERNA Em 1970 a TV Excelsior teve sua concessão cassada pelo governo militar e muitos de seus profissionais foram absorvidos por outras emissoras, sobretudo a Rede Globo. A emissora se tornou o centro dos programas musicais, entre eles o Festival Internacional da Canção. Suas três últimas edições aconteceram nos anos de 1970, 1971 e 1972. Com a ruptura estética causada pela Tropicália, no final da década anterior, os festivais dos anos de 1970 revelaram uma safra de novos compositores (MELLO, 2003). Como destaca Motta (2000), com exílio de Gil e Caetano, Gal Costa se tornou o grande nome da música para os jovens mais inquietos da época, mantendo vivo um resquício do tropicalismo. Como grande representante da MPB, Chico Buarque entraria nos próximos anos em um grande momento de sua carreira. Enquanto isso, Elis Regina, já estava consolidada como uma das grandes intérpretes do Brasil e buscava novos rumos para o seu trabalho. O álbum Em pleno verão, de Elis, trouxe composições de artistas comuns em seu repertório, como Baden Powell e Jorge Ben, e alguns compositores que ela ainda não havia gravado, como Roberto Carlos, Gil e Caetano, além de alguns talentos que acabavam de surgir: Joyce (1948-) e Tim Maia (1942-1998). Em seguida, lançou o compacto da canção Madalena, de um compositor ainda pouco conhecido, Ivan Lins (1945-). A música se tornou um dos grandes sucessos de 1970, e Ivan se tornaria parceiro de Elis em um programa da TV Globo que traria os principais nomes da música popular da época (MOTTA, 2000). O meio artístico enfrentava a burocracia dos órgãos de censura. Toda obra tinha de ser revisada por um fiscal antes de ser publicada. Do final da década de 1960 ao início de 1970, muitos artistas foram presos ou exilados. Enquanto isso, a indústria fonográfica no Brasil, por meio de multinacionais, massificava a produção de discos de artistas estrangeiros. Assim, a produção musical brasileira enfrentou sérias dificuldades no início da década de 1970. A partir disso, surge uma nova safra de compositores que se caracterizam por utilizar elementos mais modernos em seu trabalho. Segundo Tinhorão (1998), com o controle da censura, a MMPB (moderna música popular brasileira) se distancia um pouco de temas polêmicos. O rock passa a ser o centro do movimento de contracultura, influenciando novos compositores da música brasileira que surgiram ao longo na década de 1970. Com a popularização dos instrumentos eletrificados, os grupos musicais se aproximam das formações roqueiras, utilizando com maior frequência elementos do gênero em novas composições. Esse período conta ainda com o ressurgimento do samba no mercado fonográfico, com forte influência da cultura dos subúrbios cariocas. Havia ainda a tradição da música romântica no país, que nessa época passa a ser representada pelos artistas da Jovem Guarda. Com todos esses movimentos fazendo parte do cenário nacional, a MPB passou a ser vista cada vez mais não mais como um 228

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gênero em si, mas como um complexo meio cultural. Representa justamente a pluralidade como característica do próprio mercado nacional. O conceito de MPB passa a representar cada vez mais o gosto popular, sobretudo dos centros urbanos (NAPOLITANO, 2002).

2.1 RIO-SÃO PAULO O cenário musical do eixo Rio-São Paulo começou os anos 1970 conhecendo uma das músicas de maior sucesso da década. Chico Buarque havia recém voltado ao Brasil, depois de um período de exílio na Itália. Sua canção Apesar de você passou despercebida e foi liberada pela censura, e a gravadora Philips tratou de gravar e lançar rapidamente a música. A composição foi um sucesso em todo o país, tornando-se um hino de resistência do povo brasileiro diante do governo militar. Percebendo o tamanho do problema, os militares trataram de proibir a música, interditar sua distribuição e confiscar todos os discos. Entretanto, a essa altura boa parte do povo já sabia a letra de cor (MOTTA, 2000). Nesse mesmo período, um novo astro era lançado no Rio de Janeiro. O Brasil rapidamente passou a conhecer Tim Maia, que alcançou o estrelato com seu primeiro disco, emplacando a música Primavera. Nos anos seguintes, alcançou diversos sucessos, muitos deles escolhidos como temas de novela. Misturando elementos da música negra americana com a brasileira, foi um sucesso de crítica e se tornou um dos maiores cantores do período, recordista de venda da Philips, maior gravadora do Brasil na época (MOTTA, 2000). No final do ano de 1970 vai ao ar pela TV Globo o programa Som Livre Exportação, com apresentação de Elis Regina e Ivan Lins. A dupla havia emplacado Madalena na voz da cantora, e que virou inclusive tema da novela A próxima atração, da Rede Globo. Elis mudava os rumos de sua carreira, apostando em um repertório mais contemporâneo. O programa era gravado ao vivo e passou por diversas capitais do Brasil (MOTTA, 2000). Além de trazer artistas já consagrados – Chico Buarque, Wilson Simonal, Maria Bethânia, Os Mutantes –, o programa passou a revelar uma nova geração de músicos e compositores, sobretudo do MAU (movimento artístico universitário), do Rio de Janeiro, com Ivan Lins, Aldir Blanc (1946-2020), Gonzaguinha (19451991) César Costa Filho (1944-) e outros. Com autorização dos militares, o programa contou ainda com duas participações de Caetano Veloso, que fez uma passagem rápida pelo Brasil em 1971 (MOTTA, 2000). O MAU foi um grupo de compositores que passou a se articular nos festivais da canção da TV Tupi. Como já havia muitos programas de música na televisão brasileira, a TV Tupi resolveu escolher um nicho de mercado mais específico, e promoveu um evento exclusivo para compositores universitários, que eram a faixa principal de consumidores da MPB. A partir da segunda edição 229

UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

do festival, em 1969, artistas como Gonzaguinha, Ivan Lins, Vitor Martins (1944) e Aldir Blanc passaram a se organizar e logo seriam absorvidos pela indústria televisiva (NAPOLITANO, 2001). Assim como o trabalho de artistas já consagrados, os novos compositores da década de 1970 se tornam importantes na manutenção da MPB como um importante movimento cultural. Como destaca Napolitano (2002), esses artistas se utilizavam, principalmente, de elementos mais tradicionais, ou seja, o samba, a bossa nova e a música de festival. São representados por movimentos como o MAU e produções de sucesso, como a parceria de Vinicius e Toquinho. No decorrer da década, sobretudo a partir de 1972, com o surgimento de tendências nordestinas e mineiras, o meio musical do Brasil se torna cada vez mais diversificado.

2.2 MINAS GERAIS: CLUBE DA ESQUINA O termo Clube da Esquina se refere a um grupo de artistas que surgiram na década de 1960, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. O movimento se torna conhecido a partir de 1972 com gravação do disco que dá nome ao grupo, tornando-se uma importante referência musical no período. Liderados por Milton Nascimento e Lô Borges, o álbum teve grande impacto comercial em seu lançamento e é considerado um dos mais importantes discos da história da música brasileira. Segundo Borges (1996), o álbum foi fruto da amizade desde a adolescência de Milton Nascimento com os irmãos Borges, Marilton (1943-), Márcio (1946-) e Lô (1952-). O nome deriva do apelido que os amigos deram a um lugar onde costumavam se encontrar, um pedaço de calçada na esquina da rua onde moravam. Se juntavam para conversar e tocar violão, sentados em um meio-fio, onde também começaram a compartilhar as primeiras composições, entre elas a música Clube da esquina. Além de Milton e os irmãos Borges, já faziam também parte da turma Wagner Tiso (1945-), Fernando Brant (1946-2015), Nivaldo Ornelas (1941-), Toninho Horta (1948-) e Paulo Braga (1942-). A partir da segunda metade da década de 1960, Milton Nascimento já participava dos festivais de música da TV Excelsior e chamava a atenção por sua originalidade e talento, se destacando como intérprete. Também conhecido como Bituca, apelido de infância, no ano de 1966 tem sua música Canção do sal gravada pela cantora Elis Regina para o disco Elis, pela Philips. Com a repercussão de seu trabalho, Milton se muda para São Paulo, pensando no futuro da carreira (BORGES, 1996). No Segundo Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, Milton Nascimento conseguiu classificar três músicas suas para as seletivas: Maria, minha fé, na voz de Agostinho dos Santos (1932-1973), Travessia e Morro Velho, na voz do próprio compositor. As duas composições na interpretação do próprio 230

TÓPICO 2 — A DÉCADA DE 1970

Milton foram aclamadas no festival, chegando a finalíssima, e o compositor já era visto como uma grande revelação. A canção Travessia, feita em parceria com Fernando Brant, acabou conquistando a segunda colocação do festival e Milton Nascimento ainda recebeu o prêmio de melhor intérprete, chamando atenção de diversos outros músicos (MELLO, 2003). Em 1967, Milton grava seu primeiro álbum, Travessia, com dez canções próprias. Nesse mesmo ano recebe o convite do arranjador Eumir Deodato para ir aos Estados Unidos, onde em 1968 grava um disco com as mesmas músicas do primeiro, mas com arranjos melhorados por Deodato e com algumas versões das letras em inglês. Voltando ao Brasil, torna-se amigo do cineasta Rui Guerra, compondo a trilha sonora para o filme Os deuses e os mortos, de 1969. Já com contrato pela EMI/Odeon, no mesmo ano lança o álbum Milton Nascimento, e no ano seguinte, Milton. No início da década de 1970 participou ainda de dois discos da banda Som imaginário, do seu amigo Wagner Tiso (BORGES, 1996). Em 1972 Milton convida seu amigo Lô Borges para dividir um álbum duplo. Sob forte influência do amigo e produtor Ronaldo Bastos (1948-), a ideia era produzir um disco conceitual. Teve ajuda de Adail Lessa, diretor de elenco da Odeon, para convencer a diretoria da empresa a aceitar o que seria o primeiro álbum duplo produzido no Brasil (BORGES, 1996). Com composições de Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges, Fernando Brandt e Ronaldo Bastos, o disco contou ao todo com 21 músicas. Com interpretações de Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes (1951-) e a participação especial de Alaíde Costa em uma das músicas, o disco contou com uma grande seleção de artistas da época. Entre os diversos profissionais que estiveram na produção do álbum, destacam-se o violonista Tavito (1948-2019), o pianista Wagner Tiso, o guitarrista Toninho Horta, o baterista Robertinho Silva (1941-), alguns arranjos de Eumir Deodato e Gonzaguinha fazendo backing vocal em uma das músicas. FIGURA 11 – CAPA DO DISCO CLUBE DA ESQUINA, CONSIDERADO UM DOS MAIS IMPORTANTES ÁLBUNS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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Contudo, segundo Borges (1996), após o lançamento do disco e um fracassado show de estreia, naturalmente as críticas foram negativas. Após uma segunda série de shows, mesmo com algumas críticas se mantendo, o álbum passou a ganhar maior notoriedade e acabou se tornando um dos discos mais importantes da década de 1970, o que fez com que a dupla Milton Nascimento e Lô Borges gravassem o Clube da esquina 2, em 1978.

2.3 NORDESTE Mesmo com o momento conturbado que o Brasil vivia na década de 1970, o Nordeste foi berço de muitos artistas que tiveram grande sucesso no Brasil e no exterior. Como relata Napolitano (2002), essa década se destaca pela consolidação de um termo mais amplo do que é MPB. A moderna música popular brasileira se caracteriza por representar a diversidade cultural do país. Nesse sentido, historicamente, o Nordeste desempenha um importante papel na formação dessa diversidade, fornecendo muitos elementos musicais, bem como outras possibilidades de leitura do mundo. Nesse sentido, devemos destacar o movimento armorial, que surgiu no começo da década de 1970, idealizado pelo escritor Ariano Suassuna (1924-2014). O movimento objetivou o desenvolvimento de uma arte nacional, construída principalmente a partir da cultura popular. Suassuna foi um grande incentivador da apropriação do folclore, defendendo esta ideia tanto para artistas populares quanto eruditos. A partir da influência das ideias modernistas em defesa de uma arte nacionalista, o movimento critica principalmente a cultura de massa, a apropriação de elementos estrangeiros e o estereótipo nos meios de comunicação. Suassuna foi um defensor da arte como uma ferramenta de manifestação da identidade do povo. É a partir desses princípios que o movimento fomentou o surgimento de diversos artistas. Além da vasta e relevante produção literária, Suassuna exerceu ao longo da vida diversos cargos de gestão da cultura, sendo considerado um dos mais importantes intelectuais representantes da cultura popular (BEZERRA, 2009). FIGURA 12 – O ESCRITOR ARIANO SUASSUNA, IDEALIZADOR DO MOVIMENTO ARMORIAL

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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Com apoio de Suassuna, o compositor Antônio José “Zoca” Madureira (1949-) forma em 1971 o Quinteto Armorial, com a participação de antigos colegas da Escola de Belas Artes do Recife. A partir de 1972 o grupo começa a excursionar pelo Brasil e em 1974 grava seu primeiro disco Do romance ao galope nordestino. Com um trabalho desenvolvido a partir das raízes culturais nordestinas, do erudito ao popular, e com utilização de temas medievais, o Quinteto Armorial se tornou uma importante referência de uma sonoridade regionalista, influenciando novos artistas que surgem a partir da década de 1970 (VENTURA, 2007). Nesse período se destacam diversos compositores que utilizam dos mesmos princípios. Tendo lançado em 1972 seu primeiro álbum Das barrancas do rio Gavião, mas sem grande impacto no cenário musical, Elomar (1937-) é um dos artistas que se destaca pela junção de diversos elementos musicais ao regionalismo. De família tradicional nordestina, desde a infância esteve envolvido com as manifestações musicais do folclore nordestino, a partir das festas religiosas, do repente e dos violeiros do sertão. Sua carreira ganha notoriedade nos anos 1990, quando grava diversos álbuns e ganha projeção internacional. Utilizando da linguagem nordestina e do cancioneiro medieval, destaca-se por uma sonoridade particular, com influências do popular e do erudito (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). O ano de 1972 marca a volta de Gilberto Gil e Caetano Veloso ao Brasil. Nesse ano, acontece um show na Bahia para a gravação de um disco que ficaria marcado na história da música brasileira. O álbum Chico e Caetano – juntos e ao vivo simboliza a junção de dois grandes representantes da música brasileira. Chico Buarque vivia seu melhor momento da carreira, representante de uma MPB mais tradicionalista, e Caetano Veloso, que voltava ao Brasil já consagrado, representava o Tropicalismo e as novas tendências. Tanto o show quanto o disco tiveram enorme impacto no país, alcançando sucesso em um período marcado pela repressão (MOTTA, 2000). Foi também em 1972 que os parceiros pernambucanos Alceu Valença (1946-) e Geraldo Azevedo (1945-) lançam seu primeiro disco Quadrafônico – Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Misturando influências que passam pelas modas de viola, e de Nelson Gonçalves a Elvis Presley, suas canções se destacam pela junção da música popular nordestina com a cultura pop, com destaque para o forró, o frevo e o maracatu. Geraldo iniciou a carreira musical muito jovem na cena musical em Pernambuco, na década de 1960. Transfere-se para o Rio de Janeiro em 1967, onde seguiu sua carreira acompanhando Geraldo Vandré. Participou de festivais de música nesse período e chegou a ser preso pelo governo militar. Alceu se muda para o Rio em 1971, sob influência do amigo, lançando no ano seguinte o primeiro disco da parceria. Além de grandes sucessos como Tropicana, Cavalo de pau e Anunciação, de Alceu, e Taxi lunar e Dona da minha cabeça, de Geraldo Azevedo, a dupla também ficou conhecida por fazer parcerias com a com Zé Ramalho (1949-) e Elba Ramalho (1951-), na série de álbuns ao vivo intitulada Grande encontro (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000).

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

FIGURA 13 – CAPA DO LIVRO ESCRITO PELO PRODUTOR ANDRÉ BUARQUE

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

O paraibano Zé Ramalho iniciou a carreira musical em 1974, e, de forma independente, lança em 1975 seu primeiro disco com a parceria do artista Lula Côrtes (1949-2011) e participações de Alceu Valença e Geraldo Azevedo. A partir de 1977 segue a carreira no Rio de Janeiro, lançando novos trabalhos e tendo suas composições gravadas por outros artistas, alcançando projeção nacional com um trabalho que mistura música nordestina com o pop. Sua prima, Elba Ramalho, iniciou a carreira musical no canto coral na Paraíba. Posteriormente, fez parte de um conjunto feminino chamado As Brasas, que teve grande repercussão, e acaba sendo convidada para uma temporada com o Quinteto Violado, no Rio de Janeiro, onde segue sua carreira, passando a atuar também como bailarina a partir de 1974. No ano de 1979 lança o primeiro disco e no início da década de 1980 já alcança projeção internacional, tornando-se uma das maiores representantes da música nordestina, com milhões de discos vendidos (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). A década de 1970 revelou vários outros músicos nordestinos que tiveram grande impacto no cenário da época. Podemos citar ainda a maranhense Alcione (1947-), que chegou a iniciar a vida profissional na música no seu estado natal, mas já aos 20 anos seguiu para o Rio de Janeiro, construindo uma sólida carreira internacional ao longo da década. O compositor e cantor cearense Belchior (19462017), que participou de diversos festivais da canção no Nordeste e a partir da década de 1970 no Rio de Janeiro, e teve suas composições gravadas por grandes artistas como Elis Regina. Fagner (1949-), também cearense, chegou a construir parte de sua carreira em Brasília, mas em 1971 se muda para o Rio de Janeiro, e dedica-se à música, trabalhando nos anos seguintes com importantes nomes da música: Elis Regina e Chico Buarque. Ainda temos a cantora paraense Fafá de Belém (1956-), que alcançou fama nacional gravando temas de novela para a Rede Globo, a partir de 1975 (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). 234

TÓPICO 2 — A DÉCADA DE 1970

É importante perceber que diversos artistas nordestinos se tornam influentes na década de 1970 construindo a carreira no Rio de Janeiro. Com o tempo, a música nordestina também passa ser aceita como MPB e a fazer parte desse complexo meio cultural ao qual autores como Napolitano (2002) se referem como moderna música popular brasileira. Assim, com o surgimento de novos artistas e o lançamento de diversos álbuns, sobretudo a partir de 1972, a música nordestina passa a ser responsável por boa parte do mercado fonográfico nacional, tornando-se uma importante referência do período.

3 MOVIMENTO BLACK RIO O Black Rio (Black Soul, Black Power ou apenas Soul) foi um movimento surgido no Rio de Janeiro em meados da década de 1970. É influenciado por movimentos como o black is beautiful, iniciado nos Estados Unidos, e a liderança de Nelson Mandela como opositor do apartheid na África do Sul, que lutam contra o preconceito racial. No Brasil, o movimento negro ganhou força no subúrbio carioca, onde aconteciam os bailes de soul music reunindo grande público jovem. Na busca por uma afirmação identitária e acesso à cidadania, o movimento sofreu com a repressão policial durante o regime militar, tendo diversos eventos interrompidos e seus participantes presos. Os protestos raciais no Brasil passaram a chamar a atenção nos festivais da canção no início da década de 1970. Foi nesse ano que Elis Regina cantou no VI FIC, em 1971, a canção Black is beautiful, composta pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, com Tony Tornado (1930-) invadindo o palco ao final da apresentação. Nesse período os bailes no subúrbio carioca já sofriam com a repressão da polícia, e a partir de então vem a vigilância sendo aumentada e seus artistas investigados de possível envolvimento com movimentos políticos negros, como os Panteras Negras, que surgiram nos Estados Unidos na luta pelos direitos civis, durante a década de 1960 (OLIVEIRA, 2018). FIGURA 14 – ELIS REGINA COM TONY TORNADO NO VI FESTIVAL INTERNACIONAL DA CANÇÃO

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

Da liderança de intelectuais, como Martin Luther King e Malcolm X nos Estados Unidos, na luta pelos direitos civis, como a ascensão da música negra no mercado fonográfico, o fim da década de 1960 e início da década de 1970 marcam uma tomada de posição do povo negro diante da discriminação racial no mundo. No Brasil, surgem nos subúrbios cariocas as primeiras militâncias de projetos culturais e políticos, despertando aos poucos em indivíduos suburbanos uma consciência negra e a organização dos primeiros movimentos (OLIVEIRA, 2018). Segundo Oliveira (2018), é partir disto que os bailes blacks passam a disputar espaço com as rodas de samba, trazendo para o cenário brasileiro um olhar mais contemporâneo daquilo que é ser negro. Da forte influência do samba brasileiro e do soul music americano, que surgem diversos artistas representando esse novo posicionamento das camadas mais jovens da população negra, sobretudo do Rio de Janeiro. Entre os mais importantes, representantes do Black Rio, aparecem Tony Tornado, Gerson King Combo (1943-2020), a banda União Black e o maestro Erlon Chaves (1933-1974). Com a popularização dos bailes no Rio de Janeiro, as gravadoras investiriam no meio vendo uma grande possibilidade de mercado. Artistas como Tim Maia, Cassiano (1943-), Bebeto (1947-) e Jorge Ben (1945-) já possuíam carreiras consolidadas e faziam parte do repertório dos DJs que animavam os bailes no subúrbio carioca. Surgiram bandas que interpretavam canções de diferentes compositores, atendendo à demanda do mercado da época. Entretanto, com a crescente vinculação da cena Black Rio a atividades subversivas pela mídia e a repressão policial durante o regime militar, o movimento acaba perdendo força no fim da década de 1970. Mesmo assim, o movimento acabou influenciando consideravelmente a cultura brasileira, sendo referência para outros meios como o cinema e a moda, permitindo que a cultura negra da época atingisse diferentes camadas da sociedade.

4 MÚSICA INSTRUMENTAL E FUSÕES JAZZÍSTICAS No Brasil, o campo da música popular instrumental ou do jazz brasileiro, é popularmente chamado de música instrumental brasileira. Apesar do reconhecimento internacional e de ser muito apreciada no país, a música instrumental no Brasil tem pouca participação nos números do mercado fonográfico. Possui grande influência do jazz norte-americano, a partir de uma relação que se estabelece de certa forma conflituosa, devido às diferenças culturais entre os países, e discussões sobre a originalidade dos gêneros correlatos. Nesse sentido, o jazz brasileiro se estabelece como um gênero específico, por apresentar características próprias (PIEDADE, 2005).

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TÓPICO 2 — A DÉCADA DE 1970

Segundo Piedade (2005), ao mesmo tempo em que o Brasil possui muitas influências do jazz norte-americano, a produção cultural se articula incessantemente na busca de uma identidade brasileira. Com isso, evidenciase dentro da música instrumental nacional uma tendência de utilizar no gênero os estilos ligados ao regionalismo, bem como estruturas composicionais diferenciadas a partir da rítmica e do emprego de determinados recursos musicais característicos da música brasileira. Acontece aqui o que o autor chama de uma fricção de musicalidades, um embate entre a vontade de absorver a linguagem jazzística e a necessidade de manter as raízes musicais nacionais. Portanto, a música instrumental e o jazz brasileiro possuem uma estética específica, carregadas de elementos e significados culturais. Estão ligados a processos musicais característicos, a partir das diferentes situações em que estão inseridos. A inserção do jazz na música brasileira diz respeito à construção histórica a partir dos espaços de possibilidade no discurso musical, ou seja, a utilização de determinadas estruturas da música instrumental passa por um processo de adaptação para que se encaixe ao contexto rítmico-harmônico da música brasileira (PIEDADE, 2005). Esse fenômeno pode ser observado na primeira geração de bossanovistas, que se apropriaram de elementos do jazz, como os acordes dissonantes, e os misturaram às estruturas do samba (NAPOLITANO, 2002). Com o desenvolvimento da indústria fonográfica, essas internacionalizações vão se tornando cada vez mais comuns, principalmente em gêneros musicais presentes em grandes centros urbanos. O cenário brasileiro não possui tradição de músicos dedicados exclusivamente ao jazz. Os músicos que atuam no meio jazzístico costumam dividir suas atividades musicais com outros gêneros mais populares do mercado: samba, o rock, o pop, a MPB. Mesmo assim, diversos artistas brasileiros se destacam no cenário internacional. FIGURA 15 – HERMETO PASCOAL, PRECURSOR DA MÚSICA POPULAR INSTRUMENTAL BRASILEIRA

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

Principais artistas do gênero: • Laurindo de Almeida (1917-1995): músico requisitado em toda a sua carreira, tocou com Villa-Lobos, Pixinguinha e foi morar nos Estados Unidos para acompanhar Carmen Miranda. Tocou com grandes nomes do jazz – Stan Kenton e Bud Shank –, e em trilhas sonoras de filmes em Hollywood. Foi importante para a disseminação da bossa nova e recebeu importantes prêmios da música. • Djalma de Andrade (1923-1987): também conhecido como Bola Sete, transitou por diversos gêneros da música popular e erudita, acompanhando artistas brasileiros. A partir da década de 1960 passa a morar nos Estados Unidos, quando gravou diversos discos de jazz, permanecendo no país até sua morte. • Hermeto Pascoal (1936-): considerado um dos maiores ícones do jazz nacional, o multi-instrumentista é reconhecido por trabalhos experimentais, seja a partir de objetos sonoros, seja utilizando elementos da natureza. Já circulava na cena instrumental internacional na década de 1970, sendo precursor do mercado nacional de música instrumental e consagrado como um dos maiores músicos do século XX. • Arismar do Espírito Santo (1956-): multi-instrumentista e arranjador proeminente, é considerado um dos maiores guitarristas da atualidade, transitando por diversos gêneros da música: o samba, o jazz, o choro e o rock. • Azymuth: banda brasileira formada na década de 1970, é uma das maiores representantes da música instrumental no Brasil, tendo lançado diversos discos, alguns deles no exterior, e com renomada carreira internacional.

5 ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 1970 Seguindo o radicalismo dos tropicalistas, a década de 1970 ficou marcada pela popularização do rock no Brasil. As bandas que surgiram nesse período tiveram como principal público a juventude não universitária da época. Nessa década o rock aparece como uma subcultura juvenil que muitas vezes poderia estar engajada e misturada com o consumo da MPB. Com a reorganização do mercado fonográfico do período, na venda maciça de discos de artistas internacionais, gradativamente a MPB perde espaço para o rock junto ao público jovem e de classe média (NAPOLITANO, 2002). Diferentemente da Jovem Guarda na década anterior, que costumava fazer adaptações em português para músicas de artistas americanos e ingleses, copiando ao máximo as versões originais, o rock da década de 1970 se caracteriza pela sua fusão com gêneros nacionais, surgindo assim um legítimo rock brasileiro. A junção do rock com gêneros nacionais já era feita nos anos 1960. É a partir 238

TÓPICO 2 — A DÉCADA DE 1970

dos tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes que a junção de elementos do rock com a MPB ganha outro patamar. Nos anos 1970 o rock passa a adquirir um estilo nacional, e gradativamente ganha mercado com Raul Seixas, Os Novos Baianos e Secos e Molhados, por exemplo (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000).

FIGURA 16 – CAPA DE DISCO DO GRUPO SECOS E MOLHADOS, CONSIDERADO UM DOS ÁLBUNS MAIS INOVADORES DA MÚSICA BRASILEIRA

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

No começo da década de 1970, muitos jovens brasileiros começam a aderir ao movimento hippie que ganhava notoriedade em todo mundo, sobretudo a partir da repercussão do Festival de Woodstock, realizado em 1969 nos Estados Unidos. Como relata Motta (2000), era preciso muita coragem para ser um hippie durante o governo militar no Brasil, que tomava como suspeita qualquer reunião de jovens extravagantes. O autor considera que o ano de 1972 é marcado pelo desbunde dos jovens brasileiros devido à constante repressão política e à violência autoritária do Estado, ou seja, muitos indivíduos das camadas jovens da população aderem a estilos de vida alternativos. Entre estes se destacam os integrantes do grupo Os Novos Baianos, grupo formado na Bahia no fim da década de 1960. Depois de alguns trabalhos em Salvador, Os Novos Baianos se mudam para o Rio de Janeiro, e em 1969 é lançado o disco É ferro na boneca, marcando a estreia do grupo no mercado fonográfico. Entretanto, é apenas em 1972, com o segundo álbum Acabou chorare, com forte influência de João Gilberto, que a banda alcança maior notabilidade. O grupo se desfaz em 1978 e seus membros seguem carreira solo, com destaque para Baby Consuelo, Pepeu Gomes e Moraes Moreira (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). 239

UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

FIGURA 17 – CAPA DE DISCO DO GRUPO OS NOVOS BAIANOS, UM DOS ÁLBUNS MAIS INFLUENTES DA HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

NOTA

Com grande influência dos arranjos de guitarras de Jimi Hendrix, e a musicalidade de João Gilberto, que fazia muitas visitas à comunidade hippie em que Os Novos Baianos moravam, o disco Acabou chorare é considerado por muitos críticos como um dos mais proeminentes álbuns produzidos até hoje no Brasil. Acabou se tornando uma grande referência para as seguintes gerações, e em 2007 a revista Rolling Stones o elegeu como o disco mais importante da história da música brasileira.

Segundo Motta (2000), a banda Secos e Molhados foi o primeiro grupo nacional de rock a alcançar grande sucesso no Brasil. Liderada pelo cantor Ney Matogrosso (1941-), com rostos pintados e roupas extravagantes, a banda se tornou um fenômeno nacional, vendendo mais de 700 mil cópias com seu primeiro disco, em 1973. É nesse período que se destaca um dos maiores nomes da história do rock brasileiro, Raul Seixas (1945-1989). Nascido em Salvador, na Bahia, aos 12 anos Raul montou a primeira banda de rock de Salvador, The Panters (que mais tarde mudaria o nome para Os Panteras), e já utilizava instrumentos eletrificados. A convite de Jerry Adriani, a banda se muda em 1967 para o Rio de Janeiro, e lança o primeiro disco, Raulzito e os Panteras. A partir de 1968 Raul começa a trabalhar 240

TÓPICO 2 — A DÉCADA DE 1970

como produtor na CBS, e lança em 1971 o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta sessão das dez em parceria com o cantor e compositor Sérgio Sampaio (1947-1994). Em 1972 se muda para a gravadora Philips, e a partir de 1973, com o lançamento do seu primeiro disco solo Krig-há, Bandolo!, Raul passa a emplacar grandes sucessos: Metamorfose ambulante e Mosca na sopa. Seus discos seguintes consolidaram sua carreira musical, marcada pela vasta produção fonográfica até a sua morte em 1989. Tornou-se um dos músicos mais influentes do rock brasileiro, com um público extremamente fiel e com composições regravadas por diversos artistas da música brasileira (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). Muitos outros artistas foram determinantes para a difusão do rock brasileiro nos anos de 1970. Podemos destacar ainda o trio de compositores e cantores Zé Rodrix (1947-2009), Sá (1945-) e Guarabira (1947-), que além da produção em conjunto caracterizada por um rock rural, fizeram parcerias com importantes músicos brasileiros dos mais diversos gêneros musicais. É notória também a influência de bandas com sonoridade mais pesadas, como O Terço, Made in Brazil e Casa das Máquinas, que misturam diversos estilos do gênero como o hard rock, o rock progressivo e o rock psicodélico. Esses, entre tantos outros artistas, vão abrir caminho para o rock se tornar o principal produto da indústria fonográfica nos anos 1980.

6 OUTRAS TENDÊNCIAS RELEVANTES Segundo Napolitano (2002), a década de 1970 é marcada pelo início de uma diversidade no mercado fonográfico. O samba também começa a ser incorporado ao conceito de MPB, mesmo se mantendo de forma independente. O gênero passa a ser revisitado, valorizando grandes nomes: Adoniram Barbosa (1910-1982), Cartola (1908-1980), Nelson do Cavaquinho (1911-1986). Surgem os artistas Beth Carvalho (1946-2009) e Jorge Aragão (1949-), os quais influenciaram uma nova geração de sambista nos anos seguintes. Havia ainda uma tradição de músicas românticas no Brasil, a qual se mantinha em grande popularidade. Nos anos 1970, esse meio sofreu forte influência da Jovem Guarda, fazendo parte de uma diversidade de produtos que vão desde trabalhos mais elaborados, como o de Roberto Carlos – já com a carreira consolidada –, a produções mais simples: a música brega, por exemplo (NAPOLITANO, 2002). Segundo Tinhorão (1998), a década de 1970 se caracteriza pela dispersão dos últimos movimentos estudantis ligados a uma produção musical essencialmente brasileira. Os espaços passam a ser ocupados cada vez mais pelo repertório urbano, pelos instrumentos eletroeletrônicos, com amplo desenvolvimento da indústria fonográfica. Apesar da crescente popularização de algumas manifestações populares, como da música sertaneja raiz, as criações ligadas a regionalidades ainda mantinham atividade praticamente clandestina no país, com pouco espaço no mercado, que cada vez mais passava por um processo de internacionalização. 241

RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • São considerados da moderna música popular brasileira os movimentos musicais surgidos a partir da década de 1970, quando o termo passa a ser empregado de maneira ampla, englobando diversas manifestações musicais presentes nos centros urbanos. • Nesse período, o eixo Rio-São Paulo foi protagonista na produção fonográfica no país, seja com o surgimento de uma nova safra de artistas, seja lançando músicos de outras regiões pais, centralizando os principais acontecimentos referentes a moderna MPB. • Em Minas Gerais surge o movimento Clube da Esquina, o qual, liderado por Milton Nascimento, reuniu parte dos principais profissionais da música do estado e que resultou no álbum Clube da esquina, um dos mais importantes da história da música brasileira. • A década de 1970 é marcada por uma grande safra de músicos nordestinos que alcançaram grande êxito no meio musical, situando o Nordeste como um dos maiores berços. • O movimento Black Rio surgiu nos subúrbios cariocas com a popularização de bailes voltados para o público negro, a partir da ascensão da soul music no país e dos movimentos contra a discriminação racial. • Apesar de não possuir tradição de profissionais específicos da música popular instrumental e do jazz, a música brasileira dos anos 1970 incorpora diversos elementos desses gêneros, com diversos artistas brasileiros sendo reconhecidos no país e no mundo. • A partir da década de 1970, o rock vai gradativamente conquistando maior espaço no mercado fonográfico brasileiro, revelando uma safra de novos artistas que foram fundamentais para a popularização do gênero. • Os anos de 1970 foram marcados pela diversidade musical no país, que, além dos gêneros e movimentos musicais, contou com a revisitação do samba, a consolidação da música romântica e a gradativa ascensão de outros gêneros populares.

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AUTOATIVIDADE 1 A década de 1970 ficou marcada por grandes transformações no mercado fonográfico, com a produção musical sendo representada por outras regiões além do eixo Rio-São Paulo. Com isso, novos compositores passaram a se inserir no mercado, permitindo maior diversidade cultural no meio musical. Com base no exposto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) Outras regiões do país passaram a ser representadas na indústria fonográfica devido à grande quantidade de gravadoras que se instalaram nesses locais. ( ) Apesar de grandes artistas emergirem de outros centros urbanos, nesse período a produção fonográfica era amplamente dominada pelo eixo RioSão Paulo. ( ) Na década de 1970, além do eixo Rio-São Paulo, o Distrito Federal e o Rio Grande do Sul passaram a ter maior representatividade no mercado fonográfico. ( ) Outras regiões do país passaram a ser representadas na indústria fonográfica porque artistas originários desses locais foram trabalhar no eixo Rio-São Paulo. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – V – F. b) ( ) F – F – F – V. c) ( ) F – V – F – V. d) ( ) F – V – V – F. 2 Uma das características da música popular brasileira na década de 1970 é o forte engajamento de alguns artistas em lutar contra o preconceito racial, influenciados por movimentos como o black is beautiful, dos Estados Unidos, e de lideranças como a de Nelson Mandela, na África do Sul. Nesse período, qual foi o principal movimento brasileiro a lutar contra o racismo? ( ( ( (

) Clube da Esquina. ) Black Rio. ) Os Novos Baianos. ) Rock.

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TÓPICO 3 —

UNIDADE 3

DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS 1 INTRODUÇÃO No Brasil, a década de 1970 ficou marcada no campo musical pela diversidade de gêneros que foram inseridos no mercado fonográfico. Já a partir dos anos 1980 essa diversidade passa a ser bem maior, por conta da multiplicidade de comportamentos e estilos musicais. Na medida em que entramos na década de 1980, o público vai se tornando cada vez mais complexo, não se concentrando mais em camadas da sociedade (NAPOLITANO, 2002). O mercado fonográfico se torna cada vez mais profissional, enquanto gradativamente vai aderindo a uma cultura massificada. Como relata Tinhorão (1998), a partir dos anos 1980 surgem diversas manifestações de música popular que são transformadas em espécies de bandas de rock, sem caráter duradouro, com o intuito de estabelecer uma nova moda a cada ano, desempenhando um papel importante na indústria de consumo. É importante perceber que o disco de vinil estava no auge de vendas no começo dos anos 1980, a nível mundial. O mercado se concentrava no produto que comercializava o disco, uma unidade de mídia física. Na década seguinte, houve o declínio do disco de vinil com a popularização dos CDs, e terminamos o século XX com o sucesso do MP3 e os compartilhamentos de arquivos de áudios via internet. Na medida em que os meios de comunicação se desenvolvem, desde a popularização da televisão ao surgimento da internet, o mercado fonográfico passa por um grande processo de adaptação, de uma nova realidade. Como bem observa Napolitano (2002, p. 25), “nestas duas últimas décadas do século XX, a nova indústria fonográfica está mais para a “exploração dos direitos” do que para a “manufatura do produto”. Gradativamente, a mídia física deixa de ser o produto principal; o foco da indústria fonográfica passa a ser o direito sobre a obra, seja para execução em programações de rádio ou televisão, a compartilhamento de arquivos e serviços de streaming. No Brasil, os anos de 1980 ficaram marcados por grandes transformações no campo da política, com o movimento pelas “Diretas Já” e a redemocratização do Estado. Nesse período, o país sofreu com a dívida externa contraída pelo regime militar e com hiperinflação. Do ponto de vista econômico, isso fez com que a década de 1980 ficasse conhecida como a “década perdida”. 245

UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

No início dos anos 1990 acontece no Brasil o movimento dos “Caraspintadas”, promovido por estudantes e que pedia a saída do presidente Fernando Collor. O país passa pelo primeiro processo de impeachment de um presidente na sua história. No governo seguinte, com a criação do Plano Real, o Brasil alcançou a estabilidade econômica. A cultura passa a ser valorizada nesse período, e o cinema brasileiro ressurge no cenário artístico.

2 ANOS 1980 Os anos 1980 se destacam com a massificação do mercado fonográfico. As gravadoras haviam investido na produção de discos de artistas estrangeiros na década anterior, e a MPB estava em declínio, já sem muitas novidades no fim da década de 1970. Houve a tentativa de novos festivais de música televisionados, que até atraíam grandes públicos, mas com pouco impacto no mercado. Enquanto isso, novos movimentos e gêneros musicais ganhavam adeptos no Brasil. Segundo Dapieve (1995), o movimento punk chegava tardiamente ao país sob grande influência das bandas inglesas Sex Pistols e The Clash, instalandose inicialmente em São Paulo. Também da Inglaterra, mas com forte influência americana, o new wave havia conquistado o mercado internacional, com bandas como Talking Heads e Oingo Boingo. Outros gêneros do rock como o heavy-metal, o rock progressivo e o hard rock faziam parte do mercado nacional, mas com pouca representatividade, assim como o reggae e o ska, ainda pouco difundidos. Diferentemente disso, a música pop passou a ser o principal produto da indústria fonográfica no mundo, sobretudo pela questão visual, devido à popularização dos clipes a partir de canais musicais.

2.1 INFLUÊNCIAS DA MÚSICA POP NO BRASIL A virada da década de 1970 para 1980 é marcada por uma grande ruptura no meio musical. Depois de anos de governo militar, e das manifestações artísticas de protesto, havia um certo cansaço de ideologias. O mercado musical passa a representar muito mais os sentimentos como uma forma de comemorar a redemocratização, abrindo espaço para a música pop. O melhoramento das tecnologias de gravação e a popularização da estereofonia (gravações com dois lados, direito e esquerdo), que só agora passa a ser amplamente utilizado no mercado fonográfico brasileiro, contribuíram para a disseminação da música pop no Brasil (BARCINSKI, 2014). Destacam-se na música pop desse período a dupla Michael Sullivan (1950-) e Paulo Massadas (1950-). Segundo Barcinski (2014), a parceria foi produtiva no meio pop, lançando os principais hits radiofônicos da década de 1980. Além dos discos lançados pela dupla, suas composições foram gravadas por diversos artistas e conjuntos brasileiros, entre eles Roberto Carlos, Tim Maia, 246

TÓPICO 3 — DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS

Gal Costa, Roupa Nova, Sandra de Sá, Alcione e Fagner. Podemos observar ainda a grande quantidade de músicas feitas para cantores bregas, como Reginaldo Rossi (1943-2013) e José Augusto (1953-). Durante os anos 1980 diversos gêneros músicas são absorvidos pela cultura de massa. No início da década as duplas sertanejas passaram a fazer parte da indústria musical, misturando o sertanejo com pop e música romântica. Apesar da música sertaneja já ter certa projeção na década de 1970, é a partir do sucesso de Fio de cabelo, de Chitãozinho e Chororó, no início dos anos 1980, que o gênero se torna um dos principais do mercado fonográfico. Na sequência, duplas como Leandro e Leonardo, Chrystian e Ralf também alcançam êxito nacional. Depois do movimento Black Rio, a música das periferias do Rio de Janeiro também passa a ser gradativamente absorvida pela indústria cultural. O pagode, uma versão mais pop do samba, e muitas vezes romantizada, alcança grande sucesso até o fim dos anos 1980, entrando em seu auge na década posterior. A projeção do gênero se deu com artistas como o grupo Fundo de Quintal e o sambista Zeca Pagodinho, ainda mais próximos do samba do que os artistas que os procederam. Na música pop dos anos 1980 ainda tivemos a massificação das músicas infantis, com grupos como Balão Mágico e Trem da Alegria, e com apresentadoras de programas para crianças. Também se popularizaram pelo Brasil os bailes nas tardes de domingo, chamados de “domingueiras”, que se tornaram uma importante fonte de renda para os profissionais da música. Nesse período, o meio musical é marcado pela guinada das produções independentes. O advento dos meios digitais de gravação proporcionou uma redução dos equipamentos em estúdios. Com isso, diminuiu consideravelmente o custo das instalações, das etapas de produção, reduzindo a utilização de insumos. Assim, a produção fonográfica foi gradativamente se tornando mais acessível a artistas independentes e em início de carreira (DIAS, 2000).

2.2 BROCK: NOVA FASE DO ROCK BRASILEIRO O BRock é um movimento do rock brasileiro dos anos 1980, considerado entre os mais importantes do século XX. Nesse período, o rock se popularizou no país, sendo um dos principais produtos da indústria fonográfica, e com grande quantidade de bandas e artistas que fizeram muito sucesso. Foi um período de grandes mudanças de comportamento, influenciadas pela ruptura do cenário político. No início dos anos 1980, o punk rock inglês tinha recém-chegado ao Brasil, com as bandas Sex Pistols e The Clash. Outros estilos derivados do rock já possuíam adeptos no país, como o rock progressivo, o rock psicodélico, o heavy 247

UNIDADE 3 — PANORAMA DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL: CONSOLIDAÇÃO

metal, e principalmente a new wave. Enquanto isso, a MPB se aburguesava, assim como as grandes bandas do rock internacional, com produções extremamente caras, de alto valor agregado (DAPIEVE, 1995). Nesse período, algumas bandas começam a apontar para novos rumos do rock brasileiro. Destaque para a banda Verminose (futura Magazine), de Kid Vinil (1955-2017), como precursora de um novo estilo de rock nacional, formada no fim dos anos 1970. Já em 1980, é formada a banda Gang 90 & As Absurdettes, com a música Perdidos na selva, que acabou se tornando uma importante referência para a nova geração. Ainda, a banda Vímana, com Ritchie (1952-) nos vocais e flauta, Lulu Santos (1953-) na guitarra, e Lobão (1957-) na bateria, sendo o grupo um dos mais importantes embriões do rock dos anos 1980 (DAPIEVE, 1995). A chegada do movimento punk tem maior impacto nas periferias de grandes centros urbanos, primeiramente em São Paulo. Surgem as bandas Os Inocentes, Olho Seco, Cólera e Ratos de Porão entre as precursoras do punk nacional. Em 1982 é realizado no Sesc-Pompeia, o primeiro festival punk de São Paulo, reunindo diversos nomes da cena paulistana, considerado um marco para o rock nacional no início da década (DAPIEVE, 1995). Nesse período, surgem muitas casas de shows e espaços culturais que serão fundamentais para o desenvolvimento do rock nacional. Em São Paulo, o Teatro Lira Paulistana, fundado em 1979, a casa noturna Carbono 14, em 1982, e o clube Madame Satã, em 1983. No Rio de Janeiro foi inaugurado em 1982 o Circo Voador, espaço cultural que se tornaria tradicional, com atividades artísticas e educacionais e que funciona até hoje (DAPIEVE, 1995). No ano de 1981 em São Paulo é formada a banda Blitz, a partir de músicos que acompanhavam a cantora Marina, entre eles Lobão, e do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, em que participava o ator Evandro Mesquita. Blitz foi uma banda de rock performático que misturava um som pesado com elementos cênicos. Teve seu primeiro compacto de sucesso já em 1982, com a música Você não soube me amar, que vendeu mais de 100 mil cópias. Com o lançamento do álbum As aventuras da Blitz, a banda teve repercussão nacional, quebrando barreiras e popularizando o rock, fato até então inédito (DAPIEVE, 1995).

NOTA

O disco As aventuras da Blitz é considerado por artistas e pela crítica como um dos mais importantes álbuns do rock nacional, sendo o primeiro grande sucesso do gênero nos anos 1980, influenciando toda uma nova geração de bandas que surgiriam nos próximos anos. Duas músicas do disco foram censuradas pelo regime militar depois que o álbum havia sido prensado. As faixas censuradas acabaram sendo todas riscadas a mão e só estiveram disponíveis depois que o álbum foi lançado em formato de CD.

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TÓPICO 3 — DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS

FIGURA 18 – CAPA DE DISCO DA BANDA BLITZ

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

Também em 1981, mas no Rio de Janeiro, começa a formação do Barão Vermelho. Liderados por Cazuza (1958-1990) e Frejat (1962-), o grupo começou fazendo covers de Led Zeppelin e Rolling Stones. A banda lançou seu primeiro álbum, intitulado Barão Vermelho, em 1982, um dia depois de As aventuras da Blitz. Com o tempo, tornou-se um sucesso de crítica, sendo Cazuza considerado um dos maiores compositores do período (DAPIEVE, 1995). A essa altura a banda Paralamas do Sucesso já tocava em festivais e bares do Rio de Janeiro. Apesar de serem de Brasília, Herbert Viana (1961-) e Bi Riberio (1961-) fundam a banda no Rio, para onde suas famílias haviam se mudado. Misturando new wave, ska e reggae, os primeiros shows chamaram a atenção do público, fazendo sucesso na noite carioca e atraindo a atenção de gravadoras. Em 1983, a banda lança o primeiro disco, Cinema mudo, já com uma parceria do amigo Renato Russo (1960-1996) e participação especial de Lulu Santos, alcançando boa projeção nacional. Os Paralamas do Sucesso se tornaram uma das grandes referências musicais da década, dando suporte e ajudando a lançar muitas outras bandas: Legião Urbana e Plebe Rude (DAPIEVE, 1995). No ano de 1982, em São Paulo, surgiu uma banda que viria para quebrar paradigmas. Com oito integrantes, algo até então impensável para uma banda de rock, a banda Titãs do Iê-Iê estreava na noite paulistana. Depois de dois anos tocando na noite, alternando covers com músicas próprias, entre elas Bichos escrotos e Sonífera ilha, que viriam a se tornar verdadeiros hinos dos anos 1980, o grupo lança o álbum Titãs. A banda já fazia algum sucesso na televisão, e passa a excursionar por todo o Brasil. Com o segundo álbum de estúdio, intitulado Televisão, e agora se chamando apenas Titãs, a banda chega perto dos 100 mil discos vendidos. Com um trabalho mais elaborado, o álbum ganha maior projeção nacional. Os dois primeiros discos do grupo mesclavam música pop, reggae, MPB e pitadas de rock, sintetizando a busca por uma identidade sonora. Em 1986, com um trabalho mais aproximado do hardcore, a banda lança o álbum Cabeça dinossauro, o grande sucesso do grupo, considerado pela crítica o maior disco de rock brasileiro dos anos 1980 (DAPIEVE, 1995). 249

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FIGURA 19 – CAPA DE DISCO DA BANDA TITÃS

FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

No ano de 1983 foram formadas muitas bandas de rock que fariam sucesso ao longo da década. Formada em São Paulo, a banda Ultraje a Rigor, liderada por Roger Moreira (1956-), rapidamente emplacou a canção Inútil, com um compacto que vendeu aproximadamente 30 mil unidades. A música se tornou um hino para o movimento “Diretas Já”, que reivindicou as eleições presidenciais diretas para presidente da república. A banda gravou diversos hits na década de 1980: Nós vamos invadir sua praia, do primeiro disco, e Sexo, do segundo. Também de São Paulo, a banda RPM se tornou icônica pela superprodução de seus shows. Com influências de estilos mais dançantes do pop e do rock, como a new wave e o technopop, de Beatles a Eurythmics, o RPM foi uma das bandas mais meteóricas dos anos 1980. Revoluções por minuto, primeiro disco, alcançou grande sucesso nacional com músicas como Olhar 43 e Louras geladas. Entretanto, o segundo álbum da banda, Rádio pirata ao vivo, é um dos discos mais vendidos da história da indústria fonográfica no Brasil, com mais de 2,5 milhões de cópias. Ainda surgiram muitas outras bandas do eixo Rio-São Paulo que tiveram impacto no cenário nacional. O Rio de Janeiro revelaria João Penca e seus Miquinhos Amestrados, Kid Abelha, Biquíni Cavadão, Hanói-Hanói e os cantores Lulu Santos, Rithie, Lobão e Léo Jaime (1960-). Do rock oitentista, da cena punk e metaleira de São Paulo sairiam ainda bandas como Ira!, Garotos Podres, Golpe de Estado e Korzus. O rock dos anos 1980 permitiu que muitas bandas de outros centros urbanos tivessem grande projeção nacional, o que o tornou um movimento ímpar na música brasileira. De Brasília, a banda Legião Urbana foi um dos grandes fenômenos surgidos na década. Liderados pelo cantor e compositor Renato Russo, a banda se tornou praticamente uma unanimidade nacional, com Renato sendo considerado junto a Cazuza os dois maiores compositores do período. O Distrito Federal revelou outras bandas de renome nacional: Plebe Rude, Capital Inicial. 250

TÓPICO 3 — DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS

A Bahia, já marcada no mapa do rock por ter revelado Raul Seixas, agora era representada pelo Camisa de Vênus, do amigo e parceiro de Raulzito, Marcelo Nova (1951-). O Rio Grande do Sul foi berço da banda Engenheiros do Hawaii, que tem em Humberto Gessinger (1963-) um dos artistas que vai demonstrar nas décadas seguintes ser um dos mais produtivos desse movimento. Os gaúchos ainda revelariam diversas outras bandas: Nenhum de Nós, TNT, Cascavelletes, Os Replicantes, Bandalheira, Garotos da Rua, colocando Porto Alegre entre as capitais do rock no país. Em 1985, com a realização do Rock in Rio, atraindo mais de 1 milhão de pessoas à Cidade do Rock, em Jacarepaguá, o BRock chegava ao seu auge. Até o início dos anos 1990 as bandas de rock brasileiras dominaram as rádios e programas de TV pelo país. A partir do início dos anos 1990, o Brasil passou por um novo processo de transformações. O rock gradativamente perdeu espaço para as duplas sertanejas. Além disso, perdia Cazuza, em 1990. Já o ano de 1996 é considerado o fim do movimento, com a morte de Renato Russo.

2.3 OUTRAS TENDÊNCIAS A música brasileira ainda veria na década de 1980 a consolidação de muitos artistas das décadas anteriores. Agora, muito mais como representantes da música romântica, os remanescentes da Jovem Guarda, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, continuam com suas carreiras em pleno vigor. A música romântica também passa a contar com alguns expoentes do samba, em vozes fortes de Alcione e de Emílio Santiago. Mpbistas e tropicalistas como João Gilberto, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gonzaguinha continuam se reinventando e buscando novas perspectivas durante a década. Como exemplo, a trilha sonora de Chico para o filme Os saltimbancos trapalhões, de 1981, considerado o melhor filme do quarteto cômico. Também figurariam constantemente em temas de novelas brasileiras como a de Roque Santero, de 1985, e Tieta, de 1989, ambas lançadas em dois volumes e com grandes sucessos. Cantoras como Rita Lee, Elis Regina e Elba Ramalho continuaram produzindo grandes trabalhos, mantendo carreiras de destaque no cenário nacional. Marina Lima (1955-) e Marisa Monte (1967-) surgem nos anos de 1980 mantendo a tradição de importantes representações femininas na MPB e no mercado fonográfico. Entre os homens, surgem nomes como Djavan (1949-) e Ed Motta (1971-), influenciados pela música negra. Nos anos 1980, o mercado fonográfico passa a explorar novos ritmos musicais, na mistura do pop com elementos regionais. A lambada, gênero que surgiu no Pará, com a mistura o carimbó, dança de origem indígena, com arranjos de guitarra, torna-se uma febre no Brasil. Ganham projeção nacional artistas como 251

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Sidney Magal (1950-), Beto Barbosa (1955-) e o grupo Kaoma, que ganhou projeção internacional com a música Chorando se foi. O samba-reggae e o axé music também começaram a ganhar projeção nacional nesta década. Artistas como Olodum, Cheiro de Amor e a Banda Reflexu’s, com o hit Madagascar Olodum, conquistam lugar de destaque na rádio e na televisão brasileira. A produção fonográfica no Brasil, mesmo que a partir de uma indústria de consumo, começa a representar cada vez mais a multiculturalidade do povo brasileiro.

3 ANOS 1990 No início dos anos 1990 o rock nacional entrou em declínio. Os grupos musicais que ainda surgiram no período muitas vezes vinham da fusão do rock com outros elementos musicais, como a banda Raimundos, que misturou rock com forró, a banda Charlie Brown Jr., com a junção de rock e hip hop, ou ainda Os Virgulóides, com a fusão de samba e rock. O rock, contudo, gradativamente perdeu espaço para outros gêneros musicais, sobretudo nas camadas mais jovens da população. Nessa década, o sertanejo se consagrou no mercado, com a afirmação de duplas que haviam surgido na década anterior. Outros grupos do gênero também alcançaram o sucesso, já caracterizados pela superprodução no meio, como Zezé Di Camargo e Luciano, Bruno e Marrone. Já com maior poder de barganha no mercado, os artistas sertanejos passaram a apadrinhar músicos de uma nova geração. Assim é o caso de Sandy e Júnior, filhos de Xororó, da dupla Chitãozinho e Xororó, que tiveram grande repercussão a partir de 1989 com a música Maria Chiquinha. O samba, que já ensaiava alcançar maior fatia do mercado nas décadas anteriores, também se torna um grande sucesso de vendas. O fenômeno vai se dividir em duas grandes vertentes, os pagodes românticos, com grupos como Raça Negra e Só Pra Contrariar, e o pagode com caráter mais irreverente, com grupos como Molejo e Art Popular. Rapidamente os grupos de samba pelo Brasil se multiplicam, tornando-se um dos principais atrativos de programas de rádio e televisão. A música baiana nesse período também alcança reconhecível sucesso, com as bandas de axé. O gênero, que havia surgido no carnaval popular de Salvador, provém da mistura de diversas vertentes da música nordestina como o ijexá, o samba-reggae, o frevo, os ritmos de candomblé, entre tantas outras, e ainda somadas a elementos do pop e do rock. Com grande destaque para as coreografias que mimetizam as letras das músicas, o axé se tornou uma grande febre no país, revelando grande quantidade de grupos que rapidamente alcançaram renome nacional: Daniela Mercury (1965-), Netinho (1966-), Timbala, Banda Eva, Terra Samba, entre tantas outras.

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TÓPICO 3 — DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XX AOS DIAS ATUAIS

O sertanejo, o pagode e o axé passaram boa parte da década se alternando nas paradas de sucesso. Como novidades estéticas desse período podemos destacar o desenvolvimento do rap, do hip rock e do funk no cenário nacional, sobretudo nos subúrbios do eixo Rio-São Paulo. Acontece também o surgimento do movimento mangue beat, no Nordeste, como uma das maiores estéticas vanguardistas do fim do século. Ainda, a popularização da música eletrônica, principalmente entre as classes média e alta do país. Essas novas condições estéticas que tiveram ampla adesão das camadas mais jovens da população gradativamente são absorvidas pela indústria fonográfica e aos poucos se misturando a música pop produzida aqui.

3.1 MÍDIA, INDÚSTRIA FONOGRÁFICA E INTERNET Os anos de 1990 são marcados pelo início da popularização das mídias digitais. A produção do disco de vinil entra em completo declínio no fim do século, com a popularização do CD, lançado pela multinacional Sony em parceria com outras empresas. Acontece também a popularização dos arquivos digitais, a partir do surgimento do MP3. Com isso, surgem os programas de compartilhamento de arquivos digitais, que em um primeiro momento vão ter como seu principal objetivo a disseminação de arquivos de áudio. Com o tempo, isso trará grandes problemas para a indústria fonográfica, diminuindo a venda de mídias físicas, o que faz com que o mercado passe a investir em serviços de streaming, plataformas que disponibilizam arquivos digitais, mas com sistema de cobrança por meio de assinaturas. Uma das características da música nos anos 1990 é a dimensão que toma a produção musical, com grande quantidade de profissionais envolvidos no processo de trabalho. Setores como o marketing se tornam mais complexos, com diversas atividades pertinentes a divulgação do produto, nos diferentes tipos de mídia. Existe uma necessidade do mercado de relacionar o produto com seu público-alvo, devido à grande diversidade de consumidores nas diferentes camadas da sociedade (DIAS, 2000). Nesse sentido, grande parcela dos artistas estava subordinada aos interesses das empresas, reproduzindo modelos preestabelecidos do mercado. A indústria fonográfica se tornou extremamente rentável, e o produto passou a ter influência sobre a carreira dos artistas. Muitos músicos mudavam de gênero ou estilo para se adequarem ao mercado, em vista da moda em vigor, mas por pouco tempo, visto que as transformações não duravam muito, devido à velocidade de mudança dos nichos de mercado (DIAS, 2000). É a partir desse cenário que uma nova safra de artistas ligados aos gêneros da black music irão surgir. Segundo Vicenti e Marchi (2014), nesse período acontece uma renovação estética e social a partir de artistas e bandas que estão relacionadas a identidades negras, oriundas principalmente da periferia de grandes centros urbanos. Como destaque, podemos citar O Rappa, Planet Hemp e Cidade Negra. 253

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Com o advento da internet e a velocidade da comunicação, as transformações orientadas pela moda se tornaram mais rápidas. Despertou-se uma necessidade do imediatismo, concepções já observadas por teóricos como Adorno (2002) no começo do século XX, com a indústria cultural se tornando o epicentro das produções. Como observa Dias (2000), trata-se da reiteração de um modelo que ouve pelo consumidor, entorpece e satisfaz seus sentidos e desejos, limitando o exercício de sua sensibilidade. Ou seja, o indivíduo agora não passa de um mero consumidor de produtos previamente estabelecidos.

3.2 FUSÕES E NOVAS VERTENTES Entre as maiores inovações estéticas musicais surgidas nesse período se destaca o movimento mangue beat. Liderados pelo compositor Chico Science, a banda Nação Zumbi foi o maior expoente do movimento. Natural de Pernambuco, Chico passou a compor músicas cuja ideia era fundir elementos regionais – o maracatu, o coco, a ciranda, a embolada a gêneros internacionais como o pop, o rock, o funk e o reggae. O primeiro disco do grupo, Da lama ao caos, foi de grande sucesso no Brasil e no exterior, sucesso de público e da crítica. Entretanto, o movimento entrou rapidamente em declínio com a morte trágica de Chico Science em um acidente de trânsito dois meses após a gravação do segundo disco (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000). Os anos 1990 são amplamente marcados pelo desenvolvimento de diversas vertentes da música eletrônica em todo mundo. Com a popularização dos DJs nos anos 1980 e das danceterias, a música eletrônica ganha outras proporções a partir da década seguinte com o surgimento na Europa de subgêneros techno, house e cyberpunk. Isso acelerou do desenvolvimento da música eletrônica e sua inserção na indústria fonográfica, visando a gêneros dançantes voltados para casas noturnas. Com isso, a música eletrônica passa a ser utilizada por importantes artistas do pop, popularizando as diversas vertentes da música eletrônica que passam a surgir. Os festivais do gênero, chamados de raves, são fundamentais para o fortalecimento dos diversos movimentos que surgem a partir dessa década. Apesar dos diversos desdobramentos da indústria musical na década de 1990, um dos maiores expoentes do período ainda foi uma banda de rock. Com um rock pesado e irreverente, que mistura a paródia e gêneros populares como o samba, sertanejo e a música brega, a banda Mamonas Assassinas se tornou um dos maiores sucessos dos anos 1990. O disco Mamonas Assassinas foi um dos recordistas de vendas de toda a música pop brasileira. Com apenas um disco lançado, todavia, a banda teve fim trágico em um acidente de avião que vitimou todos os integrantes. Mesmo assim, a banda se tornou uma das maiores referências do período, mantendo a popularidade do rock e influenciando novas gerações de artistas.

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4 ATUALIDADE Enquanto o século XX se caracterizou no campo da música por uma escalada cada vez maior da indústria fonográfica, alinhada com uma ideologia de consumo da cultura de massa, o século XXI se iniciou com o declínio das grandes produtoras. Segundo Vicenti e Marchi (2014), a partir de 1999 as vendas da indústria fonográfica caem consideravelmente. Os agentes dessa indústria acusam o aumento da pirataria de fonogramas como o principal problema, seja de mídias físicas, seja de mídias digitais, a partir do compartilhamento de arquivos. Com o advento da internet, do celular e de outras tecnologias que tornaram a informação acessível e de forma digital, a indústria musical se viu acuada na tentativa infrutífera de manter a mídia física como modelo de mercado. Cada vez mais em desuso, a mídia física está se tornando objeto de colecionadores nostálgicos, sobretudo os que veem a música como objeto apreciativo. Segundo Tinhorão (1997), cada vez mais a música popular passa a ser entendida como uma produção sonora destinada ao lazer urbano. É natural que a música faça parte do lazer. A obra artística, sobretudo em música, no entanto, é cada vez mais usada como um acompanhamento daquilo que se faz na vida contemporânea. Para tudo se ouve música, mas raros são os momentos em que realmente fruímos música. Os momentos do ser humano pós-moderno frente aos objetos artísticos para, de fato, perceber sua beleza são cada vez mais incomuns. Com a distribuição da música pelos meios eletrônicos, é importante observar que houve um grande processo de democratização ao seu acesso. De certa forma, pode-se entender que isso ajudou a banalizar o consumo de música no mundo. Mesmo assim, tornou-se uma importante ferramenta para quem faz bom uso dela. Hoje é possível ouvirmos músicas de qualquer lugar do mundo com um simples aparelho de celular. Vicenti e Marchi (2014) apontam que, apesar de ser plausível o argumento de que a pirataria tenha impactado negativamente no mercado das grandes gravadoras, outros fatores são fundamentais para entender o seu declínio. Os autores apontam para outros três fatores fundamentais para a descentralização da produção em áudio: o desenvolvimento da informática permitiu o surgimento de pequenas gravadoras e de home studios; os sistemas alternativos de distribuição de música, como revistas, bancas de jornais ou espaços sociais; e a adesão de artistas para a comercialização digital de suas obras. Nesse sentido, a produção musical no cenário atual se tornou cada vez mais globalizada, com a música ganhando características de um produto do mundo pós-moderno. Isso trouxe muitas benesses ao mercado, como a consolidação da música independente. Nos dias atuais, tornou-se cada mais acessível a gravação e reprodução do áudio, permitindo que mais artistas consigam gravar e distribuir sua obra, pertencendo ou não ao mainstream, obedecendo ou não aos padrões da indústria fonográfica. 255

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De certa forma, aos poucos a música perde sua territorialidade de ser ou estar ligada privativamente a um grupo social, e isso a própria indústria fonográfica precisou compreender ao longo das últimas duas décadas. Essa indústria, nos dias de hoje, possui o desafio de se reerguer a partir de um novo cenário, em que quase não há mais fronteiras entre a produção e o consumo. Logo, mais do que nunca, a música pertence ao mundo.

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LEITURA COMPLEMENTAR MÚSICA POPULAR NO SÉCULO XXI: UMA PROFECIA ANTECIPADA José Ramos Tinhorão O século XXI, em matéria de música popular – entendida como produção sonora destinada ao lazer urbano, normalmente transmitida por meios eletroeletrônicos de divulgação – longe de constituir uma incógnita, desponta no horizonte cultural deste final do segundo milênio como um futuro anunciado. Surgida no século XIX como resposta criativa a novas necessidades da vida social, consequente do adensamento das populações dos grandes centros (cada vez mais diversificadas em face da crescente divisão do trabalho, após a Revolução Industrial), a música composta para consumo da gente das cidades ia ligar-se, desde logo, ao comércio e à indústria das diversões. O primeiro indicador da estreita vinculação estabelecida entre a produção de música popular e as atividades manufatureiras e comerciais é o aparecimento, em meados do século XVIII, das oficinas de impressão de música – aberta e estampada em metal – sob a direção de editores especializados, muitas vezes eles mesmos músicos, que revelavam sua vocação comercial na compra de direitos sobre obras alheias. Nada por coincidência, esse negócio da música surgia no mesmo momento em que, nos dois maiores centros urbanos da Europa – em Londres, nos ambientes fechados das tavernas, em Paris, nos tablados de barracas das Feiras de Saint Germain e Saint Laurent –, começavam a criar-se pelos fins do século XVIII os primeiros locais de sociabilidade urbana moderna. Era a novidade dos espaços públicos caracterizados pela democrática composição do público, composto pela mistura de trabalhadores e gente das baixas e médias camadas burguesas. Pois, como nesses locais de diversão coletiva, já predominavam sobre as movimentadas atrações de circo e sketches teatrais os números de canto e dança, desde 1794 um esperto inglês estenderia à imprensa editorial o interesse pela exploração daquele tipo de negócio. E, assim, na esteira do sucesso das músicas dos glee clubs londrinos – que mais tarde seriam os halls na própria Inglaterra, cafés-cantantes e cafés-concertos na França e saloons nos Estados Unidos –, esse conhecedor do repertório em voga nos harmonic meetings lança em livro a primeira coletânea de letras de “peças favoritas” do The Crown and Anchor Tavern. E na folha de rosto do volumezinho de quase cem páginas, sob o título de “The words of the favorite pieces as performed at the Glee Club, held at The Crown and Anchor Tavern. Strand, compiled from their Library by J. Paul Hobler”, apareciam citados por epígrafe estes dois versos esclarecedores da vocação futura da indústria cultural na área do lazer: “[…] we spent the social night / Still mixing profit with delight’’. 257

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O aparecimento da coletânea editada por esse J. Paul Hobler era o início de um filão editorial que, embora podendo ser enquadrado na tradição dos cancioneiros de versos de romances impressos desde o século XVI em Portugal, vinha conferir a dignidade da letra impressa para as produções de modernos compositores populares, agora com seus nomes ligados à condição de autores. Era o que ainda por aquele mesmo final dos Setecentos ia acontecer em Lisboa com o lançamento do primeiro volume da “Viola de Lereno”, em que se publicavam os versos das modinhas, lundus e cantigas de improviso do mulato brasileiro tocador de viola de cordas de arame Domingos Caldas Barbosa. A partir da segunda metade do século XIX, com o aparecimento do piano como instrumento obrigatório dos salões, o repertório do teatro musicado – logo universalizado sob a forma de contribuição parisiense à ânsia de diversão das camadas médias das grandes cidades – contribuiu para ativar o negócio das editoras de músicas. E, já agora, também para o comércio de instrumentos musicais, postos cada vez mais ao alcance das maiorias, inclusive no Brasil, onde o surgimento dos grupos de choro aliado à tradição das bandas de coreto espalhadas por todo o país contribuíam para ampliar o público das produções sonoras nas casas e nas ruas. É a existência desse mercado potencial que, excitado desde o fim do século XIX pela possibilidade da gravação de sons em cilindros pelo norteamericano Thomas Alva Edison, explicaria logo depois a explosão comercial dos discos de gramofone, que vinham ampliar ainda mais o campo da difusão da música popular, agora definitivamente posta ao alcance das maiorias mediante a compra de um pequeno aparelho, que qualquer um fazia funcionar acionando uma manivela. A partir do lançamento, ao despontar do século XX, dos discos de música brasileira gravados no Rio de Janeiro pelo introdutor da novidade das “máquinas falantes”, o tcheco Frederico Figner, bastavam os dizeres impressos nos selos para se comprovar que a nova indústria surgia sob o signo anunciador de algo novo na produção em série de criações musicais: a propriedade industrial multinacional dos fabricantes, garantida por patentes obtidas em várias partes do mundo, e expressa no próprio nome da empresa – International Talking Machine. Transformadas, pois, a composição e a interpretação de música popular em novas modalidades de produção industrial-comercial, o que em sua origem ainda pretendia representar a criação de artistas, poetas e músicos passou a constituir um artigo a mais destinado ao mercado. Os primeiros sintomas dessa mudança definitiva dar-se-iam no campo das relações de trabalho, com o fim do amadorismo artístico através de profissionalização dos cantores (solistas ou de coros), da ampliação do quadro de serviços da música (arregimentação de instrumentistas em orquestras, bandas e grupos ou conjuntos), e ainda do surgimento de novas especialidades, como as de maestro-arranjador, diretor artístico e técnicos de estúdios de gravação.

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A partir desse momento, estava instituída a vinculação necessária entre a criação artística de música, destinada ao lazer das novas camadas contemporâneas do avanço da urbanização no mundo, e a tecnológica das modernas indústrias dirigidas ao lazer, e que a esta altura envolviam não mais apenas o som – com os discos ganhando novo impulso com o advento do rádio na década de 1920 –, mas as imagens do “cinema falado e cantado”, desde 1927, e da televisão a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Essa nova realidade ia ser responsável por modificações na essência mesma do trabalho criativo da música popular que, depois de assistir à transformação da habilidade no exercício de qualquer instrumento musical em serviço profissional, veria o próprio produto das criações de poetas e compositores transformar-se de objeto de qualidade aferível pelas leis da estética em artigo sujeito às leis do mercado. Essa mudança decisiva para a compreensão da evolução das criações musicais englobadas sob a denominação genérica de música popular seria sintetizada por este autor em seu livro História Social da Música Popular Brasileira, de 1990, em que já observava, referindo-se às consequências do avanço tecnológico na área da indústria cultural: Como, porém, a música assim produzida para reprodução mecânica (gramofones de cilindros ou discos, logo, programações para pianos nos rolos de pianola) acelerou grandemente a pesquisa tecnológica, a parte material da produção musical tendeu a crescer (o cinema mudo ganhou som ótico, o rádio fez ouvir a música dos discos a distância, a televisão juntou o som à imagem, e a gravação em fitas – inclusive de videoteipe – aumentou-lhe as possibilidades com o advento do transistor), enquanto a parte artística estacionou em seus elementos iniciais: o autor da música e seus intérpretes (TINHORÃO, 1990, p. 196).

Ante tal realidade – como mostraria ainda –, a consequência lógica foi a mudança da própria essência do objeto da criação artística transformado em artigo sonoro dirigido ao mercado consumidor: Essa subordinação do artístico ao comercial ia explicar, afinal, não apenas a crescente transformação da música popular fabricada para a venda (depois de obtida a massificação, basta produzir o que ‘o povo gosta’), mas a progressiva dominação do mercado brasileiro pela música importada dos grandes centros europeus e da América do Norte, sedes também das gravadoras internacionais e da moderna indústria de aparelhos eletroeletrônicos e de instrumentos de alta tecnologia (TINHORÃO, 1990, p. 196).

Aí estava, pois, anunciado o caminho que a criação e a produção de tal artigo industrial cultural de massa chamado de música popular deveriam continuar a percorrer – com novas consequências práticas ainda desconhecidas – entrado o século XXI.

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Dentro do princípio de que a mudança qualitativa na ordem das relações entre criadores artísticos e indústria ocorreu de modo a transformar os primeiros em dependentes da segunda, não chega a constituir exercício de futurologia prever que a tendência, no novo século, será a da participação cada vez menor da criação artística individual e da participação viva de instrumentistas na produção de música popular. Graças aos avanços na tecnologia dos sons digitalizados, a tendência dos estúdios das grandes gravadoras é transformarem-se em laboratórios de engenharia musical, com os músicos intérpretes sendo substituídos pelo som computadorizado de sintetizadores polifônicos e politimbrais, samplers e sequencers da família dos MIDI (musical instruments digital interface). Tal engenharia criativa de sons computadorizados, aliás, permitirá ultrapassar as próprias possibilidades dos sons normalmente produzidos pelos instrumentos acústicos, mediante alteração de suas tessituras, através da ampliação, por exemplo, de sua extensão, com a consequente ampliação de seu âmbito. Possibilidades técnicas desse tipo, sobre implicar necessariamente dispensa de músicos e maestros-arranjadores nos estúdios, permitirão ainda programar, através de novas combinações rítmicas, o lançamento de estilos musicais caracterizados por um tipo de acompanhamento sonoro fora do alcance da participação humana. E como essas novidades se darão simultaneamente com maiores avanços da tecnologia na área da reprodução, de sons e imagens, a unificação dos sistemas de CD áudio e vídeo CD deverá originar a criação de um multiaparelho único áudio-vídeolaser capaz de – ao lado de um sem-número de outras funções ligadas aos recursos de telefonia e satélites – permitir não apenas assistir à transmissão de musicais programados em laboratório, mas admitir inter-relação entre emissor e receptor em nível de realidade virtual. As consequências naturais de tais conquistas tecnológicas na área do lazer das massas, com participação da chamada música popular, serão, no campo prático, o emprego cada vez mais raro de músicos instrumentistas e, no campo cultural, a dessacralização da criação artística, com a transformação dos compositores em colaboradores de técnicos de programação de música, a ser criada segundo as tendências exigidas pelo mercado. Fora desse quadro geral dominante no cenário da produção das músicas de massa (tornado inevitável pelo crescente processo de concentração, inerente ao modo de produção capitalista no estágio da alta tecnologia), restarão apenas, no século XXI, os últimos vestígios da música tradicional do mundo rural (cada vez mais contaminado pelos modelos da mídia, como já acontece com a “música sertaneja”) e, certamente, uma multiplicidade de nichos urbanos de produção local, conformados em sobreviver fora do sistema. FONTE: . Acesso em: 30 out. 2020.

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RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • O início dos anos 1980 foi marcado pela ascensão de uma cultura de consumo na produção fonográfica brasileira, com grande influência da música pop mundial. • O BRock foi um movimento do rock brasileiro que revelou grande quantidade de bandas e artistas que trouxeram novas possibilidades estéticas para a música brasileira, simbolizando um novo momento do país a partir da redemocratização do Estado. • Ainda nos anos 1980, outros gêneros populares passam a fazer parte importante da produção fonográfica brasileira, sobretudo o sertanejo e o pagode, além de vertentes transitórias alinhadas moda de cada ocasião. • Os anos 1990 se configuram como o ápice da indústria fonográfica no Brasil, entrando em declínio no fim do século com a popularização das mídias digitais. • A música sertaneja se torna um dos principais produtos da indústria musical, destacando-se pelas superproduções e por manter a tradição da música romântica no país. • O pagode e o axé se tornam importantes produtos da indústria cultural, conquistando uma fatia considerável do mercado. • Novas tendências musicais acendem nesse período: o rap, o hip hop, o funk, o mangue beat, a música eletrônica.

CHAMADA

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AUTOATIVIDADE 1 A década de 1980 foi um período em que o rock nacional foi predominante no cenário musical brasileiro conhecido como BRock. Uma das bandas precursoras desse movimento foi fundada por músicos e atores, misturando o gênero rock com elementos cênicos. Está se referindo à banda: a) ( b) ( c) ( d) (

) Titãs. ) Paralamas do Sucesso. ) Legião Urbana. ) Blitz.

2 As gerações atuais da sociedade possuem uma relação estreita com a música produzida nas décadas de 1980 e 90, seja por terem vivido neste período, seja pela influência de familiares e amigos. Escolha uma música dos anos 1980 ou 90 que tenha relação afetiva com sua história de vida. A partir disso, faça uma análise da música observando suas características.

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