UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
RAFAEL REIS DA LUZ
CONJUGALIDADES POSSÍVEIS: UM ESTUDO SOBRE RELACIONAMENTOS HOMOSSEXUAIS E SUAS VICISSITUDES
Rio de Janeiro, 31 de Março de 2014
RAFAEL REIS DA LUZ
CONJUGALIDADES POSSÍVEIS: UM ESTUDO SOBRE RELACIONAMENTOS HOMOSSEXUAIS E SUAS VICISSITUDES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Orientação: Profª Drª Hebe Signorini Gonçalves
Rio de Janeiro, 31 de Março de 2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
RAFAEL REIS DA LUZ
CONJUGALIDADES POSSÍVEIS: UM ESTUDO SOBRE RELACIONAMENTOS HOMOSSEXUAIS E SUAS VICISSITUDES
APROVADA EM: ____/____/____.
Dissertação
apresentada
ao
programa
de
Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e aprovada pela Banca Examinadora.
________________________________ Professora Doutora Hebe Signorini Gonçalves (Orientadora).
________________________________ Professor Doutor Pedro Paulo Bicalho (Membro Interno).
________________________________ Professora Doutora Anna Paula Uziel (Membro Externo).
Rio de Janeiro, 31 de Março de 2014
Ficha Catalográfica
L979 Luz, Rafael Reis da. Conjugalidades possíveis: um estudo sobre relacionamentos homossexuais e suas vicissitudes/ Rafael Reis da Luz. Rio de Janeiro, 2014. 160f. Orientadora: Hebe Signorini Gonçalves. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2014. 1. Homossexualidade. 2. Casamento entre homossexuais. 3. Homossexuais - Psicologia. I. Gonçalves, Hebe Signorini. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. CDD: 306.766
Ao meu baiano.
Agradecimentos
É quase impossível lembrar-se das muitas pessoas que direta ou indiretamente colaboraram para esse trabalho. Contudo, para mantermos a boa tradição dos agradecimentos, acredito que vale à pena correr o risco da memória falha.
Em primeiro lugar, agradeço à minha mãe, Josiete dos Santos Reis, que durante todos esses anos difíceis acreditou em mim. Mãe, este trabalho é a prova de que você estava certa. Obrigado por ter me lembrado, todos os dias, de que sou capaz.
Ao meu pai, Ciro José da Luz, e irmão, Rodrigo Reis da Luz, que igualmente acreditaram em mim.
À minha tia, Janete dos Santos Reis, por ter acompanhado e apoiado, ainda que de longe, boa parte desta trajetória.
À minha orientadora, Professora Doutora Hebe Signorini Gonçalves, que nos últimos anos auxiliou em meu desenvolvimento pessoal e profissional.
Aos demais professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, com os quais tive muito a aprender.
A Paloma Abelin Saldanha Marinho e Brenda Fischer Sarcinelli Pacheco, amigas e colegas do curso de Mestrado e cuja presença foi fundamental tanto nos momentos de trabalho quanto nos de lazer.
Aos demais amigos, que sempre me apoiaram, me divertiram, me ajudaram e até brigaram comigo (às vezes, isso é necessário!). Agradecimentos especiais a Antonio Lima, Danilo Vidon Garcia de Paula, Marisa Antunes Santiago, Yasmim de Menezes França e tantos outros que significam muito para mim.
À CAPES, que financiou esta pesquisa.
Aos casais que se dispuseram a falar sobre suas vidas.
A Paulo de Tássio Borges da Silva, o baiano a quem dedico este trabalho.
E por fim a você, caro leitor, que se interessou por esse texto.
Resumo
LUZ, R. R. Conjugalidades possíveis: um estudo sobre relacionamentos homossexuais e suas vicissitudes. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2014. O presente estudo tem como objetivo investigar a experiência da conjugalidade homossexual. A partir da postulação de um arranjo social e cultural inteligível entre gênero, sexo e práticas sexuais, e da heteronormatividade enquanto uma entre as muitas possibilidades desse arranjo, pergunto quais seriam as possibilidades de sua aceitação, manutenção e/ou rejeição no âmbito das relações afetivo-sexuais entre gays e lésbicas. O levantamento e análise da produção acadêmica sobre a temática, nos últimos anos, em paralelo com o histórico das homossexualidades, apontam para uma aproximação entre discussões sobre conjugalidade e casamento gay e, em segundo, para uma possível heterossexualização das relações homossexuais. A pesquisa de campo, de caráter exploratório, consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas com dois casais de homens e dois de mulheres e a análise do material adotou como referência a metodologia Análise do Discurso. As conjugalidades analisadas constituem-se por meio de uma temporalidade social, de uma frequência de ações, atos e discursos que, se a princípio descontínuos, terminam por sedimentar a passagem de uma vida do eu para uma vida do nós. Entendidas como um espaço de construção de uma estética conjugal que elenca a liberdade como um de seus aspectos centrais, estas relações conjugais produzem discursos que abarcam possibilidades de existência conjugal variadas.
Palavras-chave: Conjugalidade; Homoconjugalidade; Homossexualidade.
Abstract
The aim of the following study is to investigate the experience of the homosexual conjugality. From the postulation of a social and cultural intelligible arrangement between gender, sex and sexual practices, and of heteronormativity as one of the many possibilities of that disposition, this study asks what would be the possibilities of its acceptance, maintenance and/or rejection regarding affective-sexual relationships among gays and lesbians. The survey and analysis of the academic production about the theme, in the last few years, in parallel with the homossexualities’ history, indicate an approximation between discussions about conjugality and gay marriage, and also a possible ‘heterosexualization’ of homosexual relationships. The fieldwork, exploratory in nature, was consisted in semi-structured interviews with two male couples and two female couples, and the discourse analysis was adopted as reference in the methodology of the data analysis. The analyzed conjugalities are built up by a social temporality, a frequency of actions, acts and discourses that, if it seems at first discontinuous, end up to reinforce the transition of a ‘my life’ to an ‘us life’. Understood as a space of construction of a conjugal aesthetic, where freedom is one of its central aspects, these conjugal relationships produce discourses that embrace several possibilities of conjugal existence.
Key words: Conjugality; Homoconjugality; Homosexuality.
Sumário
Apresentação ................................................................................................................... 3 Capítulo 1: As conjugalidades possíveis ......................................................................... 5 Gênero, sexo e práticas sexuais: pontos de partida ....................................................... 10 Capítulo 2: Um ‘pedido’ de casamento ......................................................................... 30 Disputas discursivas em torno das homossexualidades ................................................. 31 Capítulo 3: Casamento na academia .............................................................................. 40 Discussões sobre reconhecimento jurídico das uniões homossexuais ........................... 41 Discussões psicanalíticas ............................................................................................... 49 Discussões psicológicas e antropológicas ..................................................................... 54 Algumas considerações ................................................................................................. 67 Capítulo 4: Metodologia de pesquisa de campo ............................................................ 72 Análise do Discurso ....................................................................................................... 77 Capítulo 5: Pesquisa de campo: as conjugalidades falam ............................................. 86 Contatos iniciais ............................................................................................................ 87 Joana e Rebeca ............................................................................................................... 90 Bi, atualmente namorando uma menina ........................................................................ 90 Eu falo e eles não ouvem ............................................................................................... 96 Eu sempre penso duas vezes antes de falar ................................................................... 99 Eu quero uma festa… Eu quero anel ........................................................................... 100 Fernanda e Bruna ......................................................................................................... 102 Numa situação menos explicativa, eu falo bi e ponto ................................................. 102 “É casamento?” .......................................................................................................... 104 Trezentas mil implicações ........................................................................................... 108 Pra mim não tem diferença ......................................................................................... 109 Maurício e Marcelo ..................................................................................................... 111 Uma divisão incrível .................................................................................................... 112 Não tem esse negócio de que tem que ser um casamentozinho ................................... 114 Faltava essa afetividade homo .................................................................................... 119 Pedro e Lucimar ........................................................................................................... 122 Eu queria estar junto aos iguais .................................................................................. 122 Minha grande mudança foi do “eu” para o “nós” ..................................................... 125
Eu não posso esquecer as minhas fantasias ................................................................ 128 Eu já não existo pra família dele, e agora socialmente eu também não vou existir? . 130 Capítulo 6: Considerações finais ................................................................................. 134 Referências bibliográficas ........................................................................................... 139 Anexo 1: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................................. 147 Anexo 2: Roteiro de Entrevista ................................................................................... 149
Apresentação
O presente trabalho é em parte fruto de uma breve experiência teórica e prática com a problemática da conjugalidade. Teórica porque venho realizando, desde a época da graduação, estudos sobre violência nas relações, em especial relações homossexuais, e prática por conta de minha atuação no Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR), projeto de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que oferece atendimento e acompanhamento a mulheres em situação de violência. Estas experiências, embora razoavelmente distantes da questão e objeto de pesquisa aqui apresentados, foram importantes por me fazerem perceber que, para compreender, sob a ótica do gênero, a violência nas relações, sejam elas homo ou heterossexuais, não bastava explicitar as marcas de gênero na expressão da violência; era preciso voltar-me para as relações propriamente ditas e investigar como elas se apropriam daquelas marcas. Quando apresentei meu projeto de pesquisa ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, dei-me conta de que era interessante investigar as relações para além da violência. Ou antes, entendi que era necessário estudar não apenas relações violentas e sim como elas podem ou não tornar-se violentas a partir das regulações de gênero; como as próprias regulações de gênero podem ser elas mesmas violentas e como os sujeitos lidam com tais regulações no exercício da intimidade e da conjugalidade. Mediante estas reflexões, surgiu a questão: como os sujeitos que compõem relações afetivo-sexuais homo lidam com as regulações de gênero? São relações que, não obstante serem elencadas como diferença no contexto heteronormativo, também são atravessadas pelas representações de gênero, podendo tanto reiterá-las como subvertêlas. Como se daria tal jogo? Os empreendimentos da teoria queer tornaram-se o norte da questão de pesquisa uma vez que evidenciam e perturbam a complexidade das regulações de gênero e de sexualidade – como mostrarei no decorrer do texto, a questão da conjugalidade submetida a tais regulações vai além de uma simples oposição opressão x libertação.
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Pensar a intimidade sob uma ótica queer, desse modo, é pensar como se dá o complexo jogo de verdade dos sujeitos e suas relações.
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CAPÍTULO 1 As conjugalidades possíveis
As últimas décadas foram marcadas por transformações sociais, culturais, econômicas, políticas e religiosas, que em maior ou menor grau repercutiram na formação de novas configurações familiares. A diversidade das estruturas familiares remete ao que já havia sido apontado por diversos teóricos, entre eles Costa (1989), Donzelot (1986) e Ariès (1981): a formação da família nuclear burguesa, a partir do final do século XVIII e constituída por pai, mãe e filhos, atendeu a interesses de regulação social, o que lhe conferiu, com o tempo, uma pretensa naturalidade e universalidade. Todavia, as disputas discursivas em torno da família ocidental contemporânea são intensas. A pluralidade gera um coro de vozes cada vez maior em defesa da tradição, apontando para uma suposta crise da família (MELLO, 2005). Tal crise, entretanto, apenas reflete a dificuldade – e a consequente necessidade – da tradição dialogar com aquilo que parece novo, e do igual dialogar com o diferente. No tocante à conjugalidade, um neologismo da palavra conjugalité, em francês – conceito usado no presente texto para referir-se às relações afetivas e sexuais estáveis – as transformações gerais estão repercutindo na construção de novas possibilidades de relacionamento. Nas últimas décadas, vemos desenvolver-se uma nova concepção de relação conjugal, mais aberta e instável. Amparando-se em referências sociológicas e antropológicas, Mello (2005) aponta para a crescente separação entre o exercício da sexualidade, da conjugalidade e da reprodução – em parte decorrente do advento da pílula anticoncepcional e das tecnologias de reprodução assistida –, o que possibilita novos exercícios de sexualidade, conjugalidade e parentalidade, não necessariamente ligados. A conjugalidade, nesse contexto, precisa partir de uma definição que considere as muitas possibilidades de relacionamento afetivo-sexual. A definição de Heilborn (2004: 11) parece adequada a esse propósito: “... uma relação social que condensa um ‘estilo de vida’, fundado em uma dependência mútua e em uma dada modalidade de arranjo cotidiano, mais do que propriamente doméstico”. A autora acrescenta que essa relação assume a opção por uma determinada gestão da sexualidade. Devo acrescentar, como o 5
faz Lopes (2010), que a conjugalidade contemporânea inclui também uma gestão da afetividade, ou antes, uma exclusividade do afeto, como as conjugalidades investigadas em minha pesquisa de campo mostraram. A emergência do individualismo moderno, segundo Heilborn (2004), pressupõe um crescente movimento de ‘voltar-se para si’ mesmo no interior de uma relação amorosa. Em seu livro A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas (1993), Giddens argumenta que nossa época vivencia uma sexualidade plástica, caracterizada pela sua desvinculação da reprodução e voltada exclusivamente para a satisfação individual. O relacionamento puro, baseado na igualdade afetiva e sexual, aponta para o desenvolvimento do que Giddens chama de amor confluente, um “amor ativo, contingente, e [que] por isso entra em choque com as categorias ‘para sempre’ e ‘único’ da ideia do amor romântico” (Ibid.: 72). Enquanto Bauman (2004) considera o amor líquido como reflexo da superficialidade e fragilidade das relações na atualidade, o conceito de amor confluente de Giddens (1993) sugere não a perda da profundidade e da intimidade, mas a centralidade da satisfação pessoal. Nesse sentido, o amor confluente e o relacionamento puro colocam a intimidade como eixo sustentador da relação conjugal. O afeto torna-se mais exclusivo que o sexo. Apoiando-se em Giddens (1993), Mello (2005) considera que as relações homossexuais, inicialmente excluídas do enquadre heterossexual da família, foram o lugar de experimentações de relações afetivo-sexuais alternativas ao modelo conjugal tradicional, leia-se monogâmico, complementar, integrado e reconhecido socialmente. Em outros termos, Mello sugere que as relações afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo precederam a emergência do amor confluente e o exercício do relacionamento puro. Esse quadro original evidentemente mudou. Na atualidade, as transformações da intimidade e da conjugalidade atravessam as relações independentemente de a configuração ser hetero ou homossexual. Não obstante, em relação a esta última, presenciamos a nível internacional uma adesão cada vez maior aos moldes jurídicos, sociais e culturais historicamente reservados às relações heterossexuais. Mello (2005: 46) afirma: Ainda que muitos homossexuais, especialmente os homens, se recusem a abraçar, na relação com alguém de seu próprio sexo, um projeto de vida que se aproxime da lógica amorosa e familista dominante, seguramente um 6
número expressivo de gays e, principalmente, de lésbicas estrutura ou deseja estruturar suas vidas a partir de envolvimentos afetivo-sexuais que talvez em muito pouco difiram dos modelos disponíveis para os heterossexuais.
A conjugalidade e a parentalidade gay e lésbica são um exemplo de novas possibilidades de formação familiar, sendo alvo de muitos debates e estudos. Presenciamos um momento em que, tanto na política quanto nas ciências, a admissibilidade dessas qualidades de vínculo no interior da grande categoria ‘família’ ora é afirmada, ora é negada. Ao final do século XX e início do XXI, diversos países ocidentais tornaram-se palco de confrontos políticos, científicos e religiosos, mobilizando parte da sociedade civil. O reconhecimento social e legal de casais do mesmo sexo mostra-se como um tema ainda controverso, um ponto de tensão. Minha pesquisa se insere nesse contexto de constantes e acirradas disputas discursivas em torno da legitimidade, seja simbólica ou jurídica, da conjugalidade gay e lésbica. A homoconjugalidade – termo que vem sendo usado para referir-se às relações afetivo-sexuais estáveis entre pessoas do mesmo sexo – é um tema de estudo recente no campo de gênero e sexualidade (MEINERZ, 2011; DEFENDI, 2010; LOPES, 2010; SILVA, 2008; GROSSI, UZIEL & MELLO, 2007; CASTRO, 2007; PAIVA, 2007; MELLO, 2005; HEILBORN, 2004). A produção bibliográfica nacional é variada, atravessando diferentes ciências, entre estas a Psicologia, Direito, Sociologia e Antropologia, com diferentes enfoques teóricos. Dentre os estudos brasileiros que investigam a homoconjugalidade sob a ótica do gênero, destaco o de Heilborn (2004). A autora analisa as relações heterossexuais, gays e lésbicas a partir da perspectiva de gênero, apontando suas semelhanças e particularidades. Entendo que o termo homoconjugalidade não deve ser usado de modo a desconsiderar a diversidade das relações conjugais homossexuais, menos ainda a tipificá-las ou classificá-las – como argumentam alguns dos autores anteriormente citados. As variadas homoconjugalidades inserem-se em contextos diferenciados e configuram-se de acordo com as histórias individuais de seus componentes, dotadas de suas particularidades e singulares. As homoconjugalidades apresentadas em minha pesquisa de campo, desse modo, remetem apenas a algumas possibilidades homoconjugais.
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Ainda em relação à definição de homoconjugalidade, faço minhas as palavras de Lopes (2010: 23-24)1: ...utilizarei sempre o termo homoconjugalidade para me referir a essa forma de conjugalidade [a estabelecida entre homossexuais]. Mas, outros termos, tais como, par homossexual, casal homossexual e parceria homossexual serão usados como sinônimos de homoconjugalidade. Destaco que a leitura que efetuo da homoconjugalidade parte da concepção de que tais categorias são construtos sociais que se baseiam em uma estilística do vínculo, ou seja, na elaboração de um “estilo de relação” que toma como elementos a arte da construção do vínculo conjugal, a gestão da exclusividade sexual e a organização de uma estética dos prazeres, compartilhados ou não pelo casal. Finalizando, ressalto que apesar do uso do termo homoconjugalidade no singular não é pretensão deste trabalho identificar/analisar todo tipo de construção homoconjugal, mas, tão somente, um tipo específico, de um grupo de indivíduos, com uma subjetividade específica, diante de uma diversidade de modelos existentes, de modo que o “mais acertado” seria a utilização da expressão homoconjugalidades no plural.
Nos últimos 30 anos, tem se desenvolvido e ganhado relativa popularidade uma vertente que se convencionou chamar de teoria queer, originária dos estudos gays e lésbicos, estudos culturais norte-americanos e do pós-estruturalismo
francês
(MISKOLCI, 2009). Essa teoria, cujos autores mais conhecidos são Judith Butler, nos EUA, e Guacira Lopes Louro e Richard Miskolci, no Brasil, entre outros, vem trazendo significativas contribuições para o estudo do gênero ou, numa perspectiva queer, dos gêneros – no plural, como um questionamento ao clássico conceito binário de gênero. Na presente pesquisa, parto de referências queer para investigar a conjugalidade gay e lésbica, sem abrir mão, contudo, da possibilidade de diálogo com referências mais clássicas, produzidas em contexto de binarismo de gênero, que parece ser o marco normativo das relações afetivo-sexuais. Dentro de um breve histórico da teoria queer, podemos destacar a contribuição de Warner em 1991, no livro Fear of a Queer Planet, obra que reflete o crescente desconforto, nas ciências sociais até a década de 1990, com uma associação entre ordem social e heterossexualidade. Em outros termos, a cultura heterossexual lia a si mesma como sinônimo de sociedade (WARNER, 1991) e os estudos sobre ‘minorias sexuais’ terminavam por reafirmar tal leitura, naturalizando a norma heterossexual (MISKOLCI,
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Minha única ressalva às colocações do autor refere-se ao uso dos vários termos como se fossem sinônimos de homoconjugalidade. Conforme mostrarei na discussão teórica, os diferentes termos apontam para disputas discursivas em torno de diferentes homossexualidades e possibilidades de arranjos afetivosexuais. 8
2009). Voltando suas análises apenas para os ‘desvios’ e ‘transgressões’ sexuais, muitas pesquisas acabavam por não considerar os processos normalizadores que atravessavam tanto a ‘normalidade’ quanto a ‘transgressão’. Como crítica aos estudos sobre ‘minorias sexuais’, a teoria queer se propõe a realizar uma analítica dos processos normalizadores, marcados pela produção simultânea do hegemônico e do subalterno. Miskolci (2009: 169) afirma: É neste contexto que (...) a Teoria Queer surgiu nos Estados Unidos propondo uma mudança de foco dos estudos de minorias que caracterizaram a maioria dos empreendimentos na sociologia para os processos de construção da sexualidade a partir da díade hetero/homossexualidade. Na perspectiva queer, o sistema moderno da sexualidade passou a ser encarado como um conjunto de saberes e práticas que estrutura toda a vida institucional e cultural de nosso tempo.
O conceito de heteronormatividade, elaborado inicialmente por Warner (1991), diz respeito a um conjunto de expectativas, valores, prescrições e obrigações resultantes do pressuposto da heterossexualidade como natural. É a norma que constrange os sujeitos a se constituírem e a se definirem como heterossexuais. Miskolci (2009) argumenta que heteronormatividade é o nome dado pela teoria queer ao dispositivo de sexualidade, proposto por Foucault (1976/1994a)2. Segundo o autor, “o dispositivo de sexualidade tão bem descrito por Foucault em sua gênese ganha, nas análises queer, um nome que esclarece tanto a que ele direciona à ordem social como seus procedimentos neste sentido” (MISKOLCI, 2009: 156). Sendo em parte uma herança do pensamento foucaultiano, a teoria queer se insere em uma ampla crítica ao sujeito uno e estável. Ao se voltarem para os processos normalizadores, considerando a sexualidade como produto histórico e promovendo uma interseccionalidade entre sexualidade, raça/etnia e gênero, “os empreendimentos queer partem de uma desconfiança com relação aos sujeitos sexuais como estáveis...” (MISKOLCI, 2009: 169). Este é o principal ponto de tensão entre o queer e os
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Fahri Neto (2007: 63) esclarece: “... o dispositivo de sexualidade é composto de elementos discursivos diversos, científicos ou não, de práticas institucionais, com suas regras e técnicas de poder, pertinentes a órgãos do Estado, ministérios, secretarias, comissões, escolas, famílias etc. Esse conjunto heterogêneo não é necessariamente harmônico, concertado, suas partes não se encaixam umas às outras sem conflitos, sem ajustes; o próprio balanço, o próprio jogo de poder, jogo discursivo e tático, faz parte do dispositivo. O dispositivo de sexualidade é formado por esses elementos prático-discursivos, mas também é aquilo que os conecta, é o que se estabelece, imanentemente, a partir da relação entre esses elementos, e se constitui como o objeto-elo, supostamente natural, que liga esses elementos disparates: a sexualidade dos seres humanos.” 9
movimentos feministas e LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) em geral, que se sustentam em formações identitárias como ‘homem’, ‘gay’ e ‘mulher’ para formular demandas, formações que necessariamente criam exclusões e limitam a possibilidade de criação de outros estilos de vida. Uma política queer, nesse sentido, é uma política pós-identitária, que aponta para a necessidade de se pensar estratégias com vistas à legitimidade das muitas e múltiplas expressões de sexo, gênero e desejo. Miskolci (2009: 152) frisa que ... o papel do queer não é desqualificar os movimentos identitários, antes apontar as armadilhas do hegemônico em que se inserem e permitir alianças estratégicas entre os movimentos que apontem como objetivo comum a crítica e contestação dos regimes normalizadores que criam tanto as identidades quanto sua posição subordinada no social.
A crítica queer ao reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo segue essa direção. Se a princípio tal reconhecimento refletiria a ampliação da noção de casamento e família, a analítica queer aponta no horizonte do ‘casamento gay’ uma ampliação da ordem sociossexual vigente, no caso, a heteronormatividade. Considero importante ressaltar que a teoria queer não é simplesmente uma ruptura com os saberes anteriores. Ela representa uma radicalização de questionamentos e problematizações já esboçados e pronunciados no interior dos saberes hegemônicos, em especial nas ciências sociais. A crítica ao sujeito é um exemplo de tal radicalização. Salih (2012: 19) afirma: A teoria queer surgiu, pois, de uma aliança (às vezes incômoda) de teorias feministas, pós-estruturalistas e psicanalíticas que fecundavam e orientavam a investigação que já vinha se fazendo sobre a categoria do sujeito. A expressão “queer” constitui uma apropriação radical de um termo que tinha sido usado anteriormente para ofender e insultar, e seu radicalismo reside, pelo menos em parte, na sua resistência à definição – por assim dizer – fácil.
Gênero, sexo e práticas sexuais: pontos de partida
Nos estudos sobre mulheres e posteriormente nos estudos feministas, o conceito de gênero aparece como uma tentativa de separação entre o aspecto social e cultural da masculinidade/feminilidade e seu fundo biológico. Desse modo, gênero apresentou-se como um conceito relacional, que enfatizava o caráter social e cultural das distinções baseadas no sexo (GUEDES, 1995). 10
Esse sistema, que podemos nomear como sistema sexo/gênero, começou a ser questionado no interior dos debates feministas uma vez que ele deixava intocado o conhecimento biológico. Enquanto uma designação da construção social do sexo, uma contraposição à dimensão biológica, ficava implícita a sugestão de que o gênero seria apenas uma ultrapassagem de um conjunto de características invariáveis (ALMEIDA, 2007). Nesse sentido, a simples separação entre sexo e gênero, estando o primeiro ‘fora’ da cultura, não parecia suficiente para o desenvolvimento desse campo teórico. Todavia, vários trabalhos começaram a atestar que o corpo/sexo não cria o gênero, mas é criado por ele. Um exemplo é a obra Inventando o sexo: Corpo e gênero dos gregos a Freud, de Thomas Laqueur (1992/2001). O livro apresenta uma extensa análise do discurso médico sobre o corpo ao longo dos últimos séculos e demonstra como a ideologia vem se impondo ao saber biológico e, por extensão, à representação do corpo: as variadas formas de pensar as diferenças sexuais devem ser entendidas como produções discursivas submetidas a variados contextos. ... com base na evidência histórica, (...) quase tudo que se queira dizer sobre o sexo – de qualquer forma que o sexo seja compreendido – já contém em si uma reivindicação sobre o gênero. O sexo, tanto no mundo de sexo único como no de dois sexos, é situacional; é explicável apenas dentro do contexto da luta sobre gênero e poder (LAQUEUR, 1992/2001: 23).
Nesse sentido, Laqueur aponta os limites do mito natureza x cultura ao sentenciar que “historicamente, as diferenciações de gênero precederam as diferenciações de sexo.” (Ibid.: 75) Segundo o historiador, no modelo de sexo único, que vigorou até o século XVIII, os corpos masculino e feminino eram vistos de modo hierárquico, sendo o segundo uma versão ‘imperfeita’ do primeiro, entendido como o padrão do corpo humano. No modelo de dois sexos, agora incomensuráveis, o masculino permanecia como sexoreferência, enquanto que o feminino tornou-se uma categoria vazia, eternamente em construção. Nesse momento, o corpo da mulher tornou-se o campo de batalha para redefinir a relação social fundamental entre homem e mulher, expresso, sobretudo, na sexualidade feminina, pois é ela que está sempre em constituição, consistindo na categoria vazia, que é definida a partir de uma diferenciação sexual cuja norma tem sido masculina (MATOS & LOPES, 2007: 64).
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Partindo de questionamentos semelhantes aos de Laqueur (1992/2001), a filósofa americana Judith Butler apresenta, em seu livro Problemas de Gênero (1990/2012), uma radicalização da problemática sexo/gênero. Butler tem realizado diversas contribuições teóricas que vêm gerando repercussões no campo de estudos em gênero e sexualidade, assim como nas militâncias feminista e LGBT. Além de Derrida e Austin, a obra de Butler recebe clara influência das ideias de Foucault, em especial suas postulações sobre lei e norma, sexualidade e poder. Por esse motivo, considero conveniente apresentar, ainda que brevemente, algumas contribuições de Foucault para então voltarmo-nos às proposições de Butler. Em seus livros Vigiar e Punir (1975/2009) e A vontade de saber (1976/1994a), ao revisar as concepções clássicas de poder, Foucault propõe uma releitura dessa noção, propondo uma divisão analítica entre poder jurídico – ou poder-lei – e poder produtivo. Enquanto a concepção clássica, própria do liberalismo e do marxismo, tradicionalmente utilizada para pensar o poder de um modo geral, limita-se a tratar apenas de um poder visível e prescritivo, a leitura foucaultiana sugere a existência de um poder que, antes de proibir e reprimir, é capaz de produzir 3. Por poder não quero dizer “o Poder”, como conjunto e instituições e de aparelhos que garantem a sujeição dos cidadãos num determinado Estado. Por poder também não entendo um modo de sujeição que, por oposição à violência, teria a forma da regra. Por fim, não entendo ainda um sistema geral de dominação exercido por um elemento ou por um grupo sobre o outro, e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessariam todo o corpo social. A análise, em termos de poder, não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são antes apenas as suas formas terminais. Por poder parece-me que se deve compreender, em primeiro lugar, a multiplicidade das relações de força imanentes ao domínio em que se exercem e constitutivas da sua organização; o mecanismo que, por via de lutas e de confrontos incessantes, as transforma, as reforça, as inverte; os apoios que essas relações de força encontram umas nas outras, de maneira a formarem cadeia ou sistema, ou, pelo contrário, os desfasamentos, as contradições que as isolam umas das outras; por fim, as estratégias em que se efectuam e cujo desenho geral ou cristalização institucional tomam corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1976/1994a: 95-96).
O poder, nesse sentido, seria concebido como uma espécie de rede ou um campo permeado de confrontos, de relações de poder (CASTRO, 2009). As relações de poder apontam para ações cujo encontro pode manter ou gerar novas situações de dominação, tornando a rede de poder sempre instável (FOUCAULT, 1976/1994a). A relação entre 3
Importante frisar que Foucault sugere que o poder jurídico também abriga capacidade de produção. 12
saber e poder, portanto, é fundamental à medida que os diferentes saberes, instituídos ou não e referidos a uma gama de objetos, formulações, conceitos, teorias e práticas sociais, podem gerar novas relações de poder (FOUCAULT, 1975/2009; CASTRO, 2009). Foucault (1984/2004: 266) sugere uma diferenciação entre relações de poder e estados de dominação. Enquanto nas primeiras há uma multiplicidade de relações de força que ora se confrontam, ora se reforçam, ora se invertem, nos estados de dominação, ao invés de móveis, as relações de poder “se encontram bloqueadas e cristalizadas”4. Em relação à sexualidade, Foucault mostra como as definições, possibilidades e contradições na experimentação sexual são produtos das estratégias de poder, não sendo possível, portanto, pensar as ‘transgressões’ sexuais como ‘fora’ do poder. “Que onde há poder há resistência e que, contudo, ou talvez por isso mesmo, esta nunca está em posição de exterioridade relativamente ao poder” (FOUCAULT, 1976/1994a: 98). Assim como Foucault, Butler está interessada em pensar a emergência do sujeito nas estratégias de poder. Em outros termos, sua proposta principal é realizar uma genealogia crítica – no sentido foucaultiano – das ontologias de gênero, problematizando a noção e a centralidade que o termo ‘sujeito’ assume nas políticas representacionais (BUTLER, 1990/2012; SALIH, 2012). Sua assertiva sobre o poder é clara: Butler considera que só é possível pensar e desconstruir o sujeito generificado a partir da própria estrutura de poder que o produz. Por ora, deter-me-ei nas contribuições de Butler em relação aos conceitos de sexo e gênero para então pensá-los no exercício da conjugalidade homossexual. Tomando a problemática sexo/gênero como ponto de partida, Butler (1990/2012: 25-26) argumenta: Haveria uma história de como se estabeleceu a dualidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as opções binárias como uma construção variável? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais? Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente constituído quanto o 4
“Quando um indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo de relações de poder, a torná-las imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade do movimento – por instrumentos que tanto podem ser econômicos quanto políticos ou militares –, estamos diante do que se pode chamar de um estado de dominação.” (Ibid.: 266) Evidentemente, esta fala de Foucault não autoriza a conclusão de que em um estado de dominação não haveria relações de poder. 13
gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma. (...) Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero. (itálicos da autora)
Gênero, nesse sentido, operaria como matriz à qual estaria submetido, inclusive, o corpo biológico. Se à primeira vista o gênero aparece como uma instância que determina possibilidades das quais não é possível escapar, tendo como exemplo o binarismo masculino x feminino, Butler frisa que o gênero, mesmo sendo uma experiência limitada discursivamente, é, antes de tudo, “uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura considerada” (Ibid.: 37). Em outros termos, o sujeito generificado seria efeito de certa organização normativa de gênero, a saber, hierárquica, assimétrica e binária, mas que não se limitaria a esta. Partindo dessas considerações iniciais, Butler postula que gênero deve ser pensado dentro do que ela chama de “matriz de inteligibilidade” (Ibid.: 39), constituída pelos termos gênero, sexo e desejo sexual/práticas sexuais, cuja organização pode resultar em identidades aceitáveis culturalmente – por exemplo, um homem heterossexual com gênero masculino – e outras não aceitáveis – por exemplo, um homem homossexual que adota o gênero feminino. Não sendo inteligíveis, pois geram descontinuidade ou incoerência, determinados arranjos evidenciam o limite de práticas reguladoras que estabelecem regras coerentes de gênero. Essas regras são caracteristicamente ‘heterossexualizantes’ à medida que exigem e instauram a oposição masculino x feminino. Nesse sentido, podemos considerar que a lógica binária masculino x feminino, que estabelece a dicotomia homem x mulher, é por definição heteronormativa; portanto, enquadrar o gênero dentro desse binarismo é ignorar a heterossexualidade compulsória subjacente a ele. Nas palavras da autora (Ibid.: 45-46): O gênero só pode denotar uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige um gênero – sendo o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu – e um desejo – sendo o desejo heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. A coerência ou a unidade internas de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estável e oposicional. Essa heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional. Essa concepção do gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo, gênero e desejo, 14
mas sugere igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero reflete ou exprime o desejo. Supõe-se que a unidade metafísica dos três seja verdadeiramente conhecida e expressa num desejo diferenciador pelo sexo oposto – isto é, numa forma de heterossexualidade oposicional. (...) Esse esboço um tanto tosco nos dá uma indicação para compreendermos as razões políticas da visão do gênero como substância. A instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa diferenciação por meio de práticas do desejo heterossexual. O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura binária resulta numa consolidação de cada um de seus termos, da coerência interna respectiva do sexo, do gênero e do desejo. (itálico da autora)
Nesse sentido, a matriz de gênero instaura e regula uma coerência entre gênero, sexo e desejo/práticas sexuais com vistas à inteligibilidade, coerência, continuidade ou aceitabilidade de alguns sujeitos e não de outros. Acrescento que tal matriz também pode ser convocada para pensar a inteligibilidade de algumas relações afetivo-sexuais e não de outras, ou como algumas relações, marcadas pela diferença, podem operar de modo a se enquadrar em padrões de relacionamento com vistas à referida inteligibilidade. O conceito heterossexualidade compulsória foi elaborado por Adrienne Rich em seu clássico artigo Heterossexualidade compulsória e existência lésbica (1980/2010). Nesse texto, Rich considera que a incompreensão ou a invisibilidade da homossexualidade feminina nos estudos feministas de sua época aponta para a existência de uma ordem que estabelece para as mulheres o exercício exclusivo da heterossexualidade. Segundo a autora, o olhar analítico de pensadoras feministas à sua época acatava tal ordem, naturalizando-a e concebendo a lesbianidade através de uma escala que vai do desviante ao invisível. Rich sugere que em certas práticas opressoras há mais do que a tentativa de permanência da desigualdade de gênero: há também estratégias de permanência da heterossexualidade enquanto única expressão sexual possível. Esta heterossexualidade institucional ou, nos termos de Rich, compulsória, é uma norma segundo a qual o casamento e a orientação sexual voltada para os homens são vistos como inevitáveis para as mulheres. Desse modo, Rich visualiza na heterossexualidade compulsória da mulher a principal vertente da opressão masculina sobre o corpo feminino. Quando nós encaramos de modo mais crítico e claro a abrangência e a elaboração das medidas formuladas a fim de manter as mulheres dentro dos limites sexuais masculinos, quaisquer que sejam suas origens, torna-se uma 15
questão inescapável que o problema que as feministas devem tratar não é simplesmente a “desigualdade de gênero”, nem a dominação da cultura por parte dos homens, nem qualquer “tabu contra a homossexualidade”, mas, sobretudo, o reforço da heterossexualidade para as mulheres como um meio de assegurar o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional delas (Ibid.: 34).
Miskolci (2009) pontua que a prescrição da heterossexualidade atravessou dois momentos distintos: o primeiro, entre final do século XIX e meados do XX, no qual vigorou o modelo da heterossexualidade compulsória, e o segundo, atual, onde vivemos o domínio da heteronormatividade; não mais se constrange os sujeitos a serem heterossexuais, mas a viverem como se fossem. Butler (1990/2012), por sua vez, não abre mão do conceito por completo para pensar o presente. Ao formular a ideia da matriz de inteligibilidade, ela amplia o conceito de heterossexualidade compulsória, entendendo-o como uma norma que estabelece que todos – homens e mulheres – devem viver a heterossexualidade. Enquanto a heterossexualidade compulsória pressupõe um binarismo de gênero, ou a redução dos gêneros aos polos masculino e feminino, a matriz de gênero – ou o arranjo gênero, sexo e desejo, um arranjo heteronormativo – sugere a existência de um sistema que, ao se sustentar na heterossexualidade compulsória, produz sujeitos inteligíveis e não inteligíveis, corpos abjetos ou não, regulando a intensidade da violência sobre todos. Enquanto um conceito aponta para possibilidades restritas de sexualidade, o outro aponta, a um só tempo, para o atravessamento do gênero no corpo e na sexualidade e para as muitas possibilidades de apropriação do gênero. Butler não concorda com a conclusão de feministas radicais, como Rich, de que a lesbianidade – ou, nos termos de Rich, a existência lésbica5 –, ao romper com a heterossexualidade compulsória, seria o meio de romper com a opressão de gênero. Enquanto Rich sugere que a existência lésbica é uma expressão erótica e afetiva de caráter subversivo, Butler observa que a homossexualidade, se a princípio é uma subversão da matriz de gênero, não escapa desta, podendo de diferentes modos reafirmá-la. A homossexualidade, nesse sentido, não estaria ‘fora’ da matriz de gênero, como Rich deixa a entender, mas operando a partir dela. Desse modo, partilhando da
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Rich (2010/1980: 35): “... o termo lesbianismo tem alcance limitado e clínico. Existência lésbica sugere tanto o fato da presença histórica de lésbicas quanto da nossa criação contínua do significado dessa mesma existência.” (itálicos da autora) 16
assertiva foucaultiana de que nada escapa ao poder, Butler propõe a subversão a partir da própria matriz de gênero – cuja configuração, como argumentei, é heteronormativa. Observe-se não só que as ambiguidades e incoerências nas práticas heterossexual, homossexual e bissexual – e entre elas – são suprimidas e redescritas no interior da estrutura reificada do binário disjuntivo e assimétrico do masculino/feminino, mas que essas configurações culturais de confusão do gênero operam como lugares de intervenção, denúncia e deslocamento dessas reificações. Em outras palavras, a “unidade” do gênero é o efeito de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade do gênero por via da heterossexualidade compulsória (BUTLER, 1990/2012: 57).
Concebendo o gênero como uma “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância” (Ibid.: 59), a autora pergunta: Haverá formas de repetição que não constituam simplesmente imitação, reprodução e, consequentemente, consolidação da lei (...)? Que possibilidades existem de configurações de gênero entre as várias matrizes emergentes – e às vezes convergentes da inteligibilidade cultural que rege a vida marcada pelo gênero? (...) Mesmo que construtos heterossexistas circulem como lugares praticáveis de poder/discurso a partir dos quais faz-se o gênero, persiste a pergunta: que possibilidades de fazer o gênero repetem e deslocam, por meio da hipérbole da dissonância, da confusão interna e da proliferação, os próprios construtos pelos quais os gêneros são mobilizados? (Ibid.: 56-57)
Os mecanismos de regulação e limitação do gênero, segundo Butler, nunca se esgotariam, ficando sempre em aberto a possibilidade de ruptura com as formas hegemônicas de gênero. Ao final de Problemas de Gênero, Butler pontua que o gênero não é internalizado no corpo, mas inscrito nele, de modo que os sujeitos expressam as normas no corpo e por meio dele. A própria definição de corpo, assim como a interioridade e a substancialidade do gênero, seria efeito de regulações discursivas que limitam e ocultam possibilidades outras de compreender e experimentar o corpo e o gênero. Essa produção disciplinar do gênero leva a efeito uma falsa estabilização do gênero, no interesse da construção e regulação heterossexuais da sexualidade no domínio reprodutor. A construção da coerência oculta as descontinuidades do gênero, que grassam nos contextos heterossexuais, bissexuais, gays e lésbicos, nos quais o gênero não decorre necessariamente do sexo, e o desejo, ou a sexualidade em geral, não parece decorrer do gênero – nos quais, a rigor, nenhuma dessas dimensões de corporeidade significante expressa ou reflete outra. Quando a desorganização e desagregação do campo dos corpos rompe a ficção reguladora da coerência heterossexual, parece que o modelo 17
expressivo perde sua força descritiva. O ideal regulador é então denunciado como norma e ficção que se disfarça de lei do desenvolvimento a regular o campo sexual que se propõe descrever (Ibid.: 194).
Butler apresenta o conceito de performatividade, que diz respeito à execução de atos cuja repetição resulta numa ilusória estabilidade e naturalidade da identidade de gênero. ... é claro que essa coerência é desejada, anelada, idealizada, e que essa idealização é um efeito da significação corporal. Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos (Ibid.: 194). (itálicos da autora)
A performatividade, como indica Salih (2012), é um processo, uma repetição de expressões de gênero, sexo e desejo, que com o tempo dão a impressão de naturalidade e substancialidade, como se estas não fossem resultado de regulações normativas que sustentam a matriz de gênero. ‘Performatizar’ um gênero é comportar-se, agir, pensar e sentir tendo como referência uma determinada possibilidade de gênero; é um meio e um processo de imitação ou atuação com vistas à reafirmação e sedimentação de um gênero que em si é ilusório, não tem substância e que é apenas efeito de regulações normalizadoras. ‘Performatizar’, portanto, é imitar uma imitação. ... o gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito de gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero. Essa formulação tira a concepção do gênero do solo de um modelo substancial da identidade, deslocando-a para um outro que requer concebê-lo como uma temporalidade social constituída. Significativamente, se o gênero é instituído mediante atos internamente descontínuos, então a aparência de substância é precisamente isso, uma identidade construída, uma realização performativa em que a plateia social mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar, exercendo-a sob forma de uma crença (BUTLER, 1990/2012: 200). (itálicos da autora)
Todavia, o conceito abre a possibilidade de performatividades outras, a saber, aquelas que de algum modo deslocam a imitação, produzindo efeitos subversivos no âmbito da matriz heteronormativa. É justamente em seu caráter performativo que reside a possibilidade de questionar-se o estatuto ‘coisificado’ do gênero (BUTLER, 1998). 18
O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e da heterossexualidade compulsória (BUTLER, 1990/2012: 201). (itálicos da autora)
A figura da drag é evocada por Butler como exemplo de paródia de gênero que, ao evidenciar a estrutura imitativa do gênero, pode representar uma performatividade subversiva. Mais do que apontar para a artificialidade de suas apropriações de gênero, a drag desestabiliza o binário masculino x feminino e o sistema sexo/gênero, que pressupõe que a cada corpo corresponde uma expressão ‘natural’ de gênero. Segundo Salih (2012), todavia, a performatividade enquanto instrumento de subversão não estaria satisfatoriamente esclarecida por Butler. A autora pontua: Há dois problemas com essa formulação: um é que o modo de escolher o instrumento será determinado e possibilitado pelo próprio instrumento, em outras palavras, a subversão e a agência são condicionadas, se não determinadas, por discursos dos quais não se pode fugir. Isso leva ao segundo problema: se a própria subversão é condicionada e restringida pelo discurso, então, como podemos dizer que há efetivamente subversão? Qual é a diferença entre a paródia subversiva e o tipo “comum” de paródia no qual, como afirma Butler, todo mundo está de qualquer forma, involuntariamente envolvido? (SALIH, 2012: 95) (itálico da autora)
Esses questionamentos refletem uma leitura problemática da subversão a partir da dicotomia opressão x libertação, que concebe tais polos operando como opostos ou separados no âmbito de uma normatividade, sendo que, ao contrário, operam numa dissonante conjugação. Ao invés de tentar responder à pergunta ‘qual é a performatividade subversiva?’, sugiro, com Butler, que a própria matriz de gênero – refletida nas performatividades individuais ou no exercício da intimidade e conjugalidade – abriga possibilidades de apropriações outras, alternativas ao que é tradicional e hegemônico. Se há subversão no exercício da sexualidade, da intimidade e da conjugalidade, por exemplo, esta se dá mediante a reapropriação individual ou o diálogo com as normas de sexo, sexualidade e gênero. Em outros termos, é o próprio sujeito, efeito generificado da matriz de inteligibilidade, que possibilita deslocamentos da mesma, que por sua vez não podem ser planejados ou tomados como subversões a priori uma vez que as estratégias de resistência podem gerar efeitos diversos, inclusive contraditórios. 19
Em artigo recente, Butler (2009) comenta as possibilidades de performatividades que traduzem ou se reapropriam da ‘linguagem’ do poder, gerando deslocamentos nas relações de poder. Longe de ser uma ratificação do poder, tal estratégia apontaria para a possibilidade de ação política. La teoria de la performatividad de género presupone que las normas están actuando sobre nosotros antes de que tengamos la ocasión de actuar, y que cuando actuamos, remarcamos las normas que actúam sobre nosotros, tal vez de una manera nueva o de maneras no esperadas, pero de cualquier forma em relación com las normas que nos precedem y que nos exceden (BUTLER, 2009: 333).
Ao pontuar que a performatividade de gênero é exercida com fins de promoção de inteligibilidade – entendendo-se corpo inteligível como aquele que apresenta inteligibilidade no espaço social e no tempo, obtendo reconhecimento –, Butler (2009) apresenta o conceito de precariedade, que se caracteriza por uma condição de exposição e vulnerabilidade de determinadas populações e de certas formas de subjetivação. A autora acrescenta que tal conceito pode ser usado para referir-se à precária condição de inteligibilidade de sujeitos e corpos que não se adequam à matriz de gênero heterossexual e cuja sobrevivência não é garantida. Estando à margem das possibilidades de reprodução da condição de sujeito inteligível, estas vidas seriam consideradas, em outros termos, dispensáveis uma vez que se trataria de vidas menos humanas. ¿Como llamamos a aquellos que ni aparecen como sujetos ni pueden aparecer como tales en el discurso hegemónico? Me da la impresión de que hay normas sexuales y de género que de una o otra forma condicionan qué y quién será “reconocible” y qué y quién no; y debemos ser capazes de tener en cuenta esta diferente localización de la “reconocibilidad”. Parece que debemos hacer esto para comprender aquellas formas vivientes de género, por ejemplo, que están poco reconocidas o que permanecen no reconocidas precisamente porque existen en los limites de la comprensión del corpo e incluso de persona. ¿Hay formas de sexualidad para las cuales no hay vocabulario adecuado, precisamente porque las lógicas de poder que determinan cómo pensamos sobre el deseo, la orientación, los actos sexuales y los placeres no admiten ciertas formas de sexualidad? (BUTLER, 2009: 324)
A autora aponta que a performatividade subversiva é aquela exercida contra a precariedade. Em outros termos, ao usarem a mesma ‘linguagem’ do poder que as oprime, deslocando-a e criando novas ‘linguagens’, certas expressões de sexo, sexualidade e gênero podem se aproximar dos modos de reprodução da condição de 20
sujeito inteligível, ao mesmo tempo em que desestabilizam tais modos. Nas palavras da autora, isto significa traducir al lenguage dominante, pero no para ratificar su poder, sino para ponerlo en evidencia y resistir a su violencia diaria y para encontrar el lenguaje a través del cual reivindicar los derechos a los que uno no tiene todavia derecho (Idib.: 332).
É importante pontuar que, ao afirmar que o corpo é inscrito pelo gênero, Butler não está considerando o corpo como ‘tábula rasa’ sobre a qual se inscreveriam as performatividades hegemônicas de gênero. O corpo, na concepção da autora, não é uma massa indiferente que é significada quando atravessada pela matriz de gênero heterossexual. Butler deixa claro que o corpo, seus limites e possibilidades de experimentação são significados e ressignificados a todo o momento no interior da matriz por meio das performatividades (BUTLER 1990/2012; BUTLER, 1998). Nesse sentido, o corpo é instável porque reflete um estado de dominação que também o é. Igualmente instáveis podem ser as noções de identidade, de eu e de sujeito, elementos centrais nas reflexões de Butler. Como ela frisa, a interioridade – como que separada de uma exterioridade – é uma ficção resultante das regulações normativas de gênero. O sujeito é um efeito do poder, mas em certo grau escapa ao poder quando consideramos as possibilidades múltiplas, por parte desse efeito-sujeito, de apropriação e reprodução da matriz de gênero, podendo gerar efeitos de contra-poder inesperados (BUTLER 1990/2012; BUTLER, 2009). Nesse sentido, quando Butler (1990/2012) afirma que não haveria um ‘fazedor’ por trás da performatividade de gênero, ela não está negando o sujeito, mas apenas pontuando que o próprio sujeito é efeito do gênero que ele ‘performatiza’, subversivamente ou não, dentro das possibilidades da matriz de gênero. Salih (2012: 21-22) afirma: Uma investigação genealógica da constituição do sujeito supõe que sexo e gênero são efeitos – e não causas – de instituições, discursos e práticas; em outras palavras, nós, como sujeitos, não criamos ou causamos as instituições, os discursos e as práticas, mas eles nos criam ou causam, ao determinar nosso sexo, nossa sexualidade, nosso gênero. As análises genealógicas de Butler vão se concentrar no modo como o efeito-sujeito, como ela o chama, se dá, e ela sugere, além disso, que há outros modos pelos quais o sujeito poderia se “efetuar”. Se o sujeito não está exatamente “lá” desde o começo (...), mas é instituído em contextos específicos e em momentos específicos (...), então o sujeito pode ser instituído diferentemente, sob formas que não se limitem a reforçar as estruturas de poder existentes. (itálicos da autora)
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A conjugalidade gay e lésbica deve ser analisada sob o entendimento de que ela se apresenta – ou é apresentada – como diferença no contexto de heteronormatividade, que estabelece/supõe as relações como heterossexuais. Esta percepção da diferença pelos próprios parceiros leva-me a pensar não somente nos atravessamentos da heteronormatividade em suas relações, mas também em como se dá sua manutenção, levando-se em conta, evidentemente, especificidades de gênero, classe e raça/etnia. Em relação ao gênero, e partindo da contribuição de Butler no tocante à formulação da matriz de inteligibilidade – que acentua o caráter instável e aberto da heteronormatividade –, pergunto-me como, no referido contexto, se dá a conjugalidade gay ou lésbica, em que medida esta opera com vistas a algum grau de coerência entre gênero, sexo e práticas sexuais, e em que medida ela se afasta dessa matriz, produzindo subversões. Trata-se, desse modo, de investigar a gramática das relações afetivo-sexuais a partir de seus atravessamentos de gênero, sexo e desejo. Indo um pouco além, pergunto-me se é possível investigar como esses sujeitos vêem não só seu relacionamento, mas como se vêem nele. A permanência de um arranjo inteligível, de um sistema de coerência entre gênero, sexo e desejo, assim como a heterossexualidade compulsória implícita nesse sistema, pode produzir efeitos de subjetivação que engendram modos particulares de relação afetivo-sexual, como também de cuidados de si. Nesse sentido, o conceito de cuidado de si (FOUCAULT, 1984/1994b; 1985) também se mostra bastante útil como analisador, pois permite pensar os efeitos de subjetivação do referido arranjo a partir do próprio sujeito, além de deixar em aberto a possibilidade de reafirmação e/ou subversão das normas. A última fase do pensamento foucaultiano, inacabado por conta do falecimento de seu autor, assumiu uma nova ótica na investigação do sujeito. Se antes o pensador francês tratava das relações entre saber e poder, sendo o sujeito um dos seus efeitos, as reflexões de seus últimos anos de vida incidiram sobre as relações entre os jogos de verdade e o sujeito (FOUCAULT, 1984/2004; PAGNI, 2011). Em outros termos, Foucault propôs-se a pensar como determinados modos de subjetivação se constituíram através de tecnologias de si e não apenas de tecnologias disciplinares. Os dois últimos volumes de A História da Sexualidade, de títulos O Uso dos Prazeres (1984/1994b) e O Cuidado de Si (1984/2011), além de algumas aulas no Collège de France, reunidas nos livros O Governo de Si e dos Outros (1982, 1983/2010) e A Hermenêutica do Sujeito 22
(1981, 1982/2006), e de algumas entrevistas, reunidas no quarto volume do livro Ditos e Escritos (2004), atestam a preocupação de Foucault em pensar como o sujeito, não obstante ser um efeito normativo, constrói sua própria ‘verdade’, produzindo deslocamentos nas estruturas de poder. O cuidado de si foi um dos conceitos mais importantes elaborados nessa fase do pensamento foucaultiano. Segundo Foucault (1984/1994b), durante a antiguidade greco-romana e até o início da era cristã, desenvolveu-se um exercício de ascese, de cuidar-se de si, que consistia em um conjunto de práticas voluntárias através das quais os sujeitos estabeleciam para si mesmos regras de conduta, como também procuravam transformar a si próprios. O cuidado de si permitia a elaboração de uma estética ou arte da existência que, com o desenvolvimento das instituições religiosas, pedagógicas e psiquiátricas, perdeu sua autonomia, passando a ser considerada uma das técnicas que garantem a vigência da governamentalidade (FOUCAULT, 1984/2004; CASTRO, 2009). Temos, pois, com o tema do cuidado de si, uma formulação filosófica precoce, por assim dizer, que aparece claramente desde o século V a.C. e que até os séculos IV-V d.C. percorre toda a filosofia grega, helenística e romana, assim como a espiritualidade cristã. Enfim, com a noção de epimeleia heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade. De todo modo, é a partir da noção de epimeleia heautoû que, ao menos a título de hipótese de trabalho, pode-se retomar toda esta longa evolução milenar (...) que conduziu das formas primeiras da atitude filosófica tal como se a vê surgir entre os gregos até as formas primeiras do ascetismo cristão. Do exercício filosófico ao ascetismo cristão, mil anos de transformação, mil anos de evolução – de que o cuidado de si é, sem dúvida, um dos importantes fios condutores ou, pelo menos, para sermos mais modestos, um dos possíveis fios condutores (FOUCAULT, 1981, 1982/2006: 15).
De início, a prática do cuidado de si era própria de um grupo muito restrito, composto especialmente de jovens aristocratas destinados a exercer o poder. O cuidado de si na Antiguidade estava diretamente relacionado à preparação para o exercício da vida política e valorizava a relação mestre-aprendiz. Antes de uma prática aparentemente individualista, a epimeleia heautoû remetia à importância do outro, do vínculo social e da ação, da prática política (FOUCAULT, 1981, 1982/2006; GROS, 2008). Foucault (1984/1994b; 1981, 1982/2006) aponta que, compreendida nos dois primeiros séculos da era cristã, a idade de ouro do cuidado de si consistiu numa 23
disseminação de tal prática a todos os sujeitos, independentemente de seu status social. A função maior da epimeleia heautoû não seria mais a preparação para o exercício do poder, mas sim ocupar-se consigo, para si e em si. Trata-se, segundo o autor, de um gradativo desprendimento do eu, iniciado na época de ouro do cuidado de si, como um fim que bastaria a si mesmo, sem que o cuidado do outro constitua o fim último. A epimeleia heautoû assumiu com o tempo uma relativa autonomia frente aos interesses da polis, constituindo-se como uma técnica generalizada e particular. “O cuidado de si torna-se coextensivo à vida.” (FOUCAULT, 1981, 1982/2006: 107) Ora, é esse tema do cuidado de si, consagrado por Sócrates, que a filosofia ulterior retomou, e que ela acabou situando no cerne dessa “arte da existência” que ela pretende ser. É esse tema que, extravasando de seu quadro de origem e se desligando de suas significações filosóficas primeiras, adquiriu progressivamente as dimensões e as formas de uma verdadeira “cultura de si”. Por essa expressão é preciso entender que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e a elaboração de um saber (FOUCAULT, 1984/2011: 50).
Embora os gregos antigos não definissem ou destacassem de suas experiências uma esfera que hoje denominamos sexualidade, alguns termos apresentados por Foucault, entre eles o aphrodisia, parecem remeter ao conjunto das experiências, entre outras, que hoje chamamos de sexuais. Os aphrodisia diziam respeito a um conjunto de condutas consideradas prazerosas e aceitáveis desde que na medida e momento certos (FOUCAULT, 1984/1994b), constituindo uma ars erotica. A ontologia à qual se refere esta ética do comportamento sexual não é, pelo menos na sua forma geral, uma ontologia da provação e do desejo; não é a de uma natureza fixando a norma dos actos; é a de uma força que liga entre si actos, prazeres e desejos. É esta relação dinâmica que constitui aquilo que se poderia chamar o grão da experiência ética dos aphrodisia (Ibid.: 53).
Os aphrodisia seriam vividos de acordo com a ética do cuidado de si. Diferentemente da moral cristã – que passou a conceber a sexualidade como um mal em si e que requer, além da renúncia e do controle, a esquematização das condutas sexuais em certas e erradas –, a ética sexual dos aphrodisia remetia a um trabalho de si para 24
consigo que buscava encontrar a correta medida das experimentações prazerosas, mesmo que sob algumas restrições (Ibid.). Nesse sentido, a crescente preocupação com as experiências sexuais nos discursos filosóficos e morais antigos apontariam não para um desenvolvimento das interdições, mas para a intensificação de uma cultura de si, na qual o sujeito, e não apenas as normas, torna-se central na elaboração e execução de atos e experiências. Foucault (1984/2011: 47) afirma: “... essa majoração da austeridade sexual na reflexão moral não toma a forma de um estreitamento do código que define os atos proibidos, mas a de uma intensificação da relação consigo pela qual o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos.” Todavia, o autor aponta que com o tempo o exercício do cuidado de si foi afetado por uma série de transformações na prática matrimonial e nas regras do jogo político, entre outras. Tais mudanças, que não serão aprofundadas aqui por fugirem aos propósitos desse texto, levaram a novas formas de estética da existência que, não obstante, ainda se centravam na primazia do sujeito. O desenvolvimento da cultura de si não culminou em uma interdição do desejo e sim em um deslocamento centrado na fragilidade do indivíduo em relação aos males que a atividade sexual poderia suscitar, ao desenvolvimento de uma concepção simétrica e pública da relação homem-mulher – em detrimento da relação mestre-aprendiz – e de uma dissociação entre poder sobre si, próprio do cuidado de si, e poder sobre os outros. Não se trata de um embrião da moral cristã, uma vez que, nesta última, o cuidado de si tratou de uma renúncia de si e a sexualidade passou a ser compreendida como um mal per se (FOUCAULT: 1984/2011). Na moral cristã, abandonou-se certa prática antiga do cuidado de si em prol de uma interpretação de si. ... essa reflexão moral desenvolveu, a propósito do corpo, do casamento e do amor pelos rapazes temas de austeridade que não deixam de ter semelhanças com os preceitos e interdições que se poderão encontrar mais tarde. Mas é preciso ter consciência que sob essa continuidade aparente, o sujeito moral não será constituído do mesmo modo. Na moral cristã do comportamento sexual, a substância ética será definida não pelos aphrodisia, mas por um domínio dos desejos que se ocultam nos arcanos do coração e por um conjunto de actos cuidadosamente definidos na sua forma e condições; a sujeição assumirá a forma não de um savoir-faire, mas de um reconhecimento da lei e de uma obediência à autoridade pastoral; não é, pois, tanto a dominação perfeita de si por si no exercício de uma actividade de tipo viril que caracterizará o sujeito moral, mas a renúncia a si, e uma pureza cujo modelo deve ser procurado do lado da virgindade. A partir daí, pode-se compreender a importância na moral cristã dessas duas práticas, ao mesmo tempo opostas e complementares: uma codificação dos actos sexuais que se tornará cada vez mais precisa e o desenvolvimento de uma hermenêutica do 25
sujeito e dos processos de interpretação de si (FOUCAULT, 1984/1994b: 107).
A hermenêutica do sujeito que se desenvolve na era cristã, portanto, é ‘purificadora’, negando o prazer e sua estética. As práticas homoeróticas, ou o amor pelos rapazes, como nomeia Foucault, se antes ocupavam o centro das atenções morais e filosóficas e eram associadas a elevados graus de espiritualidade, passaram a ser condenadas. De um modo que pode surpreender à primeira vista, vemos formar-se, na cultura grega e a propósito do amor pelos rapazes, alguns dos elementos maiores de uma ética sexual que o rejeitará precisamente em nome desse princípio: a exigência de uma simetria e de uma reciprocidade na relação amorosa, a necessidade de um combate difícil e de longo fôlego consigo próprio, a purificação progressiva de um amor que se dirige apenas ao próprio ser na sua verdade, e a interrogação do homem sobre si próprio como sujeito do desejo (Ibid.: 275).
Desvinculado do outro e de uma estética transformadora de si, e relegado a segundo plano na tradição filosófica em prol do ‘conhece-te a ti’ cartesiano, o cuidado de si tornou-se um dos pilares de sustentação e exercício da governamentalidade, entendida como um conjunto de técnicas de dominação. A governamentalidade, para Foucault, inclui tanto o governo dos outros como o governo de si (CASTRO, 2009). ... se considerarmos a questão do poder (...) político, situando-a na questão mais geral da governamentalidade – entendida (...) como um campo estratégico de relações de poder, no sentido mais amplo do termo, e não meramente político, entendida pois como um campo estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel, transformável, reversível –, então, a reflexão sobre a noção de governamentalidade, penso eu, não pode deixar de passar, teórica e praticamente, pelo âmbito de um sujeito que seria definido pela relação de si para consigo. Enquanto a teoria do poder político como instituição refere-se, ordinariamente, a uma concepção jurídica do sujeito de direito, parece-me que análise da governamentalidade – isto é, a análise do poder como conjunto de relações reversíveis – deve referir-se a uma ética do sujeito definido pela relação de si para consigo. Isto significa muito simplesmente que, no tipo de análise que desde algum tempo busco lhes propor, devemos considerar que relações de poder/governamentalidade/governo de si e dos outros/relação de si para consigo compõem uma cadeia, uma trama e que é em torno destas noções que se pode, a meu ver, articular a questão da política e a questão da ética (FOUCAULT, 1981, 1982/2006: 307).
Pensar a relação entre governo dos outros e governo de si, no marco da governamentalidade, permite pensar também em estratégias de resistência (CASTRO, 2009). Trata-se, conforme argumenta Pagni (2011), de atentar não apenas para os processos de objetivação e de assujeitamento, mas também para seu contraponto, a 26
saber, a atitudes de resistência às formas de governo existentes e produção de outros modos de subjetivação. É nesse sentido que Foucault defende que o cuidado de si abre possibilidades de modos de vida, ou possibilidades de subjetivação, alternativas aos estabelecidos. É no exercício do cuidado de si, semelhante ao da antiguidade grecoromana, na qual o sujeito age tendo como princípio a autonomia de uma estilização da existência, que Foucault visualiza a possibilidade de liberdade. O exercício da liberdade, nesse sentido, consiste numa prática política (FOUCAULT, 1984/2004). Gros (2008) ressalta que Foucault não pretende apresentar a ética grega do cuidado de si como um modelo a ser seguido. Seu interesse é mostrar que, compreendido sob tal ética, o sujeito mostra-se transformável, modificável, assim como a normatividade na qual este se insere. Em outros termos, além de fomentar modos alternativos de vida, o cuidado de si constitui o motor da ação política. É neste ponto que reside a importância do outro no cuidado de si, ou como este é também um cuidado do outro, pois sugere uma correspondência harmônica entre os atos e as palavras, entre mundo e o eu (GROS, 2008). Se antes a figura do mestre era fundamental para a austeridade do cuidado de si, na atualidade a amizade seria a mais perfeita forma de expressão de uma estética da existência (FOUCAULT, 1981, 1982/2006; MISKOLCI, 2008). Em relação à sexualidade, Foucault visualizou na homossexualidade a potencialidade de elaboração de modos de vida alternativos. Tal entendimento parece remeter ao período que Foucault viveu em são Francisco, EUA, em fins da década de 1970 e início de 1980, onde o pensador francês conheceu as comunidades gays norteamericanas, que desafiavam os estilos de vida dominantes e as formas convencionais de relacionamento afetivo-sexual e cujo laço social mais importante consistia na amizade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2010; MISKOLCI, 2008). Tais comunidades refletiam, na visão de Foucault, um experimento societário que, por meio da amizade, fomentava processos de transformação que poderiam ir além da esfera sexual. Miskolci (2008) argumenta que, na contemporaneidade, o potencial criativo e transformador que residia nas relações entre homens teria sido reduzido por uma lógica de mercado e pelo avanço da política identitária, cuja ação assimilacionista girou em torno da defesa do casamento gay. Para o autor, tal demanda aponta para uma
27
domesticação da ação transformadora das minorias sexuais, minando o exercício do cuidado de si proposto por Foucault. Não obstante o cuidado de si ser entendido como possibilidade de liberdade, Foucault (1984/2004) defende que tal afirmativa deve ser feita com prudência. Segundo o pensador francês, uma ética do cuidado de si envolve práticas de liberdade, que são diferentes de práticas de liberação. Em relação à sexualidade, as práticas de liberação, sendo um exemplo o reconhecimento do casamento gay, geram novas relações de poder, que precisam ser controladas por práticas de liberdade (Ibid.). Em outras palavras, práticas de liberdade remetem a uma possibilidade de vida que desestabilize normas e reconfigure relações de poder. Todavia, Foucault deixa claro que, em determinadas situações, processos de liberação podem ser necessários para que aconteçam práticas de liberdade. Ademais, o autor acrescenta, “essas práticas [de si] não são, entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo invente. São esquemas que ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu grupo social” (Ibid.: 276). Nesse sentido, o casamento gay não necessariamente representaria um retrocesso nas transformações da ordem das relações afetivo-sexuais, mas sim outro caminho – sem dúvida, mais complexo e permeado de paradoxos – na direção de tais transformações. A conjugalidade gay e lésbica, mesmo que revestida pelo manto normativo do casamento, continuaria representando um lugar de desencontros, de deslocamentos no âmbito da heteronormatividade. Tratar-se-ia, ainda assim, de um lugar de diferença. Em relação aos sujeitos constituintes dessas conjugalidades ditas ‘alternativas’, o cuidado de si revela-se um conceito importante para pensarmos como o sujeito, entendido não apenas como (con)formado por uma heteronormatividade, mas também como aquele que pode responder a ela criativamente, se coloca, ‘cuida de si’ e se subjetiva no âmbito de uma relação a dois marcada pela diferença. Através da problemática do cuidado de si, podemos pensar como determinados sujeitos vivenciam sua afetividade e sexualidade no âmbito da intimidade e da conjugalidade, e como tal vivência, em contexto heteronormativo, afeta sua relação consigo. Conforme argumentei anteriormente, a permanência da matriz heteronormativa pode produzir
28
efeitos de subjetivação que engendram modos particulares de relação afetivo-sexual, como também de cuidados de si. Cabe aqui uma distinção. Tanto a performatividade, na concepção butleriana, quanto o cuidado de si, na concepção foucaultiana, remetem a noções próximas de sujeito, aquele que se constitui e se transforma no e pelo ato. Porém, enquanto o primeiro conceito aponta para atos, gestos e posicionamentos que podem referendar ou subverter as normas de sexualidade e gênero, o conceito de cuidado de si parece ser mais amplo, pois abriga não apenas as ações como também suas (con)formações subjetivas. A ideia de performatividade, embora não exclua a possibilidade de mudanças nos modos de subjetivação, não a deixa clara, ao contrário do cuidado de si. Um conceito, todavia, não exclui o outro: performatividades parecem apontar para exercícios do cuidado de si e vice-versa. De todo modo, é importante que não se perca de vista o caráter autossubversivo das normas de gênero e sexualidade, conforme apontado por Butler (1990/2012). Investigar as possibilidades de homoconjugalidade tendo como atravessador a matriz de inteligibilidade requer considerar que, mais do que referendarem as normas, essas vivências com o outro e consigo mesmo podem ser criativas.
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CAPÍTULO 2 Um ‘pedido’ de casamento
O levantamento bibliográfico realizado nas bases Scielo e PePsic, dos últimos anos, sobre heteronormatividade, conjugalidade e homossexualidade traz um amplo debate sobre o casamento gay e lésbico. Em outras palavras, parte da bibliografia científica a respeito do tema, nas mais variadas áreas do saber, versa sobre o reconhecimento jurídico da homoconjugalidade, enquanto outros estudos a investigam em si: seu cotidiano, práticas e dilemas. Nestes, o casamento, entre outras configurações conjugais tipicamente heterossexuais, aparece como possibilidade para as relações homossexuais. O embate teórico-político a respeito do chamado casamento gay divide os movimentos sociais entre aqueles que defendem que esta instituição submete as relações entre pessoas do mesmo sexo à ordem heteronormativa e outros que argumentam que, além de promover a afirmação da cidadania de gays e lésbicas, o casamento homossexual representa a possibilidade de subversão ou ampliação de uma instituição historicamente heterossexual. Esse embate acaba por evidenciar a necessidade de dar voz aos sujeitos que vivem essas relações. Acredito que é necessário investigar como esses casais vivem suas relações ‘desviantes’ da norma, como lidam com questões não apenas referentes ao casamento, mas a tudo que diga respeito à ordem de gênero e sexualidade vigente. É necessário pensar como esta ordem convoca os casais gays e lésbicos e como eles atuam sob ela. Considero necessário analisarmos a história da homoconjugalidade para melhor visualizarmos o que está em jogo no debate ‘a favor x contra o casamento gay’, ou antes, o que está em jogo no debate sobre a normatização das relações afetivo-sexuais homossexuais.
Todavia,
cabe
antes
voltarmo-nos
para
a
historicidade
das
homossexualidades. Como veremos adiante, os processos de visibilidade e legitimidade das experiências sexuais não heterossexuais têm muito a dizer sobre uma das principais bandeiras dos movimentos LGBT atuais, a saber, o reconhecimento jurídico da homoconjugalidade, conforme explicitado por Mello, Avelar e Maroja (2012), Mello (2005) e Facchini (2005), em suas análises sobre o histórico do movimento LGBT, e dos planos, programas e projetos de lei voltados para esta população, cabendo citar os 30
recentes anais da II Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT (BRASIL, 2011). Parto da postulação de que o casamento ou união civil entre pessoas do mesmo sexo é apenas o efeito-superfície de uma ampla reconfiguração da ordem sociossexual. O percurso histórico que proponho realizar aqui poderá apontar que, por baixo desse efeito-superfície, desenha-se, visibiliza-se e legitima-se determinada possibilidade de relacionamento afetivo-sexual. Fica em aberto, momentaneamente, a questão sobre se o casamento homossexual representa a ruptura de certa ordem ou sua manutenção.
Disputas discursivas em torno das homossexualidades
As teorias que se desenvolveram a partir do século XIX tentando explicar a homossexualidade são variadas e estão dentro de um processo muito amplo, no qual o saber médico foi um dos principais ordenadores sociais, criando ou legitimando lugares não só para as minorias e perversões sexuais, como também para os loucos, marginais, o homem, a mulher, etc. (FOUCAULT, 1975/2002; CASTEL, 1978; DONZELOT, 1986; COSTA, 1989; FOUCAULT, 1976/1994). Ao apropriar-se das discussões a respeito das práticas sexuais não heterossexuais, o saber médico retirou-as da classificação ‘pecado’, como eram encaradas pela Igreja, inserindo-as na categoria ‘doença’ (FRY & MACRAE, 1985). O termo homossexual é usado pela primeira vez em 1869 pelo médico húngaro Karoly Maria Benkert e passa a se referir a pessoas que apresentavam desejo sexual por outras do mesmo sexo biológico. Krafft-Ebing, um dos pioneiros nos estudos sobre homossexualidade, era adepto da teoria da degenerescência, que postulava que o desejo por pessoas do mesmo sexo era algo inato, denotava degeneração nervosa e poderia ser anatomicamente identificável (FRY & MACRAE, 1985; FREUD, 1905/1976) 6.
6
Importante assinalar que não havia consenso, entre os médicos, quanto às possíveis ‘causas’ da homossexualidade. Enquanto alguns entendiam tratar-se de uma doença de origem genética, outros acreditavam que era determinada pelo meio social. Leonídio Ribeiro, conhecido médico higienista brasileiro, propunha que causas biológicas e sociais interagiam na produção da homossexualidade. Essa teoria foi vigente durante boa parte do século XX (FRY & MACRAE, 1985). Outro nome brasileiro importante nos estudos que consideravam a homossexualidade um problema de higiene social é Pires de Almeida, cujo livro publicado em 1906 trazia o seguinte título: Homossexualismo: A libertinagem no Rio de Janeiro. 31
Com a mudança da noção de ‘pecado’ para a de ‘doença’, abre-se a possibilidade de cura. O sujeito homossexual poderia ser curado através de um tratamento médico e pedagógico. Fry e Macrae (1985) apresentam alguns exemplos de ‘tratamentos’ que chegaram a ser sugeridos para homossexuais, como a retirada de regiões do cérebro relacionadas à produção de fantasias e de prazer sexual, lobotomia e castração. Contudo, sob o olhar foucaultiano, a construção e desconstrução de saberes a respeito das sexualidades periféricas7 passam necessariamente por disputas discursivas. Paralelo ao saber médico, movimentos homossexuais atuavam rumo à despatologização e descriminalização das práticas não heterossexuais (FRY & MACRAE, 1985). Fato é que, ao ser criada a categoria homossexual pelo saber médico, estavam também sendo lançadas “as bases sobre as quais iria se desenvolver toda uma nova identidade social e sexual – o ‘homossexual’” (Ibid.: 82). Vemos surgir uma (homos)sexualidade com poder de definir a essência do sujeito, conforme apontado por Foucault (1976/1994: 4647): O homossexual do século XIX tornou-se um personagem: um passado, uma história e uma infância, um carácter, uma forma de vida (...). Nada do que ele é escapa totalmente à sua sexualidade. Em todo ele, ela está presente: subjacente a todos os seus comportamentos, porque é o seu princípio insidioso e definitivamente activo; inscrita sem pudor no seu rosto e no seu corpo, porque é um segredo que sempre se denuncia. Ela é-lhe consubstancial, menos como um pecado de hábito do que como uma natureza singular. (...) A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi abatida à prática da sodomia, passando a uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um relapso, o homossexual é agora uma espécie.
Não por acaso, os primeiros críticos do saber médico adotavam visões essencializantes da homossexualidade,
não questionando o lugar social da
heterossexualidade – Ellis e Carpenter, na Inglaterra, e Hirschfeld e Friedlander, na Alemanha, entre outros –; não obstante, eles foram importantes ao apresentarem argumentos que iam de encontro ao saber hegemônico sobre a sexualidade, além de organizarem os primeiros grupos e encontros que discutiam o tema. O final do século XIX e início do século XX foram marcados por avanços e retrocessos em relação aos 7
O termo sexualidades periféricas é usado aqui para referir-se àquelas que escapam dos referenciais heterossexuais, e cujo entendimento rejeita a lógica normal-doente, própria de uma visão puramente biológica da sexualidade, ao mesmo tempo em que adere a uma lógica central-periférico. Nesse sentido, as heterossexualidades também podem ser pensadas sob tal lógica uma vez que elas também podem ser constrangidas pelo regime heteronormativo. Por esse motivo, friso que, embora eventualmente eu me refira à homo e à heterossexualidade no singular, ao longo do texto, elas devem ser pensadas no plural. 32
direitos homossexuais em diferentes países – e o que podemos depreender disso é que os homossexuais, em geral, estão suscetíveis a serem eleitos como ‘inimigos públicos’ mediante mudanças bruscas de opinião pública e de cenário político (FRY & MACRAE, 1985) 8. Em 1948, o biólogo Alfred Kinsey publicou nos EUA o livro O Comportamento Sexual do Homem, mais conhecido como Relatório Kinsey. Esse foi o primeiro de uma série de trabalhos que são considerados marcos nos estudos sobre sexualidade. A partir da Biologia, Kinsey questionou o sistema de classificação que Foucault, alguns anos mais tarde, desconstruiria pela Filosofia (embora Kinsey ainda reafirmasse a categorização sexual). Ao evidenciar a instabilidade das categorias hetero e homossexual, mostrando inclusive que as experiências não heterossexuais eram mais comuns do que se pensava, Kinsey propôs pensar a sexualidade dentro de um continuum que se estende do comportamento exclusivamente heterossexual ao exclusivamente homossexual. Nessa perspectiva, as homossexualidades – agora no plural – eram apenas manifestações de sexualidade e não desvios da mesma 9. Logo após o trabalho de Kinsey, surgem diferentes grupos militantes homossexuais, entre eles a Sociedade Mattachine, Once Inc., As filhas de Billits, nos EUA, e Arcadie, Forbundet 48 e COC, respectivamente na França, na Dinamarca e na Holanda (Ibid.). A década de 60 foi um período de caráter contestatório. Assim como no Brasil, onde a geração dessa época foi chamada de geração do ‘desbunde’, diversos países foram palcos de intensos protestos e movimentos a favor da liberdade sexual, dos direitos civis das minorias, da difusão das drogas, etc. (HEILBORN, 2004). A partir de 1969, o movimento homossexual, estreitamente ligado a esse processo de mudança de paradigmas, toma uma feição mais radical. Isso se deu por influência do movimento hippie, do desenvolvimento da contracultura e de relações cada vez mais estreitas com os movimentos feminista e negro. O levante de Stonewall, New York, em junho de 1969, parece ter sido o estopim de uma série de protestos contra a ação policial nos guetos gays, chamando a atenção da mídia. A reação dos frequentadores dos guetos às investidas policiais aponta para a crescente politização da experiência homoerótica, pois
8
Para uma apresentação consistente a respeito da perseguição aos gays empreendida nos EUA nas últimas décadas, consultar Rubin (1999). 9 Para uma análise dos Relatórios Kinsey, consultar o artigo de Sena (2010). 33
propiciou o surgimento da Frente de Libertação Gay (FLG), inicialmente nos EUA, que logo se espalhou pela Europa (FRY & MACRAE, 1985). Essas afirmações identitárias, fortemente atreladas à militância, geraram movimentações que tiveram como efeito histórico a retirada da homossexualidade da lista de doenças da Associação Americana de Psiquiatria (APA), em 1993, o mesmo sendo feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1994. Mello (2005) considera que a constituição de uma identidade política homossexual está assentada no discurso médico-psiquiátrico, na passagem do século XIX para o XX, e no discurso ativista-militante, na segunda metade do século XX. Em relação ao primeiro, o autor argumenta que o avanço político é “paradoxalmente incontestável” (Ibid.: 195) uma vez que homossexuais submeteram-se a uma categorização patológica como estratégia política, para fins de descriminalização de sua sexualidade,
conforme
expõem
Fry
e
Macrae
(1985)
no
histórico
das
homossexualidades. Em relação ao segundo discurso, a homossexualidade deixa de ser vista como doença e passa a ser encarada como desejo legitimado. A ampliação do campo semântico da homossexualidade – ou a percepção da pluralidade das experiências homoeróticas –, o advento da AIDS/HIV e a afirmação crescente de uma estereotipia homossexual centrada na virilidade estariam entre os principais fatores, segundo Mello (2005: 198), da afirmação de uma “nova identidade homossexual desmedicalizada”. O histórico das homossexualidades de fato mostra que, concomitante à militância e à maior visibilidade dos homossexuais, construía-se uma identidade gay. No Brasil, o termo entendido, similar ao gay, também denotava a forte presença no meio urbano de uma identidade homossexual. A militância brasileira também teve seus marcos, valendo destacar aqui a criação do jornal Lampião da Esquina, em 1978, e a fundação do primeiro grupo homossexual brasileiro, o SOMOS: Grupo de Afirmação Homossexual, em 1979 (FRY & MACRAE, 1985; MACRAE apud CARRARA & SIMÕES, 2007). A pesquisa de Facchini (2005) sobre a dinâmica interna do que ela chamou de movimento homossexual brasileiro também aponta para a produção de uma identidade gay atrelada a uma politização da experiência homoerótica, produção esta que teria sido fundamental para a formação dos movimentos de gays e lésbicos no Brasil.
34
Ainda em relação à afirmação de uma identidade homossexual no contexto brasileiro, vale apresentar a contribuição histórica de Peter Fry (1982). Partindo de uma pesquisa etnográfica na periferia de Belém, em 1974, em que buscou investigar as relações entre homossexualidade e as religiões afro-brasileiras, Fry desenvolve quatro sistemas classificatórios de representações das homossexualidades masculinas, predominantes – mas não mutuamente excludentes – em diferentes épocas e contextos. O autor aponta que durante muitos anos vigorou no Brasil, em especial no contexto de classes desfavorecidas, um sistema sociossexual hierárquico, caracterizado pela divisão homem x bicha: o homem, masculino e ativo na relação sexual, se relacionava com a bicha, um homem feminino e por sua vez passivo. Esta divisão mantinha, em certo sentido, o binarismo de gênero homem x mulher, um forte traço da cultura brasileira, segundo Fry. Nesse sistema, que o autor chama de sistema A, a relação sexual é marcada por uma hierarquia, que evidencia a importância da dicotomia nos papéis de gênero – masculino e feminino – e de comportamento sexual – ativo e passivo. Por sua vez, o sistema B, próprio das classes médias das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, e que surge por volta dos fins da década de 1960, traz possibilidades de relações sexuais mais igualitárias. Segundo Fry, nesse modelo, a divisão não seria mais homem x bicha e sim homem x entendido: nesse sentido, o mundo masculino é dividido não mais entre homem masculino e homem feminino, mas sim entre heterossexual/homem e entendido/homossexual10. Fry (1982: 94) afirma: Mas o fator de maior importância para minha análise é que, neste novo sistema, a identidade de “entendido”, em contraste com a identidade de “homem” e “bicha” no sistema “A”, não é muito claramente definido e independe dos papéis de gênero. Assim, se postula a possibilidade e a aceitabilidade de relações sexuais-afetivas entre indivíduos semelhantes. Se o sistema “A” exalta a segregação dos papéis de gênero e a hierarquia, a retórica do sistema “B” é a da igualdade e simetria. (...) a identidade de “entendido” não supõe um comprometimento com “atividade” ou “passividade” e possibilita o “troca-troca” da igualdade. Enquanto no sistema “A” o ato sexual dramatiza a diferença e a hierarquia, no sistema “B” ele dramatiza a simetria e a igualdade. (itálico do autor)
É importante pontuar que, antes de acusarmos Fry de ter se limitado a uma análise categorizante ou essencializante das experiências homossexuais, uma leitura mais atenta 10
Um estudo bastante elucidativo desse período é o de Carmen Dora Guimarães, cuja dissertação deu origem ao livro de título O homossexual visto por entendidos (2004). A pesquisa de Guimarães envolveu uma etnografia sobre um grupo de amigos e suas redes de sociabilidade no Rio de Janeiro, na década de 1970, e apontou, entre outras coisas, uma complexa relação entre sexualidade, gênero e classe social. 35
do texto revela que o autor não descarta as contradições ou ambiguidades de tais sistematizações, mesmo não abrindo mão destas. As referidas ambiguidades podem, no meu entender, apontar para a instabilidade destas sistematizações. O autor afirma (Ibid.: 109): Dualista ou não, a classificação das pessoas em personagens sociais é certamente uma maneira de controlar a experiência social e de reduzir a sua ambiguidade. Esta só ocorre no interior do sistema classificatório e nas situações liminares entre uma ordem estrutural e outra. (...) Pergunto se os sistemas de classificação dualistas não seriam o preço que pagamos pela magia da criatividade, e se é possível vislumbrar uma sociedade que repudiasse tais classificações. Acredito que não. Mas é possível ir além da simples afirmação de crença e explorar um pouco mais a relação entre a maneira de definir identidades sexuais e sociais e o contexto social mais amplo.
Apesar de o sistema de sexo/gênero proposto por Fry não dar conta da construção e da percepção da homossexualidade pela sociedade, por conta da fluidez e mutabilidade das práticas sexuais e de gênero, conforme argumentado por Green (2000), um ponto de sua análise precisa ser considerado: a gradativa centralidade que a orientação ou identidade sexual assumiu nas relações afetivas e sexuais entre homens, em detrimento de categorias como gênero e comportamento sexual (ativo ou passivo). Enquanto o terceiro sistema, nomeado como C e baseado no modelo médico do século XIX, ainda considerava relevante a posição sexual na categorização patológica da homossexualidade, o sistema D, próprio do modelo médico moderno, pressupõe uma divisão plena entre heterossexualidade e homossexualidade, tornando irrelevantes, para o referido modelo, o gênero e a posição no ato sexual (FRY, 1982). Nesse sentido, Fry dá pistas de que, em primeiro lugar, aquilo que consideramos orientação sexual nada mais seria do que um efeito normativo de uma histórica categorização de práticas sexuais. Ao longo do tempo, o exercício da sexualidade se estabeleceu sobre o enrijecimento das identidades sexuais, identidades que, acrescento, operam referendadas na matriz heteronormativa. Com o tempo, a heterossexualidade compulsória, ou a pura e simples obrigação de ser e viver como heterossexual, como sugere Miskolci (2009), perdeu gradativamente sua força, dando lugar ao desenvolvimento da heteronormatividade. Em segundo lugar, a pesquisa de Fry aponta que foi justamente o discurso médico recente que precedeu a emergência do modelo igualitário das relações homoeróticas, fato que, além de contrariar em parte a ideia de 36
uma identidade homossexual desmedicalizada, parece apontar, no seu horizonte, para um exercício heteronormativo das (homos)sexualidades. O
histórico
das
homossexualidades
aqui
apresentado
indica
que
a
despatologização não foi acompanhada de uma problematização da sexualidade como um todo. O status dado à(s) heterossexualidade(s) enquanto parâmetro de uma expressão sexual normal não chegou a ser problematizado. A aproximação de sexualidades periféricas ao parâmetro heterossexual parece dar-se mediante a mudança de perspectiva do homossexual ‘potencialmente perigoso’ para o ‘potencialmente saudável’, pela medicina, conforme apresentado por Fry e Macrae (1985). Tal leitura coloca em questão a suposição de Mello (2005) de que a identidade homossexual esteja livre de uma perspectiva patologizante. A tentativa de criar a imagem de um ‘homossexual saudável’ parece corresponder a uma tendência de enquadrar a homossexualidade em padrões heteronormativos. Essa estratégia de controle social, bastante visível na atualidade em diferentes discursos e práticas, em diferentes esferas da vida, traduz não necessariamente a aceitação da homossexualidade, mas certa heterossexualização da mesma em detrimento de outras sexualidades periféricas. Em outros termos, certa expressão sexual torna-se factível mediante a execução de performatividades próximas àquelas que remetem aos estilos de vida tradicionalmente atribuídos aos heterossexuais, especialmente no tocante à coerência entre sexo e gênero – modos aceitáveis de viver um gênero de acordo com o sexo biológico – e às relações amorosas – modos aceitáveis de se relacionar sexual e afetivamente com alguém. Tal processo legitima as homossexualidades enquadradas na heteronorma ao mesmo tempo em que coloca outras no campo da penumbra, do não legítimo ou do não factível. Não estaríamos, portanto, num momento de maior aceitação das homossexualidades e sim de alguns de seus tipos. A ala radical da militância, ao contrário, não visava apenas à adequação da diversidade à heteronormatividade; desprezando a imagem do ‘homossexual saudável’, seu discurso postulava que a luta por direitos gays não deveria pautar-se apenas na inclusão destes à sociedade, mas sim no questionamento da ordenação social do exercício da sexualidade (FRY & MACRAE, 1985). O episódio que envolve a epidemia da AIDS/HIV, iniciada na década de 1980, que emprestou maior visibilidade social às práticas homoeróticas, impulsionou os estudos sobre homossexualidades (CARRARA & SIMÕES, 2007) e mudou 37
definitivamente os rumos da militância gay, pode trazer algumas pistas sobre a suposta e atual heterossexualização das homossexualidades. Conforme argumentam Miskolci (2007) e Pelúcio e Miskolci (2009), o advento da AIDS/HIV nos Estados Unidos, Europa e Brasil ocasionou, entre outras mudanças, uma reconfiguração dos grupos homossexuais em prol dos direitos civis. A luta pelo direito à união civil seria resultado, no fim do século XX, de uma desvalorização dos aspectos ‘marginais’ de vivências gays e lésbicas. O ‘casamento gay’, nesse sentido, revela-se um meio de enfrentamento da epidemia, mesmo que à custa do fortalecimento de um aparelho de controle social. 11 Trevisan (2011) considera que a AIDS/HIV não só permitiu maior visibilidade da experiência homossexual como também fortaleceu o movimento social em defesa dessa minoria. Facchini (2005), baseando-se na edição do ano 2000 do livro de Trevisan, concorda com seu ponto de vista, mas acrescenta que essa maior “visibilidade” significava também a “expansão de um sistema classificatório segregacionista em relação à ‘orientação sexual’” (Ibid., 2005: 168); em outros termos, um acirramento da normatização da experiência homoerótica e, por extensão, da heteroerótica, como já preconizado por Fry (1982). Perlongher (apud Facchini, 2005: 102-103) chega a publicar, em 1993, um ousado artigo sobre o impacto da AIDS/HIV e o “fim da homossexualidade”, esta entendida como experiência dotada de caráter subversivo. Facchini (2005: 118) também contextualiza tal processo normatizador à realidade brasileira pós-ditadura, considerando que ... o processo de “redemocratização” na sociedade brasileira e a consequente desmobilização das propostas mais “antiautoritárias” de militância podem ser relacionados a essa tendência à desvalorização dos aspectos “marginais” da homossexualidade e à necessidade de construção de uma imagem pública da homossexualidade, que deixa de incluir boa parte das vivências a ela relacionadas.
A autora aponta que as demandas da chamada ‘segunda onda’ do movimento homossexual brasileiro, não por acaso, passaram a ser mais pragmáticas e voltadas para a garantia de direitos civis 12.
11
Não por acaso, ao listar dez razões que justificam a “convicção de que a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo representa uma conquista importantíssima”, Mott (2006: 516-518) elenca os itens “Estratégia Anti-AIDS” e “Aumento da Respeitabilidade da Homossexualidade”. 12 Importante assinalar que o casamento gay já era demanda de alguns grupos em meados da década de 1980, ganhando força nos últimos anos. 38
O histórico aqui apresentado traz elementos importantes para pensarmos como se dá a relação entre processos identitários e formulação de demandas no contexto de lutas sociais. Essa relação condiciona os sujeitos e é por eles condicionada. Partindo-se de uma leitura mais ampla e posteriormente centralizando-a no episódio da AIDS/HIV, é possível concluir que a trajetória das vivências homoeróticas segue para o reconhecimento não apenas de certas possibilidades de vivências homossexuais, como também de relações homossexuais. É compreensível que a justificativa colocada em um primeiro momento, no reconhecimento dessas relações, seja a urgente necessidade de sua proteção jurídica, a garantia de seus direitos patrimoniais – tendo em vista que a epidemia da AIDS/HIV deixou milhares de cônjuges viúvos, que não tiveram seus bens protegidos. Não obstante, é possível considerar que a proposta do casamento como meio de proteção do patrimônio está, ela mesma, incluída nesse longo e complexo processo de reconfiguração da ordem heteronormativa. Em tal processo, é desenhada certa possibilidade de homoconjugalidade, que vem se tornando visível na sociedade e também na academia, onde os estudos sobre o tema parecem assentar o que está se configurando dentro de um contexto prévio. Tal contexto parece ser terreno fértil para o desenvolvimento da ideia – e, destaco, do valor – do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Seguindo essa linha de raciocínio, entendo que a presente pesquisa, ao se propor a investigar a relação entre heteronormatividade, homoconjugalidade e suas estratégias de manutenção, envolve necessariamente a consideração do possível e atual efeito de subjetivação da ideia de ‘casamento gay’. Em outros termos, investigar a apropriação das normas de sexo e gênero entre casais do mesmo sexo, em um contexto que ainda os marca como ‘diferentes’, envolve pensar se e como essa apropriação trabalha a ideia de casamento ou união estável, ou se e como a adesão a esse vocabulário, anteriormente próprio de relações heterossexuais, traz também concepções de relacionamento anteriormente consideradas heterossexuais.
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CAPÍTULO 3 Casamento na academia
Após a apresentação e discussão teórica realizada no capítulo anterior, realizo uma exposição da pesquisa bibliográfica realizada. Provavelmente devido ao fato de não haver uma padronização de palavras-chaves nas publicações em ciências humanas e sociais, fato este somado à polissemia e amplo campo semântico em torno de termos como ‘homossexualidade’ e ‘conjugalidade’, encontrei considerável dificuldade de realizar um levantamento bibliográfico que fosse ao mesmo tempo objetivo, criterioso e satisfatório em relação aos resultados de busca. Mediante essas observações, defini um agrupamento de palavras para cada uma das três palavras-chaves do levantamento (‘conjugalidade’, ‘homossexualidade’ e ‘heteronormatividade’). Os elementos listados foram retirados de leituras breves em produções acadêmicas de autores que são referência nos temas referentes às palavraschaves. Por exemplo, a palavra-chave ‘conjugalidade’ abrigava elementos como ‘casamento’, ‘união’, ‘casal’ e ‘família’, entre outros; ‘homossexualidade’ abrigava elementos como ‘homossexual’, ‘gay’ e ‘homoafetividade’, entre outros. O corte temporal estabelecido foi de publicações dos últimos seis anos (20062012), das bases Scielo e PePsic, reconhecidas por sua abrangência de publicações nacionais, sendo a segunda uma referência em publicação de artigos de Psicologia. O corte temporal escolhido justifica-se pela percepção de que o ritmo de publicações de artigos sobre homossexualidades e conjugalidades cresceu a partir de 2006 – ano em que ocorreu a publicação do Dossiê Conjugalidades e Parentalidades de Gays, Lésbicas e Trangêneros no Brasil, na Revista de Estudos Feministas –, mantendo-se relativamente estável até 2011. A amostra, dentro do corte temporal estabelecido, conteve 43 artigos, sendo que apenas 21 deles tratam diretamente do tema homoconjugalidade, todos publicados a partir de 2006 (NINA & SOUZA, 2012; BUNCHAFT, 2012; LOMANDO, WAGNER & GONÇALVES, 2011; LOPES, 2011; PADOVANI, 2011; TARNOVSKI, 2011; MOSMANN, LOMANDO & WAGNER, 2010; TAVARES et al.; 2010; VIEIRA & STENGEL, 2010; ANDRADE & FERRARI, 2009; GOUVEIA & CAMINO, 2009; RODRIGUEZ & PAIVA, 2009; SALOMÉ, ESPÓSITO & MORAES, 2007; 40
MISKOLCI, 2007; FUTINO & MARTINS, 2006; LOREA, 2006; MELLO, 2006, MOTT, 2006; PELÚCIO, 2006; UZIEL et al.; 2006; ZAMBRANO, 2006). Quatro artigos falam sobre os debates psicanalíticos em torno da homoconjugalidade e/ou homoparentalidade (ARÁN, 2011; ARRUDA, 2010; ARÁN, 2009; PERELSON, 2006) e outros quatro não tratam diretamente do tema, mas apresentam dados que podem contribuir para a análise da conjugalidade homossexual (GURGEL & BUCHERMARLUSCHKE, 2010; PAIVA, ARANHA & BASTOS, 2008; GRECO et al., 2007; SCARDUA & SOUZA FILHO, 2006). O restante dos textos, descartado no levantamento final, versa sobre homossexualidade, preconceito/homofobia, educação sexual etc. A seguir, apresento as análises realizadas a partir da bibliografia levantada, dividindo-a de acordo com afinidades entre temas e/ou campos de conhecimento que discutem homoconjugalidade. Apesar da divisão feita aqui, é necessário frisar que os textos não apresentam clara definição de área, havendo muitos diálogos entre os diferentes saberes. Como mostrarei a seguir, a segmentação serviu, em primeiro lugar, a fins didáticos e, em segundo, para mostrar as movimentações que estão ocorrendo no interior de cada discussão no tocante à crescente inteligibilidade das relações conjugais homossexuais. Ao final do capítulo, faço uma análise geral dos textos acadêmicos, em diálogo com alguns acontecimentos recentes no debate nacional sobre casamento homossexual.
Discussões sobre reconhecimento jurídico das uniões homossexuais
Alguns textos, de variados campos de conhecimento, trazem discussões sobre o reconhecimento jurídico das famílias de gays e lésbicas e assumem claro posicionamento político favorável à questão (BUNCHAFT, 2012; NINA & SOUZA, 2012; TAVARES et al., 2010; FUTINO & MARTINS, 2006; LOREA, 2006; MOTT, 2006; MELLO, 2006). Tendo como pano de fundo a discussão sobre adoção por homossexuais, Futino e Martins (2006) tratam do diálogo que tem se realizado entre Psicologia e Direito no tocante à necessidade de reconhecimento das diferentes configurações familiares. Optam pelo uso do termo “homoafetividade” (Ibid.: 150), proposto originalmente por 41
Maria Berenice Dias (2005), conhecida defensora dos direitos dos LGBT no Brasil 13. Tal termo daria foco, segundo as autoras, à afetividade como fundamento da instituição familiar moderna; em segundo lugar, “homoafetividade” daria relevo ao vínculo afetivo de uma relação homossexual. A partir de uma investigação das posições dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito das uniões homoafetivas, Bunchaft (2012) apresenta uma reflexão sobre a apropriação das bases filosóficas das teorias do reconhecimento na proteção de minorias estigmatizadas. A autora é favorável à decisão do STF e, assim como Futino e Martins (2006), não entra no debate sobre a necessidade ou não de regimento jurídico próprio a casais homossexuais, assunto do qual se ocupam Tavares et al. (2010), Lorea (2006) e Mott (2006). Tavares et al. (2010) apresentam uma discussão sobre o reconhecimento das uniões homossexuais mediante a aplicação dos princípios da analogia e da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana. Lorea (2006) adota posicionamento semelhante, porém pontua que, pelo princípio da analogia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não apenas a união estável, já deveria ser considerado um direito, não havendo, portanto, necessidade de lei específica para casais homossexuais, lei esta que poderia sinalizar uma discriminação. Contrariamente ao ponto de vista dos anteriores, Mott (2006) defende a criação de regimento específico para casais gays e lésbicos; todavia, não explica o porquê. Seu texto recorre a dados alarmantes sobre homofobia no Brasil, levantados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), e apresenta o casamento homossexual como estratégia plausível para a redução da violência homofóbica. Para o autor, a legitimidade das relações homoafetivas poderia favorecer mudanças nas representações sociais da homossexualidade. Os textos acima apresentados desenham, cada um a seu modo, uma forma de conjugalidade homossexual muito próxima da conjugalidade heterossexual moderna, a saber, a monogâmica, dual, estável e fundada no amor. E, em nome do reconhecimento 13
Segundo Dias (2005: 1), “o exercício da sexualidade, a prática da conjunção carnal ou a identidade sexual não distinguem os vínculos afetivos. A identidade ou diversidade do sexo do par gera espécies diversas de relacionamento. Assim, melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas do que em relações homossexuais ou heterossexuais.” É importante esclarecer que, quando faço uso do termo ‘homoafetividade’, ao longo do texto, não estou me filiando à proposta de Dias. O uso se faz por dois motivos: primeiro, para ampliar o vocabulário do texto, evitando repetições e tornando-o menos cansativo, e segundo, para sugerir implicitamente uma crítica ao uso crescente desta palavra pela bibliografia especializada. O termo ‘homoafetividade’ é problematizado adiante. 42
jurídico, a dessexualização da relação gay e lésbica parece ser uma estratégia válida. O termo homoafetividade é comum nessa literatura, o que parece indicar uma estratégia de negociação com a lógica jurídica da família, há muito embasada na prevalência do afeto. Tal manobra, mais do que simplesmente linguística, reflete a configuração de determinada relação, fundada e marcada pelo afeto, com vistas ao reconhecimento jurídico. O referido termo eventualmente aparece nos demais textos, porém sem maiores justificativas. Sua escolha parece denotar não apenas sua disseminação, mas também a crescente visibilidade do modelo conjugal que ele pressupõe. A demanda pelo casamento homoafetivo, tão bem embasada nos discursos acadêmico-jurídicos, seria um efeito-superfície de certo modelo conjugal historicamente legitimado que, não obstante, parece aos poucos incluir outras relações possíveis. A conjugalidade gay e lésbica, nesse sentido, tanto constrói esses discursos quanto é construída por eles. O termo homoafetividade não surge do acaso: ele reflete as disputas discursivas que estão sendo travadas no interior do debate sobre a legitimidade jurídica de tal conjugalidade. Os estudos sobre direito homoafetivo, do mesmo modo, não apenas atentam para um desenho familiar que se torna cada vez mais nítido como também criam esse desenho. O debate em torno da defesa do reconhecimento jurídico dos casais gays e lésbicos, portanto, se em tese reflete a inclusão da diversidade nos códigos jurídicos, pode na realidade não levar a um abarcamento da diversidade sexual, como pressupõe Mott (2006), mas a uma apropriação da diversidade sexual pela norma jurídica, assim como uma formatação das relações no interior daquilo que já está definido pelo contrato jurídico do casamento. Em outros termos, amplia-se a noção jurídica de família, incluindo-se as relações homossexuais, ao mesmo tempo em que as submete a uma possibilidade de contrato. Tais reflexões são também desenvolvidas por Nina e Souza (2012) e Mello (2006), que realizam discussões sobre casamento gay e lésbico pertinentes ao Direito, convocando autores de diferentes campos do saber. O texto de Nina e Souza (2012) traz uma argumentação favorável ao reconhecimento, pelo STF, das relações homoafetivas como instituição familiar. Os autores colocam a seguinte questão: “a normatização da União Estável (...) entre ‘casais homoafetivos’ seria um elemento limitador ou libertador para o sujeito que vivencia 43
sexualidades transgressoras?” (Ibid.: 61). A partir dessa pergunta, apresentam pontos de vista favoráveis e desfavoráveis à inclusão das relações homoafetivas no direito de família, tendo como marco a decisão do STF de 05 de maio de 2011. Eles reconhecem o risco daquilo que Rios (2011: 108) chama de “assimilacionismo familista” ao se perguntarem porque o reconhecimento de direitos avança mais no direito de família, enquanto há outras demandas que tratam mais abertamente de questões pertinentes à sexualidade. Se num primeiro momento este avanço ocorre, evidentemente, porque esta é uma reivindicação dos movimentos LGBT, num segundo momento, é possível concluir que a defesa pela união estável homoafetiva aponta para uma ampliação do dispositivo de sexualidade, proposto por Foucault (1976/1994a). No livro Homossexualidade e direitos sexuais (2011), em uma leitura sobre a decisão do STF a favor da união estável entre casais homossexuais, de 05 de maio de 2011, Rios aponta para a importância da atualização do direito de família, que tem reconhecido as novas formas de convívio familiar, para além da família tradicional. Tal atualização aponta, em seu horizonte, para a garantia dos direitos sexuais no âmbito dos direitos humanos. Todavia, mediante a constatação de que historicamente a luta pelos direitos sexuais tem avançado em estreita relação com o direito de família – fenômeno que Rios (2011: 110) chama de “familismo jurídico” –, o autor denuncia o risco de redução da compreensão do conteúdo jurídico dos direitos sexuais à ideia de convivência familiar. Segundo Rios (2011: 107), “a amplitude dos direitos sexuais vai muito além das questões abordadas pelo direito de família”. A moldura limitadora do direito de família levaria à tendência de um assimilacionismo familista, conceito elaborado pelo autor e que sugere a tendência de reconhecimento dos sujeitos e seus direitos sexuais mediante sua subordinação a padrões institucionalizados de experimentação do afeto e da sexualidade. No campo da diversidade sexual, o assimilacionismo se manifesta por meio da legitimação da homossexualidade mediante a reprodução, afora o requisito da oposição de sexos, de modelos aprovados pela heteronormatividade. Vale dizer, a homossexualidade é aceita desde que nada acrescente ou questione os padrões heterossexuais hegemônicos, desde que anule qualquer pretensão de originalidade, transformação ou subversão do padrão heteronormativo. Nessa dinâmica, a estes arquétipos são associados atributos positivos, cuja reprodução se espera por parte de homossexuais, condição sine qua non para sua aceitação (RIOS, 2011: 108).
44
A crítica do autor ao termo homoafetividade dá-se pela inserção deste na lógica assimilacionista. O afeto como fator distintivo dos relacionamentos cumpriria uma “função
anestésica
e
acomodadora
da
diversidade
sexual
às
normas
da
heterossexualidade compulsória, na medida em que propõe a ‘aceitação’ da homossexualidade sem qualquer questionamento mais intenso dos padrões sexuais hegemônicos” (Ibid.: 109). A afetividade, desse modo, cumpriria um papel de anulação da dissonância que a homossexualidade gera no interior da matriz heteronormativa. Neste sentido, sem deixar de reconhecer as intenções antidiscriminatórias presentes na cunhagem do termo, não é por acaso que se disseminou o uso do termo “homoafetividade”. Trata-se de expressão familista que muito dificilmente pode ser apartada de conteúdos conservadores e discriminatórios, por nutrir-se da lógica assimilacionista, sem o que a “purificação” da sexualidade reprovada pela heterossexualidade compulsória compromete-se gravemente, tudo com sérios prejuízos aos direitos sexuais e à valorização mais consistente da diversidade sexual (Ibid.: 109).
Mais do que heterossexualidade compulsória, as colocações de Rios apontam para o exercício da heteronormatividade que, se não constrange os sujeitos a serem e viverem como heterossexuais, pelo menos impõe estilos de vida marcadamente heterossexistas. Todavia, o que o autor não parece considerar é que, mesmo pela via da lógica assimilacionista, a inclusão da conjugalidade homossexual na instituição casamento não se resume em sujeição à ordem heteronormativa. Se considerarmos que, a partir da ética do cuidado de si, o efeito-sujeito pode gerar deslocamentos nas relações de poder que estabelecem modos hegemônicos no exercício da sexualidade, entenderemos que a díade casamento-homossexualidade consiste em uma relação recíproca de possíveis transformações. Argumento semelhante é desenvolvido por Nina e Souza (2012), que, à luz da ética de Kant e da teoria do discurso de Chantal Mouffe e Ernest Laclau, pontuam que a homossexualidade não perderia seu potencial subversivo ao ser legitimada dentro da instituição familiar; ao contrário, ela permitiria a transformação de um sistema a partir dele próprio. De fato, ao conformar a homossexualidade ao modelo de família tradicional, corre-se o risco do “assimilacionismo”, mas risco altamente altruísta, na medida em que é acompanhado da quebra da hegemonia heterossexista, do prolongamento de direitos e de uma visão holística mais próxima a moral kantiana (NINA & SOUZA, 2012: 71).
45
A reflexão empreendida por Nina e Souza propõe um avanço na discussão sobre o casamento homossexual por mostrar-se mais sensível à tensão entre liberdade, sexualidade e legalidade. Ávila (2005), autora citada por Nina e Souza, discute a importância do exercício da liberdade na definição do que é legal e ilegal. Em outros termos, um sujeito livre é aquele que pode participar da construção e reconstrução permanente do que é permitido ou não dentro de uma sociedade. Todavia, a legalidade não pode ser confundida com a ‘naturalidade’; ou seja, é preciso pensá-la como uma possibilidade cambiante, como algo transformador, revolucionário, uma legalidade que sirva como instrumento de mudança e não de acomodação. A invenção, segundo a autora, é outro campo de exercício da liberdade. No interior de um sistema de legalidade, é preciso que o sujeito se proponha a inventar alternativas. O artigo de Mello (2006) retoma algumas análises de sua tese. Ele argumenta que a família sofreu significativas mudanças nas últimas décadas, entre elas a crescente autonomia e individuação das mulheres e a separação entre sexualidade, conjugalidade e procriação. Tais transformações, conforme aponta o autor, parecem tornar potente a diversidade dos modelos familiares14. A partir dessa constatação, Mello denuncia a omissão do poder Legislativo frente a essa diversidade, mesmo com sua atual visibilidade social, fato que denota opressão sexual e injustiça erótica. Considerando a imensa dificuldade na aprovação do Projeto de Lei 1151/1995, de autoria da ex-deputada Marta Suplicy e que disciplina a parceria civil entre casais do mesmo sexo, Mello argumenta, a partir do conceito de cidadania regulada, de Wanderley Guilherme dos Santos, que a cidadania de gays e lésbicas seria regulada pelo contrato de casamento. Se antes da Constituição de 1988 a garantia de cidadania dependia da inserção no mercado formal de trabalho, hoje, para casais homoafetivos, a extensão de sua cidadania estaria condicionada ao “alargamento do leque de indivíduos socialmente autorizados a constituir o casal” (MELLO, 2006: 505). O autor pergunta: “Em vez da carteira de trabalho, a certidão de casamento ou o contrato de parceria civil seriam os novos documentos legais comprobatórios de nascimento cívico de gays e lésbicas no Brasil?” (Ibid.: 506).
14
Grossi (2003) aponta que o reconhecimento dessa diversidade dos modelos familiares levou em parte à inclusão dos estudos sobre famílias homoafetivas na bibliografia geral sobre família e parentesco. 46
Mello remete à discussão que Foucault realiza sobre o desejo e a estética da existência. Conforme argumenta Albuquerque Júnior (2010), ao visualizar no homoerotismo – e na sua repressão – a possibilidade de romper com padrões de vida heterossexistas, Foucault entendia que a contribuição da militância homossexual não deveria se esgotar na conquista de direitos uma vez que eles não transformariam uma cultura heterocêntrica. O projeto político mais contundente seria a criação de novas formas de existência para além de um esquema jurídico que fornece esquemas pobres e limitados de existência. Em relação ao casamento gay, Mello (2006: 505) afirma: Reconhecer o casamento como a única forma de legitimar vínculos afetivos e/ou sexuais implicaria uma intolerância conservadora, que nega a legitimidade de outras modalidades de relação não-matrimonializadas. Nesse sentido, o forte engajamento de gays e lésbicas em torno da luta pelo reconhecimento de amparo legal para relações afetivo-sexuais entre homossexuais aponta na direção da domesticação da insubordinação erótica tradicionalmente associada à homossexualidade. Recorrer ao Estado como alternativa de reconhecimento da legitimidade de vínculos homossexuais implicaria a redução do léxico de legitimação social da diversidade erótica (MISKOLCI, 2005), por meio da predefinição de quais indivíduos e grupos poderiam ser incorporados a um sentido de normalidade alargada.
Sem desconsiderar o peso do que ele chama de injustiça erótica, Mello aponta para a limitação que uma instituição historicamente heterossexual, o casamento, impõe à diversidade. A centralidade que o casamento assume, quase se tornando sinônimo de família, indicaria um fortalecimento da domesticação e consequente controle da sexualidade. A luta pela união civil gay e lésbica seria, portanto, paradoxal: se por um lado busca-se transformar uma instituição heterocêntrica, por outro essa mesma instituição limita a possibilidade de invenção de novas formas de vida e, mais especificamente, de conjugalidade. A confusão que se estabelece entre família ou parentesco e casamento também é denunciada por Butler (2003). Analisando a discussão em torno da legalização do casamento homossexual na França, no final da década de 1990, Butler aponta que casamento e parentesco, não obstante serem dois termos diferentes, são tratados como sinônimos. A autora argumenta que colocar-se tanto a favor quanto contra o casamento entre iguais é desconsiderar, independentemente da posição assumida, a potencialidade das relações de parentesco, que podem ir além da díade heterossexual. Desse modo, a instituição casamento, além de produzir zonas de ilegitimidade das experiências afetivas e sexuais, teria sua finalidade jurídica colocada em xeque (Ibid.: 231): 47
Por que o casamento ou os contratos legais se tornariam a base segundo a qual os benefícios de atenção à saúde seriam concedidos? Por que não existiram maneiras de se organizar os direitos de atenção à saúde de modo que todos, independente do estado civil, tenham acesso a eles? Se defendermos que o casamento é uma maneira de assegurar esses direitos, não estaríamos afirmando também que um direito tão importante quanto a atenção à saúde deve continuar sendo alocado com base no estado civil?
De fato, o reconhecimento do casamento homoafetivo é centro de acirrados debates tanto na academia quanto na militância. O texto de Miskolci (2007) parte da compreensão de que tanto os posicionamentos conservadores contrários à união civil gay e lésbica quanto aqueles a favor tendem a moldar-se mutuamente. Essa aparente convergência de opiniões antagônicas têm como nó a ideia de pânico moral, definida pelo autor como um consenso partilhado por um número considerável de membros de uma sociedade de que uma determinada categoria de indivíduos representa uma ameaça à ordem moral. Os pânicos morais costumam ser utilizados pela mídia e agentes de controle social como estratégia para desviar a atenção das reais causas de problemas sociais para indivíduos que rompam com padrões de comportamento e, a um só tempo, justificar o controle social e legal para suprimir essas subversões, tentando cessar o pânico. Conforme muito bem apontado por Rubin em seu clássico artigo Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality (1999), os homossexuais foram considerados, nos últimos anos, ameaça à ordem social uma vez que o homoerotismo parecia escapar de instituições historicamente estabelecidas para uma vivência legítima da sexualidade. Miskolci (2007) parte do histórico das homossexualidades, em especial o episódio da epidemia da AIDS/HIV, para desvelar o caráter higiênico do ‘casamento gay’. Segundo o autor, a aprovação do casamento homossexual serviria não apenas a fins de enquadramento heteronormativo, mas também de contenção de medos coletivos, entre
estes
a
promiscuidade
e
a
pedofilia,
historicamente
associados
às
homossexualidades. Tratar-se-ia, portanto, de um meio de tornar a experiência homoerótica aceitável e menos ameaçadora à ordem moral. O autor, todavia, reconhece que a conquista por direitos civis é justa e necessária, o que sugere o desafio de defender o reconhecimento legal das uniões homoafetivas e fazer em paralelo a desconstrução da heteronormatividade. Não obstante referir-se à normalização das experiências afetivo-sexuais tanto de gays quanto de lésbicas, a reflexão empreendida por Miskolci, ao levantar a epidemia da 48
AIDS/HIV como ponto relevante em tal normalização, parece centrada apenas na historicidade da homossexualidade masculina. Talvez a epidemia da AIDS/HIV, cujo início parece ter-se dado entre homens, não seja útil como analisador da construção da conjugalidade lésbica, há muito consolidada, conforme apontam Grossi (2003) e Heilborn (2004).
Discussões psicanalíticas
Em relação aos textos que discutem homoparentalidade e/ou homoconjugalidade à luz da Psicanálise, há um fértil debate em torno da necessidade de repensar a constituição do corpus psicanalítico, em especial conceitos basilares como diferença sexual e complexo de Édipo, com o intuito de considerar, em primeiro lugar, as mudanças contemporâneas na ordem simbólica e, em segundo, a legitimidade da união homossexual (ARÁN, 2011; ARRUDA, 2010; ARÁN, 2009; ANDRADE & FERRARI, 2009; PERELSON, 2006). Perelson (2006) apresenta um cenário do debate psicanalítico francês a respeito da homoparentalidade, partindo de contribuições de diferentes teóricos: Joël Dor, Pierre Legendre, Michel Tort, Genevière Delaisi de Parseval, Sabine Prokhoris, Elisabeth Roudinesco, Joel Birman, Márcia Arán e Paulo Roberto Ceccarelli, entre outros. Uma vez que as novas práticas médicas, como a reprodução assistida, geram novas práticas sociais, como possibilidades inusitadas de relação familiar, a velha ordem simbólica das genealogias vê-se ameaçada. Representações cristalizadas de masculinidade e feminilidade, assim como de paternidade e maternidade, tornam-se instáveis, o que colocaria em risco, segundo alguns psicanalistas franceses, a sobrevivência da instituição familiar. A família homoafetiva, enquanto modalidade familiar moderna, que negaria a diferença sexual – basilar na saída do complexo de Édipo e na fundação da família – não poderia ser reconhecida enquanto tal uma vez que apontaria para o risco de desmantelamento das sociedades. Ao longo do artigo, Perelson convoca os diferentes autores para desconstruir tal visão escatológica, advogando a necessidade de pensar a contribuição que a Psicanálise pode trazer à compreensão do novo ordenamento das funções maternas e paternas, reconsiderando por completo as suas certezas.
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É da reflexão empreendida sobre a homoparentalidade e a necessidade da diferença sexual que Perelson (2006), dialogando com a psicanalista Genevière Delaisi de Parseval, chega à discussão da homoconjugalidade. Segue uma citação da autora que, apesar de longa, é bastante esclarecedora (Ibid.: 724): É, portanto, o reconhecimento pelo grupo do casal enquanto casal o princípio fundamental de inteligibilidade da filiação, qualquer que seja o sexo ou a idade dos pais, ou mesmo o fato de que eles estejam vivos ou mortos no momento da concepção. Esse reconhecimento estando ausente no caso dos casais homossexuais, a questão que Delaisi de Parseval irá se colocar e nos colocar é a seguinte: qual o papel do psicanalista ou que espécie de ajuda ele pode oferecer a esses casais quando eles nos procuram? O papel do psicanalista nesse caso é, a meu ver, ajudar o casal “a construir laços em um registro simbólico, pelo estabelecimento de códigos sociais, de formas rituais compreensíveis por todos” (DELAISE DE PARSEVAL, 1999: 230). É apenas a partir da construção desses laços, pelo estabelecimento de códigos sociais claros e pela simbolização de pontos de referência, que a instituição de uma diferença entre os dois pais do mesmo sexo torna-se possível. Assim, o risco de indiferenciação entre os dois pais, que a autora chama de problema ‘incestual’, “não resulta da situação homoparental enquanto tal, mas da recusa social em reconhecê-la ou seja, de instituir papéis sociais distintos entre os dois pais do mesmo sexo” (DELAISE DE PARSEVAL, 1999: 231). É, portanto, apostando, em primeiro lugar, na possibilidade de a psicanálise, a partir do novo que acolhe em sua clínica, reformular a sua teorização sobre o Édipo e a diferença sexual, e na capacidade de os sujeitos singulares e de a sociedade em geral construir novos modelos de diferença sexual que a psicanalista assume a sua posição diante da questão da homoparentalidade...
Arán (2009), por sua vez, parte de um diálogo entre Foucault e a Psicanálise. Partilhando uma concepção histórica e contingente da sexualidade e da nova cartografia das relações de gênero e das sexualidades, a autora discute como a Psicanálise se apresenta como mais um dispositivo que objetiva a primazia da heterossexualidade e a dominação masculina. Argumenta, então, de modo similar a Perelson (2006), que “repensar o sexual na psicanálise não é apenas uma necessidade ética e política, mas também uma tarefa teórica da maior importância.” (ARÁN, 2009: 654). Com esse intuito, Arán se volta para alguns temas em debate no cenário psicanalítico contemporâneo, sendo um exemplo o casamento homossexual e a homoparentalidade. Ao contrário de Perelson, ela questiona a centralidade da diferença sexual na fundação da família, apontando que tal conceito “restringe a noção de diferença a uma matriz binária compulsória, que se caracteriza pelas oposições feminino/masculino, sexo/gênero, natureza/cultura, heterossexualidade/ homossexualidade” (Ibid.: 669). A leitura de Perelson (2006), nesse sentido, mesmo desestabilizando conceitos e noções 50
psicanalíticas ao confrontá-las com a diversidade sexual e de gênero, parece deixar intocadas as dicotomias denunciadas por Arán (2009). Disso posso depreender que, mesmo questionadas e instabilizadas, estas dicotomias, tão caras a algumas filiações psicanalíticas, parecem ainda exercer importante papel ordenador das relações afetivas e sexuais. Tal denúncia também é realizada por Butler (1990/2012) em sua leitura da Psicanálise freudiana, apontando-a como um saber ordenador da matriz de gênero. Em artigo posterior, Arán (2011) apresenta novamente suas críticas às correntes psicanalíticas ortodoxas, desta vez centrando-se no casamento e parentalidade homossexuais e aproximando-se das postulações de Butler quanto ao caráter instável das normas de gênero. Arán realiza uma crítica ao uso supostamente equivocado de conceitos como simbólico e diferença sexual, por parte de alguns psicanalistas, denunciando o uso da Psicanálise para fins de manutenção da heteronormatividade, para em seguida apontar que a diversidade não representa uma ameaça a uma ordem estabelecida e sim a possibilidade de transformação desta ordem. A partir de releituras dos escritos de Freud e Lacan, a autora afirma (Ibid.: 69): Com efeito, se compreendermos a lei como uma estrutura anterior e transcendente às manifestações sociais, políticas e necessariamente históricas, “a ordem simbólica” representada pelo dispositivo “diferença sexual” será apresentad[a] como uma força que não poderá ser modificada e subvertida sem a ameaça da psicose ou da perversão. Ao contrário, se compreendermos a lei como algo que é vivido e constantemente reiterado de forma imanente às relações de poder, as possibilidades de modificação e subversão inclusive do simbólico, não necessariamente significarão uma ameaça à cultura e à civilização.
Propondo um diálogo entre Freud, Lacan e Lipovetsky, entre outros pensadores, Andrade e Ferrari (2009) discutem como a hipermodernidade, onde a autoridade do Pai entra em declínio, abriu campo para o reconhecimento das diversidades, favorecendo o reconhecimento da homoconjugalidade e da homoparentalidade. Embora os autores apontem para o imperativo do gozo que coloca a família como um objeto desejado e consumido, a busca por reconhecimento, por parte dos pares homossexuais, indicaria uma pretensão de “reciclar e integrar o passado, flexibilizando e adaptando instituições anteriormente rígidas, como é o caso do casamento e da família, às suas realidades” (Ibid.: 1154). Na esteira das outras leituras psicanalíticas, Andrade e Ferrari compreendem a homoconjugalidade, a homoparentalidade e as tecnologias de reprodução não como ameaças à ordem simbólica, mas como realidades que 51
reconstroem tal ordem. O reconhecimento das famílias homossexuais representa a possibilidade de transformação de instituições até então rígidas. Nesse sentido, não se trataria de uma ‘apropriação’ da homossexualidade por parte do casamento, mas o contrário. O texto de Arruda (2010) segue uma linha de raciocínio próxima. O autor faz uma reflexão sobre como as transformações das instituições sociais na contemporaneidade levaram a uma diversificação e ambivalência na formação das identidades culturais. Na atualidade, os indivíduos teriam não apenas maior poder de decisão sobre suas vidas como também teriam a seu dispor um leque maior de referências de vida. A conjugalidade gay e lésbica aparece como um exemplo desse leque de referências. A fissura da estrutura familiar patriarcal possibilitou, segundo o autor, a emergência de relações familiares outras. Arruda (2010: 516) diz, ao comparar e questionar o que o senso comum aponta como crise na política e na família: Contrário ao que é corrente no senso comum, as pessoas estão politicamente ativas. Na verdade, participam de uma política institucional, cada vez mais esvaziada, e de uma política não institucional; a primeira, não aceita a ambiguidade, a segunda, comporta a ambivalência. O que está ocorrendo no campo da política é similar ao que se assiste na família nuclear: novas formas de união convivem com a família tradicional e, sobremodo, assim como a falência do casamento e da família nuclear não significa o fim do amor romântico, o esvaziamento dos sindicatos e dos partidos não implicam no fim da política.
O ponto de vista de Arruda se aproxima do de Andrade e Ferrari (2009) quando estas visualizam nas reivindicações de casais gays e lésbicos a possibilidade simultânea de resgate e inovação da tradição e não apenas um processo de heteronormalização. Tais reflexões levam-me a relativizar o que à primeira vista parece um acirramento da heteronormatividade em favor de uma posição teórica que valorize o caráter autossubversivo das normas de sexo e gênero. À primeira vista, parece-me que o ‘casamento gay’, contrariamente ao que sugerem alguns autores, representa uma forma de tornar mais elásticas as normas sociais que falam da relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo. Na bibliografia levantada, alguns textos que versam sobre a homoconjugalidade também versam sobre a homoparentalidade (ARÁN, 2011; ARÁN, 2009; VIOLANTE, 2007; PERELSON, 2006), havendo um dissenso mais explícito quanto à legitimidade desta última. Ao contrário dos autores anteriormente apresentados, Violante (2007) 52
mantém o pressuposto biológico e binário dos papéis masculinos/paternos e femininos/maternos, defendendo a permanência do modelo tradicional de conjugalidade e filiação e apontando para o risco de rompimento da ordem simbólica, seja nas tecnologias de reprodução assistida ou nas possibilidades de arranjo familiar consequentes destas. Conforme o texto de Violante (2007) deixa implícito, a recusa dessa parentalidade parece remeter à recusa em considerar a conjugalidade homoafetiva como possível e legítima. Em relação ao uso das tecnologias de reprodução assistida, Vargas e Moás (2010) e Moás e Correa (2010) argumentam que, mesmo com as recentes transformações no âmbito da diversidade familiar, o desejo de ter filhos pelos pares de mesmo sexo é submetido a avaliações ainda muito tradicionais pelo Direito e pelos saberes médico-psicológicos, que reproduzem a ordem procriativa em termos heterossexuais. Vargas e Moás (2010: 759) afirmam: “Há, atualmente, no âmbito dos saberes médico e jurídico, uma regulação do desejo de filhos na qual coexistem transformações e permanências de valores e práticas relativas à relação conjugal e familiar.” O outro texto afirma: “Se bastante frágil e sem amparo na atual doutrina jurídica, o mecanismo social de naturalização é bastante reforçado pelos avanços tecnológicos na área biomédica, rebatendo-se no discurso médico-psicológico” (MOÁS & CORREA, 2010: 593). Nesse sentido, a legitimidade ou não da homoparentalidade versa implícita ou explicitamente sobre a legitimidade ou não da homoconjugalidade, ou antes, de certo desenho homoconjugal. A primeira, todavia, parece ser encarada como mais subversiva do que a segunda, pois ameaça mais frontalmente uma ordem simbólica que é também uma ordem procriativa. As releituras psicanalíticas aqui apresentadas trazem discussões que são herdeiras do intenso debate entre psicanalistas franceses sobre homoparentalidade
e
homoconjugalidade, nos últimos anos. Em 1999, foi aprovado na França o PaCS (em francês, Pacte Civil de Solidarité), que instituía um pacto de solidariedade entre duas pessoas, independentemente do sexo, o que terminava por garantir o reconhecimento da conjugalidade homossexual. Diversos setores da sociedade se agruparam em posições contra e a favor e a Psicanálise tornou-se um saber referência nos debates, sendo utilizada tanto por uma quanto por outra posição. Diversos psicanalistas ganharam destaque e o embate que vale ser lembrado é o de Joël Dor e Elisabeth Roudinesco, no 53
qual o primeiro apontava para o desmantelamento da sociedade com a aprovação do casamento homossexual e a segunda argumentava quanto à possibilidade de manutenção da ordem simbólica. No Brasil, o Projeto de Lei 5252/2001, do exdeputado federal Roberto Jefferson, instituía um pacto de solidariedade de modo semelhante à citada lei francesa. O projeto encontra-se arquivado15. Por fim, esses estudos não apenas desafiam a epistemologia da Psicanálise como também sugerem um posicionamento mais cauteloso frente à polêmica da normalização pela instituição do ‘casamento gay’. Se por um lado tal instituição aponta para o avanço do regime heteronormativo, por outro, ela também pode apontar para transformações na ordem simbólica.
Discussões psicológicas e antropológicas
Em relação aos estudos que se aproximam da Psicologia (LOMANDO, WAGNER & GONÇALVES, 2011; MOSMANN, LOMANDO & WAGNER, 2010; VIEIRA & STENGEL, 2010; SALOMÉ, ESPÓSITO & MORAES, 2007; GOUVEIA & CAMINO, 2009; RODRIGUEZ & PAIVA, 2009; UZIEL et al., 2006; ZAMBRANO, 2006) e da Antropologia (TARNOVSKI, 2011; LOPES, 2011; PADOVANI, 2011; PELÚCIO, 2006), estes em geral versam sobre a vivência da homoconjugalidade e/ou homoparentalidade, algumas vezes relacionando-a à prática da militância e sob variadas linhas teóricas, entre elas a Teoria das Representações Sociais, Terapia Familiar Sistêmica e Teoria Queer. Vieira e Stengel (2010: 147-148) investigaram a relação entre individualismo e conjugalidade no contexto pós-moderno, tentando pensar, nas palavras dos autores, “de que maneira características macrossociais influenciam a construção dos espaços da intimidade, mais especificamente, da conjugalidade”. A partir de um diálogo entre diferentes autores que discutem individualismo e pós-modernidade, como Dumont, Bauman e Giddens, entre outros, Vieira e Stengel realizam entrevistas com três casais,
15
A tese de Uziel (2002) apresenta com detalhes os trâmites e as discussões em torno da aprovação do PaCS na França. Um dos pontos levantados pela autora mostra como as posições contrárias ao projeto terminavam por reafirmar o status de família dos arranjos homossexuais, enquanto as posições favoráveis negavam tal status como tática para garantir a aprovação do projeto. Essa aparente inversão do debate também foi notada por Mello (2005), no Brasil, durante as discussões sobre o Projeto 1151/1995 no Congresso Nacional. 54
sendo dois heterossexuais e um homossexual masculino, e apontam que “numa sociedade em rápida transformação como a nossa, encontram-se presentes, simultaneamente, formas tradicionais, modernas e pós-modernas de práticas e expectativas de relacionamento amoroso” (Ibid.: 151). Nos três relacionamentos, há embates constantes entre a individualidade e a conjugalidade e tentativas de conciliação entre elas. Discussão semelhante é encontrada na pesquisa de Heilborn (2004), referência nos estudos nacionais sobre conjugalidade e que investigou, a partir de referenciais teóricos próximos aos de Vieira e Stengel, a vivência da conjugalidade em um casal heterossexual, um lésbico e outro gay, todos de camada média urbana. Heilborn constatou que, mesmo apresentando suas particularidades, as três configurações eram marcadas, em maior ou menor grau, pelo embate entre um modelo conjugal hierárquico ou tradicional e outro igualitário, fruto das transformações da contemporaneidade. Tal embate não impossibilitava a vivência das relações, mas estas se mantinham mediante constantes diálogos e negociações que eventualmente requeriam a sujeição de um ou outro parceiro, ocorrência também apontada na pesquisa de Vieira e Stengel (2010). A pesquisa de Salomé, Espósito e Moraes (2007) teve como objetivo, a partir de um referencial fenomenológico, “compreender a estrutura e dinâmica da família de casais, constituída por pessoas do mesmo sexo a partir de como ela é vivenciada” (Ibid.: 561). Além disso, buscou refletir sobre a importância da sensibilização no tema na prática profissional da enfermagem. Os autores entrevistaram dois casais, um lésbico e outro gay, em união estável há 12 meses, e argumentaram que, ao constituírem uma família diferente da tradicional, os sujeitos entrevistados acabam criando uma nova condição familiar. Todavia, os dados apresentados, no tocante ao significado de família, sugerem visões muito próximas das representações sociais dominantes. A família aparece como possibilidade de construção de uma vida conjunta, envolvendo reciprocidade de afeto, parceria, cuidado e zelo. As particularidades e dificuldades próprias das relações conjugais gay e lésbica, apontadas em outros estudos (MOSMANN, LOMANDO & WAGNER, 2010; RODRIGUES & PAIVA, 2009; UZIEL et al., 2006; HEILBORN, 2004; GROSSI, 2003), não aparecem nos discursos. É possível que, na situação de entrevista, cada sujeito tenha procurado desenvolver seu discurso sob a égide da ideia moderna de família, marcada por referenciais românticos e 55
igualitários, em detrimento de discussões sobre os desafios de uma vida a dois marcada por diferenças. O artigo de Uziel et al. (2006) teve como objetivo apresentar e analisar, por meio de entrevistas com líderes de diversos grupos de militância LGBT no Rio de Janeiro, a aparição das demandas de casamento civil e adoção. Por meio dessas demandas, os autores procuram delinear as concepções de homoconjugalidade e homoparentalidade partilhadas entre os sujeitos. O texto inicia indagando quais seriam as circunstâncias que teriam levado à formação de uma pauta militante, à época de sua pesquisa, cujo item aglutinador dos movimentos gays e lésbicos cariocas é o reconhecimento jurídico da homoconjugalidade. Os autores apontam que, apesar da ausência de consenso entre os ativistas quanto à prioridade desta demanda na agenda militante, ela se coloca em detrimento da adoção, o que remeteria a uma “lógica da miséria” (Ibid.: 223), segundo a qual a militância, numa clara estratégia política, estaria atuando no sentido de alcançar o mais provável, o básico, para depois pensar em demandas mais difíceis de serem atendidas, como o direito à adoção. Eu acrescentaria que esta lógica da miséria parece remeter às transformações gerais da conjugalidade, como a separação entre sexualidade e reprodução, a prevalência do afeto, etc. Tais transformações não se dão sem conflitos, que se tornam explícitos nos casais homossexuais que se submetem à referida lógica. Todavia, como os próprios autores apontam, os entrevistados parecem divididos quanto à legitimidade da demanda pelo casamento e mais ainda quanto à adoção. Ao mesmo tempo em que se negam a usar o termo ‘casamento’, por denotar uma sujeição à norma heterossexual, reconhecem que sua luta busca instituir, senão o ‘casamento gay’, algo próximo disso. Enquanto alguns já vivenciam a parentalidade, mesmo não a tornando bandeira de luta, as lideranças entrevistadas reproduzem em seus discursos concepções tradicionais de gênero, paternidade e maternidade. Esses posicionamentos sobre casamento e adoção homossexuais, se a princípio parecem contraditórios, refletem a possível tentativa de diálogo dos relacionamentos homossexuais com a concepção hegemônica e heteronormativa de família. Esse diálogo entre a família homossexual e a tradicional é atravessado por questões morais que ora são reproduzidas, ora são negociadas, ora são abolidas, tendo como exemplos algumas visões conservadoras sobre gênero e parentalidade, a valorização da descendência genética, a crítica ao caráter elitista da defesa do ‘casamento gay’, etc. Mais do que o amparo a uma lógica da 56
miséria ou à reconfiguração da relação homossexual nos moldes heteronormativos, esse diálogo
com
a
tradição
parece
remeter
à
procura
gradual
de
certa
facticidade/inteligibilidade e consequente reconhecimento do Direito. O contexto presente, em especial no tocante aos recentes avanços legais na questão do casamento entre homossexuais – discutidos ao final do texto –, parece confirmar essa tese. O estudo de Gouveia e Camino (2009), que também consistiu em entrevistas com líderes de grupos LGBT, na Paraíba, encontrou resultados semelhantes ao de Uziel et al. (2006). Os autores também apontaram que casamento civil e adoção são temas aglutinadores do movimento, apesar de nem todos os sujeitos entrevistados desejarem casar ou ter filhos. O que prevalece, mais do que o desejo de constituir família, é o desejo de isonomia de direitos entre homo e heterossexuais, o que deixa implícito um slogan do tipo ‘quero ter o direito de dizer sim e não’. O casamento homoafetivo, desse modo, não representa apenas uma das demandas mais importantes da militância, mas também algo que legitima o direito de escolha individual, alinhando-se, assim, à defesa dos direitos civis. Do mesmo modo que sugerem Uziel et al. (2006), Gouveia e Camino (2009: 47) apontam que as “aspirações dos militantes não consideram necessariamente uma revolução nos modos de constituição familiar”, o que pressupõe a ocorrência de adequação da tradição à realidade da vivência homoafetiva. Estabelecendo um diálogo entre autores da Teoria das Representações Sociais, Gouveia e Camino (2009: 56) argumentam que, na luta pela inclusão social, ... a minoria só introduz efetivamente as inovações se suas mensagens inscrevem-se nas grandes linhas da evolução social, ou seja, se forem consideradas pertinentes aos interesses de mudança. Realmente, a homossexualidade permaneceu por muito tempo como tema “proibido”, no entanto, com o advento da epidemia do vírus HIV e sua vinculação inicial à população homossexual, surgiu a necessidade de debater sobre ela. (...) o conteúdo inovador das mensagens da minoria não é engendrado apenas por ela própria, mas no seio do sistema social como um todo, no qual a minoria desempenha o papel de catalisador e difusor das necessidades de mudança apresentadas pelo sistema.
Embora a dicotomia maioria x minoria, estabelecida pelos autores, seja problemática – pois dá a entender que a minoria detém um potencial subversivo e revolucionário, não sendo necessariamente atravessada e, portanto, reprodutora de normas sociais –, uma conclusão importante pode ser retirada no texto: se estiver ocorrendo alguma revolução dos modos de relação familiar, ela é gradual, lenta e 57
marcada por ambiguidades. Ora a norma é reproduzida, ora é questionada de acordo com os interesses dos indivíduos e das exigências do contexto igualitário, próprio da contemporaneidade. Ademais, tanto o texto de Uziel et al. (2006) quanto o de Gouveia e Camino (2009) refletem as lutas em torno da questão de precariedade, conceito de Butler (2009). Além de remeter à ordem sociossexual, marcadamente heteronormativa, com fins de referendá-la ou subvertê-la, a busca por reconhecimento jurídico também aponta que os sujeitos envolvidos, ao se submeterem à referida ordem, procuram tornar-se mais inteligíveis
e,
portanto,
menos
‘precários’,
menos
vulneráveis,
objetiva
e
subjetivamente. O artigo de Rodriguez e Paiva (2009: 16) apresenta os resultados de uma pesquisa que procurou “investigar o exercício da homoparentalidade, focando as especificidades existentes no relacionamento parental homossexual, bem como compreender o olhar dos pais com relação a seus papéis parentais”. Mediante dados levantados no encontro com duas famílias, uma gay e outra lésbica, as autoras argumentaram que a heterossexualidade e a família heteroafetiva, quando tomadas como referenciais de vida, dificultariam a constituição da família homoafetiva em termos de qualidade das relações. Em relação ao casal de lésbicas entrevistado: “... a dificuldade em formar um casal parental deve-se não somente ao fato de ser uma família reconstituída, mas também devido à divergência entre a imago de um casal parental heterossexual e o desejo de viver um relacionamento conjugal heterossexual” (Ibid.: 22). As autoras deixam implícita a dificuldade, por parte das entrevistadas, em mediar sua escolha de um modo alternativo de vida em família e o modelo hegemônico. O artigo de Zambrano (2006) apresenta parte de uma pesquisa que buscou analisar os debates entre Antropologia, Psicanálise e Direito e evidenciar como a concepção moderna de família é capaz de influenciar a construção de parentalidades consideradas até então ‘impensáveis’ social e juridicamente. Partindo do entendimento de que a diversidade das estruturas familiares requer uma redefinição de parentalidade em termos afetivos e não apenas biológicos, Zambrano dá destaque, através de duas entrevistas, à parentalidade travesti e transexual16. Ela aponta o desafio diário da linguagem em
16
Segundo a autora, o uso dos termos ‘família homoparental’ e ‘homoparentalidade’, não obstante terem um caráter político e garantirem existência discursiva de tal família, são problemáticos para se pensar a 58
nomear os membros de uma família que, por romperem com normas de sexo e gênero, parecem carecer de termos de parentesco que permitam nomeá-los. A autora depara-se com termos como ‘dindo’, ‘painho’ e ‘mainha’, usados pelas crianças, o que, acrescento, sugere uma aproximação da nomeação tradicional ‘pai’ e ‘mãe’. Nesta vida em família, a divisão dos papéis parentais é bastante definida, assemelhando-se à díade heterossexual. Uma vez que travestis e transexuais em geral adotam performatividades associadas ao feminino, as segundas considerando-se intimamente mulheres, elas não apenas vêem sua família como muito próxima do modelo tradicional, reproduzindo e exigindo de seus parceiros os papéis tradicionalmente atribuídos a homens, como também encontram na maternidade um modo de reafirmação de sua identidade feminina. Em relação às tecnologias de reprodução, fica claro o quanto essas novas tecnologias são atravessadas por representações de gênero, determinando quem as utiliza – ou quem está autorizado a utilizá-las. A autora afirma (Ibid.: 140): ... a totalidade das travestis e transexuais entrevistadas não querem fazer uso da coleta de sêmen e de novas tecnologias reprodutivas para terem um filho biológico. Muitas reagiram de forma indignada à sugestão dessa possibilidade, remetendo a uma representação de “paternidade” associada ao uso do sêmen. Afirmam que essa alternativa seria impensável, porque ao coletar sêmen o fariam como homens, enquanto seu desejo de filhos está relacionado ao desejo de ser “mães” e não “pais”. Tal maneira de encarar essa possibilidade nos remete à importância, para essas informantes, da representação da maternidade como confirmadora do seu gênero feminino.
Zambrano ressalta que esse dado não pode ser generalizado a todas as parentalidades trans*, sendo possíveis outras apropriações por parte dos sujeitos. Todavia, estes casos isolados parecem bastante emblemáticos no tocante ao exercício da heternormatividade pelos sujeitos ‘desviantes’. Há uma negociação ambígua, que reproduz a norma vigente ao mesmo tempo em que a distorce de acordo com os interesses individuais: as transexuais e travestis se negam a fazer algo que as reenquadre no lugar social destinado pela heteronormatividade; ao mesmo tempo, o fazem de modo a reiterar a lógica binária de sexo e gênero. Procura-se, desse modo, viver a subversão de sexo e gênero, mesmo que sob configurações heteronormativas que, por isso mesmo, deixam de sê-lo.
parentalidade exercida por trans*. Esses termos referem-se apenas à orientação sexual, não considerando indivíduos com performatividades diferenciadas de sexo e gênero. 59
O texto de Padovani (2011) traz uma reflexão a partir de sua pesquisa de doutorado, cujo campo de investigação é a Penitenciária Feminina da Capital de São Paulo (PFC). Com o reconhecimento da união estável homossexual a partir de maio de 2011, diversos casais femininos começaram a requerer o direito de visita íntima. A autora aponta que a procura por esse direito e as resistências à sua garantia apontam para tensões estabelecidas entre a legitimidade de uma relação e o controle estatal sobre a vivência da sexualidade. De um lado, luta-se pela inteligibilidade de uma relação; por outro, tal inteligibilidade envolve um enquadramento heteronormativo. O Estado reconhece e reproduz ideários de relações afetivas e estáveis hetero e homossexuais, enquadradas na instituição casamento, aumentando a zona de legitimidade destas, ao mesmo tempo em que mantém outras relações, não configuradas sob a rubrica do casamento, na penumbra social. Sem a intenção de desconsiderar a violência perpetrada pelo não reconhecimento das relações homossexuais femininas na PFC, Padovani aponta para o paradoxo de uma liberdade aprisionada: para viver-se determinada sexualidade, para que ela seja legítima, é preciso que esteja submetida ao controle estatal. E, por hora, não será mesmo libertador ser enquadrado? Não seria este um mecanismo estratégico das demandas? A luta pelo direito às visitas íntimas homossexuais na Penitenciária Feminina da Capital, ainda que não coloque em questão regulações e normalizações dos corpos, dos sexos, dos gêneros, é uma batalha travada no ardil dessas mesmas regulações das sexualidades, no ardil do desejo pela legitimação do Estado. Isso não é pouco. Ser legitimado implica em existir, em ser enquadrado no plano de direitos. A tensão que se coloca aqui é entre zonas de legitimidade e de ilegitimidade, entre relações reconhecíveis e ininteligíveis, entre corpos identificáveis e imensuráveis. Querer estabelecer o perfil das populações LGBT é mensurar identidades possíveis, do mesmo modo, regular visitas íntimas homossexuais é localizar o sexo nas relações amorosas e familiares. Por outro lado, ir à Defensoria Pública, assinar declarações de uniões estáveis e reconhecê-las em cartório é desejar ser mensurado e localizado. A demanda política das presas é pela legitimação; é a demanda pelo enquadramento. Uma demanda perpassada por corpos que sentem dor, que são violentados pelo cerceamento de direitos, pelo não reconhecimento da existência social (Ibid.: 214).
O artigo de Mosmann, Lomando e Wagner (2010) apresenta pesquisa pioneira no Brasil e que consistiu na investigação e comparação dos níveis de coesão e adaptabilidade conjugal a partir de amostras de sujeitos em relacionamentos heterossexuais, gays e lésbicos, considerando como o contexto de cada arranjo conjugal condiciona suas singularidades. Partindo principalmente das contribuições de D. H. Olson, conhecido teórico da Terapia Familiar, os autores definem coesão como 60
proximidade afetiva ou laço afetivo entre os componentes do sistema conjugal e adaptabilidade ou flexibilidade como a habilidade desse sistema de mudar perante estressores relacionais ou ambientais. Esses seriam alguns construtos que compõem a qualidade conjugal, que pode ser definida como “o resultado de um processo dinâmico e interativo do casal que resulta na avaliação que cada cônjuge tem do nível de qualidade que experimenta sua união” (MOSMANN, WAGNER & FÉRES-CARNEIRO, 2006: 322), conforme definição que os mesmos autores fazem em outro texto, que analisou o uso desse conceito na literatura especializada. Cientes da diversidade das configurações familiares e munidos da base teórica parcialmente apresentada acima, Mosmann, Lomando e Wagner (2010: 136) levantam algumas questões, entre elas: Que nível de qualidade conjugal [os relacionamentos heterossexuais, gays e lésbicos] experimentam? Em que medida há diferenças e semelhanças desta configuração conjugal, comparada aos arranjos tradicionais? Enfim, existem demandas específicas desse tipo de conjugalidade?
Em consonância com a literatura internacional, a pesquisa mostrou que os casais gays e lésbicos apresentaram níveis de coesão e adaptabilidade superiores aos casais heterossexuais. Os autores argumentam que, não obstante os relacionamentos heterossexuais terem maior duração, segundo pesquisas citadas ao longo do texto, nos casais homossexuais o afeto aparece como o grande fator na formação, manutenção e dissolução do vínculo. Os autores apontam o casamento e a filiação, duas ocorrências mais comuns em casais hetero, como positivamente relacionados à redução da qualidade conjugal e à duração da relação; eles questionam se, no contexto brasileiro, a proibição do casamento e adoção homoafetivos – ao tornar o afeto a principal, senão a única, finalidade da relação – estaria relacionada à vivência de uma melhor qualidade conjugal entre casais gays e lésbicos. Nesse sentido, a legalidade da relação – ou seu não reconhecimento jurídico – seria em parte responsável por especificidades da conjugalidade homoafetiva, em especial no tocante à sua qualidade conjugal. Mosmann, Lomando e Wagner (2010) também consideram que os casais homoafetivos parecem flexibilizar com maior facilidade os papéis de gênero, o que poderia levar a uma maior qualidade conjugal. Embora sua análise sobre tal flexibilização dos papéis de gênero não escape de um enquadramento binário – executar papéis femininos x executar papéis masculinos –, a 61
matriz cultural de gêneros aparece como via possível de florescimento de singularidades. A pergunta que surge, portanto, é: se os casais homossexuais, conforme acreditam os autores anteriormente citados, podem se reapropriar dos gêneros de um modo alternativo com vistas à manutenção da relação, não poderiam fazer o mesmo no âmbito da legalidade? Que configurações novas e inusitadas poderiam se dar a partir do (des)encontro entre o que é estabelecido por um texto jurídico e pela diversidade de gênero e sexualidade? A legalidade, elencada como um dos ‘estressores’ da relação heterossexual, o seria justamente porque tanto a lei quanto a relação heteroafetiva estariam mais firmemente assentadas em determinado substrato cultural de gênero? O artigo de Lomando, Wagner e Gonçalves (2011) apresenta um desdobramento da pesquisa anterior ao selecionar apenas a amostra de 111 sujeitos em relacionamento homoafetivo com o intuito de investigar a correlação entre coesão e adaptabilidade conjugal e percepção de apoio da rede social que circunda o casal. Entre as questões iniciais, os autores perguntam (Ibid.: 97): ... com base no pressuposto de que existe uma conjugalidade gay e lésbica que, no entanto, se constitui em um contexto específico de homofobia e luta por direitos, como entender a coesão e a adaptabilidade de tais casais? Qual é a contribuição do contexto dos sujeitos, representada na sua rede de apoio, na qualidade conjugal que vivenciam em suas relações?
Os autores verificaram uma correlação positiva significativa entre os construtos apresentados, fato que os levou a algumas conclusões interessantes. Vale apresentar aqui a análise que fazem em relação à rede de apoio social desses casais. Os diferentes núcleos que compõem esta rede, como família de origem, amigos e trabalho/escola, apresentam níveis diferentes de apoio aos casais, sendo o terceiro núcleo o de menor nível. A não assunção da homossexualidade e consequentemente do relacionamento, em alguns espaços, apontariam para a dificuldade em estabelecer uma interação entre os diferentes núcleos da rede de apoio, o que diminuiria as possibilidades de construção de relações mais satisfatórias no tocante à coesão e adaptabilidade. Os autores, portanto, mostram-se sensíveis ao seguinte fato: estando ciente de sua ‘diferença’ no contexto de heteronormatividade, a homoconjugalidade parece se configurar mediante uma tentativa de diálogo com a norma vigente, diálogo esse que pode coadunar com o que é estabelecido em termos de gênero, sexo e práticas sexuais, tornando esta relação invisível ou pelo menos inteligível ou aceitável. 62
Acrescento que, todavia, o oposto também é possível: cientes de sua ‘diferença’, os casais podem adotar modos alternativos de relacionamento que não o de acordo com a heteronormatividade, no tocante à coerência entre gênero, sexo e práticas sexuais. O texto de Pelúcio (2006), publicado no mesmo dossiê que contém o artigo de Mello (2006), explicita as tensões que permeiam certas conjugalidades no que diz respeito à manutenção das normas de sexo e gênero. Trata-se de uma pesquisa etnográfica em diálogo com a teoria queer, que analisa três experiências de conjugalidade envolvendo travestis: Duda e Wild, Fabyanna e Verônica e Fran e Thiago. Tendo como referências o trabalho de Heilborn (2004) sobre conjugalidade e a perspectiva de Butler quanto ao gênero e à matriz de inteligibilidade, Pelúcio (2006) realiza uma análise desses casamentos apontando seus dilemas. Ao contrário do estudo de Heilborn (2004), Pelúcio (2006) não encontra um padrão de simetria de gênero nas três relações analisadas, o que em parte se justifica pela escolha dos sujeitos que compõem as amostras de cada pesquisadora. Enquanto a primeira analisa relações cujos integrantes não rompem com a coerência entre sexo biológico e gênero, nas conjugalidades travestis investigadas por Pelúcio esse rompimento está presente e de modo paradoxal: as travestis desnaturalizam a associação entre sexo masculino e gênero masculino ao mesmo tempo em que constroem “sobre seus corpos masculinos um gênero feminino” (Ibid.: 526). Baseando-se na pesquisa de Don Kulick, sobre travestis em prostituição na cidade de Salvador, Pelúcio argumenta que as travestis em geral se apropriam do gênero sob uma ótica essencialista e binária, exigindo que seus maridos sejam ‘homens de verdade’, aqueles que assumem os papéis tradicionalmente atribuídos aos homens heterossexuais. Os casais compostos pelas travestis da pesquisa de Pelúcio parecem carecer, segundo a autora, de um script conjugal, tendo à mão apenas o modelo heterossexual de relação. Não há um script conjugal a seguir, uma vez que o modelo de conjugalidade que têm à disposição é o de casais heterossexuais, para os quais estão previstos os papéis definidos como os de pai e mãe; esposo e esposa; provedor e administradora, entre outros. Ainda assim, há todo um empenho imitativo dos arranjos legitimados, a fim de que essas relações ganhem contornos inteligíveis e, dessa forma, reconhecíveis dentro e fora da rede social do casal (Ibid.: 524).
A autora argumenta que esse amparo no modelo conjugal heterossexual e tradicional é visível nas ações executadas pelos parceiros da relação para tornar o casal 63
culturalmente inteligível. Pelúcio apropria-se de um termo de Butler (2012: 38) quando esta fala da matriz de gênero: “Gêneros ‘inteligíveis’ são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo.” Nesse sentido, pela via da ‘coerência’ do gênero, busca-se a ‘coerência’ da relação conjugal. O binarismo de gênero, que impera nessas conjugalidades travestis, é a via encontrada para a inteligibilidade e, portanto, ‘existência subjetiva’ da relação. São conjugalidades que, se à primeira vista rompem com o que é estabelecido como coerente no âmbito da matriz de inteligibilidade, tentam a todo o momento configurar sua existência nos moldes heteronormativos. Pelúcio (2006) mostra como esta configuração torna-se fonte de tensões, como é o caso de Fabyanna e Verônica. Este casal, de formato incomum por ser constituído por duas travestis, encontrou inicialmente dificuldades para se relacionar afetiva e sexualmente. Vencida essa barreira, torna-se notável a circunscrição em papéis rígidos de gênero que cada uma realiza. Enquanto Fabyanna cumpria os papéis ‘masculinos’ e assumia o polo ativo na relação sexual, Verônica ocupava o lugar feminino. O fim da relação, ocasionado por crises de ciúme de Fabyanna, caracterizou-se pela alternância, por parte de Verônica, de papéis masculinos e femininos, exercidos de acordo com o que exigia o momento e dependendo dos eventuais parceiros. Pelúcio sugere, a partir dessa relação, uma correspondência entre a relação sexual e a relação conjugal em termos de gênero. Todavia, essa correspondência, relacionada à matriz heteronormativa, é questionada no casal formado por Fran e Thiago, que negociam a prática sexual, não parecendo haver limitação entre polos ativo e passivo, mesmo que os papéis masculino e feminino estejam rigidamente estabelecidos no dia a dia. Estas histórias conjugais mostram que há um diálogo com a heteronormatividade, que não se dá sem tensões. Ademais, o trabalho de Pelúcio oferece base para indagar a (suposta) hegemonia heteronormativa tanto quanto certa (e suposta) hegemonia homonormativa entre casais do mesmo sexo. Explorar as composições e expectativas múltiplas acerca da sexualidade e performatividade de gênero dos casais de mesmo sexo mostra-se como argumento extremamente relevante para uma pesquisa com tais casais em contexto heteronormativo. O artigo de Tarnovski (2011) apresenta parte de sua pesquisa de doutorado e tem como objetivo analisar as especificidades das coparentalidades entre gays e lésbicas no 64
contexto francês. A coparentalidade pode ser definida, segundo o autor, como a associação entre um gay e uma lésbica, com ou sem relações sexuais, com fins de procriação, podendo a criança assim gerada viver em residências alternadas. Esta forma de filiação tornou-se comum na França e é fonte de muitas tensões, conforme apontado por Tarnovski (2011), que mostrou como concepções nativas de paternidade e maternidade atualizam definições assimétricas e desiguais de gênero. Ademais, um dos maiores desafios de tal configuração familiar é a necessidade de criação de arranjos jurídicos que estejam para além de uma definição puramente biológica ou social de parentesco, arranjos que possam considerar as particularidades de uma associação familiar com vistas ao seu reconhecimento legal. A partir dessa constatação, Tarnovski (2011: 160) aponta para o desafio que envolve “uma reformulação de conceitos e modelos teóricos usados pelos cientistas sociais para analisar o parentesco nas sociedades ocidentais contemporâneas” (tradução livre). O artigo de Lopes (2011) é uma releitura de alguns dados de sua pesquisa de doutorado, que teve como objetivo discutir a construção das subjetividades e das homoconjugalidades masculinas no Brasil e na Argentina. Neste texto, Lopes analisa a articulação entre gênero, cor/raça, nacionalidade, classe social e grupo etário/geracional no exercício da homoconjugalidade, e discorre sobre o processo de construção da ‘branquidade’ entre casais gays. O autor desloca a leitura das “narrativas em comum”, realizada em sua tese, para as “narrativas do eu” (Ibid.: 127), mostrando, entre outras coisas, como a questão da raça/etnia influi na configuração e manutenção dos vínculos conjugais, na inserção destes no meio social e nos modos de subjetivação. Ele afirma (Ibid.: 114): “É nessa articulação que se produzem determinadas relações interpessoais, formas particulares de opressão e privilégio, formas contextuais de ser e estar no mundo, e, com isso, uma identidade, um sujeito específico e uma subjetividade particular”. Os trabalhos que seguem não apresentam discussões sobre homoconjugalidade. Não obstante, apontam para as contradições e desencontros no âmbito das normas de sexo e gênero, sugerindo uma ambivalência que é própria da contemporaneidade e que sem dúvida diz respeito também às possibilidades da conjugalidade homossexual. O estudo de Gurgel e Bucher-Marluschke (2010) teve como objetivo investigar como homens homossexuais, inseridos em famílias heterossexuais, vivenciam suas 65
experiências afetivas e sexuais e quais as repercussões de suas escolhas, tanto na família quanto em si próprios. Através de uma análise qualitativa de três relatos de histórias de vida, os autores apontam, entre outras coisas, uma elaboração romântica heteroerótica das experiências afetivas e sexuais entre iguais. A homossexualidade, para esses sujeitos, só se tornou ‘possível’ mediante a subjetivação nos moldes heterossexistas. ... foi somente com o acesso aos significados que correlacionam a atração sexual com amor romântico é que os entrevistados puderam desenvolver alguma elaboração acerca de seus sentimentos sexuais. Enquanto não existia um vocabulário afetivo, o sujeito não conseguia dar significado à sua atração sexual... (GURGEL & BUCHER-MALUSCKE, 2010: 645)
A pesquisa de Paiva, Aranha e Bastos (2008) é bastante ilustrativa quanto à elaboração romântica das experiências afetivas e sexuais, tratada no estudo de Gurgel e Bucher-Marluschke (2010). Com base em um inquérito realizado em 2005, os autores desenvolvem uma análise descritiva das opiniões e atitudes sobre as normas para a sexualidade. Esta pesquisa traz dados interessantes para pensar não apenas as representações de sexo, gênero e sexualidade entre heteroafetivos, como também entre homoafetivos, uma vez que a amostra é representativa da população. Assim como Gurgel e Bucher-Marluschke (2010), Paiva, Aranha e Bastos (2008) apontam que o sexo é revestido de valores românticos, sendo considerado, por exemplo, uma “prova de amor” (Ibid.: 54). Além disso, foi verificado, em relação a uma pesquisa similar realizada em 1998, um crescimento da tolerância ao sexo homossexual, acompanhado de maior valorização da fidelidade e do casamento como contexto para o início da vida sexual. Os autores concluem que a sexualidade no contexto brasileiro não pode ser pensada a partir de uma dicotomia liberal x conservador uma vez que ambos os polos – se é que é possível considerá-los tão rigidamente – parecem se tangenciar. A pesquisa de Greco et al. (2007: 109) teve como objetivo “descrever o comportamento bissexual masculino quanto à identidade sexual, uso de preservativo, frequência de relações sexuais e tipos de parceria e verificar diferenças entre práticas protegidas nas suas relações com homens e mulheres”. Os autores verificaram, entre outras coisas, que o uso de preservativo no sexo homem-homem é mais frequente do que no sexo homem-mulher. Esta diferença sugere uma associação, por parte dos sujeitos da pesquisa, entre AIDS/HIV e práticas homoeróticas, o que parece apontar
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para representações sociais não apenas da homossexualidade como também das relações conjugais entre iguais. A pesquisa de Scardua e Souza Filho (2006: 482) teve com objetivo “estudar as representações sociais da homossexualidade entre estudantes universitários, segundo orientação sexual e sexo”. Mediante aplicação de questionário e análise de conteúdo, os autores verificaram que as representações sociais da homossexualidade variavam entre homens e mulheres hetero e homossexuais. Entre os muitos dados apresentados, cabe destacar que os homens homossexuais “procuraram justificar/legitimar publicamente (direitos, liberdade) a homossexualidade com o argumento/representação de que ela é incontrolável/natural”, enquanto que “as mulheres homossexuais preferiram construir e aperfeiçoar contratos de interação no plano interpessoal (família, namoro) para obter reconhecimento social” (Ibid.: 482). Esses dados permitem afirmar que as representações sexuais da homossexualidade por parte dos próprios homossexuais são atravessadas por representações binárias de gênero – masculino-público x femininodoméstico –, assim como a possibilidade de arranjos conjugais está condicionada a estas representações. Uma relação conjugal lésbica, nesse sentido, tenderia a ser mais voltada para a manutenção de seu vínculo e do vínculo com as famílias de origem, ao contrário dos casais gays. Essa possibilidade torna-se real na pesquisa realizada por Heilborn (2004), onde o casal de lésbicas mostra-se como o mais preocupado com a promoção da qualidade do vínculo conjugal.
Algumas considerações
Através desse levantamento nas bases Scielo e PePsic, percebe-se uma preferência pelos termos ‘família’ e ‘casamento’ frente ao termo ‘conjugalidade’, o que pode denotar a) a abrangência do termo ‘família’, podendo referir-se à dinâmica da família heterossexual com membros homossexuais ou à família propriamente homossexual; b) possível tendência dos estudos atuais em investigar não apenas a homoconjugalidade, mas também a homoparentalidade, devido à sua mais recente visibilidade social; c) o caráter político do uso do termo ‘família’ para relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo, em especial a produção que versa sobre o reconhecimento jurídico das famílias homoafetivas. Em ambas as bases de acesso, nota-se que há escassa contribuição, nos 67
últimos anos, quanto a uma discussão que articule conjugalidade (tanto hetero quanto homossexual) e heteronormatividade. Uma característica notável no conteúdo apresentado é a predominância da discussão sobre o reconhecimento jurídico e social da conjugalidade homossexual. Falase mais do reconhecimento de certa relação conjugal e menos da relação em si. Se num primeiro momento tal fato gerou surpresa, logo mostrou-se revelador. Como adiantei no início do presente texto, o que se convencionou chamar de casamento gay parece ser efeito de uma ampla reconfiguração da ordem sociossexual. Acrescento que a percepção de tal reconfiguração está presente na academia, dando o tom e a direção dos debates. Os autores citados com frequência, no conjunto dos textos lidos, são Michel Foucault e Judith Butler. Estes são tomados como referência teórica para as discussões sobre sexualidade entre diferentes autores. Peter Fry, Luis Mott, Luiz Mello, Miriam Grossi, Anna Paula Uziel e Terezinha Féres-Carneiro aparecem como referências nacionais. Esta última é citada pela relevância precursora, no campo clínico, do artigo A escolha amorosa e interação conjugal na heterossexualidade e na homossexualidade, de 1997, que aponta semelhanças e particularidades nas relações hetero e homoafetivas que podem ser úteis para a prática clínica da terapia de casal. Autores aparentemente díspares em termos de referência teórica remetem à interdisciplinaridade e penetração dos estudos de gênero e sexualidade nos mais variados campos de saber. Conforme apontam Uziel, Mello e Grossi (2006), a reflexão acadêmica sobre o tema tem sido feita, em grande parte, por estudos de gênero/feministas, os estudos queer e o pensamento social contemporâneo, que inclui teóricos os mais diversos. Como mostrado ao longo do texto, muitos desses estudos têm contribuído para uma reflexão crítica sobre a questão do homoconjugalidade e homoparentalidade nas muitas disciplinas, num diálogo constante com a militância LGBT. Os
artigos
levantados
contemplam
campos
como
Direito,
Psicologia,
Antropologia, Sociologia e Educação. Essa pluralidade de saberes e a troca que se estabelece entre eles remetem à noção de campo, de Bourdieu. Em sua apresentação do legado de Bourdieu, Loyola (2002) argumenta que o conceito de campo permite um entendimento mais complexo e dinâmico da sociedade. Esta seria constituída por campos ou espaços – econômico, político, científico etc. – que se organizam, podendo 68
entrar em consonância ou em confronto em relação a um capital – seja este econômico, cultural ou simbólico. Nesse sentido, os diferentes saberes em torno da questão da diversidade sexual, e da homoconjugalidade em particular, ora se apoiam mutuamente, ora se confrontam. A noção de campo de Bourdieu também pode ser útil para pensarmos a relação entre a academia e os movimentos sociais em defesa dos direitos LGBT. Fato é que a vasta produção acadêmica sobre diversidade sexual, em especial sobre as homossexualidades, é resultado direto da crescente presença, nos últimos anos, das pautas dos movimentos em prol dos direitos LGBT nas instituições de ensino e pesquisa. Assim como as homossexualidades foram repensadas a partir de um estreitamento entre os movimentos sociais e as instituições produtoras de conhecimento, conforme sugerido ao longo do texto, as discussões em torno da família homoafetiva também o estão sendo. Muitos pesquisadores e teóricos são ou foram militantes e estão em diálogo com os movimentos sociais, o que parece tornar questionável o agrupamento de autores apenas pelo critério de proximidade de disciplinas. E, embora possam ser vistos como campos autônomos e separados, a academia e a militância estão em constante troca e interseção, envolvendo, eventualmente, concordâncias e discordâncias, alianças e cisões. A leitura dos textos aqui levantados foi pautada nos possíveis (des)encontros e (des)continuidades entre esses dois campos. Em relação à problemática do ‘casamento gay’, nota-se que este é um dos pontos de maior tensão na interseção academia-militância. Por um lado, defende-se a isonomia de direitos e a cidadania plena de LGBTs; por outro, aponta-se para o avanço do regime heteronormativo na garantia de certos direitos civis a homossexuais, ou antes, o risco do enquadramento heteronormativo da diversidade sexual com a consequente produção ou fortalecimento de novas precariedades. Do mesmo modo que Miskolci (2007), tendo a assumir uma postura para além da díade a favor x contra uma vez que tanto uma quanto outra posição ignora questões importantes sobre processos normalizadores aos quais se submetem todas as possibilidades de gênero, sexo e desejo. O reconhecimento jurídico e social da homoconjugalidade, tão bem tratado nos textos acadêmicos, aponta para amplas transformações na ordem heteronormativa, em especial nas suas configurações afetivas, sexuais e familiares. O casamento entre iguais, ou antes, a inserção da homoconjugalidade na malha social e cultural, nesse sentido, é apenas um efeito-superfície destas transformações. 69
Vejamos este efeito-superfície no cenário brasileiro atual. A necessidade de garantir direitos patrimoniais a homossexuais que perderam seus parceiros, muitos deles atingidos pela epidemia do HIV/AIDS, parece ter colaborado para a elaboração do Projeto de Lei 1151/1995, da ex-deputada Marta Suplicy. Após muitos e acirrados debates, envolvendo diferentes representantes da sociedade civil, o substitutivo do Projeto não conseguiu aprovação. O reconhecimento jurídico de casais homossexuais permaneceu como um ponto de tensão nos debates sobre família, não obstante as muitas jurisprudências favoráveis aos parceiros e famílias homossexuais, com alguns casos ganhando notoriedade17. A recente campanha Casamento Civil Igualitário, lançada pelo deputado federal Jean Wyllys e que recebe apoio de diversas personalidades, rejeita o termo “parceria civil” no substitutivo do projeto da ex-deputada Marta Suplicy e defende proposição de emenda constitucional que inclua a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo 18. Além disso, vale lembrar que a união estável homoafetiva é reconhecida pelo STF desde maio de 2011 e que vários estados brasileiros celebram inclusive a união civil homoafetiva. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo das atividades do Judiciário, aprovou resolução que obriga todos os cartórios do país a cumprirem a referida decisão do STF, não só realizando a união estável de casais homossexuais como também convertendo-a em união civil. Se, há poucos anos, alguns personagens políticos assumiam certa precaução em falar de uniões homossexuais sem utilizar o termo ‘casamento’, como mostra a pesquisa de Mello (2005), hoje o termo é usado tanto para casais homo quanto heterossexuais. Nesse sentido, a inteligibilidade das uniões homossexuais torna-se maior à medida que estas são incorporadas em um vocabulário que antes era plausível ou aceitável apenas para uniões heterossexuais. A luta política pela união civil e pela adoção, portanto, não apenas aponta para a existência de determinadas conjugalidades e parentalidades, como também as torna factíveis, possíveis. Trata-se da iminente possibilidade de inteligibilidade de relações anteriormente abjetas ou invisíveis, embora tal inteligibilidade possa significar apenas o efeito de 17
Um exemplo que cabe ser lembrado é a disputa da guarda do filho da cantora Cássia Eller, falecida em 2001. Sua companheira, Maria Eugênia Vieira Martins, conseguiu a guarda definitiva da criança. Este caso, embora trate de questões patrimoniais e parentais, colocou novamente na pauta do dia os debates sobre o reconhecimento jurídico das famílias homossexuais. 18 Site da campanha: www.casamentociviligualitario.com.br. 70
processos normalizadores, a redução ou exclusão das possibilidades de estilos alternativos de relação com o outro e consigo. Não obstante, ao discutir a instabilidade das relações de poder que sustentam a heteronormatividade, o efeito-sujeito capaz de produzir contrapoderes, além da ética do cuidado de si e a performatividade como apostas políticas de transformação da relação com o outro e consigo, proponho que até mesmo aquilo que aponta, em seu horizonte, para a normalização, pode produzir deslocamentos variados nas estruturas de poder. Talvez resida nesse ponto a importância de uma abordagem queer de gênero e sexualidade na investigação das uniões entre pessoas do mesmo sexo, não no sentido de condená-las ou sancioná-las politicamente, mas de visualizar nelas a possibilidade de reapropriação de normas e invenções de modos de vida. Considero importante relembrar a diferença que Foucault (1984/2004) estabelece entre práticas de liberação e práticas de liberdade. O ‘casamento gay’ seria uma prática de liberação que institui novas relações de poder. Todavia, ela precisa ser acompanhada de práticas de liberdade, e parece-me que estas últimas encontram-se favorecidas no atual contexto das transformações nas relações conjugais e familiares. As homoconjugalidades, desenhadas e tornadas possíveis na atualidade e cujo horizonte aponta para sua legitimidade jurídica, devem ser investigadas com o intuito de esclarecer, a partir de sua realidade concreta, de suas vicissitudes, como ela se apropria, negocia ou nega imposições existenciais no interior daquilo que considero como arranjo heteronormativo. Entendo que é importante perguntar como a ‘história’ da homoconjugalidade tem gerado efeitos de subjetivação nos casais ou como estes convocam (ou não) as instituições (Estado, movimentos sociais, academia) no que tange à sua relação afetivo-sexual.
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CAPÍTULO 4 Metodologia de pesquisa de campo
Em seu artigo A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização (2009: 169), Miskolci afirma: ... os empreendimentos queer partem de uma desconfiança com relação aos sujeitos sexuais como estáveis e foca nos processos sociais classificatórios, hierarquizadores, em suma, nas estratégias sociais normalizadoras dos comportamentos. (...) o queer revela um olhar mais afiado para os processos sociais normalizadores que criam classificações, que, por sua vez, geram a ilusão de sujeitos estáveis, identidades sociais e comportamentos coerentes e regulares.
Conforme o autor deixa claro ao longo do texto, a teoria queer se propõe a realizar uma analítica da normalização. Tratando-se de uma crítica ‘sem sujeito’, ela estaria voltada para os processos de normalização que criam e limitam a ideia de ‘sujeito’. Todavia, conforme argumenta o autor, é no sujeito, ou antes, em sua relação com o discurso, que é possível promover uma analítica da normalização. É nas experiências do sujeito, explicitadas em seu discurso, que os processos sociais regulatórios precisarão ser “reconstituídos, explicitados e analisados pelo pesquisador” (Ibid.: 173). Meu interesse na presente pesquisa não consistiu em analisar propriamente os processos normalizadores, e sim o discurso; ou antes, investigar, por meio da análise de seus discursos, como operam os sujeitos generificados nos referidos processos; se haveria, no interior da prática da intimidade e da conjugalidade, mediante performatividades e artes do cuidado de si, permanências e/ou rupturas. Em outros termos, tratou-se de investigar, na manutenção da conjugalidade homossexual no âmbito da matriz de gênero, os limites e as possibilidades de criatividade do sujeito. Considero importante frisar que esta pesquisa não pretendeu realizar generalizações ou criar categorias universais de análise das homoconjugalidades, do mesmo modo que não pretende restringir-se a uma leitura que se resume a destacar individualidades. Partindo da crítica desenvolvida por Fonseca (1999) aos usos da entrevista em pesquisa, pontuo que minha análise deteve-se nas micropolíticas homoconjugais para, a partir delas, propor um esboço de uma análise macropolítica. Mediante essas considerações, a pesquisa de campo consistiu em um estudo de caráter exploratório, com realização de entrevistas com casais homossexuais. 72
O conjunto pesquisado foi composto de sujeitos que estavam em algum relacionamento homossexual, independentemente de haver coabitação. O tempo de relacionamento não foi considerado como critério de seleção devido à variedade de entendimentos do que seja conjugalidade. O pré-requisito ‘homo/bissexualidade’ também não foi considerado. Entendo que existem diferentes expressões de homo/bissexualidade e que uma definição restrita da mesma pode desconsiderar outras expressões homoeróticas. Além disso, era possível que alguns possíveis sujeitos da pesquisa não se considerassem gays, no sentido cultural desta palavra, relacionando-se apenas sazonalmente com outros homens. Os mesmos cuidados de procura e seleção de voluntários se aplicaram a relacionamentos entre mulheres. Em relação ao tamanho do conjunto, considerei suficiente para esta pesquisa, a princípio, o contato com quatro casais, dois gays e dois lésbicos, a partir dos dezoito anos. A exigência de maioridade se justifica por garantir maior autonomia de participação na pesquisa. É importante evidenciar o recorte para conjugalidades constituídas por apenas dois integrantes, não sendo investigadas as relações compostas por três ou mais pessoas. Desse modo, a presente pesquisa trata apenas de algumas possibilidades conjugais. São reconhecidas, na presente pesquisa, as particularidades das relações gays e lésbicas. É reconhecido também que a quase totalidade da bibliografia acadêmica sobre homossexualidade, levantada nesta pesquisa, versa – muitas vezes implicitamente – apenas sobre a homossexualidade masculina, fornecendo, desse modo, poucas ferramentas de análise da conjugalidade lésbica. Não obstante, creio que o estudo desta pode não apenas trazer respostas para as questões de pesquisa levantadas como também colocar em discussão, pela análise de suas possíveis particularidades, as referidas ferramentas de análise. Embora os objetivos da pesquisa não excluam a participação de casais trans*, decidi, a princípio, por não incluí-los no conjunto. Embora tais casais também sejam marcados por sua ‘diferença’ no contexto heteronormativo e, suponho, também desenvolvam gramáticas conjugais com seus atravessamentos de gênero, sexo e desejo, é possível que a bibliografia consultada na presente pesquisa não ofereça subsídios suficientes para uma análise consistente de suas particularidades. A participação dos
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casais trans*, desse modo, ocorreria se e somente se os mesmos, informados de minha pesquisa, o solicitassem. A busca por participantes deu-se preferencialmente por contatos da minha rede pessoal, podendo estender-se às redes sociais (Facebook, sites de relacionamento voltados para o público LGBT, entre outras) e festas ou eventos voltados para o público LGBT. Para elaboração das entrevistas, foram elencados eixos temáticos de acordo com as discussões desenvolvidas na exposição teórica e na pesquisa bibliográfica. As perguntas foram desenvolvidas a partir desses eixos. Importante frisar que o roteiro de entrevista foi elaborado de modo a tentar colocar em perguntas as problematizações desenvolvidas ao longo da exposição teórica, operacionalizando os principais conceitos teóricos apresentados no texto, a saber, heteronormatividade, matriz de inteligibilidade, performatividade e cuidado de si; em outros termos, tentou-se apreender, através de um diálogo entre a teoria e a história de cada relação conjugal, as possibilidades dos rearranjos amorosos homossexuais no âmbito das regulações de sexo e gênero. No Eixo 1, além de atender aos objetivos apresentados no título (“Apresentação da pesquisa, identificação do pesquisador e contrato psicológico”), peço uma apresentação breve dos sujeitos, para circunscrevê-los em aspectos geracionais, ocupacionais e de classe social, além da preferência do casal em conceder a entrevista em dupla ou em particular. Também concedo liberdade para os sujeitos optarem ou não pela confidencialidade. No Eixo 2 (“Cônjuge/companheiro, história da relação, redes da relação”), investigo a noção de conjugalidade dos entrevistados, a história da relação, suas relações sociais, rotinas, dificuldades etc. No Eixo 3 (“Oficialização da relação”), investigo a noção de casamento dos entrevistados e os interesses e implicações de tal oficialização. No Eixo 4 (“Vivência/experiência e assunção da homossexualidade”), discuto a questão da identidade/orientação sexual dos entrevistados, assunção da relação homossexual, homofobia, AIDS/HIV e outras DSTs, possíveis relações entre sexualidade e relação conjugal (como se afetam/se transformam), os acordos em torno da sexualidade do casal, etc. O Eixo 5 (“Parentalidade”) versa sobre o significado da paternidade/maternidade para os sujeitos entrevistados, desejos e projetos de filiação, seus efeitos na relação conjugal e no meio social. No Eixo 6 (“Militância/participação 74
em movimentos sociais”), pergunto sobre participações em movimentos sociais, militância LGBT e como isso afeta a relação conjugal. Como é possível notar, o tema conjugalidade atravessa todos os eixos acima listados. O roteiro abriga perguntas variadas que, em menor e maior grau, apontam para a questão da conjugalidade e, mais especificamente, a homossexual. Se cada casal constrói sua noção de conjugalidade, entendo que é preciso investigá-la em seus diferentes aspectos, inserções etc. Desse modo, perguntas aparentemente estranhas aos objetivos do roteiro, como “Quais seriam os acordos em torno da esfera sexual?”, do Eixo 4, procuram colocar em relevo as falas, interrupções, posturas corporais, histórias e conversas paralelas entre o casal que podem ocorrer na situação de entrevista e que possam dar indícios, por exemplo, de como a discussão do assunto ‘sexo’ afeta a relação. Outro exemplo possivelmente estranho aos olhos do leitor é a pergunta sobre AIDS/HIV. Em primeiro lugar, a pergunta procurou colocar em relevo o posicionamento dos sujeitos frente a uma doença que, como discutido em capítulo anterior, teve importância na construção e representação da homossexualidade; em segundo, como isso afetaria ou não a relação conjugal. Um exemplo é a entrevista com o casal Maurício e Marcelo, em que este último terminou por responder, na pergunta sobre AIDS/HIV, algumas perguntas do Eixo 4. Esse caminho discursivo – AIDS/HIV-sexualidade do casal – aponta para aspectos importantes das táticas de reserva e invisibilidade da vivência conjugal e da prática militante de Marcelo. Tais aspectos serão apresentados e discutidos à frente. A extensão do roteiro justifica-se por dois motivos: em primeiro lugar, trata-se de um instrumento que possibilita ao entrevistador orientar-se em meio aos discursos do casal, resgatando pontos importantes das falas ou redirecionando-as para outras perguntas. Variadas perguntas permitem variados pontos de redirecionamento da entrevista. Ademais, muitas respostas acabam sendo antecipadas por conta de sua interseção com assuntos pertinentes a outros itens/eixos temáticos, como mostrado no exemplo anterior. Outro exemplo é a entrevista do casal Fernanda e Bruna: quando pergunto o conteúdo do item 4 do Eixo 2 (“Como vocês vivem hoje? Como é a relação hoje?”), elas adiantam conteúdos referentes ao Eixo 3. Em segundo lugar, muitas perguntas são elaboradas de diversas formas em um mesmo item, de modo que o entrevistador possa acionar uma das opções a depender da 75
situação, do clima de abertura, da empatia, do vocabulário utilizado pelos entrevistados, etc. Por exemplo, no item 1 do Eixo 3, é possível perguntar “O que significa ‘casar-se’ para vocês?” ou “O que significa ‘oficializar’ uma relação para vocês?” Em relação à ordem de abordagem dos eixos temáticos e seus conteúdos, procurei estabelecer uma sequência na discussão de assuntos considerados mais gerais ou mais ‘leves’, como apresentação dos sujeitos e história de sua relação, para assuntos mais ‘densos’, como preconceito e sexualidade, de modo a garantir um bom rapport. Entendo que a relação de entrevista pareceria menos ameaçadora para os sujeitos e seria, portanto, mais facilitada com tal sequência. Outro aspecto do roteiro que merece destaque é que os eixos temáticos não se esgotam. Durante a condução das entrevistas e a leitura do material coletado, procurei deixar em aberto a possibilidade de criação de novos eixos, dando relevo, assim, às particularidades de cada casal. A entrevista elaborada toma de empréstimo alguns pressupostos da perspectiva cartográfica de pesquisa, a saber, o entendimento da entrevista como técnica produtora de efeitos no ato de dizer – ou o caráter performativo do dizer –, a valorização de diferentes maneiras de dizer – tons de voz, posturas corporais, silêncios, olhares etc. –, a pluralidade de vozes em um mesmo sujeito, a intervenção como inerente ao processo de pesquisa, etc. (TEDESCO, SADE & CALIMAN, 2013) O formato semiestruturado foi escolhido por parecer mais adaptável à situação da entrevista, podendo o entrevistador ter liberdade para mudar o roteiro prévio de perguntas ou acrescentar novas perguntas com o intuito de aprofundar pontos não esclarecidos ou considerados relevantes (MOURA & FERREIRA, 2005). As entrevistas foram realizadas com cada casal, gravadas e transcritas mediante autorização. A partir da leitura do artigo de Lopes (2011), entendo que a entrevista com o casal pode dar maior relevo à história conjugal em sua relação com a história do sujeito. Todavia, com base na pesquisa de Heilborn (2004), acredito que, numa situação de entrevista em dupla, as tensões estabelecidas entre o projeto individual e o conjugal possam estar, senão mascaradas, implícitas. Desse modo, ciente de que toda pesquisa é, de certo modo, uma pesquisa-intervenção (KASTRUP, 2007), dei liberdade aos casais de escolherem, de início, se eles preferiam que a entrevista fosse individual ou em
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dupla. A resposta dada, ou simplesmente a reação à sugestão, poderia fornecer dados para análise. A metodologia da Análise do Discurso, em sua vertente francesa, mostra-se como disciplina importante para formulação do método de análise da presente pesquisa, pois aborda o discurso como um processo instável revelador de regulações sociais, culturais e históricas. No próximo tópico, realizo uma breve exposição da disciplina e das justificativas pela escolha desta.
Análise do Discurso
Conforme estabelecem Mazzola (2009) e Fernandes (2008), a Análise do Discurso (doravante AD), em sua vertente francesa, emergiu no final da década de 1960 em uma conjuntura de crises. Entre essas, destaco a revisão da Linguística em sua vertente estruturalista. Diversos estudiosos, entre eles Michel Pêcheux, começaram a apontar que a língua não era um sistema fechado e coletivo que bastava a si só, como pressupunha o estruturalismo francês; para melhor compreendê-la, era necessário considerar a inscrição do sujeito, do social e do histórico nas estruturas linguísticas. Sob influência das teorias foucaultiana e marxista, entre outras, Pêcheux (1983/2012; 1975/2009) argumenta que as palavras podem assumir sentidos variados, dependendo da época, do lugar e de quem as profere. Desse modo, a interpretação de um texto não se bastava em sua sucinta descrição, como pressupunha a Linguística estruturalista; era importante considerar seus aspectos sociais, históricos e ideológicos. Em sua crítica à referida Línguística, o autor afirma: ... toda descrição (...) está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (...). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (...) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de discurso (PÊCHEUX, 1983/2012: 53).
Desse modo, inaugura-se uma Teoria do Discurso (PÊCHEUX, 1975/2009), disciplina separada da Linguística 19 e que estabelece uma diferença fundamental entre 19
Pêcheux frisa que essa separação não é consensual. Para fins de argumentação, o autor aponta o desenvolvimento da referida teoria já no interior da Linguística a partir de suas contradições. 77
linguagem e discurso. Enquanto a primeira remete ao arcabouço ou estrutura do enunciado, o segundo remete aos efeitos de sentido que ele pode assumir. Ao opor base linguística e processo discursivo, inicialmente estamos pretendendo destacar que (...) todo sistema linguístico, enquanto conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas, é dotado de uma autonomia relativa que o submete a leis internas, as quais constituem, precisamente, o objeto da Linguística. É, pois, sobre a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos discursivos, e não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva etc., que utilizaria “acidentalmente” os sistemas linguísticos (PÊCHEUX, 1975/2009: 81-82). (itálicos do autor)
Embora o autor coloque em questão, mais à frente, em seu livro, a ideia de linguagem como base ou encaixe dos processos discursivos, assim como sua autonomia20, o trecho acima apresentado explicita a importante diferenciação discurso x linguagem. Em sua apresentação da AD, Fernandes (2008: 13,15) esclarece: ... dizemos que o discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente linguística. Referimonos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas. (...) o discurso não é a língua(gem) em si, mas precisa dela para ter existência material e/ou real. (...) O estudo do discurso toma a língua materializada em forma de texto, forma linguístico-histórica, tendo o discurso como objeto. A análise destina-se a evidenciar os sentidos do discurso tendo em vista suas condições sóciohistóricas e ideológicas de produção.
Se a AD objetiva entender os sentidos de um discurso, logo, trata também de investigar porque um discurso é um e não outro, quais as condições de produção ou emergência de um e não de outro. Nas palavras de Pêcheux (1983/2012: 44), trata-se de entender “a presença de não-ditos no interior do que é dito”. Ademais, a AD permite
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Ao discutir sujeito e ideologia, Pêcheux argumenta que o sistema linguístico não é neutro ou indiferente em relação ao discurso, sendo mais do que uma estrutura de base imutável. Esta assertiva remete às transformações próprias da AD. Em sua primeira época, prevaleceu a noção de maquinaria discursivoestrutural, na qual o discurso era concebido como homogêneo e fechado em si e a língua como base invariável sobre a qual se desdobrariam os processos discursivos. O sujeito, neste período da AD, é entendido como assujeitado à maquinaria discursiva. Em um segundo período, a inclusão de conceitos como formação discursiva, de Foucault, e efeito de sentido, de Pêcheux, apontam para a necessidade de revisão e reformulação do arcabouço teórico da AD, o que culminou em um terceiro período, caracterizado pela desconstrução da noção de maquinaria discursiva fechada, de neutralidade e indiferença da linguagem e de assujeitamento do sujeito (MAZZOLA, 2009; FERNANDES, 2008). A discussão sobre a concepção de sujeito na AD será aprofundada mais à frente. 78
apontar as aparentes contradições no interior do que é dito; se o dito expressa aquilo que remete à esfera do sócio-histórico, expressa também as contradições desta. Portanto, segundo a AD, falar de práticas linguageiras é também falar de práticas sociais. Tal relação, aparentemente intrínseca, é reafirmada por Fernandes (2008: 47): Ao efetuarmos referência às práticas discursivas, referimos, também, a práticas sociais, visto que o discurso envolve condições histórico-sociais de produção. Essa observação torna oportuno refletir sobre as condições de produção dos discursos que incluem o contexto sócio-histórico e ideológico, incluindo, igualmente, as condições de produção de bens materiais e a (re)produção das próprias condições de produção.
É importante frisar que, na AD, não se pretende encontrar no texto/discurso seu significado em si mesmo, sua ‘verdade oculta’ ou ‘significação profunda’, como sugere a metodologia da Análise de Conteúdo (AC). Enquanto a AD atenta para o significado do texto, a AC se detém no conteúdo do texto. Nesse sentido, a concepção de linguagem nesta é oposta àquela: como representação de uma linguagem a priori, a noção de linguagem na AC “seria apenas um veículo de transmissão de uma mensagem subjacente, sendo a esse conteúdo que se pretende chegar com uma pesquisa em [AC]” (ROCHA & DEUSDARÁ, 2005: 311)21. Ademais, a AD é simultaneamente teoria e método, conforme estabelece Nogueira (2008). Trata-se de um sistema de conhecimento que apresenta alternativas não apenas metodológicas como também teóricas. É importante referir desde já que a AD é simultaneamente Teoria e Método(s). Implica uma perspectiva sobre a natureza da linguagem e da sua relação com questões centrais das ciências sociais. Mais especificamente, a AD representa um conjunto relacionado de abordagens ao discurso, abordagens que acarretam não só práticas de recolha e análise dos dados
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Rocha e Deusdará (2005) apresentam uma crítica extensa à metodologia da AC, contrapondo-a à AD. Em relação à minha pesquisa, a crítica à AC e o argumento em defesa da AD tocam na evidente diferença nas perspectivas teóricas e na concepção de sujeito. Herdeira da tradição positivista, a AC representa, historicamente, uma empreitada na criação de recursos metodológicos, nas ciências humanas e sociais, que pudessem ser reconhecidos pela ciência tradicional, dadas suas características pretensamente objetivas e quantitativas. O sujeito é entendido como dado ou pré-concebido, como aquele que profere o conteúdo sem consciência aparente de sua ‘significação profunda’. A AD, ao destacar a importância da ideologia e da história na análise de qualquer texto/conteúdo e questionar os procedimentos tradicionais de obtenção e garantia da credibilidade de uma pesquisa, coloca-se como crítica às bases teóricas sobre as quais se assenta a AC. O sujeito da AD, por sua vez, é constituído por e pelo discurso, mas não se prende plenamente a ele, podendo também transformá-lo. Tal noção de sujeito parece-me mais adequada para explicar como os entrevistados em minha pesquisa se apropriam de discursos outros, dando-lhes significados próprios, singulares. 79
(questões metodológicas), mas também um conjunto de assunções metateóricas e teóricas (NOGUEIRA, 2008: 236).
Alguns conceitos importantes foram adiantados aqui. O primeiro é o conceito de discurso, entendido não como língua, texto ou fala, mas como um conteúdo exterior à estrutura linguística – mas que necessita dela para ter existência material – e que remete a questões não de ordem estritamente linguística, mas de ordem sócio-histórica. O discurso é o objeto de estudo da AD (FERNANDES, 2008). O sujeito e seu discurso, sob a perspectiva da AD, não são apenas singulares como também apontam para a ordem do coletivo, do político. À vista disso, a leitura do texto/discurso deve dar-se em paralelo com a leitura do (con)texto no qual o primeiro se insere, o que significa, entre outras coisas, considerar todo o processo de desenvolvimento da pesquisa de campo, antes e depois dos contatos com os sujeitos, voltar-se à literatura especializada e rever as interpretações ou hipóteses levantadas. O sentido ou efeito de sentido diz respeito à variedade de significados que um termo ou vários termos podem assumir, dependendo de quem, onde e quando os profere. Pêcheux (1975/2009: 146) afirma: ... o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe “em si mesmo” (...), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (itálico do autor)
Os termos conjugalidade e casamento, por exemplo, assumem sentidos variados entre os sujeitos entrevistados em minha pesquisa. Estas variações apontam para inserções socioculturais diferentes e, por extensão, experiências afetivas e sexuais, de relacionamento e de gênero também diferentes. Os conceitos a seguir, também utilizados em AD, serão apresentados por sua utilidade enquanto ferramenta de análise da presente pesquisa e de leitura do sujeito falante. O conceito de formação discursiva, apresentado por Foucault em seu livro A arqueologia do saber (1969/1987), remete a um conjunto de regras anônimas e de práticas sociais que, no tempo e no espaço, definem as funções e condições de exercício da função enunciativa. Em outros termos, a formação discursiva envolve um complexo sistema de enunciados submetidos a estratégias variadas de enunciação; permite, desse 80
modo, investigar a possibilidade de um discurso, ou como e por que um enunciado obtém espaço em um lugar e uma época específica, ou como e por que, por exemplo, determinados enunciados alcançam o status de ‘ciência’ e outros não (CASTRO, 2009; FERNANDES, 2008; ARAÚJO, 2007). Os enunciados, termo também apropriado pela AD a partir de contribuições foucaultianas, remetem aos elementos integrantes das unidades discursivas e cuja regularidade aponta para a existência de uma ou várias formações discursivas (FERNANDES, 2008). O termo interdiscurso ou interdiscursividade refere-se ao entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de diferentes tempos e espaços, no interior de uma formação discursiva (FERNANDES, 2008). Conforme sugere Foucault (1969/1987), um discurso é constituído de enunciados que o antecedem e o sucedem, de modo que uma formação discursiva abriga elementos não necessariamente concordantes, assim como uma formação pode ser atravessada ou constituída por elementos de outras. Por conseguinte, os efeitos de sentido dos enunciados podem ser variados, dependendo de sua organização e apropriação, o que sugere, segundo Pêcheux (1983/2012), a dessubjetivação da linguagem uma vez que o sentido de um texto não pode ser declarado a priori pelo seu autor. Pêcheux (1975/2009) argumenta que é próprio da formação discursiva dissimular, no efeito de sentido dos enunciados, a possibilidade de contradição interdiscursiva e a historicidade dos enunciados, gerando a ilusão de que o interdiscurso seria o ‘discurso do sujeito’. Em algumas discussões sobre a noção de casamento em minha pesquisa de campo apareceram enunciados contraditórios sobre o ato de casar-se, que, não obstante, ainda atendiam a uma ideia geral – e tradicional – de casamento. Um exemplo foi a fala de Fernanda, que num primeiro momento afirmou já se considerar casada, mas num segundo momento conclui que a oficialização da união é necessária para reafirmar, objetiva e subjetivamente, seu status de ‘casada’. Diferentes enunciados, mesmo que aparentemente destoantes, operam sob a égide da interdiscursividade de modo a referendar uma mesma categoria, no caso, a categoria ‘casamento’, que não é originária de Fernanda, mas é (re)produzida como sua. Pêcheux (1975/2009: 153) define intradiscurso ou discurso-transverso como
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... o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de “co-referência” que garantem aquilo que se pode chamar o “fio do discurso”, enquanto discurso de um sujeito). (itálicos do autor)
Em outros termos, o intradiscurso remete à aparente ‘condução’ ou ‘coerência’ de um discurso. Esta ‘coerência’, segundo o autor, seria garantida e caracterizada pelo estabelecimento de elementos interdiscursivos como ‘pré-existentes’ ou ‘préconstruídos’. A articulação desses conceitos no interior de uma análise do discurso leva Pêcheux a elaborar uma importante reflexão sobre a constituição do sujeito. O intradiscurso – o ‘fio do discurso’ – opera de modo a dissimular o interdiscurso, que passa a ser apropriado pelo sujeito – um efeito do intradiscurso – como ‘seu’. Este, por sua vez, para garantir sua condição de sujeito falante, tende a dissimular o interdiscurso no interior do intradiscurso. Pêcheux (1975/2009: 154-155) afirma: ... o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como “sujeito falante”, com a formação discursiva que o assujeita. Nesse sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto “fio do discurso” do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma “interioridade” inteiramente determinada como tal “do exterior”. E o caráter da forma-sujeito (...) consistirá precisamente em reverter a determinação: diremos que a forma-sujeito (pela qual o “sujeito do discurso” se identifica com a formação discursiva que o constitui) tende a absorveresquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro “já-dito” do intra-discurso, no qual ele se articula por “co-referência”. Parece-nos, nessas condições, que se pode caracterizar a forma-sujeito como realizando a incorporação-dissimulação dos elementos do interdiscurso: a unidade (imaginária) do sujeito, sua identidade presente-passada-futura encontra aqui um de seus fundamentos. (itálicos do autor)
Em outro trecho, Pêcheux (1975/2009: 150) afirma: ... a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (...) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso como do próprio sujeito. (itálicos do autor)
Por esse motivo, o autor afirma que, para pensar-se uma teoria do discurso, não se deve considerar o sujeito como ‘já dado’, mas como um sujeito-efeito. Todo e qualquer 82
‘ato originário’ do sujeito seria, na verdade, efeito da determinação do interdiscurso como intradiscurso. A identificação do sujeito com o outro do discurso – termo usado por Pêcheux para referir-se à esfera histórico-social – é também uma identificação com ele mesmo. Não obstante, se o discurso abriga contradições, o sujeito também as expressa, as (re)produz. Fernandes (2008) argumenta que é através dos discursos materializados na e pela língua que é possível vislumbrar os deslocamentos, movências e a pluralidade constitutiva do sujeito. Analisar um discurso requer desvelar as contradições que asseguram a aparente coerência dos discursos e práticas dos sujeitos. Em toda e qualquer formação discursiva, as contradições representam uma coerência visto que desvelam elementos exteriores à materialidade linguística, mas inerentes à constitutividade dos discursos e dos sujeitos. Os sujeitos são marcados por inscrições ideológicas e são atravessados por discursos de outros sujeitos, com os quais se unem, e dos quais se diferenciam (FERNANDES, 2008:56).
Ademais, como a estrutura do discurso é aberta e instável, passível de reestruturações, devido às muitas e múltiplas possibilidades de (re)organização dos enunciados e seus efeitos de sentido, o sujeito também o é. As identificações com o discurso sugerem possibilidades variadas. Pêcheux (1983/2012: 56-57) argumenta: Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (...) de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sóciohistórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido performativo do termo – isto é, no caso, por um “erro de pessoa”, isto é, sobre o outro, objeto da identificação. (itálico do autor)
Podemos levantar algumas afinidades das proposições de Pêcheux com as de Foucault e Butler, em especial no aspecto performativo da linguagem, do discurso e do sujeito. O sujeito, enquanto efeito de processos discursivos, opera de modo a (re)produzir o discurso, podendo também deslocá-lo. Do mesmo modo, o discurso abriga possibilidades de (re)apropriação à medida que os enunciados podem tornar-se
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sempre outros, assumir efeitos de sentido variados, mesmo que sob um regime de materialidade repetível. Podemos depreender, pela leitura desses diferentes autores, que o sujeito e o discurso são instáveis, ou antes, performáticos uma vez que a (re)produção é sempre iterável. As práticas e discursos dos sujeitos no tocante às suas relações afetivo-sexuais, portanto, mesmo que previamente determinadas ou atravessadas pelas linhas e regulações de gênero, sexo e desejo, estão abertas às muitas e múltiplas possibilidades e especificidades de cada história particular. Uma análise de suas falas sobre as histórias a dois, nesse sentido, requer uma postura que não considere tais histórias como reproduções acríticas ou subversões a priori das regulações de gênero, sexo e desejo; antes, envolve a compreensão de que as histórias conjugais apontam para o jogo de verdade do sujeito enquanto complexa relação – eventualmente, permeada de contradições – com as referidas regulações. Constroem-se, desse modo, possibilidades conjugais. Outros conceitos em AD ressaltam o aspecto plural do sujeito e seu discurso. Entre eles estão os conceitos de dialogismo e polifonia, originários de Mikhail Bakhtin. Enquanto o primeiro refere-se a uma condição constitutiva da linguagem – o estabelecimento de relações entre o eu e o outro nos processos discursivos, podendo gerar efeitos no eu e no outro –, o segundo remete à presença de diferentes discursos/vozes apropriados pelo sujeito. O dialogismo, em outros termos, é um dispositivo discursivo a ser operado pelo sujeito polifônico. O conceito de heterogeneidade, originário de Jacqueline Authier-Revuz e que condensa os dois conceitos anteriores, sugere a constituição plural e diversificada do sujeito em sua relação com o discurso. A heterogeneidade se divide em constitutiva, na qual a presença do outro é velada, e mostrada, na qual a presença do outro é explicitada pelo sujeito, seja por citações diretas ou indiretas etc. (FERNANDES, 2008) A leitura do corpus obtido em minha pesquisa de campo recorreu aos pressupostos básicos da AD, aqui apresentados, de modo a utilizá-los como ferramentas metodológicas de análise. Primeiramente, foram realizadas leituras flutuantes do corpus, seguidas de leituras profundas, caracterizadas pela separação do material em recortes ou fragmentos que tivessem relação com o todo que constitui o material e com os objetivos da pesquisa. 84
Por fim, os recortes foram analisados em diálogo com as reflexões teóricas desenvolvidas nesta pesquisa.
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CAPÍTULO 5 Pesquisa de campo: as conjugalidades falam
Em seu livro A Experiência Etnográfica (1994/2011), o antropólogo e historiador James Clifford realiza uma crítica do que ele chama de autoridade etnográfica. A partir da releitura de estudos etnográficos de diferentes épocas, o autor aponta que a autoridade daquele que observa, vive e escreve sobre uma cultura estrangeira foi construída ao longo do tempo com vistas à universalização e proeminência de um discurso em detrimento de outros. Como contraponto a outros estilos de processo etnográfico, o autor propõe uma autoridade polifônica22, segundo a qual o texto etnográfico é construído a partir de diferentes olhares e colaboradores; tratar-se-ia de um texto aberto, que permitiria diferentes leituras e apropriações. Clifford (1994/2011: 41) afirma: “Torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência e a interpretação de uma ‘outra’ realidade circunscrita, mas sim como uma negociação construtiva envolvendo dois – e muitas vezes mais – sujeitos conscientes e politicamente significativos.” Foi com esta perspectiva que adentrei o campo de pesquisa. Procurei estar ciente de que toda construção de conhecimento deveria dar-se em diálogo constante com os sujeitos envolvidos; o texto deveria ser escrito em conjunto. Desse modo, elaborei um roteiro de entrevista com perguntas abertas e diretas, que convocavam os sujeitos a falar sobre assuntos variados a partir de suas histórias individuais e conjugais; procurei ficar atento a possíveis dados de análise a partir dos primeiros contatos e das situações de entrevista, registrando tudo em um diário de campo e apresentando esses dados preliminares aos sujeitos, construindo, desse modo, uma leitura conjunta da conjugalidade homossexual. Tal leitura conjunta parece-me mais adequada para a presente pesquisa uma vez que deixa em aberto as possibilidades de ação no interior dos processos regulatórios; em outros termos, procurei adotar uma perspectiva colaborativa da construção de
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Embora o autor não abra mão, é importante ressaltar, dos outros estilos de processo etnográfico, que ele nomeia como experiencial, interpretativo e dialógico. Para aprofundamento, consultar Clifford (1994/2011). 86
conhecimento para pensar as performatividades e artes da existência no exercício da intimidade e da conjugalidade homossexual.
Contatos iniciais
Algumas semanas antes da primeira entrevista, comentei com alguns amigos e conhecidos sobre a procura de sujeitos para minha pesquisa. Estes acionaram seu network e dentro de poucos dias começaram a surgir pessoas interessadas em conceder entrevistas. A primeira delas foi Andiara 23, que convive com outra mulher. Passaram-me o link de seu perfil no Facebook. Adicionei o contato e começamos a conversar. Todas as conversas aqui apresentadas, exceto as entrevistas, ocorreram na rede social citada. De imediato, pude perceber que Andiara é militante ou, pelo menos, simpatizante à causa LGBT, por conta de suas postagens no Facebook. Após alguns dias, ela me passou quatro perfis de pessoas que, segundo ela, estariam disponíveis para conceder entrevista (elas com seus companheiros/companheiras). Consultei os perfis e vi que se tratavam também de militantes ou simpatizantes à causa LGBT. Este primeiro contato com o campo trouxe-me alguns dados para análise, assim como algumas hipóteses a serem levantadas. Em primeiro lugar, a network do primeiro contato – pelo menos a network levantada por ela, para fins de pesquisa – parece ser predominantemente composta de gays e lésbicas militantes. Acionando-se uma militante, esta acionou outros. E esses outros, assim como Andiara, prontamente atenderam meu pedido. É possível que essas pessoas tenham se disposto a conceder entrevista justamente por conta de sua implicação política em questões pertinentes aos LGBTs.
Conceder
uma
entrevista,
contribuindo
para
uma
pesquisa
sobre
homoconjugalidade é, de certo modo, dar visibilidade ao tema. Pareceu-me que os potenciais sujeitos da pesquisa entendem que contribuir para a mesma é também uma forma de militância. Outra hipótese que poderia levantar é a busca dos sujeitos por inteligibilidade de suas relações afetivo-sexuais por meio da pesquisa. Como discutido no texto teórico, o 23
Todos os nomes e referências que possam identificar os sujeitos da pesquisa foram trocados ou omitidos. Os trechos em itálico referem-se sempre, neste capítulo, às falas dos entrevistados. 87
histórico da homoconjugalidade aponta para uma busca gradual por relativa facticidade no meio social e cultural. Colocar a relação conjugal no discurso é, de certo modo, torná-la inteligível, torná-la possível. Todavia, fiquei preocupado com a especificidade desse conjunto de sujeitos elegíveis para a entrevista. Todos são militantes ou simpatizantes à causa LGBT; suspeitei da possibilidade de a participação ou sensibilização política colocar a discussão sobre a conjugalidade em segundo plano – suspeita que se confirmou na entrevista com o casal Marcelo e Maurício, conforme apresento adiante. Era preciso variar os elementos do conjunto, incluindo, por exemplo, sujeitos não ligados a movimentos sociais. Mediante esta necessidade, deixei para entrar em contato com esses casais posteriormente. Nesse meio tempo, um conhecido falou de uma amiga da faculdade de Psicologia, Joana, que eu conhecia apenas de nome. Ela estaria namorando uma menina chamada Rebeca. Este conhecido entrou em contato com Joana, que logo me procurou, também por Facebook. Expliquei a pesquisa e ela aceitou participar. Interessante notar que, ao se apresentar e informar o que já sabia a respeito da pesquisa (um estudo sobre conjugalidade gay e lésbica), ela se declarou bi, atualmente namorando uma menina. Na entrevista, relembrei essa fala e ela perguntou, aparentemente surpresa, porque teria dito algo fora de contexto. Respondi que, na conversa pelo Facebook, ela estaria apenas colocando-se como elegível para a entrevista. Este ponto será retomado adiante. Antes de apresentar a análise da entrevista do primeiro casal, cabe fazer uma breve discussão a respeito de algumas especificidades do que se convencionou chamar de homossexualidade feminina e conjugalidade lésbica. Em sua pesquisa sobre casais de mulheres na cidade de Porto Alegre, Meinerz (2011: 26) pondera os silêncios, ausências e discrições sobre a homossexualidade feminina na literatura especializada, podendo ser entendidos “como um indicador de que as ferramentas teóricas construídas nas últimas décadas foram menos operativas para compreender as relações sexuais e afetivas estabelecidas entre mulheres”. Desse modo, a autora se propõe a ampliar o escopo conceitual e metodológico de modo a incluir as relações que tentam escapar de categorizações já sedimentadas, como a de ‘homossexualidade’. Tal proposta acaba por colocar em discussão, de um lado, análises 88
das relações entre mulheres que assumem polaridades próprias das relações entre homens, tomando-os como referência, como o faz Heilborn (2004)
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, e outras que
tendem para a pressuposição de uma ‘essência’ lésbica, como o faz Rich (2010/1980) ao versar sobre a existência lésbica. A invisibilidade e intraduzibilidade das experiências homoeróticas femininas, segundo as leituras de Meinerz (2011), estariam relacionadas a uma dificuldade de colocá-las no nível do discurso, do factível, do inteligível. A homossexualidade feminina seria incompreensível justamente porque dela não se fala. Por um lado, expressões e desejos homoeróticos femininos careceriam de referenciais simbólicos, o que refletiria um impedimento ao reconhecimento e legitimidade social e cultural; por outro, encontrariam relativa liberdade em meio a esta não nomeação, embora não escapem do dispositivo de sexualidade, estando, portanto, em constante luta com os processos de normalização. Meinerz (2011), todavia, acrescenta, a partir de outros autores, que o silêncio em torno da homossexualidade feminina é relativo e possui certa engenhosidade. Trata-se, portanto, de ouvir o silêncio e olhar para além da ausência e da invisibilidade. Ao mesmo tempo, de atentar para o ruído e as estratégias pelas quais a homossexualidade feminina tem sido, de forma mais efetiva, colocada em discurso. A equação visibilidade/invisibilidade amplia o escopo da discussão sobre a temática, na medida em que possibilita uma abordagem dos desejos, das práticas sexuais e das parcerias afetivo-sexuais que podem ou não receber visibilidade pelas mulheres, de diferentes formas, em momentos distintos de sua trajetória e em relação a determinados interlocutores (Ibid.: 48).
Mediante esta ponderação, a autora visualiza, de um lado, o complexo jogo de visibilidade/assunção da homossexualidade e da relação afetivo-sexual e, de outro, o complexo jogo de verdade com o qual se depara o sujeito no exercício de sua sexualidade. Os achados de Meinerz (2011) são consideravelmente semelhantes aos que encontrei na análise da entrevista de Joana e Rebeca, que apresentarei a seguir.
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Meinerz (2011) questiona a dicotomia sexo x afeto, levantada por Heilborn (2004) para explicar as conjugalidades gays e lésbicas. Segundo esta última, o casal de mulheres, diferentemente do de homens, estaria mais próximo do eixo afeto em detrimento do sexo. Meinerz (2011: 125) argumenta, a partir de sua etnografia, que “a referência ao investimento afetivo não desvaloriza a dimensão erótica da relação. Pelo contrário, a valorização do estabelecimento de vínculos afetivos é significada pelas mulheres como condição privilegiada para o desenvolvimento qualitativo das relações sexuais. As parcerias homoeróticas femininas possibilitam, assim, um rompimento com a dicotomia sexo x afeto pressuposta em diversas análises sobre relações heterossexuais e homoeróticas masculinas.” 89
Joana e Rebeca
Combinei de encontrar Joana em sua casa. Cheguei a Botafogo por volta das 10h. Quando entrei, Joana recebeu-me simpaticamente. Na sala, estava sua namorada, Rebeca, sentada no sofá lendo uma revista. Vestia-se formalmente e, segundo ela, estava acordada desde cedo e em horário de trabalho. Cumprimentou-me em tom sério. Esta seria a primeira entrevista piloto. Antes de iniciarmos a entrevista, Joana ofereceu água e conversamos, nós três, sobre assuntos variados. Rebeca tem 20 anos, estuda Administração e mora com a mãe na Tijuca, e Joana, 23, veio de uma cidade de menor porte e hoje divide o apartamento em Botafogo com seus dois irmãos, que vieram, assim como ela, para cursar uma faculdade. Perguntei, conforme estabelece o roteiro de entrevista, se elas gostariam de realizar essa entrevista em conjunto ou individualmente. Elas estranharam a pergunta, pois o gravador já estava ligado, elas já haviam assinado o termo de consentimento livre e esclarecido e já se encontravam preparadas para a situação de entrevista. Escolheram concedê-la em conjunto. Situação semelhante aconteceu no segundo casal entrevistado, também constituído por mulheres, e concluí que a pergunta estava sendo colocada num momento inadequado. Entendi que a proposição de liberdade na escolha do formato da entrevista (se individual ou em dupla) deveria fazer parte da abordagem inicial, deixando em aberto, inclusive, a possibilidade de entrevistas com apenas um dos componentes da relação.
Bi, atualmente namorando uma menina
Em sua etnografia, Meinerz (2011) aponta como as relações e suas componentes muitas vezes resistiam à classificação. As possibilidades afetivas e sexuais no campo pesquisado pela autora revelaram orientações movidas mais por expectativas de gênero e gosto de classe do que por características biológicas ou preferências por determinadas práticas sexuais. Tal fato levou Meinerz a relativizar conceitos caros à literatura especializada como hetero e homossexualidade. No caso de Joana e Rebeca, tal resistência à classificação aparece de modo significativo tanto em suas histórias individuais quanto na história da relação. 90
Joana sempre se relacionara com homens, chegando a ter um namoro que durara mais de dois anos. Contou que, quando se mudou para o Rio, começou a sair com frequência para diferentes lugares, na companhia de amigas de sua cidade natal, que também haviam se mudado para estudar. Encontrou no Rio de Janeiro uma liberdade que não possuía em sua cidade natal. Joana: Eu sempre fui muito regradinha. E aí, quando eu vim pro Rio, eu comecei a ter uma liberdade muito grande por não morar perto deles [meus pais]. Assim, por mais que minha mãe me ligasse sempre, é muito mais fácil de falar “to aqui, vou pra casa de fulano” e sair e tal. Então, eu comecei a me rebelar um pouco, digamos assim, porque na época nada mais era do que me separar um pouco dos meus pais, né. Entrevistador: E sair do interior também, né. Joana: É, e tendo a cidade grande, conhecer gente nova, né... É todo um outro contexto, assim... E aí eu acho que isso tudo acontecendo, e eu querendo coisas novas, saindo mais, minha mãe fica “Ah, por que você ta saindo todo dia?” Sei lá! Nem era tanto, mas era uma coisa que eu não tava acostumada.
Em outro momento, Joana acrescenta que a vinda para o Rio de Janeiro colaborou em muita coisa. Eu fico pensando se eu tivesse em [minha cidade natal]... Sei lá. Se eu teria vivido (...) ou se eu seria hetero até hoje... A importância da mudança para as metrópoles na questão da sexualidade é apresentada por Guimarães (2004), entre outros autores que discutem Antropologia urbana. Com base em sua etnografia sobre um grupo de amigos e suas redes de sociabilidade no Rio de Janeiro, durante a década de 1970, Guimarães aponta que o risco de ‘descoberta’ da homossexualidade seria reduzido diante do anonimato garantido pela cidade grande. A solução para a livre expressão da homossexualidade, segundo os colaboradores de Guimarães, seria a mudança para o Rio de Janeiro. A autora afirma: “A mudança definitiva representa um novo contexto e uma nova situação, levando a uma reavaliação daquelas relações sociossexuais anteriores, segundo critérios de seleção e aprovação próprios à vivência no Rio de Janeiro” (Ibid.: 61). Embora a autora considere que a mudança para a cidade grande colabora para uma releitura do sujeito de suas experiências anteriores, como parece ter acontecido na história de Joana, um ponto de sua análise é inadequado para a presente análise: diferentemente dos sujeitos da pesquisa de Guimarães, Joana não teria planejado a mudança para o Rio com vistas à maior liberdade de sua ‘homo’ ou ‘bissexualidade’. A questão da definição ou classificação da orientação sexual já parecia ser uma questão 91
para Joana, uma curiosidade, que só pôde ser melhor esclarecida para ela quando passou a morar no Rio. Sua vinda para o Rio de Janeiro, desse modo, não atendeu a um ‘desejo’ de viver livremente a sexualidade. Viver a sexualidade teria sido a consequência de sua vinda ao Rio e não o motivo. Teria sido a liberdade que a cidade grande oferece, além das companhias e festas alternativas – festas não propriamente gays, segundo Joana –, que teriam permitido a ela reconsiderar sua heterossexualidade. A curiosidade fora aguçada pela cidade e só poderia ser atendida pela própria cidade. Quando estava preste a iniciar um novo namoro heterossexual, Joana foi a uma festa, onde conheceu Rebeca. Joana: Daí a minha sensação era... Eu tava ficando com esse menino fazia, sei lá, pouco tempo... Papo de um mês, assim... Só que a gente tava ficando muito sério e eu vi que a gente ia namorar, sabe? E eu já vinha com uma curiosidade de ficar com uma menina, mas nunca tinha ficado antes. Ela foi a primeira. Entrevistador: Ela foi a primeira. Joana: É. E aí, eu acho que, depois, analisando os fatos, eu acho que eu fui pra essa festa tipo, “é hoje... Eu to quase namorando, então, é hoje. Eu tenho que pegar uma menina porque senão eu vou começar a namorar de novo e não vou ter essa experiência e tal.” E daí não deu outra! Eu comecei a namorar três dias depois (...) com esse menino.
Em determinado momento da entrevista, comentei sobre o primeiro contato de Joana e sua apresentação, em nossa conversa pelo Facebook, como bi, atualmente namorando uma menina. Em seguida perguntei se ela se considerava bissexual. Ela respondeu: Eu acho que sim. É uma coisa que é difícil pra mim definir isso. Foi difícil por eu só ter ficado com a Rebeca efetivamente. Eu tive três namorados antes de conhecer ela. E sempre tive bem com homens, assim, não foi uma coisa de “Ai, faltava alguma coisa”. Só que eu acho que com todo esse processo de eu vir pro Rio e conhecer coisas novas e começar a abrir a minha cabeça, eu comecei a ter curiosidade. E, enfim, conheci a Rebeca e me apaixonei e tudo, então, ser hetero já era uma coisa que tava excluída. Não era. Só que eu hoje, tando com ela, eu sinto atração por outros homens e por outras mulheres numa medida que é mais ou menos equilibrada, assim... Sabe? Então, não sei... Eu me considero bi hoje.
Enquanto analisa a história de sua sexualidade, Joana aponta para as exclusões próprias à definição de homossexualidade, definição esta abraçada pelas agendas LGBT na formulação de demandas: 92
...eu acho que o meu processo foi diferente do que normalmente se associa a pessoas homossexuais. Porque... Qual é a maior defesa, enfim, quando são direitos LGBT? Qual é a maior defesa? “Ah, nós nascemos assim, nós somos assim.” Enfim... Que é uma coisa que eu acho realmente muito válida, que abarca muita gente, mas que eu não me identifico. Eu não sei se eu nasci assim. Tipo, eu acho que foi em parte uma escolha minha. Eu escolhi, talvez... Talvez eu não tenha escolhido me apaixonar, mas eu escolhi ter essa experiência, sabe? Então, contar um pouco de como foi pra mim é ampliar as formas de ser, sabe? Levar outras formas pras pessoas. Poder expandir essa noção do que é, de como é, de como acontece...
Esta fala de Joana insere-se no momento em que ela argumenta sobre sua necessidade de falar para os outros sobre o que é namorar outra mulher, como uma forma de colaborar com o que ela chama de militância micro, circunscrita ao cotidiano. Ela diz: Assim, quando a pessoa tá perguntando de boa mesmo, de curiosidade, eu respondo no maior prazer. Assim, “pode me perguntar o que você quiser, quando começou, assim, sei lá!” Desde que não seja invasivo e preconceituoso.
Todavia, ao longo da entrevista, é notável que Joana fala, tanto para o entrevistador quanto para seu entorno, muito mais de sua sexualidade do que Rebeca, que prefere não falar muito sobre, pois sua vida afetiva e sexual não é, como ela mesma diz, um evento para os outros. Suspeito que a necessidade de Joana em falar sobre sua sexualidade reflita uma dificuldade de entendê-la, ou antes, de enquadrá-la; colocá-la em discurso parece ser o melhor caminho para contornar essa dificuldade. Desse modo, é provável que quando Joana diz que contar um pouco de como foi pra mim é ampliar as formas de ser, ela esteja se referindo não apenas às formas de ser dos outros como também às suas próprias. Em certo momento da entrevista, Joana informa que suas ‘dúvidas’ quanto à sexualidade persistiram mesmo depois de iniciado seu relacionamento com Rebeca. Quando perguntadas sobre quais seriam as dificuldades atuais da relação, Rebeca falou dos problemas que porventura enfrentaria para constituir uma família com alguém do mesmo sexo. Joana, por sua vez, respondeu: Eu acho que eu passei um pouco por isso e acho que agora ta ficando mais tranquilo. Desde o início essa questão de “Eu sou bi”, “Eu não sou bi”. “Será que é isso mesmo que eu quero?” Acho que mais pra ela [Rebeca] entender isso em mim, acho que foi difícil pra (...) entender, assim. Por muito 93
tempo. Volta e meia surgia esse assunto de “Será que você quer mesmo estar comigo? Será que na real você...” Eu acho que no início foi, inclusive, uma das relutâncias dela querer estar comigo. “Será que é isso? Será que você não vai encher o saco e querer voltar a estar com um homem?” Mas... E acho que por muito tempo isso permeia um pouco.
A fala de Joana parece contraditória uma vez que, de um lado, ela pontua que sua aparente ‘indecisão’ a respeito de sua sexualidade era mais presente no início do relacionamento e, de outro, reconhece que essa questão hora e outra vem à tona. Importante relembrar que sua resposta foi dada a uma pergunta sobre a atualidade da relação. Rebeca também não tem uma palavra final a respeito de sua identidade sexual, embora isso não pareça inquietá-la. Quando perguntada se se considerava lésbica, respondeu: Não. Eu me considero vivendo. Joana riu diante dessa resposta e disse: Eu nunca ouvi essa definição. Acrescentou que, quando se conheceram, Rebeca teria se identificado para ela como bi quase lésbica. Rebeca, por sua vez, explicou: Se eu tiver vontade... Eu tenho uma vontade maior de (...) ficar com mulher, mas ao mesmo tempo eu também tenho vontade de ficar com homens e isso pra mim é a mesma coisa. Não que seja a mesma coisa, mas não tem um peso maior do que o outro. Só que, assim, depende do meu humor, como eu to, como tá a minha vida, do que eu to sentindo, do que eu to deixando de sentir. Eu prefiro não definir nada. Eu acho que... Se eu sentir atraída... Eu acho que no momento que eu to normal e às vezes eu to atraída por um cara e pode ta rodeado de mulher...
Como vemos, as identidades sexuais de Joana e Rebeca parecem ‘indefinidas’. Ademais, esta ‘indefinição’ do desejo sexual – se por homem, por mulher ou ambos – parecem permear a relação, tornando-se motivo de surpresas e inseguranças no exercício da conjugalidade e da intimidade. Considero importante relembrarmos a discussão de Butler (1990/2012) a respeito da matriz de gênero e da performatividade e de Foucault (1984/2011) a respeito do cuidado de si. A mudança para o Rio de Janeiro permitiu a Joana vivenciar experiências que antes não eram visadas. A variada rede de sociabilidade que ela desenvolveu e que incluía o contato com o diferente e o novo, além da relativa liberdade de expressão sexual, permitiu a Joana repensar seu lugar na trama dos desejos. Ela não apenas ressignificou seu passado, no que diz respeito à sua sexualidade, como também se permitiu acionar performatividades outras – como frequentar lugares alternativos, 94
escolher ficar com uma menina. Ressignificar o passado e acionar performatividades outras sugerem uma via de mão dupla. Tais performatividades apontam para um trabalho de si para consigo e vice-versa, um ‘experimentar’ que – não sem tensões – deixa ao largo a necessidade de definições e categorizações. Nota-se, em primeiro lugar, que a experiência assume lugar central no direcionamento das múltiplas possibilidades do arranjo gênero, sexo e desejo. Em segundo, que o não enquadramento aponta para certa liberdade no exercício da sexualidade e do afeto, em cujo horizonte se visualiza, todavia, um aparente mal estar. No caso de Joana, não é o ato de promover um pequeno deslocamento na matriz de gênero que lhe causa desconforto; ela não se ‘incomoda’ em ser ou estar bissexual. É a não categorização, a não definição que, embora represente liberdade, parece inquietá-la. A partir de Butler (1990/2012), considero que, se a inserção na matriz de gênero de configuração heteronormativa resulta em inteligibilidade de si e da relação de si com outro, é de esperar que o sujeito que desloca tal matriz esteja, de alguma forma, às voltas com isso. Esse é o caso de Joana, que a todo o momento, durante a situação de entrevista, coloca a questão do ‘definir-se’ ao mesmo tempo em que deixa, à primeira vista, o ato de ‘definir-se’ em suspenso. Ademais, se considerarmos o gênero como unidade de experiência que abriga não apenas o gênero como também o sexo e o desejo, é possível concluir que o aparente dilema de Joana remete ao anseio de uma coerência estável entre esses três elementos – o que é exigido pela matriz de gênero. A bissexualidade não parece ser uma questão uma vez que ela pressupõe uma ontologia, uma ‘essência’ de gênero, assim como a hetero e a homossexualidade. Como sugerido, é a não definição que inquieta Joana, é o que afeta sua busca por inteligibilidade. Seu discurso é dotado de uma interdiscursividade sobre a “metafísica ser/não ser” – termo cunhado por Paiva (2007: 28), que ela mesma tenta desvelar. E um dos efeitos de sentido possíveis desse (re)arranjo discursivo em torno da referida metafísica – o efeito de sentido diante de quem entrevista, observa e analisa – é a percepção de uma relativa busca por inteligibilidade, sendo esta resultante da (re)organização dos elementos da matriz de gênero. E esta busca por inteligibilidade, como mostrarei adiante, também está presente na história da relação.
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Rebeca e Joana se conheceram em uma festa, há aproximadamente dois anos. No dia seguinte à festa, Rebeca a encontrou no Facebook e a partir de então passaram a se falar, eventualmente. Joana iniciara um namoro heterossexual, fato que parece ter impedido qualquer aproximação para além do virtual. Não obstante, flertes eventuais aconteciam nas conversas pela rede social citada. Quando Joana terminou o namoro, as conversas tornaram-se mais frequentes. Combinaram de sair algumas vezes. Nesse meio tempo, as amigas de Joana a interrogavam sobre a relação, revelando certa incompreensão e intraduzibilidade da homossexualidade feminina, tratando-a como uma expressão ‘confusa’ de amizade. Joana: E as minhas amigas perguntavam “Você conversa com ela igual você conversa com uma amiga?” “Não, gente, eu converso com ela igual com alguém que eu quero pegar.” Não é uma conversa normal. É uma conversa com flerte e tal.
Em outro momento, Joana conta que, em um estágio profissional, suas colegas a indagavam: No início ficavam “Ah, tem certeza que não é uma amiga sua que você gosta muito?” E eu tipo “Não, gente, eu to namorando ela há um ano!” Eu ouvia essa frase... Ouvia “Ah, mas você não sente falta de nada?” Ah, sei lá... Várias dessas coisas assim...
Todavia, como dissera Joana, sua história com Rebeca é permeada de reviravoltas. Rebeca teria iniciado um relacionamento fechado com uma jovem de outro Estado, mas que depois passou para aberto. A partir daí, a relação entre as duas resumiu-se a idas e vindas, indecisões e receios. Somente após o término de Rebeca, elas passaram a se considerar em relação de namoro. Elas pontuaram que, de início, acordaram em viver um relacionamento aberto, que logo assumiu a configuração fechado por conta dos ciúmes tanto em relação a homens quanto a mulheres.
Eu falo e eles não ouvem
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Em determinado momento da entrevista, Rebeca fala de um relacionamento anterior, quando adolescente, e que terminara de um modo abrupto, por conta da não aceitação familiar. Rebeca: Eu meio que fiquei um ano, quando a gente terminou, meio que esquisita porque eu gostava dela, mas eu sabia que não ia dar certo. Porque eu ia voltar tendo toda a pressão novamente e eu não ia conseguir viver e tal. E meio que a partir desse namoro eu criei tipo uma capa, sei lá, uma parede contra me envolver. Não sei se foi conscientemente ou inconscientemente, mas aí eu acabei, a partir daí, não me envolvendo com ninguém mais. (...) E ai, nesse... Antes de eu conhecer ela [Joana], um ano antes, eu tava meio que me formando no colégio e tal, meio que pra entrar na faculdade, eu viajei e eu conheci muita gente diferente. E eu meio que, tipo, eu comecei, tipo, “cara, to fechada na vida e quem tá sofrendo sou só eu”, sabe? Porque a gente não sentir também é sofrer. E aí eu resolvi também tentar me abrir e tal, mas ao mesmo tempo já tinha uma questão que vinha de tempo de eu ta fechada, então... Mesmo quando a gente [Joana e eu] começou a ficar junto, “ta, eu quero tentar me abrir”, mas ao mesmo tempo eu tinha uma barreira que ainda tava lá e tal. Então, acho que essa foi uma questão maior.
Rebeca mostra, nesse trecho, como a não aceitação e todas as cobranças daí advindas terminaram por ‘bloquear’ seu investimento em uma nova relação a dois. Assim como Joana, Rebeca precisou ter um momento de contato com a diferença para então refletir sobre suas escolhas. Ela também frisou que seu relacionamento com Joana a ajudou a lidar com sua característica de pessoa fechada. O namoro com Joana, marcado pela valorização da conversa, do diálogo, teria ajudado Rebeca a amadurecer. Todavia, nesse momento, Rebeca aponta para a importância da família de origem nesse processo. Sua mãe, ao mesmo tempo em que não apoia, aprova o namoro, dando conselhos para a filha com vistas a convencê-la, futuramente, a constituir uma família. Rebeca sugere que o apoio da família, que inclui a abertura para conversar sobre sua relação, possibilita maior qualidade da relação conjugal e da familiar, como um todo. Entrevistador: E a sua família? Ela interfere de alguma forma na relação ou apenas aceita? (...) Entrevistador: Interferir tanto positiva quanto negativamente. Rebeca: Sim, positivamente no caso, porque como eu passei a conversar muito com a minha mãe, então muitas coisas, assim... Que a gente não tem noção de que a gente é filha, a gente não tem noção de que os pais sabem mais coisas e sabem, tipo, dar conselhos mesmo, construtivos. Então, assim, bastante coisa que a gente passou, muita coisa foi dela ter me ajudado e tal... Porque eu sou meio cabeça dura e sem noção com as coisas. Então, acho que interferiu positivamente.
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No caso de Joana, a questão familiar parece mais complexa. Segunda ela, a notícia de que estava namorando outra menina foi recebida pelos pais como um baque extremo. Joana: Eles são super católicos e, enfim, foi muito um baque e eu acho que a minha mãe relaciona muito a essa figura rebelde. “Ah, não, você ta querendo se rebelar e chamar atenção ou sei lá, e daqui a pouco você vai ver que não é isso, que a sua essência não é essa. Não... Enfim... Você vai voltar ao normal.” Sei lá... E aí no início, tipo, beleza, então. “Vocês acham que é isso? Vocês vão ver...” Ainda tive mais algumas conversas com eles e não ia muito além disso e a estratégia que eles tomaram pra si mesmos foi “então eu vou meio que ignorar pra poder conviver com isso”. Não queriam que eu parasse de falar...
Os pais de Joana adotaram, conforme sugere o relato, certa estratégia de silêncio, negação e invisibilidade da vivência homossexual da filha. Se esta atendia ao telefone e dizia que estava com a namorada, a mãe de imediato desligava. O fato do pai de Joana, em uma conversa, ter citado o nome de Rebeca, foi visto como algo incrível. A família de Joana tentava a todo o momento manter a tradição de contar tudo ao mesmo tempo em que procuravam ignorar o fato, retirar deste qualquer realidade. Joana: Então, em algum momento eu ainda falei pra eles: “Vocês querem que eu não fale dela? Que eu finja que isso não existe?” Eles falaram: “Não, porque eu não quero que você se afaste da gente. Fala normalmente.” Só que eu fui vendo que a estratégia deles é fingir que não ouvem (...). Por mais que eles deixem muito claro que me amam como filha e que tudo continua teoricamente igual, mas eu não sinto igual. (...) Não conhecem ela [Rebeca], não querem conhecer e não falam disso. Assunto de tensão, assim, na família. Eu falo e eles não ouvem, assim.
Joana insiste em falar de sua namorada para a família uma vez que pretende fazêlos entender que não se trata de uma fase rebelde; trata-se de uma relação que ela considera legítima e que por isso deve ser incluída nas relações familiares. O desejo de aceitação de Joana, nesse sentido, parece remeter a um desejo de inteligibilidade uma vez que, se a família ‘não ouve’ sobre a relação, é porque ela ‘não existe’. Ademais, o casal entende que aproximar-se de suas famílias com vistas à aceitação é algo que só tem a acrescentar à qualidade da relação conjugal, como sugere Rebeca sobre como o apoio da mãe foi importante para seu namoro. As famílias de origem do casal aqui apresentado, desse modo, independentemente da aceitação, são vistas como referências legitimadoras da relação, seja no sentido de promoverem sua inteligibilidade ou de promoverem sua qualidade. 98
Eu sempre penso duas vezes antes de falar
Joana e Rebeca falaram um pouco sobre situações de assunção da sexualidade ou do relacionamento. Não obstante algumas diferenças de acordo com os espaços frequentados pelas duas – Receba estuda Administração, um curso fechadíssimo, segundo ela, e Joana estuda Psicologia, um lugar super aberto –, ambas passam por situações de cautela e negociação da visibilidade. Enquanto na faculdade a assunção da relação homossexual ocorre sem maiores dificuldades, com algumas surpresas, no local de trabalho torna-se uma questão. Em relação ao seu estágio anterior, Joana contou: Às vezes eu ouvia eles falando com preconceito de... Sei lá... Teve uma entrevista com um garoto que se assumiu gay na entrevista e aí ficavam “Nossa, porque ele é gay!” e não sei o quê. Rolava piadinha super preconceituosa. E eu ali no meio de boca fechada. Aí foi indo e eu comecei a falar pra algumas pessoas. Até porque o meu medo inicial também era: eu to entrando na empresa e eu não quero ser taxada como a sapatão da empresa ou sei lá. Deixa eu primeiro... As pessoas me conhecerem e depois isso é uma coisa a mais, sei lá... E ai comecei a contar pra pessoas mais próximas que aceitaram com um certo susto, mas foram se acostumando.
Rebeca frisou que, em seu atual trabalho, ninguém sabe, não porque ela esconde, mas porque sua vida íntima não é uma questão de trabalho. Joana dá a entender, todavia, que não falar sobre a namorada é algo para ela desagradável, pois exige dela uma constante vigilância sobre o quê, como, quando e com quem falar. Joana: Então, essa tensão ta permeando o tempo todo, mesmo que eu esteja bem e que eu queira assumir pra todo mundo, eu sempre penso duas vezes antes de falar alguma coisa. Nas situações mais esdrúxulas, sabe? Na autoescola, por exemplo. Eu dou uma segurada, que eu não acho legal, na real.
Mesmo tendo assumido a relação nos diferentes espaços e inclusive apresentado a namorada para os outros, Joana frisa que até hoje falar é uma questão. Rebeca frisa que, uma vez que ninguém quer ficar virando assunto, as pessoas de expressões de afeto e sexualidade diferentes tendem à discrição. Gerenciar o ‘armário’, nesse sentido, é para Rebeca uma defesa.
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Eu quero uma festa… Eu quero anel
Em relação à questão da oficialização da união e constituição de família, Joana e Rebeca entendem que esta é uma possibilidade futura, mas já esboçam alguns planos. Na pergunta sobre quais seriam as dificuldades atuais da relação, pergunta na qual Joana falou sobre suas dúvidas em se considerar bissexual e como isso poderia afetar a relação, Rebeca falou de sua expectativa em constituir uma família. Ficou clara a consideração de Rebeca à colocação de sua namorada; todavia, para ela, os desafios daquela relação iam além de uma questão de (in)definição da identidade sexual. Rebeca: É... Acho que essa questão do dilema é outra questão também. Porque, assim, mal ou bem, a gente tem uma vontade de ficar junto mais tarde pela idade que a gente tem, de estar construindo uma família, e eu acho que isso vai virar uma questão grande.
Quando solicitada a esclarecer sua colocação, Rebeca explicou que teme que seu futuro filho sofra constrangimentos por vir de uma família constituída por duas mães. Todavia, em uma conversa com sua mãe, esta teria dito que aceitava sua relação homossexual desde que ela lhe desse um neto. A mãe de Rebeca pontuou que ela não deveria deixar de fazer as suas coisas porque a sociedade vai entender errado. Usou sua própria história como exemplo, alegando que o pai de Rebeca é alguns anos mais novo que ela. Não obstante, constituíram uma relação que, em sua época, os outros poderiam ter entendido errado. Para Joana, o desejo de ter filhos aparece como um plano futuro, algo posterior a morar junto. Quando perguntadas sobre o significado de casar-se, Rebeca respondeu que, para ela, casar é morar junto. Não necessariamente ter nada assinado. Tratar-se-ia de uma questão de compartilhar a vida a dois, na qual o anel nada (...) significa. Quando pontuado que Rebeca estava falando de dois aspectos diferentes do casamento, a saber, a oficialização da união com seus efeitos jurídicos e o ritual com seu significado afetivo e simbólico, ela esclareceu que reconhecia a importância do papel no tocante à segurança financeira que este garantia. Joana apresenta uma resposta um pouco diferente: A gente vai ta junto, vai morar junto e é isso que importa. Eu acho muito estranho quem mora junto e é “casado” entre aspas e fala “é meu companheiro”, não é casado no papel (...). É marido, gente. Ta casado. Pra 100
mim a diferença maior é essa questão legal que eu não entendo tanto. Então, não sei se faço tanta questão também, enfim... Eu não entendo muito bem os benefícios que a gente teria assinando alguma coisa. Mas eu super tenho vontade de uma cerimônia. Eu quero uma festa… Eu quero anel.
Joana olha para sua namorada nesse momento. Eu acompanho a atitude de Joana, indagando Rebeca: O que você acha disso, Rebeca? Uma cerimônia, uma festa de casamento... Joana: Mas você sempre disse… Rebeca: Ah, eu não sei, não sei... Eu por mim eu viveria sem, mas se ela quiser, acho que eu pensaria, não sei. Entrevistador: Se ela fizer questão, você… Rebeca: É, porque eu sou... Ela é uma pessoa... Ela é mais aberta... Eu sou mais reservada. Eu não gosto dessas coisas de ficar aparecendo.
Rebeca esclareceu que não gosta de se expor, por sentir-se vulnerável. Não obstante, Joana demonstrou surpresa com sua resposta. Evidentemente, há uma diferença no grau de valor e simbolismo depositado no ritual do casamento. Nas pesquisas de Defendi (2010) e Castro (2007), alguns sujeitos entrevistados pareciam carecer, segundo os autores, de rituais sociais demarcadores de início e fim da relação, como casamento e divórcio, o que estaria relacionado à inexistência de validação social da relação conjugal. O ritual do casamento, desse modo, mostrar-se-ia de fundamental importância para a promoção da inteligibilidade e aceitação da relação. Nos quatro casais entrevistados em minha pesquisa, o casamento não assumiu esse lugar. Embora os casais sugerissem ou reconhecessem a importância simbólica da celebração da união civil, como o fez Joana, tal evento não assumiu esse papel significativo ou central, demarcador do início da relação, mesmo nas díades legalmente casadas. Os casais procuram criar outros marcos de celebração e visibilização da relação, tendo como exemplos as festas com os amigos em casa e a decisão de alguns em coabitar. Para Pedro e Lucimar, um dos casais gays entrevistados, a conjugalidade é, por definição, viver uma vida em comum, com uma clareza de quem é você e do que você quer daquela relação, o que não sugere a necessidade ou centralidade da celebração pública de um casamento formal. Todavia, como mostrarei nas análises das demais entrevistas, embora o casamento não se coloque como principal ordenador ou fundador da relação conjugal, ele se apresenta como tática necessária para promoção da inteligibilidade da relação, tanto para o entorno quanto para os próprios sujeitos que a compõem. 101
Fernanda e Bruna
Algumas semanas depois da primeira entrevista, outro amigo da faculdade me indicou o segundo casal, constituído por Fernanda, 24 anos, também estudante de Psicologia, e Bruna, 29, estudante de Figurino. Diferentemente do casal anterior, elas coabitam em um apartamento no Méier. Quando cheguei ao local, fui recebido simpaticamente pelo casal. Pela casa havia alguns quadros e peças ornamentais que elas colecionaram de suas últimas viagens. O apartamento, assim como o de Joana e de boa parte das residências de universitários, abrigava poucos móveis. Morava ali apenas o casal, que optou por conceder a entrevista em dupla.
Numa situação menos explicativa, eu falo bi e ponto
Fernanda e Bruna participavam de uma comunidade do Orkut que promovia encontros em locais públicos. Elas se conheceram em um desses encontros e se tornaram amigas. Após alguns meses, começaram a ficar e logo depois a namorar. Bruna frisa que, mesmo com a timidez em tomar a iniciativa, ela sabia que ambas eram bissexuais, pois assim se assumiam. As chances de receber uma negativa, desse modo, seriam menores. Quando perguntei se elas se consideravam bissexuais naquele momento, responderam: Fernanda: Eu acho que sim, eu não sei, não sei o que a vida me espera. Entrevistador: Você está bissexual, seria isso? Fernanda: É, eu estou. Entrevistador: E você Bruna, você se considera, você adota essa identidade bissexual? Bruna: Sim. Recentemente um colega meu de Facebook falou que ele seria pansexual, porque o pansexualismo englobaria uma relação com trans*, na definição dele o bi só se relacionaria com pessoas cis, eu pensei que esse seria... porque aí vai de rótulo né. Você pode se considerar bi e falar: “não eu acho que bi engloba...” Eu sou aberta a seres humanos. [risos] Entrevistador: É um nome... nunca ouvi essa... Bruna: Quando me perguntam, numa situação menos explicativa, eu falo bi e ponto.
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Esse trecho indica, antes de uma ‘indecisão’ sexual, um uso pragmático da noção de identidade sexual ao longo do discurso. Apresenta-se e especifica-se uma identidade, fecha-se em uma categoria não com o intuito de definir-se, mas de evitar muitas explicações, justificativas e explanações de uma experiência afetiva e sexual que se torna pouco factível justamente por não estar enquadrada em uma categoria. Percebe-se, desse modo, que os discursos que o casal apresenta sobre suas sexualidades não se propõem a ‘dar conta’ de explicar sua plasticidade; trata-se de ocultar, num primeiro momento, a heterogeneidade da experiência sexual, evitando, provavelmente, efeitos de sentido indesejados, como rejeição, não aceitação ou preconceito. Após a primeira entrevista, questionei-me quanto à necessidade da pergunta sobre orientação sexual, no item 1 do Eixo 4. Suspeitei que, com esta indagação, eu poderia estar exercendo um papel normativo na situação de entrevista, no sentido de exigir ou convocar os sujeitos a definirem-se sexualmente no interior de uma categoria identitária, que, como mostrei ao longo da discussão teórica, não é suficiente para dar conta da multiplicidade dos sujeitos em termos de sexualidade. Todavia, na segunda entrevista, percebi que esta pergunta, se colocada de maneira adequada e cuidadosa, poderia apontar para um aspecto importante das conjugalidades homossexuais aqui apresentadas. No caso de Joana e Rebeca, ficou claro como a aparente indefinição da identidade sexual era uma questão para o casal. Na entrevista de Fernanda e Bruna, a identidade sexual também aparece como questão, embora não com o mesmo peso que no caso anterior. Fernanda e Bruna aceitam sua aparente indefinição sexual com naturalidade e não permitem que isso seja fonte de desconfortos na vivência da relação. A indefinição, para elas, não seria uma questão e sim uma abertura constitutiva. Todavia, em ambos os casais, a necessidade de explicar a identidade sexual, se estável ou instável, se definida ou indefinida, mostrou-se como um ponto de partida para explicar a relação. Em ambos os casos, mesmo que em graus diferentes, a discussão sobre identidade sexual é adiantada na história da relação. Em relação ao roteiro de entrevista, o caminho discursivo trilhado nas duas entrevistas é do Eixo 2 (cônjuge/companheiro, história da relação, redes da relação) para o Eixo 4 (vivência/experiência e assunção da homossexualidade).
103
Desse modo, a pergunta sobre identidade sexual não foi abandonada, mas reformulada. Passei a perguntar, após a discussão sobre a história da relação ou durante esta, não apenas a identidade sexual dos sujeitos, mas se a própria noção de identidade sexual era importante para eles. “É casamento?” Após a breve ‘explicação’ de Fernanda e Bruna quanto às suas identidades sexuais, nós retornamos à discussão sobre a história da relação. Bruna, que não tem uma boa relação com a mãe, teria saído de casa e ido morar na casa de um amigo. Algum tempo depois, passaram a morar as duas com esse amigo, mas logo resolveram ter seu próprio apartamento, alugando um na zona sul do Rio de Janeiro e depois mudando-se para o Méier, onde moram atualmente. Nesta curta história de mudanças, o casal não tem um consenso sobre quando seria o início de uma relação estável, se quando dividiam a residência com o amigo ou se quando passaram a ter mais liberdade tanto pra brigar quanto pra se amar. Enquanto Fernanda e Bruna não concordam quanto à data de início de sua vida de casadas (a primeira entende que foi na mudança para o apartamento em Copacabana, a segunda entende que foi na república), elas são consensuais quanto ao início da história da relação, incluindo o namoro: exatos quatro anos e três meses. Segundo Fernanda, elas têm um problema de contagem, contagem que, como vemos, refere-se a noções divergentes do status de casada e, por extensão, da noção de casamento. Na história da relação, Fernanda e Bruna fazem uma breve exposição do que seria casamento para cada uma. Embora num primeiro momento Fernanda afirme que se considera casada, num segundo momento ela reconsidera, admitindo que não sabe se de fato está. Bruna demonstra a mesma indecisão, dizendo que às vezes eu considero [casada], às vezes não considero, mas entende que a coabitação é o que define. Ora, se Fernanda e Bruna coabitam, dividem a rotina e as contas, enfim, se vivem uma vida de casal, por que ainda mostram ressalvas ao definir sua relação enquanto uma relação de duas mulheres casadas – sendo que elas mesmas colocaram a questão ‘estar ou não estar casadas’? Como mostrarei adiante, autorizar-se a definir-se como casada envolve aspectos da família de origem, em especial a de Fernanda. 104
Durante essa discussão sobre considerar-se casada ou não, Fernanda afirma: Eu tenho umas viagens assim, que eu pego um pouco dos meus pais ou avós o que seria um casamento, não por ser homoafetivo ou não, mas por conta dos meus pais terem se mudado juntos, e na verdade meus pais só se casaram depois, quando eu tinha uns cinco anos, mas eles se mudaram juntos depois quando os dois já estavam meio que encaminhados na vida, com trabalho e tal. E a gente começou a morar junto quando estávamos entrando na faculdade. Não sei. Eu ainda dependo financeiramente dos meus pais. Ela depende financeiramente do avô e tal... Então, pra mim isso não deveria pesar, mas isso pesa, em considerar casado ou não.
Percebe-se, desse modo, que, mais do que uma questão de independência financeira, a família de origem de Fernanda cumpre seu papel de referência fundadora da família precedente. O casamento civil está entre os planos de Fernanda e Bruna, embora afirmem não terem condições financeiras, no momento, para registrar a união. Quando perguntadas sobre o significado da oficialização da relação, Bruna afirma que não vê nenhum simbolismo no ato, apenas seu lado prático, como o direito de visitar a esposa no hospital. Sua fala, no entanto, permanece abrigando contradições, ou antes, heterogeneidades: Eu penso mais na questão prática, de direitos, eu não vejo um simbolismo afetivo muito grande, no sentido de agora que a gente assinou o papel, agora... um rito de passagem. Eu não vejo muito isso. Talvez no momento em que eu esteja casando, caia alguma ficha. Mas em planejar isso, não, eu via mais pelo lado prático, e menos por um simbolismo, porque eu já me considero casada.
Fernanda, por sua vez, afirma: Mas eu acho que carrega um sentimento... uma noção afetiva de compromisso, que também tem a ver com uma parte jurídica, mas pra mim se casar tem mais a ver com constituir uma família. E pra mim a principal razão de se casar seria um dia poder adotar uma criança ou ter uma criança e tal. Então seria um compromisso de: “olha, vamos ficar juntas e construir uma família, mais ampla do que nós duas”. Entrevistador: Então o papel [da oficialização da relação] é esse significado de algo para o futuro, como, por exemplo, um filho, uma filiação. Fernanda: Isso, para o futuro.
Como vemos, para Fernanda, aspectos relacionados a uma noção tradicional – e, portanto, heteronormativa – de família parecem determinar sua ‘autorização’ em definir-se como família. Todavia, o jogo de Fernanda quanto à ‘verdade’ de sua relação 105
conjugal, sua nomeação, não se resume a determinações. Percebe-se um movimento de ir e vir, um (des)encontro de diferentes discursos que ora ‘autorizam’ seu status de casada e a condição de família, ora ‘desautorizam’. Esse (des)encontro permeia enunciados sobre independência financeira e filiação, que estariam entre os motivos que ‘legitimariam’ ou ‘definiriam’ uma relação como casamento e família; esses enunciados, por sua vez, remetem à imagem da família tradicional, da qual a família de origem de Fernanda se aproxima. Sob a perspectiva da AD, podemos considerar que o material interdiscursivo apresentado pelo casal, em especial por Fernanda, ora reafirma a imagem da família tradicional, ora negocia essa mesma imagem de acordo com sua trajetória individual e conjugal. No entanto, esse (des)encontro de enunciados ganha coerência no discurso enquanto um ‘todo’. Seu intradiscurso, ou a aparente coerência de seu discurso, apenas oculta a heteregeneidade própria à constituição de uma subjetividade. Fernanda apropria-se de determinadas referências conjugais e familiares porque estas dizem respeito à sua história individual, ao mesmo tempo em que as negocia, as reformula, submete-as às reavaliações que faz em seu projeto de uma vida a dois ‘alternativa’. Pela via da conjugalidade, nota-se um sujeito não apenas como efeito de seus arranjos discursivos, mas também como um sujeito em transformação. Quando perguntada sobre como a família receberia a notícia de um registro de união civil, Fernanda respondeu: Não sei. Eu acho que essa é uma razão principal para eu não me considerar casada. Porque casada, pra mim, seria o dia em que eu pudesse oficializar isso, sem que... podendo dizer isso na cara de pau para minha família sem que isso tivesse nenhum [pausa] constrangimento para mim. Obviamente teria constrangimentos afetivos de qualquer forma. Mas a minha família de origem na verdade é muito tranquila. Só que, eu acho que é muito diferente que você está namorando uma pessoa do mesmo sexo, você dizer que está morando junto com uma pessoa do mesmo sexo, e você dizer que você está casando com uma pessoa do mesmo sexo para sua família. Eu acho que é diferente.
O casal aponta que existe certo cuidado por parte da família de Fernanda, mais próxima do casal, em visibilizá-lo como casal, cuidado que parece apontar para uma dificuldade da própria família em aceitar a relação conjugal. A mãe de Fernanda, segundo Bruna, sempre as apresenta da seguinte forma: “Essa é minha Bruna e essa é minha Fernanda, essas são minhas meninas”. Bruna entende que, por mais que sua mãe 106
aceite a relação, por mais que aparentemente tudo esteja resolvido, com relação aos outros não tá tão bem resolvido, sendo sempre difícil apresentá-las aos amigos. Relacionada à incompreensão ou precária inteligibilidade do casal lésbico, há uma invisibilidade social e cultural do mesmo, como já apontado pelo casal Joana e Rebeca. Fernanda e Bruna afirmam que os vizinhos não conseguem vê-las como casal, mas como duas amigas que moram juntas. Quando perguntadas se se consideravam um casal aceito socialmente, elas comentam: Bruna: Especificamente no caso de mulheres tem uma invisibilidade, né. Você vê dois homens tocando um no ombro do outro e a vizinhança toda já fala: “ah é um casal”. A gente, sei lá, sai na rua e se abraça, e tem gente aqui no prédio que jura que a gente é irmã ou amiga, qualquer coisa. Tem gente que já entrou aqui, porteiro, síndico, viu a cama de casal e sei lá... Fernanda: Jura que a gente é amiga. Entrevistador: Não querem ver que vocês são um casal. Fernanda: É. Bruna: É. Fernanda: E não é porque a gente esconde nada não.
Todavia, é importante frisar que o casal não se vê necessariamente oprimido por tal invisibilidade, gerenciando-a de acordo com as necessidades. Quando discutiam sobre homofobia, falaram de sua procura por um imóvel, revelando a única situação que a gente não se afirma porque a gente tem medo de não conseguir uma coisa que a gente precisa muito, que é um apartamento. Curiosamente, para elas, no contrato de aluguel consta o nome das duas, algo que elas não esperavam. Situação igualmente curiosa é quando foram ao cartório: Bruna: Enfim, foi uma situação meio estranha, mas a gente teve esse privilégio de ficar com os dois nomes como se a gente fosse casada. A gente foi no cartório, eu, ela, a mãe dela e a moça da imobiliária, aí eu cheguei no guichê e ela perguntou: “É casamento?” [risos] “Não”, eu respondi. [risos] Porque eu acho que foi logo quando a união civil passou, enfim.
Ainda em relação à inteligibilidade e invisibilidade da relação para a família de origem, o casamento assume outra importância, como já apontado por Fernanda. Enquanto no casal heterossexual a família chancela a relação, no casal homossexual é o próprio que precisa ‘impor’ sua realidade, sua facticidade, dizer na cara de pau para as famílias. O ‘papel’, a oficialização da relação, mostra-se como tática necessária. E situações do cotidiano, se por acaso não sabemos, às vezes parecem ‘convocar’ o casal enquanto ‘casal casado’. 107
Bruna: Tem uma ideia para as famílias de que, eu acho, o casamento seria uma coisa definitiva. Namoro: “ah não, é uma fase, vai passar”. Morar junto: “ah tá morando junto, é jovem”. Agora o casamento forçaria as pessoas a falarem, abordarem o assunto, e daria uma sensação pra elas de permanência, que seria um pouco chocante.
O enunciado ‘nós nos casamos’, por exemplo, poderia gerar efeitos de sentido que conferissem uma imagem de estabilidade ou permanência da relação, o que poderia repercutir em sua inteligibilidade ou, como frisou Fernanda, num choque por parte dos familiares. Tal choque esperado por Fernanda remete a um efeito de sentido contrário, a saber, o entendimento, por parte dos familiares, de que a imagem de duas mulheres casadas ‘no papel’ representa um ato de subversão ‘inaceitável’ da matriz de gênero. Tanto a inteligibilidade quanto a precariedade, desse modo, estariam entre as possibilidades do ‘casal casado’. Todavia, no decorrer da entrevista, está implícita a influência da mãe de Fernanda na dinâmica do casal por meio de conselhos, conversas entre ela e a nora e os presentes, como o nosso primeiro colchão. Desse modo, diante do fato de que a mãe relaciona-se com o casal enquanto casal – e não como duas amigas –, vemos que os discursos que circulam entre elas, mesmo com suas ressalvas e dificuldades, apontam para efeitos de sentido rumo a uma inteligibilidade da relação de casamento.
Trezentas mil implicações
Em relação ao projeto de ter filhos, conforme já adiantado no tópico anterior, Fernanda e Bruna entendem que a presença de uma criança daria um peso maior ao ‘compromisso’ da relação conjugal. Em outros termos, a parentalidade repercutiria na consolidação da conjugalidade. Quanto ao meio de obter uma criança, o casal trava uma pequena discussão sobre quais as implicações, para a família, de gerar um filho pelos métodos naturais: Fernanda: Bom, na verdade eu acho que tem trezentas mil implicações. Mas eu acho que o que mais teria efeito seria o fato de que eu tenho quase certeza, que de uma de duas coisas aconteceria, ou a gente adotaria uma criança ou a gente teria uma criança pelos métodos naturais. E se a gente tivesse uma criança pelos métodos naturais isso seria um choque muito grande para a família. Entrevistador: Por quê? 108
Fernanda: Ah, porque “como assim, de onde veio esse pai, quem é esse pai? Como ele vai se implicar na relação?” Bruna: A gente não tem certeza... Eu acho que as famílias acham que a gente é homo mesmo. Não contemplam a bissexualidade. Fernanda: Mas eu não sei se eu sou isso, porque eu nunca tive uma relação estável com um homem. Bruna: Sim, mas se a gente tivesse um filho de uma maneira natural alguém ia ter que ter sexo com algum homem pra ter esse filho, visto que a gente não é milionária e não iríamos fazer um “in vitro” de cem mil reais, e todo mundo sabe que a gente não ia fazer. Fernanda: Mas tem muito casal homo, mulher, homo mesmo que tem por método natural. Eu acho que isso não implica tanto na sexualidade da pessoa, a pessoa pode estar transando só para ter um filho. Bruna: Sim, mas você acha que isso também não é chocante para a família? “Ah calma, eu não sou bi não, eu só dei ali sem amor pra ter um filho.” É tão chocante quanto. [risos] Fernanda: Eu acho que isso seria muito mais chocante, na verdade. Entrevistador: Isso o quê? Isso que ela acabou de falar? Fernanda: É. Tipo “ah você não quis adotar, então você vai ali dar pra alguém pra ter um filho”, “daonde veio esse pai, para onde vai esse pai, e porque você teve dessa forma?” Sei lá... É muito bizarro você pensar como as pessoas reagiriam, porque seria uma decisão de tipo... parece ser a coisa mais natural. A gente teve um amigo que ofereceu já. [risos] Ele falou: “ah quando vocês tiverem um filho...”, ele está meio mal na vida, meio devagar...
Esse trecho aponta para uma complexa trama que envolve variadas possibilidades de arranjos parentais e familiares, sexualidades e afetos. Fernanda e Bruna discutem sobre como conciliar estas possibilidades tendo, mais uma vez, a família de origem como referência legitimadora, como instituição que se autoriza a indagar seus vínculos, afetos e desejos.
Pra mim não tem diferença Diversos enunciados ao longo do corpus – alguns já apresentados aqui – mostram que no centro do discurso de ambas está o peso da experiência em sua dimensão afetiva e sexual; somente a experiência poderia autorizá-las a dizer algo sobre a relação e sobre si. É nesse sentido que Fernanda afirma: não sei o que a vida me espera. Embora ela diga que se entendia como bissexual mesmo antes de ficar com alguém do mesmo sexo, demonstra ressalvas em se identificar como tal uma vez que nunca teve uma relação estável com um homem. A experiência, desse modo, diz tanto ou mais quanto o desejo. O mesmo se aplica à experiência da vida a dois. Em diferentes momentos da entrevista, Fernanda e Bruna questionaram as perguntas que buscavam levantar especificidades da relação conjugal homossexual. Segue um exemplo: 109
Bruna: Eu não consigo ver muita diferença, eu costumo ver muito igual, eu costumo ver mais diferenças entre casais heteros por outros motivos. Do que necessariamente a diferença da orientação sexual. Entrevistador: Você acha que a questão sexual não diferencia? Bruna: Porque a gente vê os casais tendo as mesmas questões, as mesmas lutas, ou seja, domésticas, ou de ciúme, ou de não sei o quê com problema com a família. Fernanda: É, acho que uma única diferença talvez seja a aceitação da família e esse tipo de coisa. Do exterior, de implicação com o exterior. Bruna: No cotidiano eu vejo bem parecido.
A orientação sexual, mais uma vez, é relativizada em sua diferença. A experiência, ao contrário, é valorizada, pois só ela pode dizer da relação e de suas possíveis implicações. Na pergunta sobre se o relacionamento mudara o olhar sobre a própria personalidade e/ou sexualidade, elas respondem: Fernanda: Sim, porque eu sabia que eu era bissexual antes de ficar com a Bruna, mas na verdade eu nunca tinha ficado com uma menina. Então ela foi a primeira menina que eu fiquei e a última... [risos] Mas não só isso, estar num relacionamento estável com uma pessoa do mesmo sexo muda. Na verdade, não sei se muda assim também porque a gente cresce, vai conhecendo outras pessoas. Vai conhecendo outros lugares, outras pessoas e tal, e a gente muda. Não sei se foi especificamente por causa do relacionamento. Entrevistador: Sim. E você, Bruna? Bruna: Eu tinha tido relacionamentos bem curtos, com homens, e mulher eu nunca namorei, a não ser ficar por um tempo. Com ela foi a minha primeira experiência de relacionamento longo e estável. Então assim, não sei se eu posso fazer essa... eu vivo uma vida diferente de sexualidade e tudo, pela longevidade, mas eu não posso atribuir a isso especificamente ao vir a ser outra mulher. Entrevistador: Não faz diferença? Bruna: É, porque talvez... eu não sei como eu me comportaria se eu estivesse num relacionamento longo com um homem, eu acho que as diferenças entre os meus relacionamentos anteriores e esse é mais a longevidade do que o gênero.
Esses discursos tendem a questionar ou pelo menos flexibilizar a noção de homoconjugalidade enquanto
um conceito
que abarcaria especificidades ou
particularidades de uma relação conjugal homossexual. As respostas de Fernanda e Bruna sugerem que elas não querem ser colocadas no território da ‘diferença’: elas são um casal comum, com seus problemas e dilemas diários comuns a todos os casais, heterossexuais ou não. Importante frisar que, no tocante às práticas militantes, minha fala não autoriza a conclusão de que Fernanda e Bruna não teriam consciência de sua ‘diferença’ como 110
elemento subversivo. De modo semelhante ao casal anterior, Fernanda e Bruna afirmam ter leituras sobre militância LGBT, além de contatos com grupos organizados, mas preferem uma militância do dia a dia, que se submete à relação justamente por fazer parte dela, por estar subsumida a ela. Discursos como esse sugerem, em primeiro lugar, que os casais, por mais que questionem, reconhecem um lugar de ‘diferença’ para a homoconjugalidade; em segundo, que a noção de militância é diversa e que, no caso da homoconjugalidade, ela é objeto da relação conjugal. No casal apresentado a seguir, percebe-se o contrário: não é a militância que é objeto da relação, mas o contrário.
Maurício e Marcelo
Maurício e Marcelo são outro casal indicado por Andiara via Facebook. Como Andiara me passara apenas o perfil de Marcelo – um militante gay conhecido na cena pública –, entrei em contato somente com ele. Em pouco tempo, Marcelo retornou o contato, mostrando-se disponível para a pesquisa. Algumas semanas depois, num domingo de sol, combinamos de nos encontrar no Forte de Copacabana, onde estaria com seu marido, Maurício. Nos contatos por Facebook, eu já havia sugerido a liberdade na escolha do formato da entrevista, deixando claro, todavia, que se tratava de uma pesquisa sobre conjugalidade. No dia do encontro, por telefone, quando eu ainda estava a caminho, Marcelo informou que seu marido não gostava muito de dar entrevistas, mas que ele poderia conceder uma, já que ele está aqui. Desde os contatos virtuais, eu suspeitava da disposição do marido de Marcelo em participar da pesquisa. Era evidente que a disposição de Marcelo estava relacionada à sua militância; como não conhecia seu marido, eu não sabia se haveria o mesmo tipo de implicação ou envolvimento. Cheguei ao Forte e encontrei Marcelo em uma das mesas, sentado ao lado de Maurício. Vestiam roupas informais, adequadas para um domingo de sol. Marcelo apresentou Maurício, que me cumprimentou formalmente. Ofereceram-me vinho e começamos a conversar. Maurício estava sério (e assim permaneceu durante toda a entrevista), em silêncio, com os braços cruzados, observando-me fixamente. Marcelo, 111
ao contrário, parecia entusiasmado e elogiava a proposta de pesquisa. Comecei a explicar a pesquisa em detalhes. Em determinado momento de minha exposição, quando pontuava sobre as possíveis particularidades das relações entre pessoas do mesmo sexo, Maurício me interrompeu e perguntou: Mas haveria diferença entre um casal gay e um hetero? Respondi que esta era uma das questões que pretendia investigar. Marcelo, por sua vez, durante todo o tempo da apresentação da pesquisa, ficou repetindo expressões como maravilha, ótimo, muito bom. Ele passou considerável tempo da entrevista contando sua história pessoal, suas reflexões sobre religião, sexualidade e cidadania, sendo necessário, por mais de uma vez, reconduzir a entrevista para a história da relação conjugal. Maurício falou poucas vezes, somente quando solicitado, sempre dando respostas breves ou apenas confirmando as palavras do companheiro.
Uma divisão incrível
Marcelo, 44 anos, é professor. Maurício, 31 anos, é cabeleireiro e maquiador. Eles moram juntos há aproximadamente seis anos e oficializaram a união uma semana antes da entrevista. Durante muitos anos de sua vida, Marcelo foi pastor e defendeu publicamente a conversão de homossexuais, até que decidiu, depois de idas e vindas, separar-se da esposa e assumir-se homossexual. Cerca de quatro anos depois, conheceu seu atual companheiro por indicação de um amigo. Maurício, natural de uma cidade do Nordeste, veio para o Rio de Janeiro a trabalho. Marcelo conta: ...ele foi na minha casa e a gente acabou jantando juntos e foi ali que o romance começou. Começamos a ficar um interessado no outro, e aconteceu nossa primeira noite de amor, digamos assim, só que a gente pensava assim, vai ser uma coisa passageira, como muitas são e foram, pra mim e pra ele. Só que não foi passageiro. Dali um mês a coisa já foi se fortalecendo, a gente foi se encontrando de novo, “marca de novo, vem amanhã e tal, fica aqui, dorme aqui e tal”. E quando a gente foi ver, tinha uma proposta minha pra ele, de ao invés dele alugar um lugar pra ficar, e comprar tudo pra colocar dentro, ele vir morar comigo e dividir comigo as despesas, ia sair barato pra ele e ia ficar fácil pra mim, e a gente ia se dar uma chance de se conhecer melhor, se isso desse em casamento, ótimo. Se não desse podia ser uma boa amizade. Mas acontece que deu, né. Já tem quase sete anos que a gente está junto. Tem seis anos e meio já.
112
Como vemos, Marcelo e Maurício estabeleceram uma relação estável em pouco tempo de contato. O casal acrescenta que hoje mora numa casa próxima à família de origem de Marcelo, além de seus filhos, frutos de seu casamento heterossexual. Nota-se, na fala de Marcelo, como a rotina do casal envolve a presença de seus familiares, em especial a mãe e os filhos, e como a tensão familiar em torno da homossexualidade do casal faz-se presente, mesmo que velada: Então a nossa convivência com eles [filhos] é uma convivência muito próxima, do tipo assim, todo domingo a gente vai na casa da minha mãe e a gente toma café da manhã junto com ela [um dos filhos mora com a avó]. Todo finalzinho da tarde ou à noite. E se eu for e ele [Maurício] não for, ela pergunta. Apesar de ela ter convicções evangélicas muito estranhas também. Por um lado homofóbicas, porque a igreja nutre infelizmente isso. Por outro lado extremamente solidária porque ela acha que eu estou mais feliz hoje do que eu era antes, mas ao mesmo tempo ela não pode assumir que isso seja uma verdade porque ela trairia aquilo que ela acredita. Então ela fica numa divisão incrível.
Esta convivência não sugere, necessariamente, influências ou intervenções diretas da família de origem uma vez que, como dito, a dificuldade de aceitação do ‘aspecto’ homossexual da relação parece determinar uma série de cuidados e reservas por parte dos familiares, em especial a mãe de Marcelo. A relação entre Maurício e os familiares e filhos de Marcelo também é pacífica e respeitosa. Em certo momento da entrevista, ele afirma: ...eu tenho certeza, que se eu precisar de suporte, a minha sogra e o meu sogro, eles me darão um suporte.
Não obstante, a aceitação com reservas é evidente na seguinte fala: Marcelo: Ao mesmo tempo que ela acolhe, ela abraça, a minha mãe tem aquela coisa. Quando eu falei com ela que eu dei entrada no casamento ela ficou assim, na dela. Ela falou assim: “meu filho, só não vou na festa, cerimônia, se tiver, porque você sabe o que a gente pensa né? Mas assim, vocês são bem vindos todos os dias aqui. A hora que vocês quiserem vir. E podem continuar a vir todo domingo aqui, lanchar com a gente e tal. É uma alegria pra gente.”
Em outro momento, Marcelo diz: Palavras da minha mãe quando eu falei do casamento: “O Maurício nunca nos deu motivo nenhum para nos decepcionarmos com ele, ele é um bom menino, um rapaz fantástico e a gente só tem coisas boas pra falar dele. Esperamos nunca nos decepcionar.” Ou seja, isso é bem diferente do 113
discurso, geralmente, de que viado não presta, é tudo safado. Não, de jeito nenhum.
O aparente conflito da mãe de Marcelo sugere um (des)encontro de diferentes discursos e representações de homossexualidade e relação homossexual, ou como certa expressão homoerótica se torna razoavelmente factível, compreensível ou aceitável quando revestida pelo manto da família e da conjugalidade supostamente monogâmica e estável. A matriz de inteligibilidade evidencia-se nesta problemática da conjugalidade homossexual: ela não é propriamente subvertida, mas reconfigurada – pelo casal e seu entorno – de modo a incluir tal relação no seio da rede familiar. Quando fala de acordos sexuais e práticas militantes, Marcelo deixa claro que, enquanto casal, eles realizam uma estética da vida a dois que procura, a um só tempo, reafirmar e subverter as regulações heteronormativas, operar a matriz de gênero de acordo com os interesses e desejos do casal e com as exigências do contexto. Esse ponto será explicitado à frente. O casamento civil é apresentado como uma das táticas acionadas pelo casal para operar ‘coerentemente’ na matriz de gênero e sexo. Quando perguntados sobre qual nome davam à relação, Marcelo prontamente respondeu casamento, termo que ele e seu marido constroem a seu modo, sempre sob uma estética da coerência.
Não tem esse negócio de que tem que ser um casamentozinho
Marcelo e Maurício trocaram alianças com um ano de relacionamento. Colocaram na mão direita como forma de protesto; na época, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo ainda era uma realidade distante e, se eles ainda estivessem vivos para presenciar a mudança, passariam o anel para a mão esquerda. A união civil tornou-se um sonho possível para Maurício e Marcelo, que oficializaram sua relação uma semana antes de concederem a entrevista para esta pesquisa. Ainda usavam o anel na mão direita, mas logo trocariam, inclusive os anéis. Quando perguntados sobre qual o significado de casar-se, Maurício respondeu (a pedido de Marcelo): Bem, nós já éramos casados, na minha opinião, porque eram seis anos e meio, seis anos e meio morando juntos, com todos os problemas, com todas as felicidades, enfim... a gente apenas oficializou em papel o nosso casamento para nos proteger juridicamente. 114
Marcelo: Isso é verdade. Maurício: Porque a gente nunca sabe o que pode acontecer no dia seguinte. Os filhos dele são pessoas maravilhosas hoje, mas amanhã não sei o que pode acontecer, sei lá. E com o papel em mãos e a lei do meu lado, eu me sinto mais seguro. Marcelo: Com certeza, eu também durmo mais seguro sabendo disso. Porque se ficar preocupado (...) o que será do amanhã? Se eu durmo hoje e amanhã eu não acordo? O Maurício vai ter que enterrar o marido e não vai ter poder de decisão nenhum, sobre nada. Porque a família vai assumir tudo, e ainda pode acontecer de no dia seguinte ele não poder ficar aqui por alguma razão.
Enquanto a mãe de Marcelo não recebeu bem a notícia do casamento, a mãe de Maurício encarou com muita naturalidade. Maurício pontuou que, apesar de seu Estado de origem ser comumente referido como um lugar homofóbico, uma festa religiosa (...) tem mais peso do que um casamento civil. E festa religiosa é algo de que ambos abrem mão. Diferentemente do casal anterior, Marcelo e Maurício são consensuais quanto à definição de sua relação. Ambos consideram-se casados, mesmo antes do registro de união civil. A relação conjugal, desse modo, não é discutida em termos de definição, mas em termos de possibilidades e acordos em seu interior. Embora se aproximem de uma relação conjugal tradicional, dotada de um vocabulário anteriormente exclusivo a heterossexuais, Marcelo e Maurício vivem seu casamento em constante negociação quanto às possibilidades sexuais, considerando as discrições necessárias para a sua imagem perante a família, os amigos e a militância. Uma estética do casal que parece não exclusiva da homoconjugalidade, mas das conjugalidades contemporâneas (GIDDENS, 1993). Em determinado momento da entrevista, quando toquei no assunto ‘risco do HIV/AIDS’, Maurício indagou: Como assim o risco da AIDS? O risco é para todos. Expliquei melhor a pergunta, o porquê dela e a problemática do risco, pontuando que eu me referia às representações que a AIDS assumiu hoje e as possíveis implicações destas na vivência conjugal. Marcelo, de imediato, tomou a palavra em tom conciliatório e afirmou que se preocupa com a AIDS, mas não apenas em relação à comunidade LGBT. Falou de seus filhos, que são heterossexuais, e dos muitos conselhos que dá quanto ao uso da camisinha. Todavia, o que me chamou mais atenção foi o fato da pergunta sobre HIV/AIDS, do item 6 do Eixo 4, ter acionado respostas do item 8 do mesmo Eixo, onde pergunto 115
sobre o exercício da vida sexual do casal. Depois de comentar o impacto que a epidemia, na década de 1980, causou em sua vida sexual, colaborando para seu fundamentalismo e medo de assunção da homossexualidade, Marcelo afirmou: A gente transa com camisinha. Você pode falar assim, “mas vocês tem AIDS?” Não. Nós dois já fizemos exames, até recentemente, os dois são soronegativos. Mas sabe o que eu penso em relação a isso? Primeiro, eu não sou santo. O Maurício também não é santo. Eu prefiro um marido que se transar lá fora, não vai me deixar doente aqui dentro. A fazer de conta que meu marido nunca poderá transar lá fora e eu estou totalmente protegido aqui dentro. A mesma coisa o contrário. Eu prefiro que a gente use camisinha, e eu também, não é uma preferência minha, porque vamos supor que eu fiquei doido por um cara ali: “caraca, to apaixonado por esse cara agora, vou pegar esse cara agora.” Entre aspas tá, não é amor não. Tesão. Em dez minutos damos um trepada que ferra a vida dos dois? Não.
O acordo quanto ao uso da camisinha e a relativa liberdade para ‘aventuras’ extraconjugais apontam para uma separação entre o público e o privado. No trecho apresentado, assim como em outros, Marcelo deixa clara a divisão que ele estabelece entre os dois espaços, um lá fora e um aqui dentro, o primeiro marcado pelo acaso, pelo ‘sexo sem afeto’, pelo não comprometimento, pela sua insignificância diante da relação conjugal, o segundo marcado pela franqueza, pela afetividade, pela valorização da relação, pela assepsia do lar – assepsia no sentido de que nada do que acontece lá fora deva ter algum significado que perturbe ou interfira aqui dentro, em especial na afetividade e exclusividade da relação conjugal. A interseção do lá fora e do aqui dentro deve ser mínima, e mínima também deve ser a importância ou relevância do que ocorre lá fora. Realidades e lugares dissociados, determinando que o ‘sexo sem afeto’ ocorra somente nas ruas. Para Marcelo, proteger seu companheiro e proteger-se da infecção do HIV/AIDS, entre outras DSTs, é uma questão de amor, de preservação, de amor próprio e amor pelo outro, que, como vemos, não deve afetar em demasiado as possibilidades de experimentação sexual. Continuando esse diálogo: Entrevistador: Vocês se consideram dentro de um relacionamento fechado? Marcelo: Olha, eu diria pra você assim... publicamente falando, eu não diria o que eu vou dizer pra você agora (...). Nós somos uma relação fechada no seguinte sentido, a gente não transaria com amigos nossos, jamais. Agora se você me perguntar assim, vocês já foram pra uma sauna? Sim. Transaram só vocês dois? Não. Já transamos com outros caras também. Sabe o que 116
acontece quando a gente volta? A gente volta pensando assim: “cara, que bom que a gente tem um ao outro, que nada daquilo que a gente fez hoje significa tudo que a gente significa um para o outro.” É impressionante, reforça o nosso amor. Agora, se você perguntar assim, qual é a frequência? Vou dizer pra você que tem meses, talvez... acho que foi no início do ano a última vez que a gente foi na sauna, não foi? Maurício: Não, vamos lá, a gente já foi talvez umas quatro vezes. Marcelo: Quatro vezes no total. Em sete anos de relacionamento. Mas a última vez que a gente foi acho que talvez no início do ano. Então a gente não tem essa visão... Maurício: Poderia ter ido mais. Mas talvez por falta de interesse mesmo... Marcelo: Falta de interesse. A gente está tão bem junto, entendeu? Agora, pra gente é uma diversão. Você pode falar assim: “nossa, mas parece tão insensível isso.” Não, porque são adultos que estão de acordo, não estou fazendo nada contra a vontade de ninguém, e eu não tiro a aliança, não. Ele tá comigo e às vezes a gente entra junto. Às vezes entra separado. E eu falo pra ele: “olha, se for pra ficar separado, não conte comigo pra arrumar ninguém. Você fica lá, e eu fico na minha, se eu entrar você não cria caso comigo.” Se for pra ficar junto, a gente vai junto, numa boa. Pode ser até que eu prefira uma coisa a outra, de repente, né? Pode um curtir mais algo. Mas aí na próxima a coisa inverte, e vai. A gente não tem esse negócio de que tem que ser um casamentozinho, burguês e tal. Não. Agora, os direitos garantidos são fundamentais. E a fidelidade, porque se isso não é fidelidade (...). Isso é fidelidade pela seguinte razão: a gente é acordado. A gente não está fazendo nada pelas costas de ninguém. Entrevistador: É acordado. Marcelo: E detalhe, eu falo pra ele, mesmo que você um dia você saia sozinho com alguém, você não precisa me contar, não. Só se proteja. Eu também não preciso te contar se sair, não. Eu me protejo. Agora se você me perguntar assim: “então isso faz vocês ficarem na putaria?” Não. Se você chegar na nossa casa, ela é tão comum quanto a casa da minha mãe ou meu pai. Não tem sacanagem. Se você perguntar assim: “como é que fica quando vocês saem com alguém? Por exemplo, numa sauna. Tem reencontro?” Não tem reencontro. Não tem troca de telefone. Não tem nada. É aquele momento ali e tchau, acabou. Não rola outra coisa. Isso pode ser diferente numa relação lésbica, diferente numa relação de outros homossexuais, não sei. Agora pra gente isso não é um tabu, porém por que é que a gente não torna isso uma coisa pública? Pela mesma razão que uma mulher não conta que dá uma dedada no marido dela. Que faz fio-terra. Não conta. É uma questão da intimidade.
Marcelo frisa que, publicamente falando, seu relacionamento é fechado, embora, na gramática sexual do casal, a noção de relação fechada seja relativizada. Eles foram eventualmente a saunas e transaram com outros homens, juntos e em separado, e Marcelo admite que ambos podem fazer sexo com outros homens sem que um e outro saibam, desde que algumas regras, entre elas o uso da camisinha e assepsia do lar – onde não tem sacanagem –, sejam respeitadas.
Marcelo: (...) se é uma coisa que não tem nenhuma relação com a gente, e é totalmente, você sabe, avulsa mesmo, e não é sempre, não há um compromisso com isso, entendeu? Quando quiser, faz. 117
É fato que muitas das regras estabelecidas pelo casal acabam por reduzir consideravelmente as possibilidades de trocas sexuais alheias. Desse modo, embora Marcelo e Maurício tenham afirmado que tais trocas não lhes faziam falta, supõe-se que esta conjugalidade – que estabelece uma divisão entre a vida privada e ordenada do lar e os encontros furtivos, rápidos e anônimos, possíveis apenas nos eventuais ‘furos’ ou ‘buracos’ de uma rotina conjugal – se configura sob uma relativa e contraditória estética da liberdade, que consiste em ganhar de um lado e perder de outro, como afirmou o casal seguinte, constituído por Pedro e Lucimar. Em sua pesquisa sobre intimidade e parcerias homoeróticas masculinas, Paiva encontrou dinâmicas semelhantes à do casal aqui investigado. O autor afirma (Ibid.: 36): Nas nossas narrativas encontramos (...) toda uma reflexão moral em torno dos limites e restrições a serem seguidos nas práticas sexuais, numa negociação ambígua, constantemente desmapeada e reafirmada muitas vezes à custa da denegação das experiências vividas, importando salvar ao menos um ideal de conduta, mesmo que esse ideal não corresponda às práticas efetivas dos indivíduos. Assim é que podemos compreender toda uma discussão sobre o que pode, o que não pode, o que é para ser contado, o que deve ser escondido do outro, o que é ser fiel, se é melhor ser fiel ou leal etc., absolutamente sinuosa e muitas vezes contraditória.
A noção de fidelidade apresentada tanto por Marcelo e Maurício quanto por Pedro e Lucimar é diferente da comumente associada à exclusividade sexual. Fidelidade, para eles, remete à exclusividade afetiva. Nas pesquisas de Silva (2008), Paiva (2007) e Heilborn (2004), a diferenciação fidelidade-lealdade é apresentada de modo a tentar esclarecer a diferença entre exclusividades afetiva e sexual, típica das conjugalidades por eles investigadas. Nota-se relativa dificuldade, por parte dos casais, em definir fidelidade, dificuldade também perceptível na fala de Marcelo quando tenta explicar que sua relação adota a fidelidade como princípio, mesmo havendo possibilidade de ‘aventuras’ extraconjugais. Nos casais investigados por Silva (2008), a fidelidade, enquanto princípio de exclusividade sexual, é encarada como mito. A lealdade, por sua vez, diz respeito à importância do parceiro na vida do outro, à transparência e sinceridade das relações amorosas. Ela é mais valorizada porque estaria ligada à possibilidade de negociação do arranjo conjugal. Acrescento, a partir dos dados encontrados em minha pesquisa, que, independentemente do termo adotado pelos casais – ora se reformula o termo fidelidade, 118
incluindo nela a lealdade, ora se abandona um termo em favor do outro – a lealdade é valorizada porque mantém – e de certo modo reafirma, na visão de Marcelo – a exclusividade afetiva e a divisão público x privado. Mantém justamente porque, no cotidiano do casal aqui analisado, a possibilidade de trocas eventuais de parceiros sexuais só ocorre nos ‘buracos’ da agenda conjugal, sendo, portanto, ocorrências à parte, eventos desimportantes. Ainda em relação aos acordos sexuais, Marcelo acrescenta que esse assunto é irrelevante diante da importância da militância, da conquista da cidadania LGBT. A efetividade da militância, segundo ele, envolveria coisas mais relevantes do que a vida sexual dos casais gays. Tenho a impressão de que, latente ao discurso ‘falar do nosso sexo não é importante para a militância’, opera-se uma tática de ocultação de certas práticas sexuais não convencionais com o intuito de dar credibilidade às práticas militantes. Marcelo entende que sua relação conjugal, em sua visibilidade, é por si só um ato político. Explicitar as práticas sexuais da relação pode significar uma ultrapassagem em termos de regulações dessas mesmas práticas, o que repercutiria na inteligibilidade do casal enquanto casal estável. Esta cuidadosa relação entre reserva e militância faz-me perguntar quais possibilidades sexuais a militância de Marcelo termina por defender e quais ela termina por negar. Estas análises sugerem que, concordando com Paiva (2007), nem sempre os discursos apresentam ou descrevem as práticas ‘reais’ dos sujeitos. No tocante às práticas sexuais do casal, haveria um jogo discursivo que envolve “negociações de palavra e silêncio, abrir as cartas e fazer segredo” (Ibid.: 37), o que é mais notável no casal constituído por Pedro e Lucimar, onde as práticas sexuais, mesmo acordadas e abertas, estão permeadas de segredos, meias verdades e não ditos que, curiosamente, parecem sustentar a relação conjugal.
Faltava essa afetividade homo
Maurício contou que sua família sempre percebera que ele era diferente e sempre o respeitou, não sendo nenhum choque para a família quando ele se afirmou homossexual. A mesma naturalidade deu-se quando contou que estava se relacionando 119
com Marcelo. Marcelo, por sua vez, narrou uma longa e dolorosa história de inadequação e aceitação de si mesmo. Durante anos, sob rígidas crenças religiosas, ficava às voltas com seu desejo pelo mesmo sexo. Não obstante, ao longo do casamento heterossexual, teve experiências sexuais com outros homens, eventualmente, o que teria aos poucos colaborado para a assunção de sua homossexualidade. Ademais, havia um aspecto no exercício de si para consigo que levou Marcelo a aceitar sua ‘condição’, seu desejo homossexual: o reconhecimento de uma afetividade homo. Quando contava que mesmo transando com mulheres sentia-se insatisfeito, Marcelo explicou que faltava, em seus desejos homoeróticos, certa afetividade, que mais tarde ele conceberia como sua afetividade genuína. Marcelo: (...) Aparentemente, quando um homem gozou, ele já está satisfeito, aparentemente, pressupõe-se que esteja, mas [eu] não estava. Entrevistador: Durante esse tempo... Marcelo: Faltava afetividade. Entrevistador: Ah, faltava afetividade? Marcelo: Faltava essa afetividade homo, porque a afetividade ela [a exesposa] me dava, mas era heteroafetividade, não era a minha afetividade genuína. Entendeu?
Do mesmo modo que nos casais anteriormente apresentados, a experiência assume importância fundamental na definição ou não da identidade sexual, mas não o mesmo peso. Maurício e Marcelo se definem como gays, não havendo abertura a experimentações sexuais que não com pessoas do mesmo sexo. No caso de Marcelo, há um destaque para a esfera afetiva da homossexualidade, ou a homoafetividade. Marcelo: Então, como é que eu me defino hoje? Como eu sempre deveria ter me definido, como um homem gay. Um homem que ama outro homem. Entrevistador: E você, Maurício? Maurício: Eu me defino como 100% gay. Marcelo: Adoro! [risos] Entrevistador: Certo. Como é se relacionar com alguém do mesmo sexo? Maurício: Normal. Natural. Marcelo: Maravilhoso. Porque eu sei como é não se relacionar com alguém do mesmo sexo.
A história de Marcelo, tanto em seu aspecto individual quanto conjugal, aponta para o exercício de uma série de performatividades que ora repercutem no estabelecimento de uma imagem de conjugalidade tradicional, aceitável para familiares e amigos, ora deslocam essa imagem. Em seu caráter ‘não assumido’ de relacionamento 120
aberto – ou aberto somente em alguns aspectos, como Marcelo frisa –, a conjugalidade aqui apresentada se apropria de certas ‘linguagens’ heteronormativas para vivê-las a seu modo. Nesta eventual variação de parceiros sexuais, Marcelo aciona performatividades que parecem confirmar a estabilidade e naturalidade de sua identidade sexual. O corpo, ao contrário dos casais anteriores, não é um potencial terreno das experimentações variadas, é o meio de confirmação de uma única possibilidade de experimentação sexual, garantida a duras penas. O corpo é excitado sexualmente de modo a ocultar descontinuidades e a relação conjugal, para ter existência, para ser possível, precisa estar necessariamente aberta a experimentações. A certa altura, percebi que o desconforto de Maurício com a entrevista chegou ao ponto em que ele quase não parava mais na mesa. Marcelo pediu a conta e fomos finalizando, meio que forçosamente. Desliguei os gravadores, mas continuamos conversando até a saída do Forte. Quando estava voltando para casa, recebo a seguinte mensagem de texto de Marcelo: Não sei se você perguntou tudo. Acho que o vento incomodando Maurício pode ter te levado, por educação, a encerrar antes. Se quiser perguntar mais alguma coisa por e-mail ou cel, é só falar. Abraços.
Esta mensagem, que me deu a impressão inicial de um pedido de desculpas disfarçado, reflete a postura conciliatória de Marcelo durante toda a situação de entrevista. Ele ignorou a aparente impaciência do marido, tentando eventualmente incluí-lo na conversa, sem abrir mão da sua centralidade nela, além de tentar ‘aliviar a tensão’ em alguns momentos. Depois de muito refletir sobre essa incômoda entrevista, dei-me conta do jogo estabelecido por Marcelo: ele sabia que a entrevista era sobre conjugalidade e sabia que seu marido não estaria disposto a falar; não obstante, tentou ‘se adequar’ ao que ele considerava ser o objeto da pesquisa, incluindo o marido na entrevista, mesmo contra a vontade dele, para falar não da relação em si, mas dela enquanto objeto da militância 25. Compreendi a postura de Maurício como um incômodo frente à exigência de falar
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Alguns meses após a realização desta entrevista, Marcelo lançou um livro sobre seu casamento com Maurício, o que parece confirmar sua estratégia de fazer da visibilização da relação conjugal um ato político. 121
sobre si e sua relação. Como deixou claro na entrevista, quando perguntei sobre militância, ele não tem interesse nem paciência para se envolver no assunto. Maurício não parece assumir para si a perspectiva política da explicitação da intimidade numa pesquisa, como o faz Marcelo. Importante relembrar sua sutil colocação de que não via diferença entre casais homo e heterossexuais, pouco antes de iniciarmos a entrevista. Pergunto-me quais seriam as possíveis implicações dessa divergência na relação entre Marcelo e Maurício. Em relação à mensagem de Marcelo, agradeci a disposição e respondi que eu já tinha dados suficientes, mas que, caso ele desejasse falar sobre algo mais, poderia me contatar.
Pedro e Lucimar
Pedro e Lucimar são outro casal indicado por amigos. Após alguns contatos por email e telefone com Pedro, combinamos de nos encontrar em um restaurante na Lapa. Acrescentou que seu marido estava disposto a dar entrevista, optando por concedê-la em conjunto.
Eu queria estar junto aos iguais
Pedro tem 43 anos e é analista de suporte. Lucimar tem 38 anos e é professor. Eles moram atualmente em uma comunidade não pacificada do Rio de Janeiro e oficializaram a união no final do ano passado. Eles se conheceram há dezoito anos, quando frequentavam grupos de discussão sobre homossexualidade e modos de prevenção do HIV/AIDS. A participação nesses grupos deu-se numa época em que ainda se sentia o impacto da epidemia do HIV/AIDS. Pedro conta que as mortes continuavam frequentes e muitos estabelecimentos, como o bar Turma Ok, ponto de encontro entre homossexuais na época, começaram a se mobilizar politicamente, tornando-se espaços onde se conversava sobre as experiências homoeróticas e os cuidados de prevenção. A gente entrou na neurose deles, afirma Pedro, referindo-se ao pânico generalizado na época.
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Foi esta neurose, todavia, que fomentou o desenvolvimento de relações de parentesco semelhantes à imagem da família tradicional, constituída por pai, mãe e filhos. Esses grupos de discussão, que se autointitulavam família, segundo o casal, tornaram-se uma comunidade relativamente forte em seus laços de solidariedade. Quando entrava um novo membro no grupo, este precisava ser adotado, sendo tratado, a partir de então, como filho de quem o adotava, o que envolvia uma aproximação entre os personagens, uma corresponsabilização mútua no tocante às suas vidas sexuais. Desse modo, havia muitos irmãos, filhos do mesmo pai ou mãe, figuras que muitas vezes substituíam os familiares reais quando o assunto era sexualidade. É nesta realidade, marcada pela neurose da epidemia do HIV/AIDS, que se inicia a história da relação de Pedro e Lucimar. Lucimar sugere que sua inserção no grupo também se deu com fim de autoaceitação de sua homossexualidade. Ele entendera que precisava estar junto aos iguais, o que possibilitaria, entre outras coisas, a liberdade de falar sobre o que não podia falar com ninguém e, quem sabe, estabelecer parcerias afetivo-sexuais. Lucimar: E eu procurei [o grupo] porque eu já estava cansado de me esconder, de não me aceitar, e um dia eu cheguei, não, eu já tinha percebido, já tinha me convencido de que aquilo dali não seria curado, digamos assim, e meu desejo com certeza falaria mais alto do que a minha razão, ou o que eu achava de razão, ou o que eu achava de racional. Aí, eu vi, eu acho que essa oficina em cartaz, foi ali perto da Cinelândia (...). (...) aí me interessei (...). Como eu trabalhava no centro, e a oficina era no centro, (...), eu comecei a participar. Aí nessa oficina tinha um grupo que se destacava, um grupo de amigos que era o grupo que você [Pedro] participava, eles se autointitulavam que eram a família, a família [nome de um dos membros], (...) era um colega nosso que já veio a falecer, faleceu já tem um tempo. Entrevistador: Qual foi a motivação principal de você ter começado a frequentar esses grupos? Foi por conta dessa questão da aceitação? De conhecer pessoas como você? Lucimar: É. Conhecer pessoas, exatamente. Não sei, queria conhecer pessoas como eu. Eu nunca tive amigos, pelo menos que se assumissem. Entrevistador: Você queria construir ali um círculo? Lucimar: Exatamente, eu queria estar junto aos iguais, ou pelo menos não me esconder como eu me escondia, conversar coisas que eu não poderia conversar com outras pessoas ou com a minha família. Aí, esse grupo se destacava, que era a família [nome de um dos membros]. Que se destacava também nessa oficina, todo mundo participava.
Mais à frente, quando Lucimar conta sobre o início de seu interesse por Pedro, ele novamente pontua seus interesses em participar no grupo:
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Na verdade, esse amigo [que frequentava o grupo com Lucimar], foi conhecendo o grupo, foi me aproximando, mais um é sempre bom. Eu sou uma pessoa legal pra caramba. E eu também fui me aproximando, com segundas intenções, eu já interessado, mas sabia que ele [Pedro] estava namorando, então, você tinha duas coisas boas, me aproximar, pra tentar me aproximar dele, e a segunda, me aproximar por me aproximar.
Pedro conta que no início não se interessou por Lucimar uma vez que ele não apresentava o fenótipo que geralmente lhe atraía. O interesse de sua parte deu-se com o tempo. Um ano depois de se conhecerem e após o término de seu namoro anterior, Pedro soube por um amigo que Lucimar estava interessado nele. Com pouco tempo de envolvimento, perceberam que estavam muito próximos e começaram a namorar. Pedro admitiu, no início da relação, que ainda não gostava de Lucimar. Entrevistador: E logo depois disso [uma noite que passaram juntos], então, vocês nomearam como namoro, não é? Pedro: Aham. A gente começou a namorar, começou a sair. Começou com uma coisa que eu virei e falei, primeira coisa que falei pra você [para Lucimar]: “não gosto de você”. “Não gosto de você, sou apaixonado pelo [ex-namorado].” E ele falou que “nada a ver, vamos ver no que vai dar”. Porque eu pensei que ele não fosse aceitar...
Pedro afirma, todavia, que foi aos poucos, a pessoa Lucimar foi entrando na minha vida. Esse processo de apaixonamento, como mostrarei adiante, está relacionado ao aprendizado, por parte de Pedro, do significado de uma vida conjugal, uma vida que envolve a passagem do eu para o nós. A coabitação era cogitada desde o início do relacionamento e se concretizou a partir do ano 2000. Pedro e Lucimar moraram em diferentes lugares e atualmente estão construindo sua casa própria em uma comunidade não pacificada, segundo eles, por falta de opção. Como vemos, o estabelecimento de uma relação afetivo-sexual estável deu-se mediante certa estabilização das identidades sexuais dos cônjuges. Enquanto Lucimar, cansado de tentar namorar mulheres, procurava ‘aceitar’ seu desejo, frequentando grupos identitários e formando redes de amigos que tinham em comum a discussão sobre a experiência das homossexualidades, Pedro viveu anos tendo uma vida heterossexual, relacionando-se com mulheres, experimentando até ter certeza daquilo mesmo que eu queria. Em sua pesquisa, Paiva (2007: 27-29) descreve e analisa processos semelhantes nos sujeitos de sua pesquisa: 124
A trajetória do assumir-se se encontra ligada a uma metafísica do ser/não ser. Nas histórias dos sujeitos da pesquisa vemos uma progressiva construção dessa distinção em que vai afirmando um posicionamento subjetivo. Assim, teríamos um período de indistinção, em que se experimenta a fronteira entre ser e não-ser. Período que alguns sujeitos caracterizam como “fazer o gênero”, período das “namoradinhas”, produção de máscaras, de mentiras, de disfarces, as tentativas de cura, de adaptação a um roteiro biográfico que lhes escapa. Essa distinção, pouco a pouco, dá lugar a uma certeza (“eu podia ser agora verdadeiramente quem eu era”), que serve, então, como alicerce para a construção de uma relação de transparência para consigo mesmo e com as pessoas mais próximas (micro-redes: família, amigos). (...) Podemos, evidentemente, problematizar essa metafísica ser/não-ser, fazer fendas nesse discurso que, de certa forma, retoma uma postura essencialista sobre o masculino e o feminino, sobre homem e mulher, sobre homossexual e heterossexual, ainda tão presente nos depoimentos. Aquela diferença sentida, nos primórdios da história de cada um, passa a ser nomeada, agenciada numa contra-identidade, que apazigua a equivocidade que ela trazia. A conquista dessa certeza permite a dissolução de crises e conflitos pessoais, desculpabiliza as intensidades desejantes e abre a via para as experimentações amorosas. As experimentações amorosas são, assim, o ponto de eclosão do processo de desvelamento de si, catalisam as negociações com as representações codificadoras da experiência amorosa e sexual, implicando um processo de dissolução dessas representações, nas quais o “amor que não ousa dizer seu nome” é desqualificado, quando não sumariamente elidido. (...) Após esse período de experimentação, de descoberta inclusive de toda uma rede de homossociabilidades até então imperceptível (descoberta de bares, boates etc.), começa uma busca por uma “história de amor”, muitas vezes descrita em termos flagrantemente românticos.
Diferentemente das histórias de Marcelo e Maurício, as trajetórias individuais de Pedro e Lucimar se coadunam de maneira mais explícita com as leituras que Paiva (2007) realiza dos sujeitos de sua pesquisa. Todavia, no casal aqui apresentado, esses processos que envolvem um posicionamento subjetivo, a afirmação, aceitação e certeza de uma contraidentidade e sua importância para o estabelecimentos de parcerias amorosas parecem acirrados pelo contexto da epidemia do HIV/AIDS. Por conta da neurose da epidemia – termo usado por Pedro –, já estava estabelecida, desde o primeiro contato, uma relação de parentesco entre Pedro e Lucimar, uma relação fraterna, de companheirismo, solidariedade e corresponsabilidade, mantida e reproduzida ao longo dos dezoito anos de relacionamento. Minha grande mudança foi do “eu” para o “nós”
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Quando perguntados sobre o que significava conjugalidade para eles, o casal afirma: Pedro: Conjugalidade, eu acho que é quando você vive uma vida em comum com uma clareza de quem é você e do que você quer daquela relação. Ali você quer viver dentro de uma conjugalidade... Lucimar: Uma relação conjugal. Pedro: Um tipo de relação, conseguir aquilo que você quer, e você sabe o que você quer naquela relação. Lucimar: Você tem a segurança, você tem a segurança toda. Você sabe o que o outro quer também, você pode confiar no outro, você pode contar com o outro. Você está ali com um amigo, companheiro, amante, com irmão. Pedro: Você não está só convivendo. Entrevistador: Então, há várias coisas que vocês listaram aí, além de uma convivência, a clareza, a cumplicidade, a segurança. Pedro: Você pode estar numa relação que você não tenha alguns desses princípios. Em relação à nossa. Lucimar: A gente vê relações de colegas nossos assim. Pedro: Você tem uma situação que você não está vendo, por mais que tenha, não são 18 anos de flores não, teve muitos espinhos, pétalas, tem tudo, meu filho. Tem areia removida. Já teve de tudo isso aqui. Hoje em dia, uma coisa assim, nós temos uma conjugalidade muito grande, o espaço de vida dele é dele, o meu é meu, nós aprendemos a dizer nosso, o que é dele é meu, o que é meu é dele, mas ele tem a individualidade dele de tudo. A gente tem uma conta conjunta, mas ele tem a conta dele, o dinheiro dele.
Como vemos, Pedro e Lucimar listam alguns princípios que definem uma relação como conjugal, entre eles a clareza de quem é você e do que você quer daquela relação. O casal explica, ao longo da entrevista, que uma relação estável se constitui se e somente se seus integrantes deixam claro o que pretendem com a relação, o que esperam dela e o que farão por ela. A vida a dois, desse modo, envolve transparência e fluxo constante de informações. Mesmo tendo suas individualidades preservadas, um não pode deixar de saber o que outro está fazendo no âmbito desta individualidade. Lucimar cita um exemplo recente: Pedro teria sido convidado para participar de um projeto com um amigo. Ele, todavia, não teria aceitado porque não chegou a falar com seu companheiro sobre. Pedro justifica: Não é uma obrigatoriedade, mas é querer que se faça parte. Porque tipo assim: “O Lucimar fez isso.” Eu digo: “Não fez.” Se falar que o Lucimar fez isso, isso e isso, ele vai até fazer, mas isso ele não fez, por quê? Porque eu saberia. Mas não fez. Sabe?
Durante sua narrativa sobre a história da relação, Pedro conta que viver a dois envolveu um longo aprendizado que consistiu em uma passagem do eu para o nós. Esta 126
passagem envolve a sensibilidade para perceber estados de humor do parceiro, identificar gostos, preferências e, acima de tudo, sempre tomar decisões mediante consulta e consideração à opinião do outro. Para Pedro, estar casado é pensar sempre em nome do casal. Nesse aspecto da relação aqui analisada, fica evidente como o cuidado de si é também um cuidado do outro e como ele sugere uma correspondência harmônica entre os componentes da relação conjugal. Pedro: ...o olhar de, de dividir é uma coisa (...). Viver junto. É uma coisa que eu sempre digo, eu aprendi a dizer “nós”. Porque era minha casa sempre. “Ah Lucimar, quando eu tiver a minha casa...” Ele falou: “não vai ser nossa, não?” “Não, vai ser minha casa e sua.” Entendeu? Então eu tive que aprender a dizer “nós”, a dividir, “não gostei disso, vamos levar?” Quando eu pegava, ele falava. Eu tive que aprender a ver o olhar dele, depois eu tive que aprender a perguntar. Depois eu tive que aprender que nós dois temos o mesmo olhar da coisa, e falar: “O que você achou? Eu gostei. Não, eu não gostei disso, a gente pode fazer assim.” Mas a minha grande mudança foi do “eu” para o “nós”.
Os discursos de Pedro e Lucimar sugerem que sua relação conjugal, de modo semelhante às anteriormente apresentadas, constitui-se por meio de uma temporalidade social, de uma frequência de ações, atos e discursos que, se a princípio descontínuos, terminam por sedimentar a passagem de uma vida do eu para uma vida do nós. Todavia, a conjugalidade, ou a passagem do eu para o nós não se constrói sem tensões. A vida a dois envolve ganhos e também perdas. Fica claro, nesse ponto, o desencontro entre a conjugalidade e a individualidade, discutido na pesquisa de Heilborn (2004). Ganhar de um lado e perder de outro, como sugere Pedro, é o modo encontrado pelo casal para lidar com tal desencontro. Esse processo de ganhar de um lado e perder de outro está presente em todos os aspectos da relação de Pedro e Lucimar, desde as decisões do dia a dia até os acordos sexuais. Pedro contou, por exemplo, que uma de suas fantasias era fazer sexo a três com Lucimar. Por não ter aceitado a sugestão do marido de terem essa experiência, Lucimar explica: ...você tem que abrir mão de alguma coisa. Mas você também não pode abrir mão de ter tudo, porque você também quer ficar confortável. Entrevistador: E do que é que você abre mão, Lucimar? Lucimar: Ah, em relação à novidade. Porque eu sou bem cotidiano, eu sou bem a mesma coisa e tal, tem que ir nas novidades. Pedro: Mas é uma abertura de mundo dos dois lados. Também não é tão... 127
Lucimar: “Ah, vamos fazer isso? Vamos. Vamos fazer isso de novo? Vamos. Vamos fazer de novo. Vamos. De novo? Ah, porra, de novo? De novo? É.” [risos] É a minha regularidade, eu tenho a necessidade da regularidade. Ele não. “Ah como assim, nessa mesma posição, cara?” Pedro: Ou simplesmente hoje não.
É na vida sexual do casal que as tensões em torno do desencontro entre conjugalidade e individualidade se tornam mais visíveis. O discurso do casal sobre suas práticas e acordos sexuais é marcado por aparentes ‘furos’ no tocante à cumplicidade e transparência, princípios que, como dito anteriormente, são caros à dupla conjugal.
Eu não posso esquecer as minhas fantasias
Quando o casal falava sobre os princípios da franqueza e honestidade da relação, ou o hábito de um sempre falar tudo para o outro, Pedro contou que possuía uma conta em um site de relacionamentos homossexuais e que Lucimar sabia disso. Pedro justifica: Pedro: Filho, eu tô com a conta, eu tô falando com as pessoas pra elas saberem que eu não vou dar pra ninguém. E se eu der eu aviso pra ele [Lucimar]. Foda-se. Aí eu botei, se eu der pra alguém eu vou avisar para o Lucimar. Como aconteceu quando eu fui pra Goiânia.
O episódio ocorrido em Goiânia, narrado por Pedro, envolveu uma festa na qual ele teria ficado muito bêbado e passado a noite aos beijos com outro homem. Segue um trecho da conversa que, apesar de longo, parece importante para pensarmos a problemática dos acordos sexuais e como isso afeta a relação. Pedro: Ih, filho, tinha [na festa] um menino que hoje ele é casado, na época ele tava querendo ser gay. [Nome do rapaz], beijei o [rapaz] muito, beijei, beijei, e todo mundo sabia que eu era casado. O [amigo na festa] me perguntou, “o que você vai fazer?” “Quando eu chegar em casa eu vou falar com o Lucimar.” Ele: “jura?” “Eu juro.” Vou fazer o quê? Entrevistador: Como você recebeu isso, Lucimar? Lucimar: Você não disse que tinha beijado muito não, que tinha beijado só uma vez. [risos] Pedro: Para, eu falei que tinha beijado o rapaz. Lucimar: Eu fiquei puto, mas eu gosto dele. Eu perguntei se o rapaz não seria mais visto. [risos] Entrevistador: Não te incomoda o fato do Pedro ter uma conta aberta no [site de relacionamentos homossexuais]? Lucimar: Não, porque eu já tenho [já acesso] a conta.
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Pedro: Porque eu conto, tudo que eu tivesse que fazer seria aberto. Rolou isso, como assim, a gente já teve uma situação de falar, “vamos fazer a três?” E ele “não. Mas não.” “Então tá.” Entrevistador: Então existe uma espécie de, isso faz parte dos acordos sexuais, então? Do casal. Pedro: Nós temos cumplicidade, então eu não vou fazer uma coisa e não falar com ele. Eu tinha o desejo de transar a três, eu não saberia como seria a minha recepção se alguém colocar a mão nele. (...) Entrevistador: Você [Pedro] queria fazer? E você [Lucimar] não recebeu isso bem, pelo que ele falou? Pedro: Não. Lucimar: Não, não teve nem bem nem mal, ele só falou. Entrevistador: E você [Pedro] foi ter essa experiência com outras pessoas? Pedro: Não. Não, o lance era aqui, que rolasse os três. Uma coisa que nós descobríssemos, se ele não quer, a vontade ainda está, mas tá guardada em algum lugar. Entrevistador: E o que você [Lucimar] acha disso? Lucimar: Ah, é aquele negócio, você... assim, a liberdade você vai ter pra fazer, agora é aquele negócio você também sabe que... pode não ser uma boa recepção. Quando eu souber. Você arrisca, mas... Entrevistador: Deixa eu ver se entendi. Você sabe que você não vai receber bem uma notícia de, por exemplo, ele dizer que ficou com outra pessoa... Lucimar: Não, eu não sei como eu vou receber. Entrevistador: Mas você... Lucimar: Não, eu não gosto. Entrevistador: Eu entendi, mas... Eu estou colocando o que está me parecendo, você, é provável que você não receba bem a notícia, mas você respeita a liberdade dele, é isso? Lucimar: [resposta assertiva não verbal] Entrevistador: Certo. E você [Pedro]? Pedro: Eu não posso esquecer as minhas fantasias. [risos]
Mediante esse trecho, somado à observação do comportamento não verbal durante a situação de entrevista, é possível perceber algumas contradições, meias verdades e não ditos no relato do casal. Pedro tenta falar por Lucimar, evitar que o ciúme e o desconforto do parceiro fiquem visíveis. Quando eu insisto em investigar o sentimento de Lucimar perante a aparente liberdade do marido, ele reconhece seu desconforto com certa resistência. Durante a situação de entrevista, algumas surpresas acontecem, como o fato de saber que Pedro beijou muito o rapaz na festa e não apenas uma vez. O princípio da transparência, desse modo, encontra na sexualidade o seu limite, ou antes, relativiza-se. Outra situação, também narrada por Pedro, envolveu uma suposta traição de Lucimar. Este teria reencontrado o primeiro homem que beijou na vida, argumento que Pedro pareceu usar para justificar ou minimizar a infidelidade do marido. Por acaso, Pedro passava de ônibus quando viu o marido entrando na casa do tal homem. Após alguns dias de silêncio, Pedro confrontou o marido, fazendo-o confessar. Esse episódio 129
teria gerado a dissolução da relação se a família de origem de Pedro não intervisse em favor de Lucimar, alegando que ele é um homem bom e que todo mundo erra. Durante essa narrativa, Pedro afirmou de início que Lucimar teria confessado um encontro sexual com o outro homem, mas em um segundo momento afirmou que ele teria dito que não acontecera nada, o que sugere que Pedro na verdade não sabe o que aconteceu e que estaria, naquele momento, apenas tentando convencer a si mesmo de que nada acontecera. Lucimar, por sua vez, permaneceu em silêncio durante esta narrativa, não se manifestando para contar sua versão da história. De modo mais notável que no casal anterior, o jogo discursivo entre Pedro e Lucimar envolve “negociações de palavra e silêncio, abrir as cartas e fazer segredo” (PAIVA, 2007: 37). As práticas sexuais, mesmo acordadas e abertas, estão permeadas de ‘penumbras’ que, curiosamente, parecem sustentar a relação. Parece ser melhor que não se saiba de tudo, que não se fale de tudo, que as coisas permaneçam ditas pela metade, para que a relação conjugal se mantenha. E a maneira bem humorada e despretensiosa de contar a história, assim como o ato de rir da situação, aparece como uma forma de reduzir o desconforto que a narrativa pode trazer. Essa ‘penumbra’ nos acordos sexuais também indica uma separação entre público – o que acontece na rua fica na rua, não precisando ser dito às claras – e privado – a assepsia do lar, a exclusividade do afeto. Desse modo, a lealdade, como no casal anterior, permanece como um dos maiores princípios da conjugalidade. Todavia, como mostrado em outro trecho, é importante frisar que o casal procura satisfazer suas fantasias. Entra em cena, novamente, o processo de ganhar de um lado e perder de outro, definidor da conjugalidade, segundo Pedro e Lucimar.
Eu já não existo pra família dele, e agora socialmente eu também não vou existir?
Pedro aponta, em outro momento da entrevista, que o gerenciamento da visibilidade e reserva da relação é uma particularidade da conjugalidade homossexual. Lucimar reconhece que não costuma demonstrar afeto em público, embora todos à sua volta os reconheçam como casal. Há uma discordância entre o casal nesse ponto, uma sutil ‘acusação’ pela falta de demonstração do afeto, presente no seguinte trecho, quando falavam de possíveis semelhanças com outros relacionamentos: 130
Lucimar: A relação é igual, da porta da rua pra dentro de casa. Ela é igual, dependendo do grupo onde você estiver, na família dele ela é igual, com reservas. A gente não se beija. Pedro: O Lucimar não me beija. Lucimar: Não, é, a gente não se beija. Como em casa, por exemplo, se algum casal quiser se beijar incisivamente, a gente não vai fazer isso, por causa dos adultos e crianças, mas a gente fica de mão dada, fica um sentado do lado do outro. Senta junto. Até (...) mesmo porque a própria família ela acha estranho. Vou te dar um exemplo, teve uma vez, logo depois do falecimento da mãe dele, a irmã dele estava chateada, foi lá pra casa e tal, ela estava sentada, a gente estava conversando alguma coisa e de repente a gente foi e se beijou. Aí ela: “nossa, eu nunca vi vocês se beijarem. Que bonito!” Porque foi natural. Então, da porta da rua pra dentro é normal, a gente divide tarefa, a gente se beija e se abraça. Tem a nossa intimidade. No convívio de determinados grupos, é também a mesma coisa, na família dele, nos nossos amigos e tal, da porta da rua pra fora, a gente não se toca. A gente não fica de mãos dadas. Pedro: Ele não quer mais. Lucimar: Não, não fica. Pedro: Mas tinha que ficar. Entrevistador: Antigamente ficava? Lucimar: Antigamente a gente era mais novo, mais jovem. Acho que você tem aquela coisa de, não de afrontar, mas de querer delimitar espaço. Porque a gente não fazia isso na favela. A gente fica de mão dada na zona sul, em Ipanema. Agora no centro da cidade, em Campo Grande, Bangu? Não. Por quê? Pedro: Porque ele não quer mais. Lucimar: Ah, não fica.
Pedro reclama dos cuidados do companheiro, quer demonstrar afeto em público, como era no início do relacionamento. Lucimar, por sua vez, entende que a demonstração pública de carinho está atravessada por questões de classe social: na comunidade onde moram nunca sequer se tocaram; na zona sul, região que também frequentam, o afeto ocorre, porém com uma série de cuidados. É possível perceber, além das discordâncias quanto à demonstração de afeto, uma contradição na fala de Lucimar sobre os motivos da reserva de sua parceria conjugal. Se num primeiro momento ele diz que não demonstra afeto porque teme olhares discriminatórios, logo reconhece que é sua reserva que termina por reafirmar as surpresas e estranhamentos frente à sua conjugalidade. Contradições como esta aparecem em outros momentos da entrevista, o que sugere uma dificuldade de Lucimar em visibilizar, através da relação, sua preferência afetiva e sexual. A dificuldade de Lucimar em se assumir mediante a assunção da relação homossexual aparece durante a conversa sobre casamento.
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Pedro e Lucimar casaram-se há alguns meses. Pedro sugeriu que eles pedissem licença casamento em seus empregos para uma viagem de lua de mel. Para isso, teriam que apresentar suas certidões de casamento, o que Lucimar se negou a fazer. Lucimar: Eu falei, “a gente vai ganhar uns três dias”. Quando você casa você ganha três dias para a sua lua de mel, aí eu falei assim: “Bom, eu posso tirar folga na escola, agora eu não vou apresentar o documento.” Aí ele ficou chateado. Eu falei que eu posso folgar algum dia e no outro faltar, mas eu não vou apresentar o documento. Ele falou, “então como a gente vai?” “A gente não vai. Se não for assim a gente não vai.” Porque eu não quero apresentar o documento lá, não quero chegar e dizer que eu sou casado, que não sou casado com uma mulher, que sou casado com um homem, e eu só dizer agora. “A gente, tá, vamos, não vamos, vamos, não vamos.” Mas chegou uma hora que você [Pedro] concordou, não foi? Aí ele falou assim, “então a gente vai viajar em outro momento”. Eu falei “então tá, a gente vai viajar em outro momento”. “Eu [Pedro] vou apresentar”, eu falei “tá você apresenta, fica os três dias em casa”. Entrevistador: E por que você [Pedro] ficou aborrecido ou incomodado? Por que você fez questão que ele apresentasse? Pedro: Não fiz questão que ele apresentasse, o problema não era apresentar. Porque assim, (...), pros meus irmãos ele é cunhado, pra minha madrasta, ele era noro dela. Pra família dele, tinha a situação que pra família dele é o oposto. Pra você ver, a mãe do Lucimar fez aniversário, sabe que a gente mora junto, ela junta a família, faz um aniversário pra toda a gente e não me convida. Entrevistador: Não te convida? Lucimar: O natal geralmente eu passo com a minha família, passo com a família, e ele com a dele, porque a minha mãe nunca convidou ele pra passar o natal lá. E a minha criação sempre foi muito família. Então, eu não vou deixar de passar o natal com a minha mãe e o meu pai, ne. Mas ela é obsessiva. Pedro: Então eu já não existo. Fica uma coisa difícil. (...) Entrevistador: Complicado, ne? Pedro: É um posicionamento dele. Entrevistador: Então é por isso que você... Pedro: Eu já não sou pra sua família [de Lucimar], e eu não vou ser socialmente? Entrevistador: Tá, mas quando eu perguntei sobre a questão de porque você queria que ele apresentasse [a certidão de casamento] no seu trabalho, e aí você contou essa situação que a família dele que... Pedro: É, porque eu já não existo pra família dele, e agora socialmente eu também não vou existir? (...). Entrevistador: Qual é a relação dele apresentar o papel no trabalho e a família dele? Pedro: Já não existo socialmente pra família dele, e eu não vou existir socialmente também? Você casa comigo, mas não consta. Pro município ele é solteiro. Ele não apresentou o documento. Socialmente eu não existo.
Nesse trecho, vemos que a negativa do marido em mostrar o documento no trabalho é algo que aborreceu Pedro não por ele ter perdido a oportunidade de uma viagem de lua de mel, mas porque o ‘papel’ não teria cumprido uma de suas funções, a 132
saber, dar existência objetiva, formal, à relação conjugal. Quando perguntado se a oficialização da relação teria uma finalidade simbólica, para além da proteção do patrimônio, Pedro respondeu: Não, não, é mais pra se ter [garantia do direito de herança] mesmo. O simbólico foi a situação que eu falei da minha não existência, que eu consto na vida dele, mas pro mundo eu não existo. Então, mesmo que fosse um papel, que oficializasse a nossa realização, não. Então eu falei, pra que oficializar no papel?
Todavia, Pedro acaba por aceitar e respeitar a decisão do marido, o que remete novamente à sua definição de conjugalidade como condição que envolve ganhar de um lado e perder de outro. Parece haver uma conformação e uma valorização de outros aspectos importantes da relação – como o companheirismo –; em outros termos, alguns ganhos podem ‘anular’ ou ‘compensar’ algumas perdas. Estas, todavia, continuam sendo colocadas em discussão no dia a dia da relação. Pedro: Aí nisso eu comecei a notar, meu casamento já não existia pra família [de Lucimar], meu casamento não existia no serviço nem pra nada. Um colega meu me falou uma coisa, “ele não te assume? Então você vai ter que abrir mão de alguma coisa.” E também a questão não é isso, “Pedro, a gente já casou? Então se ele vai casar, filho, o questionamento é que amanhã ele vai ter que apresentar em algum lugar esse documento.” A certidão está assinada. Lá na [loja], ele apresentou a certidão. E fizeram algum comentário? Não.
De todo modo, o registro da união civil foi recente e o casal parece ainda estar digerindo os efeitos que tal documento pode gerar. Quando falavam sobre sua militância diária – semelhante à noção de militância dos outros casais –, Pedro contou situações em que precisou mostrar sua certidão de casamento e as surpresas que tal documento causou. Parece-me que, para Pedro, o ato de mostrar o documento é um ato político que confere existência objetiva e subjetiva da relação, tornando-a inteligível e aceitável. Quando perguntados sobre como eles definiam sua relação, Pedro responde, com certa dificuldade, casados, ao mesmo tempo em que olha para o marido, aparentemente esperando aprovação. Mas logo acrescenta: Na plenitude nós estamos casados.
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CAPÍTULO 6 Considerações finais
As histórias conjugais aqui apresentadas evidenciam a complexidade de sua manutenção sob as regulações da matriz de gênero. Penso que não é possível oferecer uma resposta direta sobre se os casais investigados rompem ou não com a referida matriz; está claro que, antes de operarem em dicotomias como opressão x libertação, os casais operam sua existência de modo aparentemente ambíguo, contraditório, fato que sugere a prática de negociações e renegociações de suas possibilidades existenciais através de um diálogo com o que é determinado em termos de gênero, sexo e desejo. Ganha-se de um lado, perde-se de outro. Os dois casais de mulheres apresentados nesta pesquisa aproximam-se do modelo tradicional de conjugalidade: duais e monogâmicos – com algumas pequenas diferenças entre os casais quanto à definição de monogamia –, cujos componentes, mesmo que de sexos iguais, não rompem com a correspondência entre gênero e sexo. Todavia, elas rompem com a matriz de gênero no tocante à correspondência entre sexo e desejo/práticas afetivas e sexuais. Mesmo representando uma subversão, esses casais operam de modo a reiterar, não sem contradições, desencontros e discordâncias, sua inserção na heteronormatividade. Joana, Rebeca, Fernanda e Bruna são constrangidas a constituírem uma família no formato tradicional, a se ‘explicarem’ como casais de mulheres, etc. Não obstante, elas se submetem às referidas exigências ao seu modo, negociando e gerenciando os desejos e possibilidades. Elas parecem se reapropriar de uma ‘linguagem’ do poder de acordo com a história do casal, suas particularidades e dificuldades. A criatividade dos sujeitos, como vemos, é mediada pelas possibilidades do contexto. As conjugalidades gays, por sua vez, também apresentam particularidades e singularidades, de modo que a própria definição de homoconjugalidade torna-se uma definição em aberto. É a partir das histórias individuais e singulares que as homoconjugalidades se particularizam, organizam-se de acordo com as possibilidades e impossibilidades de cada contexto, num jogo constante de ganhar de um lado e perder de outro. Enquanto Marcelo e Maurício se inserem na rede familiar sem maiores dificuldades, Pedro e Lucimar realizam uma série de cuidados e táticas para manter 134
relativa invisibilidade, reserva, discrição e até mesmo o ‘segredo’ ou ‘inexistência’ da relação, o que parece ser fonte de desconforto. As diferenças no tocante à dinâmica conjugal em torno de sua (in)visibilidade – e sua inteligibilidade – apontam para reconfigurações variadas da relação conjugal. Não obstante esta variação, é possível concluir que, pela via do afeto e da discrição, os casais de homens analisados vivem suas relações no limite da respeitabilidade, resguardando seu lugar na hierarquia sexual proposta por Rubin (1999): eles não podem ocupar o mesmo patamar social de uma típica relação estável heterossexual, mas podem ocupar o nível destinado a casais homossexuais estáveis e ‘respeitáveis’, garantindo, assim, sua inserção na malha social e cultural. Trata-se, de modo semelhante aos casais de mulheres, de um gerenciamento da relação que gera deslocamentos na matriz de gênero que, não obstante, possam ‘incluir’ esses casais. Nesse gerenciamento, o casamento civil, mesmo que entendido como ação prática de garantia de direitos, mostra-se como tática necessária em prol da inteligibilidade e redução da precariedade. Concomitantemente, tudo que diga respeito à intimidade do casal, inclusive o desejo, é negociado quanto à sua visibilidade ou não, sua possibilidade ou não, suas implicações em termos de inteligibilidade e aceitação. Tal negociação, no entanto, não ocorre sem tensões. Conforme já discutido, parte considerável das pesquisas recentes trata da homoconjugalidade masculina (DEFENDI, 2010; LOPES, 2010; SILVA, 2008; PAIVA, 2007), oferecendo leituras que não podem ser tomadas como referências para a realidade das relações lésbicas. A discussão sobre identidade sexual é o exemplo mais notável. O estudo de Defendi (2010), cujo objetivo consistiu em discutir a assunção da relação homossexual e seus efeitos na rede social do casal, considera, com base em extensa bibliografia e nas conclusões retiradas a partir da pesquisa de campo, que a identidade sexual – sua definição e estabilização – mostra-se fundamental para o estabelecimento e permanência de vínculos amorosos entre homens homossexuais. Consideração semelhante é feita por Paiva (2007), que aponta, em sua pesquisa de campo, que as experimentações amorosas são um ponto máximo de ‘descoberta’, ‘autoaceitação’ e assunção da homossexualidade, um ponto no qual o vínculo amoroso e sexual confirma certo desejo e desqualifica suas representações negativas. Cuidar da 135
relação gay, desse modo, é cuidar de si mediante a estabilização de uma identidade e prática sexual e, em paralelo, a negação e/ou restrição de outras. Em estudos sobre conjugalidade lésbica (MEINERZ, 2011), assim como na presente pesquisa, a estabilização da relação conjugal entre mulheres não parece dar-se mediante a estabilização de uma identidade ou ressignificação de uma ‘culpa’. Nestas relações, as mulheres se envolvem por razões, gostos e desejos variados, não por possuírem naturalmente uma suposta afetividade homo, como colocado por um dos casais de homens. Essas diferenças apontam para maior flexibilidade, por parte dos casais de mulheres, daquilo que Paiva (2007: 28) denomina “metafísica ser/não ser”, que estabelece, entre outras, a dicotomia homo x heterossexual. Podemos considerar, portanto, que no quesito identidade sexual os casais de mulheres destacam-se por operar subversivamente na matriz de gênero, deslocando significados do que é ser hetero ou homossexual, o que não visualizei nos dois casais de homens que entrevistei – embora alguns deles tenham tido experiências heterossexuais, mais tarde ‘deslegitimadas’ por uma reavaliação de suas histórias individuais. Nas perguntas sobre diferenças entre casais homo e hetero, enquanto os casais de homens questionaram se haveria diferenças, um casal de mulheres questionou explicitamente a própria categorização afetivo-sexual. Importante frisar que, no caso das relações lésbicas aqui apresentadas, a aparente ‘indefinição’ do objeto sexual não se revelou um aspecto disfuncional do casal ou um indicativo de menor qualidade conjugal, como a pesquisa de Defendi (2010) sugere quando se refere a casais de homens. Esta ‘indefinição’ mostrou-se como questão relevante apenas no casal constituído por Joana e Rebeca, embora não como ameaça de dissolução da relação, mas como um ponto de insegurança sobre o qual o casal procura dialogar. Em relação à história de Joana, vemos que ela aciona performatividades variadas que apontam para um jogo de verdade no qual ‘definir-se’ parece ser sua questão central. A suposta necessidade de definição ou estabilização da identidade sexual parece ser, para ela, um ponto fundamental na manutenção da relação. No casal Fernanda e Bruna, a ‘indefinição’ da identidade sexual não assume o mesmo peso para a relação. O ponto central para o casal – o que, de todo modo, o assemelha ao casal anterior – é o jogo de verdade da relação em sua possibilidade de 136
inserção na malha de inteligibilidade social e cultural. Inserir a relação conjugal na rede familiar parece ser um dos meios para esse fim. Nos casais de homens, a identidade sexual é apresentada como causa ou ponto de origem da relação. É por ser um homem que ama outro homem, por exemplo, que Marcelo entende o sentido de sua relação conjugal. A partir da perspectiva da performatividade, é possível depreender que tal identidade é constantemente (re)produzida e substancializada desde os primeiros momentos da história do casal, dos primeiros flertes ao casamento. São fabricações, como afirma Butler (1990/2012), manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos. Podemos considerar que, assim como o gênero, o sexo e o desejo, as conjugalidades analisadas constituem-se por meio de uma temporalidade social, de uma frequência de ações, atos e discursos que, se a princípio descontínuos, terminam por sedimentar a passagem de uma vida do eu para uma vida do nós, como explicitado por Pedro quando se referia ao longo processo de aprender a viver a dois. Mesmo preservando suas individualidades e liberdades, os casais parecem cientes de que precisam ‘responder’ enquanto casal para o entorno. É o meio que garante e legitima a condição do nós, reafirmando possibilidades restritas de organização de gênero, sexo e desejo/práticas sexuais. Considero importante resgatar a diferenciação que Foucault (1984/2004) realiza entre práticas de liberdade e práticas de liberação para pensarmos o cuidado de si no âmbito de uma estética da conjugalidade. Concebido como uma prática de liberação, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não garante, a princípio, transformações amplas nas regulações de gênero e sexualidade. Tal liberação precisa estar acompanhada de práticas de liberdade, o que remete à reapropriação subversiva, por parte dos sujeitos ou das díades, dos esquemas de poder. Em relação à conjugalidade, fica clara a proposição foucaultiana de que o cuidado de si, que se fundamenta no princípio da autonomia de uma estilização da existência, envolve a presença do outro. Nas conjugalidades analisadas, pudemos visualizar a importância que a relação, o par, assume no desenvolvimento de uma estética da liberdade. Uma estilística da existência que, a um só tempo, procurar pensar possibilidades conjugais e de si. Estas possibilidades no âmbito de uma estética da conjugalidade reforçam a tese de que a matriz de inteligibilidade é por definição instável. Embora a matriz remeta à 137
inteligibilidade de algumas relações afetivo-sexuais e não de outras, ou como algumas relações, mesmo que marcadas pela diferença, operem de modo a referendá-la, é importante considerar que subversão e reiteração caminham de mãos dadas, numa complexa e contraditória relação. Como postulado ao longo da análise da bibliografia recente, apresentada no Capítulo 3, a conjugalidade homossexual, mesmo que revestida pelo manto normativo do casamento, continuaria representando um lugar de desencontros, de deslocamentos no âmbito da matriz de característica heteronormativa. Tratar-se-ia, ainda assim, de um lugar de diferença. É explicável, desse modo, a heterogeneidade dos sujeitos em seus discursos. As homoconjugalidades aqui apresentadas, entendidas como um espaço de construção de uma estética conjugal que elenca a liberdade como um de seus aspectos centrais, produzem discursos que abarcam possibilidades variadas e aparentemente excludentes ou contraditórias. Os casais apresentados vivem no horizonte das recentes transformações da conjugalidade, da intimidade, da família e dos rearranjos da matriz de gênero, sexo e desejo. É compreensível, portanto, que seus discursos sejam polifônicos, abriguem interdiscursividades variadas, produzam efeitos de sentido aparentemente contraditórios. Os discursos são complexos porque abrigam passado e presente, transformações macro e micropolíticas, movências no sujeito e em suas possibilidades de relacionamento afetivo e sexual. As estéticas conjugais estão sempre em transformação. Por fim, cabe ressaltar a temporalidade da pesquisa e a especificidade do conjunto de casais investigados. Não obstante algumas diferenças geracionais, regionais e étnicoraciais, tais casais se inserem em níveis socioculturais e econômicos próximos, o que restringe a presente análise apenas para algumas possibilidades homoconjugais. Ademais, foram entrevistados somente casais gays e lésbicos. Partindo-se da perspectiva de gênero proposta por Butler (1990/2012), os arranjos conjugais em termos de gênero, sexo e práticas sexuais são variados, podendo-se pensar, por exemplo, em conjugalidades trans*, que não foram incluídas no conjunto final de casais. As possibilidades conjugais, portanto, são tantas que requerem uma ampliação do campo de pesquisa.
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146
ANEXO 1 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido26, 27
Pesquisa: Homoconjugalidade em contexto de heteronormatividade.
Responsável: Rafael Reis da Luz. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela UFRJ.
Sobre a pesquisa: Você e sua parceira(o)/companheira(a)/cônjuge estão sendo convidadas(os) para conceder uma entrevista para um estudo exploratório, que trata da vivência da homoconjugalidade em contexto de heteronormatividade. A partir da postulação de um arranjo normativo que pressupõe a heterossexualidade como ‘normal’ ou todas as relações afetivo-sexuais como necessariamente heterossexuais, meu objetivo é investigar como se configuram as relações marcadas pela diferença, entre elas a conjugalidade gay e lésbica. Em outras palavras, meu objetivo é pensar como determinadas conjugalidades operam dentro de regulações de sexualidade e gênero. Tal proposta de pesquisa justifica-se, entre outros motivos, pela atualidade e importância política do tema.
Participação na pesquisa: Vocês deverão assinar o presente Termo e entregá-lo ao pesquisador, ficando com uma cópia assinada por este. Sua participação envolverá uma visita ou encontro com o pesquisador, seguida da realização de uma entrevista, que será gravada, caso vocês autorizem, e que contém perguntas sobre seu relacionamento, suas famílias
e
suas
histórias
pessoais,
entre
outros
assuntos.
Você
e
sua
parceira(o)/companheira(a)/cônjuge têm liberdade para escolher quais perguntas responder, como responder, assim como desistir de sua participação na pesquisa, a qualquer momento. Sempre que acharem necessário, vocês podem pedir mais
26
Documento baseado na Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, e adaptado de Moura e Ferreira (2005). 27 Contatos. Pesquisador:
[email protected]; Comitê de Ética:
[email protected]; Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP):
[email protected].
147
informações sobre a pesquisa, podendo entrar em contato com o pesquisador pelo email
[email protected].
Riscos e desconforto: A participação nessa pesquisa não traz complicações, à exceção apenas, talvez, de certa dificuldade em falar sobre determinados assuntos. É preciso, então, que vocês se sintam à vontade na situação de entrevista e na liberdade tanto de responder como de não responder as perguntas, assim como questioná-las, caso se sintam desconfortáveis.
Confidencialidade: Todas as informações coletadas nesse estudo são estritamente confidenciais, em todas as fases da pesquisa. Seus nomes e referências de tempo e lugar, entre outras que possam identificá-las, serão trocadas. O princípio da confidencialidade também será respeitado em eventuais apresentações dessa pesquisa ou de parte dela em artigos e eventos científicos. O princípio da confidencialidade não será respeitado se e somente se os voluntários solicitarem expressamente sua identificação na pesquisa.
Pagamento: Vocês não terão nenhum tipo de despesa por participar dessa pesquisa. Também nada será pago por sua participação. No entanto, vocês estarão realizando importante contribuição científica. Ademais, terão direito a uma devolutiva da pesquisa, em momento oportuno, a ser combinado com o pesquisador.
Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto meu interesse em participar da pesquisa. _____________________________ NOME DO VOLUNTÁRIO _____________________________ ASSINATURA DO VOLUNTÁRIO _____________________________ NOME DO PESQUISADOR _____________________________ ASSINATURA DO PESQUISADOR Rio de Janeiro, ___ de __________ de 2014. 148
ANEXO 2 Roteiro de Entrevista Eixo 1: apresentação da pesquisa, identificação do pesquisador e contrato psicológico. 1) Eu gostaria, primeiramente, de perguntar se vocês preferem dar essa entrevista individualmente ou em dupla. Fiquem à vontade para escolher. 2) Meu nome é Rafael Reis e estou realizando uma pesquisa sobre conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo. Por favor, informem seus nomes completos, idades e ocupações. 3) Vocês autorizam a gravação dessa entrevista e a utilização dela para fins de pesquisa? Vocês solicitam a confidencialidade nesta pesquisa? Em caso afirmativo, não haverá identificação das suas pessoas, pois será feita omissão ou substituição de toda e qualquer informação que possa identificá-los. Eixo 2: cônjuge/companheiro, história da relação, redes da relação. 1) O que significa conjugalidade ou relação conjugal para vocês? 2) Como e quando você conheceu FULANO? Conte-me a história da relação de vocês, como surgiu, como se estabeleceu... 3) Houve algum processo do tipo “ficar, namorar, casar”? 4) Como vocês vivem hoje? Como é a relação hoje? 5) Como vocês definem ou nomeiam a relação de vocês? Que nome vocês dão a esta relação? 6) A relação de vocês é assumida? Se sim ou não, por quê? Se sim, para quem? 7) Vocês são aceitos por suas famílias de origem? Como isso se deu? 8) Suas famílias são presentes na relação? Elas interferem ou influenciam a vida ou a relação de vocês? Elas têm alguma participação na vida de vocês? Dê exemplos de situações que envolveram a presença da família. 9) E quanto a outros espaços, trabalho, escola/universidade, espaços de lazer, amigos...? Vocês são assumidos e/ou aceitos? Como acontece nesses espaços? Dê exemplos de situações. 10) Vocês se consideram um casal aceito socialmente? 11) Fale-me da rotina de vocês. Como é o dia a dia de vocês? 12) Vocês moram juntos? Se sim, como é a rotina relacionada à casa? Como é ou tem sido viver junto? 13) O que vocês acham que torna sua relação semelhante ou diferente dos outros relacionamentos gays/lésbicos? Quais seriam as singularidades/diferenças da sua relação? 14) E em relação aos casais heterossexuais, vocês veem semelhanças e diferenças? Quais? 15) Quais seriam os dilemas, desafios e dificuldades da sua relação? Contem-me exemplos. 16) O que vocês esperam do seu relacionamento? Quais são as suas expectativas dessa relação? Como vocês veem sua relação num futuro próximo? Eixo 3: oficialização da relação (registro de uniões estáveis e/ou civis). 149
1) O que significa “casar-se” para vocês? O que significa “oficializar” uma relação para vocês? Qual o significado da oficialização de uma relação gay/lésbica para vocês? 2) Vocês fizeram isso? Pretendem fazer? Por que fazer? Por que não fazer? O que os levou a tomar ou não essa decisão? 3) Quais as implicações, consequências, benefícios ou prejuízos que vocês podem visualizar num registro de união estável ou união civil? 4) Como a oficialização da relação é/foi/seria/poderia ser vista pelas suas famílias de origem? 5) E pelos amigos e outros espaços de sociabilidade? Eixo 4: vivência/experiência e assunção da homossexualidade. 1) A definição de uma identidade sexual é importante para você? Como você se define? 2) O que é se relacionar com alguém do mesmo sexo para você? 3) Como foi o seu processo de descoberta da homossexualidade? Como se deu/se houve seu processo de reconhecimento/entendimento/aceitação da sua sexualidade? Vocês consideram ter passado/precisado passar por um processo de auto-aceitação? 4) Você viveu no armário/precisou esconder/assumir sua sexualidade? Conte-me sobre. 5) Você tem medo de sofrer homofobia/discriminação/preconceito? Você já sofreu? E você e seu companheiro (a)? Conte-me exemplos. 6) A AIDS, entre outras DST’s, é uma questão/problema para você? E para seu companheiro(a)? Como você lida com o risco da AIDS e outras DST’s? E seu companheiro(a)? 7) O seu relacionamento afetou/mudou seu olhar sobre sua própria sexualidade e personalidade? Como? 8) Como você vive sua sexualidade hoje? Como é o exercício da sua vida sexual hoje? Como vocês vivem sua sexualidade? Quais seriam os acordos em torno da esfera sexual? Eixo 5: parentalidade. 1) Quanto à geração e/ou criação de filhos: Vocês têm filhos, pensam ou já pensaram em ter? Por quê? Como se deu/se daria a geração/criação de filhos? 2) O que significa ser pai ou mãe para vocês? 3) Quais as implicações, consequências, benefícios ou prejuízos que vocês podem visualizar na paternidade/maternidade? 4) Como suas famílias recebem/receberiam/receberam a filiação de vocês? 5) E quanto aos amigos e outros espaços de sociabilidade? 6) Vocês acham que a geração e/ou criação de filhos afetou/afeta/afetaria sua relação de alguma forma? Eixo 6: militância/participação em movimentos sociais. 150
1) A questão dos movimentos sociais, da militância LGBT, afeta de alguma forma sua relação? 2) Vocês participam de algum movimento social? 3) (Se militante) Vocês acham que a militância, em especial a LGBT, é importante para a sua relação conjugal? Como? 4) Vocês gostariam de dizer/acrescentar alguma coisa?
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