Dissertação - TETTAMANTI, Giulia - Silvestro Ganassi - Opera Intitulada Fontegara

April 5, 2018 | Author: Vicente Santana de Jesus Neto | Category: Pop Culture, Venice, Time, Information, Entertainment (General)
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GIULIA DA ROCHA TETTAMANTI

SILVESTRO GANASSI: OBRA INTITULADA FONTEGARA UM ESTUDO SISTEMÁTICO DO TRATADO ABORDANDO ASPECTOS DA TÉCNICA DA FLAUTA DOCE E DA MÚSICA INSTRUMENTAL DO SÉCULO XVI.

Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do Título de Mestre em Música. Área de concentração: Fundamentos Teóricos. Orientador: Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl. Co-orientadora: Profa. Dra. Mônica Isabel Lucas.

CAMPINAS 2010

GIULIA DA ROCHA TETTAMANTI

SILVESTRO GANASSI: OBRA INTITULADA FONTEGARA UM ESTUDO SISTEMÁTICO DO TRATADO ABORDANDO ASPECTOS DA TÉCNICA DA FLAUTA DOCE E DA MÚSICA INSTRUMENTAL DO SÉCULO XVI.

Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do Título de Mestre em Música. Área de concentração: Fundamentos Teóricos. Orientador: Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl. Co-orientadora: Profa. Dra. Mônica Isabel Lucas.

CAMPINAS 2010

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

T293s

Tettamanti, Giulia da Rocha. Silvestro Ganassi: Obra Intitulada Fontegara. Um estudo sistemático do tratado abordando aspectos da técnica da flauta doce e da música instrumental do século XVI. / Giulia da Rocha Tettamanti. – Campinas, SP: [s.n.], 2010. Orientador: Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl. Coorientador: Profª. Drª. Mônica Isabel Lucas. Dissertação(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Ganassi, Silvestro. 2. Flauta Doce. 3. Veneza. 4. Renascença - Italia. I. Kühl, Paulo Mugayar. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título. (em/ia) Título em inglês: “Silvestro Ganassi: Opera Intitulata Fontegara. A systematic study of the treatise with commentaries on recorder technique and sixteenth century instrumental music.” Palavras-chave em inglês (Keywords): Ganassi, Silvestro ; Recorder (Musical instrument) ; Venice ; Renaissance – Italy. Área de Concentração: Fundamentos Teóricos. Titulação: Mestre em Música. Banca examinadora: Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl. Profª Drª. Lucia Becker Carpena. Prof. Dr. Luciano Migliaccio. Prof. Dr. André Luiz Tavares Pereira. Prof. Dr. Esdras Rodrigues Silva. Data da Defesa: 31-08-2010 Programa de Pós-Graduação: Música.

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Ao meu pai, Mario, por ter me dado a origem italiana e o gosto pela boa música. À minha mãe, Oracy, por ter me ensinado sempre o melhor e por ter lido com amor tudo aquilo que aqui está escrito.

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AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl, por ter acompanhado tão atenciosamente cada etapa deste trabalho e principalmente pela paciência e dedicação durante as muitas horas que passamos revisando a tradução da Fontegara. À Profa. Dra. Mônica Isabel Lucas, pelo incentivo incansável e pelas muitas conversas desde a elaboração do projeto até o final deste trabalho. Agradeço também pela oportunidade de ter, mais de uma vez, compartilhado minhas descobertas com seus alunos da disciplina “História da Música” do curso de Graduação em Música da Universidade de São Paulo. À Profa. Dra. Lucia Becker Carpena, pela leitura minuciosa do trabalho em meu exame de Qualificação, pelas colocações e sugestões bibliográficas relevantes a respeito do universo da flauta doce. Ao Prof. Dr. Luciano Migliaccio, pela disponibilidade e pelas excelentes aulas de História da Arte, sem as quais não teria sido possível a elaboração do primeiro capítulo. Ao Prof. Giorgio Pacchioni, por ter me apresentado o maravilhoso mundo da música italiana do século XVI e me orientado diversas vezes a respeito de suas peculiaridades. À FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pela concessão de subsídio para a realização deste trabalho. Ao querido Raí Biason Toffoletto, pelo apoio, incentivo, carinho e pela infinita paciência durante esses dois anos. À Nathália Domingos, pela amizade sincera e valiosa e também pela ajuda essencial nos momentos finais da dissertação. À Paula Callegari, por todo o apoio e amizade e aos seus alunos do curso de Flauta Doce da Universidade Federal de Uberlândia, por terem me proporcionado momentos de reflexão durante dois dias de palestras. A todos aqueles queridos amigos que me ajudaram de alguma forma ou estiveram presentes durante esta etapa: Camilo Di Giorgi, Débora Ribeiro, George Gutlich, Maurício Ribeiro, Noara Paoliello, Pedro Diniz, Raquel Aranha, Romeu Manson e Sandra Tornice.

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Dove manca la natura bisogna che larte sia maestra. Silvestro Ganassi dal Fontego

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RESUMO

Este trabalho consiste no estudo e tradução da Obra Intitulada Fontegara de Silvestro Ganassi dal Fontego, tocador da Ilustríssima Senhoria de Veneza. A obra, que consiste no primeiro tratado completo e detalhado sobre a flauta doce e sobre a arte da diminuição, foi impressa pelo próprio autor em 1535 e dedicada ao Doge Andrea Gritti. Para uma compreensão abrangente do assunto, viu-se necessário levantar dados da biografia do autor, ainda escassos e dispersos, a fim de compreender melhor sua participação dentro do ambiente cultural veneziano da primeira metade do século XVI. A este respeito descobriuse uma importante contribuição do autor como auctoritas músico-pintor da preceptiva pictórica veneziana quinhentista. Além disso, a dedicatória ao Doge, assim como os elementos especulativos inseridos no tratado coligam a Fontegara ao programa político cultural instaurado por Gritti e destinado ao resgate do Mito de Veneza após as derrotas sofridas durante as guerras contra a Liga de Cambrai. Após a tradução, viu-se necessário também a inclusão de um capítulo destinado a esclarecer os diversos pontos duvidosos do texto, assim como fornecer o repertório adequado para a compreensão da terminologia utilizada pelo autor e dos elementos da Musica Prattica do século XVI contidos na obra.

Palavras-chave: Silvestro Ganassi, Flauta doce, Veneza, Renascença - Itália.

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ABSTRACT

This work consists in a study and a translation of the treatise Opera Intitulata Fontegara, written by Silvestro Ganassi dal Fontego, player of the Most Illustrious Signoria of Venice. This treatise is the first complete and detailed work about recorder technique and the art of diminution. It was printed by the author himself in 1535 and dedicated to Andrea Gritti, doge of Venice at the time. For a comprehensive understanding of this subject, it was made necessary to gather data about the author’s biography, still scarce and diffuse, for a better understanding of his contribution to the cultural environment in the first half of Venetian 16th century. To this respect, I found in my research an important contribution of Ganassi as both musician and painter auctoritas from the Venetian painting preceptive in the 16th century. Furthermore, the dedicatory to the Doge, as well as the speculative elements inside the treatise, associate Fontegara to the political and cultural program created by Gritti and designated to recover the Mith of Venice, after the wars of the League of Cambrai. After the translation, it was also made necessary to insert a chapter aimed at clarifying the various unreliable points in the original text, as well as providing the adequate repertory to understand the author’s terminology and the elements from the 16th Century Musica Prattica inside the book.

Keywords: Silvestro Ganassi, Recorder, Venice, Renaissance - Italy.

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LISTA DE FIGURAS Capítulo 1: Figura 1: Organograma da família Ganassi (p. 11) Figura 2: Dedicatória manuscrita no exemplar da Fontegara da biblioteca Herzog-August em Wolfenbüttel (p. 13) Figura 3: Anônimo, possível retrato de Silvestro Ganassi, século XVI (p. 24) Figura 4: Lorenzo Lotto, “Retrato de homem com compasso e rolo de papel”, Berlim, Staatliche Museen, Gemäldegalerie (p. 26) Figura 5: Lorenzo Lotto, “Retrato de gentil-homem com luvas”, Milão, Pinacoteca di Brera (p. 27) Figura 6: Lorenzo Lotto, “Retrato de Febo da Brescia”, Milão, Pinacoteca di Brera (p. 28) Figura 7: Silvestro Ganassi, divisão da corda pelo compasso, Lettione Seconda (p. 29) Figura 8: Gioseffo Zarlino, estágios da geração humana, Institutione Harmoniche (1558), Primeira Parte, Cap. 7 (p. 36) Figura 9: Planta de San Francesco della Vigna, nave: largura X comprimento (p. 45) Figura 10: Planta de San Francesco della Vigna, capela grande: largura X comprimento (p. 46) Figura 11: Planta de San Francesco della Vigna, largura X comprimento + capela (p. 46) Figura 12: Planta de San Francesco della Vigna, largura X comprimento + capela + coro (p. 46) Figura 13: Planta de San Francesco della Vigna, largura: nave X capelas pequenas (p. 47) Figura 14: Planta de San Francesco della Vigna, largura: capela grande X capela pequena (p. 47) Figura 15: Planta de San Francesco della Vigna, capelas pequenas: largura X comprimento (p. 47)

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Figura 16: Jacopo Sansovino, Loggetta del Campanile (p. 52) Figura 17: Jacopo Sansovino, Loggetta del Campanile, estátua de Palas Atenas (p. 53) Figura 18: Jacopo Sansovino, Loggetta del Campanile, estátua de Mercúrio (p. 53) Figura 19: Jacopo Sansovino, Loggetta del Campanile, estátua de Apolo (p. 53) Figura 20: Jacopo Sansovino, Loggetta del Campanile, estátua da Paz (p. 53) Figura 21: Giovanni Zacchi, medalha cunhada em honra ao doge Andrea Gritti (1536) (p. 54) Figura 22: Franchino Gaffurio, frontispício do Prattica Musicae (1496) (p. 55) Figura 23: Frontispício da Fontegara (1535) (p. 64) Figura 24: Frontispício da Regola Rubertina (1542) (p. 64) Figura 25: Frontispício da Lettione Seconda (1543) (p. 65) Figura 26: Divisão da corda pelo compasso, Lettione Seconda (p. 65) Figura 27: Brasão de Neri Capponi, Lettione Seconda (p. 65) Figura 28: “C” capitular com figura de velha, Lettione Seconda (p. 65) Figura 29: Vibração das cordas justas, desafinadas e médias, Lettione Seconda (p. 66) Figura 30: Moldura de página, Regola Rubertina (p. 66) Figura 31: Moldura de página, Lettione Seconda (p. 67)

Capítulo 2: Figura 32: Ordem do soprano em propriedade de bequadro, Fontegara, cap.3 (p. 81) Figura 33: Ordem do soprano em propriedade de bemol, Fontegara, cap.3 (p. 81) Figura 34: Ordem do soprano em propriedade de música ficta, Fontegara, cap.3 Figura 35: Ordem do tenor em propriedade de bequadro, Fontegara, cap.3 (p. 82) Figura 36: Ordem do baixo em propriedade de bequadro, Fontegara, cap.3 (p. 83) Figura 37: Ordem das notas alteradas, Fontegara, cap.3 (p. 83) Figura 38: Notas super-agudas, modelo “B”, Fontegara, cap.4 (p. 86) Figura 39: Notas super-agudas, modelo Schinitzer, Fontegara, cap.4 (p. 86) Figura 40: Notas super-agudas, modelo Rauch, Fontegara, cap.4 (p. 87)

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(p. 82)

Figura 41: Primeira tabela de trêmulos, Fontegara, cap. 25 (p. 115) Figura 42: Segunda tabela de trêmulos, Fontegara, cap. 25 (p. 115)

Capítulo 3. Figura 43: Girolamo Romanino, afresco de conjunto de flautas doces, Castello del Buonconsiglio em Trento (1531) (p. 121) Figura 44: Anônimo, conjunto misto com flauta doce, primeira metade do século XVI (p. 122) Figura 45: Frontispício de um manual de dança publicado por Jacques Moderne em Lyon (1530-38) (p. 122) Figura 46: Sebastian Virdung, flautas doces, Musica getutscht (1511) (p. 125) Figura 47: Martin Agricola, flautas doces, Musica instrumentalis deudsch (1529) (p. 125) Figura 48: Marcas das flautas utilizadas para os dedilhados das notas super-agudas, Fontegara, cap.4 (recorte) (p. 131) Figura 49: Marca tipo A da família Bassano (p. 134) Figura 50: Frontispício da Fontegara (p. 134) Figura 51: Notas super-agudas, modelo Schinitzer, Fontegara, cap.4 (p. 136) Figura 52: Mão Guidoniana (p. 138) Figura 53: Flauta em sol, SAM 135, Kunsthistorisches Museum de Viena (p. 154) Figura 54: Fred Morgan, flauta em sol de marfim, coleção pessoal de Frans Brüggen (p. 154) Figura 55: Estojo para quarteto de flautas, SAM 171, Kunsthistorisches Museum de Viena (p. 156) Figura 56: Patricia M. Aguilar, gráfico das articulações “du” e “tu” obtidas através do software PRAAT (p. 167) Figura 57: Patrícia M. Aguilar, Gráfico das articulações “turuturu” e “turuluru” obtidas através do software PRAAT (p. 168)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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CAPÍTULO 1: SOBRE O AUTOR E O CONTEXTO HISTÓRICO DA FONTEGARA. 1.1. Biografia de Silvestro Ganassi dal Fontego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1.2. A Teoria das Proporções Harmônicas no século XVI e seus significados para a Sereníssima República de Veneza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

30

1.3. Silvestro Ganassi e a Pintura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .

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CAPÍTULO 2: OBRA INTITULADA FONTEGARA, TRADUÇÃO.

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CAPÍTULO 3: COMENTÁRIO SOBRE O CONTEÚDO DO TRATADO ABORDANDO QUESTÕES DA TÉCNICA DA FLAUTA DOCE E DA MÚSICA INSTRUMENTAL DO SÉCULO XVI. 3.1. A flauta doce na época de Ganassi: usos e instrumentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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3.1.1. Os dedilhados da Fontegara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

136

3.1.2. A flauta “Ganassi” nos séculos XX e XXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 3.2. Aspectos técnicos da flauta doce que possibilitam o tocar artificioso. . . . . . . . . .

159

3.3. A arte de diminuir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

169

3.3.1. Tratados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

171

3.3.2. Sobre a nomenclatura das proporções e seu uso na métrica musical . . .

244

3.3.3. Comentário sobre o sistema de diminuição ensinado por Ganassi . . . . .

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CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285

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ANEXOS

1. Fontegara, facsímile. 2. Francesco Zorzi, Memorial.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho consiste no estudo e tradução da Obra Intitulada Fontegara escrita e impressa em 1535 por Silvestro Ganassi dal Fontego, tocador da Ilustríssima Senhoria de Veneza. O tratado é a primeira fonte completa e detalhada sobre todos os elementos técnicos necessários ao tocar artificioso através da flauta doce e também, a primeira e mais completa referência sobre a arte da diminuição, da qual os mais de quinze autores que abordaram o assunto no decorrer do século XVI e início do século XVII imitaram seus modelos e regras. O objetivo principal desta tradução é disponibilizar ao flautista doce brasileiro uma das fontes primárias fundamentais da literatura do instrumento, ainda pouco lida e estudada, devido à complexidade da escrita que o autor emprega: isto se dá pelo uso de um italiano antigo com fortes influências do dialeto veneziano, pela falta de pontuação e letras capitulares e pela tipografia repleta de abreviações com as quais não estamos mais habituados. Além disso, a falta de traduções satisfatórias que mantenham o texto mais próximo do original dificulta muito o trabalho dos intérpretes e pesquisadores que desejam recuperar a prática do instrumento e da música italiana do século XVI. A primeira tradução realizada está em alemão e foi publicada por Hildemarie Peter em 1956. A partir desta tradução, em 1959, foi elaborada uma versão em inglês por Dorothy Swainson:1 ambas são consideradas pelos pesquisadores como incompletas e insatisfatórias.2

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GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara, Venice 1535. A treatise on the Art of Playing the Recorder and of Free Ornamentation, edited by Hildemarie Peter. English translation by Dorothy Swainson. Berlin: Robert Lineau, 1959. 2 “One of the major problems with Ganassi’s treatise is the lack of good translations [...]” BROWN, Adrian. “The Ganassi Recorder: Separating Fact from Fiction” In: American Recorder, v. 47, n. 4, 2006, p. 18. Lasocki afirma ter traduzido todas as passagens citadas em sua biografia do autor, devido à pouca proximidade que as traduções publicadas têm com o texto original. LASOCKI, David. “Renaissance Recorder Players” In: American Recorder, v. 45, n. 2, 2004, p. 23.

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A segunda tradução, para o francês, só foi publicada em 2002, por Christine Vossart e Jean-Philippe Navarre.3 Tal edição trouxe importantes esclarecimentos para a comunidade flautística, sendo muito elogiada em publicações.4 Foi importante também, em diversos momentos da execução deste trabalho, a transcrição para italiano moderno de Daniele Salvatore, publicada em 2003, principalmente no que se refere às inúmeras e elucidativas notas de rodapé que acompanham o tratado.5 Entretanto, durante o trabalho foram encontrados muitos pontos obscuros que tais versões não souberam resolver, tendo a tradução belga omitido ou completado o texto em alguns casos e a transcrição italiana escrevendo-os como está no original. Por isso, para a presente tradução, tentou-se buscar uma maior proximidade e equivalência com o texto original, contudo sem deixá-lo incompreensível do ponto de vista da língua portuguesa, de modo a proporcionar uma leitura mais correta dos significados e da terminologia empregada pelo autor. Com o intuito de fornecer uma compreensão mais ampla da obra e a sua função dentro do cenário cultural veneziano, viu-se necessária a elaboração do primeiro capítulo, no qual será feito um apanhado de todas as informações encontradas até o presente momento, e suas respectivas fontes, sobre a biografia de Silvestro Ganassi, destacando sua atividade como músico e como pintor. A este respeito serão discutidas no item 1.3. duas importantes citações sobre o autor, descobertas por nós durante a pesquisa bibliográfica, nos tratados de pintura de Paolo Pino (1548) e Lodovico Dolce (1557), destacando uma contribuição de Slivestro dal Fondaco como auctoritas músico-pintor dentro do ambiente veneziano e também suas referências à pintura no Capítulo 1 da Fontegara. No item 1.2. serão discutidos os conceitos que definem a Teoria das Proporções, utilizada como fundamento teórico validador de todas as preceptivas artísticas da época, e presente nas quatro regras de diminuir da Fontegara. É importante destacar que a partir de tais informações, verificou-se que, tanto a utilização das proporções no conteúdo do tratado quanto a dedicatória endereçada ao doge Adrea Gritti, colocam a Fontegara em um lugar 3

GANASSI, Silvestro. Oeuvres complètes. Vol. 1 : La Fontegara (1535). Édition de Christine Vossart. Introduction, traduction et notes par Jean-Philippe Navarre. Sprimont, Belgique: Mardaga, 2002. 4 Ver: LASOCKI, David. “Recorder in Print: 2003.” In: American Recorder, St. Louis, v. 46, n.3, 2005, p. 18. 5 SALVATORE, Daniele. L’arte opportuna al sonar di flauto. Savignano sul Rubicone: Gruppo Editoriale Eridania, 2003.

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de destaque e conformidade com o programa político cultural veneziano em vigor no primeiro quarto do século XVI. O terceiro capítulo tem como objetivo fornecer um guia para a leitura do tratado, em que serão discutidos os principais aspectos de seu conteúdo como dedilhado, articulação, elementos do tocar artificioso e a prática da diminuição. Além disso, será oferecida uma série ferramentas fundamentais para a leitura correta do texto, extraídas das principais fontes primárias da teoria musical do século XVI, com as quais é possível familiarizar-se tanto com a terminologia quanto com os procedimentos descritos por Ganassi. Também se discorrerá brevemente a respeito do uso da flauta doce durante o período em que o autor atuou como piffaro do Doge, e de que maneira a “redescoberta” dos modelos renascentistas influenciou a execução atual e a construção de instrumentos no século XX e XXI. Por fim, foi feita uma resenha de todos os manuais de diminuição, destacando os aspectos relevantes para o entendimento do seu significado bem como a sua influência no processo de emancipação da música instrumental. Tal item tem o objetivo de trazer à luz este novo repertório, raramente praticado pelos brasileiros, a fim de enriquecer e complementar a formação do flautista doce em nosso país.

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CAPÍTULO 1: SOBRE O AUTOR E O CONTEXTO HISTÓRICO DA FONTEGARA.

1.1. Biografia de Silvestro Ganassi dal Fontego. As informações sobre a vida de Silvestro Ganassi dal Fontego são escassas. Porém, através de excertos autobiográficos contidos em seus tratados – Opera Intitulata Fontegara (1535), Regula Rubertina (1542) e Lettione Seconda (1543) –, de documentos venezianos de contratação e pagamento e de algumas outras citações, podemos delinear a figura do autor e sua atividade na Sereníssima República de Veneza.

Para a elaboração deste

trabalho, além de algumas fontes primárias, foram consultadas as mais importantes biografias modernas do autor6; dentre elas, destacam-se, devido à quantidade de informações, os textos elaborados por Lasocki e Lo Presti. Durante o trabalho, notou-se que, para fornecer uma visão mais clara da vida de Ganassi, era necessário coletar informações importantes dispersas em cada uma das fontes consultadas. Além disso, muitas destas biografias, como o verbete do Grove e as traduções disponíveis da Fontegara, ofereciam-nos dados concretos – como por exemplo, a data e o local de seu nascimento – que na sua maioria foram relatados pelo próprio autor em seus tratados, sem nos dar referência das passagens ou simplesmente citá-las. Notou-se ainda, que nenhuma das biografias relatava a atividade de Ganassi como pintor ou citava os textos das preceptivas pictóricas quinhentistas que o nomeiam, a não ser uma breve menção de Lasocki ao 6

ONGARO, Giulio. BROWN, Howard M. "Sylvestro di Ganassi dal Fontego" In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001; LASOCKI, David. “Renaissance Recorder Players” In: American Recorder, v. 45, n. 2, 2004, p. 8-23; LO PRESTI, Carlo. “La musica strumentale per fiati nella Venezia del Cinquecento” In: SALVATORE, Daniele. L’arte opportuna al sonar di flauto. Savignano sul Rubicone: Gruppo Editoriale Eridania, 2003, p. 1-6; GARGANO, M. C. “Sylvestro Ganassi dal Fontego” In: Bollettino dell’Istituto Musicale Sylvestro Ganassi di Catania, v. 1, n. 6, 1987. Disponível em: , acesso em 10 de junho de 2009; SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. Venetian Instrumental Music, from Gabrieli to Vivaldi. Nova York: Dover Publications, 1994, p. 73-79; GANASSI, Silvestro. Oeuvres complètes. Vol. 1 : La Fontegara (1535). Édition de Christine Vossart. Introduction, traduction et notes par Jean-Philippe Navarre. Sprimont, Belgique: Mardaga, 2002, p. 10; GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara, Venice 1535. A treatise on the Art of Playing the Recorder and of Free Ornamentation, edited by Hildemarie Peter. English translation by Dorothy Swainson. Berlin: Robert Lineau, 1959, p. 4; GÉTREAU, Florence. “Un portrait énigmatique de l’ancienne collection Henry Prunières” In : Musique-Images-Instruments, vol. 5, 2003, p. 149-156.

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frontispício da Lettione Seconda, em que Ganassi se auto-intitula desideroso nella pictura. Por estas razões, viu-se necessário reunir em uma nova biografia, mais detalhada, todas as informações encontradas nas biografias atuais e nas fontes primárias, de modo que o leitor desta tradução tenha, em uma única fonte, todas as informações já publicadas sobre o autor e que saiba precisamente a origem de cada uma delas. No prefácio Aos leitores da Lettione Seconda, publicada em 1543, Ganassi afirma ter a idade de cinquenta e um anos (“e certamente posso dizer com verdade que, dos cinquenta e um anos em que eu me encontro, não tive o tempo de cinco anos de estudo”)7. Segundo Lasocki8, cinquenta e um soa para nós como um número muito mais preciso do que apenas dizer “cinquenta anos” e, portanto, é realmente provável que seu nascimento tenha ocorrido entre os anos de 1491 e 1492, dependendo de quanto tempo se passou entre o processo de elaboração da obra até a sua impressão. Todas as outras referências consultadas nos dão o ano de 1492 como data exata de nascimento, pois calculam cinquenta e um anos a partir da data de publicação da Lettione. Outras informações oferecidas por Ganassi a respeito de seu nascimento estão no prefácio Aos Leitores, desta vez da Regula Rubertina:

É recorrente nas histórias antigas o filósofo agradecer a Deus por três coisas. A primeira, que ele era grego e não bárbaro. A segunda, que era animal racional e não irracional. A terceira, que era homem e não mulher. Assim, eu também agradeço ao senhor Deus por três coisas. Primeira, que sou de origem bergamasca. Segunda, nascido na cidade vêneta. Terceira, cristão e não pagão. O porquê disto lhes digo: a ascendência lombarda me dota de engenho, a grandeza da pátria vêneta me faz estudioso, e a fé me faz operar coisas úteis à alma e ainda ao corpo. [...] O sangue ou a origem que deriva do [meu] pai e da minha mãe faz com que eu não perca a gratidão; a pátria vêneta e a fidelidade por ser cristão, faz

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“Et certamente io posso dire com verita che de cinquanta uno anno che mi ritrouo hauer non ho hauuto il tempo di anno dito cinque studiosi". GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. Bolonha: Arnaldo Forni Editore, 1978, p. 5. 8 LASOCKI, David. Op. cit. , p. 19.

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com que eu não perca a esperança. Porém sempre agradecerei a Jesus Cristo por tanta graça dada a mim [...].9

No frontispício da Fontegara, sua primeira obra, o autor declara ser “tocador da Ilustríssima Senhoria de Veneza”10. Lo Presti, em seu artigo,11 cita um documento de junho de 1517, em que Ganassi foi “admitido entre os piffari12 do Doge, ocupando um posto vago com a morte de um certo Melchiorre, apelidado ‘Signoria’”.13 Segundo o documento, parcialmente reportado em um artigo de Ongaro,14 ele é identificado como “[...] Silvestro Antonio piffaro, habitante do Fontego da Farinha em Rialto [...]”. 15 Lasocki afirma que o nome “Antonio” agregado ao de Silvestro, sem dúvida é uma referência ao nome de seu pai. Ainda segundo o autor, Ganassi era o sobrenome de uma família de instrumentistas de sopro pertencentes ao Concerto Palatino em Bolonha:

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“Trovassi nelle historie antiche il filosofo ringratiar Iddio di tre cose. La prima che gli era greco e non barbaro. Seconda che gli era animale rationale e non irrationale. Terza che gli era maschio e non femina Dil che ancora io ringratio il signor Iddio di tre cose. Prima che son concetto di progenia bergamasca. Seconda nato nella citta veneta. Terza christiano & non pagano. il perche di questo dicoui la progenia lombarda mi dota de l'ingenio. Et la grandezza della patria veneta mi fa studioso, e la fede mi fa operare cose vtile a l'anima & anchora al corpo [...] il sangue ouer progenia che deriua dal patre e matre mia, salua in me la gratitudine, e la patria veneta la fidelta Per[es]sere christiano salua in mi la speranza: pero sempre ringratiaro giesu Christo di tanta gratia da im [sic] hauere [...]”. GANASSI, Silvestro. Regula Rubertina. Bolonha: Arnaldo Forni Editore, 1984, p. IIII. 10 “Opera Intitulata Fontegara [...] composta per syluestro di ganassi dal fontego, sonator de la Illustrissima Signoria Di Venetia”. GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara. Bologna: Arnaldo Forni Editore, 2002, p. 1. 11 LO PRESTI, Carlo. Op. cit., p. 1- 6. 12 Neste trabalho, decidimos manter o termo piffari na língua original a fim de evitar eventuais equívocos com o termo homônimo em português – pífaros. O termo por nós utilizado refere-se ao conjunto de instrumentistas de sopro (cornetos, charamelas, bombardas e sacabuxas) muito comum na Itália e em outros países da Europa durante os séculos XV e XVI, e não, como poderíamos pensar, ao conjunto de flautas transversas de seis furos tradicionalmente utilizadas em Caruaru-PE. 13 LO PRESTI, Carlo. Op. cit., p. 1. 14 ONGARO, Giulio M. “Gli inizzi della musica strumentale a San Marco” In: Giovanni Legrenzi e la cappella ducale di San Marco, a cura di Francesco Passadore e Franco Rossi. Florença: Olschki, 1994, p. 215-226. 15 “Alla morte di un certo Melchiorre (soprannominato ‘Signoria’) il Doge Leonardo Loredan ‘habita informatione fidelis Silvestri Antonij piphari habitantis ad fonticu[m] Farine in Ri[voal]to ad tria capita eundem Silvestrum pipharu[m] constituit et deputavit pro pipharo in demortui locum [...]’”. ONGARO, Giulio M. Op. cit., p. 216.

9

O primeiro, Zaccaria da Venezia, trombonista (que serviu entre 1513-28), pode ter sido o irmão de Silvestro. (Se isso é verdade, então é provável que o pai deles também tenha sido um instrumentista de sopro.) [...] Zaccaria teve dois filhos: Giovannino de Zaccaria (serviu entre 1544-52) e Vicentio da Zaccaria (serviu entre 1531-81), que foi o substituto permanente de seu pai e é explicitamente chamado de “Vicentij Ganassi” em um registro. O filho de Vicentio, Alphonso (serviu entre 1561-1610), foi comumente conhecido como Ganassi. Um outro Ganassi, Alessandro, provavelmente um membro da próxima geração, serviu entre 1622-48.16

Porém, em outro artigo17 encontramos algumas referências contrastantes. Gétreau analisa um suposto retrato de Silvestro Ganassi encontrado na antiga coleção do musicólogo francês Henry Prunières (1886-1942). Na penúltima página, a autora nos dá uma pequena biografia de Ganassi, na qual ela diz ter consultado o Sr. Armando Fiabane que, “gentilmente nos abriu os dossiês de suas pesquisas biográficas nos arquivos venezianos”18. Segundo essa referência, Ganassi era filho:

de um imigrante bergamasco de nome Antonio, o qual tinha uma barbearia próxima ao “fontego della farina” em Rialto, torna-se “Piffero del Doge” em 1516. Nos anos 20, nascem seus dois filhos: um, Antonio, fará estudos jurídicos em Bolonha e tornar-se-á doutor em direito “utroque iure”; o outro, Giovanni Battista, será, como seu pai, músico da Sereníssima Senhoria; servirá então à Corte real da Polônia como cornetista virtuose e terminará sua carreira como secretário da Embaixada imperial.19

Ser “filho de um imigrante bergamasco” é informação retirada do prefácio Aos Leitores da Regola Rubertina, e que seu pai se chamava Antonio nos é conhecido através do documento de contratação, que, por sinal, está possivelmente com a data errada no artigo de Gétreau. Há também uma pequena divergência de data entre os artigos de Lo Presti e Ongaro: o primeiro diz que o documento é de 10 de junho de 1517 enquanto o

16

LASOCKI, David. Op. cit., p. 23. GÉTREAU, Florence. Op.cit., p. 149 - 156. 18 Ibidem, p. 155. 19 Ibidem., p. 155. 17

10

segundo, 20 de junho de 1517.20 Como Lo Presti cita Ongaro21 como fonte de sua informação, é possível que esses dez dias de diferença sejam apenas um erro de revisão. A respeito das informações encontradas no artigo de Gétreau, infelizmente não tivemos acesso a nenhuma fonte bibliográfica ou documentária do Sr. Fiabane e o contato com este pesquisador também não foi possível. No que diz respeito à data do documento, tomaremos como certa a informação oferecida por Ongaro. Sobre a árvore genealógica de Ganassi (fig. 1), Lasocki também menciona em seu artigo a respeito de seu primeiro filho, chamado Antonio:

Há outro registro relevante sobre a família: um advogado chamado “Antonius de Ganassis a fontico”, talvez filho de Silvestro, é mencionado em um documento veneziano de 1549.22

Porém, sobre o segundo filho temos somente a informação de Gétreau. A questão a respeito da profissão de seu pai, se músico ou barbeiro, somente poderá ser esclarecida a partir de novas pesquisas feitas nos arquivos de estado venezianos.

Figura 1.

20

LO PRESTI, Carlo. Op. cit., p. 1, nota 4. ONGARO, Giulio M. Op.cit. p. 216, nota 5. “O documento, datado de 10 de junho de 1517, está parcialmente reportado em GIULIO M. ONGARO [...]”, LO PRESTI, Carlo. Op. cit., p. 1, nota 4. 22 LASOCKI, David. Op. cit., p. 23. 21

11

O documento de contratação de Ganassi também nos esclarece a origem de seu apelido “dal Fontego”. A palavra fontego (ou fondaco) é proveniente da palavra árabe funduq (loja, alojamento) e designa o edifício em que os comerciantes se hospedavam e, em lojas, realizavam seus negócios nas cidades portuárias.23 Existiam inúmeros fonteghi em Veneza no século XVI, porém, segundo Lo Presti, o Fontego della Farina corresponde ao importante Fontego dei Tedeschi, ou seja, dos alemães. É possível observar uma relação entre Silvestro Ganassi e os alemães quando levamos em consideração o exemplar da Fontegara encontrado na biblioteca Herzog-August em Wolfenbüttel, na Alemanha.24 A cópia possui uma dedicatória manuscrita (fig. 2), do próprio Ganassi, provavelmente escrita depois da publicação de sua última obra em 1543, na qual ele vende por um Escudo para um tal Signor Messer Domenego e à sua Senhoria, a sua regra de diminuir (Fontegara) com um apêndice de 300 diferentes cadências25 sobre um mesmo tema e algumas lições para lira (alaúde?26) juntamente com a regra que ensina viola de trastes (Regula Rubertina e Lettione Seconda), que ele tinha preparado para um gentil-homem florentino. Depois, ele agradece pelo vinho recebido e diz, como a sua Senhoria lhe informara que viria a Veneza de passagem,

que ele a esperaria com grande desejo, provavelmente para receber pelo

negócio.27 23

GARZANTI LINGUISTICA: Disponível em: . Acesso em 18 de junho de 2009. 24 Ver: GANASSI, Sylvestro. Opera Intitulata Fontegara, Venice 1535. A treatise on [...], p. 92-93; GANASSI, Sylvestro. Oeuvres complètes [...], p. 172. 25 Na realidade o manuscrito contém apenas 175 diminuições. GANASSI, Sylvestro. Opera Intitulata Fontegara: A treatise on [...], p. 6; GANASSI, Sylvestro. Oeuvres complètes [...], p. 172. 26 No frontispício da Lettione Seconda, Ganassi promete ensinar uma nova tablatura de alaúde e de fato ele o faz no capítulo VII, “Regra da tablatura do Violone e [do] alaúde [...]”; não temos nenhuma referência se ele teria composto essas “lições de lira” especialmente para a ocasião ou se, na verdade, ele quis referir-se ao capítulo sobre a tablatura de alaúde da Lettione. 27 “Senhor Domenego, vos mando a regra de diminuir com 300 cadências recentemente compostas sobre um [mesmo] sujeito, e todas são diferentes. E também [vos mando] algumas lições para a lira, juntamente com a regra que ensina a viola de trastes que eu havia preparado para um gentil-homem florentino. Mas se vos mando em comodidade para servir algum amigo de vossa Senhoria, pode-se acomodar, e [por isso] eu preparei outra cópia para o gentil-homem acima mencionado. O preço é de um escudo se for ao propósito de seu amigo que esta sirva, mas se não [for], poderás com sua comodidade me devolver. O vinho que recebi da

12

Figura 2.

Esta dedicatória pode ser um indício de que o autor da Fontegara possuía intensa relação com aqueles do Fontego dos Alemães, além de corroborar a hipótese de que Ganassi tivesse uma loja28, ou uma prensa, em Veneza e que esta talvez se encontrasse nas redondezas ou dentro do próprio Fontego dos Alemães. Outro dado importante nesta questão é fornecido pelo próprio Ganassi: ele mesmo teria imprimido todas as suas obras, como podemos ver nas suas respectivas páginas finais: “Impresso em Veneza por Silvestro di Ganassi dal Fontego, tocador da Ilustríssima Senhoria de Veneza, autor próprio. MDXXXV” (Fontegara); “Com graça e privilégio, em Veneza à instância do autor.

vossa Senhoria me dá a vida por certo, do que vos resto muito agradecido. E segundo o que aquela me escreveu, [dizendo que] deveria estar de passagem em Veneza, assim eu o espero com grande desejo por uma causa legítima. Outro não direi à vossa Senhoria, [senão] somente que o senhor Deus a conserve em sua graça. Silvestro, servo daquela Senhoria.” O texto original está em: GANASSI, Sylvestro. Ouvres complètes. [...], p. 172 e GANASSI, Sylvestro. Opera Intitulata Fontegara: A treatise on [...], p. 93. 28 LO PRESTI, Carlo. Op.cit., p. 3; GANASSI, Sylvestro. Opera Intitulata Fontegara, Venice, 1535. A treatise on [...], p. 4.

13

MDXLII” (Regula Rubertina); “Impressa pelo próprio autor em MDXXXXIII” (Lettione Seconda)29. Existe também a possibilidade de ele ter alugado, com o nome de “Silvestro del cornetto”, uma loja perto de Rialto em 1566, como nos informam a respeito do documento de locação Ongaro e Brown.30 Ainda sobre o Fontego de la Farina, Lo Presti comenta em uma nota que por volta de 1517 foram encontrados traços de uma companhia de trombetas e piffari proveniente do Fontego: [...] encabeçados por Zuan Maria dal Cornetto, em 20-21 de outubro de 1516 tocaram na festa da Scuola di Sant’Orsola, ativa junto à igreja dos Santi Giovanni e Paolo. O livro-caixa da Scuola registra: ‘trombetas e piffari [de] no. 6 [que] tocaram na vigília e no dia da festa [...] à qual foram aqueles do Fontego de la Farina, senhor Zuane e companheiros, por ₤. 9’. A mesma companhia tocou no ano seguinte, provavelmente na mesma ocasião.31

Zuan Maria dal Cornetto também fazia parte dos piffari do Doge, como mostra o artigo de Blackburn32 que, ao falar dos músicos da corte do papa Leão X, relata uma passagem do diário de Marino Sanuto, em maio de 1520, que por sua vez cita uma passagem do diário de Marcantonio Michiel:33

[Marco Minio] escreveu que, tendo jantado com o Papa na Magnana, ao partir, o Cardeal Cornaro lhe disse, da parte do Papa, que esse Orador insistisse com a nossa Senhoria [para que] fosse dada licença a um [tal] Zuan Maria, piffaro do

29

"Impressum Venetiis per Sylvestro di ganassi dal fontego sonator della illustrissima signoria di Venetia hautor proprio. MDXXXV." GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara. [...] Arnaldo Forni [...], p. 156. "CON GRATIA ET PRIVILEGIO: In Venetia ad instantia de l'autore MDXLII." GANASSI, Silvestro. Regula Rubertina. [...] Arnaldo Forni [...], p. 50. "Stampata per Lauttore proprio. Nel M.D.XXXXIII." GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. [...] Arnaldo Forni [...], p. 72. 30 ONGARO, Giulio. BROWN, Howard M. Op. cit., 2001. 31 A transcrição integral do documento está na p. 306 de QUARANTA, Elena. Oltre San Marco. Organizzazione e prassi della musica nelle chiese di Venezia nel Rinascimento. Florença: Olschki, 1998. Apud: LO PRESTI, Carlo. Op.cit., p. 1, nota 5. 32 BLACKBURN, Bonnie J. “Music and festivities of the court of Leo X : a venetian view” In: Early Music History, v. 11, Cambridge University Press, 1992, p. 1-37. 33 Michiel começou seu diário em 1511, com vinte e sete anos. Nascido em uma ilustre família de patrícios venezianos, veio a ser membro do Maggior Consiglio a partir de 1540. (BLACKBURN, Bonnie J. Op.cit., p. 2.)

14

Doge, a fim de vir de lá [Veneza] para cumprir certa música; coisa que feita, será muito grata ao Papa.34

Um pouco depois, Sanuto escreve que "da parte da Senhoria foi dada licença, com a complacência do Papa, [para] que Zuan Maria, piffaro do Doge, pudesse ir por um ano servir o Papa, deixando seu irmão no seu lugar, com o seu salário" (15 de junho de 1520)35. O papa Leão X, apesar de ter em 1520 cerca de vinte e nove instrumentistas na sua corte36, fez questão da contratação do músico veneziano, o que torna clara a excelência e o renome dos piffari da Senhoria de Veneza. Existe ainda outro documento, de 1534, sobre um banquete oferecido pela República à duquesa de Ferrara, no qual dezesseis instrumentistas estavam presentes. Segundo o documento, seis tocaram piffari e trombetas, seis tocaram violone e quatro tocaram trombe squarzade (sacabuxas), todos em uma gôndola. Uma considerável soma de dinheiro foi endereçada à Giovanni Maria dal Cornetto, “para o resto do concerto”, e ao homem do Fondego dalle Campanelle, que segundo Selfridge-Field, poderia muito bem ser Silvestro Ganassi.37 Giovanni Maria dal Cornetto e Silvestro Ganassi – assim como Zaccaria dal Trombone, suposto irmão de Silvestro – também aparecem juntos no poema de Philippo Oriolo da Bassano, Monte Parnaso, que foi provavelmente escrito entre os anos de 1519 e 1525.38 No início do poema, Oriolo pede licença ao seu patrono, Sartorio, para lhe contar sobre um sonho em que o poeta teria visto as musas no monte Parnaso. Assim como na 34

“[Marco Minio] scrive, havendo disnato col Papa a la Magnana, nel partir il cardinal Corner li disse, da parte dil Papa, instasse esso Orator con la Signoria nostra fosse dato licentia a uno Zuan Maria pifaro dil Doxe aziò vengi de lì per compir certa musicha; laqual cossa facendo sarà molto grata al Papa.” SANUTO, Marino. I Diarii, xxvm, col. 488. Apud: BLACKBURN, Bonnie J. Op.cit., p. 9. 35 “Per la Signoria fo da licentia, a complacentia dil Papa, che Zuan Maria pifaro dil Doxe possi andar per uno anno a servir el Papa, lasando suo fradelo in loco suo con il suosalario” (15 June 1520). SANUTO, Marino. I Diarii, xxvm, col. 618. Apud: BLACKBURN, Bonnie J. Op.cit., p. 9. 36 BLACKBURN, Bonnie J. Op.cit. p. 6. 37 SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. Op.cit., p. 49. 38 Sobre o poema e a sua datação, ver: SLIM, H. Colin. “Musicians on Parnassus”. In: Studies in the Renaissance, v. 12, University of Chicago Press, 1965, p. 134-163.

15

Divina Comédia de Dante Alighieri, que foi modelo para o poema de Oriolo, o poeta foi guiado por Virgílio, no Monte Parnaso, Oriolo foi guiado por Jacopo Sannazaro (14561530) durante a sua ascese.39 Oriolo cita em sua obra, além de poetas, filósofos e doutores da antiguidade, mais de cem instrumentistas, teóricos da música e compositores, desde a mitologia e antiguidade até o início do século XVI. Exceto por alguns alemães, todos os músicos são italianos, a maioria do Vêneto e da Lombardia.40 O canto XIX nos interessa particularmente, pois nele Oriolo descreve os instrumentistas de sopro:

Havia um coro altivo e nobre De tocadores íntegros e perfeitos, Que perto deles Davi pareceria vil. Estava [lá] Ferrante, um destes eleitos, Augustino alemão, e Gian Maria, Com as suas cornamusas e seus cornettos. Também tocavam outros, em companhia Destes tais piffari e trombones, Que nunca se ouviu tanta harmonia. Dos quais, um era Zacaria, que as doces notas De seu trombone mandava ao céu, E delas gozavam os Querubins e os Tronos. Girolamo era outro que elevava Tanto a voz [de seu instrumento], que todo aquele monte E todo aquele vale ressoavam. Não peças para que te conte O que faziam Sbarbaio e Allovise E Sandro da Regusi, [que tocavam] frente a frente, Entre estes Nicolò, piffaro, se colocou, Com Bernardin e Giovan Mantoano,

39 40

Ibidem, p. 139. Ibidem , p. 139.

16

Tocando seus piffari de várias maneiras. Nada digo de Andrea veneziano, De Silvestro dal Fondaco e do Toso Que cada um [deles] é piffaro soberano. A este coro tão glorioso Uniram-se algumas mulheres e outras donzelas, E começou uma dança toda amorosa...41

A companhia dos piffari do Doge era formada oficialmente por seis músicos, embora em uma imagem de Gentile Bellini, "Procissão na Praça de São Marcos" (1496), estejam retratados dez instrumentistas.42 No início do século XVI, os piffari apresentavam a seguinte formação: dois sopranos (charamelas), um contralto (bombarda), um tenor (bombarda) e dois baixos (sacabuxas).43 Fazia parte de suas obrigações exibirem-se nas cerimônias oficiais da República e nos serviços litúrgicos da igreja de São Marcos. Além disso, segundo testemunhos, deveriam tocar uma hora por dia na praça.44 Lo Presti, sobre a prática dos piffari de Veneza, afirma:

Ganassi foi contratado com o cargo de 'contralto'. Logo depois, os instrumentos de palheta dupla (charamelas e bombardas), de timbre áspero, foram substituídos pelos cornetos, obtendo uma sonoridade mais próxima àquela dos grupos vocais. Porém aos piffari era requerido também saber manusear as flautas: um documento de 1515, relativo à Scuola Grande di San Marco, prescrevia que: 41

"Eravi um choro altero e signorile / Di Sonatori si integri e perfetti / Che presso lor David parrebbe vile, / Era Ferante l’un di questi eletti, / Augustino tedesco, e Gian Maria, / Con le lor cornemuse, e lor cornetti, / Sonavano altri anchor in compagnia / Di questi tali piferri e tromboni, / Che mai non si senti tanta harmonia, / D’e quali un era Zacaria, ch’i tuoni / Del suo trombon si dolci al ciel mandava, / Che ne godean gli Cherubini e i Throni, / Girolamo era l’altro, il qual alzava / Tanto la voce, che tutto quel monte / E tutta quella valle rimbombava, / Non dimandar che quivi ti racconte / Cio, che facea Sbarbaio et Allovise / E Sandro da regusi a fronte a fronte, / Tra questi Nicolò pifar si mise / Con Bernardin e Giovan mantoano / Toccando che suo pifari a piu guise, / Nulla dico di Andrea vinitiano / Di Silvestro dal fondaco e del Toso / Ch’ogniun di lor è pifaro sovrano, / A questo choro tanto glorioso / Giunsero alcune donne e altre donzelle, / Et cominciar un bal tutto amoroso" (Grifo nosso). SLIM, H. Colin. Op.cit., p. 144. 42 SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. Op.cit., p. 14. 43 LO PRESTI, Carlo. Op.cit., p. 2. 44 LO PRESTI, Carlo. Op.cit., p. 2 e SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. Op.cit., p. 6.

17

"dita procissão [...] deveria ser acompanhada pelas trombetas e piffari, os quais, ao ir e vir da scuola, em toda a solenidade junto com a missa deveriam tocar, fosse com trombetas e piffari, como com flautas e cornettos [...]" Este documento testemunha também a participação dos piffari na liturgia, em ocasiões solenes: o repertório destas companhias de fato incluía motetos dos mais famosos mestres franco-flamengos, apropriadamente adaptados às características sonoras dos grupos instrumentais. As intervenções iam da transposição para uma quarta ou quinta acima, com a inserção de novas partes graves para os trombones; à improvisação de contrapontos, até à prática extemporânea da diminuição. Sobre esta última se volta a atenção de Ganassi: ele quer divulgar uma prática cultivada até aquele tempo por um restrito círculo de músicos profissionais.45

A prática da diminuição foi minuciosamente relatada em 13 dos 25 capítulos da Fontegara (1535). A obra foi dedicada ao então Doge de Veneza Andrea Gritti (1455 1538), para quem o músico trabalhava desde sua eleição como Doge em 1523. Os capítulos restantes atestam que Ganassi era possuidor de uma excelente técnica da flauta doce, como podemos ver nas precisas e científicas (no sentido quinhentista) informações sobre o dedilhado do instrumento, as articulações empregadas, além de como usar a sonoridade e outras regras pertencentes ao tocar artificioso. No capítulo quatro, por exemplo, ele afirma ter tocado com os melhores instrumentistas da sua época, mas que somente ele teria descoberto sete notas a mais do que as notas comuns da flauta: Sabe meu digníssimo leitor que por muitos anos experimentei o modo de tocar e tendo-me deleitado ao ver e praticar com todos os primeiros tocadores que existiram em meu tempo, jamais encontrei homem digno em tal arte que exercitasse além das notas comuns. Ainda que pudessem ter adicionado uma ou duas notas a mais, tendo eu examinado tal modo, encontrei o que os outros não souberam. Não que eles ignorassem tal caminho, mas o deixaram por fadiga. Isto é, [encontrei] sete notas a mais do que o comum, das quais te darei todo conhecimento.46

45

LO PRESTI, Carlo. Op. cit., p. 2. “Sapi lettor mio dignisssimo che molti ani ho esperimentato el modo de sonar & diletatomi di uedere & praticare con tutti li primi sonatori che a mio tempo sono stati onde che mai ho trouato homo degno in tale arte che piu delle voce ordinarie habi essercitato dil che potrebono hauere agionto una de piu o due uoce onde havendo io essaminato tal modo ho trouato quello che altri non ha saputo non che in loro sia ignorato tal uia ma per fatica lasciato cioe sette uoce de piu de lordinario detto dele quali ti daro tutta la cognitione [...].” GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara [...] Arnaldo Forni [...], cap. 4. 46

18

Além de saber manejar todos os instrumentos de sopro acima relatados, Ganassi também tocava diligentemente a viola da gamba, conforme mostra seu tratado em dois volumes para o instrumento, Regula Rubertina (1542) e Lettione Seconda (1543).

O

primeiro volume foi dedicado ao seu aluno Ruberto Strozzi, filho de Filippo Strozzi, o Jovem (1488 – 1538) e de Clara de' Medici (1493 – 1528), proveniente das famílias mais importantes e influentes de Florença. Ruberto exerceu, durante as décadas de 1530 e 1540, papel importante no mecenato das artes, patrocinando obras de Arcadelt, Willaert e Cipriano de Rore.47 Ganassi fala, como é de se esperar, com muito apreço de seu aluno:

[...] porque é também harmonia o dar a cada um aquilo que se convém, [então,] pensando a quem essa minha pequena obra devesse se endereçar, ocorreu-me Vossa S[enhoria], a quem [esta obra] se adequa mais que aos outros: porque esta [senhoria] é mais ornada do que os outros de harmonia da alma, de harmonia do corpo e de harmonia vocal e instrumental, com toda a sua magnífica casa, e mais que os outros com isto se deleita. Acrescento que esse foi meu discípulo, o que digo com muito louvor [...]48

Já o segundo volume, que na realidade fala do Violone, o instrumento mais grave da família das violas, e que contém também algumas regras para uma nova tablatura de alaúde, foi dedicado ao amigo de Ruberto Strozzi, também florentino, Neri Capponi. Na sua atividade como piffaro do Doge, Ganassi manteve contato direto com o mestre de capela de São Marcos, Adrian Willaert (c.1490 – 1562), contratado pela procuradoria de Veneza em 1527, de quem faz diversas referências em suas obras para viola e parece preocupado com a opinião deste a respeito de sua Lettione Seconda, no prefácio da mesma: 47

AGEE, Richard: “Ruberto Strozzi and the early madrigal”. In: Journal of the American Musicological Society, Brunswick, v. 36, n. 1, 1983, p. 1-17. 48 “[...] perche è armonia ancora il dare ad ogniuno quello, che si conviene, sensando io a chi questa mia operetta si douesse indirizzare, m'è souuenuta V. S, allaquale si deue piu che ad altri: quanto essa è piu d'altri ornata de l'armonia de l'anima, de l'armonia del corpo, & de l'armonia vocal & istrumental, con tutta la sua magnifica casa, & piu d'altri se ne diletta aggiontoui apresso che essa è stata mio discepolo, il che dico con molta mia laude [...].” GANASSI, Silvestro. Regula Rubertina. [...], p. 3

19

Porque se ela for aceita pelo vosso raro juízo [dirigindo-se a Neri Caponni] e por aquele sacro e divino Colégio, que depois de vós, com a glória imortal desta alma Cidade, junta [...]; sendo Príncipe daquele, o nunca suficientemente louvado senhor Adriano, novo Prometeu da celeste Harmonia, humilhação para o passado, glória do presente e mestre do século futuro, aquele sem dúvida ao universo aprazerá que pelo seu divino juízo seja louvado.49

No capítulo XI da Regola Rubertina, Ganassi cita novamente Adrian Willaert junto com dois importantes compositores da geração passada, Josquin (1445-1521) e Mouton (c.1459 – 1522), e dois da sua geração, Jacquet de Mântua (1483-1559) – o “Giachetto” – que dividirá em 1550 com Willaert a importante publicação de salmos que inaugura o estilo policoral veneziano: Di Adriano et di Jachet: I Salmi appartinenti alli vesperi per tutte le feste dell'anno, parte a versi & parte spezzadi accomodati da cantare a uno & duoi Chori; e Nicolas Gombert (c.1495 – c.1560) – o “Gomberto” – um dos músicos mais importantes da corte de Carlos V e por quem Ganassi tinha especial apreço:

Dentre as obras musicais, que se ouvem hoje em dia, existem [aquelas] dos boníssimos intelectos e de muitos [que] deixamos, [como] as obras feitas por um Josquin e [um] Mouton há cinqüenta anos, que certissimamente fizeram obras ao compor em diversos modos de contrapontos divinos. Mas certamente no presente existem muitos [boníssimos intelectos] entre os outros, [como] um Adrian, um Jacquet e um Gombert, mestre de capela do imperador, homem divino em tal profissão, como se pode justificar pelas suas obras [...]50

Segundo Ganassi, Gombert tinha inventado uma nova maneira de afinar entre si as cordas da viola, e é esse o modo que ele quer ensinar ao leitores de seu tratado. No decorrer 49

“Perche se ella sai accettata dal uostro raro giudicio, & da quello sacro & diuino collegio che appo uoi com gloria immortale di questa alma Cittate, si annida, nulla stimera ella i altrui trasparlamenti che essendovi Principe di quello il non mai a bastanza lodato messer Adriano nuouo Prometheo della celeste Armonia, scorno del passato, gloria del presente, & maestro del futuro secolo, quello senza dubbio all’universo piacera che dal suo diuino giudicio sia lodato.” GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda [...], p. 4. 50 “Per le opere che hoggi di si sente in musica si comprende di bonissimi intelletti, & di molti lasciamo le opere fatte gia cinquanta anni di vno iosquino, uno moton che certissimamente hanno fatto opere in componere in diuersi modi di contraponto diuini: ma certamente al presente tempo cene molti tra gli altri, vno adrian, vno Giachetto, & vno Gomberto maestro di capella de l’imperatore huomo diuino in tal professione, come si puo iustificar per le opere [...].” GANASSI, Silvestro. Regola Rubertina. [...], p. XII.

20

do capítulo, faz diversas menções, cada vez mais elogiosas, ao mestre franco-flamengo: “que faz o excelente Gombert”, “como o excelentíssimo Gombert”, “aquilo que adverte o verdadeiro mestre, chamado Gombert” e “assim como observa o verdadeiro mestre de capela, chamado GOMBERT”.51 Um outro aspecto da vida de Ganassi, praticamente ignorado pelas suas biografias, é discretamente citado no título da Lettione Seconda:

Lição Segunda a respeito da prática de tocar o violone de arco trastejado. Composta por Silvestro Ganassi dal Fontego desejoso da pintura, [...].52

Parece-me que, além de ser um dos músicos de excelência da cidade, como afirmou Francesco Sansovino em seu Dialogo di tutte le cose notabili che sono in Venetia (1560)53, de tocar uma variedade impressionante de instrumentos

(flautas doces, bombardas,

cornettos, violas da gamba e alaúde) e de ser o impressor de todas as suas obras, nosso ilustre personagem também era reconhecido como pintor. De fato, Ganassi é citado em dois importantíssimos tratados de pintura do século XVI. O primeiro deles é o Dialogo di Pittura de Paolo Pino, impresso em Veneza em 1548 e dedicado ao então Doge, Francesco Donato. O outro tratado que cita Ganassi foi publicado em 1557, um pouco depois do tratado de Pino: trata-se do Dialogo della Pittura intitolato L'Aretino, de Lodovico Dolce. Falaremos com maior detalhamento sobre o assunto mais adiante.

Não se sabe ao certo o ano de morte de Ganassi e a maior parte das biografias sugerem que esta ocorreu entre 1540 e 1550, um pouco depois da impressão de seu último tratado em 1543, simplesmente pela falta de outras obras ou registros significativos sobre 51

“che fa lo eccellente Gomberto”, “cosi come lo ecelentissimo Gomberto”, “quello che auuertisce il vero maestro ditto Gomberto”, “si come osserva il vero maestro di capella detto GOMBERTO”. GANASSI, Silvestro. Op.cit., p. XIII e XVIIII. 52 “Lettione Seconda pur della prattica di sonare il violone d’arco da tasti. Composta per Silvestro Ganassi dal Fontego desideroso nella pictura, [...].” GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda [...] Arnaldo Forni [...], p. 1. 53 LASOCKI, David. Op.cit., p. 23.

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sua atividade em Veneza. O único artigo que nos oferece uma data exata de morte é novamente aquele de Gétreau; segundo ela, ou melhor, segundo Fiabane, Ganassi morreu aos sessenta e cinco anos em 1557, mas infelizmente não pudemos consultar nenhum documento a esse respeito. Se considerarmos essa data como correta, ela certamente descarta o documento citado por Brown e Ongaro54 no verbete do Grove, o qual afirma que um tal “Silvestro del cornetto” alugou uma “loja” em 1566. Verificamos ainda que Ganassi nos textos coevos é sempre citado como “Silvestro” e não como “Ganassi”: no tratado de Pino e no poema de Oriolo, ele aparece como “Silvestro dal Fondaco”; no diálogo de Aretino, como “Silvestro, músico do Doge”; no documento de contratação, como “Silvestro [...] piffaro”; e no texto de Sansovino, como “Sylvestro dal Fontego”. Por isso, parece-nos muito tentador associá-lo a “Silvestro del cornetto”, mas devemos considerar, entretanto, que viver até 1566 ou mais é uma estimativa de vida considerável para a época. Se podemos afirmar algo a respeito da data de sua morte é que com certeza ela não ocorreu entre os anos 40 e 50 do século XVI, como afirmam diversas biografias. Uma possível prova disso está nos elogios feitos a Silvestro nos diálogos de Pino e Dolce: eles estão sempre no tempo presente. Na obra de Paolo Pino, isso é mais evidente, pois no mesmo parágrafo onde é citado Silvestro, as passagens referente às virtudes do pintor Bronzino (1503-1572) e do “jovem” Giorgio d'Arezzo55, também estão em tempo presente. Já quando se fala daqueles que haviam morrido antes da publicação do diálogo em 1548, como Leon Battista Alberti (1404-1472), Albrecht Dürer (1471-1528) e Sebastiano dal Piombo (1485-1547), o texto é construído no tempo passado. Tal observação nos faz pensar na possibilidade de que esses diálogos foram escritos e publicados enquanto Ganassi ainda era vivo, e que talvez ele tivesse tido a oportunidade de ler essas obras.

54 55

ONGARO, Giulio. BROWN, Howard M. Op.cit., 2001. Giorgio Vasari (1511-1574).

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Para finalizar, falta-nos comentar a respeito do suposto retrato de Ganassi, mencionado por Gétreau em seu artigo. O retrato foi descoberto enquanto a autora fazia suas pesquisas para o artigo “L’image du faiseur d’instruments de musique à la Renaissance” publicado na revista Imago Musicae em 2001.56 Trata-se de uma tela a óleo, de 55 cm por 75 cm, de fundo escuro e neutro, na qual está representado um homem de aproximadamente 50 anos, sem barba, de aspecto severo e muito bem vestido. A mão esquerda, que está ornada por um anel de ouro com uma pedra preta, segura uma viola baixo; a direita, ornada por um anel de ouro com uma pedra coral, segura um compasso entreaberto no lugar do arco. A tela, que já pertenceu à coleção do conde Pallfy e àquela do musicólogo francês Henry Prunières, atualmente faz parte da coleção dos descendentes de Prunières57 (fig. 3). Segundo a autora, a associação do compasso com um instrumento musical sempre serviu para representar a figura de um artesão construtor de instrumentos. No entanto, ela nota algumas diferenças entre a tela em questão e os demais retratos de construtores que sobreviveram aos dias de hoje: tanto o caráter reflexivo e severo do personagem, quanto suas vestimentas e ornatos retratam um homem proveniente de uma classe social mais elevada do que a de um artesão; além disso, os retratos de construtores costumam mostrar sua marca em algum elemento decorativo do fundo ou no próprio instrumento e ainda retratar as partes principais do instrumento do ponto de vista do construtor. O retrato Prunières, de fundo escuro, não indica nenhuma marca, grande parte da viola não está representada, apenas o braço e uma pequena parte da caixa. Além disso, a voluta está inacabada. Para a autora, estas características aproximam o personagem mais à figura de um teórico da música do que à de um construtor de instrumentos. 56

GETREAU, Florence. “L’image du faiseur d’instruments de musique à la Renaissance” Imago Musicae, Lucca, v. XVI-XVII, 1999-2000, p. 117-136. Apud: GETRAU, Florence. “Un portrait énigmatique de l’ancienne collection Henry Prunières” In: Musique-Images-Instruments, Paris, v.5, CNRS Éditions, 2003, p. 149. 57 Ibidem, p. 149.

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Figura 3.

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Ainda segundo Gétreau, a viola representada na imagem corresponde a modelos venezianos do século XVI e o estilo de pintura pode ser comparado com aquele dos pintores da Itália do Norte das décadas de 1520-40. Para ela, mesmo que o autor da tela não seja um artífice de primeiro nível, o retrato possui certas reminiscências das obras tardias de Lorenzo Lotto, como o “Retrato de homem com compasso e rolo de papel” (Staatliche Museen zu Berlin, Gemäldegalerie), datado pela crítica entre as décadas de 1530-40 e provavelmente um retrato do arquiteto Sebastiano Serlio (fig. 4); o “Retrato de gentil-homem com luvas” (Milão, Pinacoteca di Brera), de 1543 (fig. 5) e ainda o retrato de Febo da Brescia (Milão, Pinacoteca di Brera), também de 1543 (fig. 6). Neste último, podemos encontrar semelhanças com a tela em questão nas dobras das vestimentas forradas com peles, a elegância das mãos ornadas com anéis e a profundidade da expressão do personagem.58

58

Ibidem, p. 155.

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Figura 4.

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Figura 5.

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Figura 6.

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Além de todos esses fatores que aproximam a tela à figura de um intelectual da viola veneziano, que, entre as décadas de 1530-40, tinha aproximadamente cinqüenta anos, Gétreau nota que o olhar do personagem está fixo no braço da viola, como se ele estivesse preocupado em medir com o compasso a distância do trastejamento do instrumento. Foi este elemento que a fez associar a tela à figura de Silvestro Ganassi, ligando este gesto com a xilogravura de duas páginas da Lettione Seconda (fig.7), na qual Silvestro explica com o compasso o trastejamento da viola; e também, claro, por se tratar do mais importante tratadista de viola da gamba veneziano da época.

Figura 7.

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1.2. A Teoria das Proporções Harmônicas no século XVI e seus significados para a Sereníssima República de Veneza. A Teoria das Proporções Harmônicas teria nascido com os experimentos feitos com martelos e cordas por Pitágoras (séc. VI a.C.) e seus discípulos, e chega até o século XVI, principalmente através dos escritos de Platão (Timeu), Aristóteles (Metafísica e Do Céu), Aristóxeno (Elementos Harmônicos) e Boécio (De Musica). Essa teoria foi, durante a Idade Média, tópico fundamental da arte liberal “Música” que, juntamente com a Aritmética, a Geometria e a Astronomia, fazia parte do Quadrivium. No século XVI essa divisão das artes liberais ainda permanece, embora as demais artes menores, consideradas mecânicas, como a Arquitetura, a Escultura, a Pintura e a Música Prática, estivessem empenhadas desde a segunda metade do século XV em alçar suas técnicas à condição de arte liberal. Portanto, dentro desse contexto, ainda se deve levar em consideração a divisão da Música em Especulativa e Prática; sendo a Música Especulativa aquela destinada aos cálculos das proporções harmônicas e ao estudo do princípio numérico contido na natureza e no universo e, portanto, superior à Música Prática; esta última tem como objetivo tratar da composição musical, do canto e da execução dos instrumentos musicais. Dentro desta divisão da Música, chamamos a atenção para o fato de que, desde a Idade Média, o Músico era aquele que se atinha ao estudo da disciplina matemática e arte liberal chamada Música, enquanto o profissional da Música Prática era simplesmente chamado de Compositor, Cantor ou Tocador, de acordo com a atividade desenvolvida. Porém, tratados do século XVI, como Le Istitutioni Harmoniche (1558) de Gioseffo Zarlino, tendem a uma junção das duas partes da música, formando o que se chamou de “Músico Perfeito”:

Músico é aquele que na Música é perito e que tem a faculdade de julgar, não pelo som, mas pela razão, aquilo que em tal ciência contém; e se puser em obra as coisas pertencentes à prática, fará a sua ciência ainda mais perfeita, e Músico perfeito poderá chamar-se. Mas o Prático [...], digamos que é aquele que aprende os preceitos do Músico com longo exercício [...], de modo que prático pode-se dizer de cada Compositor, o qual, não por meio da razão e da ciência, mas pelo longo uso, sabe compor todas as cantilenas musicais; e de cada Tocador, seja de qualquer tipo de instrumento musical, que sabe tocar somente pelo longo uso e pelo juízo do ouvido, mesmo que tal uso não seja alcançado sem o intermédio de

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algum tipo de conhecimento. [...] Tendo agora visto que a diferença que se encontra entre um e outro é a mesma que se encontra entre o artífice e o seu instrumento [...] podemos quase dizer que o Músico é mais digno do que o Compositor, do que o Cantor, ou do que o Tocador, enquanto esse é mais nobre e digno do que o instrumento. Mas não digo, porém, que o compositor e que alguém que se exercita nos instrumentos naturais e artificiais seja, ou deva ser privado deste nome, desde que ele saiba e entenda aquilo que opera e transforme tudo isso em conveniente razão. Porque a semelhante pessoa convém não somente o nome de Compositor, de Cantor, ou de Tocador, mas também de Músico. Pelo contrário, se com um só nome devêssemos chamá-lo, nós o chamaríamos de Músico Perfeito.59

Tal classe de Músicos, graças ao advento da imprensa, produziu uma série de tratados que discursam não somente sobre a Teoria das Proporções, mas também sobre os elementos necessários à prática musical, como intervalos, claves, sinais de tempos, modos, técnicas do contraponto, classificação dos instrumentos e sua técnica de execução. O primeiro desses tratados publicado em língua italiana60 foi o Toscanello in Musica, do frade florentino Pietro Aaron (1489 -?), canônico de Rimini e mestre da casa do Reverendo et Magnifico Cavaliere Hierosolimitano Messer Sebastiano Michele, patrício veneziano. O tratado foi publicado pela primeira vez em Veneza, no ano de 1523, tendo sido reimpresso e corrigido posteriormente em 1529; e esta última versão foi reimpressa ainda em 1562 e em 1593. Aaron já havia escrito em 1516 um tratado de música em latim, De Institutione Harmonica, e após a primeira edição do Toscanello, publicou em 1525 o Trattato della Natura et Cognitione di Tutti gli Tuoni, dedicado a um familiar de Andrea Gritti, Pietro Gritti. Outro tratado de extrema importância para este estudo foi o extenso e já citado Le 59

”Musico esser colui, che na musica è perito, & hà facultà di giudicare, non per il suono: ma per ragione quello, che in tal scienza si contiene. Il quale se alle cose appartinenti alla prattica darà opera, farà la sua scienza più perfetta. & Musico perfetto si portrà chiamare. Ma il prattico [...], diremo esser colui, che li precetti del Musico con lungo essercitio apprende, [...]. Di sorte che prattico si può dire ogni compositore, il quale non per ragione & epr scienza: ma per lungo uso sappia comporre ogni musical cantilena; e ogni sonatore si qual si voglia sorte di istrumento musicale, che sappia sonare solamente per lungo uso, & giudicio di orecchio: ancora che a tale uso l'uno & l'altro non sia pervenuto senza'l mezzo di qualche cognitione. […]. Hora havendo veduto la diferenza, che si ritrova tra l'uno & l'altro, esser l'istessa, che è tra l'artefice & l'istrumento; [...], potremo quase dire, il Musico esser più degno del Compositore, del Cantore, o Sonatore, quanto costui è piu nobile & degno dell'istrumento. Ma non dico però, che'l compositore, & alcuno che esserciti li naturali, o artificiali istrumenti sia, o debba esser privo di questo nome, pur che egli sappia & intenda quello, che operi; & del tutto renda convenevol ragione: perche a simil persona, non solo di Compositore, di Cantore o di Sonatore: ma di Musico ancora il nome si conviene. Anzi se con un solo nome lo dovessimo chiamare, lo chiameremo Musico perfetto.” ZARLINO, Gioseffo. Le Istitutioni Harmoniche, A Facsimile of the 1558 Venice Edition. New York: Broude Brothers, 1965, p. 21. 60 Nesta dissertação será dado foco aos tratados italianos escritos em vernáculo. Porém não poderíamos deixar de citar os importantíssimos tratados em língua latina de Franchino Gaffurio (1451 – 1522), mestre de capela em Milão, Theorica Musice (1492) e De Harmonia Musicorum instrumentorum opus (1518).

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Istitutioni Harmoniche (1558) de Gioseffo Zarlino (1517–1590). Nascido em Chioggia, Zarlino foi, a partir de 1565, mestre de capela da igreja de São Marcos, em Veneza e, talvez tenha sido o mais importante discípulo do mestre franco-flamengo Adrian Willaert, o qual também foi mestre de capela em São Marcos até o ano de sua morte em 1562. Zarlino publicou mais dois tratados durante a sua vida: Dimostrationi harmoniche, em 1571 e Sopplimenti musicali, em 1588. 61 É necessário dar maior atenção ao conteúdo desses dois tratados, a fim de fechar um quadro sobre a tratadística musical italiana, ou mais precisamente, veneziana, durante a primeira metade do século XVI, e também para que se possa esclarecer a respeito das discussões sobre Música e Harmonia ocorridas na época. É importante lembrar que por Harmonia deve-se entender tanto a Teoria das Proporções, quanto a própria Música e que, portanto, os três termos são intercambiáveis dentro deste contexto. Sobre a origem da Música, como ciência, estão presentes nos tratados dois episódios, um de origem bíblica outro de origem grega, que a princípio são contraditórios, porém foram acomodados por Aaron, de modo que uma fonte não removesse a autoridade da outra. O primeiro é de Jubal, descendente de Caim, que antes do dilúvio, teria encontrado a música ouvindo o som dos martelos; o outro, do matemático grego Pitágoras, que, segundo Aaron, teria sido diligente inquisidor da música e das consonâncias e teria ainda encontrado a música no som dos martelos e em experimentos com cordas estendidas. Já Zarlino, conta tais episódios de maneira mais detalhada, sempre citando os autores que os defendem:

A ciência da Música teve sua origem; cuja nobreza, através dos antigos, pode facilmente ser demonstrada: porque, (como dizem Moisés, José e Beroso Caldeu) antes que ocorresse o dilúvio universal, foi encontrada no som dos martelos por Jubal, da estirpe de Caim. Mas [foi] perdida em seguida por causa do dilúvio e foi encontrada novamente por Mercúrio, sendo que (como deseja Diodoro) ele foi o primeiro que observou o curso das estrelas, a harmonia do canto e as proporções dos números. Disse ainda que ele foi o inventor da Lira de três cordas, e tal parecer deu também Luciano; se bem que Lactâncio, no livro que escreve sobre a falsa religião, atribui a invenção da Lira a Apolo; e Plínio quer que o inventor da Música tenha sido Anfião. Mas, de qualquer modo, Boécio, aproximando da 61

PALISCA, Claude V. "Zarlino, Gioseffo". In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001.

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opinião de Macróbio e distanciando-se de Diodoro, quer que Pitágoras tenha sido aquele que reencontrou as razões das proporções musicais no som dos martelos. Porque, passando perto de uma oficina de ferreiros, os quais com diversos martelos batiam um ferro aceso sobre a bigorna, veio-lhe às orelhas uma determinada ordem de sons, que movia o ouvido com deleite. Parando por um instante, começou a investigar de que forma tal efeito acontecia. E parecendo-lhe primeiramente que, das forças desiguais dos homens pudesse proceder [tal efeito], fez com que eles, que batiam, trocassem os martelos. Mas não ouvindo som diverso daquele de antes, julgou (como era verdade) que a diversidade do peso dos martelos fosse a causa. Tendo pesado cada um separadamente, encontrou entre os números dos pesos, as razões das consonâncias e da harmonia, as quais depois, industriosamente acresceu deste modo: pois, tendo feito cordas de tripa de carneiro de espessura igual e pendurando nestas os mesmos pesos do martelo, encontrou as mesmas consonâncias, que tão sonoras quanto as cordas, por sua natureza, tornam o som mais agradável ao ouvido. Continuou-se esta harmonia por certo espaço de tempo, e depois, os sucessores, os quais já sabiam que os seus fundamentos eram colocados em certos e determinados números, e, fazendo testes mais precisos, pouco a pouco, reduziram-na a tal, que lhe deram o nome de perfeita e exata ciência. 62

Os experimentos feitos pelos pitagóricos resultaram naquilo que foi chamado de ”Monocórdio de Pitágoras”, isto é, um instrumento musical que consiste em uma corda presa, de maneira tensionada, pelas duas extremidades, a uma caixa de madeira, que possibilite a ressonância. A partir do monocórdio foi possível verificar que se pode obter todas as consonâncias musicais a partir da razão de números inteiros, como: 1:2:3:4. Isto é,

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“La scienza della Musica hà havvuto la sua origine; la cui nobiltà facilmente si può per l'antichità dimostrare: percioche (come dicono Mose, Gioseffo & Beroso Caldeo) avanti che fusse il diluvio universale fu al suono de martelli trovata da Iubale delle stirpe di Caino: Ma perduta poscia per lo sopravenuto diluvio, di nuovo fu da Mercurio ritrovata: conciosia che (come vuole Diodoro) egli fu il primo, che osservò il corso delle stelle, l'harmonia de canto & le proportioni de i numeri; Et dice ancora lui esser stato l'inventore della Lira con tre chorde; del cui parere è stato ancho Luciano; quantunque Lattantio, nel libro che fa della Falsa religione, attribuisca l'inventione della Lira ad Apollo; & Plinio voglia, che l'inventore della Musica sia stato Anfione. Ma sia a qual modo si voglia, Boecio accostandosi all'opinione di Macrobio, & allontanandosi da Diodoro vuole, che Pitagora sia stato colui, che ritrovo la ragione delle musicali proportioni al suono de martelli: Percioche passando egli apresso una bottega di fabbri, i quali con diversi martelli battevano un ferro acesso sopra l'incudine, gli pervenne all'orecchie un certo ordine di suoni, che gli movea l'udito con dilettatione; & fermatosi alquanto, cominciò ad investigare onde procedesse cotale effeto; & parendogli primieramente, che dalle forze diseguali de gli huomini potesse procedere, fece che coloro, i quali battevano, cambiassero i martelli: ma non udendo suono diverso da quello di prima, giudicò (come era il vero) che la diversità del peso de martelli fusse cagione. Per la qual cosa havendo fato pesare cisascuno separatamente, ritrovò tra li numeri delli pesi le ragioni delle consonanze & del'harmonie; le quali egli poi industriosamente accrebbe in questo modo: che havendo fatto chorde di budella di pecore di grossezza uguale, attacando ad esse li medesimi pesi de martelli, ritrovò le medesime consonanze; tanto più sonore, quanto le chorde per sua natura rendono il suono all'udito più grato. Continuossi quest'harmonia per alquanto spatio di tempo, & dipoi li successori, li quali sapevano gia li suoi fundamenti esser posti in certi & determinati numeri, più sotilmente facendone prova, a poco a poco la ridussero a tale, che le diedero nome di perfetta & certa scienza.” ZARLINO, Gioseffo. Op.cit., p. 3.

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se a corda, que é de um determinado tamanho, espessura e tensão, for dividida pela metade, ou seja, na proporção de 1:2, o som produzido pela sua metade formará o intervalo de oitava, chamado pelos antigos de Diapason. Tal intervalo é considerado a consonância mais perfeita e a base do sistema musical grego. Continuando, se dividirmos a corda na proporção de 2:3, o segmento maior produzirá o intervalo de quinta, para os antigos, Diapente, a segunda consonância mais importante, a partir da qual, pôde-se obter a divisão da Diapason em tons e semitons. O próximo intervalo deduzido pelos pitagóricos é o intervalo de quarta, Diatessaron, o qual é produzido pela proporção 3:4, tal consonância é fundamental para o sistema musical grego, uma vez que podemos formar uma Diapason da soma de duas Diatessaron distanciadas uma da outra por um tom (proporção 9:8). O intervalo de quarta também é a base dos tetracordes gregos, ou seja, seqüência de quatro sons, que poderiam ser divididos entre si de diversas maneiras, gerando assim os três gêneros: diatônico, cromático e enarmônico. Ainda podemos pensar a Diapason como a soma de uma Diapente e uma Diatessaron, tendo estas uma nota em comum entre si. Eram considerados também importantes os intervalos compostos como a Bidiapason, duas oitavas, ou seja, a proporção 1:2:4; e a Diapasondiapente, uma oitava e uma quinta, proporção 1:2:3. Desta forma, os gregos acreditaram ter encontrado o "som do número", o princípio divino e matemático que rege todas as coisas do universo e da natureza. Este número sonoro, segundo Zarlino, seria então, o fundamento da Música.63 A partir deste princípio, Platão, no Timeu, assim como Boécio, no De Musica, dividiram a Música em três partes: Música Mundana, Música Humana e Música Instrumental. Sobre a Música Mundana, Aaron afirma:

A música mundana, segundo Platão, é aquela que é causada pela revolução dos corpos e círculos celestes; dos quais, devido a seus movimentos velozes, não é possível que não nasça som [algum]; e nascendo som, porque esses círculos têm proporção entre si, não é possível que não nasça harmonia, a qual pelos antigos é chamada [de] mundana. [...] Boécio confirma a mesma coisa, no [livro] primeiro

63

“ Il soggetto della Musica è il numero sonoro.” ZARLINO, Gioseffo. Op.cit., p. 29.

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da sua "Música", dizendo: “Como pode ser que uma máquina assim tão grande, como é aquela dos céus, tacitamente e sem som se mova?” 64

Zarlino usa as mesmas tópicas utilizadas por Aaron e ainda afirma:

Assim como nossos olhos não podem fixar o olhar na luz do Sol, [...] nossos ouvidos não podem entender a doçura da harmonia celeste, por causa da sua excelência e grandeza. Mas, cada motivo nos persuade a crer, pelo menos, que o mundo seja composto de harmonia; porque (como deseja Platão) a sua alma é harmonia; e porque também corpos celestes giram em torno das suas inteligências com harmonia, como se pode entender das suas revoluções, as quais são, ou uma ou outra, proporcionadas mais lentas ou mais velozes. Conhece-se também tal harmonia através das distâncias entre as esferas, porque elas são distantes uma das outras (como muitos gostam) em harmônica proporção. 65

E assim, segundo Boécio, o princípio do som é o movimento, e, portanto, do movimento dos planetas nasce a Música do universo, do macrocosmo, a qual, por sua grandeza, está distante do mundo dos sentidos e por isso é música inaudível. Mas a Música Mundana não está somente no movimento dos corpos celestes, ela está presente nas coisas da natureza, isto é, na composição do mundo através dos quatros elementos: terra, fogo, água e ar; assim como também na divisão do tempo, representado pelas quatro estações do ano. Portanto, diz Zarlino, “esta harmonia”, isto é, a Mundana:

foi conhecida por Mercúrio e Terpandro, sendo que um, ao encontrar a Lira, ou Cítara, colocou nela quatro cordas em imitação da Música Mundana (como dizem Boécio e Macróbio), a qual se distingue nos quatro Elementos, ou na variação dos quatro tempos do ano; e o outro, a ordenou com sete cordas, em semelhança com os sete Planetas. 66 64

“La musica mondana secondo Platone è quella, la quale è causata per la reuolutione de gli corpi & circoli celesti: de gli quali per il lor ueloce mouimento non puo essere che non nasca suono:& nascendo suono, perche essi circoli hanno proportione insieme, non puo essere anchora che non nasca harmonia:la qual da gli antichi è chiamata mondana. [...] Questo medesimo conferma Boetio nel primo de la sua musica dicendo. Come puo essere che una cosi grande machina come è quella di cieli, tacitamente et senza suono si muova.” AARON, Pietro. Toscanello in Musica. Bologna: Arnaldo Forni Editore, 1999, p. 18. 65 “Si come l'occhio nostro non puo fissare lo sguardo nella luce del Sole, [...] cosi gli orecchi nostri non possono capire la dolcezza dell'harmonia celeste, per eccellenza et grandezza sua. Ma ogni ragione ne persuade a credere almeno, che il mondo sia composto con harmonia; si perche (come vuole Platone) l'anima di esso è harmonia; si anche perche li cieli sono girati intorno dalle loro intelligenze con harmonia: come si comprende da i loro rivolgimenti; liquali sono l'uno dell'altro proportionatamente più tardi, o più veloci. Si conosce anchora tale harmonia dalle distanze delle sphere celesti: percioche sono distanti tra loro (come piace a molti) in harmonica proportione.” ZARLINO, Gioseffo. Op.cit., p. 13. 66 “Questa tale harmonia fu consciuta da Mercúrio, et da Terpandro; conciosia che l'uno havendo ritrovata la Lira, overamente la Cetera, pose in essa quattro chorde ad imitatione della Musica mondana (come dice

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Já a Música Humana, referente ao microcosmo, está presente na proporção do corpo humano, ou como diz Zarlino, “é aquela que pode ser compreendida por cada um que se volta à contemplação de si mesmo”.

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Um exemplo muito curioso de harmonia humana é

dado por Zarlino, a respeito da opinião comum de que é também Música Humana “aquela ordem que observa a Natureza na geração do nosso corpo.”68 Isto é, segundo ele, na matriz materna, o sêmen humano leva seis dias para transformar-se em leite; nove dias para transformar-se em sangue e doze dias para transformar-se em uma massa de carne sem forma, que finalmente, em dezoito dias toma forma de corpo humano; ou seja, em quarenta e cinco dias completa-se a geração, momento em que, “Deus Onipotente infunde a Alma intelectiva”.

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Continuando esse raciocínio, é fácil observar que a distância entre cada

etapa é constituída pelas principais consonâncias do monocórdio, isto é, a distância entre a primeira etapa e a segunda, 6:9, nada mais é do que a proporção 2:3, que gera a Diapente; já aquela que separa a segunda da terceira, 9:12, gera a Diatessaron; e entre a terceira e a última etapas, novamente se forma a Diapente, 12:18. Ainda, podemos deduzir a Diapason da distância entre a primeira etapa e a terceira, 6:12, e entre a segunda e quarta, 9:18; a Diapasondiapente encontra-se na distância entre a primeira e a última etapas, 6:18, como mostra a ilustração de Zarlino: Figura 8.70

Boetio & Macrobio) la quale si scorge ne i quattro Elementi, overo nella varietà de i quattro tempi dell' anno; & l'altro la ordinò con sette chorde alla similitudine de i sette Pianetti.” Ibidem, p. 16. 67 “La Musica humana poi è quell'harmonia, che può esser intesa da ciascuno, che si rivolga alla contemplatione di se stesso.” Ibidem, p. 16. 68 “Accioche non si credesse, che la Musica humana fusse, o si chiamasse quell'ordine, che osserva la Natura nella generatione de nostri corpi.” Ibidem, p. 16. 69 Ibidem, p. 16. 70 Ibidem, p. 17.

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Mas, apesar de descrever esse processo em seu tratado como opinião geral, Zarlino não concorda com ele e diz que não poderá chamá-lo de Música Humana, pois, segundo ele, a verdadeira Música Humana, é aquela que nasce do Corpo, da Alma e da junção de um com o outro. Sendo assim, a Harmonia do Corpo é aquela que está “nas coisas que crescem, nos humores e nas operações humanas”71; já a Harmonia da Alma está na constituição das suas três partes que são o Intelecto, os Sentimentos e o Hábito, que:

Segundo Ptolomeu, correspondem às razões de três consonâncias, isto é, da Diapason, da Diapente e da Diatessaron; visto que a parte intelectual corresponde à Diapason, que tem sete intervalos, e sete são as suas espécies, na qual se encontram sete coisas, isto é, a Mente, a Imaginação, a Memória, a Cogitação, a Opinião, a Razão e a Ciência. À Diapente, que tem quatro espécies e quatro intervalos, correspondentes aos sentidos em quatro coisas, na Visão, na Audição, no Olfato e no Paladar, sendo que o Tato é comum a cada um dos quatro elementos citados e maximamente [ligado] ao Paladar. Mas à Diatessaron, a qual é formada por três intervalos e contém as três espécies correspondentes à parte habitual, no Aumento, na Sumidade e no Decréscimo. Semelhantemente, se desejamos que as partes da Alma sejam a fé da Razão, da Ira e da Cupidez, encontraremos na primeira sete coisas correspondentes aos intervalos e às espécies da Diapason, isto é, a Agudeza, o Engenho, a Diligência, o Conselho, a Sabedoria, a Prudência e a Experiência. Na segunda, encontraremos quatro coisas, que correspondem às espécies e aos intervalos da Diapente, isto é, a Mansuetude ou Temperança de ânimo, a Animosidade, a Fortaleza, e a Tolerância. Na terceira, três coisas correspondentes aos intervalos e às espécies da Diatessaron, isto é, Sobriedade ou Temperança, Continência e Respeito. 72

71

“Ma questo non chiamerò io Musica humana, la qual diremo, che si possa conoscere da tre cose, cioè dal Corpo, dall'Anima, & dal Congiungimento dell'uno & dell'altra. Dal corpo, si come nelle cose che crescono, ne gli humori, & nelle humane operationi.” Ibidem, p. 16. 72 “Conoscesi ancora tal harmonia dall'Anima, cioè dalle sue parti, che sono l'Intelletto, li Sentimenti & l'Habito: imperoche, secondo Tolomeo, corrispondeno alle ragioni di tre consonanze, cioè della Diapason, della Diapente, & della Diatessaron: conciosia che la parte intellettuale corrisponda alla Diapason, che hà sette intervalli, & sette sono le sue Specie; onde in essa si ritrovano sette cose, cioè la Mente, l'Imaginatione, la Memoria, la Cogitatione, l'Opinione, la Ragione, & la Scienza. Alla Diapente, la quale ha quattro Specie & quattro intervalli, corrisponde la sensitiva in quatro cose, nel Vedere, nell'Udire, nell'Odorare, & nel Gustare: conciosia che il Toccare sia commune a ciascun de i nominati quattro sentimenti, & massimamente al Gusto. Ma alla Diatessaron, la qual si fa di tre intervalli & contiene tre Specie corrisponde la parte habituale, nell'Augumento, nella Summità, & nel Decrescimento. Similmente se noi vorremo che le parti dell'Anima siano la fede della Ragione, del'Ira & della Cupidità; ritrovaremo nella prima sette cose corrispondenti a gli intervalli & alle Specie della Diapason, cioè l'Acutezza, l"Ingegno, la Diligenza, il Conseglio, la Sapienza, la Prudenza, & la Sperienza. Nella seconda ritrovaremo quattro cose, che corrisponderanno alle specie & a gli intervalli della Diapente, cioè Mansuetudine o Temperanza d'animo, Animosità, Fortezza & Tolleranza. Nella terza tre cose corrispondenti a gli intervalli & alle specie della Diatessaron, cioè Sobrietà o Temperanza, Continenza, & Rispetto.” Ibidem, p. 17.

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Ou seja, do Corpo fazem parte todos os elementos físicos de sua constituição, juntamente com a qualidade da ação, já a Alma contém dentro de si todas as virtudes e aspectos do caráter do ser humano. Da relação de amizade entre Corpo e Alma é feita, através do Espírito, sua junção, que segundo Zarlino, resulta em toda a Humana Harmonia. Finalmente, há a Música Instrumental, que corresponde ao patamar inferior da hierarquia das Harmonias, pois é dela que deriva a Música Prática, isto é, aquela música que é produzida através de instrumentos, sejam eles Naturais, como a voz humana; ou Artificiais, como os instrumentos, de cordas, sopros, teclados e percussão. Segundo a Teoria das Proporções, esta é, pela sua inferioridade, a única possível de ser percebida pelo ouvido humano. Mesmo que inferior, a categoria da Música Instrumental, assim como seus profissionais, passaram por uma valorização no século XVI. Esta valorização foi possível somente através da inserção do conhecimento especulativo em seus procedimentos, elevandoa-a da condição de arte mecânica àquela de ciência exata. Os tratados mais característicos desse procedimento são aqueles que, como os de Aaron e Zarlino, são divididos em duas grandes partes: uma introdutória sobre música especulativa e outra sobre aspectos da música prática, voltados principalmente para o ensino do contraponto. Esse modelo será imitado prolificamente na Itália no decorrer do século XVI, estendendo-se até o século XVIII, com alguns exemplares como o importantíssimo tratado de Johann Joseph Fux, Gradus ad Parnassum (1725), traduzido em italiano pelo Pe. Alessandro Manfredi em 1761. O tratado de Fux é ainda hoje a principal fonte de estudo sobre a técnica de contraponto, mas infelizmente, o primeiro livro, que trata da música especulativa, é completamente desconsiderado. Podemos ainda observar um caso muito particular de tratado prático, novamente veneziano, que insere assuntos especulativos em sua confecção: os tratados de Silvestro Ganassi, dos quais o primeiro é objeto deste estudo. Tanto a Fontegara (1535) quanto a Regula Rubertina (1542) e Lettione Seconda (1543) não são tratados de contraponto, pelo contrário, dedicam-se à explanação da técnica executiva de instrumentos musicais, porém,

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não da maneira como tratados mais antigos, como os de Sebastian Virdung73 e Martin Agricola74, que são compêndios organológicos de todos os instrumentos musicais, classificados em cordas, sopros, teclados e percussão; mas sim de modo bem específico e extremamente detalhado sobre a técnica de um único instrumento, no caso da Fontegara, a flauta doce, e no caso da Regula Rubertina e Lettione Seconda, a viola da gamba. Desta forma a Fontegara é o primeiro tratado sobre um único instrumento, o primeiro tratado completo sobre a técnica da flauta doce75, e o primeiro de uma longa série de manuais de diminuição impressos durante o século XVI e início do XVII. Como se poderá ver no Capítulo 2, que apresenta uma tradução da obra em língua portuguesa, a abordagem da Fontegara segue os mesmos parâmetros de detalhamento e cientificidade quinhentista das obras de Aaron e Zarlino. Os tópicos abordados são: o propósito da flauta de imitar a voz humana; o meio através do qual a imitação procede – segundo o autor, através do sopro, da articulação com o auxílio dos dentes; tabela de dedilhados com as posições comuns da flauta, em três tamanhos, soprano, tenor e baixo, além de uma tabela de dedilhados com sete notas suplementares descobertas por ele mesmo em três modelos de flauta de três construtores diferentes; uma explicação detalhada de todos os tipos de articulação existentes com todas as combinações possíveis entre elas; três capítulos sobre o tocar artificioso; além de treze capítulos sobre a arte da diminuição, que é o que mais nos interessa neste momento. A diminuição é uma técnica vocal e instrumental de caráter improvisatório muito difundida no século XVI e praticada com a finalidade de ornamentar contrapontos, mais especificamente, madrigais, motetos e chansons francesas. Ganassi, na Fontegara, foi o primeiro a oferecer um sistema de codificação dessa prática de origem oral; depois dele, muitos outros instrumentistas escreveram manuais de diminuição, com regras e exemplos de madrigais diminuídos, numa escrita cada vez mais virtuosística, que acabou por

73

VIRDUNG, Sebastian. Musica getutscht. A treatise on musical instruments. Ed. Beth Bullard. New York: Cambridge University Press, 1993. 74 AGRICOLA, Martin. Musica Instrumentalis Deudsch. Wittenberg, 1529 e 1545. Tradução de William E. Hettrick. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. xv. 75 Todos os tratados de instrumentos dos séculos XVI e XVII que falam da flauta doce contêm somente uma breve descrição física do instrumento acompanhado de uma tabela de dedilhado e, às vezes, algumas indicações sobre articulação.

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desenvolver os gêneros instrumentais do Barroco, tais como a sonata e o concerto. O que surpreende no sistema de diminuição ganassiano é a utilização das proporções como elemento de diversidade métrica, variável praticamente não considerada nos demais manuais. Segundo Ganassi, pode-se diminuir utilizando a variação de três elementos: figuras rítmicas, caminhos melódicos percorridos pelas notas de uma diminuição e proporção, isto é, variando a quantidade de figuras de um mesmo valor contidas em um determinado espaço de tempo. Assim, após explicar todas as combinações possíveis entre os três elementos, Ganassi distribui os exemplos musicais em quatro regras, segundo a proporção utilizada. Na Primeira Regra, vão os exemplos escritos nos sinais de tempo simples, ou seja,

ou

76

, que indicam duas mínimas, ou ainda, quatro semínimas por battuta77. No

mesmo capítulo, ele diz que tais exemplos da Primeira Regra podem ser exercitados em música que está em proporção Sesquiáltera, ou seja, 3:2 ( 3), com três mínimas por battuta, e isto gera a proporção Subsesquiáltera, 2:3, ou seja, uma relação de dois contra três entre a diminuição e as demais vozes da composição. E, se logo em seguida, dobrarmos o valor das figuras dos exemplos, transformando as duas mínimas do tempo

em duas

semibreves, ou quatro mínimas, teremos então, em relação à Sesquiáltera, a proporção Sesquiterça, 4:3 e em relação ao alla breve,

, uma proporção Dupla, 4:2, referente ao sinal de tempo

. Na Segunda Regra, vão os exemplos escritos em proporção Sesquiquarta,

5:4, ou seja, cinco semínimas por battuta, que, comparando com a Sesquiáltera, 6:4, forma a proporção Subsesquiquinta, 5:6, porque ao invés de cinco figuras, teremos seis a cada battuta. Na Terceira Regra, vão os exemplos em Sesquiáltera, 6:4, ou seja, seis semínimas por battuta. Por fim, temos a Regra Quarta que diminui sete semínimas por battuta, 7:4, formando a proporção Supertripartientequarta e comparando-a com a proporção Sesquiáltera forma-se a proporção Sesquisexta, 7:6. 76

Segundo Lodovico Zacconi em sua Prattica di Musica, Veneza, 1592, “os seguintes sinais [de tempo] ou são cantados com uma semibreve a cada tactus.” A única diferença entre tais sinais é que indica a perfeição da breve e o sinal , a imperfeição da mesma. Para melhores esclarecimentos ver: Item 3.3.2 e PACCHIONI, Giorgio. Selva di varii precetti. La pratica musicale tra i secoli XVI e XVIII nelle fonti dell’epoca. Vol. I: Elementi della musica figurata. Bolonha: Orpheus Edizioni, 1995. p. 6. 77 Segundo Zarlino a battuta “não é outra coisa que um levantar e baixar de mão a maneira do pulso humano”. ZARLINO, Op.cit., p. 207. Ver item 3.3.2.

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Note-se que a nomenclatura utilizada por Ganassi não é aquela das consonâncias formadas pelas proporções, como Diapason, Diapente ou Diatessaron, mas sim sua nomenclatura matemática deduzida da relação entre o numerador e o denominador das proporções. Sobre tal nomenclatura, trataremos no item 3.3.2. O que significam, afinal, as proporções métricas da Fontegara e por qual motivo ele teria utilizado um sistema matemático e científico para representar uma prática improvisada? Na Fontegara as proporções tentam retratar certa maleabilidade da métrica, que possibilita a utilização de proporções irregulares como 5:4 e 7:4 correspondentes às nossas quintinas e septinas, permite a troca de métrica praticamente a cada battuta, além de sugerir a possibilidade de uma diminuição em proporção diferente da música original. A partir destas informações é possível constatar a presença de uma prática instrumental extremamente refinada e elaborada ritmicamente, porém, da qual nunca saberemos com exatidão o quanto reflete a realidade da execução dos instrumentistas ítalo-venezianos da época; e nem porque, durante o decorrer do século, tal diversidade métrica não se encontra mais nos tratados de diminuição. Musicólogos como Horsley e Brown78 acreditam que, como a Fontegara foi a primeira tentativa de teorização do processo de diminuição, utilizar a teoria das proporções teria sido a estratégia empregada por Ganassi para resolver problemas de escrita decorrentes de uma prática livre e improvisada, e que, durante o século, tal prática teria sofrido um processo de padronização que culminaria na ornamentação estereotipada do período barroco, motivo pelo qual a teoria das proporções passou a não fazer mais parte dos manuais. Ainda Lo Cicero79 constatou através da observação dos exemplos ganassianos feitos sobre o intervalo de quinta, que muitos deles eram apenas uma variação, um certo retardar ou acelerar dos pés métricos troqueu e iâmbico, que Lo Cicero classificou como certo tipo de agógica ou inégalité da música quinhentista que se pôde escrever através da

78

HORSLEY, “Improvised Embellishment in the Performance of Renaissance Polyphonic Music.” In: Journal of the American Musicological Society, Brunswick, v. 4, n. 1, 1951, p. 3-19; BROWN, Howard M. Embellishing Sixteenth-Century Music. Oxford University Press, 1976. 79 LO CICERO, Dario. “Ganassi e 'um certo ordine di procedere' che... si può scrivere”, In: SALVATORE, Daniele. L'Arte Opportuna al Sonar di Flauto. Savignano sul Rubicone: Gruppo Editoriale Eridania, 2003. p. 216-226.

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teoria das proporções. Já Luca de Paolis80 acredita que a presença da teoria das proporções na obra de Ganassi tem ainda um escopo filosófico e é produto da cultura veneziana da época. Além disso, segundo ele, a presença de um tema potencialmente teórico em uma obra de caráter prático pode ser um importante testemunho da crescente valorização do músico executante, considerado até então inferior ao músico teórico. Tal opinião nos parece muito coerente e concordante com tudo que aqui já foi exposto. Desta forma, acreditamos que os tratados de Ganassi sejam, tal como o Toscanello de Aaron e o Le Istitutioni de Zarlino, testemunhos da utilização de elementos especulativos na tratadística com a finalidade de retratar a excelência dos músicos venezianos e possibilitando a classificação da música dos compositores, no caso de Aaron e Zarlino, assim como a música dos cantores e tocadores, no caso de Ganassi, como verdadeira e exata ciência; bem como reconhecer aqueles que a praticam como sendo os próprios "Músicos Perfeitos" de que nos fala Zarlino. Mas a Música Prática não foi a única a utilizar-se de elementos da Música Especulativa para a construção de seus princípios. Segundo Zarlino, a Música, dentre todas as artes liberais, tem o principado e pelos gregos foi chamada de “o círculo das ciências”, pelo fato de que ela é capaz de abraçar todas as demais disciplinas. Assim, a Gramática, primeira das sete artes liberais, não pode existir sem a harmônica ordem e proporção das palavras; nem a Dialética, pode mostrar que o verdadeiro se encontra muito longe do falso sem a proporção dos silogismos; menos ainda pode o Orador, sem a Música, causar maravilhoso deleite em seus ouvintes, pois para isso, é preciso utilizar na sua pronúncia os acentos musicais da maneira adequada. E quem tentasse separar a Música da Poesia seria como se tivesse separando o corpo de sua própria alma, de modo que sem harmonia e metro não seria possível diferenciá-la do falar doméstico e popular. Do mesmo modo, a Música se relaciona também com a Aritmética, com a Geometria, e principalmente com a Astronomia, porque o Astrônomo jamais poderia prever as coisas futuras se não fosse conhecedor dos fundamentos harmônicos e da concordância dos planetas.

80

PAOLIS, Luca de. “Introduzione”. In: GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara. Società Italiana del Flauto Dolce. Roma: Hortus Musicus, 1991. p. 3-15.

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Mas a Música não abraça somente as artes liberais do Trivium e do Quadrivium, segundo Aaron e Zarlino, faz parte também da Filosofia, da Teologia, da Política, da Medicina e da Arquitetura. 81 De modo que, se para Aaron, “o Arquiteto sem Música não será perfeito”82, assim como para Zarlino, “se o Arquiteto não tivesse conhecimento da Música, como bem demonstra Vitrúvio, não saberia com razão fazer o temperamento das máquinas, nem nos Teatros colocar as colunas e nem dispor bem e musicalmente os edifícios”83, não nos pareceria estranho pensar que em Veneza, no mesmo ano em que foi impressa a Fontegara (1535), o frade Francesco Zorzi, responsável pelo convento da Ordem Franciscana em San Francesco della Vigna e autor das obras De Harmonia Mundi Totius (1525) e In Sacram Scripturam Problemata (1536), tenha escrito, a pedido do Doge Andrea Gritti, um Memorial corrigindo as medidas do projeto de Jacopo Sansovino para a reforma da igreja pertencente ao convento, iniciada no ano anterior. Todas as novas medidas propostas por Zorzi, como era de se esperar, são escritas à maneira das proporções musicais e, segundo Wittkower84, o Memorial constitui uma aplicação prática dos preceitos contidos em sua obra De Harmonia Mundi. O Memorial é datado de 1 de abril de 1535 e afirma o seguinte:

Para conduzir a obra da Igreja, com aquelas devidas e consonantíssimas proporções, não mudando coisa alguma daquilo que já foi feito, prosseguirei deste modo. Gostaria que a largura do corpo da Igreja fosse de 9 passos, que é o quadrado do Ternário, número primo e divino; e que com o comprimento desse corpo, que será [de] 27 [passos], tenha-se a proporção tripla, que forma um diapasondiapente (fig.7); e este concertante mistério, e harmonia é tanto, que, querendo Platão descrever a consonantíssima proporção e construção do Mundo no Timeu, o tomou como fundamento e primeira prescrição, multiplicando, quanto fosse necessário, aquelas mesmas proporções e números com as devidas regras e consonâncias, até que se tivesse compreendido todo o Mundo, e todos os seus membros e partes. Querendo nós, então, construir a Igreja, devemos considerar aquilo [que é] necessário e elegantíssimo para seguir esta ordem. Tendo por Mestre e Autor, o sumo Arquiteto, Deus, o qual, desejando instruir Moisés a respeito da forma e proporção do Tabernáculo, que ele tinha de fazer, deu-lhe como modelo a obra desta casa mundana, dizendo (assim como está 81

AARON, Pietro. Op.cit., p. 14. ZARLINO, Gioseffo. Op.cit, p. 4-5. “[...] secondo Vitruvio larchitettore senza musica non sara perfetto.” AARON, Pietro. Op.cit, p. 14. 83 “[...] se l'Architettore non havesse cognitione della Musica; come bem lo dimostra Vitruvio, non saprebbe com ragione fare il temperamento delle machine, & nelli Theatri colocari li vasi, & dispor bene & musicalmente gli edificij.” ZARLINO, Gioseffo. Op.cit., p. 5. 84 WITTKOWER, Rudolf. Los fundamentos de la arquitectura en la edad del humanismo. Madri: Alianza Forma, [Alianza Editorial], 1988, p. 147. 82

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escrito no Êxodo, no vigésimo quinto): Olha e faze segundo o exemplo que te foi mostrado no monte85. Tal exemplo, segundo a opinião de todos os Sábios, foi a construção do Mundo. E justamente, porque o dever era que [se] tivesse um lugar particular para habitar, conforme ao comum, do qual está escrito em Isaías, no sexagésimo sexto: O céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés.86 Deseja então, o Deus bendito, que esta obra particular seja semelhante à sua grande máquina, não em quantidade, da qual ele não tem necessidade, nem deleite, mas semelhante em proporção, a qual ele não quer somente nos lugares materiais onde se mora, mas singularmente em nós. A respeito dos quais diz Paulo, escrevendo aos Coríntios: O Templo de Deus sois vós.87 Ponderando tal mistério, o sapientíssimo Salomão, deu as mesmas proporções do tabernáculo mosaico ao templo fabricado com tanta celebridade. Seguindo então estas mesmas proporções, nós nos contentaremos no comprimento da Igreja, com o número 27, que é número triplo [em relação] à largura, e cubo do Ternário. Além do qual, Platão, na descrição do Mundo não quis passar e Aristóteles, no primeiro [livro] do Céu, tendo em mãos as medidas e forças da natureza, não quis que além daquele [número] se pudesse passar num corpo. É verdade que se poderiam aumentar as medidas e números, mas estando sempre naquelas mesmas proporções. E quem não atingisse o 27, faria um corpo diminuído, e quem presumisse transgredi-lo, faria um monstro, desprezaria e violaria as leis naturais. Então, a este corpo perfeito e completo lhe daremos a cabeça, que é a Capela Grande. Quanto ao comprimento, [deve ser] na mesma proporção de igualdade, ou simetria, que se encontra em cada um dos três quadrados, que estão no corpo, isto é, 9 passos. Não julgo expediente que seja da mesma [medida] daquela largura, que é o corpo, o qual não deve passar (assim como dissemos) o 27; mas que ela seja de 6 passos, como uma cabeça adicionada sobre o corpo proporcionado e completo. E fará com a largura da Igreja a proporção de uma Sesquiáltera, que rende o diapente, uma das harmonias celebradas (fig.8). E porque comumente os Arquitetos louvam a simetria da Capela com o corpo, em relação à largura, [esta] é [formada por] uma proporção quádrupla, que faz um bidiapason, harmonia consonantíssima (fig.9). Desta simetria não partirá o coro: o qual terá no comprimento, outros 9 passos, e chegará à proporção quíntupla em relação à largura, que nos faz a belíssima harmonia de um bidiapasondiapente (fig.10). A verdadeira largura das Capelas será de 3 passos, em proporção tripla com o corpo da Igreja, e rende um diapasondiapente (fig. 11), e com a largura da Capela Grande será dupla, que dá a diapason (fig.12). Não faltará proporção com as outras Capelas, que estarão do lado da Capela Grande, que, com os suas paredes de 4 passos, estarão em proporção sesquiterça, que nos dá o diatessaron, proporção celebrada (fig. 13). De modo que todas as medidas do plano, seja em comprimento como em largura, sejam consonantíssimas, e necessariamente darão deleite a quem as virem, salvo se os seus olhos forem oblíquos e desproporcionados. Na verdade, quanto aos altares das Capelas, [eles deverão ser] separados desta por balaustres, ou quadros, como um Sanctum Sanctorum, no qual não podem entrar, senão o Sacerdote com o seu ministro. E isto servirá para todas as Capelas, exceto nas duas falsas, nas quais não se poderá observar esta ordem. Desejo que se mantenha a Igreja alta em relação à rua, e mais [alta] ainda as Capelas, que, portanto, terão ali 3 degraus, pelos quais se poderá subir, do modo como sempre foi a opinião de todos, e já foi dado início na Capela grande, e coro. A abóbada, desejo que se faça em todas as Capelas e no coro; porque o 85

Êxodo. 25, 40. Isaías. 66, 1. 87 1 Coríntios. 3, 16. 86

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dizer, ou o cantar do ofício, melhor ressoa na abóbada que no vigamento. Porém, no corpo da Igreja, onde se faz o sermão (como os sermões não resultam [bem] nem são entendidos nas abóbadas), desejo o vigamento. Desejo-o em caixotões, da [melhor] maneira possível, porém com as suas medidas e proporções. Tais quadros serão pintados segundo a arte de cor grisalha a nós conveniente, grave e duradouro, mais que aos outros. E estes caixotões, desejo-os, entre outras razões, por ser muito conveniente à predica; o que [bem] sabem os peritos da Arte, e a experiência o comprovará. Agora a respeito da altura, desejo aquela [que] deu o senhor Jacopo Sansovino no seu modelo, que é de 60 pés, ou 12 passos, em proporção sesquiterça com a largura, que rende uma diatessaron, harmonia célebre e consonante. E assim, de todas as outras alturas, da Capela Grande, das médias e das pequenas, encontrando-as proporcionadas neste modelo, não me estenderei em exprimir [cada caso] em particular. Da mesma maneira rogo [sobre] as ordens das colunas e pilastras, sendo designadas segundo a regra do artifício dórico: a qual, aprovo nesta obra, por ser conveniente ao Santo, a quem é dedicada a Igreja, e aos frades, que viverão nela. Resta por último falar da fachada, a qual desejo que não seja de nenhum modo quadrada, mas correspondente à construção por dentro; e que por isso se possa compreender a forma da construção, e as suas proporções, de modo que de dentro e de fora seja toda proporcionada. E esta é a última intenção nossa, sobre a qual concordam os Arquitetos, mas também todos os subscritos Padres, isto é, o Rev. Pe. Ministro, com os Definidores. De modo que ninguém terá ousadia, nem liberdade para mudar coisa alguma.88

Figura 9.

88

O texto original em italiano foi transcrito por FOSCARI, Antonio. TAFURI, Manfredo. L'Armonia e i conflitti. La chiesa di San Francesco della Vigna nella Venezia del '500. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1983, p. 208-212 e está nos Anexos desta dissertação.

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Figura 10.

Figura 11.

Figura 12.

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Figura 13.

Figura 14.

Figura 15.

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Note-se a presença de uma série de citações bíblicas capazes de confirmar a veracidade do princípio proporcional do universo, misturadas àquelas já conhecidas de Platão e Aristóteles, além da clara referência ao templo de Salomão, cara à cultura veneziana.

Mas, embora os objetos sejam diferentes, o conteúdo continua o mesmo:

proporções que definem a medida, desta vez não mais das figuras rítmicas de uma diminuição, mas sim de um projeto de reforma arquitetônico. Na tentativa de uma confirmação que nos leve a crer que a Teoria das Proporções, pelo menos em solo veneziano quinhentista, fosse uma questão que interessasse a todos, principalmente a todas as artes, observemos ao final do Memorial de Zorzi, quatro assinaturas que validam seu conteúdo e que nos mostram que este necessitou da aprovação de uma comissão um tanto particular, antes de ser colocado em prática: Eu, F[rade] Franc[esco] Georgio89, à instância do Sereníssimo P[ríncipe], fiz a supracitada descrição, a fim de que todos entendam, que aquilo que se faz nesta Igreja, faz-se com boas razões e proporções, e assim, desejo e prego que se deva fazer. E eu Fortunio Spyra, parece-me, por aquele pouco que entendo, que as medidas e proporções anotadas pelo Rev. Pe. Frade Francesco Giorgio são boas e bem consideradas, louvo tudo o que acima está escrito. E eu, Jacopo Zonaballi, afirmo aquilo que foi afirmado acima, parecendo-me, por aquele pouco que conheço, que o todo foi considerado bem e prudentemente. E eu Sebastiano da Bologna [Serlio], julgando [que] as medidas postas pelo Rev. Pe. fra Franc[esco] Zorzio, são bem compreendidas e com boa proporção, concordo com o parecer de sua Reverência, afirmando tudo o que acima foi posto. Eu, Ticiano pintor, afirmo [que] as supracitadas medidas postas neste papel são a propósito da construção, a qual foi iniciada pela Igreja de San Francesco della Vigna, e assim eu afirmo. Eu, Jacopo Sansovino, assino aquilo que acima está escrito, e assim prometo me obrigar [a fazer] o quanto este escrito contém, e pela fé dos Frades escrevi esta... com as próprias mãos. (Seguem-se as assinaturas dos frades)

89

Verificou-se muito comum em textos antigos de origem veneziana o uso da letra “z” no lugar de “g”, característica do dialeto local. Portanto, os nomes Giorgio, Giorgi, Zorzio e Zorzi referem-se à mesma pessoa.

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Portanto, entre a assinatura de Zorzi, que propõe novas medidas e a de Sansovino, que se compromete em cumprir o que ali se encontra, está a assinatura do humanista Fortunio Spira, personagem que desfrutou de grande prestígio na época devido à sua grande cultura.90

Segundo Francesco Sansovino,91 Spira era um “filósofo celebérrimo, e de

profunda ciência”; e Pietro Aretino92, em suas cartas, elogiou sua “majestade na presença, gentileza nos costumes, maneira nas ações, graça nos gestos, bondade na sua natureza, felicidade no engenho, fama nas obras e glória no nome”. Logo abaixo consta a assinatura de um intelectual de nome Zonaballi, de quem, infelizmente, não temos nenhuma informação. Depois, temos o parecer de Sebastiano da Bologna, ou Sebastiano Serlio, que, segundo Wittkower,93 já em 1534 era considerado grande conhecedor da teoria da arquitetura, e estava em Veneza preparando o livro IV de seu tratado, I sette libri dell'architettura, publicado em 1537. Seguindo, temos a assinatura do grande mestre veneziano, o pintor Ticiano. Para Wittkower, “a aprovação do memorando por parte de Ticiano e Serlio, não somente indica a familiaridade destas idéias entre os artistas, como também a sua predisposição em pô-las em prática” e, em outro momento, o autor afirma que:

Frente a essas artes liberais [do quadrivium], a pintura, a escultura e a arquitetura eram consideradas ocupações manuais. Para elevá-las do nível mecânico até aquele das artes liberais, tiveram que dotá-las de uma base teórica, ou seja, de uma fundamentação matemática. Essa transformação foi a grande manobra dos artistas do século XV. Não é estranho que concentraram sua atenção na música, considerada como a principal arte liberal, e que utilizaram a teoria musical como guia quando enfrentavam seus próprios problemas. Estar familiarizado com a teoria da música se converteu em um sine qua non da formação artística.94

Entretanto, para que o discurso feito até o presente momento seja adequado, deve ser acrescido de um novo fator, sem o qual não é possível compreender o valor e o significado dos textos de Ganassi e Zorzi. Retomando a citação de Paolis, de que a

90

WITTKOWER, Rudolf. Op.cit, p. 150. “Venetia... descritta, 1581; na ed. de 1663, p. 154.” Apud: WIT TKOWER, Rudolf. Op.cit., p. 150. 92 ARETINO, Pietro. Del primo libro de le lettere, Paris, 1609, p.187. Apud: WITTKOWER, Rudolf. Op.cit., p. 150. 93 WITTKOWER, Rudolf. Op.cit, p. 150. 94 Ibidem, p. 159. 91

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Fontegara é um produto da cultura veneziana, é preciso analisar qual seria a relação da Teoria das Proporções com a República de Veneza. Rosand95, demonstra a íntima relação de Veneza com a teoria das proporções e por conseqüência com a música. Segundo a autora, a música era utilizada como propaganda do Mito de Veneza: um fenômeno que exaltava a concórdia interna e a incorruptibilidade do governo veneziano, instaurado com bases nos três sistemas existentes, ou seja, a monarquia, a oligarquia e a democracia, tornando-se modelo para as demais cidades. Assim, o epíteto “A Sereníssima”, como era conhecida, simbolizava a imagem desta cidade esplêndida, fundada milagrosamente sobre as águas, inconquistada por mais de um milênio96 e, sobretudo, considerada por seus apologistas como eco das harmonias celestes. Um claro exemplo desta relação nos foi dado por Gasparo Contarini, em sua obra, La repubblica e i magistrati di Vinegia (1548): 97

Foi ordenado na nossa República o Senado, e o Conselho dos Dez, o qual na cidade de Veneza (cuja República diz ser um misto de estado régio, popular e nobre) representa o estado dos nobres: e são esses meios que com as partes extremas, isto é, o estado popular, [que é] o Grande Conselho; e o Príncipe, o qual representa a pessoa de um rei, juntos se apertam em um estreito nó. Assim diz Platão no Timeu, que os elementos extremos: a terra e o fogo, com os elementos do meio se conjugam e se ordenam. Assim na consonância do Diapason, as vozes extremas com aquelas do meio, da Diatessaron e da Diapente juntas se afinam. 98

No início do século XVI, logo após as derrotas sofridas durante as guerras contra a Liga de Cambrai, oficialmente concluídas com a paz de Bolonha em 1530, a República se vê obrigada a retornar à laguna a fim de fortalecer-se e reconstituir sua imagem. Nesse período, nota-se um crescimento no número das celebrações político-religiosas e 95

ROSAND, Ellen. “Music in the Myth of Venice In: Renaissance Quarterly, v. XXX, n. 4, 1977, p. 511537; ROSAND, Ellen. “La musica nel mito di Venezia”, In: Renovatio Urbis. Venezia nell'etá di Andrea Gritti (1523-1538), a cura di Manfredo Tafuri. Roma: Oficina Einaudi, 1984, p. 167-186. 96 ROSAND, Ellen. Op.cit., p. 167. 97 Ver: ROSAND, Ellen. Op.cit., nota. 4; FOSCARI, Antonio. TAFURI, Manfredo. Op.cit, p. 52. 98 “Fu ordinato nella nostra Repubblica il Senato, e'l Consiglio de Dieci; i quale nella Città di Vinegia (la cui Repubblica dissi essere misto di stato Regio, popolare e nobile) rappresentano lo stato de nobili: e son certi mezzi, con i quali le estremi parti, ciò che è lo stato popolare, il gran Consiglio, e'l Principe, il quale rappresenta la persona d'un re, insieme con stretto nodo si stringono. Cosí dice Platone nel Timeo, che gli estremi elementi, la terra e'l fuoco, co gli elementi di mezzo si congiungono e legino. Cosí nella consonantia del Diapason le voci estreme con quelle di mezzo del Diatessaron e Diapente insieme s'accordano.” CONTARINI, Gasparo. La repubblica e i magistrati di Vinegia. Apud: ROSAND, Ellen. Op.cit., nota. 4; FOSCARI, Antonio. TAFURI, Manfredo. Op.cit., p. 52.

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consequentemente um aprimoramento da atividade musical99 nos locais relacionados com o poder político, como a Igreja e a Praça de São Marcos. Além disso, durante o governo do doge Andrea Gritti (1523-1538), a quem foi dedicada a Fontegara, verifica-se a tentativa de uma renovação urbana a fim de remodelar todo o espaço em frente ao palácio ducal. Segundo Foscari e Tafuri, uma sucessão de intervenções parece sair de um programa criado por uma “política fundada sobre o prestígio, sobre a internacionalidade e sobre a renovação do mito, correspondente a uma requalificação dos lugares eloqüentes da cidade.”100 Um dos principais monumentos da chamada renovatio urbis grittiana, foi a Loggetta del Campanile de São Marcos (fig. 16), construída entre os anos de 1537-40, pelo arquiteto da República e grande responsável pelas obras da renovatio, Jacopo Sansovino.101 Segundo Rosand:

A Loggetta, um edifício quase sem razões práticas, tem uma função urbanística: é o perno do novo conceito espacial que une a Piazzetta com a Praça [de São Marcos]. A sua forma e as suas cores respondem àquelas do Palácio Ducal e mais precisamente da Porta della Carta. Mas em um nível ainda mais profundo, a estrutura suntuosa de Sansovino comenta justamente o Palácio e o seu significado. Porém na Loggetta, são as esculturas que falam, é a arte figurativa que dá voz aos valores tradicionais do Estado, por meio de um vocabulário novo, ou melhor, de um vocabulário antigo. A fachada do edifício, em forma de arco triunfal e derivada também da scenae frons, é elemento particularmente significativo daquele estilo ideológico que Manfredo Tafuri definiu como classicismo de estado102. Aquela "melhor ordem, [...] segundo a antiga disciplina de Vitrúvio" – assim Vasari103 descreve a contribuição de Sansovino à arquitetura e urbanismo de Veneza – representa a língua oficial e triunfante de uma Veneza renovada, isto é, da Veneza que sobreviveu à guerra da Liga de Cambrai e que reconquistou quase todo o seu império precedente.104

99

Ver: ROSAND, Ellen. Op. cit., p. 168. FOSCARI, Antonio. TAFURI, Manfredo. Op. cit., p. 60. 101 Sobre a Loggetta, ver: ROSAND, David. “Venezia e gli dei”, In: Renovatio Urbis. Venezia nell'etá di Andrea Gritti (1523-1538), a cura di Manfredo Tafuri. Roma: Oficina Einaudi, 1984, p. 201-215.; e ROSAND, David. "The Appropriation of Olympus", In: Myths of Venice. The Figuration of a State. Chapel Hill & London: The University of North Carolina Press, 2001. p. 117-151. 102 TAFURI, Manfredo. Jacopo Sansovino e l'architettura del '500 a Venezia, 2a. edição, Padova, 1972, p. 70. Apud: ROSAND, David. Op.cit., p. 201. 103 VASARI, Giorgio. Le vite de' più eccellenti pittori, scultori ed architettori, a cura di Gaetano Milanesi, Firenze 1906, VII, p. 503. Apud: ROSAND, David. Op.cit., p. 201. 104 ROSAND, David. Op.cit., p. 201. 100

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Figura 16.

As esculturas que descrevem os valores do Estado Veneziano, citadas por Rosand, correspondem às figuras mitológicas de Minerva, Mercúrio, Apolo e a Paz. O filho de Jacopo Sansovino, Francesco Sansovino, em seu diálogo Delle cose notabili che sono in Venetia (1556),105 recordando os dizeres do pai, descreve o significado das estátuas:

Oras, vós sabeis que Palas é figurada pelos antigos como a sabedoria. Esta figura é, portanto, uma Palas armada, e [é] tão bela quanto ela está de prontidão e em ato vivaz; porque a sabedoria destes Senhores age com prontidão no governo desta alma Cidade. (fig.17) [...] E todas as coisas pensadas com sabedoria precisam ser expressas com bela eloquência, pois as coisas ditas com eloquência são muito mais estimadas do que aquelas que com rudeza se expõem. Nesta República os eloqüentes foram e são numerosos, e tiveram grande reputação; por isso foi figurado Mercúrio. Vós sabeis que, Mercúrio é significativo nas letras e na eloquência. (fig.18) [...] Apolo foi feito para exprimir, assim como Apolo significa o Sol, e o sol é verdadeiramente um só, e não muitos, por isso se chama sol. Assim, esta República é uma só no mundo, sapientemente e justamente dirigida. Além disso, todos os homens sabem que a nossa nação se deleita com a Música e por isso Apolo é figurado como a Música. Mas porque, da união dos Magistrados, que são reunidos maravilhosamente, sai inusitada harmonia, que perpetua este governo imortal. Por isso, foi feito este Apolo, que significa a 105

Este diálogo é a primeira edição daquele mais conhecido, Città nobilissima et singolare (1581). Ver: ROSAND, David. Op.cit., p. 202.

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harmonia (fig.19) [...] Ela é a Paz, aquela tanto amada por nós, aquela paz que o Senhor deu ao nosso protetor, São Marcos, dizendo: “Pax tibi Marce Evangelista meus”. Aquela que nos faz jubilar entre os demais povos alegres, e contentes. Vejam como ela queima com aquela tocha as armas que tem embaixo dos pés. (fig.20) 106

Figura 16 a 20.

Deste modo, mais uma vez, a Música vem esculpida como elemento basilar da renovação do Mito e, por conseqüência, fundamental à política veneziana do pós-guerra. De acordo com Foscari e Tafuri,107 para Andrea Gritti não era nada estranha esta leitura do

106

“Ora voi sapete che Pallade è figurata da gli antichi per la sapientia. Questa figura adunque è una Pallade armata, & tanto bella, quanto ella stà pronta, e in atto vivente; perche la sapientia di questi Signori è prontissima nel governo di questa alma Città.” SANSOVINO, Francesco, p. 54-55. Apud: ROSAND, David. Op.cit., p. 202. “Et perche tutte le cose sapientemente pensate, hanno bisogno d'essere espresse con bella eloquenza, percioche le cose eloquentemente dette son molto più stimate di quelle, che con rozzezza si espongono, et in questa Repubblica gli eloquenti sono stai, e sono in gran numero, et in gran riputatuine; però è stato figurato questo Mercurio; e voi sapete, che Mercurio é significativo nelle lettere, & dell'eloquenza.” SANSOVINO, Francesco, p. 55. Apud: ROSAND, David. Op.cit., p. 202. “Apollo fu fatto per esprimere, che si come Apollo signidica il Sole, & il Sole é veramente un solo, & non più, & però si chiama Sole; cosi questa Repubblica è una sola nel mondo senza più, sapientemente, & giustamente regolata. Oltre a questo, ogni huomo sà, che la nostra natione si diletta della Musica, & però Apollo è figurato per la Musica. Ma perché dalla unione de Magistrati, che son congiunti maravigliosamente insieme, n'esce inusitata harmonia, che perpetua questo governo immortale, però si hà figurato questo Apollo, che significa la harmonia [...]” SANSOVINO, Francesco, p. 55-56. Apud: ROSAND, David. Op.cit., p. 202-203. “Ella è la Pace, quella tato amata da noi, quella pace che il Signor dette al protettore nostro S. Marco, dicendo: Pax tibi Marce Evangelista meus. Quella che ne fà gioir tra tutti gli altri popoli lieti, e contenti. Vedete come ella abbruccia con quella facella l'arme ch'ella hà sotto i piedi” SANSOVINO, Francesco, p. 56. Apud: ROSAND, David. Op.cit., p. 203. 107 FOSCARI, Antonio. TAFURI, Manfredo. Op.cit, p. 54.

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Mito em chave musical, tanto que no verso da medalha cunhada por Giovanni Zacchi em honra a Gritti, em 1536 (fig. 21):

aparece o símbolo do tricipitium – associado à prudência, mas em relação à concomitância de passado presente e futuro – dominado por uma Fortuna dotada de uma cornucópia e posada sobre um globo. Mas um tricipitium, em forma de uma longa serpente, aparece também no frontispício da Prattica Musicae de Franchino Gaffurio (fig.20): aqui a serpente liga Apolo à terra, atravessando os nomes das harmonias gregas, em cujas extremidades, fechadas em medalhões, estão as figuras das musas e dos planetas correspondentes. Prudência, domínio do tempo, harmonia: as coordenadas ideais que estruturam novamente as ideologias oficiais da República aparecem assumidas pessoalmente pelo doge [...].108

Figura 21.

108

FOSCARI, Antonio. TAFURI, Manfredo. Op.cit, p. 54.

54

Figura 22.

55

Além disso, segundo os autores, o próprio Doge teria insistido com os Procuradores, em 1527, para que se fosse contratado como mestre de capela de São Marcos, no lugar de um mestre local, o compositor franco-flamengo Adrian Willaert, proveniente da principal escola de contraponto do século XV. O compositor foi mestre de importantes músicos como Cipriano de Rore e Zarlino, além de ser responsável pela consolidação do estilo policoral como característico da escola compositiva veneziana. Fenlon afirma que a contribuição monumental feita por Willaert em sua obra I Salmi appartinenti alli vesperi per tutte le feste dell’anno, parte a versi & parte spezzadi accomodati da cantare a uno & duoi Chori (1550), “pode ser pensada como uma classicalização de antigas tradições, um equivalente em música da arquitetura de Sansovino”. 108 Este último, escultor-arquiteto florentino, foi responsável por levar o modelo imperial romano à Veneza. Depois de ter trabalhado em Florença na construção das fachadas efêmeras para a visita do papa Leão X à cidade em 1515, Jacopo Sansovino foi à Roma, onde esteve em contato com Rafael e Bramante e, em 1527, e após o saque, refugiou-se na Sereníssima, onde foi contratado dois anos depois, em 1529, pelo Doge Gritti como arquiteto da República. Todas as suas obras públicas feitas durante o governo Gritti estão diretamente ligadas ao contexto da renovatio. Estas estão divididas em dois principais setores da cidade: o primeiro deles abrange a área cerimonial por excelência da cidade, isto é, a Praça de São Marco juntamente com a Piazzeta, onde foram construídos edifícios em estilo triunfal romano, como a Zecca (casa da moeda), iniciado em 1536, a Biblioteca Marciana e a Loggetta del Campanile, ambas iniciadas em 1537. O outro setor, onde a intervenção seguiu um decoro mais austero, constitui a zona de San Francesco della Vigna, local de residência da família Gritti e do convento franciscano já citado. 109

108

FENLON, Iain. The Ceremonial City. History, Memory and Myth in Renaissance Venice. New Haven and London: Yale University Press, 2007, p. 81. 109 Sobre Sansovino, ver: VASARI, Giorgio. "Descrizione dell'opere di Iacopo Sansavino. Scultore Fiorentino.", In: Vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti. Introduzione di Maurizio Marini. 3a. edizione. Roma: Grandi Tascabili Economici, 1997, p. 1301-1316; FOSCARI, Antonio. TAFURI, Manfredo. Op.cit, p. 36-42, 62-70; TAFURI, Manfredo. "Il problema storiografico", In: Renovatio Urbis. Venezia nell'etá di Andrea Gritti (1523-1538), a cura di Manfredo Tafuri. Roma: Oficina Einaudi, 1984, p. 9-55. TAFURI, Manfredo. "Capitolo settimo: Epilogo Lagunare. Jacopo Sansovino dall'inventio alla consuetudo." In: Ricerca del Rinascimento. Principi, città, architetti. Torino, Giulio Einaudi Editore, 1992, p. 305-365.

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Sendo assim, entendemos que a obra dedicada ao doge Gritti pretende celebrar a excelência dos tocadores da Senhoria de Veneza, como Músicos Perfeitos, o que nos parece muito pertinente devido ao ineditismo do gênero e à maneira notável com que são abordados os diversos aspectos da flauta doce e da diminuição. Mas seria possível também conceber a Fontegara como uma propaganda do Mito de Veneza? Não nos parece estranho que, estando inserida nos anos mais prolíficos da renovatio, a Fontegara também tivesse o motivo de celebrar a grandiosidade da República, muitas vezes entendida como a própria personificação da Música. E mais especificamente homenagear o próprio Doge Andrea Gritti, cuja benevolência é comparada, na dedicatória do tratado com aquela dos imperadores romanos110, e para quem Ganassi deseja dedicar a sua obra de música feita com proporção harmônica, quase sugerindo que naquela nação, música, arquitetura e política são conduzidas com verdadeira e exata ciência.

110

“Seria muito longo se as suas lodes eu agora quisesse contar com os exemplos de Cláudio Nero e outros imperadores”. GANASSI, Silvestro. Fontegara, prefácio.

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1. 3. Silvestro Ganassi e a Pintura. Ao lermos o frontispício da Fontegara, verificamos que, em 1535, Silvestro Ganassi se autodenomina “tocador da Ilustríssima Senhoria de Veneza.”111 Porém, oito anos depois em seu tratado sobre a viola da gamba (Lettione Seconda, 1543), para nossa surpresa, o autor não mais se autodenomina “tocador”, e sim desideroso nella pictura. Qual seria afinal o significado de tal afirmação? Segundo o dicionário da Accademia della Crusca (1623), o termo desideroso significa: “Che desidera. Lat. Cupidus, avidus.”112, ou seja, que deseja, é cúpido ou ávido por alguma coisa. Deste modo, podemos afirmar que Silvestro Ganassi, aos 51 anos de idade, considerava-se tomado por intenso desejo de conhecer e/ou praticar a arte da pintura. Corroborando essa hipótese, Lasocki interpreta o termo como sinônimo de estudioso; segundo ele, Ganassi era “provavelmente um estudioso das artes visuais.”113 A afirmação parece-nos coerente não fosse o conteúdo das informações sobre o autor, encontradas em dois importantes tratados da pintura veneziana quinhentista: o Diálogo sobre a Pintura de Paolo Pino (1548) e o Diálogo sobre a Pintura intitulado O Aretino [...], de Lodovico Dolce (1557). O tratado de Paolo Pino é considerado o primeiro registro historiográfico da arte veneziana do período, seguido pelo Della Nobillissima Pittura de Michelangelo Biondo (1549) e pelo Diálogo de Ludovico Dolce.114 Seu texto é composto por um diálogo entre dois pintores, um veneziano de nome Lauro e um estrangeiro, de origem toscana, de nome Fábio. O diálogo acontece durante um sarau, na presença de belas damas, no qual Fábio assume a tarefa de discorrer o conteúdo do tratado, enquanto Lauro, como discípulo, ouve atentamente e concorda em quase tudo. Segundo Ventura, Pino utiliza-se da figura retórica da ironia, ao colocar nas mãos de Fabio e não de Lauro, o pintor veneziano, a tarefa de 111

GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara. [...] Arnaldo Forni Editore [...], p.1. ACCADEMIA DELLA CRUSCA, Vocabolario degli accademici della Crusca, in questa seconda impressione da' medesimi riveduto, e ampliato, com aggiunta di molte voci degli autor del buon secolo, e buona quantità di quelle dell'vso, Veneza: J. Sarzina, 1623, vol. 2, p. 494. 113 LASOCKI, David. “Renaissance Recorder Players”. In: American Recorder, v. 45, n. 2, 2004, p. 23. 114 PINO, Paolo. Diálogo sobre a pintura. Tradução, apresentação e notas de Rejane Bernal Ventura. Cadernos de Tradução. No. 8. Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 2002, p. 9. 112

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exprimir sua opinião sobre a arte veneziana.115 Durante o diálogo, Fabio discorre sobre as “as principais preceptivas em debate pelos artífices e letrados do período.”116 Na última parte do discurso de Pino, na qual se discute sobre o pintor perfeito, entra em cena nosso Silvestro Ganassi, ou Silvestro dal Fondaco, como é citado no Diálogo. A passagem situa-se ao final da página 81 da tradução de Ventura.117 Um parágrafo antes, o interlocutor Fábio alerta o amigo em relação aos danos provocados pelo excesso de diligência por parte do pintor e por isso deseja que o pintor perfeito:

divirta-se do operar entretendo-se e restaurando-se com a doçura da poesia, ou então com a suavidade da música de voz e instrumentos diversos, ou com suas outras virtudes, das quais deve ser guarnecido todo verdadeiro pintor.

Logo em seguida, Lauro responde, comentando a passagem com exemplos:

Fazeis-me lembrar de Albrecht Dürer, alemão, o qual compôs uma obra em seu idioma que tratava também de pintura, a qual mereceu ser dignamente escrita em latim. E de Leon Battista Alberti, florentino, muito erudito nas ciências, como é certificado pelas suas obras latinas nas quais ousou fundamentadamente no livro que faz de perspectiva, opor-se a Vitrúvio perspéctico. E de Pordonone, que foi bom músico, em muitas partes teve bom conhecimento de letras e manejava garbosamente mais espécies de armas. Frade Sebastiano dal Piombo como resultou excelente no alaúde! Conheço vosso Bronzino que se deleita muito de letras, de poesia e de música. E Giorgio da Rezzo118, jovem o qual, além de que promete ter raro êxito na arte é também virtuosíssimo e é aquele que, como verdadeiro filho da pintura, tem unido e recolhido em seu livro com dizer cândido, todas as vidas e obras dos mais esclarecidos pintores. Quase me esquecia de Silvestro dal Fondaco, sobrinho da pintura por ser filho da música, irmã da nossa arte. Este tem um intelecto divino, todo elevado, todo virtude, e é bom pintor.119 E não creio verdadeiramente que jamais existisse pintor totalmente privado de virtude, digo, além da pintura. Fabio: Todos esses homens foram pintores íntegros. [...]120

Pino, ao falar de Silvestro, cita a célebre frase de Leonardo em seu tratado: “A música só pode ser chamada de irmã [caçula] da pintura, já que ela está submetida à

115

Ibidem, p. 13. Ibidem, p. 10. 117 Ibidem. 118 Ver nota 121. 119 Grifo nosso. 120 Ibidem, p. 10. 116

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audição, sentido inferior à visão.”121 Tal afirmação faz parte de uma tópica recorrente do chamado “paralelo entre as artes” no Renascimento, através do qual a pintura, considerada até então como arte mecânica e não liberal, coloca-se em uma posição privilegiada em relação à poesia e à música, disciplinas “sonoras”, mas tradicionalmente aceitas como artes liberais devido à forte ligação destas com as disciplinas do Trivium, no caso da poesia, e do Quadrivium, no caso da música. Mesmo que a passagem privilegie a pintura, não deixa de considerar a música como arte liberal e por isso digna de se tornar irmã da pintura. Assim, Silvestro dal Fondaco, teria sido próximo da pintura simplesmente pelo fato de conhecer intimamente a música, mas, não bastassem todos os elogios efetuados por Pino, este diz que Silvestro ainda era bom pintor. No mesmo parágrafo, Pino nos dá outros três exemplos de artífices que transitam entre as duas artes: Frade Sebastiano dal Piombo, Pordonone e Bronzino. Frade Sebastiano dal Piombo, segundo Vasari122, foi mais conhecido em vida por suas atividades musicais que pela pintura:

A pintura não foi, segundo o que muitos afirmam, a primeira profissão de Sebastiano, mas sim a música; porque, além de cantar, deleitou-se muito tocando vários tipos de instrumentos [suoni], sobretudo o alaúde, com o qual tocava todas as partes sem alguma companhia; tal exercício fez com que ele fosse, durante um tempo, muito grato entre os gentis-homens de Veneza, com os quais, como virtuoso, praticou sempre domesticamente.123

Do mesmo modo, a vida vasariana de Pordonone confirma a passagem de Pino ao dizer que ele “era amigo e companheiro de muitos e se deleitava com a música, e, porque se

121

VINCI, Leonardo da. “Tratado da pintura (‘O Paragone’)” In: LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura “Textos essenciais”. Vol.7. O paralelo das artes. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 23. 122 Giorgio Vasari, pintor e arquiteto aretino, é o “Giorgio da Rezzo, jovem o qual [...] tem unido e recolhido em seu livro com dizer cândido, todas as vidas e obras dos mais esclarecidos pintores” citado anteriormente no texto de Paolo Pino. 123 “Non fu, secondo che molti affermano, la prima professione di Sebastiano la pittura, ma la musica: perché, oltre al cantare, si dilettò molto di sonar varie sorti di suoni, ma sopra il tutto il liuto, per sonarsi in su quello stromento tutte le parti senz'altra compagnia; il quale esercizio fece costui essere un tempo gratissimo a' gentiluomini di Vinezia, con i quali, come virtuoso, praticò sempre dimesticamente.” VASARI, Giorgio. “Vita di Sebastian Viniziano. Frate del Piombo e Pittore”. In: Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: , acesso em 08 de fevereiro de 2010. 60

ocupou das letras latinas, tinha prontidão e graça no dizer”.124 Já sobre a vida de Bronzino, Vasari não escreve nada a respeito da música, diz somente que “este se deleitou e se deleita ainda muito com a poesia, onde fez muitos capítulos e sonetos, dos quais uma parte foi publicada.” 125 A próxima citação é do texto de Ludovico Dolce, Diálogo sobre a Pintura intitulado ‘O Aretino’. No qual se discorre sobre a dignidade dessa pintura, e de todas as partes necessárias que convém ao pintor perfeito. Com exemplos de pintores antigos e modernos; e no final se faz menção das virtudes e das obras do divino Ticiano.126 Os interlocutores do diálogo são: o poeta Pietro Bacci (1492-1556), mais conhecido como Pietro Aretino,127 estabelecido em Veneza desde o saque de Roma, e o gramático toscano Giovan Francesco Fabrini,128 que também se encontrava na cidade desde 1547. O Diálogo foi publicado um ano após a morte de Aretino e, em sua homenagem, Dolce se torna portavoz do antagonismo surgido entre este e o pintor Michelangelo Buonarroti, na ocasião da execução do Juízo Final na Capela Sistina.129 Sendo assim, a obra tem como objetivo expor 124

“[...] era amico e compagno di molti, e si dilettava della musica, e, perché aveva dato opera alle lettere latine, aveva prontezza e grazia nel dire.” VASARI, Giorgio. “Vita di Giovanni Antonio Licinio da Pordenone e d’altri pittori del Friuli” In: Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: , acesso em 08 de fevereiro de 2010. 125 “Si è dilettato costui e dilettasi ancora assai della poesia; onde ha fatto molti capitoli e sonetti, una parte de' quali sono stampati.” VASARI, Giorgio. “Degl'Accademici del Disegno. Pittori, Scultori et Architetti e dell'opere loro, e prima del Bronzino.” In: Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: , acesso em 08 de fevereiro de 2010. 126 DOLCE, Lodovico. Dialogo della Pittura Intitolato L’ Aretino. Nel quale si ragione della dignità di essa pittura, e di tutte le parti necessarie che a perfetto pittore si acconvengono. Con esempi di pittori antichi e moderni; e nel fine si fa menzione delle virtù e delle opere del divin Tiziano, Vinegia, appresso Gabriel Giolito, de’ Ferrari, MDLVII. In: Trattati d’arte del Cinquecento, a cura di Paola Barocchi, I, Bari 1960, p. 141-206, 433-93. 127 Segundo Lichtenstein, Aretino foi “criador do que se poderia chamar de jornalismo panfletário, ele anuncia e comenta de maneira espirituosa e cáustica as notícias recentes da Europa, em cartas rápida e amplamente difundidas. Atribui a si mesmo o título de “secretário do universo” ou ainda de “flagelo dos príncipes” [...]. Censor da vida política, ele pretende desempenhar o mesmo papel no campo das artes”. ARETINO, Pietro. “Carta ao divino Michelangelo”, in: LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura “Textos essenciais”. Vol.1. O mito da pintura. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 30. 128 Segundo Barocchi, Fabrini era um “valente gramático, [...] conterrâneo de Vasari e de Aretino, nasceu em Figline; em 1547 foi chamado a Veneza para ensinar eloqüência, ofício que exerceu por trinta anos”. DOLCE, Lodovico. Dialogo della Pittura Intitolato L’ Aretino [...]. In: Trattati d’arte del Cinquecento, a cura di Paola Barocchi, I, Bari 1960, p. 141-206, 433-93, nota 14. 129 Sobre o antagonismo entre Aretino e Michelangelo, ver: ARETINO, Pietro. Op. cit., p. 30-34. 61

detalhadamente o ponto de vista de Aretino e mostrar que Michelangelo foi um “mestre bem menor que Rafael ou Ticiano, a grande glória da pintura veneziana da época”.130 Para convencer Fabrini de seus argumentos, Aretino diz que primeiro será necessário discursar um pouco sobre a importância da pintura, seu significado, suas partes e sobre o ofício do pintor.131 Assim, ele inicia esta etapa do diálogo definindo a pintura como imitação da natureza e o melhor mestre, como aquele que mais se aproximar dela em suas obras. Mas isso, segundo ele, não é suficiente para diferenciar o pintor do poeta, e em seguida, acrescenta:

O pintor é intento a imitar através das linhas e das cores [...] tudo aquilo que se apresenta aos olhos; e o poeta, através das palavras, vai imitando não só aquilo que se demonstra aos olhos, mas também o que se representa ao intelecto. Portanto, esses nisto são diferentes, mas semelhantes em tantas outras partes, que quase se podem chamar irmãos.132

É por isso que, comenta Fabrini, “alguns valentes homens chamaram o pintor de poeta mudo e o poeta pintor que fala.”133 Em seguida, Aretino acrescenta que mesmo que o pintor não seja capaz de imitar aquilo que se submete ao tato, é capaz de pintar os pensamentos e os afetos da alma, e fazer com que tais figuras, através da forma como ele pinta suas faces, pareçam falar, gritar, chorar, rir, etc. Neste momento, numa frase de Fabrini, aparece nosso Silvestro:

Sobre isso se pode buscar o parecer do vosso virtuoso Silvestro, excelente músico e tocador do doge, o qual desenha e pinta louvavelmente e nos faz tocar com a mão, de modo que as figuras pintadas pelos bons mestres, falam quase em imitação das vivas. 134

130

DOLCE, Ludovico. “Carta a Gasparo Ballini”, in: LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Pintura “Textos essenciais”. Vol.6. A figura humana. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 56. 131 DOLCE, Lodovico. Op.cit., p. 146. 132 “[...] aggiungo che il pittore è intento a imitar per via di linee e di colori, o sia in un piano di tavola o di muro o di tela, tutto quello che si dimostra all’occhio; et il poeta col mezzo delle parole va imitando non solo ciò che si dimostra all’occhio, ma che ancora si rappresenta all’intelletto. Laonde essi in questo sono differenti, ma simili in tante altre parti, che si possono dir quasi fratelli.” DOLCE, Lodovico. Op.cit., p. 147. 133 “avendo alcuni valenti uomini chiamato il pittore poeta mutolo, et il poeta pittore che parla.” DOLCE, Lodovico. Op.cit., p. 147. 134 “In ciò si può ricercare il parer del vostro virtuoso Silvestro, eccellente musico e sonatore del doge, il quale disegna e dipinge lodevolmente e ci fa toccar con mano che le figure dipinte da buoni maestri parlano, quasi a paragon delle vive.” DOLCE, Lodovico. Op.cit., p. 147. 62

Aqui, mais uma vez, Ganassi encontra-se inserido em uma situação de comparação, porém o foco não está nas virtudes dos mestres, mas sim na forma em que cada arte é capaz de imitar a natureza. Além disso, podemos notar que os autores destes dois ”Diálogos sobre a Pintura” têm uma alta opinião em relação a Silvestro dal Fondaco. Como vimos nos trechos citados acima, para Pino ele possuía “um intelecto divino, todo elevado, todo virtude” – elogios bastante significativos – e era “bom pintor”. Já Dolce, além de dizer que Silvestro era tocador do Doge, chamou-o também de músico, ou seja, mais um indício de que Silvestro não era apenas um instrumentista que desempenhava sua arte mecanicamente, ou de ouvido; mas sim um verdadeiro músico perfeito que, através do uso da razão e do tocar artificioso, transformou sua arte em verdadeira ciência. Dolce, assim como Pino, também afirma que Ganassi era um bom pintor, mas infelizmente não temos notícias até o momento sobre nenhuma tela, ou outro tipo de pintura que tenha sido realizada por ele. Entretanto, sabemos pelas inscrições finais de suas obras que ele mesmo teria gravado e imprimido todos os tratados e, portanto, é muito provável que os desenhos e talvez as xilogravuras que ilustram as três obras, sejam também feitos por Ganassi. Observamos também um pequeno detalhe na citação de Dolce; segundo ele, Silvestro desenha e pinta louvavelmente, e neste caso, o termo italiano disegnare pode muito bem estar-se referindo à sua atividade de impressor. Deste modo, as gravuras conhecidas de Ganassi são quatro: o frontispício da Fontegara (fig. 23), o frontispício da Regola Rubertina (fig. 24), uma gravura de abertura após o frontispício da Lettione Seconda (fig. 25) e um exemplo de duas páginas, de como fazer a divisão dos trastes da viola no capítulo IV da Lettione Seconda (fig. 26). Além disso, temos na Lettione Seconda, o brasão de Neri Capponi ao final da dedicatória (fig. 27); uma letra “C” capitular, no prefácio Aos Leitores, onde aparece a cabeça de uma velha (fig. 28); e três pequenos desenhos demonstrando a vibração das cordas justas, desafinadas e médias, no final dos capítulos I, II e III respectivamente (fig. 29). A mesma moldura que envolve algumas páginas do texto da Regola Rubertina (fig. 30) está presente em todas as páginas da Lettione Seconda (fig. 31).

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Figura 23.

Figura 24.

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Figura 25.

Figura 26.

Figuras 27 e 28.

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Figura 29.

Figura 30.

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Figura 31.

. Retornando aos diálogos de Pino e Dolce, verificamos que Silvestro aparece durante a exposição de uma mesma tópica: a comparação entre as artes. Retomada da retórica antiga, a comparação, conhecida no Renascimento como paragone, tornou-se, no século XVI, um exercício muito praticado entre os artífices e literatos.135 No campo das artes, constituiu uma importante ferramenta de valorização sócio-cultural e inclusão dentro do rol das disciplinas liberais. A mais importante dessas comparações, que foi conhecida com o nome de Ut pictura poesis, relaciona as artes da visão, como a pintura, a escultura e a arquitetura, com aquelas da audição, como a poesia e a música – esta última, entendida como uma extensão da própria poesia. Segundo Lichtenstein, a comparação entre pintura e poesia: se insere numa longa tradição que, segundo Platão remontaria a Simônides de Ceos, e que nos foi transmitida através da formulação feita por Horácio, no século I, em sua Epístola aos Pisãos: “O espírito é menos vivamente impressionado por 135

KRISTELLER, Paul Oskar. “The modern system of the arts”. In: Renaissance Thought and the Arts. New Jersey: Princeton University Press, 1990. p. 183-184; BROCK, Maurice. "Ut pictura musica. Comment l'image fait-elle voir la musique?”, Imago Musicae, XVI-XVII, 2001, p. 61. 67

aquilo que o autor confia aos ouvidos que por aquilo que este põe diante dos olhos, essas testemunhas irrecusáveis”. Desde o início, essa oposição tomou a forma de uma comparação entre duas artes em particular, a pintura e a poesia – Ut pictura poesis, “um poema é como um quadro”, escreve Horácio, ainda na Epístola aos Pisãos. [...] A doutrina do Ut pictura poesis, tal como a compreendiam os teóricos do Renascimento, foi um dos meios – e certamente um dos mais importantes – que iriam permitir à pintura gozar de um reconhecimento até então reservado às artes da linguagem, isto é, ter acesso à dignidade de uma atividade liberal.136

Entendido como variação desta, o Ut pictura musica, ou a comparação da pintura com a música, toma forma, segundo Maurice Brock, de uma “harmoniosa complementaridade biográfica”. Se acreditarmos em todas as informações oferecidas por Vasari em suas Vidas, um grande número de pintores, principalmente os de origem veneziana, são citados e reconhecidos como bons cantores e instrumentistas.

Acima

pudemos ver os exemplos de Pordenone, Sebastiano dal Piombo e Bronzino, porém também contamos com os exemplos de pintores como Giorgione (1478 – 1510), que, segundo Vasari, “admiravelmente gostou tanto do som do alaúde, que tocava e cantava em seu tempo tão divinamente que, frequentemente, o usava para diversas músicas e reuniões de pessoas nobres.”137 E ainda “enquanto Giorgione se ocupava em honrar a si mesmo e a sua pátria, ao conversar muito, e ao entreter com a música vários amigos seus, enamorouse de uma dama [madona] [...].”138 Ticiano (1473/90 – 1576), que, segundo uma carta de Pietro Aretino, teria feito em 1540 um retrato do construtor Alessandro Trasuntino em troca de um cravo [arpicordo]139 e, ainda, teria participado de uma reunião na casa do poeta Aretino, onde estiveram presentes o escultor e arquiteto Jacopo Sansovino, a cantora

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LICHTENSTEIN, Jacqueline. Op. cit., Vol. 7: O paralelo das artes. [...], p. 9 e 11. “[...] e piacqueli il suono del liuto mirabilmente e tanto, che egli sonava e cantava nel suo tempo tanto divinamente che egli era spesso per quello adoperato a diverse musiche e ragunate di persone nobili.” VASARI, Giorgio. “Giorgione da Castelfranco, pittor viniziano” In: Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: < http://biblio.signum.sns.it/cgi-bin/vasari/Vasariall?code_f=print_page&work=le_vite&volume_n=4&page_n=42>, acesso em 08 de fevereiro de 2010. 138 “Mentre Giorgione attendeva ad onorare e sé e la patria sua, nel molto conversar che e' faceva per trattenere con la musica molti suoi amici, si innamorò d'una madonna, [...]”.VASARI, Giorgio. “Giorgione da Castelfranco, pittor viniziano” In: Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: , acesso em 08 de fevereiro de 2010. 139 “Intanto il viso e l’audito [...] spettano di comprendere ne lo arpicordo, che voi farete a lui, e nel ritratto, che egli farà a voi [...]”. Lettere di ARETINO, Bd. 1, Brief XCV, S. 154/155. Apud: GROOS, Ulrike. Ars Musica in Venedig im 16. Jahrhundert. Hildesheim: OLMS, 1996, p. 20, nota 47. 137

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Franceschina Bellamano e o alaudista Ippolito Tromboncino.140 Giulio Campagnola (1482 – c.1515), louvado como músico, cantor e alaudista.141 Paris Bordone (1500-1571), que “foi conduzido aos oito anos a Veneza na casa de alguns parentes seus, onde após aprender gramática e se fazer excelentíssimo músico, foi viver com Ticiano.”142 Jacopo Tintoretto (c.1518 – 1594), “o qual se deleitou com todas as virtudes e particularmente com aquela de tocar música e diversos instrumentos [...];”143 entre outros. O exemplo mais explícito desta comparação com a música está no importante escrito de Leonardo da Vinci, conhecido como O paragone. Segundo Vasari, Leonardo também se ocupou com a música, pois “resolveu aprender a tocar a lira e [...] com aquela cantou divinamente de improviso.”144 O Paragone é formado por diversos fragmentos manuscritos que foram encerrados, assim como os demais escritos de Leonardo, em um grosso volume conhecido como “Tratado de Pintura”.145 Transcreveremos aqui os trechos que dizem respeito à música: Conclusão [do debate] sobre poeta, pintor e músico. A mesma diferença que existe entre a representação dos objetos corpóreos pela pintura e pelo poeta, existe entre os corpos desmembrados e os corpos inteiros, porque o poeta ao descrever a beleza ou a feiúra de um corpo qualquer, o faz membro a membro, em momentos sucessivos, e o pintor o torna visível de uma só vez. O poeta não pode colocar em palavras a verdadeira forma das partes que compõe o todo, como o pintor, que a apresenta com aquela verdade que é só possível na natureza. Acontece com o poeta a mesma coisa que como o músico que cantar sozinho uma

140

GROOS, Ulrike. Op.cit., p. 22. Ibidem, p. 27. 142 “[..] fu condotto d'otto anni a Vinezia in casa alcuni suoi parenti. Dove, imparato che ebbe gramatica e fattosi eccellentissimo musico, andò a stare con Tiziano” VASARI, Giorgio. “Descrizione dell'opere di Tiziano da Cador, pittore” Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: , acesso em 08 de fevereiro de 2010. 143 “[...]un pittore chiamato Iacopo Tintoretto, il quale si è dilettato di tutte le virtù e particolarmente di sonare di musica e diversi strumenti,” VASARI, Giorgio. “Battista Franco, pittore viniziano” In: Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: , acesso em 08 de fevereiro de 2010. 144 “Dette alquanto d'opera alla musica; ma tosto si risolvé a imparare a sonare la lira, come quello che da la natura aveva spirito elevatissimo e pieno di leggiadria, onde sopra quella cantò divinamente all'improviso.” VASARI, Giorgio. “Lionardo da Vinci, pittore e scultore fiorentino” In: Le vite – Edizione Giuntina e Torrentiniana. Disponível em: , acesso em 08 de fevereiro de 2010. 145 LICHTENSTEIN, Jacqueline. Op.cit., Vol.1. O mito da pintura. [...], p.17. 141

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canção composta para quatro vozes, canta a primeira voz, depois o tenor, a seguir o contralto para terminar com o baixo; e isso não resulta na graça das proporções harmônicas que se encerram nos acordes. É o que faz o poeta para um belo rosto, que te é mostrado por partes; e que ao fazer dessa maneira nunca te satisfarias com a sua beleza, que consiste somente na divina proporção de todas as partes juntas, as quais só simultaneamente proporcionam essa harmonia capaz de arrebatar a liberdade ao expectador. A música ainda produz com seus acordes harmônicos, suaves melodias compostas de diversas vozes; o poeta não possui o recurso dessa descrição harmônica. Apesar da poesia aceder à sede do julgamento pela via da audição, como a música, o poeta não pode fornecer a harmonia da música, já que ele não tem o poder de dizer diversas coisas de uma só vez, como a proporção harmônica da pintura, que é composta de diversas partes apreendidas e cuja delicadeza é julgada de uma só vez, como conjunto e como detalhe. Como conjunto, quanto ao sentido da composição, como detalhe, quanto ao sentido dos elementos dos quais ela é feita. E por isso o poeta resta, quanto à representação das coisas corpóreas, muito atrás do pintor; e para as coisas invisíveis, atrás do músico. [...] O músico fala com o pintor. O músico diz que sua disciplina pode ser comparada à do pintor, porque ele compõe com muitos membros, e que o ouvinte pode contemplar toda a graça em tantos tempos harmônicos quantos forem necessários ao conjunto para nascer e morrer; e por esses tempos a alma que habita o corpo daquele ouvinte é prazeirosamente contemplada. Mas o pintor responde, dizendo que o corpo composto por membros humanos não provoca prazer por meio de tempos harmônicos, pois nesse caso a beleza deve modificarse e tomar uma forma diferente; ela não tem que nascer e morrer assim, a pintura porém assegura-lhe o prazer durante um grande número de anos, e tem a excelente virtude de manter viva a harmonia dos membros bem proporcionados, enquanto a natureza com todas as suas forças não seria capaz de conservar. Quantas pinturas preservam a imagem de uma beleza divina, enquanto tempo ou a morte rapidamente destruíram o modelo natural. A obra do pintor encontra-se assim superior a de seu mestre, a Natureza! Que a música deve ser chamada de irmã caçula da pintura. A música só pode ser chamada de irmã da pintura, já que ela está submetida à audição, sentido inferior à visão; ela compõe harmonias pela conjunção de elementos proporcionais produzidos ao mesmo tempo e forçados a nascer e morrer em um único ou vários acordes harmônicos; esses acordes envolvem a relação de proporcionalidade dos elementos que compõe a harmonia, que não é diferente da linha que envolve os elementos da beleza humana. Mas a pintura sobressai à música e a domina, pois ela não morre logo após sua criação, como a desafortunada música, pelo contrário, ela subsiste e mostra-se a ti dotada de vida, o que na verdade nada mais é do que apenas uma superfície. [...]146

Assim, Leonardo estabelece uma hierarquia definida entre as três artes, na qual ele desmembra a música da poesia e coloca esta última no lugar inferior. A música segue em segundo lugar, pois ela é capaz de representar a harmonia do todo assim como a pintura; porém deixa de ser tão perfeita quanto esta apenas por sua pequena durabilidade. Note-se que Leonardo ao validar a pintura como a melhor arte, usa o argumento das disciplinas 146

LICHTENSTEIN, Jacqueline. Op. cit., Vol. 7: O paralelo das artes. [...], p. 21-23. 70

liberais mais utilizado pelas artes, a teoria das proporções harmônicas, e mesmo que este seja um argumento por princípio musical ele não vê algum problema em torná-lo inerentemente pictórico. O argumento da durabilidade foi bastante utilizado no paragone entre a pintura e a escultura; neste caso, para comprovar a supremacia da escultura em relação à pintura. Como já vimos, embora a citação de Pino discorra mais sobre a tópica do pintor perfeito do que a do Ut pictura poesis (musica), ele se refere a Silvestro como irmão da pintura, uma clara referência de que o autor conhecia bem os escritos de Leonardo. Já na citação de Dolce, o Ut pictura poesis é bem mais evidente, quando ele afirma que ambas constituem diferentes formas de imitação da natureza. A música neste caso fica implícita na figura de Silvestro, já que este foi evocado como auctoritas para a comprovação dos argumentos de Dolce.

Por que afinal Silvestro é considerado importante entre os

venezianos para a comparação entre essas duas artes, uma vez que muitos pintores-músicos, como já vimos, também estariam aptos a desempenhar tal papel? No primeiro capítulo da Fontegara, o qual discorre sobre o propósito imitativo da flauta doce, Silvestro faz clara alusão à teoria do Ut pictura musica. Conheciam, Pino e Dolce, o conteúdo dos tratados de Silvestro e por isso estaria o músico representado em suas obras? Para Silvestro, o propósito ao tocar a flauta seria imitar a voz humana, esta, considerada como representante máxima da natureza. Para atingir tal meta, ele compara a ação do flautista com o proferir da voz humana; que poderíamos entender como aquele que faz parte do canto, da fala comum, da oratória ou até mesmo da poesia. Mas para que o leitor possa entender melhor como funciona tal imitação o autor nos dá outro modelo, o “digno e perfeito pintor”: E poderás dizer: “Como será possível, visto que essa profere todo o falar? Por isso, creio que a dita flauta jamais possa ser semelhante à voz humana.” E eu te respondo que assim como o digno e perfeito pintor imita todas as coisas criadas pela natureza com a variação das cores, do mesmo modo, com tais instrumentos de sopro e de cordas, poderás imitar o proferir que faz a voz humana. É verdade que o pintor imita os efeitos da natureza com várias cores, e isso [só é possível] porque ela produz várias cores. Do mesmo modo, a voz humana também varia utilizando o seu tubo, com mais ou menos audácia e com vários proferires. E se o pintor imita os efeitos da natureza com várias cores, o instrumento imitará o proferir da voz humana com a proporção do sopro e com a oclusão da língua, [esta] com a ajuda dos dentes. Sobre isso, fiz experiência, e, ouvindo outros 71

tocadores capazes de fazer-se entender com o seu tocar, as palavras dessa coisa, poder-se-ia dizer que àquele instrumento não falta nada além da forma do corpo humano. Assim como se diz que à pintura bem feita não falta nada além da respiração. Assim, deveis estar certos do seu propósito de poder imitar o falar.

A afirmação de Silvestro “assim como se diz que à pintura bem feita não falta nada além da respiração”, remete-nos imediatamente ao tratado de Dolce, no qual o autor explica que o pintor é capaz de imitar os afetos da alma de modo com que as figuras representadas pareçam-se com as vivas.147 No diálogo, Dolce também indica Silvestro como auctoritas deste efeito da pintura, uma vez que, segundo o autor, ele próprio “nos faz tocar com as mãos, de modo que as figuras pintadas por bons mestres, falam quase em imitação das vivas.”148 Portanto, é muito pertinente que Ganassi deseje o mesmo do flautista: que ele imite a natureza do canto ou falar humano tão perfeitamente, de modo que as pessoas possam se confundir, assim como os pássaros bicaram as uvas do quadro de Zêuxis e os cavalos relincharam perante aqueles pintados por Apeles, anedotas tradicionais da preceptiva pictórica.

147 148

DOLCE, Lodovico. Op.cit., p. 147. Ibidem, p. 147. 72

CAPÍTULO 2: OBRA INTITULADA FONTEGARA, TRADUÇÃO.

OBRA INTITULADA FONTEGARA A qual ensina a tocar flauta com toda a arte oportuna a esse instrumento, e também o diminuir, o qual será útil a todo instrumento de sopro e de cordas, e ainda a quem se deleita com o canto. Composta por Sylvestro di Ganassi dal Fontego, tocador da Ilustríssima Senhoria de Veneza.

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Ao Ilustríssimo & Sereníssimo Príncipe de Veneza Andrea Gritti, Silvestro dal Fontego.

Sempre se viu que todos os Imperadores, Reis e Duques, quanto maiores foram, seja pela grandeza de estado ou pela divindade de engenho, mais abraçaram os pobres servidores e súditos seus; e quando por estes lhes foi oferecido algum presente, fruto de seus esforços, ainda que fossem pequenos e humildes, comparados com a grandeza deles, nunca foram desdenhados, pelo contrário, foram aceitos com benevolência. Eu, portanto, Ilustríssimo Príncipe, tomando coragem através dos exemplos mencionados anteriormente, ofereço, dou e dedico à Vossa Sublimidade a minha presente obra da flauta doce, intitulada A Fontegara, com muito esforço e elucubrações extraída de infinito número de instrumentos e reconduzida à perfeição. Estou certo de que será cara à Vossa Sublimidade, uma vez que a excelência da música é tal e tanta que o filósofo Sócrates, considerado sapientíssimo pelo oráculo apolíneo, estando no octogésimo ano de sua vida, aprendeu-a avidissimamente e conheceu ao fim quanta força nela depositou a natureza.149 Além disso, por Aristóteles, em sua Política150, [a música] é enumerada entre as artes engenhosas e por Platão, nas Leis151, louvada por muitas vias. Foi por Aristóxeno152 chamada de alma, sendo de opinião que a nossa alma fosse essa harmonia. Longo seria se as suas lodes quisesse eu no presente contar com os exemplos de Cláudio Nero153 e outros imperadores. De onde, Vossa Sublimidade dignar-se-á, Ilustríssimo Príncipe, a aceitá-la com ânimo hílare, ainda que isso seja pobre 149

“E vos recordarei ainda que o velho Socrates, já muito velho, aprendeu a tocar cítara. E lembro já ter escutado que Platão e Aristóteles queriam que o homem bem-instruído fosse também músico e com infinitas razões demonstram que a força da música é enorme em nós, e, por muita causas que agora seria cansativo enumerar, que se devia necessariamente aprendê-la desde a infância, não tanto por aquela superficial melodia que se ouve, mas o suficiente para criar em nós um novo hábito bom e um costume tendente à virtude, o qual torna o espírito mais capaz de felicidade, [...]” CASTIGLIONE, Baltassare. O Cortesão. Tradução: Nilson M. Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 72. 150 Aristóteles, Política, VIII, 3. 151 Platão, Leis, II, III, IV, VI e VII. 152 Aristóxeno de Tarento (nasc. ca. 345 a.C.), Elementos Harmônicos. 153 Cláudio Nero [Claudius Caesar Drusus Germanicus]. (37 -68 d.C.). Imperador romano e músico. É interessante notar que Ganassi compara a benevolência de Andrea Gritti com a dos imperadores romanos, quase como se o próprio Doge fosse um sucessor do império. Esta postura foi adotada pelo papado, que se considerava uma continuação de Roma antiga. O modelo romano, assim como ele foi entendido no Renascimento, passa a fazer parte da cultura veneziana a partir do programa de renovação dos edifícios da Praça de São Marcos encomendado pelo Doge Gritti ao escultor-arquiteto Jacopo Sansovino na década de 1530.

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recompensa à grandiosidade dos benefícios que eu, de Vossa Excelência, e toda a minha casa recebemos, e por sua benignidade, confirmados em nosso viver. Não duvido que, saindo esta obra à luz sob o nome de tão Ilustríssimo Príncipe, chegará ao porto desejado, o que para mim, logo que o alegre semblante da sua face for visto, reconheço onde terei então esperança de alcançar a maior empresa, e esta à sua altura dedicar e consagrar.

Que ninguém ouse, nos próximos vinte anos, imprimir, nem mandar imprimir em outro lugar, vender a presente obra impressa, e nenhuma outra similar sem licença do autor, sob pena de perder as obras impressas e dez ducados por cada uma das [obras] que forem encontradas, seja no impressor como no vendedor. Assim como no privilégio e graça, no excelso senado da Ilustríssima Senhoria de Veneza como está. Vale.

Tratado de muitas coisas.154

Capítulo 1. Declaração do seu propósito. Vós deveis saber que todos os instrumentos musicais são, em relação e em comparação à voz humana, menos dignos. Portanto, nós nos esforçaremos para aprender com ela e imitá-la. E poderás dizer: “Como será possível, visto que essa profere155 todo o falar? Por isso, creio que a dita flauta jamais possa ser semelhante à voz humana.” E eu te 154

Além dos capítulos, Ganassi divide a obra em treze partes distintas: “tratado de muitas coisas”, “regra figurativa”, “modo que ensina fazer sete notas a mais”, “modos que ensinam a língua”, “modos do diminuir”, “exemplos do diminuir”, “regra primeira”, “regra segunda”, “regra terceira”, “regra quarta”, “reportação das regras”, “modo do tocar artificioso” e “regra figurativa”. Tais indicações foram anotadas pelo autor no cabeçalho das páginas do tratado. 155 O verbo “proferir” aparecerá diversas vezes no texto da Fontegara. Neste caso, ele tem sentido de “exprimir/pronunciar”, mas pode ser entendido também como “articular”, como veremos logo abaixo em “a voz humana também varia [...] com vários tipos de proferires”, isto é com vários tipos de articulação ou sílabas, como diz o Capítulo 5: “Nota que o movimento da língua provoca vários efeitos por causa do proferir com várias sílabas”.

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respondo que assim como o digno e perfeito pintor imita todas as coisas criadas pela natureza com a variação das cores, do mesmo modo, com tais instrumentos de sopro e de cordas, poderás imitar o proferir que faz a voz humana. É verdade que o pintor imita os efeitos da natureza com várias cores, e isso [só é possível] porque ela produz várias cores. Do mesmo modo, a voz humana também varia utilizando o seu tubo, com mais ou menos audácia e com vários proferires. E se o pintor imita os efeitos da natureza com várias cores, o instrumento imitará o proferir da voz humana com a proporção do sopro e com a oclusão da língua, [esta] com a ajuda dos dentes. Sobre isso, fiz experiência, e, ouvindo outros tocadores capazes de fazer-se entender com o seu tocar, as palavras dessa coisa, poder-se-ia dizer que àquele instrumento não falta nada além da forma do corpo humano. Assim como se diz que à pintura bem feita não falta nada além da respiração. Portanto, deveis estar certos do seu propósito de poder imitar o falar.

Capítulo 2. Declaração desta flauta. Este instrumento, denominado flauta, requer três coisas: a primeira, o sopro; a segunda, a mão; e a terceira, a língua. Quanto ao sopro, a voz humana como mestra nos ensina que deve ser produzido medianamente; porque quando o cantor canta alguma composição com palavras placáveis, faz a pronúncia placável; se [canta uma composição] jocunda, [faz] com o modo jocundo. Porém, querendo imitar tal efeito, produzir-se-á o sopro mediano, de modo que se possa crescer e diminuir no momento certo.

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Regra figurativa. Capítulo 3. Regra pertencente a todas as notas [voce]156 desse instrumento. Esta ordem e regra que no presente momento te mostro, elegi a mais fácil que a mim foi possível. A respeito desta digo, como verás na figura seguinte, [que haverá] tantas flautas [desenhadas] quanto serão as notas [voce] que tem essa flauta na sua ordem geral. Debaixo de cada flauta ponho a sua nota157 [correspondente]. Perceberás que, como a flauta tem oito notas [voce] ou furos158, o primeiro que está fora da flauta desta maneira: , entender-se-á como o furo que serve ao polegar. Depois haverá uma outra ordem que [diz]: quando tiver furos pretos ou preenchidos significa que deves apertálos159, isto é, cobri-los; e aqueles que não estiverem preenchidos serão entendidos como estando abertos. Alguns serão pretos pela metade com uma letra “m” na frente, tais furos serão cobertos mais ou menos pela metade, para criar as notas alteradas160, necessárias à verdadeira harmonia. E advirto que as notas [voci] comuns dessa flauta são treze, das quais nove se denominam graves, desde a primeira nota [voce] inferior ascendendo até [que estejam] todos [os furos] abertos. As quatro seguintes se denominam agudas [schili] e se

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Heyghen explica que o termo voce serve para designar as sílabas de solmização. Note-se que nas tabelas de dedilhados Ganassi dispõe desenhos de flautas, suas respectivas voci e notas escritas no pentagrama. HEYGHEN, Peter van. “The Recorder Consort in the Sixteenth Century: Dealing with Embarrassment of Riches”. In: LASOCKI, David. (Ed.) Musicque de Joye. Proceedings of the International Symposium on the Renaissance Flute and Recorder Consort, Utrecht 2003. Utrecht: STIMU, 2005, p. 264-265. 157 A palavra utilizada por Ganassi neste trecho não foi voce, mas sim nota, referindo-se às notas colocadas no pentagrama abaixo das figuras de flautas, como podemos ver na figura 1. 158 No original, “voce otto cioe busi”. Note-se que, algumas vezes Ganassi utiliza o termo voce para designar também os furos da flauta. 159 No original, “stropar”. Stroppare: (mar.) prender um objeto de bordo com um estropo. (GARZANTI). Estropo: (mar.) espécie de anel de corda que prende o remo ao tolete. (PRIBERAM). 160 No original, “sustentatione”. “No Terminorum musicae diffinitorium de Johannes Tinctoris (ca. 1475), o vocábulo ‘sustinetur’ é relacionado com o semitonium chromaticum, isto é, aquele som que, como traduz Lionello Cammarota (Antichi termini musicali, p.135), às vezes ‘no cantar, pela beleza da emissão’ deve ser alterado artificialmente.” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 13, nota 25.

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pronunciam com o sopro agudo. As graves, com o sopro grave.161 Para a tua maior facilidade coloco o nome de todas as sílabas [voce], nota por nota162, de modo que possas praticar a parte do canto.163 O nome sobre a nota [nota] te servirá para a subida; depois descerás pelo nome abaixo da nota [nota].164 E quando não tiveres conhecimento nem prática para entender as sílabas [voce], pega a flauta como teu guia que assim serás bem guiado. Primeiramente virá a ordem do soprano na propriedade de bequadro165, cuja ordem te produzirá três efeitos166: primeiro por si, segundo pelo tenor na propriedade de bemol e terceiro pelo baixo na propriedade de música ficta.

161

“As indicações sobre a emissão das treze notas habituais se limitam ao fato técnico. As nove primeiras são tocadas com sopro 'grave', enquanto as restantes com sopro 'agudo'. É claro que os dois adjetivos se referem ao volume de ar que sai dos pulmões: menor para as nove primeira, e maior para as restantes.” PAOLIS, Luca de. “Introduzione” In: GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara. Società Italiana del Flauto Dolce, Roma: Hortus Musicus, 1991, p. 5. 162 Até o presente momento, traduzimos voce por “nota” por não ter um correspondente mais adequado ao sentido do termo. No entanto, deve ser entendido que há uma diferença entre voce e nota para Ganassi, onde notas são somente aquelas que estão no pentagrama, diferentemente das sílabas escritas embaixo das flautas. Neste trecho, como o autor faz uso dos dois termos em simultâneo, trocaremos voce por “sílaba”, referindo-se às sílabas de solmização. Ver item 3.2. 163 Isto é, a solmização. 164 “[...] Sobre este propósito, observo que, como é de conhecimento dos estudiosos da música antiga, ao tempo de Ganassi (e ainda por mais dois séculos) o nome da nota variava segundo as ‘mutações’ que essa sofria no sistema hexacordal; e, portanto, não indicava uma correspondência única entre som e dedilhado do instrumento (assim, um ré ascendente pode transformar-se em um lá descendo). [...] ainda, na época, não se tinha nenhuma percepção da altura real dos sons da flauta doce que, embora sendo instrumentos a 4 pés (que produzem sons uma oitava acima das notas escritas), eram considerados instrumentos a 8 pés (isto é, com altura real). Ganassi, para exemplificar melhor a explicação, além de fornecer essa dupla ordem de nome de notas, reporta àquele debaixo, que se refere à leitura descendente dos sons, escrevendo parte dos nomes das notas ao contrário (ex. tu ao invés de ut, al ao invés de la, etc.), quase querendo sugerir, pela anotação, uma leitura ao contrário, no sentido descendente, da direita pra esquerda. A observação de que tal inversão possa ser causada por alguns simples erros de impressão, talvez não seja pertinente porque tais “eventuais” erros encontram-se somente sobre a linha inferior.” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p.13, nota 27. 165 Isto é, sem acidentes. 166 “Ganassi explica-nos o uso das claves únicas, duplas ou triplas (e do relativo significado das alterações) que coloca ao início do pentagrama: essas se referem aos três tamanhos de flauta em uso, ou de algum modo, utilizadas por Ganassi, isto é, a Soprano em Sol2, aquele que hoje definimos como Contralto em Sol2; a Tenor em Dó2 e a Baixo em Fá1. A partir do momento em que os três instrumentos aos quais se refere Ganassi estão em relação de uma quinta descendente, isto o permite ensinar, com a mesma posição, o efeito do dedilhado sobre cada flauta, colocando simplesmente claves e alterações diversas em cada pentagrama. Por isso, os três efeitos que produz variam: por exemplo, na primeira tabela forma-se uma escala natural no Soprano, uma escala com o sib no Tenor e uma escala com o sib e o mib no Baixo [...].” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 14, nota 29.

80

Figura 32.

Depois segue uma outra dedução do soprano em propriedade de bemol, o qual produzirá dois efeitos: primeiro por si e segundo pelo tenor em propriedade de música ficta.

Figura 33.

81

Depois segue o soprano em propriedade de música ficta, o qual produzirá um só efeito: por si. Figura 34.

Depois segue a ordem do tenor por bequadro, o qual produz dois efeitos: um por si e outro pelo baixo em propriedade de bemol. Figura 35.

82

Depois segue uma ordem do baixo em propriedade de bequadro, o qual faz somente um efeito: por si. Figura 36.

Depois segue a ordem das notas alteradas, [que formam] três efeitos: primeiro pelo soprano, segundo pelo tenor e terceiro pelo baixo. Figura 37.

83

Poderás notar as ordens e efeitos [do baixo] pelos seus exemplos colocados antes da clave de soprano, [assim como para o] tenor, como se poderá ver que as suas claves [também] foram colocadas antes daquelas de soprano. Nota que te ensino o modo de soprano, tenor e baixo por serem diferentes, isto é, se cobrires os furos [voce] com os dedos em um mesmo lugar, canto, tenor e baixo não procederão com notas [voce] iguais, porque o canto te formará algumas vezes um semitom onde o baixo e o tenor, nos mesmos furos, pronunciarão um tom. Portanto, dou-te o modo do canto, do tenor e do baixo.

Capítulo 4. Modo de encontrar sete notas [voce] a mais do que o comum. Sabe meu digníssimo leitor que por muitos anos experimentei o modo de tocar e tendo-me deleitado ao ver e praticar com todos os primeiros tocadores que existiram em meu tempo, jamais encontrei homem digno em tal arte que exercitasse além das notas [voce] comuns. Ainda que pudessem ter adicionado uma ou duas notas [voce] a mais, tendo eu examinado tal modo, encontrei o que os outros não souberam. Não que eles ignorassem tal caminho, mas o deixaram por fadiga. Isto é, [encontrei] sete notas [voce] a mais do que o comum, das quais te darei todo conhecimento. Primeiramente te advirto que as flautas que são construídas por vários mestres são diferentes umas das outras, não só no tubo [foro], mas [também] no compassar dos furos [voce] e ainda no ar [que deve ser utilizado] [vento]167. Alguns desses mestres são diferentes no afinar tal instrumento, por causa do tocar variado de um para outro e [do variar] dos ouvidos. E de tal diferença nasce um modo variado de tocar: aquele de um mestre e aquele de outro. Assim, mostrar-te-ei o caminho de 167

“As três flautas Soprano em Sol são diferenciadas por três símbolos, cada um desenhado sobre o corpo do instrumento: . O instrumento com o “A” corresponde provavelmente ao modelo predileto de Ganassi, visto que é utilizado no terceiro capítulo e nas tabelas dos trêmulos. [...] As diferenças entre as flautas consistiam em qualidades físicas: diâmetro [canneggio] interno e externo, dimensão e disposição dos furos, etc. Naturalmente a variedade de características estava em estreita relação com a afinação, que por sua vez era ligada à sensibilidade acústica do construtor [...]. A palavra “foro” deve-se referir ao diâmetro interno do instrumento; o “compassar le voce”, às dimensões dos furos [distribuídos] entre os dedos; e o “vento”, à diversa estrutura do canal de ar da embocadura da flauta, que pode variar consideravelmente as características gerais do instrumento. Entende-se assim, portanto, quais são as razões que levaram Ganassi a compilar diversas tabelas de dedilhados.” PAOLIS, Luca de. Op.cit., p.6.

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mais de um mestre, através dos diferentes sinais que eles têm, os quais serão mostrados na figura das flautas. As sete notas [voce] por mim encontradas somadas com as treze comuns são vinte. Estas, dividiremos em três partes, isto é, nove graves, sete agudas e quatro superagudas. E assim como eu disse, as nove graves, se pronunciam com o sopro grave; as sete [agudas], com o sopro agudo; e as quatro últimas, com o sopro agudíssimo. E se por acaso devesses tocar algumas flautas não ajustadas [ou] afinadas, imita aquilo que [faz] a maioria dos digníssimos homens [tocadores] de alaúde: quando acontece de ter que tocar um alaúde de uma terceira pessoa, ele primeiramente o estuda [ricerca]168 por inteiro com diligência e, se tem alguma corda desafinada [falsa], ele a ajusta com o traste e também com o dedo da melhor maneira possível. A mesma coisa farás também, se precisares tocar flautas de novos mestres, procederás como te ensino pelas figuras seguintes e se não conseguires deste modo, terás de investigar se deves cobrir ou descobrir mais ou menos um ou dois furos e ainda proporcionar o sopro. Deste modo, serás iluminado sobre o modo de poder tocar qualquer instrumento que se queira. Bem sabes que onde falta a natureza é preciso que a arte seja mestra.

Modo que ensina fazer sete notas a mais.

168

“O verbo utilizado não pode deixar de nos fazer pensar no ricercare e na prática do livre prelúdio introdutório. Ao final da primeira década do século XVI apareceram as primeiras coletâneas para alaúde (Spinacino, 1507; Dalza, 1508, Bossinensis, 1509 e 1511) contendo ricercari, breves composições de caráter decididamente improvisatório às vezes precedidos por uma peça mais breve ainda, chamada tastar de corde, uma espécie de preludiozinho. Como nos informa Gustav Reese em seu Music in the Renaissance [...]: em quatro de suas peças, Dalza recorre à expressão ‘tastar de corde con li suoi recercar dietro’; ‘tastar de corde’ se refere a uma seção inicial que constitui sem dúvida um vestígio formal da operação de ‘aquecimento’. (p.546) A ação que Ganassi parece querer explicar aqui lembra muito aquela explicada por Reese: um tipo de verificação para entender, por assim dizer, que tipo de instrumento se tem em mãos, quase um tipo de tastar de corde da flauta. [...]” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 19, nota 49.

85

Figura 38.

Figura 39.

86

Figura 40.

Modos que ensinam a língua.169

Capítulo 5. Demonstração de vários tipos de língua. Nota que o movimento da língua provoca vários efeitos por causa do proferir com várias sílabas. Portanto, entenderás que existem três movimentos de língua chamados originais. O primeiro são, por exemplo, estas duas sílabas: te-ke, te- ke, te-ke, te170; o 169

Para uma explicação mais detalhada sobre o processo de articulação na obra de Ganassi, ver: AGUILAR, Patrícia Michelini. FALA FLAUTA: Um estudo sobre as articulações indicadas por Silvestro Ganassi (1535) e Bartolomeo Bismantova (1677) e sua aplicabilidade a intérpretes brasileiros de flauta doce. Dissertação (Mestrado em Música). Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2008. 170 No original “te che te che te che”. Optamos por trocar a sílaba “che” por “ke”, a fim de evitar equívocos derivados da diferença de pronúncia entre o italiano e o português. “De fato che e chi soam nas diversas palavras de modo duro e vigoroso, como se tu escrevesses, ao invés de poche, pochi, secche, secchi: poke, poki, secke, secki, ficando mais ao uso dos Ingleses, Alemães e Polacos que se servem do caractere k mais do que ch para o c duro precedente a e e i. [...] Espanhóis, Portugueses e Franceses exprimem muito bem a

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segundo: te-re, te-re, te-re, te; e o terceiro: le-re, le-re, le-re, le. E sabe que estes três movimentos originais contêm em si os extremos com o seu meio171. É verdade que o primeiro proferir, do primeiro movimento original, procede por sílabas que causam o efeito cru e áspero; e o terceiro movimento das mencionadas originais, [procede] por sílabas agradáveis ou planas; e o meio entre esses dois é o movimento da segunda [língua] original, o qual se move desta maneira: te-re, te-re, te-re, te. E para que [este] seja movimento intermediário, vê que ele contém em si duas sílabas: a primeira do primeiro movimento original, e a segunda do terceiro movimento original. Por isso [ele] tem o temperamento destes dois extremos, isto é, da dureza e da ternura. A seguir dar-te-ei o modo das variações produzidas a partir do original.

Capítulo 6. Dos vários efeitos de língua produzidos a partir das [línguas] originais. Nota que os chamados movimentos originais causam alguns efeitos de língua completa e incompleta, isto é, meia [língua]. A completa será composta por duas sílabas como são as originais; e a meia, por uma sílaba ou letra, deste modo com velocidade: t t t t t ou d d d d d. Das sílabas de g[u]e que ou da de di do du, entenderás poder mudar a primeira letra por qualquer outra, assim como seria em ta te ti to tu, ka ke ki ko ku, ou de outros modos. Também causam um nome de língua chamada direta e [outra chamada] dureza do ch toscano com a letra qu: poque, poqui, secque, sequi, onde não se percebe o u, como se não fosse escrito: poqe, poqi, secqe, secqi.” RHOESUS, Joannes Davides Rhys. Perutilis exteris nationibus de Italica pronunciatione et orthographia libellus, Padova, 1569. Apud: AGUILAR, Patrícia Michelini. Op.cit., p.111. 171 Expressão platônica, retirada do Timeu. Também foi utilizada por Gasparo Contarini (La republica e i magistrati di Vinegia, 1548, p. XXXIII) para demonstrar como a composição do governo veneziano justifica a pax interna que faz dessa cidade, única: “Foi ordenado na nossa República o Senado, e o Conselho dos Dez, o qual na cidade de Veneza (cuja República diz ser um misto de estado régio, popular e nobre) representa o estado dos nobres: e são esses meios que com as partes extremas, isto é, o estado popular, o Grande Conselho, e o Príncipe, o qual representa a pessoa de um rei, junto se apertam em um estreito nó. Assim diz Platão no Timeu, que os elementos extremos: a terra, o fogo, com os elementos do meio se conjugam e se ordenam. Assim na consonância do Diapason [intervalo de oitava], as vozes extremas com aquelas do meio, do Diatessaron [quarta] e Diapente [quinta] juntos se afinam.”

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reversa. A direta é aquela que mais profere as sílabas, como na primeira das originais; e a reversa, será aquela que menos proferirá as sílabas, como é a terceira original. É verdade que, usando-as com velocidade, perde-se o seu proferir e por isso se chamará reversa.

Capítulo 7. Modo de praticar os vários efeitos produzidos pelas línguas originais. Nota como procedo a partir das vogais, para que possas investigar qual sílaba ou letra a natureza te dotou para exprimi-las com mais velocidade. Procedendo com esta ordem, colocando-te os três movimentos originais e depois, movimento por movimento, estenderei seus vários efeitos deles derivados, isto é, do seguinte modo:

Teke teke teke teke . Taka teke tiki toko tuku. Daka deke diki doko duku.

Tere tere tere tere tere. Tara tere tiri toro turu.

Lere lere lere lere lere. Lara lere liri loro luru.

Dara dare dari daro daru. Kara kare kari karo karu.

E em outros modos que não escrevo [aqui], segundo [o modo] como a natureza opera. O terceiro movimento das [línguas] originais não produz outro efeito além de servir como metade de uma sílaba, como eu disse anteriormente. Nota que querendo exercitar-te em algum movimento destas línguas supracitadas, na primeira original, investigarás algumas daquelas sílabas que te agradam e, ao exercitá-las com freqüência, as farás veloz. Na original intermediária, farás semelhantemente, mas também neste modo com velocidade, [da maneira] como se destaca uma sílaba de três letras, isto é: tar ter tir tor tur; dar der dir dor dur; kar ker kir kor kur; gar guer guir gor gur. A mesma coisa com a terceira original, terás de fazê-la deste modo: lar ler lir lor lur. Também saberás como todos os efeitos de língua são [compostos por] uma sílaba direta e outra reversa, sendo direta a primeira sílaba e contrária a segunda.

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Capítulo 8. Declaração da língua de cabeça e de garganta, e de [como] exalar o sopro para a facilidade da língua.

Nota que todos os efeitos que a língua direta provoca denominam-se língua de cabeça, porque nela o sopro ocupa o [espaço] embaixo do palato e perto dos dentes. A língua reversa será língua de garganta devido à ocupação que o sopro faz [do espaço] perto da garganta. E encontra-se uma outra língua, a qual não profere nenhuma sílaba, e o seu movimento é entre um lábio e outro, e por ocupar o sopro [um espaço] entre os lábios, requer-se língua de cabeça.

Modos do diminuir.

Capítulo 9. Modos de praticar a mão no diminuir. Primeiramente notarás que são dois os motivos que causam a ação da mão: um [é o] efeito e prática de articular172, o outro é o modo de diminuir. Sem um ou sem o outro, a mão não pode operar. E é verdade que, se tiveres a melhor articulação que se possa ter, sem a inteligência do diminuir te cansarias em vão e vice e versa. Mas compreenderás que diminuir não é nada além do que variar uma coisa, ou um processo, que por sua natureza se mostra sólido173 e simples. De tal diminuir nascem vários modos e advirto que este diminuir consiste em várias [maneiras de] diminuição, isto é, em proporção174; em modos ou caminhos melódicos [vie]175; e em figuras [processi] diferentes umas das outras, como 172

No original: “de fazer a língua”. “O significado de ‘soda’, vocábulo ainda utilizado, neste contexto pode ser entendido como ‘sólida’ ou ‘compacta’. Em outro capítulo (o 19) utilizará a mesma palavra para dar o sentido de ‘inteira’ em contraposição a ‘diminuída’.” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 29, nota 69. 174 Isto é, alterando ou não a métrica da melodia a ser diminuída. 175 O termo vie possui o significado de “caminhos ou padrões melódicos, recorrentes ou não, da diminuição.” Pela extensão de seu significado, optamos por traduzir apenas por “caminhos.” Assim, toda vez em que aparecer deve ser entendido no sentido acima expresso. 173

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mínimas, semínimas, colcheias e semicolcheias. Desta ordem, seus vários efeitos serão divididos em quatro partes: simples, composto, particular e geral. A primeira será quando procederes o teu diminuir em uma só espécie de figuras rítmicas [minuta]176, isto é, todo em semínimas, ou todo em colcheias, ou em outras figuras desde que sejam de uma só espécie, e isto chama-se diminuição simples de figura [minuta]. A proporção simples será quando, no teu diminuir, procederás com uma só espécie de proporção, ou somente pelo sinal [de tempo] que terás no início. [A diminuição] simples de caminhos [vie] será quando um grupeto se assemelhar a outro, ou outros movimentos melódicos semelhantes, tanto nas cadências como nos meios.

Capítulo 10. O que é o procedimento composto. Havendo declarado acima que a [diminuição] simples de figuras [deminute] é o proceder com uma só espécie de figuras rítmicas; o composto será, portanto, quando ele contiver em si várias figuras, isto é, semínimas, colcheias e semicolcheias.177 Ainda assim, na proporção simples, a simplicidade é conhecida pelo diminuir em uma só proporção ou pelo seu sinal [de tempo].178 Portanto, o modo composto será quando procederes o diminuir com várias proporções. O mesmo para a [diminuição simples de] caminhos, assim como se entende por simples quando uma cadência ou movimento não são variados em relação a outras cadências e movimentos. O composto será quando a cadência e o movimento serão variados, isto é, que uma cadência seja diferente da outra e um movimento do outro.

176

O mesmo ocorreu com a palavra minuta, utilizada por Ganassi como “figuras rítmicas miúdas, ou seja, menores que figura inteira, a semibreve.” Parece não haver muita distinção, para o autor, entre essa palavra e o próprio conceito de diminuição, que consiste em quebrar valores maiores (no caso a semibreve) em menores, ornamentando assim o contraponto. Optamos por traduzir o termo por “figuras.” 177 É preciso lembrar que as semicolcheias constituem os menores valores de tempo existentes na época de Ganassi, as fusas só aparecerão em 1584, no tratado de Girolamo Dalla Casa, intitulado Il vero modo de diminuir. 178

Seja ele qual for:

,

,

,

, etc. Uma explicação mais detalhada será dada no item 3.3.2.

91

Capítulo 11. Ordem do [diminuir] simples, em particular e em geral. O diminuir simples em particular é quando ele tem, das três partes, duas simples e uma composta. Como seria se procedesses o diminuir simples de caminhos e proporção, e composto de figuras. O mesmo, [se for] simples de proporção e figura, e composto de caminhos. E ainda, simples de figuras e caminhos, e composto de proporção. E porque das três partes duas são simples e uma composta, [este diminuir] será simples em particular. Deste modo, tens de ver quais partes são simples e quais são compostas. O [diminuir] simples em geral é quando ele será simples nestas três partes, isto é, simples de figuras, de proporção e de caminhos.

Capítulo 12. Ordem do [diminuir] composto, em particular e em geral. O diminuir composto em particular também será quando ele contiver em si duas partes compostas e uma simples, isto é, composto de caminhos e proporção, e simples de figuras; ou composto de figuras e proporção, e simples de caminhos; ou [ainda] composto de figuras e caminhos e simples de proporção. O [diminuir] composto em geral será quando contiver em si as figuras, os caminhos, e a proporção compostos. Examinando bem tal modo e ordem, não duvido que em breve serás instruído no verdadeiro conhecimento. E prosseguindo eu te mostrarei mais claramente, com os exemplos mencionados, os efeitos do diminuir. Depois seguirei com a prática, da melhor maneira possível.

Exemplos do diminuir.

92

Exemplo de diminuição simples em particular de figuras, de proporção e composta de caminhos:

Exemplo de diminuição simples em particular de proporção, de caminhos e composta de figuras:

Exemplo de diminuição simples em particular de figuras, de caminhos e composta de proporção:

Exemplo de diminuição simples em geral, por ser simples de figuras, de proporção e de caminhos:

Exemplo de diminuição composta em particular de figuras, de caminhos e simples de proporção:

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Exemplo de diminuição composta em particular de proporção, de caminhos e simples figuras:

Exemplo de diminuição composta em particular de figuras, de caminhos e simples de proporção:

Exemplo de diminuição composta em geral, por ser composto de figuras, de proporção e de caminhos:

Capítulo 13. Modo e prática do diminuir. Acima mostramos a natureza de todos os tipos de diminuição. Agora, continuarei, parte por parte e com toda a facilidade a mim possível, com o conhecimento dos saltos ou intervalos179 de segunda, terça, quarta, quinta e de qualquer outro intervalo, seja ele intermediado180 [por outras notas] ou não. Primeiramente procederei com o intervalo de

179

Para uma maior compreensão, optou-se por traduzir os termos “moto” (movimento) e algumas vezes o termo “atto” (ato), por intervalo. No texto, tais palavras muitas vezes são sinônimas e servem para indicar os intervalos melódicos a serem diminuídos nos exemplos. Entretanto, no capítulo 18, o termo “atto” aparece com o significado de “diminuições que preenchem os intervalos” e, neste caso, o termo foi mantido. 180 Para Ganassi, o intervalo intermediado [moto mediato] é aquele que possui uma nota de menor valor entre as duas notas do intervalo principal, como em

. Note-se que o intervalo principal é uma segunda maior

94

segunda, o qual te será cômodo a qualquer outro intervalo não intermediado, com vários caminhos de divisão [spezamenti], no tempo perfeito com prolação imperfeita, como em

.

A mesma coisa [ocorre] nos sinais de tempo imperfeitos com prolação imperfeita, como em . Advirto que a regra deste sinal, 181

, exige a battuta sobre a breve, enquanto

e

, sobre a semibreve. Dado que a maioria dos cantores e tocadores não consideram

outra coisa além do ajustar-se à battuta, por isso, farás como te aprouver, contanto que entendas a diferença entre eles. Depois seguirão os [intervalos de] terça, quarta e quinta, com os seus meios e suas cadências. Com tal ordem, procederei o diminuir com várias proporções e modos dos ditos sinais de tempo, e assim como te ensino estes sinais com várias proporções, semelhantemente é necessário ensinar-te a diminuir a Sesquiáltera com várias proporções. Para não me delongar, pensei em transportar a mesma diminuição feita sobre tais sinais para a Sesquiáltera182; e [isso] te causará várias proporções, as quais, eu te demonstrarei no final das regras segunda, terceira e quarta. Isso tudo será parido183, e tais ordens te serão utilíssimas [comodissime] de muitos modos. Nota como farei aquele intervalo que está sob os ditos sinais e farás na Sesquiáltera, como a figura mostrará antes dos anteriormente mencionados sinais. E, antes que te mostre a prática do diminuir, te advertirei sobre algumas partes necessárias: primeiramente deve-se considerar que, ao fazer as diminuições, [elas] tenham semelhanças, tanto no fim como no início, isto é, quando quiseres diminuir o intervalo de terça e qualquer outra consonância sem intermediário algum, como em dó-mi, dó-fá, dó-sol, assim como em ré-fá, mi-lá, mi-mi184 e fá-fá185 e em

ascendente (lá-si), porém ele está intermediado pela nota dó. Tal intervalo é também chamado pelo autor de “quebrado” [spezato]. 181 Aqui Ganassi parece ter cometido um erro de tipografia, pois, segundo todos os tratados italianos do século XVI, os sinais cortados ( 182

e

) são sinais que indicam a battuta da breve. O correto seria: “enquanto

e

, sobre a semibreve.” A respeito dos sinais de tempo, ver: PACCHIONI, Giorgio. Op.cit., p. 5-7. Aqui, Ganassi está referindo-se ao mesmo assunto que ele tratará no próximo capítulo: a execução dos

exemplos sob o sinal

em música escrita em Sesquiáltera ( 3). Note-se que à margem do primeiro exemplo ele coloca o sinal 3 para lembrar-nos disso. 183 Ganassi utiliza diversas vezes em suas obras o verbo “parir”, em italiano, além do significado usual, ele pode significar “produzir através do engenho.” (GARZANTI). 184 Ou seja, mi-si. Devemos levar em consideração que no sistema de hexacordes não existe a nota si, e que para escrever o intervalo de quinta, mi-si, deve-se emendar dois hexacordes: o natural, que começa na nota “dó” e o duro, que começa na nota “sol”.

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qualquer modo que se encontre, principiarás o teu diminuir naquele mesmo lugar, seja ele dó, ré, mi, ou fá. Aquele [lugar], ou a sua oitava, corresponderá às [notas] do seu início, seja debaixo como acima. Semelhantemente, procederás com o seu final, se o seu final for um intervalo de terça, qualquer uma, ascendente ou descendente, farás o final da tua diminuição [minute] com o mesmo intervalo. Daí nascerá um contraponto exercitado com razão. Para que sejas algumas vezes mais livre, quero conceder-te duas ou três razões para poder anular tal ordem: a primeira, é que o contraponto poderá ser de determinado tipo que, mesmo que o seu final fosse o ascender ou o descender de uma segunda ou qualquer outra consonância sem intermediários, desta forma como se ele fosse deste modo

, o contraponto sairá benissimamente,

. Mas saiba que esta Regra ou modo de diminuir

não é coisa imóvel ou estável, porque facilmente poderias, com tal diminuição, incorrer naquilo que a arte do contraponto não comanda. Sabe que um hábil [sufficiente] e bom cantor, encontrando-se em posição de gorgia186 tão perfeita, e querendo ou vendo um discurso belíssimo, não deixará de conseguir o seu propósito, desde que ele saiba que tenha cometido no seu diminuir alguns erros, porque a sua gorgia será tão limpa e veloz, que tais meios187, mesmo que tivessem alguns erros, seriam, devido à sua beleza, tolerados, nem os sentidos [se] ofenderiam. Certamente, outra coisa não é o diminuir que ornamento ao contraponto. Assim, poderás [agir] semelhantemente com tais caminhos de diminuir, ao ver um teu discurso cômodo e deleitável. As segunda e terceira razões [para anular a regra do 185

Aqui, da mesma maneira, Ganassi refere-se ao intervalo fá-sib. No sistema hexacordal, todo semitom é representado pelas sílabas mi-fá e por isso, para representar o semitom la-sib, emendamos o hexacorde natural com o hexacorde mole, que começa na nota “fá”. Note-se ainda que neste trecho, Ganassi quer exemplificar todas as sete notas da diapason ; como os hexacordes são formados por seis notas, essas “emendas” entre os três tipos de hexacordes (natural, duro e mole), tornam-se inevitáveis em várias situações. Um melhor detalhamento ver item 3.1.3. 186 “Garganta. Por ‘posição de gorgia’ deve-se entender a habilidade inata ou adquirida pelo cantor de fazer passagens com agilidade (diminuições) perfeita.” SALVATORE, Op.cit., p. 38, nota 92. Para Maffei (1562), a gorgia, ‘não é outra coisa que um som causado pelas figuras rítmicas menores [minuta] e ordenado pela repercussão do ar na garganta, com intenção de aprazer ao ouvido’ (p.30). Zacconi (1596) nos explica melhor que: Esse modo de cantar e estes ornamentos [vaghezze] são comumente chamados pelo vulgo de gorgia, o qual, portanto, não é outra coisa que um agregado e coleção de muitas colcheias e semicolcheias ligadas à qualquer partícula de tempo que se queira (f. 58 r) Apud: SALVATORE, Daniele. Op.cit, p. 29 nota 68. Isto é, as passagens diminuídas.

187

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diminuir] é que poderias quebrar a ordem do seu início e final com uma síncopa, porque a síncopa poderá vir com razão e algumas vezes fará padecer o contraponto, pois é impossível que em um diminuir veloz não nasçam alguns erros. Por tudo isso e pelas razões acima elencadas, concedo-te este arbítrio. Nota como a primeira regra será guia das outras para muitas coisas e eu te direi algumas [outras] antes: no início das regras serão mostrados os sinais de tempo e deverás entender como se eles estivessem em todos os outros lugares, embora eu não os escreva. Assim também, eu encaminho a Sesquiáltera a este modo. Um intervalo de segunda não quebrada deve ser entendido como se servisse em todos os intervalos de segunda sem intermediários. O mesmo com a segunda quebrada, e com a terça, a quarta e a quinta. Ainda verás alguns exemplos sobre as ditas margens, os quais te ensinarão [a] poder acomodar os intervalos diminuídos em vários [outros] intervalos. E isto, faço para que possas aproveitar qualquer coisa, todas as vezes que não estejam conforme o seu sujeito. E destes exemplos será [composta] a sua primeira regra. Com a mesma ordem poderás acomodar-te nas outras regras, seguindo a prática do diminuir.

Primeira Regra. (exemplos)

Capítulo 14. Declaração de como diminuir nos sinais simples188 [de tempo], da passada Primeira Regra.

Nota que se quiseres exercitar esta diminuição, da dita primeira regra que passou, sobre a Sesquiáltera, será formada a proporção Subsesquiáltera189, a qual é constituída por dois números diferentes, isto é, desiguais. E denomina-se [proporção] de menor 188

Ou seja, e . Ganassi explicará, durante o tratado, que, por motivo de brevidade, poderás adaptar os exemplos propostos por ele de acordo com a necessidade. Neste caso, o autor refere-se à utilização dos exemplos da Primeira 189

Regra, todos eles feitos sob o sinal de tempo , em música cujo sinal de tempo é a Sesquiáltera ( 3) e isto causará uma relação de dois tempos contra os três originais ao sobrepor as duas linhas. Ver item 3.3.3.

97

desigualdade: “desigualdade” por ser [formada] por dois números diferentes, e “menor” por ter o número menor antes do maior, deste modo 2:3. E porque [em] tal diminuição caem duas mínimas por tempo e na Sesquiáltera, três. Portanto, ao formar-se tal proporção, podese causar uma outra proporção, a qual se denomina Sesquiterça; a [sua] forma numérica é deste modo: 4:3. Denomina-se de maior desigualdade por estar o número maior antes do menor. Querendo formar tal proporção, deverás mudar as figuras rítmicas, ou seja, [transformar] as semínimas em mínimas e o mesmo, com as outras figuras. Com esta ordem forma-se tal proporção. E é verdade que, de quatro semínimas, mudando-as em mínimas, forma-se dita proporção, porque a Sesquiáltera leva o tempo com três mínimas, porém, serão quatro mínimas contra as três da Sesquiáltera190. Em seguida, terás o caminho do diminuir em proporção Sesquiquarta.

Segunda Regra. (exemplos)

Capítulo 15. Declaração de como diminuir na proporção Sesquiquarta, da passada Segunda Regra.

Sabe que este diminuir com cinco semínimas contra quatro causa a proporção denominada Sesquiquarta [5:4] e, comparando tal Sesquiquarta com a Sesquiáltera [6:4]191, causarás uma outra proporção chamada Subsesquiquinta [5:6], porque passarão cinco semínimas contra seis do modo “sesquialterado”. E este prefixo "sub", mesmo que acima não tenha te dito coisa alguma, sabe que sempre quando em uma comparação, o número 190

Da mesma forma, nesta outra passagem, Ganassi refere-se à utilização dos exemplos da Primeira Regra em

tempo alla breve,

, o qual formará em relação ao tempo alla semibreve,

, uma proporção Dupla (2:1), ou

seja, ocorrerá o dobramento dos tempos originais. Ao sobrepormos a esse novo tempo,

, à Sesquiáltera,

3, formará uma nova relação de quatro mínimas contra três, a dita proporção Sesquiterça. Ver item 3.3.3. A proporção 6:4 é apenas um múltiplo de 3:2. Para maior compreensão, veja a explicação dada por Ganassi no início do Capítulo 16.

191

98

menor vier antes do maior, adiciona-se a tal número o [prefixo] "sub", quase querendo dizer que, colocando uma Sesquiquinta e encontrando depois na partitura192 [uma] Subsesquiquinta, entende-se [que] a Sesquiquinta mencionada acima [deve] ser destruída e anulada, como aqui: 5:4 para 4:5193 e 6:5 para 5:6194. Não te disse nem declarei acima os princípios e termos das proporções, porque não é nossa preocupação nesta ciência, mas somente este pouco [de informação] te bastará, porque me foi necessário mostrar-te este pouco, de modo que possas no teu diminuir exercitar-te com a maior arte que a ti será possível. Mas, querendo tu [alcançar] tal conhecimento de todas as proporções, examinarás os autores que desta faculdade e ciência falaram plenamente e, [se] eu dissesse mais alguma coisa, seria supérfluo e fora do nosso propósito. Seguindo, procederei [com] a Terceira Regra que diminui na proporção Sesquiáltera.

Terceira Regra. (exemplos)

Capítulo 16. Declaração de como diminuir em proporção Sesquiáltera, da passada Terceira Regra.

Neste presente capítulo, serás advertido [sobre] como o diminuir da Sesquiáltera anteriormente mostrado, te servirás ainda para essa Sesquiáltera [da Terceira Regra]. Tal proporção é composta de dois números diferentes, deste modo: 3:2, 6:4 [ou] 9:6; dos quais, o número maior contém em si uma vez e meia o menor e por tal causa se denomina 192

No original, "concento". Sesquiquarta e Subsesquiquarta. 194 Sesquiquinta e Subsesquiquinta. Para melhor entender o processo a que Ganassi se refere, podemos observar os exemplos musicais do Capítulo 12 explicados no item 3.3.3. 193

99

Sesquiáltera.

Portanto, o diminuir terá seis semínimas por tempo e no modo “não-

sesquialterado” terá quatro dessas semínimas, das quais comparando seis semínimas a quatro nascerá dita proporção. Seguiremos [com] uma outra regra, a qual causará a proporção Supertripartientequarta e de tal proporção eu te darei o caminho e modo, como demonstram os presentes números: 7:4. Mas por ser um tanto laboriosa e incômoda farei de cada intervalo [apenas] um e da mesma maneira, com as cadências.

Quarta Regra. (exemplos)

Capítulo 17. Declaração da passada Quarta Regra que diminui em proporção Supertripartientequarta.

Nesta Quarta Regra faz-se a diminuição em proporção Supertripartientequarta. Esta [é] formada por dois números, deste modo, como disse: 7:4. E porque nos tempos perfeito e imperfeito195 fazem-se por battuta quatro semínimas e [este] diminuir, sete, portanto, tomando este diminuir em sete e comparando-o ao quatro causará a supra denominada proporção. E querendo exercitar-te com tal diminuir contra a Sesquiáltera, farás a proporção denominada Sesquisexta, a qual é 7:6. Se é verdade que o diminuir terá sete semínimas enquanto a Sesquiáltera seis, é por isso que [esta proporção] é denominada Sesquisexta. E ainda que eu devesse seguir no modo da proporção Dupla, a qual é 8:4 e 4:2, por maior brevidade te reconduzirei à Primeira Regra com esta ordem: comutar as

195

Ou seja,

e

.

100

figuras.196 Estejas certo de que mudando as semínimas em mínimas causarás dita proporção, porque nos sinais de tempo197, fazem-se duas mínimas e o diminuir [em proporção Dupla] quatro. E por isso que se dão os números desta tal proporção, que são 8:4 e 4:2, como foi dito acima.

Capítulo18. Declaração dos efeitos causados pelos atos diminuídos. Nota que o ato198 que diminui a segunda ascendente inclui, nos exemplos dados nas margens, aqueles que mudando o seu final, te servirão para a segunda não quebrada, [assim como para os demais intervalos ascendentes e para a terça descendente quebrada]199 (ex. 1). A segunda quebrada descendente, que está [na margem do] número 11 (ex. 2), pode servirte para a terça ascendente com salto. [Assim como a segunda ascendente que está na margem do número 6 (ex. 3) pode servir-te para a terça descendente quebrada]200, como se vê nos exemplos.

196

No original, "commutar le figure ouer minute". No original, "neli segni di moti per tempo" 198 Ver nota 179. 199 Neste capítulo Ganassi descreverá todas as margens colocadas em seus exemplos da Primeira Regra e explicará que tais margens servem para indicar outros intervalos que podem ser adaptados no final das diminuições daquela linha numerada (ver exemplos musicais no fac-símile em anexo). Embora o autor não tenha explicado no primeiro parágrafo que os exemplos da primeira linha servem para a segunda ascendente e também para todos os intervalos ascendentes não quebrados, ele o faz na margem; por isso, decidimos acrescentar a explicação entre colchetes. Segundo Vossart e Navarre, Horseley e Brown interpretam de 197

maneira errônea tal margem, transcrevendo-a como

enquanto que na verdade

deveria ser transcrita como , como vemos no exemplo 1 da Primeira Regra. VOSSART, Christine. NAVARRE, Jean Philippe. “Introduction”, In: GANASSI, Silvestro. Op.cit., p. 12. 200 No original está escrito XI ouer 6, no entanto, Ganassi nesta passagem explica somente o funcionamento da margem que está antes do exemplo 11. A explicação do número 6 somente aparecerá depois da explicação da margem do exemplo 13. Deste modo, para dar uma clareza maior ao texto, decidimos transportá-la para o primeiro parágrafo, omitindo-a de seu lugar original, onde colocamos o sinal “[...].”

101

Exemplo 1.

Exemplo 2.

Exemplo 3.

Depois, no número 13, vêem-se os atos que diminuem a semibreve em um mesmo lugar, o qual te serve para o intervalo da terça ascendente e da segunda descendente quebrada com salto (ex. 4), como se vê pelo exemplo.

Exemplo 4.

102

[...]

Depois seguem os atos da terça [ascendente], no número 6 (ex. 5), os quais te acomodam para a segunda ascendente quebrada, para a semibreve no mesmo lugar [e para a terça ascendente não quebrada].

Exemplo 5.

Depois segue a terça descendente no número 4 (ex. 6), a qual te serve para a terça quebrada com saltos sem meios ao final201; ou pela segunda quebrada ascendente, segunda não quebrada [ascendente], quarta, quinta e qualquer outro movimento descendente sem meio.

Exemplo 6.

E sabe que não te escrevo nem mesmo parte do que se poderia, porque não duvido que isto seja suficiente para fazer-te conhecer tudo aquilo que podem produzir os ditos atos diminuídos.

201

Ganassi não exemplificou tal intervalo na margem do número 4. No exemplo apenas aparecem o intervalo de segunda quebrada ascendente [e também segunda quebrada descendente], segunda não quebrada ascendente, terça e quinta descendentes. É possível que o autor tenha escrito no texto o intervalo de quarta equivocadamente no lugar da terça que está na margem. No entanto, no final ele nos informa que tais exemplos podem ser adaptados para todos os intervalos inteiros descendentes, isto é, sem notas no meio.

103

Depois segue o intervalo de quarta ascendente, no número 7 (ex. 7), o qual te serve para os ditos atos da segunda ascendente não quebrada e quebrada com salto; ou terça descendente com saltos de terça e quinta no seu final; e outros modos quando considerares os atos um por um.

Exemplo 7.

Depois segue a quarta202 descendente, no número 3 (ex. 8), a qual te servirá para os ditos atos [e para] a semibreve no mesmo lugar quebrada com um movimento de segunda ou terça descendente com [notas em] seu meio.

Exemplo 8.

Depois segue a quinta ascendente, no número 5 (ex. 9). Verás o exemplo, o qual te mostrará que poderás acomodar-te também para os atos de terça ascendente quebrada com salto ou [a] segunda ascendente e descendente203 com saltos, e o modo de cadência.

202

No original “quinta”. Na margem está notado o intervalo do uníssono no lugar da segunda descendente com salto. É possível que seja um erro de impressão da margem.

203

104

Exemplo 9.

Segue a quinta descendente no número 6 (ex. 10). O exemplo te mostra a comodidade da terça descendente quebrada com saltos, [da] segunda ascendente e da quinta quebrada descendente com saltos. Com o mesmo modo, poderás igualmente aproveitar todas as outras regras como [foi] dito no capítulo 13.

Exemplo 10.

E advirto [como] alguns destes atos diminuídos te parecerão e estarão de alguma forma fora de propósito ao seu intervalo, mas sabe que tais atos só se observam battuta a battuta, e não em seus meios, [porém] algumas vezes no seu fim.204 Em seguida entenderás a reportação de todos os movimentos.

Reportação das regras.

204

Tal afirmação de Ganassi é muito importante para a prática do diminuir, pois indica que devem ser desconsideradas as notas menores e manter apenas as consonâncias que estão no início de cada battuta, isto é, diminuir apenas de semibreve a semibreve. No capítulo seguinte, o autor também dará o modo de como diminuir a mínima e mudar de proporção a cada meia battuta, isto é, de mínima em mínima. É possível que ele esteja se referindo a tal procedimento quando afirma “[porém] algumas vezes no final.”

105

Capítulo 19. Reportação de todos os movimentos diminuídos. Tendo eu declarado todos os intervalos e atos diminuídos, seus efeitos pertencentes à inteligência e à prática do diminuir, e tendo bem examinando os intervalos diminuídos de cada processo na nossa primeira regra, sabe que todos os intervalos de segunda ascendente e descendente, inteira e diminuída, por salto ou quebrada, encontrarás o mesmo nas regras segunda, terceira e quarta. E querendo tu, alguma vez variar tal movimento, está advertido que algumas destas segundas diminuídas podem ser pronunciadas [de maneira] simples, como se vê nos exemplos nas margens, considerando tempo a tempo, como dito anteriormente, isto é, com movimento derivado de uma semibreve a outra. E isto para que saibas proceder em parte o teu tocar de sopro com modo plano [fermo] contra o figurado. E para que isto te seja certo, eu com infinitos modos e vários processos teria podido, em tal espécie, demonstrar-te o diminuir variado. Mas sanamente duvidei se não tivesse produzido em ti confusão grandíssima, porque conhecendo eu e querendo tu exercitar-te, como acima disse, com esta útil e breve demonstração, poderás verdadeiramente alcançar todo ato diminuído que te aprouver e em seguida entenderás que todas as espécies de diminuir, e semelhantemente os movimentos, serão mostrados com a figura de um número. Os números dos atos serão mostrados somente no princípio e entenderás como se estivessem em todos os outros lugares, os quais se compreenderão [através dos] exemplos das Regras Primeira, Segunda, Terceira e Quarta. Todos os intervalos e atos diminuídos da Regra Primeira seguem o mesmo [procedimento] nas outras, como [foi] dito anteriormente no capítulo 13.205 Semelhantemente, notarás como procedo o movimento da segunda quebrada em duas mínimas por salto para que possas aprender a diminuir de uma mínima a outra; e isto para diminuir a metade do tempo de uma proporção e de uma outra, assim como podes fazer de um tempo a outro. 206 Assim como na mínima, também [poderás proceder] em um mesmo lugar ou em uníssono, pela síncopa e outras ocorrências.207 Ainda te diminuo uma

205

No original “capítulo 3.” Ver nota 208. 207 Ver exemplos 11 e 12. Aqui Ganassi está ampliando o seu sistema de diminuição, mostrando como proceder se quiser diminuir de mínima em mínima (meia battuta) ao invés de semibreve a semibreve (battuta 206

106

semibreve em uníssono, a qual te servirá para diminuir a breve, a longa e a máxima, querendo diminuí-las.

Capítulo 20. Ordem e modo para poder diminuir todos os intervalos que te agradarem.

Querendo tu diminuir um processo ou intervalo de uma terça intermediada como se vê no princípio deste exemplo (fig. 20) e querendo diminuí-la não proporcionalmente, [mas] toda em colcheias, irás até a primeira regra, no número 2 do movimento da terça ascendente e tomarás o ato diminuído todo de colcheias que está no número 4 dos atos. Encontrarás aquele efeito que se mostra através do exemplo seguinte. Depois da terça, segue o movimento de segunda ascendente quebrada de duas mínimas e uma mínima em uníssono. Porém te reporto ao número 4 dos movimentos da segunda ascendente, tomando o quarto número dos atos diminuídos, e será aquele que se demonstra no exemplo. Depois da segunda, segue a cadência que encontrarás no número 1 das cadências; e encontrarás aquele ato que está no número 2 dos atos diminuídos e será aquele que no exemplo está contido e se vê. Com tal modo, poderás em qualquer outro lugar, onde será possível transpor [trascorrere] com tal diminuir, um ou dois tons acima.208

inteira), ou ainda intervalos de uníssono, síncopas e qualquer figura mais longa que a semibreve, de modo que poderás adaptar-te a qualquer ocorrência que a música te proporcionar. 208 Neste capítulo Ganassi nos explica através dos exemplos 11 e 12, como utilizar, na prática, todos os exemplos que ele inseriu em cada regra, indicando um procedimento bem semelhante àquele que Diego Ortiz nos ensina no Tratado de glosas (1553): “tomar a voz que queiras glosar e reescrevê-la novamente; quando chegares onde queres glosar, ir ao livro e buscar aquele modo de intervalo [punto] ou cadência [clausula] entre os demais intervalos e cadências: olha ali todas as diminuições [diferencias] que estão escritas sobre aqueles intervalos, toma a que estiver melhor e põe-la no lugar dos intervalos cheios e, em todas as partes que quiseres glosar, faze desta maneira.” Ver item 3.3.1.

107

Exemplo 11.

Capítulo 21. Regra do diminuir em várias proporções. Querendo tu diminuir a semibreve, a breve, a longa e a máxima em várias proporções, parte e quebra os tempos ou battute. Pelo exemplo seguinte terás todo o verdadeiro conhecimento (fig. 21). Primeiramente, serás advertido que, no capítulo que se segue, toda diminuição, proporcionada e não proporcionada, referir-se-á ao sinal de tempo superior.209 Em tais figuras teria podido descrever ainda outras várias proporções, mas como várias vezes acima disse, considero somente a brevidade.

Exemplo 12.

Na figura acima mostra-se que aquelas duas semibreves têm a quantidade de uma breve [cada uma], das quais, encontrarás a primeira semibreve na Regra Primeira, no número 14, do movimento da segunda ascendente, no número 6 dos atos diminuídos. Segue-se a

209

Isto é, embora o exemplo 12 esteja escrito em

ele deve ser lido como se estivesse escrito em

108

.

segunda semibreve, a qual a encontrarás na Regra Segunda, no número 14 dos movimentos de segunda descendente e encontrarás aquele ato diminuído que está no número 5. Depois das duas semibreves, segue-se a terça descendente, a qual, encontrarás na Regra Terceira, no número 6 dos movimentos de terça descendente, no número 4 dos atos diminuídos. Depois seguem duas mínimas, a primeira encontrarás na Regra Quarta, no número 10 dos movimentos, começando no princípio da Regra, no número 1 dos atos. Depois dessa mínima, a outra mínima, encontrarás na Regra Segunda, no número 6 dos movimentos de segunda ascendente e tomarás a segunda mínima do número 3 dos atos diminuídos. Depois, segue a quinta, que encontrarás na Regra Terceira no número 2 dos movimentos de quinta ascendente e no número 2 dos atos diminuídos, transportando-a uma quarta acima. Depois segue a cadência, que encontrarás na Regra Primeira, no número 5 das cadências e no número 3 dos atos, e será aquilo que no exemplo acima está contido. Por tal modo dado, te conduzi a exercitar tais processos ou discursos nos números e movimentos da Primeira, Segunda, Terceira e Quarta Regra, [como] nos exemplos acima mostrados. Sabe que não te privo, porém, da tua liberdade, contanto que, em muitos outros lugares, claramente se vejam todos os intervalos de segunda, terça, quarta, quinta, sexta, inteiro e quebrado, por saltos ascendentes e descendentes, serem diminuídos de outros modos, isto é, simples, composto e proporcionado.210 Por isso, não somente poderás tais processos diminuir da maneira que acima te mostrei, mas de outros modos que te aprouver segundo o teu querer.

210

Ganassi nos adverte que, embora se possa proceder como nos aprouver é necessário que o diminuir seja variado, isto é, composto de todas as combinações descritas por ele nos capítulos de 9 a 12 e em todas as outras possibilidades descritas nos capítulos 19 a 22.

109

Capítulo 22. Modo e ordem para poder diminuir a máxima, a longa e a breve. Sapientíssimo leitor meu, no exemplo acima entendem-se aquelas duas semibreves como se fossem uma breve.211 Em segundo [lugar], que te escrevi para o exemplo dito, o modo de diminuir aquelas duas semibreves no princípio. Deste modo, vês claramente de que maneira aqueles dois intervalos diminuídos sobre as anteriormente mencionadas semibreves, procedem. Portanto encontrando tu naquele lugar uma figura máxima e querendo-a diminuir precisa duplicar aqueles modos diminuídos, tantas vezes quanto será o valor dessa máxima, e semelhantemente, a longa, a breve, e qualquer outra figura maior, por cuja ordem quis que a Regra Primeira seja princípio, fundamento e mestra da Segunda, Terceira e Quarta; nas quais o mesmo encontrarás quanto aos intervalos. E semelhantemente querendo diminuir tais figuras não proporcionadas, duplicarás os ditos movimentos em uma só proporção que a ti aprouver, mas querendo tu praticar esta mistura, advertirei que, quando deres dois ou três passos, faze com que tal diminuir seja diferenciado um do outro, de modo que cada caminho composto seja deleitável e agradável. E isto será o fim da matéria anteriormente dita, com tal modo e finalidade, poderás alcançar qualquer desejo teu. E eu, com toda diligência, experimentei fadiga intolerável para demonstrar-te toda facilidade que a mim foi possível. E para não faltar à promessa a ti por mim dada, é necessário que padeça uma nova fadiga em dar-te Regra ou Modo pertencente e necessária ao artifício do tocar, cujo princípio, com a ajuda de Deus e da tua graça, a seguir te mostrarei.

Modo do tocar artificioso.

211

Ver nota 209.

110

Capítulo 23. Regra e ordem do tocar artificioso. Neste capítulo serão dadas indicações sobre alguns elementos necessários ao nosso tocar artificioso, como te prometi no primeiro capítulo, o qual esclarece o seu propósito.212 Primeiramente entenderás que querendo imitar a razão, é preciso ser imitador do hábil [suficiente] e perito cantor. E, é preciso [também] proceder com um tocar composto de três espécies: a primeira é a espécie da imitação; a segunda, da prontidão; e a terceira, da galanteria. Sabe que estas três espécies estão unidas entre si, isto é, que jamais se deve exercitar uma sem a outra. A primeira das três, a imitação, é a principal. Assim como será causada a imitação, semelhantemente serão a prontidão e a galanteria. Para tanto, eu te darei notícia a respeito do que é esta imitação, de onde ela é derivada e [qual] o modo de exercitá-la. A mesma coisa [farei] com a prontidão e a galanteria, como entenderás a seguir.

Capítulo 24. Declaração da imitação, da prontidão e da galanteria. Sabe que a imitação deriva do artifício, a prontidão do sopro e a galanteria do tremular dos dedos. A imitação, portanto, deve imitar a voz humana, isto é, às vezes cresce e diminui para imitar a natureza das palavras, como declarei no segundo capítulo, o qual ensina a maneira de proceder com o sopro. A imitação que fazes em uma mesma nota, com artifício, tem os vários efeitos, suaves e vivazes, assim como faz a voz humana.213 Mas é necessário também, como foi dito acima, que tal imitação deva ser acompanhada da prontidão e da galanteria, porque a prontidão deriva do sopro. Portanto, se a imitação é suave ou placável, ou ainda vivaz, a mesma coisa será a prontidão e a galanteria. Difícil seria demonstrar os vários efeitos da prontidão, como faz a imitação, se não [for] com o falar; porque a prontidão não poderá demonstrar os seus vários efeitos como, suave e vivaz, da mesma maneira que a imitação, salvo pela experiência. [É] como se quisesses proceder com um sopro de prontidão extrema, seria necessário primeiramente proceder com um 212 213

Isto é, imitar o falar da voz humana. Ver item 3.1.

111

sopro pianíssimo [quietissimo] e depois com um fortíssimo [superbissimo]; desse modo conhecerás o efeito da extrema prontidão.214 E, querendo temperá-la um pouco, procederás com um sopro intermediário e depois aumentarás tal sopro, mais ou menos, segundo a ocasião. De tal modo, por tal experiência, serás esclarecido [a respeito] de qualquer variado efeito necessário à prontidão. De outra forma, não se poderia demonstrar tais efeitos. Mas é ainda muito necessário que sejas governado por uma boa discrição. A galanteria mostra mais facilmente os seus efeitos, porque ela não apenas os mostra com o falar, mas também com a regra figurativa, como faz a imitação. E, sobretudo, esta espécie de galanteria deriva e nasce do tremular do dedo sobre o furo dessa flauta. Portanto, encontram-se alguns furos que ao serem tremulados variam uma terça a mais ou a menos; outros, variam um tom; outros, um semitom e outros ainda, mais de um tom e menos de um tom, como o diesis e menos que o diesis215, cuja parte o ouvido não será capaz de julgar [como] verdadeiro e que

214

“Esta frase e a sucessiva sobressaem novamente os contrastes dinâmicos: 'fiato quietissimo' e ' fiato superbissimo' sugerem uma execução com p e f. Esta interpretação não deve surpreender. No cap. 2 da Regola Rubertina, Ganassi escreve: Assim nas palavras ou música alegre, como [nas] palavras e música triste, tens de calcar o arco forte e piano e às vezes nem forte nem piano, isto é, [com força] mediana; como nas palavras e música triste, deve-se operar o arco com graça e às vezes tremer o braço do arco e os dedos da mão que vai ao espelho, para fazer o efeito conforme a música triste e aflita; o contrário, portanto, na música alegre, deve calcar o arco com modo proporcionado a tal música.

Esta passagem é particularmente interessante por mais de um motivo: exprime claramente a adesão à uma escuta rica de contrastes, ou pelo menos diferenciada em dinâmicas, com particular atenção ao valor semântico do texto; alude ao tremer do braço, que produziria um tipo de efeito ‘vibrato’ de arco, semelhante provavelmente ao efeito de ‘tremer a voz sobre uma mesma nota’ (tremolo) de Giovanni Battista Bovicelli [Regole, passaggi di musica, madrigali et motetti passegiati, 1594]; sugere que também se possa ‘tremer’ com os dedos da mão que toca sobre o espelho, que produz inequivocadamente um vibrato, o que constitui, creio eu, o mais antigo testemunho de tal práxis.” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 63, nota 173. 215 “Já para Aristóxeno (IV séc. a.C) diesis podia indicar intervalos calculados como a quarta parte, ou a terceira parte, ou a metade de um tom, assim 'a parte mínima se chama diesis enarmonico minimo; a seguinte se chama diesis cromatica minima ; e a máxima, o semitono' (Elementos Harmônicos, f. 9 v), e a quanto refere-se Tinctoris, no final do séc. XV, o diesis: Segundo alguns, indica o semitom menor; segundo outros é a metade do semitom menor. E ainda, na verdade, existem aqueles que consideram o diesis como a quinta parte do tom, e outros a terceira, a quarta e a oitava. Todavia, [...] diesis é a diferença entre o semitom maior e menor, mas qualquer coisa que seja, o diesis não é distinguido pelo ouvido, mas somente por meio do cálculo matemático. (L.CAMMAROTA, Antichi termini musicali, V. Bonacci Editore, Roma, 1965)

112

um instrumento de cordas ou de uma corda só demonstra pela divisão feita pelo compasso216, etc. Portanto, a galanteria vivaz e aumentada será aquela que fará o variar de Era, portanto, possível exprimir, ao menos teoricamente, valores muito pequenos, os quais por exemplo o intervalo derivado da diferença entre o tom maior e o menor: o chamado comma sintonico. Intervalos mais estreitos do que o semitom eram conhecidos e calculáveis como diferença entre proporções, isto é, entre relações fracionárias úteis para representar os intervalos ainda menores, relações que surgiam do encurtamento progressivo e proporcional de uma corda tencionada e vibrante. A propósito dos 'pequenos intervalos', Zarlino no cap. 36 da Segunda Parte das Institutione Harmoniche, com as proporções 512:499 e 499:486, indica respectivamente o diesis menor e aquele maior, isto é, os dois intervalos em que se divide o "semituono". Aaron por sua vez, no Toscanello in Musica (Libro Secondo, cap. XX), nos diz que ' entre os teóricos, diesis é denominado a meia parte de um semitom menor, se bem que, na prática opera com maiores quantidades', traindo um transformação progressiva do termo 'diesis'. Um outro testemunho interessante se encontra no capítulo XII do Libro Secondo, onde, a propósito dos três gêneros praticados na antiguidade: o diatônico, o cromático e o enarmônico; Aaron afirma: Dois dos antigos foram abandonados, isto é, o cromático e o enarmônico. Somente o diatônico por eles é freqüentado, o qual na pronunciação [isto é, na execução] não tem menor consonância do que o semitom menor. Mas no enarmônico, o diesis pelo seu pouco [tamanho de] intervalo, não existe som que seja com facilidade pronunciado e que possa ser compreendido naturalmente. Portanto, tal gênero, devido a sua dificuldade não é em uso; assim também o cromático foi abandonado. Zacconi por sua vez no capítulo L do Libro Primo da Prattica di Musica, embora fazendo uma certa confusão entre as linhas duplas cruzadas (isto é, # e ), símbolos equivalentes, grosso modo, ao semitom e ao quarto de tom, utilizados por Zarlino para indicar a divisão do tom na Ordem Cromática e do semitom na Ordem Enarmônica (ver ZARLINO, Le Institutione Harmoniche, Terza Parte, cap.72), escreve que: O Diesis se coloca sob as liguras, se essas figuras descendem tira-lhe quase uma terça parte do seu próprio e natural som; mas se ascendem, acrescentam uma terça parte (f.38 v) E com isso, parece, enfim, entender o diesis no seu significado moderno de sinal de alteração cromática.” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 62, nota 171. 216 “Zarlino escreve profusamente, no seu tratado muitas vezes citado [Istitutione Harmoniche, 1558], do compasso e do monocórdio como instrumentos empregados para demonstrar os intervalos. Na Lettione Seconda de Ganassi, se encontra uma bela ilustração que mostra uma viola da gamba, cujo espelho foi dividido por certo número de compassos, em várias proporções.” SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 63, nota 174.

113

mais ou menos do que uma terça; a intermediária opera a quantidade de um tom ou menos [do que um tom]; e a suave ou placável será aquela que variará um semitom a mais e a menos [ou] parte de um semitom. Por tal ordem e caminho terás toda inteligência pertinente à imitação, à prontidão e à galanteria, como a seguir, terás o conhecimento destes modos por regra figurada.

Capítulo 25. Demonstração da regra figurada. O modo que será apto e necessário ao artifício que causa a imitação, como entendeste acima, é semelhante à regra que está no início do nosso tratado, a qual te ensina todas as notas que são mostradas nas flautas que estão na figura. Portanto, aqui será advertido que, para a imitação vivaz e galharda, será posta por nós sobre a flauta, a letra “V”. O furo que quero que com o dedo tremules para fazer uma galanteria será assinalado com a letra "t", a qual ficará próxima ao furo ou dedo que se deve tremular e assim, com a mesma ordem e modo, será a imitação placável e suave, cuja harmônica suavidade será demonstrada pela letra “S”. Tal letra estará evidente sobre a flauta e tal furo deverá ser tremulado. E este “t”, mais do que outra coisa, é por nós colocado porque trêmulo começa com “t”, vivaz com “V” e suave com “S”. Daí, se a imitação for vivaz, a galanteria também o será; e se suave, o trêmulo ou galanteria será suave. Mas serás advertido que a prontidão, que deriva do sopro, deve proceder as suas variedades entre o modo vivaz e suave, com a experiência bem considerada [e] intervindo aí a tua boa discrição. Sabe e nota bem que tal ordem e modo será por mim compreendido para flautas de um só mestre. Portanto, se com outras não puderes deste modo exercitar-te, é preciso empenhar-se cobrindo e descobrindo um ou dois furos, mais e menos, como aprendeste no capítulo quatro217, o qual te ensina fazer aquelas sete notas a mais. Porque onde falta a natureza é preciso que a arte seja mestra. Por isso, será suficientemente dito que, sendo tu apto nestas partes, não há dúvida que com a tua boa discrição alcançarás o porto desejado ou finalidade de tal instrumento,

217

No original, "capitolo quinto". Porém o capítulo que ensina sete notas a mais do que o comum é o capítulo

4.

114

como a figura mostra. Nota que podes fazer cada nota suave deste modo: descobrindo um pouco o furo e dando-lhe bem pouco sopro, se bem não coloco [isso] em todos os furos.

Regra figurativa. Figura 41.

Figura 42.

115

[***]

Na figura acima mostrada, aparecem alguns furos meio abertos ou cerrados. Sobre isso, sabe que especial regra, não posso te mostrar, porque alguns destes meios furos serão exercitados mais e menos dessa metade, de acordo como te soarás ao ouvido. Com a anteriormente mencionada discrição e com a prática destes [meios furos], dirás: “Bem poderias dizer-me como e em que modo conhecerei o tempo e a razão de por em obra tais partes, isto é, de imitação, prontidão e galanteria, ou seja, notas vivazes e suaves?”. Sabe que o teu mestre será o suficiente e perito cantor, com sabes. O qual, quando a ele é dado algum canto, primeiro considera sanamente a natureza das palavras dessa composição, isto é, se tais palavras são de natureza alegre, ele [canta] com o seu modo e voz alegre ou vivaz. Se são lamentosas e placáveis, então, ele transforma tal pronuncia em modo suave e lamentoso.

Assim procederás: se as palavras serão suaves e lamentosas, o teu tocar

também [será] lamentoso. Se alegres, com o tocar alegre e vivaz. E daqui nascerá, como anteriormente entendeste o imitar da voz humana. Não penso em me delongar, porque tendo sempre procedido com o meio da brevidade, ofereço-te esta minha pequena fadiga, a qual, como espero, prego ao Deus onipotente que com tua benevolência e amor seja benignamente aceita. E, se nela houver algum erro, desculpa-me por sua graça, considerando o quanto, voluntariamente, por ti não pouco me cansei. Do que, benigno e humaníssimo leitor, não me culpes se não te satisfez por culpa do meu pouco saber e aceita somente o meu bem querer. Vale.

116

CAPÍTULO 3: COMENTÁRIO SOBRE O CONTEÚDO DO TRATADO ABORDANDO QUESTÕES DA TÉCNICA DA FLAUTA DOCE E DA MÚSICA INSTRUMENTAL DO SÉCULO XVI.

3.1. A flauta doce na época de Ganassi: usos e instrumentos. Neste item trataremos do uso da flauta doce a partir dos anos de 1460, momento em que, segundo Polk, os documentos indicam um grande aumento do interesse pelo instrumento218, até a primeira metade do século XVI, período em que Ganassi esteve ativo como piffaro do Doge em Veneza. De acordo com Polk, no século XV, a flauta doce era utilizada por três diferentes categorias de executantes. A primeira era formada por músicos profissionais que tocavam instrumentos suaves [bas], isto é, que faziam “música de câmara”, na qual a flauta era empregada como instrumento único em um conjunto misto [mixed consort]. Já a segunda compreendia os profissionais que trabalhavam nos grupos oficiais de charamelas, como os piffari de Veneza. Segundo o autor, tais músicos costumavam adquirir flautas em famílias e frequentemente são descritos, pelos relatos da época, tocando-as em conjuntos completos [whole consorts].219 O terceiro grupo é formado pelos amadores, isto é, príncipes, aristocratas e membros das elites urbanas que, segundo o ideal do cortesão perfeito, proposto por Castiglione, deveriam incluir a música e outras artes em sua educação. Emulando o Orador Perfeito de Cícero, o autor, através do conde Ludovico da Canossa, afirma no “Primeiro Livro” não se satisfazer com o cortesão se ele não for também músico e se:

além de entender e mostrar firmeza na música escrita, não souber vários instrumentos; porque, se pensarmos bem, nenhum repouso das fadigas e remédio para espíritos enfermos se pode encontrar mais honesto e louvável no ócio do que esse; especialmente nas cortes, onde, além de refrigério dos aborrecimentos, que a cada um a música propicia, muitas coisas são feitas para satisfazer as mulheres, cujos espíritos, suaves e delicados, facilmente são penetrados pela harmonia e de doçura repletos. Por isso, não causa maravilha que, nos tempos antigos e no presente, sempre tiveram elas inclinação pela música e sempre a trataram como gratíssimo alimento para o espírito. [...] E lembro já ter escutado que Platão e Aristóteles queriam que o homem bem-instruído fosse também músico, e com infinitas razões demonstram que a força da música é enorme em nós e, por muitas 218

POLK, Keith. “The Recorder and Recorder Consorts in the Fifteenth Century”. In: LASOCKI, David. (Ed.) Musicque de Joye. Proceedings of the International Symposium on the Renaissance Flute and Recorder Consort, Utrecht 2003. Utrecht: STIMU, 2005, p. 19. 219 Ibidem, p. 20.

119

causas que agora seria cansativo enumerar, que se devia necessariamente aprendê-la desde a infância, não tanto por aquela superficial melodia que se ouve, mas o suficiente para criar em nós um novo hábito bom e um costume tendente à virtude, o qual torna o espírito mais capaz de felicidade, do mesmo modo que o exercício corporal faz o corpo mais galhardo; e não somente ela não perturba as coisas civis e da guerra, como é capaz de favorecê-las enormemente. 220

E em outro momento, no “Segundo Livro”, explica-nos melhor a respeito da prática musical entre os cortesãos:

Então o senhor Gaspar Pallavicino: – Há muitos tipos de música, – disse – tanto vocal quanto instrumental. Por isso gostaria de saber qual é a melhor de todas, e em que momento o cortesão deve executá-la. – Boa música – respondeu dom Federico – creio que seja cantar seguindo a partitura com segurança e bela maneira; e mais ainda cantar acompanhado de viola, pois toda a doçura consiste quase num solo, e com muito maior atenção se nota e ouve o belo modo e a ária ficando os ouvidos ocupados com uma só voz, e melhor ainda se discerne então cada erro mínimo; o que não acontece quando se canta em grupo, porque um ajuda o outro. Mas sobretudo me parece muito prazeroso recitar uma poesia acompanhado de viola; coisa que tamanha formosura e eficácia acrescenta às palavras, que provoca maravilhamento. São também harmoniosos todos os instrumentos de teclado, porque têm as consonâncias muito perfeitas e facilmente neles podem ser feitas muitas coisas que enchem o espírito de doçura musical. E não agrada menos a música das quatro violas de arco, a qual é suavíssima e artificiosa. A voz humana dá muito ornamento e graça à todos esses instrumentos, dos quais basta ao nosso cortesão ter noções; porém, quanto mais exímio for, melhor será, sem que se atreva muito com aqueles que Minerva e Alcibíades recusaram, pois parecem causar uma certa repulsa. Quanto ao momento em que se possa praticar esses tipos de música, creio que seja sempre que se estiver em alguma companhia familiar e querida, quando não houver outras atividades; mas eles convêm sobretudo em presença de mulheres, porque aplacam os ânimos dos ouvintes e os tornam mais permeáveis à doçura da música, e também despertam o espírito de quem a executa. Como já disse, agrada-me muito que se evitem as multidões, em especial de plebeus. Mas é necessário que o tempero de tudo seja a discrição; pois de fato seria impossível imaginar todos os casos que acontecem; e, se o cortesão for um juiz justo de si mesmo, adaptar-se-á bem aos tempos e saberá quando os ouvintes estão dispostos a ouvir e quando não.221

220 221

CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 71-72. Ibidem, p. 97-98.

120

Embora a flauta doce não tenha sido citada, ela também aparece frequentemente na iconografia, nas mãos de nobres representando diversos tipos de execuções, seja em conjuntos completos (fig. 43) como em conjuntos mistos (fig. 44). Além disso, nota-se a publicação de coletâneas (fig. 45) e diversos tratados que abordam de alguma forma o instrumento, indicando, segundo Heyghen, que o conjunto de flautas doces havia ganhado uma popularidade sem precedentes entre os amadores e profissionais222, de modo a ser, provavelmente, o conjunto instrumental mais tocado desde o século XV. 223

Figura 43.

Afresco de Girolamo Romanino (1531) no Castello del Buonconsiglio em Trento, Itália.

222

HEYGHEN, Peter van. “The Recorder Consort in the Sixteenth Century: Dealing with the embarrassment of riches” In: LASOCKI, David. (Ed.) Musicque de Joye. Proceedings of the International Symposium on the Renaissance Flute and Recorder Consort, Utrecht 2003. Utrecht: STIMU, 2005, p. 228. 223 POLK, Keith. Op.cit., p. 24.

121

Figura 44.

Anônimo do Norte da Itália (primeira metade do séc. XVI)

Figura 45.

Gravura de um manual de dança, provavelmente publicado por Jacques Moderne em Lyon (1530-38)

122

De acordo com Polk, obras como o breve manuscrito de Basel (ca. 1500), que descreve o instrumento e oferece algumas instruções rudimentares, e o Musica getutscht de Virdung (1511) são claros exemplos de escritos direcionados ao uso amador.224 Da mesma forma, é importante notar também, que Ganassi dedica seus tratados de viola a dois importantes nobres florentinos ligados ao mecenato musical: Ruberto Strozzi e Neri Capponi. No prefácio “Aos leitores” da Regola Rubertina, o autor afirma que Ruberto, assim como “toda a sua casa”, se deleita mais do que os outros “de harmonia da alma, de harmonia do corpo e de harmonia vocal e instrumental” e acrescenta, como muito apreço, que o nobre foi seu discípulo.225 Ainda sobre os Strozzi, Polk menciona um importante documento de 1470 (Bruges) onde se relata a aquisição de flautas doces feitas por um outro membro da família, Girolamo Strozzi.226 Lasocki também observa algumas passagens onde Ganassi deixa transparecer que tipo de público tinha em mente ao escrever suas obras; uma delas se refere à utilização verbo dilettare no título da Lettione Seconda227:

LIÇÃO SEGUNDA, ou também da prática de tocar o violone de arco trastejado [...] Obra utilíssima a quem se deleita em aprender a tocar. 228

Isto é, um tratado de viola endereçado àqueles que não desejam aprender a música por profissão, mas apenas para deleite cortesão. Note-se ainda que o adjetivo dilettante, em italiano, serve até hoje para designar os músicos amadores, entretanto, o termo não possuía o significado pejorativo atual. Do mesmo modo, na Fontegara, o verbo aparece no final do título e pode ser considerado uma referência ao público alvo da publicação: OBRA INTITULADA FONTEGARA, A qual ensina a tocar flauta com toda a arte oportuna a esse instrumento, e também o diminuir, o qual será útil a todo instrumento de sopro e de cordas, e ainda a quem se deleita com o canto.229

224

Ibidem, p.20. GANASSI, Silvestro. Regola Rubertina. [...] p. 3. 226 POLK, Keith. Op.cit., p. 24 227 LASOCKI, David. “Renaissance Recorder Players” [...], p. 23. 228 GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. [...] p. 1. 229 GANASSI, Silvestro. Fontegara. [...] p. 1. 225

123

A este respeito, não podemos esquecer que a Fontegara, apesar de endereçada aos cortesãos, possuía, pelos motivos elencados no item 1.2. e pelo decoro de seu homenageado, um papel político e cultural muito específico, no qual era preciso glorificar a concórdia veneziana através do prestígio musical. São três os tamanhos de flautas descritos pelos autores mais importantes da primeira metade do século XVI (Virdung, Agricola e Ganassi). De acordo com Polk, até 1450 apenas dois desses tamanhos eram conhecidos, o Discant em sol e o Tenor em dó. A partir desta data, houve a necessidade de se desenvolver um Baixo em fá com mecanismo de chaves, fato que, segundo o autor, pode ser comprovado através do repertório.230 Sendo assim, Virdung descreve uma flauta Discant em sol, uma Tenor em dó e uma Baixo, que ele chama de Basscontra ou Bassus, em fá – todas soam uma oitava acima do que está escrito.231 A partir desses modelos, um conjunto de flautas [coppel] deveria ser formado, segundo o autor, por dois Baixos, dois Tenores e dois Discants; assim como um quarteto, deveria ser formado por um Baixo, dois Tenores e um Discant (fig. 46); ou ainda por um Baixo, um Tenor e dois Discants, dependendo da extensão empregada na voz do contralto.232 Agricola, do mesmo modo, descreve estes mesmos três tipos: Baixo em fá, com chave e fontanella, Tenor ou Alto em dó e Discant em sol (fig. 47). Segundo Brown, Philibert Jambe de Fer, no capítulo sobre a flauta transversa de sua obra Epitome Musical (1556), explica que o Tenor e o Alto “em todos os instrumentos são idênticos em formato, comprimento, largura e outros pontos”233, o que nos faz concluir que seu nome deveria ser escolhido de acordo com a parte executada em uma polifonia.

230

POLK, Keith. Op.cit., p. 19. VIRDUNG, Sebastian. Op.cit., p. 170. BROWN, Adrian. “Renaissance Recorders and their Makers” In: American Recorder, v. 47, n. 1, 2006. p. 26. 232 BROWN, Adrian. Op. cit., p. 26. 233 Ibidem. 231

124

Figura 46.

Virdung: Musica getutscht, 1511.

Figura 47.

Agricola: Musica instrumentalis deudsch, 1529.

Estes três tamanhos de flautas não são diferentes daqueles citados por Ganassi no capítulo 3 e também aparecem na obra de Cardano (1546), que adiciona ao trio uma Soprano em ré, Zacconi (1596) e Ceroni (1613).234

234

Ibidem.

125

Mas afinal, qual era o repertório executado por esses conjuntos? Segundo Polk, em 1468, ministréis profissionais da corte de Borgonha tocavam chansons polifônicas e provavelmente incluíam em seu repertório versões instrumentais das mais famosas obras de Binchois e Dufay. Muitos relatos também foram feitos sobre os instrumentistas de Ferrara e, de acordo com o autor, o repertório poderia incluir música sacra, secular local e as favoritas internacionais, como nos mostram as coleções sobreviventes para instrumentos de teclado.235 Já no século XVI, temos uma importante carta (1505) do piffaro veneziano, Giovanni Alvise Trombon, ao duque Francesco Gonzaga de Mântua, informando a respeito de arranjos instrumentais feitos por ele a partir de obras polifônicas vocais conhecidas:

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Marquês, saberá a Vossa Senhoria que naquele tempo que estávamos em Mântua, o senhor Dom Alfonso, duque de Ferrara, queria vir ouvir quatro trombones e dois cornetos, mas nunca teve essa graça, por não termos as coisas arrumadas e ordenadas e [nem] quem as soubesse fazer. Por isso, quando retornei a Veneza, coloquei-me a trabalhar e encontrei o caminho correto daquelas e de outras mais belas coisas e experimentei todas [as possíveis instrumentações], isto é, com quatro trombones e dois cornettos; e depois com quatro trombones e quatro piffari, e depois aquele mesmo moteto a oito flautas. Ainda lhe mando [um arranjo] para tocar com cinco trombones todos juntos [in una bota] e um outro para ser tocado [também] a cinco.236

Em outra carta mais antiga, de 1494, o músico veneziano fala sobre outros arranjos e sobre a adição de vozes mais graves para compor as versões instrumentais: [...] nestes dias passados, colocamos em ordem certos motetos para tocar, dos quais mando dois para a Vossa Senhoria. Um deles é obra de Obrecht, isto é, para quatro vozes: dois sopranos, um tenor e um contralto; mas como somos seis, adicionei duas vozes baixas para tocar com os trombones, que são seis, e cai bem ao ouvido. E para quem quiser tocar também a cinco vozes, fiz um outro contrabaixo separado dos outros dois. Depois vos mando também um outro moteto chamado Gabrielem que é de Busnois, isto é, para quatro vozes. E eu fiz um outro contrabaixo porque tocamos a cinco, de modo que toda Veneza outra coisa não deseja ouvir.237

Aqui fica bem claro que os músicos profissionais, principalmente aqueles pertencentes aos conjuntos de charamelas (piffari), estavam acostumados a arranjar versões 235

POLK, Keith. Op.cit., p. 23. Giovanni Alvise, 27 de julho de 1505. Apud: HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 229. 237 Giovanni Alvise, 1494. Apud: ONGARO, Giulio. Op. cit., p. 218. 236

126

instrumentais diversas a partir de obras vocais conhecidas, compostas pelos mestres da polifonia franco-flamenga. As passagens evidenciam também que tais versões eram feitas para diferentes tipos de instrumentos, gerando inúmeras possibilidades timbrísticas, das quais, a flauta doce era uma das opções. Como observa Heyghen, é possível que este moteto a oito vozes para flauta doce, fosse dividido em dois coros238, gênero que se consolidará mais tarde em Veneza com a vinda do mestre Adrian Willaert. Importante também para a compreensão do repertório para conjunto de flautas doces no século XVI são as publicações de Pierre Attaingnant, principalmente os dois livros de 1533 mencionados por Heyghen:

1. Chansons musicais em quatro partes, das quais as mais convenientes para a flauta transversa [fleuste dallemant] são assinaladas na seguinte tabela com um “a”, [aquelas] para a flauta doce [fleuste a neuf trous] com um “b”, e [aquelas] para as duas flautas com um “ab” [...] 2. Vinte e sete [28] chansons musicais em quatro partes, das quais as mais convenientes para a flauta transversa são assinaladas com um “a”, [etc.]239

Segundo o autor, a primeira coleção contém vinte e oito chansons a quatro vozes e mais duas outras peças com texto em italiano, compostas por conhecidos mestres franceses, flamengos e italianos, como Certon, Guyon, Jacotin, Jannequin, Heurteur, Sermisy, Appenzeller, Bourguignon, Gombert, Hellinck, Josquin de Prez, Lupi, Manchicourt, e Richafort e Constanzo Festa.

Dentre elas, quatro estão marcadas para flauta doce,

dezessete para flauta transversa e sete para ambos os instrumentos. Infelizmente só se conservou o livro que contém a parte do soprano desta coleção. Já o segundo volume, que está todo conservado, contém vinte e oito (e não vinte e sete) chansons a quatro vozes, sendo vinte e três de compositores franceses, três de compositores flamengos e duas chansons anônimas. Duas peças estão marcadas para flauta doce, nove para flauta transversa, doze para ambos os instrumentos e as cinco restantes não estão marcadas. O

238 239

HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 229, nota 18. Ibidem, p. 230.

127

autor observa ainda que todas as chansons dos dois volumes, apesar de serem destinadas à execução instrumental, estão com todos os textos inseridos na partitura.240 Outro volume interessante é o primeiro livro de motetos de Nicolas Gombert, músico tantas vezes admirado por Ganassi, publicado em Veneza no ano de 1539. No título, as obras estão endereçadas à execução instrumental:

Música em quatro vozes, comumente chamadas de motetos, apropriada para [a execução em] grandes instrumentos de cordas [Lyris maioribus] e instrumentos de sopro [tibijs] em diferentes tamanhos [...]

Na opinião de Heyghen, os termos Lyrae maiores e tibia são correspondentes latinos para a viola da gamba e instrumentos de sopro de madeira. Uma vez que as charamelas e os cornettos estão sempre em conjunto, no século XVI, com instrumentos de metais, o autor acredita que estes possam ser excluídos da categoria tibia, onde apenas restam as flautas transversas, os crumhorns e as flautas doces.241 De acordo com a análise das obras feita pelo autor, a extensão dos motetos não permite sua execução em crumhorns e apenas cinco deles podem ser executados com flautas transversas, de modo que, é bem provável que sejam exclusivamente destinadas à execução em conjuntos de viola da gamba e flautas doces, cuja extensão se adapta muito bem às peças.242 Existem ainda outros documentos e relatos em que a flauta doce aparece relacionada às danças de rodas e em outras cerimônias. Assim, podemos concluir que o repertório instrumental praticado por profissionais e amadores entre o final do século XV e a primeira metade do XVI é formado basicamente de polifonia vocal (chansons e motetos) a quatro vozes, que pode ser adaptada para diversas formações, de cinco até oito instrumentos iguais ou de famílias diferentes. Sobre a adaptação desse repertório para o conjunto de flautas doces, Brown nos mostra que a execução a quatro vozes, utilizando os tamanhos de flautas descritos nos tratados, pode ser feita através da combinação: Baixo, dois Tenores e Discant (Fá-Dó-DóSol), como descreve Virdung. Assim como aquela a cinco vozes poderá utilizar a formação: 240

Ibidem, p. 230-231. Ibidem, p. 231-232. 242 Ibidem, p. 291-292. 241

128

Baixo, três Tenores e Discant (Fá-Dó-Dó-Dó-Sol); e a polifonia a seis vozes, Baixo, três Tenores e dois Discants (Fá-Dó-Dó-Dó-Sol-Sol). Ainda é preciso observar as claves em que as obras são compostas, sendo que, aquelas compostas pelas chamadas chiavi naturali (fá na quarta linha para o baixo, dó na quarta para o tenor, dó na terceira para o contralto e dó na primeira para o soprano), deverão ter a extensão adequada para a formação “Fá-DóDó-Sol”; e as partes vocais serão tocadas como estão escritas. Porém, às vezes, as obras são notadas com um sistema de claves mais agudas, chamadas chiavette (fá na terceira linha ou dó na quarta para o baixo, dó na terceira para o tenor, dó na segunda para o contralto e clave de sol para o soprano) e para adequar as flautas a estas claves mais agudas, a música deve ser transposta uma quarta abaixo, para as peças em bemol, ou uma quinta abaixo, para peças que não têm acidentes.243 Segundo Heyghen, os flautistas pensavam sempre em dedilhados e solmização no lugar de pensar em notas de altura definida, como podemos notar através das tabelas de dedilhados de Ganassi, e por isso, tal procedimento não era percebido como uma transposição no sentido moderno do termo.244 Outro aspecto interessante é a utilização de flautas graves no século XVI. Embora elas não estejam documentadas nos tratados – Praetorius, no Syntagma Musicum II (1619), será o primeiro a descrevê-las – alguns documentos comprovam seu uso já por volta de 1520. Segundo Brown, nesta data, um inventário dos instrumentos da família Medici em Florença, menciona “três flautas grandes, novas, para o contrabaixo”; um outro documento, de 1535, sobre o conjunto de flautas doces que o célebre tocador Wolff Gans diz ter adquirido em Augsburg, relata a respeito de “uma [flauta] para a parte do baixo, do comprimento de um homem”. Um terceiro ainda, um inventário feito em Madrid em 1559, menciona um conjunto de quatro flautas “uma delas, grande cerca de três bara de comprimento”, tal medida, segundo Brown, corresponde a 2,5 metros245. Heyghen também cita dois outros documentos relacionados às flautas de tamanhos grandes: um deles, uma carta de 1552 endereçada à Academia Filarmônica de Verona para onde o músico Jean Nasco, seguindo requisição do Senhor Miani, gentil-homem veneziano, diz enviar um

243

BROWN, Adrian. Op.cit., p. 26. HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 307. 245 BROWN, Adrian. Op.cit., p. 27. 244

129

madrigal que ele tinha composto para trombones, o qual poderia servir para as flautas grandes que eles tinham [per le vostre flauti grosse]. A outra citação está em uma crônica de 1569, na qual Massimo Troiani relata uma cerimônia de casamento ocorrida em 1568 na corte da Bavária, as flautas grandes são mencionadas em dois momentos no decorrer do texto:

[...] e os músicos tocaram uma música a doze [vozes], divididas em três coros: primeiro coro, com quatro violas da gamba; segundo, com quatro flautas grandes; terceiro, com quatro instrumentos variados, isto é, uma dulciana, uma cornamusa, uma flauta transversa e um corneto mudo. [...] (sobre um moteto a quarenta partes de Striggio) [...] oito trombones, oito violas de arco, oito flautas grandes, um instrumento a pena [cravo/espineta], um alaúde grande e todo o resto preenchido com vozes. Foi executado [dito] duas vezes e ouvido com grandíssima atenção. [...]246

Segundo Brown, Praetorius fornece uma pista importante para as flautas grandes omitidas nos tratados anteriores, e nos dá a possibilidade de quatro agrupamentos distintos de Baixo/Tenor-Alto/Discant, já que “seu” conjunto possuía nada menos do que vinte e uma flautas:

(1) Grande Baixo (Fá), duas Baixos (Sib) e Basset (Fá); (2)Baixo (Sib), dois Bassets (Fá) e Tenor (Dó); (3)Basset (Fá), dois Tenores (Dó) e Alto (Sol); (4)Tenor (Dó), dois Altos (Sol) e Soprano (Ré).

O autor ainda afirma que por todas as flautas estarem em relação de uma quinta entre si, não é preciso se preocupar com que tipo de flauta se toca, mas apenas com a voz que está tocando. Ele ainda reforça que essas transposições possivelmente não eram entendidas como tal, devido ao sistema de solmização. A única exceção encontra-se no número (1), no qual, a Grande Baixo em Fá está em relação de quarta com a Baixo em Sib, e, para que tudo funcione, tal instrumento deveria tocar um tom abaixo ou as demais vozes um tom acima.247

246 247

HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 232-233. BROWN, Adrian. Op.cit., p. 27.

130

Através da leitura dos capítulos 3 e 4 da Fontegara, podemos entender que cada flauta costumava ser tocada empregando uma extensão de uma oitava mais uma quinta; na qual se deveria utilizar o sopro “grave”, isto é, com menos pressão, para as nove primeiras e o sopro “agudo”, com mais pressão, para as demais quatro. Não contente com este resultado, Ganassi diz ter encontrado o dedilhado de outras sete notas, o que aumenta a extensão da flauta para duas oitavas mais uma sexta, e tais notas deveriam ser tocadas com o sopro agudíssimo, isto é, utilizando muita pressão. É importante observar também que o autor indica os dedilhados das notas super-agudas apenas para o instrumento Soprano em Sol, como podemos ver pela clave empregada. Tal atitude nos leva a pensar que este aumento de extensão fosse somente possível graças a alguma característica construtiva dos instrumentos menores da família da flauta doce ou, que estes talvez permitissem ao construtor executar algumas mudanças em sua estrutura interna que possibilitassem a execução de tais notas. Como estes dedilhados nunca antes tinham sido mostrados, o autor diz ser necessário demonstrar em modelos de três construtores diferentes, pois cada flauta é diferente entre si no que se refere ao diâmetro interno do instrumento [foro], na dimensão e espaçamento dos furos [compassar le voce] e na quantidade de ar que deve ser empregada para tocá-las. Ainda segundo o autor, isso acontece porque cada construtor tem sua própria maneira de tocar e afinar o instrumento e por isso, quando um flautista tiver em mãos outro instrumento ainda, tais dedilhados devem ser testados e algumas adaptações devem ser feitas, colocando ou tirando alguns dedos.

Figura 48.

131

Seguindo, as marcas empregadas por Ganassi em suas tabelas são três (fig. 48), das quais a primeira,

, refere-se aos Schnitzer, família de construtores de instrumentos de

sopro, cujos membros foram ativos em Nüremberg e em Munich entre os anos de 1490 e 1560.248 O “A” estilizado, remete à Albrecht (morto em 1524/25), o primeiro construtor conhecido da família, que, tendo nascido em Augsburg, se mudou para Munich por volta de 1490.249 Dois dos filhos de Albrecht também foram ativos no tempo de Ganassi e também eram conhecidos na construção de flautas doces: o primeiro deles, Sigmund I (morto em 1557) nasceu em Munich e mudou-se para Nüremberg em 1503, onde era muito conhecido por suas habilidades na construção do instrumento, assim como de flautas transversas e trombones.250 Já o segundo, Mathes (c.1500-1553), mudou-se para Nüremberg somente em 1552. Segundo Brown, os filhos de Albrecht usavam a marca dupla,

, em seus

instrumentos.251 O modelo construído pela família Schnitzer parece ter sido o favorito de Ganassi, pois o autor utiliza o instrumento em três tabelas de dedilhados durante o tratado: aquela das notas comuns da flauta, que estão acomodadas para Soprano, Tenor e Baixo no capítulo 3; em uma das três opções de dedilhados para as notas super-agudas do Soprano que estão no capítulo 4; e na tabela de trêmulos que está no capítulo 25. Segundo Brown e Heyghen, atualmente sobreviveram nove instrumentos construídos pela família: a maioria são Bassets em Fá, e ambos os autores mencionam com especial atenção um trio constituído de Baixo, Basset e Tenor conservados em Merano, que parecem ter pertencido a um mesmo conjunto de flautas.252 Atualmente, o construtor Adrian Brown é o maior pesquisador sobre estes modelos sobreviventes do Renascimento; em seu trabalho, muitas vezes acompanhado do pesquisador Peter van Heyghen, catalogou e estudou detalhadamente os aspectos construtivos de todos os cerca de duzentos instrumentos que sobreviveram até os dias de

248

HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 244. BROWN, Adrian. Op.cit., p. 31. 250 Ibidem. 251 Ibidem. 252 BROWN, Adrian. Op.cit., p. 31; HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 244. 249

132

hoje.253 Tal estudo revelou, segundo Heyghen, que o diâmetro interno dos instrumentos construídos pelos Schnitzer difere enormemente dos demais modelos renascentistas e é exatamente esta característica que permite o instrumento funcionar na extensão mencionada por Ganassi.254 A segunda marca,

, pertence à família Rauch, cuja dinastia de Pfeifenmacher foi

documentada entre 1460 e 1595 no vilarejo de Schrattenbach, na Bavária. Segundo Brown, a marca de um duplo trevo com o cabo virado para a direita,

, foi encontrada em

duas flautas, uma Baixo (Munich) e uma Basset (Salzburg). Ambas possuem gravada em seus anéis a inscrição ”Hans Rauch von Schratt” e ainda, na fontanella do instrumento de Salzburg, “Ihesvs Maria Anna 1535”, isto é, uma flauta construída no mesmo ano de publicação da Fontegara.255 De acordo com Heyghen, nenhum dos inúmeros instrumentos sobreviventes atribuídos aos Rauch funcionam com os dedilhados super-agudos de Ganassi, mas como a maioria destes instrumentos pertence aos tamanhos grandes ou flautas colunares256, é possível que para os tamanhos menores tenham sido feitas alterações similares ao modelo de Schnitzer, pois os dedilhados fornecidos são muito semelhantes. 257 Por fim, a terceira marca,

, motivo de muita especulação entre os pesquisadores,

ainda não foi identificada. Lyndon-Jones

258

, relaciona tal marca à família Bassano,

importantes instrumentistas de sopro e construtores de instrumentos em Veneza, que migraram para a Inglaterra no século XVI. Segundo a autora, a parte de cima de uma das variantes da marca da família assemelha-se a um pequeno “B” espelhado (fig. 49) e que por isso, o modelo de Ganassi poderia ser atribuído à oficina da família. Outro argumento utilizado pela autora se refere ao frontispício da Fontegara (fig. 50); na gravura impressa, estão representados cinco músicos tocando uma polifonia em livros-partes, dos quais, os 253

Ver: BROWN, Adrian. “An Overview of the Surviving Renaissance Recorder”. In: LASOCKI, David (Ed.) Op.cit., p. 77-98. 254 HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 244. 255 BROWN, Adrian. “Renaissance Recorders and their Makers” [...], p. 30. 256 Segundo Heyghen, este é um dos vários modelos de flauta doce que circularam no século XVI e foi desenvolvido pelos membros da família Rauch. Para maiores informações ver: HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 246. 257 HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 244. 258 LYNDON-JONES, Maggie. “A Checklist of Woodwind Instruments Marked !!”, In: The Galpin Society Journal, Hertfordshire, v. 52, 1999. p. 262-263.

133

três do meio estão tocando flautas doces, o da esquerda parece estar cantando uma das partes, e aquele com barba que está na direita, segura uma flauta menor com a mão esquerda enquanto parece estar marcando a battuta com a direita. Na opinião da autora, tais músicos podem ser os cinco irmãos Bassano: John, Jasper, Anthony, Baptista e Alvise; pois em 1535, todos eles ainda se encontravam em Veneza. O caçula, Baptista, que tinha doze anos nesta data, parece ser, para a autora, o quarto músico da esquerda para a direita (que realmente se parece com um menino). Desta forma, o frontispício da Fontegara seria uma clara homenagem de Ganassi à família e por tal motivo, porque o autor não citaria seus instrumentos no conteúdo do tratado? Figura 49.

Figura 50.

134

No entanto, o inverso também é verdadeiro; Brown nos informa que letras capitulares costumam ser características dos construtores de Nüremberg do século XVII259, e por isso podemos crer que é muito provável que o terceiro modelo utilizado pelo autor também seja germânico, uma vez que os outros dois o são. Deste modo, se Ganassi não faz menção alguma aos construtores venezianos, e por conseqüência, aos Bassano, não há razões suficientes para supor que o autor homenageasse os cinco irmãos no frontispício de seu tratado.

259

BROWN, Adrian. Op.cit., p. 30.

135

3.1.1. Os dedilhados da Fontegara. Neste item torna-se necessário fazer um breve comentário a respeito da maneira como Ganassi demonstra os dedilhados da flauta doce nos capítulos 3, 4 e 25 da Fontegara. No capítulo 3, o autor nos explica detalhadamente como interpretar as tabelas (fig. 53): furos pintados de preto designam os lugares onde colocar os dedos para fazer determinada nota, e por conseqüência, furos não pintados devem permanecer abertos; os meios furos estão pintados pela metade e em seus lados, para certificar-se de que não é apenas um erro da imagem, o autor coloca a letra “m”, de metade. Embaixo de cada flauta está colocado seu nome referente ao movimento ascendente, segundo o sistema de solmização; o autor chama tais sílabas de voce.260 A seguir, foi colocado um pentagrama com a posição real das notas, onde vemos três claves diferentes em seu início: fá na terceira linha para os dedilhados da flauta Baixo; dó na terceira, para a Tenor; e dó na segunda para a Soprano. Embaixo do pentagrama estão as sílabas [voce] referentes aos nomes das notas no sentido descendente. É interessante notar que para o leitor não se esquecer de que as sílabas inferiores, ao contrário das superiores, servem para a descida das notas, o autor às vezes coloca as letras invertidas como se tivéssemos que ler da direita para a esquerda.

Figura 51.

260

Ver: HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 264.

136

Assim, para decifrar melhor as figuras, é necessário entender um pouco sobre o sistema de solmização. Criado por Guido de Arezzo no século XI, a solmização é um sistema mnemônico de solfejo, que associa determinadas sílabas – no caso, ut re mi fa sol la, retiradas das primeiras sílabas do hino a São João, Ut queant laxis – com alturas musicais definidas.261 Cada cantor ou instrumentista, instruído em tal sistema, deveria saber que o semitom está sempre sobre a seqüência mi fa e deste modo, para executar os demais semitons de uma melodia, é preciso emendar os hexacordes (seqüências de ut re mi fa sol la). Neste sistema, existem três tipos de hexacordes: o “natural” ou per natura, que inicia na nota dó; o “duro” ou per b quadro, que inicia na nota sol; e o “mole” ou per b molle, que inicia na nota fá (ex. 1). Exemplo 1.262

O nome real das notas era escrito através do sistema de letras – A B C D E F G a b c d e f g aa bb cc, etc. – mas, sua altura definida só era identificada através de “palavras” que eram compostas juntando tais letras com as sílabas de solmização, como em “A Re”, “B Mi”, “G Sol Re Ut”, “a La Mi Re”, etc. (ex. 2).

Exemplo 2.

261

HUGHES, Andrew. “Solmization [solfatio, solmifatio]”, The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 262 As figuras 2 e 3 foram retiradas de PACCHIONI, Giorgio. Selva di varî Precetti. Vol. 1: Elementi della Musica Figurata, p. 7.

137

Tais “palavras” ainda deveriam ser decoradas para que o cantor pudesse saber qual hexacorde usar nas mudanças necessárias para englobar todos os semitons da melodia a ser cantada. Para ajudar a memória, essas palavras eram colocadas em lugares específicos da mão e cada cantor decorava as partes referentes ao seu registro de voz; tais marcações ficaram conhecidas pelo nome de “mão guidoniana” (fig. 54). Figura 52.

Retornando à Fontegara, para as treze notas comuns, Ganassi nos informa que na primeira tabela (fig. 2), os dedilhados “produzem” três efeitos diferentes, cada um para seus respectivos tamanhos de flauta:

Primeiramente virá a ordem do soprano na propriedade de bequadro, cuja ordem te produzirá três efeitos: primeiro por si, segundo pelo tenor na propriedade de bemol e terceiro pelo baixo na propriedade de música ficta.

Isto significa que os dedilhados desta tabela geram na flauta Soprano uma seqüência de notas naturais, isto é, sem acidentes; na flauta Tenor, o mesmo dedilhado produzirá um acidente que é o si bemol; e na Baixo, dois, que são o si bemol e o mi bemol. Por “Música ficta”, entendemos a transposição de um hexacorde, ocorrida toda vez que se necessitar produzir um acidente além do si bemol, isto é, no caso dos dedilhados de Ganassi, para 138

produzir o mi bemol é preciso transpor o hexacorde de modo que a sílaba ut caia sobre o si bemol (ex. 4). Sendo assim, as sílabas ascendentes da primeira tabela (ex. 2) iniciam, para o Soprano, no hexacorde duro; na quinta nota, as sílabas transmutam para o hexacorde natural para fazer o semitom em “mi-fá” e na oitava nota retornam para o hexacorde duro, para fazer o semitom em “si-dó”. Para a escala descendente, da mesma forma, inicia-se na nota mi com a sílaba la, que faz parte do hexacorde duro; na quinta nota, da direita para a esquerda, transmuta-se para o hexacorde natural, e na oitava retorna para o hexacorde duro até o final (ex. 2). Exemplo 2.263 Tabela 1 – Soprano.264

263

Para uma melhor compreensão do processo, desmembramos todas as tabelas do capítulo 3 em várias partes, de modo a tratar os efeitos do dedilhado em cada um dos três tamanhos de flauta individualmente. Para ver as tabelas originais, retorne na página 87, figuras 32 a 37. 264 Para cada tipo de hexacorde circulamos as sílabas com cores diferentes: preto para os hexacordes naturais; verde para os hexacordes duros; azul para os hexacordes moles; e vermelho para os hexacordes fictos em si bemol.

139

Estes mesmos dedilhados e sílabas, ascendentes e descendentes, causam outros hexacordes para a flauta Tenor por causa do si bemol (propriedade de bemol). Isto é, ascendentemente, inicia-se com o hexacorde natural, na quinta nota transmuta-se para o hexacorde mole para “produzir” o si bemol e na oitava nota, retorna ao hexacorde natural (ex. 3). Descendendo, de direita para a esquerda, inicia com o hexacorde natural, transmuta para o hexacorde mole na quinta nota, e retorna para o hexacorde natural na oitava nota (ex.3).

Exemplo 3. Tabela 1 – Tenor.

Para que o dedilhado da flauta Baixo (ex. 4) produza o primeiro si bemol, a solmização inicia-se ascendentemente no hexacorde mole; na quinta nota, transmuta-se 140

para o hexacorde transposto (ficto) que começa no si bemol, de modo a produzir o mi bemol quando as sílabas passarem por mi fa; na oitava nota, retorna-se ao hexacorde bemol para fazer o outro si bemol. Descendentemente, inicia-se com o hexacorde mole, transmuta para o hexacorde ficto na quinta nota e retorna ao hexacorde mole na oitava nota (ex. 4).

Exemplo 4. Tabela 1 – Baixo.

Continuando no mesmo raciocínio, na segunda tabela os dedilhados produzem os seguintes efeitos:

Depois segue uma outra dedução do soprano em propriedade de bemol, o qual produzirá dois efeitos: primeiro por si e segundo pelo tenor em propriedade de música ficta.

Assim, nesta tabela, estão os dedilhados para tocar o si bemol na Soprano e o mi bemol na Tenor. Para a Soprano, as sílabas utilizadas iniciam no hexacorde mole, sem a 141

primeira sílaba, pois a nota mais grave desta flauta é o sol (ré no hexacorde mole); na quinta nota, transmuta-se para o hexacorde natural; na oitava, retorna ao hexacorde mole; e na décima segunda transmuta-se novamente para o hexacorde natural. Do mesmo modo, descendendo da esquerda para a direita, inicia-se no hexacorde natural; na segunda nota transmuta para o hexacorde mole; na quinta nota retorna para o hexacorde natural; e na nona nota, transmuta novamente para o hexacorde mole (ex. 5).

Exemplo 5. Tabela 2 – Soprano.

Para a Tenor, portanto, inicia-se ascendentemente com o hexacorde ficto em si bemol, na quinta nota transmuta-se para o hexacorde mole, na oitava retorna ao ficto em si bemol e na décima segunda, novamente para o hexacorde mole. Descendo, inicia-se com o hexacorde mole, transmuta para o hexacorde ficto em si bemol na segunda nota, retorna ao hexacorde mole na quinta nota e transmuta para o ficto novamente na nona nota (ex. 6)

142

Exemplo 6. Tabela 2 – Tenor.

A terceira tabela produz um só dedilhado, para a Soprano com alteração em si e mi bemol. As sílabas iniciam no hexacorde mole; transmutam, na quarta nota, para o hexacorde ficto em si bemol; retornam na sétima nota ao hexacorde mole; e transmutam na décima primeira nota para o hexacorde ficto. Da esquerda para a direita, iniciam no hexacorde ficto, passam na segunda nota para o hexacorde mole, retornam na sexta nota para o hexacorde ficto e transmutam novamente para o hexacorde mole a partir da nona nota (ex. 7).

143

Exemplo 7. Tabela 3 – Soprano.

Para a quarta tabela, Ganassi dá a seguinte explicação:

Depois segue a ordem do tenor por bequadro, o qual produz dois efeitos: um por si e outro pelo baixo em propriedade de bemol.

Isto é, os dedilhados da Tenor, sem acidentes e da Baixo apenas com si bemol. Para a Tenor, ascendentemente, inicia-se com o hexacorde natural, transmuta na sexta nota para o hexacorde duro a fim de realizar a passagem “si-dó” e retorna ao hexacorde natural na oitava nota. Descendo, inicia-se com o hexacorde natural, transmuta na quarta nota para o hexacorde duro e retorna na nona para o hexacorde natural (ex. 8).

144

Exemplo 8. Tabela 4 – Tenor.

Para a Baixo em propriedade de bemol, inicia-se com o hexacorde mole, na sexta nota transmuta para o hexacorde natural e na oitava nota retorna para o hexacorde mole. Descendo, inicia-se com o hexacorde mole, transmuta na quarta nota para o hexacorde natural e retorna na nona nota para o hexacorde mole (ex. 9)

145

Exemplo 9. Tabela 4 – Baixo.

A quinta tabela serve somente para a flauta Baixo e produzirá notas sem acidentes. As sílabas de solfejo iniciam no hexacorde natural, na terceira nota transmutam para o hexacorde duro, na quinta nota retornam ao hexacorde natural e na décima transmutam novamente para o hexacorde duro. Descendentemente, as sílabas iniciam no hexacorde duro, na quarta nota transmutam para o hexacorde natural, na sétima nota retornam ao hexacorde duro e na décima primeira transmutam novamente para o hexacorde natural (ex. 10).

146

Exemplo 10. Tabela 5 – Baixo.

A sexta tabela nos mostra as seguintes alterações, isto é, os acidentes para todas as flautas: si natural, mi natural, dó sustenido, fá sustenido e sol sustenido (ex.11). Para a notação das sete notas super-agudas do capítulo 4 (ex.16), Ganassi utiliza um sistema diferente: tais notas são mostradas apenas para o Soprano em uma pauta de nove linhas sem o acompanhamento das sílabas de solmização. Segundo Paolis, o fato de cada nota aparecer duas ou três vezes distanciadas entre si por intervalos de oitava, serve para indicar que tais notas super-agudas derivam dos harmônicos de seus sons inferiores.265

265

PAOLIS, Luca de. “Introduzione”. In: GANASSI, Silvestro. Op. cit., p. 6.

147

Exemplo 11. Notas super-agudas – Modelo Schnitzer.

Nas duas tabelas do capítulo 25, estão os dedilhados para os trêmulos suaves e vivazes nas treze notas comuns da flauta. Estas tabelas (fig. 17 e 18) estão notadas apenas para a Soprano na propriedade de bequadro, isto é, sem os acidentes. Sobre cada desenho de flauta, Ganassi marca com a letra “V” ou “S” para que o leitor possa diferenciar um trêmulo vivaz daquele suave. Também são marcados com a letra “t”, os furos que devem ser tremulados. Tais furos produzem trêmulos entre intervalos menores que o semitom, o que provoca apenas a sensação de vibrato, semelhantemente a um flattement da música barroca francesa, até aquele de uma terça, para os ornamentos vivazes. Note-se que, ao contrário dos flattements, todos os trêmulos são feitos alternando as notas reais com outras notas superiores.

148

Exemplo 12.

Exemplo 13.

149

Entretanto, o que mais impressiona nestas duas tabelas não são os dedos tremulados, mas as digitações que ele fornece para os ornamentos vivazes e suaves. O que determina cada um desses dois afetos, suave e vivaz, não é somente o tamanho do intervalo tremulado, mas também o uso de dedilhados alternativos que sugerem uma execução rica em dinâmicas. Note-se que no final do capítulo, o autor nos adverte sucintamente sobre tal prática:

Nota que podes fazer cada nota suave deste modo: descobrindo um pouco o furo e dando-lhe bem pouco sopro, se bem não coloco [isso] em todos os furos.

O uso de dedilhados alternativos para causar efeitos de dinâmica, geralmente é associado à técnica contemporânea do instrumento e seu uso no repertório antigo é sempre motivo de polêmica. Hauwe, autor da mais importante obra sobre a técnica da flauta doce no século XX, sugere que o uso de dedilhados alternativos como recurso de dinâmica é fruto da técnica moderna do instrumento:

No passado, dedilhados alternativos eram utilizados principalmente para a conveniência do executante. Trilos fisicamente incômodos, como 01234 67–0123 56 ou 01 3 56–0 2, e trilos entorno a mudanças de registro, como 2–012345 ou 012-0124567 e outros, eram e ainda são muito auxiliados por dedilhados alternativos. Mas variar dinâmicas e cores pode também ser importantes razões para usá-los.266

Ainda no capítulo 24, quando Ganassi nos explica sobre a prontidão, disse que esta deriva do sopro e só pode ser demonstrada pela experiência. Mas logo em seguida nos informa que para conhecer o efeito da prontidão extrema é preciso proceder primeiro com um sopro pianíssimo e depois com um fortíssimo. Aqui está claro que aquilo que o autor entende por prontidão está relacionado com a técnica de sonoridade do instrumento, isto é, respiração, apoio e emissão de ar, elementos estes que só serão incorporados à técnica de cada um através da experiência e do estudo diligente. Para realizar os trêmulos tanto suaves quanto vivazes é preciso conhecer os limites sonoros do instrumento axiliando a dinâmica com dedilhados alternativos. 266

HAUWE, Walter van. The Modern Recorder Player. Vol. III. Londres: Schott, 1992, p. 21.

150

Assim, como podemos ver pelas tabelas, para executar a primeira nota suave, “sol”, deve-se abrir um pouco o sétimo furo, o que com o sopro médio causaria o elevar da afinação; por conseqüência, uma quantidade bem menor de ar deveria ser utilizada no instrumento para que tal nota saia devidamente afinada. Ocorrerá o mesmo com todas as outras notas para o trêmulo suave. Ao longo de toda a Fontegara, Ganassi nos transmite uma certa liberdade criativa na relação interprete/instrumento, que permite ao músico desenvolver uma técnica rica em novos recursos, muito semelhante àquela que a música contemporânea nos proporciona. Embora sejam estilos musicais completamente diferentes, as variantes expressivas continuam as mesmas, seja na criação de efeitos de dinâmica, nas diferença de articulação, ou ainda no inventar novos dedilhados que permitem executar notas além da extensão comum do instrumento.

151

3.1.2. A flauta “Ganassi” nos séculos XX e XXI. Encontrar um instrumento aparentemente perdido, que tivesse a sonoridade diferente daquela dos modelos barrocos, que funcionasse em uma extensão de duas oitavas e uma sexta a partir dos dedilhados fornecidos por Ganassi e que pudesse ser utilizada pelos flautistas modernos para a execução da música da Idade Média até o repertório solistas do final do século XVI, como os Ricercari de Bassano e de Virgiliano, e da primeira metade do século XVII, como as sonatas de Castello, Fontana, Frescobaldi, Riccio e as diminuição de Jacob van Eyck, impulsionou os construtores da década de 1970 a buscarem uma solução através do estudo dos instrumentos originais que sobreviveram nos acervos dos museus da Europa e outras partes do mundo.267 Nesta busca, destacaram-se os modelos desenvolvidos pelo canadense Bob Marvin e pelo australiano Fred Morgan, sobre os quais ocorreu um grande debate no início dos anos de 1990 a respeito de quem teria sido o primeiro a desenvolver a flauta modelo “Ganassi”.268 Tal instrumento diferencia-se dos demais modelos renascentistas por seu formato cilíndrico com uma abertura no final tipo campana e por seus furos largos que permitem ao instrumento uma sonoridade mais potente e flexível além da ambicionada extensão contida no capítulo 4 da Fontegara. As pesquisas de Marvin e Morgan foram conduzidas em 1975 independentemente, o primeiro, após testar a habilidade que as flautas originais tinham para tocar ou não as notas super-agudas de Ganassi, elegeu uma flauta “contralto” em sol de marfim que está em Paris como modelo de seu protótipo.269 Marvin também realizou um estudo iconográfico, medindo as flautas desenhadas no frontispício da Fontegara e comparando-as proporcionalmente com os rostos dos músicos ali representados. Por outro lado, Morgan se baseou em uma flauta em sol que está catalogada como SAM 135 no acervo do Kunsthistorisches Museum de Viena (fig. 54). Apesar de estar com 267

ZANIOL, Angelo. “Il punto sul flauto diritto ‘Ganassi’, nota di organologia”, Venezia Arti, vol. 2, 1988, p. 69-74. BROWN, Adrian. “The Ganassi Recorder: Separating Fact from Fiction”, American Recorder 47, no.4 (Nov. 2006), p. 15 e 17. 268 BROWN, Adrian. Op.cit., p. 15. 269 Ibidem.

152

o voicing gravemente danificado, o corpo da flauta, segundo o construtor, tinha o formato cilíndrico com a expansão na campana capaz de auxiliar o funcionamento de tais dedilhados.270 A partir das medidas tomadas e de alguns ajustes necessários, Morgan desenvolveu uma flauta em sol de marfim, com afinação A=440, para o flautista e amigo, Frans Brüggen (fig. 54):

Fred Morgan para Frans Brüggen, 6/12/1974. A flauta Ganassi! Eu fiz alguns poucos instrumentos, estritamente baseados em contraltos por mim medidas, que tocarão duas oitavas e uma sexta, isto é c’- a’’’ na tenor, soando f’- d’’’ na contralto. A maior parte dos dedilhados de Ganassi funciona nestes instrumentos, mas eu acho que o f’’’da contralto 01234567 é um pouco alto e necessita sombrear com os joelhos; e também só consigo obter o c’’’’ 01-34-6- com joelho. As duas notas mais altas necessitam um ataque muito forte (como um coice de cavalo de corrida). Ainda não refinei totalmente o voicing, e pode ser que estas duas notas vão melhorar. As outras, acho que estão aceitáveis. A afinação é ca. 440 – tudo bem? Umas poucas notas agudas podem ser tocadas com forte apoio e criativos dedilhados. [...] Frans Brüggen para Fred Morgan, 5/09/1976 Tenho estudado a sua flauta em sol que levei comigo para a Itália. É simplesmente MARAVILHOSA, Fred, e eu sinto que você tem se superado – e a qualquer um por este motivo. Eu acho que todos os seus dedilhados funcionam bem. [...] pensando bem, pode ser melhor idéia ainda me mandar uma na afinação do Kees e do Walter, 440. Eu poderia então usar melhor aquele instrumento em recitais com o Leonhardt e usar esta para ricercari solos, etc. 271

270

MORGAN, Fred. Op.cit., p.65. Correspondência entre Morgan e Brüggen acrescentada por Gisela Rothe ao final de MORGAN, Fred. Op.cit., p. 67. 271

153

Figura 53.

Figura 54.

154

Para Brown, foi a partir da publicação dos resultados do trabalho de Morgan na revista Early Music272 que, embora o autor tenha sido bem reservado ao anunciar seu novo instrumento como uma cópia derivada diretamente do trabalho dos antigos construtores e não a descoberta do exato instrumento utilizado por Ganassi, nasceu o mito em torno ao instrumento. Tal concepção pode muito bem ser entendida através das palavras de Zaniol em seu artigo publicado em 1988, também mencionado por Brown273:

Se este enigma foi finalmente solucionado, é graças à pesquisa de Fred Morgan, o genial construtor de flautas australiano, incitado por seu amigo Frans Brüggen, príncipe dos flautistas contemporâneos. Iniciando a partir de algumas considerações teóricas de natureza simples, [...] o Sr. Morgan lembrou que naquela inesgotável mina, o Kunsthistorisches Museum de Viena, sobrevivia uma flauta renascentista em g’ com um corpo incomum, sobre o qual ninguém prestou muita atenção [...]. Uma cópia desta flauta, levemente modificada para corrigir certas notas desafinadas, provou que a sua intuição era certa – aqui de fato estava o instrumento procurado por tanto tempo. Tal redescoberta é memorável porque tal flauta, como Ganassi disse, é capaz de façanhas verdadeiramente emocionantes.

Na realidade Ganassi nunca escreveu nada semelhante a respeito dos modelos utilizados e nem do uso do instrumento como solista, como se pode ver na tradução que está no capítulo 2. Além disso, outros fatores contribuíram para a propagação do modelo criado por Morgan e a sua conseqüente fama. Segundo Brown, no início dos anos 80, Morgan viveu na Holanda, tendo lecionado, durante a sua estadia, a disciplina de construção de flautas doces no Conservatório Real de Haia, onde generosamente distribuiu entre os alunos a planta para a construção da flauta “Ganassi”.274 Tal planta, circulou imediatamente entre a comunidade dos construtores de flautas e dela descende a grande maioria dos instrumentos construídos e vendidos como “Ganassi” hoje em dia.

A

disseminação do instrumento em Haia, seja através da planta de Morgan ou das gravações que Brüggen realizou com o instrumento, causou um impacto imediato no meio flautístico, fazendo com que houvesse um grande interesse da parte dos intérpretes e também dos

272

MORGAN, Fred. “Making Recorders Based on Historical Models”, Early Music 10, no.1, (1982), p. 1421. 273 ZANIOL, Angelo. “Il punto sul flauto diritto ‘Ganassi’, nota di organologia”, In: Venezia Arti, Roma, v. 2, 1988, p. 69-74. BROWN, Adrian. Op.cit., p. 18. 274 BROWN, Adrian. Op.cit., p. 18.

155

compositores, que viram no instrumento uma nova gama de possibilidades para a música contemporânea que os modelos barrocos não proporcionavam. Neste sentido, segundo o catálogo fundado por Walter van Hauwe275, hoje existem cerca de quarenta obras contemporâneas dedicadas ao instrumento (tab.1). Entretanto, em 1996, a pesquisadora Lyndon-Jones, durante a catalogação das flautas Bassano que estão no museu de Viena, analisou também os oito raros estojos para conjuntos de flautas (fig. 56) que estão preservados no museu. Um destes estojos, catalogado sob o número SAM 171, possuía uma pequena marca “!!”, associada aos Bassano. Curiosamente, em tal estojo, que era para um quarteto de flautas formado por uma flauta tenor em dó, duas contraltos em sol e uma soprano em ré, cabia exatamente no lugar da contralto, a célebre flauta SAM 135. Figura 55.

Segundo Brown, pensar que tal instrumento nada mais era do que a segunda voz de um normal quarteto de flautas do século XVI foi um grande choque para muitos, inclusive ele.276 A partir de tal descoberta, novas pesquisas foram realizadas e constatou-se que tais dedilhados eram também possíveis em outros instrumentos sobreviventes, dentre eles, cerca de dez flautas marcadas com o duplo

da família Schnitzer e outras ainda com a

marca dos Bassano. Além disso, outros tamanhos, como uma Tenor de Bolonha, uma Tenor 275 276

Stichting Blokfluit: < http://www.blokfluit.org/> , acesso em 10 de julho de 2010. BROWN, Adrian. Op.cit., p. 20.

156

e uma Basset em Roma, uma Basset em Hamburgo, e uma Tenor com chaves e outra menor em Viena, também são capazes de produzir tais notas agudas através dos dedilhados de Ganassi. Entretanto, segundo Brown, apenas 12% dos instrumentos sobreviventes são capazes de executar tais notas.277 A partir da década de 2000 pesquisas mais acuradas foram realizadas em relação ao uso da flauta doce nos séculos XV e XVI, e um real panorama dos vários os aspectos desta prática, podemos encontrar nos excelentes artigos referentes ao Simpósio Internacional Musicque de Joye, realizado em 2003 na cidade de Utrecht e publicados por Lasocki em 2005.

278

Como vimos no decorrer deste Sub-capítulo, estudos como os de Polk, Heyghen,

Brown e Lasocki, nos mostram que as flautas doces utilizadas na época de Ganassi eram na maioria das vezes empregadas em conjuntos inteiros ou mistos para a execução de um repertório fundamentalmente de origem vocal polifônica. Seu uso como instrumento solista para a execução de um repertório que abrange a Idade Média e todo o repertório solista do século XVII parece-nos, sob tal ótica, um pouco fora de propósito. No entanto, temos que levar em consideração que, devido a pouca difusão dos modelos de transição, mais adequados para o repertório solista do século XVII, a flauta “Ganassi” ainda é o modelo mais utilizado e disponível no mercado.

277

Ibidem, p. 21. LASOCKI, David. (Ed.) Musicque de Joye. Proceedings of the International Symposium on the Renaissance Flute and Recorder Consort, Utrecht 2003. Utrecht: STIMU, 2005.

278

157

Tabela 1: Obras Contemporâneas para Flauta Ganassi279 ???? ???? ???? ???? 1977 1983 1984 1985 1986 1986 1987 1988 1989 1989 1989 1989 1990 1991 1991 1993 1993 1994 1995 1995 1996 1996 1997 1997 1997 1997 1998 1998 1999 2000 2000 2001 2001 2003 2003

Rachel Cogan Ros Bandt Willem W. van Nieuwkerk Willem W. van Nieuwkerk Herman Rechberger Kees Boeke Ros Bandt Kees Boeke Georg Nussbaumer Georg Nussbaumer Conrad Steinmann Jan Rokus van Roosendael Gabriela Ortiz Jeff Hamburg Marcela Rodriguez Nikolaj Tarasov Graciela Agudelo Hilda Paredes Rodolfo Ramirez Hans-Jürg Meier Matthias Arter Moritz Eggert Calliope Tsoupaki Christiane Martini Robin Bradley Zana Clarke Conrad Steinmann Gerhard Braun Vanessa Lann Zana Clarke Matthias Kadar Rodney Waterman Georg Bonn Geoff Cox Jörg Partzsch M. Alejandra Castro Espejo Sohrab Uduman Boudewijn Cox Sanvido

Absence and For Fardin Tank Piece n.9 Intro Quartet Consort Music 2 Lacrime Sub Terra The Circle Ricercata cieca sopra Amarilli mia bella Ricercata cieca sopra Pav. Lachrymae Sisyphos Rotations Huítzitl Ronde Lamento Miroir Arabesco Ikal Estancias Presso il Passo di Cristallina Solo 1993 Außer Atem(Breathless) Charavgi La Luna Introduction & Passaglia Behind My Right Shoulder Remember Something about H In the Moment Shadow Dancer Soulagé à Maireke Zana Volatile Songs Pertaining to trees Found Footage Miniaturen Marginale Ruimte Contour Niim Pfeil im Garten

279

A S AT ATBB A e Orquestra A T A A A T A S AAA T SA T* A A FlVoz* B* A B* SA A S* A A A A Voz S415* A440 T A A T B CB Matthias Kadar A A e Egg shaker A e Tape A e A* S A* T* S SBp A e Live Eletronics S* A S

Legenda: S, A e T = “Ganassi” Soprano, Alto e Tenor; B e CB = Baixo e Contrabaixo Renascentistas; SBp = Subcontrabaixo Paetzold. Letras com (*) referem-se aos modelos barrocos.

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3.2. Aspectos técnicos da flauta doce que possibilitam o tocar artificioso segundo Ganassi. Como todo tratado do século XVI, Ganassi inicia a Fontegara afirmando que todos os instrumentos são inferiores à voz humana e por isso no tocar de flauta, devemos nos esforçar para aprender com ela e imitá-la. A flauta doce neste momento toma a conotação aristotélica de melhor imitadora da voz humana, uma vez que ambas possuem a mesma origem, ou seja, o sopro como fonte produtora de som.280 Frings, analisando uma tela de Niccolo Frangipane (1560-1600), menciona que a ligação da flauta doce com a natureza se dá pela sua incrível habilidade de imitar a voz humana, assim como também pelo material de sua constituição, a madeira. Segundo a autora, é por esse motivo que o instrumento se tornou tão popular no século XVI entre músicos e pintores.281 Groos, em concordância, afirma que: Na arte pictórica, a flauta doce ganhou entrada como instrumento elevado a partir da segunda metade do século XV e passa a aparecer, além de instrumento pastoril, como atributo da música dentro das artes liberais, em compêndios de temas mitológicos misturados com elementos coevos cortesãos e, a partir do início do século XVI, como objeto digno de representação no âmbito musical privado. Essas representações apareceram simultaneamente com o ímpeto vivido em toda Europa por composições para flauta doce. 282

Para Heyghen, os sopros de madeira constituem uma privilegiada categoria de instrumentos, devido a sua estreita afinidade com a voz humana e a prática dos cantores.283 Em relação à flauta doce, tal privilégio e capacidade de imitação refletem-se diretamente em três fatores: no repertório, constituído predominantemente de obras vocais; na construção dos instrumentos, que segundo o autor, cada modelo da grande variedade de flautas doces que o século XVI produziu, reflete um tipo específico e regional de técnica ARISTÓTELES. Ars Poética. Edición Trilingüe por Valentín García Yebra. Madrid: Editorial Gredos, 1974, p. 244, nota 11. 281 FRINGS, Grabriele. “The ‘Alegory of Musical Inspiration’ by Niccolo Frangipane: New Evidence in Musical Iconography in Sexteenth-Century Northern Italian Painting.” Artibus et Historiae, Vol. 14, No. 28 (1993), p. 151-152. 282 GROOS, Ulrike. Op.cit. p. 84. 283 HEYGHEN, Peter van. Op.cit., p. 238. 280

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vocal; e por fim, nos tamanhos dos instrumentos, organizados segundo os hexacordes do sistema de solmização comumente utilizados pelos cantores. 284 Tal imitação da voz humana é para Ganassi o principal elemento do chamado tocar artificioso; seguido da prontidão, que é o domínio da técnica; e da galanteria que é o ornamento. E estes elementos são tão interligados que jamais podem ser exercitados separadamente. Assim, para que a imitação através da flauta seja bem sucedida é necessário adquirir, através da experiência, uma boa técnica capaz de executar em tal instrumento, movimentos semelhantes aos produzidos pelo objeto imitado. O autor nos informa sobre tais movimentos, afirmando que a voz humana varia o seu tubo, isto é, a laringe (onde estão as cordas vocais), variando-o com mais ou menos audácia (entenda-se intensidade) e com vários tipos de proferires. Assim, a flauta deve imitar tais efeitos, utilizando a proporção do sopro e a oclusão da língua, ou seja, variando a pressão do ar utilizado para criar uma sonoridade flexível e com acentos diversos, e utilizando as várias sílabas de articulação. Sobre este trecho do capítulo 1, devemos tomar nota sobre um erro contido em todas as traduções da Fontegara, com exceção da versão em italiano moderno de Salvatore.285 Tais traduções indicam que a voz será imitada através “da proporção do sopro e da oclusão da língua, com o auxílio dos dedos”. Pensando de que maneira os dedos podiam ajudar a oclusão da língua, verificamos que a palavra no original é “deti” e dedos, no plural, em italiano é “dita”. A “tradução” oferecida por Salvatore mostra que a flauta imita o proferir com o sopro e “a oclusão da língua, com o auxílio dos dentes”, o que faz mais sentido, uma vez que a língua para interromper o sopro ao produzir uma articulação, necessita obrigatoriamente da barreira natural dos dentes. Deste modo, o motivo de tal confusão pode ser a falta do sinal (~) na palavra “deti”, que indica nessa tipologia utilizada por Ganassi, a letra “n” ou “m”, como neste exemplo:

284 285

, isto é, “ascendendo”.

Ibidem, p.308. SALVATORE, Daniele. Op.cit., p.11.

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Outra interpretação é dada pela pesquisadora Hadden286, que ao encontrar uma passagem de Zacconi que ensina a corrigir a afinação dos instrumentos de sopro com o sombreamento dos furos feito pelos dedos, afirmou que o texto da Fontegara era uma referência a esta mesma prática. No entanto, embora seja plausível que em uma execução com crescendos e diminuendos como sugere Ganassi é necessário corrigir a afinação com o dedilhado (pois a flauta doce não possui uma gama de dinâmicas tão ampla como os demais instrumentos de sopro), se tal afirmação fosse verdadeira a expressão “com a ajuda dos dedos” deveria estar conectada com o sopro e não com a articulação, como parece bem claro no texto. Do mesmo modo, se fossem três fatores diferentes, articulação e “dedos” estariam separados por um “&”. Nesta passagem, acreditamos que Ganassi apenas está dividindo a imitação em “sopro” e “articulação”, o que não pode ser confundido também com os três elementos que o instrumento flauta requer ao tocar, como está no capítulo 2. Note-se que quando o autor menciona os dedos utilizados para produzir as notas ele sempre usa a palavra “mão”:

Este instrumento, denominado flauta, requer três coisas: a primeira, o sopro; a segunda, a mão; e a terceira, a língua.

Continuando o discurso sobre a imitação, Ganassi nos informa no capítulo 2, como o “sopro” deve proceder ao imitar o proferir da voz:

Quanto ao sopro, a voz humana como mestra nos ensina que deve ser produzido medianamente; porque quando o cantor canta alguma composição com palavras placáveis, faz a pronúncia placável; se [canta uma composição] jocunda, [faz] com o modo jocundo. Porém, querendo imitar tal efeito, produzir-se-á o sopro mediano, de modo que se possa crescer e diminuir no momento certo.

Tal definição é reforçada e ampliada no capítulo 24 e 25:

A imitação, portanto, deve imitar a voz humana, isto é, às vezes cresce e diminui para imitar a natureza das palavras, como declarei no segundo capítulo, o qual

286 HADDEN, Nancy. “In Search of the Sound of a Fiffera” In: LASOCKI, David. (Ed.) Musicque de Joye. Proceedings of the International Symposium on the Renaissance Flute and Recorder Consort, Utrecht 2003. Utrecht: STIMU, 2005, p. 189.

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ensina a maneira de proceder com o sopro. A imitação que fazes em uma mesma nota, com artifício, tem os vários efeitos, suaves e vivazes, assim como faz a voz humana. (Cap. 24) Sabe que o teu mestre será o suficiente e perito cantor, com sabes. O qual, quando a ele é dado algum canto, primeiro considera sanamente a natureza das palavras dessa composição, isto é, se tais palavras são de natureza alegre, ele [canta] com o seu modo e voz alegre ou vivaz. Se são lamentosas e placáveis, então, ele transforma tal pronuncia em modo suave e lamentoso. Assim procederás: se as palavras serão suaves e lamentosas, o teu tocar também [será] lamentoso. Se alegres, com o tocar alegre e vivaz. E daqui nascerá, como anteriormente entendeste, o imitar da voz humana. (Cap. 25)

A respeito do cantor, que devemos ter como mestre, Zarlino nos informa de modo muito semelhante aquilo que devem observar ao cantar:

Devem, portanto, os cantores estarem advertidos em cantar corretamente aquelas coisas que estão escritas segundo a mente do compositor, afinando bem as notas [voci] e colocando-as em seu devido lugar; procurando acomodá-las à consonância e cantar segundo a natureza das palavras contidas na composição, de modo que, quando as palavras contêm matérias alegres, devem cantar alegremente e com movimentos galhardos; e quando contêm matérias tristes, [devem] mudar de propósito.287

Além disso, de acordo com Hadden, os cantores deveriam também imitar as inflexões e os acentos utilizados na poesia e no falar comum da língua Toscana, produzindo pequenos crescendos e decrescendos em sílabas acentuadas e longas notas da composição.288

Tais acentos a serem inflexionados através da “audácia” da voz ou do

sopro do flautista, são facilmente identificados nas obras dos compositores italianos do século XVI, que privilegiavam os acentos da fala com movimentos ascendentes e o uso de notas de maior duração. Um interessante exemplo desse procedimento foi exemplificado pela autora no madrigal de Cipriano de Rore, Ancor che col partire (ex.1).

“Debbeno adunque li Cantori avvertire di cantar corettamente quelle cose che sono scritte secondo la mente del Compositore; intonando bene le voci, & ponendole ai loro luoghi; cercando di accommodarle alla consonanza & cantare secondo la natura delle parole contenute nella compositone, in tal maniera che quando le parole contengono materie allegre debbeno cantare allegramente & con gagliardi movimenti, & quando contengono materie meste, mutar proposito.” ZARLINO, Gioseffo. Op.cit., Parte Terza, Cap. 45, p. 204. 288 HADDEN, Nancy. Op.cit., p. 191-192. 287

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Exemplo 1.

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Tal procedimento parece-nos um tanto semelhante com a indicação do capítulo 24, onde está escrito que a “imitação que fazes em uma mesma nota, com artifício, tem os vários efeitos, suaves e vivazes, assim como faz a voz humana”. Isto é, se a sílaba que está sob uma determinada nota, é acentuada, devemos executá-la com o efeito vivaz, que é causado pelo sopro forte; ao contrário, se não é acentuada, devemos utilizar o sopro fraco ou efeito suave como faz a voz humana. Outra possibilidade para essa afirmação é dada por Salvatore, que a interpreta como a sendo a primeira referência ao ornamento chamado messa di voce,289 que nada mais é do que executar em uma mesma nota um crescer e decrescer gradativo de intensidade, ornamento que será muito apreciado pelo estilo da Seconda Prattica. A partir do que foi discorrido acima, podemos concluir que a imitação feita pelo sopro deve crescer e decrescer segundo a natureza das palavras e segundo os acentos da prosódia da língua italiana. O segundo elemento da imitação, que é a articulação, deve fazer a pronúncia também segundo a natureza das palavras. A este respeito, Ganassi nos informa que, ouvindo outros músicos, percebeu que eles eram capazes de fazer-se entender com tal tocar, de modo que “poder-se-ia dizer que àquele instrumento, não falta nada além da forma do corpo humano”.290 O sistema de articulação ensinado pelo autor é baseado em três movimentos de duas sílabas cada um. Tais movimentos causam no tocar, três efeitos diferentes classificados como cru e áspero: te ke, te ke, te ke; intermediário: te re te re te re; e agradável ou plano: le re le re le re; e são considerados movimentos completos. Entretanto, ao utilizar na execução apenas uma sílaba, como te te te, ou de de de, tal articulação é considerada incompleta. Nota-se que quando se executam essas articulações de uma sílaba só, com velocidade, a vogal acaba sendo suprimida automaticamente e esse é o efeito que Ganassi parece querer indicar quando nos mostra articulações de uma letra só: t t t t e d d d. No capítulo 7, Ganassi também faz referência a este fenômeno da articulação quando trata da execução com velocidade. Segundo o autor:

289 290

SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 61. Fontegara, cap.1.

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o terceiro movimento das línguas originais, não produz outro efeito além de servir como metade de uma sílaba, como eu disse anteriormente. Nota que querendo exercitar-te em algum movimento destas línguas supracitadas, na primeira original, investigarás algumas daquelas sílabas que te agradam e, ao exercitá-las com freqüência, as farás veloz. Na original intermediária, farás semelhantemente, mas também neste modo com velocidade, [da maneira] como se destaca uma sílaba de três letras, isto é: tar ter tir tor tur; dar der dir dor dur; kar ker kir kor kur; gar guer guir gor gur. A mesma coisa com a terceira original, terás de fazê-la deste modo: lar ler lir lor lur.

Isto é, a primeira língua original e as suas derivadas que estão no capítulo 6, quando exercitadas com freqüência, também se tornam articulações velozes. Do mesmo modo, a segunda língua original, ao ser executada com velocidade, será transformada em língua incompleta (ou meia língua), desta forma: tar, ter, tir, etc. E a terceira língua original, que devido a sua velocidade, nunca está na sua forma completa, mas sempre lar, ler, lir, etc. Infelizmente o autor não nos forneceu nenhum exemplo da aplicabilidade de tais sílabas, entretanto, através da explicação de Dalla Casa, podemos compreender melhor do que se trata. O autor também divide as articulações em três tipos: ler, ler; tere tere; e teke, teke. A primeira delas é chamada de “língua reversa”, e é para o autor uma articulação “velocíssima e dificílima de frear”:

[...] e se profere em três modos: ler, ler, ler, ler; der ler; e ter, ler, ter, ler. O primeiro é proferir doce. O segundo é mediano e o terceiro é mais cru do que os outros, [...]. A segunda língua é esta: tere, tere, tere, terete. [...] e é língua boa para a diminuição de colcheias e semicolcheias [...]. A terceira língua é esta: Teke, teke, teke, tekete. Esta língua [...] é crua, [e é] para os tocadores que querem fazer terribilidade; não é muito agradável ao ouvido, mas é de natureza veloz e difícil de frear. 291

Nos exercícios que se seguem às explicações do autor (ex. 2), fica claro que a língua reversa, que foi apresentada como “ler”, serve para dois sons diferentes e não apenas um, como afirma Castellani a respeito da Fontegara. 292

DALLA CASA, Girolamo. Il vero modo di diminuir, 1584. Bolonha: Arnaldo Forni, 1996. CASTELLANI, Marcello. DURANTE, Elio. Del portare della lingua negli instrumenti di fiato. Florença: SPES, 1987. 291 292

165

Exemplo 2.

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O termo “reversa” também é utilizado por Ganassi no capítulo 6, e se refere a articulações que quando são velozes, “perde o seu proferir”, isto é, causa um efeito mais ligado (ex. 3), como o “lere”. Ao contrário desta, existe a língua “direta”, isto é, mais incisiva como “teke”, em que sua pronúncia é mais clara e audível (ex.4). Tal catalogação pode ser feita ainda, analisando cada uma das duas sílabas que formam as línguas originais, sendo consideradas línguas diretas as sílabas “te”, “ke”, ‘de” e ‘gue”; e reversas, as sílabas “re” e “le”. Esta diferença é determinada pelo tamanho da obstrução que certa articulação provoca na coluna de ar; um maior detalhamento deste processo foi fornecido por Aguilar em sua dissertação de mestrado Fala Flauta.293 Figura 56.294

AGUILAR, Patrícia Michelini. Fala Flauta: Um estudo sobre as articulações indicadas por Silvestro Ganassi (1535) e Bartolomeo Bismantova (1677) e a sua aplicabilidade a intérpretes brasileiros de flauta doce. Dissertação (Mestrado em Música). Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas, 2008. 294 Figuras 57 e 58: “Gráficos obtidos [através do software PRAAT] a partir de uma sequência de notas lá tocadas em uma flauta doce tenor em C, com articulações distintas.” In: AGUILAR, Patrícia M. Op.cit. p.162 e 164. 293

167

Figura 57.

Segundo Dalla Casa, Riccardo e Francesco Rognoni, a articulação reversa é a língua mais louvada, apreciada e utilizada pelos bons instrumentistas, pois é aquela que mais se assemelha à voz humana e por isso, é também conhecida por língua de gorgia.295 No capítulo 8, Ganassi também chama tal articulação, de língua de gorgia (de garganta), afirmando que tal nome é dado “devido à ocupação que o sopro faz [do espaço] perto da garganta” e assim, do mesmo modo, a língua direta pode ser chamada de língua de cabeça, “porque nela o sopro ocupa [o espaço] embaixo do palato e perto dos dentes”. Uma terceira língua, derivada da língua de cabeça é citada, “a qual não profere nenhuma sílaba e o seu movimento é entre um lábio e o outro”. Sobre esta, não se sabe ao certo o seu significado, podendo indicar a ligadura das notas por não se utilizar nenhuma sílaba articulatória ou ainda uma espécie de movimento labial desconhecido por nós.

295 DALLA CASA, Girolamo. Op.cit., 1996; ROGNONI, Riccardo. Passaggi per potersi essercitare nel diminuir. Bolonha: Arnaldo Forni, 2007; ROGNONI, Francesco. Selva di varii passaggi. Bolonha: Arnaldo Forni, 2001.

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3.3. A arte de diminuir. Ganassi, no capítulo 13 da Fontegara, afirma que o diminuir não é outra coisa além de um “ornamento ao contraponto”. A diminuição foi um estilo de improvisação vocal e instrumental amplamente utilizada, durante o século XVI e início do XVII, na execução de obras polifônicas tipicamente vocais como madrigais, motetos e chansons francesas. Não se sabe ao certo suas origens, porém existem algumas teorias: Horsley296 explica que, segundo Kuhn297, o uso das diminuições originou-se junto com o estilo contrapontístico da escola franco-flamenga e com ela espalhou-se por toda a Europa, entretanto, para Schering298, as diminuições teriam origem na música oriental. SelfridgeField299 concorda com esta hipótese, afirmando que tal prática é conceitualmente muito similar a aspectos característicos da música indiana e do Oriente Médio e que Veneza, onde a prática teve sua maior representação, os teria incorporado através do contato com esses países pelo Mediterrâneo. Horsley300 afirma ainda ter encontrado vestígios de uma prática similar em discussões sobre a técnica do canto árabe na Espanha durante o século IX, mas, segundo a autora, não foi possível traçar suas fontes originárias. Há uma terceira hipótese, formulada por Ferand301,

na qual as diminuições

constituem a última reminiscência de uma vital arte de improvisação presente na música desde seu nascimento, e que esta “oralidade”, característica das primeiras manifestações musicais e ainda muito presente na cultura Oriental, foi cada vez mais deixada de lado no Ocidente com o aperfeiçoamento da escrita musical. Tecnicamente, o processo da diminuição constitui-se em “quebrar” de diferentes maneiras, longas figuras rítmicas, como a longa, a breve, a semibreve e até a mínima, 296

HORSLEY,Imogene. “Improvised Embellishment in the Performance of Renaissance Polyphonic Music” In: Journal of the American Musicological Society, Brunswick, v. 4, n. 1, 1951, p. 4, nota 4. 297 KUHN, Max. Die Verzierungs-Kunst in der Gesangs-Musik des 16-17 Jahrhunderts. Leipzig, 1902. Apud: HORSLEY, Imogene. Op. cit., p. 4, nota 4. 298 SCHERING, Arnold. Aufführungspraxis alter Musik Berlin, 1931. Apud: HORSLEY, Imogene. Op. cit., p. 4, nota 4. 299 SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. Venetian Instrumental Music from Gabrieli to Vivaldi. Third, Revised Edition. New York: Dover Publications, INC, 1994, p. 76. 300 HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 4, nota 4. 301 FERAND, Ernest T. “Historical Introduction.” In: FELLERER, K. G. Anthology of Music. Improvisation in nine centuries of western music. Cologne: Arno Volk Verlag, 1961, p. 5-21.

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pertencentes a uma determinada melodia, transformando-as em figuras de valores menores como a semínima, a colcheia, a semicolcheia, etc. Desta forma, incluem-se inúmeras “notas de passagem” entre a estrutura principal de uma obra. Note-se, entretanto, que em uma diminuição exercitada com razão, como prega Ganassi, deve-se tomar cuidado para preservar as consonâncias originais do contraponto. No que se refere ao estilo das diminuições, não há diferença, a princípio, entre as ornamentações vocais e instrumentais; os autores geralmente tomam o cuidado de especificar que as diminuições são igualmente apropriadas para o canto, instrumentos de sopro e de cordas (con ogni sorte d’istrumento... et canto).302 Porém, é importante ressaltar que, no decorrer do século, as diminuições publicadas por tocadores tendem a ser cada vez mais virtuosísticas que as demais.303 Tal fenômeno foi um fator importantíssimo para o desenvolvimento e emancipação da escrita instrumental que, no século seguinte, transformou-se nos principais gêneros do período Barroco, tais como a sonata e o concerto. As regras da diminuição são encontradas em inúmeros manuais didáticos, a maioria em língua vernácula, publicados entre os anos de 1535 e 1620. Tais manuais, além de explicar a arte da diminuição, também oferecem uma gama de exemplos, em ordem crescente de dificuldade, de como diminuir os diferentes intervalos e cadências; alguns contêm também ricercari compostos para aperfeiçoar a técnica e exemplos de diminuição feitas sobre as obras vocais mais conhecidas da época.

302

“Com todo o tipo de instrumento [...] e canto”, palavras geralmente encontradas nos frontispícios dos manuais de diminuições. 303 Ver os tratados publicados a partir de 1584, como os de Girolamo Dalla Casa, Giovanni Bassano, Riccardo Rognioni e Aurelio Virgiliano. A obra de Dalla Casa, Il vero modo di diminuir, foi o primeiro a conter figuras de duração tão curta como as treplicate (24 por semibreve) e as quadruplicate (fusas).

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3.3.1. Tratados. Opera Intitulata Fontegara, 1535, Silvestro Ganassi dal Fontego. A Fontegara, além de ser o primeiro tratado para a flauta doce também foi a primeira obra a tratar da arte da diminuição. O tratado, como já vimos anteriormente, tem 13 dos seus 25 capítulos dedicados ao assunto. Note-se também que, a maior parte das páginas da Fontegara são ocupadas pelos exemplos musicais, organizados dentro das quatro regras de diminuição descritas por Ganassi. Mesmo sendo o primeiro “manual de diminuição” publicado, a Fontegara constitui o mais completo e detalhado relato sobre as regras dessa prática e o único exemplo a utilizar explicitamente a métrica como ferramenta de um diminuir variado. A obra também serviu de modelo para os demais manuais, uma vez que a disposição dos exemplos que se referem aos intervalos diminuídos segue sempre o mesmo padrão inaugurado por Ganassi. Segundo o autor, cada um pode diminuir variando três aspectos: 1) proporção [proportione]: mantendo ou mudando a métrica original da obra diminuída; 2) ritmo [minuta]: variando ou não o tipo de figura rítmica utilizada; 3) melodia [vie]: executando ou não um padrão melódico entre as notas diminuídas. Logo após, ele nos mostra detalhadamente as diversas combinações que podem ser feitas com esses três elementos, para depois, nos capítulos 14 a 17, organizar suas tabelas de exemplos de acordo com a proporção envolvida: Regra Primeira: quatro semínimas para cada semibreve 4/1; Regra Segunda: cinco para cada quatro anteriores 5 /4; Regra terceira: 6/4 e Regra Quarta: 7/4. Esse sistema será melhor detalhado no item 3.3.3. Ganassi também faz pequenas referências à diminuição em seus dois tratados de viola da gamba, Regola Rubertina304 (1542) e Lettione Seconda305 (1543). No capítulo III da Regola Rubertina, que trata “das partes que procuram a bondade”, Ganassi nos diz que a bondade está contida no saber formar as consonâncias e que, a respeito do diminuir, não tem nada a dizer:

304 305

GANASSI, Silvestro. Regola Rubertina. [...] Arnaldo Forni [...], 1984. GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. [...] Arnaldo Forni [...], 1978.

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porque serás totalmente satisfeito pela outra minha obra, chamada Fontegara, a qual ensina a tocar flauta e o diminuir com toda razão. Tal diminuir produz dois efeitos: o primeiro, [é] o ornamento da composição, isto é, do contraponto; o segundo, nutre muito o ouvido, principalmente quando é composto de várias e boas passagens.306

Já no capítulo V, que fala da “maneira de praticar a mão e o braço” na viola, ou seja, sobre as articulações de arco, o autor nos explica como tocar quando se tem figuras pequenas, ou minutas:

deve-se puxar sempre a primeira arcada para baixo, e [fazeis] isso quando quiseres fazer uma passagem toda de colcheias, ou qualquer outra figura menor [minuta], e fazendo deste modo, farás o teu efeito com bom propósito. E quando começares a primeira arcada para cima, procederás com o modo contrário, para que saibas que existem essas duas puxadas de arco, uma direita e outra reversa. A direita é puxada para baixo e a reversa para cima; mas não se deve deixar de praticar [tanto] um modo quanto outro, para ser como aquele que aprende esgrima que, se por sorte caísse em combate e não pudesse manejar a direita, ele aprende a manejar o braço ou mão esquerda. Da mesma maneira farás tu quando quiseres fazer várias diminuições, usando diversas proporções, onde as figuras ficam desencontradas e por isso é oportuno saber começar também em cima [...]307

Na Lettione Seconda, no capítulo XVII, Ganassi nos revela quais são as quatro partes de um suficiente mestre de instrumento:

destas quatro, duas são as mestras e duas são discípulas. A principal, e mestra é saber da música as suas consonâncias e espécies; a segunda parte, como discípula, é tocar a coisa positiva e digo, como está composta. A terceira parte, como mestra, é saber as regras do contraponto e a quarta parte, como discípula desse contraponto, é o diminuir a coisa positiva como se convém, no ornar a composição [...] Como na Fontegara tens também a teoria e prática do diminuir, 306

“Nota come la bonta si contiene in saper formar le consonantie de le quali serai ammaestrato per regole, che ha da seguir in figura. Cerca il diminuire non diro altto perche serai satisfatto del tutto per l’altra mia opera ditta fontegara laquale insegna a sonar di flauto, & il diminuire con ogni raggion il qual diminuire fa due effetti, prima le ornamento alla composition ou voia dir al contraponto, secondaria nutisce molto laudito: massime quando le composto de varii e buoni pasazi.” GANASSI, Silvestro. Regola Rubertina [...], p. VIII. 307 “[...] e se die auuertir come si a da tirar sempre la prima tirata in giu e questo quando volesti far vn pasaggio che fosse de tutto crome, ouer ogni altra minuta, e facendo a questo modo verrai a far il tuo effetto con bon proposito, e quando cominciasti la prima tirata in su procederesti con modo contrario, & accio che tu sappi el si intende questi duoi tratti d’archetto vn dritto e l’altro rouerso, il dritto si è il tratto in giu, il rouerso in su: però non si debbe restar di praticar vno modo quanto l’altro per essere simile a colui ch’impara di spada, che per fortuna caduta nel combatter non potesse maneggiar la destra lui impara a doperar il sinistro braccio ouer mano, il simile farai tu: perche si vorrai far diminutioni intrauenendo dinersi proportioni che le minute veneria in dispar & in questo è proposito saper cominciar in suso [...]”. GANASSI, Silvestro. Regola Rubertina. [...], p. VIIII.

172

mas quanto a prática do instrumento ao fazer as diminuições, não existe nenhuma regra que te possas acomodar para poder aprender a fazer as diminuições variadas com boa prática [...]308

No trecho que se segue, Ganassi continua seu discurso reforçando a importância de saber contraponto ao se ornamentar uma passagem, e, para que o aluno não evite o uso de diminuições nas cadências por motivos de dificuldade técnica, dá exemplos de diversos dedilhados, mostrando como ornamentá-las sem precisar mudar de corda.309 Ganassi, também incluiu quatro Ricercari em cada um dos dois volumes e um madrigal310 arranjado para voz com acompanhamento de viola, que constituem pequenos exercícios para desenvolver a técnica no instrumento.

Musica Instrumentalis Deudsch, 1545, Martin Agricola. A primeira edição do Musica Instrumentalis Deudsch foi publicada no ano de 1529 pelo conhecido editor de Wittenberg, Georg Rhau. A obra foi reeditada em 1530, 1532 e 1542. Existe ainda uma nova edição, de 1545, que, segundo Hettrick, foi completamente reescrita sob o pretexto de que a antiga versão estava “muito obscura e difícil de compreender.”311 É nesta nova edição que o autor fala sobre a diminuição, e a citação encontra-se no epílogo do segundo capítulo:

308

“Per prima tu hai di saper questo ch’l sufficiente maestro di tal’stromento la sua sufficientia e causada da quatro parte di adottamento in lui & di queste quattro parte due son le maestre & due discipuli. La principal & maestra sie il saper della musica le sue consonantie ouer specie, & la seconda parte come discipola e il sonar la cosa positiva e dico come la esta compsota & la terza aprte come maestra sie il saper le regole dil contraponto & la quarta parte come discipola di esso contraponto si el diminuir la cosa positiua come conviensi nel’ornamento alle composition & [...] Come nella Fontegara hauere ancora la theorica & prattica del diminuir, ma di quanto la prattica dell’istromento in far le diminuiton non e regola niuna che tu te podesti accomodar i poter imparare a far le diminution uariate con bona prattica [...]” GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. [...], cap. XVII. 309 GANASSI, Silvestro. Lettione Seconda. [...], cap. XVIII. 310 O madrigal está incluído na Lettione Seconda, trata-se da obra de Giacomo Fogliano (1468-1548), “Io vorrei Dio d’amor”. 311 “Agricola completely rewrote the main body of his text for the 1545 edition of Musica Instrumentalis Deudsch, claiming that the earlier version had been ‘too obscure and difficult to understand’”. HETTRICK, William E. The ‘Musica Instrumentalis Deudsch’ of Martin Agricola. A treatise on musical instruments, 1529 and 1545. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. xv.

173

Que o método e ornamentação [Coloratur] dos organistas é o melhor e deveria ser empregado corretamente em todos os instrumentos. Embora ainda tenha-se mais a dizer aqui sobre esta arte, como tocar coloraturas [Coloriren] e introduzir ornamentos [Mordanten] que decoram a melodia excelentemente em todos os tipos de instrumentos. No entanto, eu não posso descrever tudo aqui neste momento, porque se tornaria muito longo. Assim, vou abandonar esta alegre história. Mas se ainda assim quiser saber sobre isso, poderás obter mais informações de um mestre especialista em instrumentos; ele te dará todas as orientações. Mas segue esse meu conselho, imita o método do órgão ao tocar instrumentos de sopro, rabecas, alaúdes e quaisquer outros que possam ser mencionados, porque neste momento, é esse o melhor método para tocar ornamentos e também passagens rápidas [Risswerck]. Portanto, pratica bem esse uso.312

É importante observar que, dez anos após a publicação da Fontegara, Agricola decide incluir um parágrafo sobre a diminuição em seu livro de música instrumental alemã; este é um valioso indício de que a prática da diminuição floresceu nesses anos, podendo se expandir para os países do norte da Europa.

Compendium musices, 1552, Adrianus Petit Coclico. E foi justamente o músico nascido em Flandres, Adrianus Petit Coclico (1499/1500 – 1562) (ex. 1), o próximo a discutir sobre a diminuição em sua obra Compendium musices, publicada em Nüremberg no ano de 1552.313 Coclico, que se autodenominava discípulo de Josquin des Prez, estava na Universidade de Wittenberg em 1545 para ministrar aulas de música a um grupo de estudantes; no ano seguinte concorreu à cadeira de música daquela universidade, mas não obteve sucesso.314

312

HETTRICK, William E. Op. cit, p. 112. Compendium musices descriptum ab Adriano Petit Coclico, discipulo Josquini des Pres, Nüremberg 1552. 314 DUNNING, Albert. “Coclico, Adrianus Petit”In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 313

174

Exemplo 1.

O Compendium foi escrito como um prático manual para jovens estudantes alemães e é dividido em duas partes.315 Na segunda parte, um dos capítulos, De elegantia et ornatu, aut pronunciatione in canendo, aborda a diminuição para o canto. De acordo com Hulse, esta parte do tratado:

nos dá versões originais e ornamentadas de frases melódicas, cadências, um cânone a quatro vozes e as linhas de soprano e baixo das chansons Languir me fault (ex. 2) e C’est a grand tort. 316

As chansons diminuídas por Coclico constituem os primeiros exemplos de diminuição sobre uma peça vocal conhecida da época.317 Essa forma de exemplificação em manuais de diminuição tornar-se-á muito freqüente nas obras subseqüentes. Ainda, segundo Horsley,318 as diminuições do Compendium são mais simples do que os exemplos de 315

HULSE, Mark Vernon. Sixteenth Century Embellishment Styles: with emphasis on vocal-ensemble application. Tese (Doutorado em Artes Musicais). Departamento de Música. Universidade de Stanford. Stanford, 1966, p. 6. 316 HULSE, Mark Vernon. Op.cit., p. 6. 317 BROWN, Howard Mayer. Embellishing 16th-Century Music. New York: Oxford University Press, 1976, p.31. 318 HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 9-10.

175

Ganassi e, em momento algum, Coclico especifica alguma regra de como aplicar tais ornamentos em uma composição. Para a autora, sua importância está no fato de o autor ser o primeiro a discutir quais das vozes de uma composição polifônica devem ser ornamentadas. A respeito desta questão, ele insiste firmemente que a voz mais grave não deve ser ornamentada, uma vez que esta é a voz fundamental sobre a qual todas as outras se apóiam.319 Porém, em seus exemplos, Coclico parece se contradizer pois, além de nos oferecer a voz do soprano diminuída, ele também nos dá a do baixo (ex.2).

Exemplo 2.

319

HORSLEY, I. Op. cit. p. 10.

176

Tratado de glosas sobre clausulas y otros generos de puntos em la musica de violones, 1553, Diego Ortiz. De fundamental relevância foi o Tratado de glosas do espanhol Diego Ortiz (c. 1510 – 1570).320 A obra está dividida em dois livros; logo no início do primeiro, Ortiz nos adverte que:

Aquele que deseja aproveitar deste livro deverá considerar a habilidade que tem, e, conforme ela, escolher as glosas que melhor vos parecem, porque mesmo que a glosa seja boa, se a mão não pode com ela, não nos pode parecer bem; e o defeito não será da glosa. Este livro mostra o caminho da maneira de glosar os intervalos [puntos], mas, a graça e os efeitos que a mão tem que fazer, está naquele que toca, em tocar docemente, [de modo] que saia a voz umas vezes de um modo e outras [vezes] de outro, mesclando alguns quiebros amortiguados e algumas passagens. [...]321

Assim como Ganassi recomendou que o instrumentista soubesse muito bem contraponto e os dedilhados adequados para ornamentar as cadências, Ortiz nos adverte sobre o cuidado que devemos ter com a falta de técnica ao tocar tais ornamentos. Ao final deste parágrafo, ele ainda sentencia que caberá ao “bom juízo do músico” tal decisão.322 Note-se que ao falar das glosas, termo utilizado por ele ao se referir às diminuições, o autor nos dá dois tipos diferentes de ornamentação: quiebros amortiguados e passos, que aqui foi traduzido por “passagens”. Brown nos chama a atenção para este detalhe:

A maioria dos escritores de ornamentos, tanto no Renascimento quanto no presente século, acredita que os executantes do século XVI normalmente ornamentam a música escrita aplicando, em uma melodia básica, modelos de figuração rápidas, chamados de diminuição, passaggi ou gorgie; isto é, 320

Diego Ortiz: compositor e organista nascido em Toledo, foi maestro de capela de Fernando Álvares de Toledo, terceiro duque de Alba e vice-rei da Espanha na corte de Nápoles. Ortiz dedicou seu Tratado de glosas a Pedro Urríes, Barão de Riesi, Sicília - Itália. Sua obra apareceu simultaneamente em espanhol e italiano. STEVENSON, Robert. “Ortiz, Diego” In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 321 “El que quisiere aprobecharse deste libro ha de considerar la abilidad que tiene y conforme a ella escoger las glosas que meior le parecieren por que a vn que la glosa sea buena si la mano no puede con ella no puede parecer bien y el defetto no sera dela glosa. Este libro muestra el camino de que manera se han de glosar los puntos pero la gratia y los effettos que ha de hazer la mano esta e nel que tañe en tocar dulcemente que salga la voz vnas vezes de vn modo otras de otro mezelando algunos quiebros amortiguados y algunos passos [...]. ORTIZ, Diego. Tratado de Glosas sobre clausulas y otros generos de puntos en la musica de violones, Roma 1553. Übertragen von Max Schneider. Kassel & New York: Bärenreiter:1961, p. 4. 322 ORTIZ, Diego. Op.cit., p. 5.

177

substituem longas notas ou grupos de notas em uma composição (breves, semibreves e às vezes mínimas), por fórmulas melódicas estereotipadas de rápido movimento para produzir aquilo que é em efeito uma variação melódica. Mas, quase todos os autores do século XVI também fizeram uma distinção entre ornamentos específicos aplicados a notas singulares – ornamentos que podem convenientemente ser chamados de “graças”, embora este nome nunca tenha sido aplicado a eles no século XVI – em oposição às longas, livres e correntes passagens que substituem os básicos intervalos lentos de uma melodia – ornamentos que podem convenientemente ser chamados de diminuições ou passaggi, como foram normalmente chamados durante a maior parte do século.323

Ainda segundo Brown, tal divisão entre os tipos de ornamentação também é encontrada nas obras de Agricola, Santa Maria e Diruta.324 Trataremos disto mais tarde. Após as advertências, Ortiz nos ensina três maneiras de como diminuir muito semelhantes às das regras de Ganassi: 1) “A primeira e mais perfeita”325 maneira é quando a glosa começa e termina com o mesmo intervalo que deve ser diminuído, de modo a não alterar a estrutura do canto (ex. 3); 2) A segunda, é quando a diminuição começa na primeira nota do intervalo e alcança a nota seguinte por grau conjunto; segundo Ortiz, com tal licença é possível “ fazer coisas muito boas e lindos floreios, que não se poderiam fazer com a primeira”.326 Aqui, do mesmo modo que Ganassi, Ortiz comenta que as dissonâncias e erros criados por tais diminuições são de pouca importância devido à velocidade das notas (ex. 4); 3) A terceira e última maneira é quando o músico foge da composição, elaborando as diminuições “de ouvido”, o que Ortiz condena, pelo fato de distorcer a composição.

Exemplo 3.

323

BROWN, Howard Mayer. Op.cit., p. 1. HETTRICK, William E. Op.cit.,cap. II, p.112; SANTA MARIA, Tomás de. Libro Llamado Arte de Tañer Fantasia. Geneve: Minkoff, 1973, cap. 9, p. 46; DIRUTA, Girolamo. Il Transilvano. Prima Parte. Bolonha: Arnaldo Forni Editore, 1997, p. 10a e 10b. 325 ORTIZ, Diego. Op.cit., p. 5. 326 ORTIZ, Diego. Op.cit., p. 5. 324

178

Exemplo 4.

Seguindo no primeiro livro, o autor fornece uma série de cadências [clausulas] e intervalos [puntos] diminuídos e aconselha-nos sobre o uso de tais exemplos: tomar a voz que queiras glosar e reescrevê-la novamente; quando chegares onde queres glosar, ir ao livro e buscar aquele modo de intervalo [punto] ou cadência [clausula] entre os demais intervalos e cadências: olha ali todas as diminuições [diferencias] que estão escritas sobre aqueles intervalos, toma a que estiver melhor e põe-la no lugar dos intervalos cheios e, em todas as partes que quiseres glosar, faze desta maneira.327

A contribuição mais interessante do Tratado de Glosas está no segundo livro, no qual Ortiz informa sobre as maneiras que se podem tocar com o violone (viola da gamba baixo) acompanhado do cravo [cymbalo], ou seja, um importante relato da execução da época em relação à diminuição. Essas três maneiras consistem em: 1) os dois instrumentos improvisam livremente uma fantasia; para tal execução, o autor diz não ter nenhum exemplo, porque cada um faz à sua maneira, mas que mesmo assim, ele dirá o que se requer para tal execução: o cravo deve conduzir com boas consonâncias enquanto o violone intervém com passagens; quando o violone toca notas mais lentas, o cravo deve responder com diminuições, de modo que façam algumas fugas, um esperando o outro e, assim podese descobrir “segredos muito excelentes que existem nessa maneira de tocar”.328 2) o violone improvisa variações sobre um ostinato [canto llano], enquanto o cravo o acompanha com consonâncias e algum contraponto; para exemplificar a segunda maneira, Ortiz compôs seis Recercadas (tradução espanhola do termo ricercari) sobre o ostinato La Spagna329; 3) as vozes de um madrigal, moteto ou outra obra qualquer, são transcritas para 327

“[...] tomar la boz que se quiere glosar y yrla escriviendo de nueuo y, quando llegare a donde quiere glosar yr al libro y buscar a quella manera de puntos si es clausula en las clausulas y sino en los otros puntos y mire alli todas las diferencias que estan escritas sobre a quellos puntos y tome la que meior le estubiere y pongale en lugar delos puntos llanos y en todas as partes que quisiere glosar haga desta manera.” ORTIZ, Diego. Op. cit., p. 6. 328 ORTIZ, Diego. Op. cit., p. 51. 329 Ibidem, p. 55.

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o cravo, “como é de costume”, enquanto o violone pode tocar sobre cada linha composta, duas ou três diminuições; se escolher o discantus ficará mais “gracioso” se o cravo omitir essa voz.330 Para exemplificar o terceiro modo, Ortiz diminuiu quatro versões do madrigal O Felice Occhi Miei de Jacques Arcadelt (1504/1505 -1568) e quatro da chanson francesa Doulce Memoire de Pierre Sandrin (1490-1561). Segundo o autor, a primeira versão é feita sobre o mesmo baixo (do madrigal e da chanson), a segunda é sobre o soprano, a terceira é imitação da primeira, porém mais difícil de tocar porque “requer mais soltura das mãos”, e a quarta é sobre uma quinta voz composta, a qual “não obrigamos a ninguém, porque pressupõe que o tocador tenha habilidades de composição para fazê-la.”331 O tratado contém ainda Recercadas para serem tocadas com o violone sem acompanhamento do cravo, “para exercitar a mão”332 e oito Recercadas compostas sobre cantochãos italianos, chamados de “Tenores.”333

Pratica musica, 1556, Hermann Finck. Hermann Finck estudou e lecionou na Universidade de Wittenberg, onde também possuía o cargo de organista.334 E foi nesta cidade que publicou a

Pratica musica,

exemplavariorum signorum, proportionum, et canonum, judicium de louis ac quaedam de arle suaviter et arlificiose cantandi conhinens, tratado escrito para servir de material de apoio aos seus estudantes da universidade.335 Em um dos capítulos, De arte eleganter et suaviter cantandi, o autor fala da técnica do canto e de como ornamentar. Para Finck, segundo Horsley,336 a arte da coloratura337 depende das aptidões e das habilidades individuais do cantor e, por isso, ele condena a prática de aplicar indiscriminadamente em todas as partes da composição ornamentos 330

Ibidem, p. 68. Ibidem, p. 68. 332 Ibidem, p. 51. 333 Ibidem, p. 106. 334 HULSE, Mark Vernon. Op.cit., p. 8. 335 Ibidem, p. 8. 336 HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 12. 337 Coloratura: (de“colorir”) ornamentação, diminuição. Essa nomenclatura foi também utilizada por Agricola, no Musica Instrumentalis Deudsch, ver p.188. 331

180

copiados de outros. Embora admita não haver um consenso sobre quais vozes devem ser ornamentadas, Finck acredita que todas podem sê-la: não ao mesmo tempo, mas em turnos, de modo que não haja erros de contraponto e que cada coloratura seja ouvida claramente. Pelo mesmo motivo, vários cantores não devem ornamentar uma voz simultaneamente em execução de peças corais (mais de um cantor por voz). Os exemplos são muito semelhantes aos de Coclico, pequenas figuras melódicas e cadências em suas versões simples e ornamentadas. A grande diferença entre os dois é que os exemplos de Finck aparecem nas claves de todas as vozes, inclusive para o baixo. Um moteto de sua própria autoria, Te maneat semper, com texto de Philipp Melanchthon, onde todas as vozes foram ornamentadas, foi incluído em seu Pratica musica (ex.5). Exemplo 5.

181

Carta a Giovanni da Capua, 1562, Camillo Maffei da Solofra. Sobre a execução vocal também escreve o napolitano Camillo Maffei da Solofra338 em sua carta para o Illustrissimo Conte d’Altavilla, Giovanni da Capua, para quem trabalhou como médico e músico.339 Segundo Bridgman, Maffei parece ter sido o primeiro a examinar a fisiologia vocal antes de ensinar um método de cantar:340 a carta contém uma interessante discussão a respeito dos princípios da emissão vocal e de como aprender a aperfeiçoar a técnica, incluindo instruções de como fazer “floridas” ornamentações em obras polifônicas e conselhos para quem sofre de diversos problemas vocais.341 De acordo com Horsley,342 Maffei define regras bem claras de aplicação das “passagens” em uma obra polifônica vocal, incluindo alguns poucos exemplos e um madrigal a 4 vozes de texto atribuído a François de Layolle, com todas as vozes ornamentadas (ex.6). Suas regras podem ser resumidas da seguinte maneira:

1) As passaggi deveriam ser usadas somente nas cadências, embora alguns ornamentos, de uma nota para a outra (inseridos dentro de um definido intervalo melódico), podem ser usados antes de chegar à cadência. [...] 2) Em um madrigal, não mais do que quatro ou cinco vezes, as passaggi devem ser usadas, para que o ouvido não se sacie com tanta doçura. [...] 3) Passaggi deveriam ser feitas na penúltima sílaba da palavra, de modo que o fim da passagem coincida com o final da palavra. [...] 4) Passaggi soam melhor quando feitos sobre a vogal “o“. [...] 5) Em um grupo de quatro ou cinco solistas, as passaggi devem ser feitas em turnos. De outra maneira a harmonia deixa de ser clara.343

338

Giovanni Camillo Maffei da Solofra, Delle lettere del S. R. Gio. Camillo Maffei da Solofra. Libri due. Dove tra gli altri bellissimi pensieri di Filosofia e di Medicina vi è un discorso della voce e del modo d’apparare di cantar di Gargantua, senza maestro non più veduto n’istam pato. Raccolti per Don Valerio de' Paoli da Limosano Napoles, 1562. Apud: HORSLEY, Imogene. Op.cit. p. 12. 339 HULSE, Mark Vernon. Op.cit., p. 10. 340 BRIDGMAN, Nanie. “Maffei, Giovanni Camillo” In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 341 HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 12-13; HULSE, Mark Vernon. Op.cit., p. 10. 342 HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 13. 343 Ibidem, p. 13-14.

182

Exemplo 6.

Arte de tañer fantasía, 1562, Tomás de Santa María. Tomás de Santa María nasceu em Madrid, ordenou-se frade em 1536 e serviu como organista em vários monastérios dominicanos de Castela.344 O autor é conhecido por seu tratado Arte de tañer fantasía, publicado em Valladolid em 1562. A obra nos ensina como improvisar fantasias polifônicas em instrumentos de teclado e é uma importante fonte sobre a técnica desses instrumentos, trazendo informações valiosas sobre a posição das mãos, o toque, articulações, dedilhados e ornamentação. Santa María aborda o tema da diminuição no capítulo XXIII “Do glosar as obras”. O capítulo inicia com o autor nos advertindo que as glosas devem somente ser feitas em três figuras: semibreves, mínimas e semínimas, mesmo que nesta última se faça 344

HOWELL, Almonte. ROIG-FRANCOLI, Miguel A. “Santa María, Tomás de [Sancta Maria, Thomas de]” In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001.

183

ocasionalmente. Segundo o autor, para glosar bem uma obra, devem-se observar duas coisas: a primeira delas é que, quando se pode, todas as vozes devem ter diminuições; a segunda, que da mesma maneira que as vozes se imitam entre si, as glosas também devem se imitar.345 Para isso, foram colocadas duas páginas de exemplos de como glosar os uníssonos, assim como as segundas ascendentes e descendentes, terças, quartas, quintas, sétimas e oitavas. Note-se que os tratados de Santa María e Dalla Casa, que veremos a seguir, são os primeiros autores a diminuir sobre saltos maiores do que uma quinta.

Il vero modo di diminuir, 1584, Girolamo Dalla Casa. Girolamo Dalla Casa, ou Girolamo da Udine, se autodenomina Capo de Concerto delli Stromenti di fiato della Illustrissima Signoria di Venetia, em seu tratado, Il vero modo di diminuire con tutte le sorti di stromenti de fiato, & corda, & di voce humana,346 publicado em Veneza em 1584. Segundo Ongaro,347 a Procuradoria de Veneza o contratou em 1568:

“com dois de seus irmãos e outros músicos” para que executem “os concertos nos órgãos, como é de costume fazer para o ordinário [...] quando a Sereníssima Senhoria vem à igreja no tempo das festas solenes de Natal e Páscoa e outras festas [...]”348

Tal papel anteriormente cabia ao grupo de Piffari da Senhoria, entre outras atividades, como tocar todos os dias em praça pública, nas grandes festas oficiais e procissões.349 Fizeram parte dos piffari, muitos tratadistas da diminuição veneziana, tais como Silvestro Ganassi, Giovanni Bassano e o próprio Dalla Casa. No entanto, é a primeira vez que um grupo fixo é contratado especificamente para serviço da igreja de São Marcos. Com o passar dos anos, o grupo de Dalla Casa cresceu e, na década de 1580, o músico foi

345

SANTA MARÍA, Tomás de. Arte de tañer fantasia, 1565. Genebra: Minkoff Reprint, 1973, fol. 58. DALLA CASA, Girolamo. Il vero modo de diminuir. Bolonha: Arnaldo Forni, 1996. 347 ONGARO, Giulio. “Gli inizzi della musica strumentale a San Marco” [...], p.220. 348 “I-Vas, Procuratori de Supra, Reg. 131, c. 65v, na data de 29 de janeiro de 1567 (more veneto, isto é, 1568)”. Apud: ONGARO, Giulio. Op. cit., p. 220. 349 LO PRESTI, Carlo. Op.cit. p. 2 e SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. Op.cit. p. 6. 346

184

nomeado Capo de Concerto dos instrumentistas de sopro de São Marcos, grupo que teria inspirado Giovanni Gabrieli em suas canzonas e sonatas.350 Seu tratado, publicado em 1584, é dividido em dois livros e nos traz inúmeras novidades. No início do “Primeiro Livro”, Dalla Casa fala resumidamente das três principais línguas (articulações) e os seus usos para a diminuição. Para tal prática, o autor tinha em mente seu próprio instrumento, o cornetto, e sobre este, escreve um pequeno parágrafo explicativo-laudatório (“dentre os instrumentos de sopro o mais excelente é o cornetto porque imita mais a voz humana do que os outros instrumentos [...]”351). A seguir, como ele próprio explica no prefácio Aos Leitores, têm-se exemplos de “diminuição simples de colcheia sobre a semibreve e [sobre] a mínima, primeiro por grau conjunto, depois [pelos intervalos de] terça, quarta, quinta, sexta, sétima e oitava”.352 Logo após, seguem-se as diminuições de semicolcheia sobre os mesmos intervalos e “no final, têm-se os exemplos de tremolo gropizato (ex. 7) sobre a semibreve e [sobre] a mínima. Seguem-se também os groppi battuti (ex. 8) sobre as mesmas notas, os quais se usam nas cadências”353, isto é, exemplos dos dois ornamentos padronizados

mais

importantes e que foram, durante o século, cada vez mais utilizados na ornamentação instrumental. Exemplo 7.

350

ARNOLD, Denis. MARCIALIS, Andrea. “Dalla Casa, Girolamo”. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 351 DALLA CASA, Girolamo. Op. cit., p. 4. 352 Ibidem, p. 3. 353 Ibidem, p. 3.

185

Exemplo 8.

Dalla Casa nos dá também em seu primeiro livro, exemplos de diminuição sobre a primeira voz de alguns madrigais e chansons francesas conhecidos da época que, segundo ele, “podem ser tocados em conjunto”.354 É interessante notar que o autor não coloca somente a parte das diminuições no tratado, como é de costume355, mas escreve primeiro os trechos a serem diminuídos, em notação branca, para depois colocar a diminuição correspondente, separando-os por barras semelhantes às atuais barras de compasso (ex. 9). Os exemplos estão organizados didaticamente de acordo com a figura rítmica utilizada (tab. 1).

354

DALLA CASA, Girolamo. Op. cit., p. 3. Ver os madrigais e chansons diminuídas por Bassano, Rognoni, Bovicelli, Spadi e os exemplos do segundo livro do próprio autor.

355

186

Exemplo 9.

Tabela 1. Diminuição em Colcheias Cipriano de Rore

Io canterei d'Amor (a 4) Non e ch'l duol (a 4) La bella netta ignuda & bianca mano (a 4) Diminuição em Semicolcheias

Cipriano de Rore

Signor mio caro (a 4) Carità di signore (a 4) Passagens e Cadências em Colcheias e Semicolcheias

Cipriano de Rore

Vergine Bella - Parte I (a 5) Vergine Bella - Parte IX (a 5) 187

Vergine Bella - Parte IV (a 5) Vergine Bella - Parte V (a 5) Di tempo in tempo (a 4) Dall'estremo Orizonte (a 5) Vergine Bella - Parte VI com dois finais (a 5) S'amor la viva fiamma (a 5) Dale belle contrade (a 5) Alla dolc'ombra - Parte I (a 4) Alla dolc'ombra - Parte II (a 4) Alla dolc'ombra - Parte III (a 4) Alla dolc'ombra - Parte IV (a 4) Alla dolc'ombra - Parte VI com dois finais (a 4) Vergine Bella - Parte II (a 5) Vergine Bella - Parte III con dois finais (a 5) De quando fra l'altre donne - Parte II (a 5) Alessandro Striggio

Nasce la pena mia (a 6) I dolci colli - Parte I (a 6) I dolci colli - Parte II (a 6) La ver l'aurora (a 6) Soppra dolce ritorn'amor (a 6)

Filippo de Monte

Cantai un tempo (a 6)

Adriano Willaert

Se la gratia divina (a 5)

Passagens e Cadências em Semicolcheias e Treplicate (1/24) Adriano Willaert

Helas ma mere (a 5) 188

Martin Peu d'Argent

Canzon (a 6) Passagens e Cadências em Treplicate

Thomas Crecquillon

Canzon “Si me tenez” (a 6) * Passagens e Cadências em Quadruplicate (1/32)

Clemens non Papa

Rossignolet (a 4)

Passagens e Cadências em Treplicate e Quadruplicate Adriano Willaert

Voules onije [sic] (a 5) Passagens e Cadências nas quatro figuras

Cipriano de Rore

Di virtu di costumi (a 5)

Filippo de Monte

Anchor ch'io possa dire (a 6)

Adriano Willaert

Alla fontaine (a 6)

Nicolas Gombert

Larose (a 6)

Andrea Gabrieli

Amor mi struggie il cor (a 6) Ringratio & lodo il ciel - Parte I (a 6) Ringratio & lodo il ciel - Parte II (a 6)

Outra novidade de Dalla Casa, a qual podemos notar nos exemplos finais da tabela 1, foi a utilização de dois novos tipos de figuras rítmicas rápidas ainda não existentes na literatura musical: as treplicate (ex. 10) e as quadruplicate (ex. 11). O autor nos deixa sua opinião a respeito delas:

Fico muito maravilhado e, todavia, me resta na alma grande estupor, que tantos Excelentes Músicos que escreveram nunca tenham tratado além da colcheia e semicolcheia. Não trataram das outras duas figuras, as treplicate, que são 24 por battuta, e as quadruplicate, que são 32 por battuta. Sendo tão necessárias no diminuir, que na verdade não se pode deixar de utilizá-las; porque o diminuir

189

Misto é o verdadeiro diminuir, isto é, [utilizando] as quatro figuras, colcheias, semicolcheias, treplicate e quadruplicate [fusas].356

Exemplo 10.

Exemplo 11.

Em uma passagem do segundo livro, Dalla Casa ainda explica que as treplicate “são um terço a mais do que a semicolcheia”, isto é, vinte e quatro no lugar de dezesseis, o que atualmente escreveríamos como semicolcheias tercinadas. As quadruplicate, que são trinta e duas no lugar de dezesseis, ou seja, o dobro da velocidade da semicolcheia, correspondem às nossas fusas. Na mesma passagem, o autor ainda nos adverte que, quem deseja fazer bom proveito desta obra, deve executar cada uma das quatro figuras [minutas] em seu tempo correto, e não proceder “como fazem muitos que exercitam o instrumento de sopro, que correm com a língua morta (notas ligadas), sem articular com a minuta, por sua maior facilidade.”357 O segundo livro pode ser pensando como complemento do primeiro; no qual, Dalla Casa nos apresenta, após ter mostrado no livro anterior todos os passos da sua maneira de diminuir, quinze exemplos inteiros de madrigais e chansons diminuídos com as quatro figuras mencionadas (tab. 2). Esse tipo de procedimento, chamado de “Diminuição Mista”, é, segundo o autor, “a verdadeira diminuição”.358

356

“Et molto mi son maraugliato, & tutta uia mi resta nell’animo gran stupore, che tanti Eccelenti Musici, che hanno scritto, non habbino mai trattato, se non della Croma, & Semicroma & non hanno trattato delle altre due figure le treplicate, che sono le 24. per battuta, & le quadruplicate, che sono 32. per battuta. Essendo tanto necessarie nel diminuir, che in verità non si puo far di manco nel diminuir di loro: perche il diminuir Misto è il vero diminuir, cioè delle quattro figure Croma, Semicroma, Treplicate, & Quadruplicate.” DALLA CASA, Girolamo. Op. cit, p. 3. 357 “[...] & non correr di sopra uia come fanno molti, che essercitano lo stromento da fiato, che corrono con la lingua morta, senza batter la lingua con la minuta, per maggior sua facilità”. DALLA CASA, Girolamo. Op. cit., livro II, “Aos Leitores”. 358 DALLA CASA, Girolamo. Op. cit., p.3.

190

Tabela 2. Diminuição Mista Clement Janequin

Canzon delli Uccelli – Parte I Canzon delli Uccelli – Parte II Canzon delli Uccelli – Parte III Canzon delli Uccelli – Parte IV

Clemens non Papa

Frais & Gaillart (a 4) Frais & Gaillart – Outro modo (a 4)

Thomas Crecquillon

Petite fleur coincte (a 4) Alix Avoit (a 4) Oncques amour (a 5) Oncques amour – Outro modo (a 5) Content (a 4)

Jean Courtois

Petit Jacquet (a 4)

Orlando Lasso

Susana un giur (a 5) Susana un giur – Outro modo (a 5)

Adriano Willaert

Jouissance (a 5)

Dalla Casa também é o primeiro autor que nos ensina a diminuir madrigais e chansons segundo o estilo da viola bastarda. Francesco Rognoni, que publicou seu manual em 1620, nos dá uma definição bem clara deste singular instrumento:

A Viola Bastarda, que é Rainha dos outros instrumentos para ornamentar [passeggiare], é um instrumento que não é tenor nem baixo de Viola, mas está de tamanho entre um e o outro. Chama-se Bastarda, porque ora está no agudo, ora no grave, ora no sobre-agudo, ora faz uma parte, ora uma outra, ora com novos contrapontos, ora com passagens de imitação [...]359

359

“La Viola Bastarda, qual è Regina delli altri stromenti, per passeggiare, è vn instromento, qual non è, ne tenore, ne basso de Viola, ma è tra l’vno , e l’altro di grandezza, si chiama Bastarda, perche hora và

191

Rognoni ainda afirma que o estilo de diminuição [passeggiare] alla bastarda, também serve para os órgãos, alaúdes, harpas e similares.360 Esse tipo de execução apareceu na Itália entre os anos de 1580-1630 e consiste em condensar uma composição polifônica em uma única linha, mantendo as tessituras originais de cada voz (por isso a necessidade de instrumentos de grande extensão para sua execução), sobre a qual adicionam-se também elaboradas diminuições e novo contraponto.361 Dalla Casa nos dá dez exemplos de madrigais e chansons para viola bastarda, agrupados de acordo com a minuta utilizada em sua diminuição (tab. 3).

Tabela 3. Diminuição Mista para Viola Bastarda Clemens non Papa

Mais languitaige (a 4)

Cipriano de Rore

Quel e piu grand’o amore (a 4) Anchor che co’l partire (a 4) Ben qui si mostra’l ciel (a 4) Non gemme non fin oro (a 4)

Thomas Crecquillon

Un gay bergier (a 4)

D’Incerto [anônimo?]

Petit Jacquet (a 4)

Clement Janequin

Martin menoit (a 4) Diminuição de Treplicate para Viola Bastarda

Philippe Rogier

Doulce memoire (a 4)

nell’acuto, hora nel grave, hora nel sopra acuto, hora fà vna parte, hora vn’altra, hora con nuovi contraponti, hora con pasaggi d’imitationi [...]” ROGNONI, Francesco. Selva de Varii Passaggi. Bolonha: Arnaldo Forni, 2001, Livro II, “Della Viola Bastarda.” 360 ROGNONI, Francesco. Op. cit, Livro II. 361 ROBINSON, Lucy. “Viola Bastarda”. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001.

192

Diminuição de Quadruplicate para Viola Bastarda Cipriano de Rore

Come avran fin (a 4)

Para completar todos os usos da diminuição, Dalla Casa finaliza seu tratado com exemplos para o canto. No prefácio Aos Leitores do segundo livro, o autor nos revela que diminuiu somente a voz do soprano “porque é a parte mais utilizada no diminuir e também [é útil] para aqueles que se deleitam em cantar com acompanhamento de alaúde.”362 Entretanto, ele também desejou “dar satisfação” às outras vozes e por isso diminuiu todas as quatro vozes das seis estanças da obra de Cipriano de Rore Alla dolc’ombra. As diminuições desta obra acontecem em turnos, em concordância com os preceitos de Finck e Maffei. Todos os exemplos desta seção vêm acompanhados de suas respectivas letras (tab. 4).

Tabela 4. Para Cantar em conjunto ou com acompanhamento de Alaúde Cipriano de Rore

Beato me direi – Parte I (a 4) Beato me direi – Parte II (a 4) O sonno – Parte I (a 4) O sonno – Parte II (a 4) Non gemme non fin oro (a 4) Anchor che co’l partire (a 4)

Giovanni da Palestrina

Vestiva i coli – Parte I (a 5) Vestiva i coli – Parte II (a 5)

362

DALLA CASA, Girolamo. Op. cit., livro II, “Aos Leitores”.

193

Todas as vozes diminuídas Cipriano de Rore

Alla dolc'ombra - Parte I-VI (a 4)

Ricercate, Passaggi, et Cadentie, 1585 e Motetti, madrigali et canzoni francese, 1591, Giovanni Bassano. Giovanni Bassano, ou Zanetto, como costumava ser chamado nos primeiros documentos, devido à pouca idade que tinha, 15 ou 16 anos, quando foi contratado como cornetista soprano pela Procuradoria de Veneza em 1576.363 Entretanto, segundo Ongaro, ele também poderia ser o “Zanetto” que foi admitido em 1571 como putto (menino cantor) da capela de São Marcos, o que serviria de justificativa para o cargo de professor de música, que assumiria em São Marcos a partir de 1583.364 Este cargo normalmente era dado a cantores e não a instrumentistas, já que somente os primeiros tinham passado, desde meninos, pelo mesmo treinamento rigoroso que provia a formação técnica do típico cantor de capela do Renascimento.365 Bassano também fez parte dos piffari do Doge, mas, diferentemente do que se pensa, não fez parte do grupo encabeçado por Dalla Casa em São Marcos, os quais tocavam música instrumental com o órgão. Sua função na capela ducal era auxiliar e acompanhar a capella de cantores, que sempre estava desfalcada devido a escassez de cantores sopranos e contraltos.366 Dentre suas composições está o manual de diminuição Ricercate, Passaggi et Cadentie, per potersi essercitar nel diminuir terminantemente com ogni sorte d'Istrumento: & anco diversi passaggi per la semplice voce, publicado em 1585. O autor inicia a obra com oito ricercari solo, compostos para que se veja como “se pode exercitar as

363

ARNOLD, Denis. FERRACCIOLI, Fabio. “Giovanni [Zanetto, Zuane] Bassano [Bassani]”, In: “Bassano [Bassani, Piva].” In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001; ONGARO, Giulio. Op.cit., p. 224. 364 ONGARO, Giulio. Op.cit., p. 224, nota 27. 365 Ibidem. 366 ONGARO, Giulio. Op.cit., p. 222-226.

194

diminuições com qualquer tipo de instrumento de sopro e com a viola”367, ou seja, exercícios que servem para desenvolver a técnica necessária utilizada na execução das diminuições, seguindo o mesmo modelo utilizado por Ganassi na Regola Rubertina e Lettione Seconda, e por Ortiz no Tratado de Glosas. Tais ricercari têm escrita muito livre e seus motivos são desenvolvidos numa escrita de caráter tipicamente instrumental, na qual se empregam passagens virtuosísticas, saltos e uma extensão maior do que a vocal. Esse tipo de composição vai além da proposta de desenvolver a técnica através do uso de passagens baseadas em modelos de diminuição e se transforma em obras didáticas de um estilo puramente instrumental, escrita esta que influenciou diretamente o gênero instrumental mais característico do século XVII, a sonata.368 Ainda em sua obra, Bassano nos dá exemplos de intervalos de segunda, terça, quarta, quinta e sexta, diminuídos sobre a semibreve e sobre a mínima, e também algumas cadências. No final, encontramos dois exemplos de diminuição sobre o madrigal de Cipriano de Rore, Signor mio Caro. Em suas diminuições, Bassano utiliza as seguintes figuras rítmicas: colcheia, semicolcheia e uma “nova” figura que ele chama de biscroma (ex. 12), ou seja, trinta e duas notas por semibreve. Note-se que os tratados de Dalla Casa e Bassano foram as primeiras fontes que mencionaram a fusa, figura que já estava em uso pelos instrumentistas, que buscavam cada vez mais realizar passagens virtuosísticas. O nome dado a ela por Dalla Casa, quadruplicata, caiu em desuso; porém, o nome que aparece na obra de Bassano, biscroma, está em uso até hoje na língua italiana.

Exemplo 12.

367

BASSANO, Giovanni. Ricercate, Passaggi et Cadentie. Münster: Mieroprint, 1996, “Ai lettori, Giovanni Bassano”. 368 HORSLEY, Imogene. Op.cit., p. 3-19. SELFRIDGE-FIELD, Eleanor. “Canzona and Sonata: Some Differences in Social Identity” In: International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, Cracóvia, v. 9, n. 1, 1978, p. 114.

195

Em 1591, Bassano publicou uma segunda obra da diminuição chamada Motetti, madrigali et canzoni francese [...] diminuite per sonar con ogni sorte di stromenti & anco per cantar con la semplice voce. Esta obra infelizmente se perdeu durante um bombardeio da Segunda Guerra Mundial, restando somente a transcrição feita por Friedrich Chrysander em 1890.369 Segundo Bass, a cópia está bem detalhada e nela constam quarenta e sete obras diminuídas (tab. 5). Tabela 5.370 Giovanni da Palestrina

Benedicta sit Ave Maria Hodie beata virgo Fuite homo missus Benedicta sit (Bassus) Vestiva i colli – Parte I Vestiva i colli – Parte II (Così le chiome) Io son ferito Tota pulchra es (Superius e Bassus) Introduxit me rex (Superius e Bassus) Pulchra es amica (Superius e Bassus) Veni, veni, dilecte mi (Superius e Bassus)

Cipriano de Rore

Anchor che col partire Anchor che col partire (Viola Bastarda) Anchor che col partire (Bassus) Io canterei d’amore

369

BASS, John Burnell. Rhetoric and Musical Ornamentography: tradition in sixteenth-century improvisation Tese (Pós-Doutorado). Universidade de Memphis, Memphis, 2008, p. 43; HULSE, Mark Vernon. Op.cit., p. 13. 370 A lista de obras diminuídas por Bassano em 1591 foi retirada de BASS, John Burnell. Op. cit., p. 13-15.

196

Non è ch’il duol Non gemme non fin’oro Era il bel viso - Parte I Era il bel viso - Parte II (E nella face) La bella, netta ingunda (Viola Bastarda) Quando signor lasciaste (Viola Bastarda) Ma poiché vostr’altezza Giulio Renaldi

Vaghi leggiadri lumi – Parte I Vaghi leggiadri lumi – Parte II (Chi sia che dal mio cor) Madonna il mio desio Dolci rosate labbia Amore io sento

Ruggiero Giovanelli

Legò questo mio core

Luca Marenzio

Dissi a l’amata mia lucida stella Tirsi morir volea - Parte I Tirsi morir volea - Parte II (Freni Tirsi il desio) Tirsi morir volea - Parte III (Così morir) Madonna mia gentil ringratio Amore Quando i vostri ombrando copre (Viola Bastarda) Liquide perle Amor da gli occhi sparse (Viola Bastarda)

Annibale Stabile

La bella bianca mano

Thomas Crecquillon

Un gay bergier

Orlando Lassus

Susanne un jour

Clemens non Papa

Oncques amour Frisque et gaillard

Claudio Merulo

Mirami, vita mia

197

Giovanni B. Nanino

Amor deh dimmi come

Gioseffo Guami

Soavissimi baci

Andrea Gabrieli

Caro dolce ben mio perché fuggire

Alessandro Striggio

Individioso amor Nasce la pena mia Ancor ch’io possa dire Questi ch’indicio fan

Adrian Willaert

A la fontaine du prez Margot La rousé du moys de may

Passaggi per potersi essercitare nel diminuire, 1592, Riccardo Rognoni Apesar de seu tratado ter sido publicado em Veneza, Riccardo Rognoni foi um importante músico da corte de Milão, onde foi muito conhecido por sua habilidade em tocar instrumentos de arco, chegando a ser considerado um Orfeu de sua época.371 Segundo Barblan e Dickey, Rognoni foi o responsável pela criação de uma escola violinística milanesa e que, portanto, seus exemplos de diminuição tem grande influência da escrita idiomática do instrumento, apesar de estar endereçada a qualquer tipo de instrumento.372 No prefácio das Passaggi, o autor diz-se “expulso de [sua cidade natal no] Val Taleggio”, região pertencente à cidade de Bergamo. Para Barblan e Dickey, tal expulsão parece ter sido causada por disputas políticas que, de acordo com relatos da época, teriam afetado sua família, de posição gibelina, desde o século XIV.373 Ainda segundo os autores, Rognoni teria se transferido para Milão, onde não tardou a “impor-se por seus dotes de compositor e sobretudo de executor de valor até tornar-se músico do Excelentíssimo Duque

371

“Excelente tocador de violino e outros instrumentos de corda e de sopro, foi um Orfeu de seu tempo.“ PICINELLI, Filippo. Ateneo dei letterati milanesi, 1670. Apud: BARBLAN, Guglielmo. “Prefazione”. In: ROGNONI, Francesco. Selva di varii passaggi. Bolonha: Arnaldo Forni Editore, 2001, p. 7. “É muito louvado no tocar de viola, e estimado como um dos primeiros da nossa cidade.” MORIGIA, Paolo. La Nobilità di Milano, 1595. Apud: DICKEY, Bruce. “Prefazione”. In: ROGNONI, Riccardo. Passaggi per potersi essercitare nel diminuir. Bolonha: Arnaldo Forni, 2007, p. 6. 372 BARBLAN, Guglielmo. Op. cit, p. 8. DICKEY, Bruce. Op. cit., p. 15. 373 BARBLAN, Guglielmo. Op. cit, p. 7. DICKEY, Bruce. Op. cit, p.6.

198

de Terranova, Governador Geral do Estado de Milão”.

374

Riccardo Rognoni, teve dois

filhos também músicos, o segundo deles, Francesco Rognoni, era violinista como o pai e publicou um importante manual de diminuição intitulado Selva di varii Passaggi (1620). A obra de Rognoni está dividida em dois livros, no primeiro deles, o autor nos traz uma novidade: no lugar de Ricercari para treinar “a mão”, como escreveram Ganassi, Ortiz e Bassano, o autor apresenta uma grande quantidade de exercícios técnicos em forma de escalas, passagens entre os intervalos e saltos, exemplos muito semelhantes ao que se entende atualmente por estudos de técnica (ex.13). A respeito dessa técnica necessária para diminuir, Rognoni também se mostra preocupado com os diferentes tipos de articulação e arcadas que se empregam na execução com instrumentos de sopro e corda: sobre o assunto escreve pequenas orientações no prefácio “Aos Virtuosos Leitores”. O autor também observa que as diminuições instrumentais não devem ser exageradamente rápidas, mas sim tocadas de maneira “distinta e clara”.375

374

BARBLAN, Guglielmo. Op. cit, p. 7. No frontispício de seu tratado, Riccardo Rognioni diz-se “Musico dell’Eccellentissimo duca di Terranova, Governator Generale nello Stato di Milano per sua Maestà Cattolica”. 375 ROGNONI, Riccardo. Op.cit. p. 4

199

Exemplo 13.

200

201

O segundo livro inicia com exemplos de cadências diminuídas e segue com passagens ascendentes e descendentes utilizando os intervalos de segunda a oitava sobre a semibreve, a mínima e até sobre a semínima no caso dos exemplos de grau conjunto. Nas passagens, Rognoni organiza seus exemplos de maneira pouco diferente dos manuais anteriores: nos exemplos feitos sobre os intervalos de segunda a quarta, o autor nos dá trechos maiores do que dois intervalos como matéria prima dos exemplos – dó-ré-mi-fá-sollá para a diminuição em grau conjunto, por exemplo, ou ré-fá-lá para terças, fá-dó-sol, para as quartas, etc. (ex. 14). Rognoni também nos oferece indicações de como utilizar tais exemplos transpondo-os para a diminuição em outras vozes e, nos mostra qual delas é mais propícia para cada voz.

Exemplo 14.

No final do segundo livro, Rognoni nos apresenta alguns madrigais, chansons e motetos inteiramente diminuídos a partir dos exemplos escritos na parte anterior; sobre isso 202

nos diz que, se desejarmos utilizar os exemplos dessa obra para a diminuição de uma cantilena (melodia), poderemos com facilidade escrevê-las da mesma maneira como ele fez com tais exemplos (tab. 6).376

Tabela 6. Para cantar Giovanni da Palestrina

Domine quando veneris

Cipriano de Rore

Ancor che col partire

Para tocar com todos os tipos de instrumentos Cipriano de Rore

Ancor che col partire

Thomas Crecquillon

Um gay bergier Para tocar com viola bastarda

Cipriano de Rore

Ancor che col partire (fácil) Ancor che col partire (outro modo)

Thomas Crecquillon

Um gay bergier (fácil) Um gay bergier (outro modo)

Il Transilvano, 1593, Girolamo Diruta. Girolamo Diruta, que na realidade chamava-se Girolamo Mancini, foi compositor, organista e teórico.377 Entrou em 1574 para o Convento dos Frades Menores em Correggio, onde estudou com Battista Capuani. Nos anos de 1582 a 1593 esteve em Veneza, onde teve como mestres figuras importantes como Gioseffo Zarlino, Constanzo

376

ROGNONI, Riccardo. Op.cit. p. 61. CERVELLI, Luisa. “Premessa”. In: DIRUTA, Girolamo. Il Transilvano, 1593 e 1609. Bolonha: Arnaldo Forni, 1997, p. 2. PALISCA, Claude V. “Diruta [Mancini], Girolamo.” In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001.

377

203

Porta e Claudio Merulo. Após sua estada em Veneza, tornou-se, em 1593, organista do Duomo de Chioggia e, em 1609, do Duomo de Gubbio. Seu tratado, Il Transilvano, está em forma de diálogo e é dividido em duas partes. A primeira delas foi impressa em 1593 e é dedicada a Sigismondo Bàttori, príncipe da Transilvânia. Sigismondo era também sobrinho do rei da Polônia378 e tinha formação italiana; segundo fontes da época, o príncipe sabia tocar todos os instrumentos e compor de maneira excelente.379 Para Palisca, a relação de Diruta com o príncipe parece ter ocorrido por intermédio de Istvan de Jósika, seu chanceler e provável interlocutor do diálogo, chamado de o “Transilvano”.380 A segunda parte do tratado foi publicada em 1610 e dedicada à Duquesa Leonora Orsini Sforza, ex-pretendente de Sigismondo. Nesta época, o interlocutor Jósika já havia morrido, pois tinha sido preso e decapitado em 1598 por suspeita de traição.381 A obra de Diruta propõe-se a ensinar “o verdadeiro modo de tocar o órgão e outros instrumentos a pena [cravo]” e para isso nos dá todos os fundamentos teóricos e práticos necessários para o exercício de tal profissão. O autor também oferece uma série de toccate e ricercari compostos por ele e por autores conhecidos da época. O autor se atém sobre o tema da diminuição no início do Primeiro Livro da Segunda Parte, no qual escreve sobre a “tabulação diminuída”, considerando tabulação como a escrita própria para teclado, onde todas as vozes estão condensadas sobre dois pentagramas. Para Diruta, este tipo de diminuir:

deve ser feito nas partes que não estão em fuga e quando, mesmo assim quiseres diminuir a fuga, deve-se advertir que aquela diminuição seja feita em todas as partes que constituem tal fuga, sejam elas de semínima, ou de colcheias, ou de semicolcheias, ou ainda de fusas [biscrome]. Com cinco tipos de diminuição se tabula: a primeira, chamaremos de Minuta; a segunda, de Groppi; a terceira, de Tremoli; a quarta, de Accenti; e a quinta, de Clamationi.382

378

PALISCA, Claude V. Op.cit., 2001. CERVELLI, Luisa. Op.cit., p. 1. 380 PALISCA, Claude V. Op.cit., 2001. 381 CERVELLI, Luisa. Op.cit., p. 1. 382 “Diruta: Dovete primeiramente sapere, che l’intavolare diminuito, si deve fare nelle parti, che non fanno la fuga, e quando anche si volesse diminuire la fuga, si deve avertire, che quella diminutione la facciano tutte quelle parti, che fanno l’istessa fuga, ò siano di Semiminime, ò crome, ò semicrome, over biscrome. con cinque sorte de diminutioni s’hà da intavolare, la prima chiamaremo Minuta la seconda Groppi, la terza 379

204

E deste modo, para que possamos compreender, o autor nos dá alguns exemplos de cada um destes tipos de ornamentação, em cada uma das quatro vozes. Alguns conselhos sobre a diminuição seguem-se aos exemplos:

a minuta pode adentrar em outras partes, desde que o seu princípio bata com as consonâncias o máximo possível para fazer-se ouvir todas as partes; depois poderás fazer qualquer tipo de diminuição que lhes aprouver. O diminuir observado está de acordo com o que viste nos exemplos acima, que a primeira nota e a última da minuta sejam iguais àquela nota que é diminuída e que esta encontre a nota seguinte, ou por grau conjunto ou por salto. Quando for por grau conjunto, a última nota da minuta poderá também terminar na oitava de cima ou de baixo, desde que vá ao encontro da seguinte nota. Observando esta regra nunca nascerá inconveniente algum nem de oitavas, nem de quintas paralelas. E não estragará a composição, tampouco a Harmonia.383

A seguir, Diruta nos dá duas obras diminuídas nos 5 tipos elencados por ele: a Canzona detta la Spiritata de Giovanni Gabrieli e a Canzona detta l’Albergona de Antonio Montaro.

Breve et facile maniera d’essercitarsi a far passaggi, 1593, Giovanni Luca Conforti. Nascido em Mileto, na Calábria, Conforti foi cantor falsettista da Capela Papal de 1580 a 1585, ano em que foi expulso, juntamente com outros músicos, por ter-se filiado à Congregação dos Músicos de Santa Cecília, proibida aos funcionários do papa.384 O cantor

Tremoli, la quarta Accenti & la quinta Clamationi.” DIRUTA, Girolamo. Op. cit., Seconda Parte, Libro Primo, p. 10. 383 “Diruta: [...] la minuta può entrare nell’altre parti: avertendo di battere il principio delle consonanze piu che sia possibile per far sentir tutte le parti: fare poi, che sorte de diminutione vi piace. il diminuire osservato, è secondo c’havete vsito nelli sopradetti essempi, che la prima nota e l’ultima della minuta vada sopra à quella nota, che è diminuita; & che la minuta vada a trovar la seguenti nota, o sia di grado, over di salto. Quando sarà di grado, l’ultima notta della minuta si potrà anco terminare all’ottava di sopra, over di sotto, pur che vadra trovar la seguente nota. Osservando questa Regola non mai nascerá inconveniente alcun di due Ottave ne di due Quinte; & non si verrà a guastare la compositione, ne tam poco la sua Armonia.” DIRUTA, Girolamo. Op. cit., Seconda Parte, Libro Primo, p. 14. 384

NUTTER, David. “Conforti, Giovanni Luca”. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001.

205

continuou na corte romana trabalhando principalmente para o duque de Sora.385 Em 1586, o proto-notário Camillo Capilupi recomenda-o para o duque de Mântua, Guglielmo Gonzaga, através de uma conhecida carta na qual ele descreve as qualidades do cantor:

[...] Giovanni Luca [...] canta de cabeça, faz contrapontos e aquilo que se chama gorgia, parecendo um rouxinol, se bem que alguns gostariam que a voz pudesse ser mais delicada; mas no [cantar] de câmara, tem o melhor falsetto que existe em Roma, e na Capela, o contralto; canta em todos os instrumentos [...]386

Conforti voltou para a Capela Papal em 1591 onde cantou como contralto até a data de sua morte, em 1608. Seu livro da diminuição, de formato pequeno (16° oblongo), tem o título bem explicativo: “Breve e fácil maneira para todos os alunos se exercitarem, não somente no fazer passagens sobre todas as notas que se desejam cantar e fazer a disposição graciosa e em diversos modos e valores com as cadências, mas também para poder, sem professor, escrever qualquer obra e ária diminuída [passeggiata] que quiserem, e [também] como se notam. E isto serve ainda para aqueles que tocam a Viola ou outro instrumento de sopro para soltar a mão e a língua, para tornar-se possuidor dos sujeitos e fazer outras invenções por si próprio.“387 Resumindo, a obra contém passagens não muito elaboradas sobre os intervalos de uníssono, segunda, terça, quarta e quinta, ascendentes e descendentes, além de cadências e ornamentos padronizados como trilos e groppi. Como vimos no título, o livro está endereçado àqueles que desejam exercitar passagens ao cantar, ao tocar ou ao escrever obras diminuídas. O autor afirma que tal prática geralmente vem através de muito esforço, dificuldade e tempo, mas que ele, para o bem comum, tentou encontrar uma forma de diminuir tal fadiga, de modo que, com esta “breve maneira”, todos aqueles que cantam pudessem, em menos de dois meses, adquirir 385

ROSTIROLLA, Giancarlo. “Introduzione”. In: CONFORTI, Giovanni Luca. Breve et facile maniera d’essercitarsi a far passaggi. Roma: Società Italiana del Flauto Dolce, 1986, p. 3. 386 “[...] Giovanni Luca [...] canta di testa e fa contrappunti e, come si dice di gorga, che pare un rosignuolo, benché alcuni vogliono che la voce potesse essere più delicata; ma in camera ha il falsetto, il melhor che sia in Roma, e il contralto in Cappella; canta in tutti gli stromenti [...]” ROSTIROLLA, Giancarlo. Op.cit., p. 3. 387 “Breve et facile maniera di essercitarsi ad ogni scolaro non solamente a far passaggi sopra tutte le note che si desidera per cantare, et far la dispositione leggiadra, et in diversi modi nel loro valore con le cadenze, ma ancora per poter da se escrivere senza maestri scrivere ogni opera, et aria passeggiata che vorranno, et come si notano. Et questo ancora serve per quei che sonano di Viola, o d’altri instromenti da fiato per sciogliere la mano et la lingua et per diventar possessori delli soggetti et far altre invenzioni da se fatte da Gio. Luca Conforto.” CONFORTI, Giovanni Luca. Op.cit., p. 1.

206

“boa e graciosa disposição.”388 Conforti ainda aconselha que o aluno deverá começar apenas com os exemplos de colcheias, porque os movimentos (melódicos) principais e mais comuns não passam de nove, os quais poderás aprender facilmente de memória e, exercitando um pouco, poderás improvisar com segurança sobre qualquer partitura (livro).389 No início do primeiro exemplo, Conforti coloca sete claves no pentagrama (ex. 15), para demonstrar que todos os intervalos e passagens, mesmo que eles apareçam posteriormente escritos somente na clave de soprano (dó na primeira linha), podem ser transpostos de acordo com a tessitura vocal de cada um. Ainda a respeito da performance dos exemplos, Conforti nos adverte que colocou a palavra “Salve” sob algumas diminuições para que o exercício seja feito sobre a vogal “a” no lugar de solfejar com o nome das notas. Verificou-se, entretanto, que o autor também colocou outras duas palavras para cantar as passagens: “mater” e “exules”, que diferentemente das duas primeiras, apresenta outra vogal para o solfejo, o “u”. Conforti nos fala também da performance instrumental (“para aqueles que desejam exercitar-se com a viola ou outros instrumentos de sopro”), dizendo que, o uso de tais exemplos será útil para a mão ficar graciosa [leggiadra], para as arcadas ficarem doces, para conhecer o gênero das passagens, como se escrevem e, para ficar na memória a sua diversidade.390

Exemplo 15.

388

CONFORTI, Giovanni Luca. Op.cit., p. 34. A respeito da “disposição”, Salvatore nos informa que, neste contexto, o termo significa “treinar a atitude para o cantar de gorgia com graciosidade.” Segundo o autor, tal “disposição” é para o instrumentista de arco o “soltar a mão com graciosidade”, como escreve Conforti, e para o instrumentista de sopro, o tornar a língua ágil. SALVATORE, Daniele. “Appendice VIII – Giovanni Luca Conforti. Breve et facile maniera di essercitarsi ad ogni scolaro [...]”. In: SALVATORE, Daniele. L’arte opportuna al sonar di flauto. Savignano sul Rubicone: Gruppo Editoriale Eridania, 2003, p. 139, nota 4. 389 CONFORTI, Giovanni Luca. Op.cit., p. 38. Ver também nota 82. 390 CONFORTI, Giovanni Luca. Op.cit., p. 40.

207

O método utilizado por Conforti para notar os exemplos é um tanto curioso; pois, preocupado com a brevidade, ele condensa dois ou três caminhos possíveis dentro de um mesmo exemplo que está encerrado em uma espécie de compasso, chamado por ele de casella (ex. 16). O aluno poderá ainda escolher nos intervalos de quarta e quinta, quais caminhos são melhores para seu tipo de voz, os que vão para o agudo ou os que vão para o grave. O autor também marcou com uma cruz (+) um exemplo de cada intervalo diminuído em semínimas, colcheias e semicolcheias que, segundo ele, serão consonantes com qualquer contraponto à oitava, décima e décima segunda, e podem ser usados com todos os tipos de figuras rítmicas (ex. 17). Podemos notar através deste relato, a aguda praticidade de Conforti ao organizar um método pequeno e conciso, dedicado àqueles que desejam iniciar na arte da diminuição. Segundo o autor, com o tempo, o aluno poderá adquirir para si a graciosidade [leggiadria], que segundo ele, é necessária para o cantar com “vagueza e disposição”, em uso nas grandes cidades e cortes principescas. 391

Exemplo 16.

391

Ibidem, p. 33 e 40.

208

Exemplo 17.

Regole, Passaggi di musica, 1594, Giovanni Battista Bovicelli. Sabemos pouco a respeito da vida de Bovicelli;392 apenas que foi frade franciscano, nascido em Assis e que desempenhou função de cantor nas cortes de Roma, Mântua e Milão.393 Sua única obra conhecida foi o manual de diminuição Regole, Passaggi di Musica, publicado em Veneza em 1594 e dedicado ao Sr. Giacomo Buoncompagno, duque de Sora. No frontispício das Regole, Bovicelli se intitula “músico do Duomo de Milão.” Bovicelli inicia o prefácio Aos Leitores justificando sua obra com uma pequena explanação especulativa sobre como “a arte está sempre engenhada em imitar [a natureza], e fazer tudo aquilo que nessa viu maravilhosamente impresso e esculpido.”394 Segundo o autor, a imitação foi maravilhosamente bem sucedida com a música, uma vez que esta corresponde à “belíssima ordem deste nosso mundo” e que muitos se engenharam em transformar aquilo que a princípio era bruto, em maior perfeição, tal como a música se transformou em sua época.395 Seguindo o prefácio, Bovicelli elenca dois motivos que o levaram a escrever as Regole, o primeiro deles foi o espanto [m’ha sbigottito] em ver a grande diferença entre a sua prática e a dos tratadistas precedentes; o segundo, em ver que ele não era nem artífice nem mercador. Sobre o segundo motivo, Bovicelli explica que o artífice se afasta de seu exercício e o mercador está preocupado em vender sua mercadoria,

392

BASS, John Burnell. Op. cit., p. 53. SALVATORE, Daniele. “Appendice IX – Giovanni Battista Boviceli. Regole, Passaggi di Musica. Madrigali, e moteti passeggiati”. In: SALVATORE, Daniele. L’arte opportuna al sonar di flauto. Savignano sul Rubicone: Gruppo Editoriale Eridania, 2003, p. 142, nota 1; BASS, John Burnell. Op. cit., p. 53; HORSLEY, Imogene. “Bovicelli, Giovanni Battista”. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 394 BOVICELLI, Giovanni Battista. “Ai lettori” In: SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 142. 395 Ibidem, p. 142. 393

209

isto é, o autor está interessado em destacar sua obra e seu estilo de ornamentar em relação aos demais manuais de diminuição.396 A seguir, o autor divide seu tratado em três partes: a primeira delas consiste em algumas “advertências para as passagens em relação às palavras”, na qual Bovicelli:

explica que os ornamentos nunca devem mudar o comprimento de uma sílaba, e que as sílabas não devem mudar durante a ornamentação. Ele também recomenda que quando se adicionam groppetti ou tremoli [...], o cantor deve terminar esses predeterminados ornamentos antes de mover-se para a próxima sílaba, a fim de evitar transições inadequadas. Finalmente ele adverte o cantor contra falhar ao completar as palavras ou repetir pedaços de palavras para acomodar a ornamentação.397

A segunda, diz respeito às “advertências em torno das notas”, na qual o autor dá suas regras e usos da diminuição:

[...] grande juízo se procura primeiramente no diminuir [passeggiare], ou acentuar as notas de valor, no qual é preciso ouvir o movimento das outras partes, para que em nenhum lugar, além do final, se encontrem todas as partes a parar em um mesmo tempo, em uma mesma continuação de harmonia.398

Isto é, assim como outros autores recomendam que as passagens devam ser feitas em turnos, para não gerar confusão no contraponto, Bovicelli está preocupado com o efeito contrário, que é deixar de ornamentar pedaços inteiros da obra por não ouvir quando é a melhor hora de se fazer uma passagem. Aqui, ele nos dá uma outra informação importante sobre seu estilo de diminuição: enquanto Maffei adverte que não se deve fazer mais do que quatro ou cinco passagens em um madrigal para não cansar o ouvido, Bovicelli deixa entender que a obra deve ser toda preenchida de modo que as partes se encontrem “paradas” conjuntamente só no final. A seguir, o autor nos fala sobre as passagens, como as observações são diferentes das dos demais tratados, vale a pena a transcrição de algumas partes: 396

Ibidem, p. 142-143. BASS, John Burnell. Op. cit., p. 54. 398 “[...] gran giudizio si ricerca primieramente ne passeggiare, o accentuare le note di valore: nel che bisogna aver orecchia al movimento delle altre parti, perché non mai, fuor che nel fine, s’incontrano tutte le parti a fermarsi in un medesimo tempo in una stessa continuatione d’armonia.” BOVICELLI, Giovanni Battista. “Avertimenti intorno alle note” In: SALVATORE, Daniele. Op.cit., p. 143. 397

210

As passagens, algumas vezes devem ser de notas consecutivas e de um mesmo valor e as mesmas, algumas vezes, [devem ser] em outro modo variado (ex. 18).399 [...] quando se canta, para dar graça à voz, no início, ou onde quer que seja (mas nisto, como em todo o resto precisa-se de juízo), começa-se uma terça ou quarta abaixo, segundo as consonâncias das outras partes e particularmente do Contralto, onde facilmente o Soprano pode tocar com o uníssono (e aquilo que se diz do Soprano em relação ao Contralto, pode valer em todas as outras partes). Sobre isto, porém, deve-se advertir que quando se segura a primeira nota, e a segunda é mais veloz, dá-se ainda mais graça à voz, e tal graça não existe toda vez que as notas são de um mesmo valor. Porque a graciosidade do cantar, como dissemos acima, não é outra coisa que a variação de notas de maior e menor valor (ex. 19) [...]. Isto ocorre muito bem nos groppetti, os quais podem terminar em duas maneiras: a primeira, de notas de um mesmo valor; a segunda, [de forma] que o fim do groppetto seja [...] freado. E isso soa [riesce] bem melhor porque dá maior graça à voz e é também cômodo para terminar as palavras. [...] Aquilo que dissemos sobre os groppetti [...]diz-se também para as passagens. Este valor, porém, não quer dizer que chegue às notas brancas [...] mas naquela maneira que se usa ao cavalgar; porque não costumam os cavalariços [...] puxar rapidamente as rédeas, mas vão pouco a pouco puxando o freio e diminuindo [rallentando] os passos (ex. 20)400

Exemplo 18.

399

O exemplo que Bovicelli nos dá sobre tais modos diferentes é uma escala com semínimas pontuadas e colcheias, esse tipo de escala desigual é bastante recorrente em seus exemplos. 400 “I passaggi alcuna volta devono esser di note seguenti e d’uno stesso valore, e le stesse alcuna volta in altra guisa variate [...], quando si canta, per dar gratia alla voce, o nel principio, o dovunque si sia (però in questo, come in tutto il resto vi vuol giudizio) si comincia una terza, o una quarta più basso, secondo la consonanza dell’altre parti, e particolarmente del Contralto, dove facilmente il Soprano può toccar l’uníssono (e quel che si dice del Soprano al Contralto, lo stesso può valer in tutte l’altre parti). In questo però si deve avvertire che quanto più si tiene la prima nota, e la seconda è più veloce, si dà anco maggior gratia alla voce, la qual gratia non vi può esser ogni volta che le note sono d’un stesso valore. Perché la leggiadria del cantare, come di sopra dicemmo, altro non è che variatione di note di più e men valore [...] Quel che abbiamo detto de i groppetti [...] si dice anco de i passaggi. Questo valore però non s’intende che arrivi alle note bianche [...] ma in quella maniera che s’usa nel cavalcare; perché non sogliono i cavallerizzi[...] tirar in un subito la briglia, ma in vanno a poco a poco ritirando il freno e rallentando i passi.” BOVICELLI, Giovanni Battista. Op.cit., p. 143145.

211

Exemplo 19.

Exemplo 20.

Pela descrição e pelos exemplos de Bovicelli, notamos um foco maior sobre a desigualdade das notas que compõem as passagens e demais ornamentos, as quais devem ser “freadas” no início para depois acelerar e chegar a tempo na próxima battuta; o contrário deve ser feito no final dos ornamentos colocados nas cadências, correspondendo a uma espécie de rallentando escrito; notamos também uma predileção por passagens de graus conjuntos com figuras pontuadas, para que assim se construa sempre um diminuir variado. Segundo Bovicelli, no canto de Câmara, onde a battuta é mais lenta [grave] do que o de Capela, quando se tem colcheias por grau conjunto, para que não fique monótono como o estudar de uma lição, pode-se remediar tal efeito fazendo os “pontos” (figuras pontuadas). Tal procedimento é um claro exemplo, assim como o método de variar as proporções métricas de Ganassi, de representação de um certo tipo de inégalité ou agógica pertencente à práxis do repertório quinhentista. Seguindo, o autor ainda trata de outros ornamentos como o tremolo, o accento e a tirata, e nos dá algumas advertências a respeito da performance: 212

Assim, ao cantar, deve-se ao máximo imitar as palavras, isto é, não ornar palavras tristes com passagens, mas acompanhá-las [...] com accenti e voz lamentosa; se as palavras são alegres, [deve-se] usar passagens e dar-lhe também vivacidade, fazendo notas variadas (ex.21) [...] Alguns costumam, para acomodar as passagens a seu modo, se uma nota vale uma battuta, segurá-la duas ou três [battute] – com que razão [fazem isso] eu não sei. Sei bem que é mais louvável no diminuir [passeggiare] manter o tempo justo que se encontra escrito no Canto, com exceção do final, isto é, da penúltima nota. [...] Finalmente em todas as passagens, cadências, accenti e em qualquer outra maneira de cantar, deve-se tomar o ar a tempo e com juízo; e também não se deve tomar entre aquelas notas que servem de accenti, até que se alcance pelo menos parte da última nota; ou no meio das passagens, quando as notas são de um mesmo valor; e a mesma coisa vale no final de todas as passagens e cadências.401

Bovicelli ainda dá conselhos aos cantores para não fazerem como aqueles que, “por falta de resistência ou por medo”, respiram muitas vezes, a cada pequena quantidade de notas; ou aqueles que “quase fazem mais barulho com a respiração do que com a voz”; ou ainda, que “apertam os dentes como se fossem espirrar” e “mandam a voz para o nariz ou para a garganta”. Também não se deve fazer como aqueles que começam a cantar passagens desesperadamente desde a primeira nota, quase deixando de dizer as palavras, enquanto se deveria abster-se por pelo menos três ou quatro tempos.402 A terceira e maior parte do tratado, intitulada “diversos modos de diminuir”, apresenta o formato corriqueiro dos demais manuais, isto é, contém exemplos de intervalos diminuídos (até a sexta), escalas ascendentes e descendentes e muitas cadências.403 A seção final vem precedida de uma carta “Aos virtuosos leitores”, onde Bovicelli explica suas idéias sobre diminuição de acordo com o contexto das obras que podem ser encontradas 401

“Cosi nel cantar si devono, più che si può, imitare le parole, cioè parole meste non adornarle con passaggi, ma accompagnarle, per così dire, con accenti & voce flebile; se le parole sono allegre, usar passaggi e darli anco vicacità, facendo note variate [...]. Sogliono alcuni per accomodarsi i passaggi a modo loro, se una nota vale una battuta, tenerla due o tre, con che ragione io non lo so; so bene che è più laudabile nel passeggiare star obbligato al tempo giusto che si trova scritto nel Canto, fuori che nel fine cioè nella penultima nota. [...] Finalmente in tutti i passaggi e cadenze & accenti & in ogni altra maniera di cantare, si deve pigliare il fiato a tempo e con giuditio; e massime non si deve pigliar fra quelle note che servono per accenti, fin che non tocchi almeno parte dell’ultima nota, o nel mezzo dei passaggi, quando le note sono d’uno istesso valore; e lo stesso vale nel fine d’ogni passaggio e cadenza.” BOVICELLI, Giovanni Battista. Op.cit., p.148-149. 402 BOVICELLI, Giovanni Battista. Op.cit., p. 149 e nota 22. 403 BASS, John Burnell. Op. cit., p. 55.

213

pelos cantores e, para facilitar o entendimento, posiciona seus doze exemplos (tab. 7) colocando a melodia original em um pentagrama e a ornamentação em outra logo abaixo.404 Segundo Bass, Bovicelli é o único autor que não apresenta nenhum exemplo de chanson francesa e também o único a diminuir uma composição própria; além disso, nota-se que a concentração de motetos é muito maior também, o que para Bass pode ter relação com a sua profissão de cantor de Capela.405 Tabela 7.406 Giovanni da Palestrina

Io son ferito Ave verum corpus

Cipriano de Rore

Anchor che col partire Angelus ad Pastores

Tomás Luis de Victoria

Vadam, et circumibo civitatem

Claudio Merulo

In te Domine speravi Assumpsit Jesus

Giulio Cesare Gabussi

Falsobordone e Magnificat

Ruggiero Giovanelli

Falsobordone e Magnifcat

Giovanni Battista Bovicelli

Falsobordone e Dixit Dominus

Prattica di Musica, 1596, Lodovico Zacconi. Zacconi foi um importante cantor e organista italiano. Nascido em Pesaro em 1555, estudou em Veneza com Andrea Gabrieli e trabalhou na Capela do Arquiduque da Áustria, Carlo II e do Duque da Baviera, Guglielmo V, sob direção de Orlando Lasso. Segundo Salvatore, era também sacerdote e morreu em 1627 durante um sermão.407

404

Ibidem, p. 56. Ibidem, p. 57. 406 A lista de obras diminuídas por Bovicelli foi retirada de BASS, John Burnell. Op. cit., p. 57. 407 SALVATORE, Daniele. “Apendice XI – Lodovico Zacconi. Pratica di Musica”. In: SALVATORE, Daniele. Op. cit., p. 159, nota 1. 405

214

Seu livro, “Prática de Música. Útil e necessária, seja ao Compositor, para compor seus cantos com regra, seja também ao Cantor, para assegurar-se de todas as coisas cantáveis”408, não é um manual de diminuição, mas segundo Singer, contém valiosas, e frequentemente únicas, informações sobre a prática da música do século XVI.

409

Dois

capítulos nos interessam neste momento: o Capítulo X do Primeiro Livro, no qual o autor relata a respeito “De onde os antigos retiravam os seus efeitos musicais” e principalmente o Capítulo LXVI do mesmo Livro, onde discorre sobre “Que estilos se têm ao cantar de gorgia e do uso das modernas passagens”. Neste último, Zacconi nos dá, juntamente com preceitos teóricos da diminuição, um moteto anônimo ornamentado, Quae est ista, apresentado da mesma maneira que os exemplos de Bovicelli, ou seja, em dois pentagramas para que se veja aquilo que foi ornamentado. Zacconi justifica a escolha de diminuir sobre um moteto afirmando que “os madrigais geralmente são mais difíceis do que os motetos” e que por isso, este último é mais indicado aos “principiantes e aqueles que não sabem”.410 No capítulo ainda constam 171 células melódicas (e não intervalos) diminuídas.

De onde os antigos retiravam os seus efeitos Musicais. [...] Encontrei-me a discutir com Músicos velhos, que em sua juventude conheceram famosos cantores daquele tempo e compositores de importância, que cantavam as cantilenas como estavam escritas nos livros, sem colocar-lhes nem um mínimo accento, ou dar-lhes um pouco de ornamento [vaghezza]. [...] das quais não podia resultar outra coisa que o simples e puro efeito harmonioso [...] e por isso podemos dizer que os antigos não retiravam os seus efeitos Musicais senão das puras e simples invenções deles. Que estilos se têm ao cantar de gorgia e do uso das modernas passagens. Os ornamentos [vaghezza] e os acentos são feitos com o despedaçar e quebrar das figuras, todas as vezes que, em um tactus, ou meio, junta-se uma quantidade de figuras que têm a natureza de ser velozmente pronunciadas, as quais causam tanto prazer e deleite que nos fazem parecer que estamos ouvindo tantos anjinhos bem treinados. [...] Este modo de cantar e estes ornamentos são comumente chamadas pelo vulgo de gorgia, a qual não é outra coisa que um agregado e uma coleção de muitas colcheias e semicolcheias coligadas sob qualquer partícula de tempo que se queira. E é de tal natureza, que pela velocidade em que se restringem tantas figuras, muito melhor se aprende com o 408

“Pratticadi Musica. Utile et necessária si al Compositore per Comporre i Canti suoi regolarmente, si anco al Cantore per assicurarsi in tutte le cose cantabili”. ZACCONI, Lodovico. Prattica di Musica. In: SALVATORE, Daniele. Op. cit., p. 159. 409 SI NGER, Gherhard. “Zacconi, Lodovico [Giulio Cesare]”. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 410 ZACCONI, Lodovico. Op.cit., p.164.

215

ouvido do que com os exemplos. E isto porque nos exemplos, aquela medida e tempo não se podem colocar [...]. A mais bela e perfeita coisa que se busca no gorjear é o tempo e a medida, o qual, todo aquele recolhido e agregado de figuras orna e condimenta. [...] E observe por primeira regra que ao principiar qualquer canto, estando as outras partes em silêncio, não o começa com gorgia, nem imediatamente depois do dito princípio, [...] porque se costuma dizer que o agudo apraz por oposição ao grave e uma voz sozinha [...] pouco deleite causa [...]. A doçura da gorgia nasce daquele gracioso [vago] e sucinto movimento que fazem as partes [...]. Também observe o cantor, no final de qualquer cantilena, de não fazer aquilo que fazem muitos [cantores] pouco atentos e muito pouco hábeis [pratici] nesta profissão, que fazem tanta abundância de ornamentos [vaghezze], que querem mostrar todas as coisas no final, tendo deixado todo o meio vazio e seco. [...] Também não se deve deixar passar o vício daqueles que, por ter a gorgia como amiga, desejam em todas as figuras fazer alguma coisinha e, fazendo-a, mesmo que seja boa, danifica as sílabas e as palavras. [...] Tenha cuidado ao fazer passagens sobre as semínimas, principalmente se estão acompanhadas das sílabas. [...] Nas mínimas, [...] pode-se fazer aquilo que se queira desde que não danifique as ditas sílabas ou palavras. [...] Nas semibreves, breves, e outras figuras maiores [...] podem surgir muitos ornamentos [vaghezze] juntos, [...] orna-los como parece e apraz a cada um. Os lugares que convidam os cantores a fazer floreios e passagens são as cadências, as quais são de uma natureza que, quem não as faz bem, danifica e tira toda a beleza. [...] Mesmo que nas gorgie o número de figuras não corresponda ao número de figuras do tactus, não há problema, desde que caiam sem defeito sobre uma métrica e tempo, e que ao pronunciá-la não se conheça nem defeito, nem dissonância; porque nesta habilidade e profissão, muitos que gorjeiam bem fazem tão graciosas [vaghe] e belas passagens que, quem as colocasse no papel colocaria de mais ou de menos; [...]. Semelhantemente nas cadências, aquelas replicações de sol fá# sol, lá sol# lá, fá mi fá, e outras, pode-se alongá-las o quanto for necessário. [...] Não deve faltar também o modo de poder ornamentar algumas figuras do baixo ou das partes graves com accenti comuns, os quais cabem em todos aqueles lugares em que as ditas partes graves sustentam as agudas.411

Através desta citação, podemos observar que Zacconi deseja dar alguns conselhos práticos sobre a execução das ornamentações, provavelmente provenientes de sua própria experiência como cantor. Como observa Singer, o tratado de Zacconi deve ser lido com a consciência das limitações do autor que, consciente das suas próprias falhas de formação, teria escrito a obra apenas para rebater uma crítica dirigida a ele por Zarlino.412 Segundo o autor, Zacconi generaliza muitos conceitos e apresenta grande confusão em alguns temas. 411

ZACCONI, Lodovico. Op.cit., p. 162-164. Segundo Singer, o próprio Zacconi teria admitido não saber Grego e ter o Latim defeituoso, além disso, o cantor teria ainda consultado outros músicos para a confecção de seu tratado. Singer também afirma que Zacconi teria decidido escrever o tratado depois de ter sua formação (incompleta) criticada por Zarlino. SINGER, Gherhardt. Op. cit., 2001. 412

216

No que se refere aos conselhos de diminuição, Zacconi nos dá algumas advertências bem semelhantes às de Bovicelli, de como saber distribuir bem as passagens em toda obra e manter o tempo correto, exceto na penúltima nota da cadência, na qual ambos aconselham fazer uma espécie de rallentando com passagens. O autor também é concordante com Bovicelli ao notar a existência da desigualdade das notas que são cantadas em uma passagem, mas diferente do primeiro, Zacconi não tentou escrevê-las através do uso de figuras pontuadas.

Il Dolcimelo, ca.1600, Aurelio Virgiliano Il Dolcimelo é um tratado manuscrito que se encontra na Biblioteca do Civico Museo Bibliografico Musicale de Bolonha. Segundo Castellani, Virgiliano parece ser apenas um nome acadêmico e por isso o autor sugere dois músicos candidatos a autor da obra, levando em consideração que este tenha mantido o seu nome de batismo: o bresciano Aurelio Averoldi, talvez afiliado da academia milanesa de Prospero Lombardo; e o bolonhês Aurelio Bonelli, membro da academia bolonhesa dos Floridi, fundada em 1615 por Adriano Banchieri.413 A obra está incompleta e é dividida em três livro com belíssimas ilustrações. O “Livro Primeiro. Onde se contêm as passagens para fazer com a voz e com qualquer tipo de instrumento musical“ inicia com a disposição de dez regras da diminuição, divididas em tópicos:

1. 2. 3. 4.

5. 6.

A Diminuição deve caminhar por grau conjunto o máximo possível. Todas as minutas devem ser uma no tempo forte [buona] e a outra no tempo fraco [cattiva]. Aquelas minutas que saltam devem ser todas no tempo forte [buone]. A nota do sujeito tem que ser sempre tocada no princípio, no meio e no fim da battuta. E, quando no meio não fica cômodo, deve-se pelo menos tocar perto, em um lugar que seja consonante, e nunca dissonante; exceto [no salto de ] quarta superior. Quando o sujeito ascende, a última nota da minuta deve também caminhar de baixo para cima, e o mesmo para o contrário. Será um belo modo correr uma oitava toda para baixo ou para cima, quando for cômodo.

413

CASTELLANI, Marcelo. “Introduzione”. In: VIRGILIANO, Aurelio. Il Dolcimelo. Florença: S.P.E.S., 1979, p. 1.

217

7. 8.

9.

Quando se salta uma oitava, deve-se fazer em direção àquela de cima e não àquela de baixo, para não chocar com as outras partes. A Diminuição não deve afastar-se do sujeito mais do que uma quinta abaixo, ou acima. Somente no meio destas duas [notas] “SOL” pode a Diminuição afastar-se do sujeito sete graus para cima e sete para baixo. Mas é concedido somente em uma fúria [espécie de tirata] de semicolcheias.

10. Quando se encontram [saltos de] duas Terças ascendentes, como

, será concedido que sirva-se da Quarta abaixo, porque será a oitava da ultima Terça, como

. Assim, no contrário, quando se encontram duas

terças descendentes, poder-se-á fazer a mesma coisa, como

.

Note-se que as regras de Virgiliano sugerem uma diminuição bem mais restrita do que os demais manuais, pois instruem a circundar as notas originais do contraponto o máximo possível, numa extensão reduzida entre os intervalos de uma quinta acima e uma abaixo, ou seja, uma oitava mais uma nota. A regra mais curiosa está no número 2, que trata da disposição das notas em articulações desiguais, em que uma deve soar boa (forte) e a outra, ruim (mais fraca). Tais articulações poderiam ser feitas em um instrumento de sopro utilizando as sílabas correntes como o teke teke ou o tere tere, e nos instrumentos de arco, utilizando uma arcada para cada nota, isto é, para baixo nas notas “boas” e para cima nas “ruins”. Embora na prática seja sempre essa a articulação sugerida pelos tratados, a nomenclatura utilizada pelo autor é que nos chama a atenção, notas buone e cattive não costumam aparecer nos tratados do século XVI, mas serão amplamente utilizadas na terminologia do repertório do século XVIII. Seguindo no Livro Primeiro, encontramos duas tabelas de como fazer as mudanças entre os hexacordes, que auxiliam o solfejo e um plano inacabado de exemplos de diminuição sobre os intervalos de uníssono a oitava, divididos de acordo com a minuta utilizada: colcheias, semicolcheias, perfidie, triplicate, quadruplicate e sestuple. Infelizmente nenhum exemplo dos três últimos tipos de figuras foi preenchido; entretanto, podemos notar que Virgiliano talvez conhecesse a obra de Dalla Casa e, por conseguinte, as terminologias utilizadas para as figura de 1/24 e 1/32; este é um dos fatos que leva

218

Castellani a crer que este manuscrito tenha sido escrito na transição entre os séculos XVI e XVII.414 A respeito das sestuple, como não temos nenhum exemplo preenchido no primeiro livro, fica difícil a dedução de seu significado, mas em uma das Ricercate do segundo livro, o termo aparece como sinônimo da métrica

6/4,

na qual se devem colocar seis semínimas

por battuta (ex. 22). Já as perfidie não são exatamente figuras, mas padrões rítmicos que se repetem duas ou mais vezes dentro de uma diminuição (ex. 21). O uso de tais padrões corresponderia ao diminuir simples de caminhos contido na Fontegara. Segundo Salvatore, as perfidie também aparecem posteriormente no tratado de Angelo Berardi, Documenti Armonici (1687), que a definiu como a “continuação de um passo segundo o capricho do compositor”415 e, em sua obra, deu vários exemplos de contraponto perfidiato de diferentes padrões rítmicos.416

414

O segundo fato destacado pelo pesquisador é o uso do termo tiorba, que remontaria aos primeiríssimos anos do século XVII. CASTELLANI, Marcelo. Op.cit., p.1. 415 BERARDI, Angelo. Documenti Armonici, Bologna, 1687. Apud: SALVATORE, Daniele. “Appendice XII - Aurelio Virgiliano. Il Dolcimelo”. In: SALVATORE, Daniele. Op. cit., p. 177 416 SALVATORE, Daniele. Op. cit., p. 177.

219

Exemplo 21.

220

Exemplo 22.

O “Livro Segundo. Onde se contêm Ricercate floridas, Madrigais e Canzoni diminuídas para tocar graciosamente [vagamente] com qualquer tipo de instrumento” foi só preenchido com nove Ricercate, semelhantes àquelas de Bassano, porém muito mais extensas e elaboradas. É interessante também notar que, ainda que o autor tenha especificado no título que os exemplos são destinados à execução em qualquer instrumento, ele dá preferência para os instrumentos que tocam a linha de soprano, pois coloca a inscrição Ricercar para Flauta: Cornetto: Violino: Traversa: e similares, na frente da maioria dos exemplos. Virgiliano também escreve duas Ricercate inteiras em proporção 6/4,

ou sestuple, segundo sua própria terminologia, e muda para essa métrica no meio de um

outro Ricercar. O Il Dolcimelo é o único tratado posterior à Fontegara que faz menção ao uso de outros tipos de métrica dentro do contexto da diminuição. Salvatore, no apêndice sobre Virgiliano, também questiona se as nomenclaturas triplicate e quadruplicate, colocadas ao lado da sestuple no primeiro livro corresponderiam realmente às figuras de Dalla Casa ou se seriam, como esta, outros tipos de proporção métrica.417 O terceiro livro nada tem a ver com a diminuição; nele, Virgiliano tinha o plano de colocar tabelas de dedilhado e modos de afinação de todos os tipos de instrumentos, sejam eles de corda, de sopro ou de teclado. Infelizmente, a maioria das páginas só possui os títulos ou desenhos dos instrumentos. (ex. 23)

417

SALVATORE, Daniele. Op. cit., p. 177.

221

Exemplo 23.

Libro de Passaggi, 1609 e 1624, Giovanni Battista Spadi da Faenza. Quase nada sabemos sobre este pequeno manual de diminuição, impresso em Veneza em 1609 e reeditado em 1624. No frontispício da obra, Spadi diz-se discípulo de Giulio Belli, que foi importante músico e mestre de capela em igrejas menores de várias cidades italianas, como Imola, Veneza, Ravenna, Ferrara, Assis, Osimo e Forlì.418 Não encontramos nenhuma referência biográfica sobre Spadi e, infelizmente, a edição facsimilar disponível não contém prefácio.419 No dicionário Grove, apenas é citado o compositor Vincenzo Spada, também de Faenza, Battista.

um possível familiar de Giovanni

420

Spadi nos oferece em seu manual, assim como ele anuncia no frontispício da obra, exemplos de passagens ascendentes e descendentes, por todos os graus conjuntos e 418

WESSEL, Othmar. KREYSZIG, Walter. “Belli, Giulio” In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001. 419 SPADI DA FAENZA, Giovanni Battista. Libro de Passaggi ascendenti et descendenti. Bolonha: Arnaldo Forni, 2007. 420 FENLON, Iain. “Spada, Vincenzo” In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001.

222

intervalos de terça, cadências e dois madrigais diminuídos para ser tocado com todo o tipo de instrumento e também para cantar com a simples voz.421 As passagens do autor são bem simples e não fazem uso de outras figuras rítmicas além da colcheia e da semicolcheia. Os dois madrigais diminuídos são de autoria de Cipriano de Rore, Amor ben mi credevo e Ancor che co’l partire. O primeiro deles está na mesma forma que Bovicelli e Zacconi apresentam: escrito em dois pentagramas, um para a voz original e outro para a diminuição. Já no segundo exemplo, talvez por ser um madrigal muito diminuído pelos tratadistas, temos apenas o pentagrama com a diminuição feita por Spadi.

Selva di varii passaggi, 1620, Francesco Rognoni. Francesco Rognioni foi um importante instrumentista e compositor milanês, filho de Riccardo Rognoni. No frontispício de suas Canzoni Francesi instrumentais, publicadas em 1606, o músico se declara tocador de violino, viola bastarda e outros instrumentos, isto é, um seguidor de seu pai no que se refere ao resgate do violino, considerado até então por seus contemporâneos como instrumento “crudo e aspro”.422 Barblan nos mostra também que, na mesma época, várias obras instrumentais dedicadas ao violino foram publicadas por músicos milaneses, entre elas, as Sonate e Sinfonie (1608), de Cesario Gussago, dedicadas a Giovanni Battista Fontana “dal violino”; a Sonata a tre e a Sonata per violino e basso continuo (Concerti Ecclesiastici, 1610) de Paolo Cima, que constituem os primeiros exemplos de sonata solo e em trio que conhecemos.423 Segundo Lattes e Toffetti, a maioria das informações biográficas de Rognoni estão em suas publicações, deste modo, sabemos que na época da publicação das Canzoni, o autor estava filiado à academia milanesa de Marco Maria Arese, para a qual dedica sua primeira obra.424 Já em 1610, foi diretor de música do príncipe de Masserano e, em 1613, diretor do grupo instrumental do governador de Milão. No frontispício da Selva de Varii Passaggi secondo l’uso moderno, per cantare e 421

“Libro de Passaggi ascendenti, et descendenti di grado per grado, et ancora di terza. Con altre Cadenze, & Madrigali Diminuiti per Sonare con ogni sorte di Stromenti, & anco per Cantare con la semplice Voce.” SPADI DA FAENZA, Giovanni Battista, 2007. 422 BARBLAN, Guglielmo. Op. cit, p. 9. 423 BARBLAN, Guglielmo. Op. cit, p. 9. 424 LATTES, Sergio. TOFFETTI, Marina. “Francesco Rognoni Taeggio” In: “Rognoni [Rognino, Rogniono, Rognone, Rognoni Taeggio, Rognoni Taegio, Rongione, Rongioni, Taegio]”. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Ed. Stanley Sadie e John Tyrell. London: Oxford University Press, 2001.

223

sonare con ogni sorte de Stromenti, Rognoni se autodenomina “músico chefe de instrumentos na Régia Corte Ducal e Mestre de Capela em Santo Ambrósio Maior de Milão.”425 A obra foi dedicada “à Sacra Majestade do Rei da Polônia”, Sigismundo III, grande mecenas e amante da música italiana. Essa predileção pela arte italiana é característica da família real polonesa desde o casamento do rei Sigismundo I, sogro de Sigismundo III, com Bona Sforza, duquesa de Bari. A Selva está dividida em dois livros, sendo o primeiro deles totalmente endereçado aos cantores. Nele, Rognoni nos dá uma tabela de dez advertências sobre a execução de passagens e ornamentos padronizados, como os accenti, tremoli, groppi e esclamationi, para em seguida demonstrar em partitura, os “verdadeiros princípios para cantar claro [polito] e bem” (ex. 24), que, não são outra coisa além de explicações sobre a execução de tais ornamentos, característicos do novo gosto. Na primeira e última linha destes princípios (ex. 24), notamos que Rognoni resgata algumas práticas contidas no tratado de Bovicelli, como o cantar desigual das notas e a prática de iniciar uma melodia uma terça ou quarta abaixo da nota original, para “dar graça à voz”.426

425 426

ROGNONI, Francesco. Selva di varii passaggi. Bolonha: Arnaldo Forni, 2001. Ibidem, folio 1.

224

Exemplo 24.

225

Quatro das dez advertências são sobre as passagens, ou seja, sobre a diminuição comum. Os conselhos dizem respeito à execução clara dos ornamentos, à observação das consonâncias do contraponto e à disposição das palavras. Segundo o autor, as passagens devem ser cantadas sobre as vogais e não, “como fazem alguns”, sobre certas sílabas como “gu, bi, vi, si, tur, bar, bor e outras semelhantes”.427 Outro conselho curioso do autor está na advertência 9:

Existem alguns Cantores que, às vezes, têm um certo modo de gorjear (alla morea) , executando a passagem em um modo considerado desagradável por todos: cantando “aaa”, que até parece que estão rindo e podem-se assemelhar àqueles Etiopianos ou Mouros, de que nos conta “A Viagem de Veneza em Jerusalém”, que diz que tal povo, nos sacrifícios deles, cantam dessa maneira, que parece que estão rindo e mostrando quantos dentes têm na boca. 428

Note-se a preocupação dos tutores com os exageros da execução da diminuição, seja na transgressão do contraponto, seja na clareza das palavras da obra executada ou nos efeitos “ridículos” que o uso indevido e desprovido de técnica pode gerar. Críticas ao exagero das diminuições também permearam as obras de teóricos e expressivos compositores do século, como Gioseffo Zarlino e Ercole Botrigari. 429 Seguindo no livro primeiro, um extenso apanhado de exemplos se dispõe em passagens de grau conjunto ascendentes e descendentes, saltos de terça a oitava (omite-se o salto de sétima),

cadências comuns e cadências finais, e alguns exemplos de obras

diminuídas. É interessante observar que o autor chama de passagens apenas os graus conjuntos de cinco notas sucessivas, ascendendo ou descendendo em diversas figuras: semibreve, mínima, semínima e colcheia; as diminuições dos demais intervalos estão em outra parte do livro e são chamadas de saltos. Quase todas as passagens ascendentes vêm acompanhadas do texto “Sancta Maria” e as descendentes, de “Ora pro nobis”.

427

ROGNONI, Francesco. Op.cit, “Avvertimenti” n. 9. “Sono certi Cantori, che alle volte hanno vn certo modo di gorgheggiare (alla morea) battendo il passaggio à vn certo modo da tutti dispiaceuole, cantando aaa, che pare, che ridano, costoro si possono assomigliare à quelli Etiopiani, ò Mori, che racconta il Viaggio di Venetia in Gierusalemme: dice, che tal gente nei Sacrificij loro cantano in questo modo, che par che ridano mostrando quanti denti hanno in bocca [...]. 429 ZARLINO, Gioseffo. Istitutioni Harmoniche, 1558, livro III, p. 46 e BOTRIGARI, Ercole. Il Desiderio, 1594, p.50-51. Apud: BROWN, Howard Mayer. Op. cit., p. 75. 428

226

Os exemplos que seguem essas células contêm o texto distribuído ao longo da diminuição, de modo a mostrar-nos seu o uso correto. Notamos que o autor apresenta um imenso cuidado com o texto em várias partes da obra e nos dá, logo após as cadências, muitos outros exemplos de acomodação das diminuições em vários textos correntes da liturgia católica. Além disso, no final das passagens em colcheias, temos também seqüências de duas notas em grau conjunto, ascendentes e descendentes, diminuídas sobre a palavra “Amen”. Apenas algumas passagens feitas sobre graus conjuntos em semínimas, aquelas sobre as colcheias, os saltos e as cadências não contêm texto. O teor de tais palavras ou trechos a serem cantados nos sugere que o público alvo da obra de Francesco Rognoni eram os cantores que cantavam nas Capelas e não aqueles que trabalhavam em ambientes da camera. Uma outra evidência são as duas obras diminuídas pelo autor: o moteto de Giovanni da Palestrina, Pulchra es amica mea, com diminuição da voz de soprano e do baixo (para cantar alla bastarda); e o madrigal de Palestrina, Quanti mercenarii in domo patris mei, transformado em moteto passeggiato para o Soprano, dedicado à reverenda Sra. Dona Ginepra Crivelli do Monastério de Santa Margarida. O segundo livro é dedicado aos instrumentos e nele encontramos descrições da natureza dos instrumentos de corda e de sopro, com uma atenção especial para o violino, instrumento principal do autor. O livro contém também algumas instruções de arcadas e articulações para os instrumentos de sopros; esta última muito semelhante aos demais tratados de diminuição que se preocupam com a boa execução dos ornamentos, como Ganassi, Dalla Casa e Riccardo Rognoni. A organização dos exemplos é muito semelhante ao primeiro livro: inicia-se com as passagens de graus conjuntos, depois seguem as cadências, os saltos e ainda outros exemplos com células melódicas. Porém, já no primeiro exemplo de passagens, podemos notar uma diferença na linguagem dos ornamentos, pois contêm um número maior de saltos e saltos seguidos, típicos da música para instrumentos, uma vez que são muito difíceis de cantar. Na página 49 do segundo volume, Rognoni faz uma pequena nota dizendo que os exemplos daquela página, constituem o “Modo de utilizar-se da nota seguinte para diminuir, primeira regra quase infalível”. Isto é, ao contrário de Ganassi, que nos ensinou iniciar a diminuição com a primeira nota e terminar

227

com o intervalo a ser diminuído (ex. 25), Rognoni ensina um “método infalível”, que é tocar o intervalo primeiro e depois diminuir a segunda nota (ex. 26). 430

Exemplo 25.

Exemplo 26.

As obras diminuídas por Rognoni são: o madrigal Io son ferito, hai lasso de Giovanni da Palestrina; a canzona La porcia de Antonio Mortara, dedicada à reverenda Sra. Dona Gracia Ottavia Crivella, do Monastério de Santa Margarida; o madrigal Vestiva i colli, também de Palestrina; a chanson, Susanna un jour de Orlando de Lasso, em duas versões, uma para Violone ou Trombone alla bastarda e um modo fácil para Viola Bastarda ou outro instrumento; outra versão de Vestiva i colli, que constitui um modo difícil para tocar alla bastarda e foi dedicada ao Sr. Paolo Stainhauser. No final, Rognoni coloca ainda alguns exemplos para tocar alla bastarda, não provenientes de obras vocais conhecidas e dois exemplos de “Música do muito ilustre Sr. Ottavio Valera, cantada por ele com as mesmas passagens”. Na partitura aparece uma linha de tenor ornamentada,

430

ROGNONI, Francesco. Op.cit, Livro II, p. 49.

228

acompanhada por um baixo, contendo os madrigais Sfogava con le stelle e Tempesta di dolcezza.

Outros ornamentos. Muitos autores de diminuição fazem distinção entre dois tipos de ornamentação. A primeira delas, como vimos até o presente momento, é chamada de diminuição, ou minuta, nome derivado das figuras miúdas (semínimas, colcheias, semicolcheias, fusas) empregadas entre as notas “inteiras” (semibreves, mínimas) de um contraponto. Outro termo comumente encontrado para a diminuição é gorgia (ou glosa, em espanhol), que significa “garganta” e indica a técnica do canto empregada para executar notas velozes – cantar di gorgia; pode também ser utilizado para distinguir uma diminuição tipicamente vocal daquela instrumental. Já os tratadistas de Wittenberg utilizam termos da retórica como coloratur ou elegantia e nos tratados da transição entre os séculos XVI e XVII, o termo “diminuição” foi substituído por passaggi, que significa “passagens”; a palavra aparece também em 1553 no tratado de Ortiz, como passos. Conforti e Zacconi ainda utilizam o termo vaghezza, que significa “graça”. O segundo tipo, está claramente citado nos tratados de Agricola e Ortiz. Trata-se de uma espécie de ornamentação que se aplica sobre notas específicas, cuja forma é padronizada e, por isso, cada ornamento recebe um nome específico. Tal procedimento é chamado de “ornamentação essencial” e será amplamente utilizado na música do século XVII. Seu expoente máximo será no estilo francês do final do século XVII, cuja ornamentação, em oposição ao estilo livre italiano, está baseada em fórmulas claras e precisas, geralmente indicadas na partitura por símbolos que podem diferir de autor para autor. Tal uso notar-se-á também na música alemã para teclado. Embora não exista nos tratados de ornamentação do século XVI símbolo algum para tais ornamentos, muitos autores explicam como executá-los e, às vezes, indicam seu uso no repertório. Segundo Zacconi, o tremolo, o ornamento mais comum deste gênero, seria a “verdadeira porta de entrada para as passagens”431, ou seja, para aprender a diminuir. Agricola chama tais ornamentos de Mordanten e Ortiz, de quiebros amortiguados; as duas 431

ZACCONI, Ludovico. Op.cit., cap. 66, fol. 60. Apud: BROWN, Howard M. Op.cit., p. 6, nota 3.

229

palavras são sinônimas e correspondem ao que conhecemos pelo nome de “mordente”, isto é, ornamentos que alternam determinada nota com a sua superior ou com a sua inferior. Esta também é a definição do tremolo italiano do século XVI, que aparece pela primeira vez na Fontegara. No capítulo 24, Ganassi nos diz que o tocar artificioso é composto de três elementos: imitação, prontidão e galanteria. O primeiro constitui o propósito de tocar flauta, que é imitar a voz humana, o segundo, a técnica necessária para tal imitação e a terceira, a galanteria, é o ornamento, que segundo o autor, nasce do tremular dos dedos no instrumento.432 A seguir, o autor nos mostra que o tremolo pode abranger a extensão de intervalos menores que o semitom até aquele de uma terça acima. A escolha de cada um deles durante a execução deve depender do caráter das palavras do texto musicado, sendo que, em palavras vivazes, são escolhidos ornamentos vivazes, isto é, com intervalos maiores, e em palavras suaves, devem ser escolhidos ornamentos suaves. Neste momento, o tremolo pode ter uma função de “vibrato de dedo”, pois quando o intervalo é tão pequeno, a sensação de mudança de nota é quase imperceptível. Para a execução dos tremoli, Ganassi nos dá uma tabela de dedilhados (ex. 27), com as quais podemos ver qual dedo “tremular” quando se deseja tocar um ornamento vivaz ou suave. Ao observar os dedilhados empregados pelo autor notamos que as alternâncias são sempre feitas com notas superiores à nota real, o que nos obriga muitas vezes a fazer dedilhados alternativos para tais notas, principalmente nos tremoli suaves. Infelizmente, o autor não nos informa se tal tremular dos dedos deve ser acompanhado de uma articulação para cada nota, ou se devemos tocálos ligados; tampouco, qual seria o uso deste no repertório, ou seja, em que situações utilizá-lo, se somente nas cadências, ou em qualquer momento que se queira da obra musical.

432

Ver página 119.

230

Exemplo 27.

O próximo tratado a mencionar ornamentos específicos será a Arte de Tañer Fantasía, de Tomás de Santa María (1562). O autor, além de dedicar um capítulo para as glosas, também dedica outro, um pouco antes, para tratar de dois ornamentos essenciais: os redobles e os quiebros.433 O redoble é constituído por um giro em torno da nota principal, isto é, o ornamento inicia com a nota principal, passa pela nota inferior, retorna na nota principal, sobe até a superior e volta novamente à nota principal (ex. 28). Sobre tal ornamento, Santa María nos adverte que é proibido fazê-los quando as notas superior e inferior estejam simultaneamente em relação de um tom com a nota principal, porque este tipo de caminho melódico “desagrada e desgosta o ouvido”. Portanto, é preciso alterná-las sempre: se começa com um tom, a nota superior deverá necessariamente ser um semitom, e vice e versa.

Exemplo 28.

433

SANTA MARÍA, Tomás de. Op. cit., fol. 47-51.

231

Os quiebros são de três tipos: quiebros de mínimas, quiebros de semínimas e quiebros de mínimas reiteradas. O primeiro deles, é um pouco diferente dos tremoli comuns, como os de Ganassi, pois começam com a nota superior, que deve estar em relação de um tom com a nota principal, passa por esta, alcança a nota inferior e retorna à nota principal (ex. 28). A nota inferior deverá ser sempre um semitom, e para isso é concedido alterá-la com um sustenido (ex. 29). O quiebro de semínima é o mais semelhante ao mordente moderno e (ex. 28) pode ser feito de duas maneiras, se desejamos usá-lo para ornamentar uma escala ascendente ele deve iniciar com a nota principal, ir à nota inferior e voltar (ex. 30); para ornamentar uma escala descendente, fazemos o contrário, começa (sempre) com a nota principal, sobre para a superior e volta (ex. 30). O terceiro tipo, o quiebro de mínimas reiterado (ex. 31), é constituído por uma alternância entre a nota principal e a sua superior, ou seja, um ornamento um pouco mais restrito do que aquele apresentado por Ganassi.

Exemplo 29.

Exemplo 30.

232

Exemplo 31.

Em um determinado momento, após explicar a confecção dos ornamentos e indicar quais são os dedilhado adequados para executá-los, Santa María nos informa sobre uma maneira que está em uso, que é aquela de começar tanto o redoble quanto o quiebro de mínimas reiterado, com a nota superior à principal. Esta, deve ser tocada sozinha enquanto que a segunda nota, que é a principal, coincide com a consonância do contraponto. O autor ainda diz que:

Estas maneiras de redobles e quiebros e a outra maneira de quiebro de mínimas (que se tocam juntamente com tom e semitom) são muito novas e muito elegantes, as quais causam tanta graça e melodia na música que a elevam em muitos graus, e causa tanto contentamento para o ouvido. Parece uma coisa distinta quando se toca sem eles e por isso, com muita razão se deve fazer uso destes e não dos outros que são antigos e pouco graciosos. 434

Semelhante à Arte de Tañer Fantasía, temos o Il Transilvano de Girolamo Diruta (1593), o qual, ao tratar da execução dos instrumentos de teclado, nos dá uma classificação mais clara de tais ornamentos. A diminuição, para Diruta, pode ser dividida em cinco categorias: Minuta, Groppi, Tremoli, Accenti e Clamationi. Sobre os Groppi, o autor nos explica na Primeira Parte do diálogo, que estes podem ser mistos, compostos por diversas figuras rítmicas, e podem ser feitos de diversas maneiras, ascendendo, descendendo e nas cadências (ex. 32). O Groppo, em geral, é mais comum nas cadências e corresponderia modernamente a um trinado articulado com terminação, que pode ser antecedido ou não por um grupo de notas que giram em torno da nota principal. Muitos exemplos de diminuição de cadências costumam contê-lo mesmo 434

“Estas maneras de Redobles y Quiebros, y la otra manera de Quiebro de Minimas, que se hazen juntamente con Tono y Semitono, son muy nuevos y muy galanos, los quales causan tanta gracia y melodia en la musica, que la leuantan en tantos grados, y a tanto contentamiento para los oydos, que paresce otra cosa distincta de lo que se tañe si ello, y por tanto, con mucha razon se deue vsar siempre dello, y no de los otros, por quanto son antiguos y no graciosos.” SANTA MARÍA, Tomás de. Op. cit., fol. 48b.

233

que nada se diga a respeito, assim como grande parte dos Ricercari de Ganassi, Bassano e Virgiliano estão repletos de exemplos deste ornamento.

Exemplo 32.

Já os tremoli, como podemos ver pelos exemplos de Diruta (ex. 33), correspondem aos quiebros de mínimas reiterados de Santa María, ou seja, um alternar entre a nota principal e a sua superior, começando sempre pela nota real. Diruta ainda nos dá alguns conselhos sobre a performance, dizendo que os tremoli devem ser feitos com graciosidade [leggiadria] e agilidade; e sobre os lugares em que podem ser colocados:

Devem ser feitos ao começar algum Ricercari ou Canzone, ou aquilo que se queira; e também quando uma mão toca muitas partes e a outra somente uma; naquela parte sozinha, devem-se fazer os tremoli.

234

Exemplo 33.

O autor ainda faz menção a pequenos tremoli, ou tremoletti, que segundo ele, foram utilizados em particular na música do “Sr. Claudio Merulo”, seu professor, e que podem ser colocados quando se descende por grau conjunto (ex. 34).

Exemplo 34.

235

Dos outros dois tipos de ornamentação que Diruta categorizou, o autor nos deixa apenas um exemplo de cada no Livro Primeiro da Segunda Parte (ex.35). Pela figura, podemos ver que as Clamationi são constituídas por motivos de colcheia pontuada e semicolcheia que iniciam uma terça abaixo da nota principal e servem para ornamentar escalas ascendentes; já os Accenti são pequenas escapadas ascendentes em uma escala de graus conjuntos descendente.

Exemplo 35.

Com o avançar do século XVI, os ornamentos essenciais passam a ser cada vez mais mencionados e descritos pelos tutores de diminuição, sendo que, em muitos casos, eles podem vir em um formato particular correspondente ao estilo pessoal de cada autor. Um pouco antes de Diruta, Dalla Casa (1584), menciona dois desses ornamentos, os quais, segundo o autor, se usam nas cadências. Trata-se dos tremoli groppizati (ex. 7) e o groppo battuto (ex. 8); o primeiro, constitui um caminhar com formato padronizado entre a nota diminuída e a sua terça inferior antes de atingir o grau seguinte; e o segundo ornamento, é muito semelhante ao groppo de Diruta, com uma pequena alteração na terminação, que salta até a terça inferior para pode alcançar o grau conjunto. O próximo manual a inserir tal prática nos exemplos de diminuição é o tratado de Conforti (1594) e os ornamentos descritos são (ex. 36) o Groppo di Sopra, ou seja, com terminação ascendente; o Mezzo Groppo, para ser executado em cadências de duração 236

menor; o Groppo di Sotto, que cai uma terça depois da terminação; e o Trilo. Este último tem características idiomáticas próprias do canto, podendo ser imitados com certa imperfeição pelos instrumentos435: trata-se de uma série de notas iguais repetidas rapidamente, podendo ser acompanhado de terminação ou não. O mesmo ornamento aparece, curiosamente, com o nome de tremolo no tratado de Giovanni Battista Bovicelli (1594). Segundo a definição do autor, o tremolo não é outra coisa senão “um tremer de voz sobre uma mesma nota”436, que pode ser aplicado em notas longas mas também, brevemente, nos pequenos accenti distribuídos no meio das passagens. Como vimos anteriormente, o estilo de ornamentação de Bovicelli é composto de muita variação rítmica, sugerindo que a execução das passagens deve ser bem flexível e desigual. Para o autor, portanto, os accenti nada mais são do que breves “paradas” no meio de uma diminuição, que ele sinalizou em seus exemplos com o símbolo “^” (ex. 37).

Exemplo 36.

435 436

Ver BROWN, Howard Mayer. Op.cit., p. 11. BOVICELLI, Giovanni Battista. Op.cit., p. 146.

237

Exemplo 37.

Bovicelli também menciona dois outros ornamentos, os groppetti e as tirate, e ainda nos informa sobre um procedimento bem semelhante às Clamationi de Diruta, isto é, começar um canto com uma terça ou quarta abaixo e ascender com notas pontuadas até a nota principal (ex. 19). Os groppetti exemplificados podem ser de dois tipos: o primeiro, com notas iguais (ex. 20); e o segundo, com o final “freado”, isto é, fazendo uma espécie de rallentado; este dá maior graça à voz, além de ser mais cômodo para as palavras437 (ex. 20). Já as tirate, são pequenas pontes de notas velozes entre os saltos (ex. 38). Quando se faz tirate em fusas [biscrome], as figuras devem ser bem destacadas (articuladas) e, causa um bom efeito quando se segura um pouco o tempo da primeira nota.438

437 438

BOVICELLI, Giovanni Battista. Op.cit., p. 144. Ibidem, p. 147.

238

Exemplo 38.

O próximo autor a fazer a distinção entre os dois tipos de ornamentação é Ludovico Zacconi, em seu Prattica di Musica (1596). No capítulo X do primeiro livro, quando se discorre sobre como os antigos executavam as cantilenas, o autor nos informa que estes cantavam como estava escrito nos livros, sem adicionar nem um mínimo accento (ornamentos essenciais) ou vaghezza (diminuição). Já no capítulo LXVI, o autor escreve que os lugares que convidam os cantores a fazer fioretti (floreios) e passagens são as cadências. Entretanto, o único ornamento essencial que é descrito na obra é o tremolo, que deve ser executado da mesma maneira que o ornamento relatado por Bovicelli, uma vez que Zacconi o define como “voz tremida”. Este ornamento, segundo o autor, deve ser sucinto e gracioso [vago], porque o tremolo excessivo e forçado entedia e incomoda.439 Os tratados do início do século XVII já fazem parte do novo estilo, inaugurado por Giulio Caccini em sua obra, Le nuove musiche (1601). Tal estilo, chamado de Seconda Prattica, prezava a clareza do texto em oposição à confusão gerada pela somatória das vozes de um contraponto, e por esse mesmo motivo, a diminuição virtuosística do século precedente é deixada de lado em prol de uma execução mais limpa e clara, ornada apenas pelas inflexões da voz e esclamazioni (ex. 38), trilos e groppi (ex. 39). Segundo Caccini, a diminuição deveria ser deixada apenas para os instrumentos de sopro e de cordas, por ser mais adequada a estes.440

439 440

ZACCONI, Ludovico. Op.cit., p. 163. CACCINI, Giulio. “Apendice XIII – Le nuove Musiche”. In: SALVATORE, Daniele. Op.cit., p.179.

239

Exemplo 38.

Exemplo 39.

A esclamatione é mais um efeito de voz do que um modelo padronizado de notas; é considerada pelo autor como o principal meio para mover os afetos e, segundo ele, não é outra coisa além do diminuir (a intensidade) da voz para depois reforçá-la um pouco adiante.441 O tipo de trilo que foi descrito por Caccini, corresponde ao ornamento de mesmo nome mencionado por Conforti e consequentemente aos tremoli de Bovicelli e Zacconi. Para executá-lo, o autor ensina que se deve iniciar na primeira semínima e rebater cada nota com a garganta, cantando sobre a vogal “a”, até que se alcance a última breve (ex. 39 e 40). O autor ainda nos dá alguns exemplos de novos ornamentos, chamados por ele de Ribattutta di gola e Cascata (ex. 40). A ribattuta de gola é feita de pequenas escapadas reiteradas para a nota superior e se assemelha um pouco aos accenti de Diruta, com a diferença que o primeiro é executado somente uma vez em cada nota e seu uso principal são as escalas descendentes. Já as cascatas, como o próprio nome diz, são “quedas” descendentes de notas rápidas que preenchem um salto antes de uma cadência.

441

CACCINI, Giulio. Op.cit., p.182.

240

Exemplo 40.

Considerado o último manual de diminuição, a obra de Francesco Rognoni, Selva di varii passaggi secondo l’uso moderno (1620), já contém traços do novo estilo, como está anunciado no próprio título do tratado; e por isso os ornamentos essenciais têm um lugar de destaque: das dez advertências aos leitores, sete são destinadas a esclarecer sobre a execução de ornamentos como o portar di voce, os accenti, os tremoli, o gruppo, os trilos, as esclamationi e o “principiar embaixo da nota“ (clamationi). O texto é seguido por uma tabela explicativa (ex. 24). Segundo Rognoni, o portar di voce deve ser feito com graça, e para executá-lo deve-se reforçar a voz, pouco a pouco, sobre a primeira nota (mínima pontuada) e depois fazer tremoli nas notas pretas (semínima).442 Os accenti, são semelhantes àqueles de Diruta, e devem ser executados o mais tarde possível e não muitas vezes; ainda segundo o autor, o “verdadeiro accento é aquele que se faz descendentemente, se bem que hoje em dia se usa também este outro ascendente”443 (ex. 24); . Já os tremoli, são do tipo de Bovicelli e Zacconi e podem ser usados com freqüência; sua execução deve ser feita sobre o “valor do

442 443

ROGNONI, Francesco. Op.cit., “Avvertimenti”, n. 1. Ibidem, “Avvertimenti”, n. 2.

241

ponto de cada uma das notas”, o autor também adverte para se tomar cuidado em não fazer como alguns “que parecem cabritinhos” ao cantá-los.444 Rognoni também descreve o Trilo, ornamento que, como vimos, aparece nos tratados de Conforti e Caccini e é chamado de tremolo por outros autores. Neste caso, o ornamento é muito semelhante ao tremolo que o próprio autor descreve, porém seu início é composto por algumas escapadas para a nota superior, como a Ribattuta de gola da obra de Caccini e seu uso é exclusivo das cadências. Depois segue-se o Gruppo, que deve ser escrito “da mesma maneira como a maior parte dos valentes homens o escreve”; e a esclamatione, que é semelhante àquela de Caccini, a qual é descrita como um ornamento que se faz no descender, diminuindo um pouco a intensidade da primeira nota e depois dando “espírito e vivacidade” na nota seguinte com o uso de um tremolino. Por último se exemplifica o “principiar embaixo da nota”, como a clamatione de Diruta e o modo descrito por Bovicelli; pela figura podemos ver que os exemplos começam com uma terça ou com uma quarta abaixo e alcança a nota principal através de motivos de notas pontuadas. Desta forma, conclui-se o panorama de tratados que abordam a técnica e prática da diminuição em um espaço de oitenta e cinco anos, no qual podemos observar as transformações ocorridas para se adequar ao novo gosto musical, assim como, notar de que modo as regras e modelos inaugurados por Ganassi em 1535, persistiram e foram emuladas. Podemos também ter a perspectiva de como o assunto foi abordado dentro da técnica de cada instrumento e também do canto, ajudando-os em seu desenvolvimento. Por tal motivo, as duas linguagens foram se distanciando e escolhas por ornamentos mais idiomáticos foram sendo tomadas com mais freqüência. Devido ao grande virtuosismo gerado pela “febre” dos manuais de diminuição, uma reação por parte dos compositores foi iniciada, como vimos nos relatos de Zarlino e Botrigari. As principais críticas se dirigiam a deformação que o excesso de diminuição poderia causar na obra original, assim com crassos erros de contraponto e confusão do texto. Tais críticas são semelhantes àquelas dirigidas mais adiante ao próprio contraponto 444

Ibidem, “Avvertimenti”, n. 3.

242

pelos partidários da Seconda Prattica, e por isso, foram deixados de lado por Caccini no que se refere à execução vocal. Por outro lado, é impossível não notar a enorme contribuição que a preocupação dos tutores instrumentistas em compor ricercari, isto é, que exercícios para “soltar a mão” ao diminuir, trouxe ao desenvolvimento de uma linguagem específica instrumental, na qual se tem maior liberdade para criar passagens virtuosísticas, podendo abranger uma tessitura mais ampla e ainda inserir muitos saltos consecutivos. Graças aos Rognoni, novas sonatas foram dedicadas aos violinistas de Milão, assim como toda a escrita policoral de Gabrieli foi influenciada pelos grupos instrumentais da igreja de São Marcos, dirigidos pelos grandes mestres cornetistas, Girolamo Dalla Casa e Giovanni Bassano, também tutores de diminuição.

243

3.3.2. Sobre a nomenclatura das proporções e seu uso na métrica musical. Para uma correta compreensão do sistema de diminuição proporcionada utilizado por Ganassi, é necessário discorrer detalhadamente sobre a nomenclatura empregada na época para classificar as frações. Musicalmente existem duas maneiras de se identificar uma proporção, a primeira delas diz respeito ao intervalo formado por determinada relação numérica, como por exemplo, diapason para indicar a proporção 1/2, diapente para 2/3 e diatessaron para 3/4. A segunda, indica a relação existente entre o numerador e o denominador de uma determinada proporção e foi empregada no contexto musical principalmente para indicar mudanças na métrica. Este último sistema foi, portanto, o método utilizado por Ganassi em sua explicação de como alterar a métrica original de um contraponto ao improvisar diminuições. Aaron, no capítulo XXXII do Toscanello in Musica, discorre sobre a definição de proporção: Diremos, portanto, que a proporção primeira e principalmente se encontra na quantidade, seja contínua ou discreta, isto é, quando essa se define pelo hábito de duas quantidades de um mesmo gênero. Tais hábitos deverão ser considerados segundo se uma denominada quantidade é maior e menor, ou ainda igual e desigual a outra. Chamaremos tal coisa de proporção quando duas quantidades de um mesmo gênero são comparadas uma com a outra, com certo e determinado hábito, isto é, que os dois extremos devam ser iguais ou desiguais, como aparecem nestes números: 3 a 2, 2 a 3, 4 a 3, 5 a 4 e 2 a 2, 3 a 3, 4 a 4, etc. Por tal coisa se notifica que todas as quantidades precisam ser iguais ou desiguais. Por isso é necessário que se façam comparações algumas vezes de uma igual para outra.Tal comparação gera uma espécie chamada de proporção racional de igualdade, a qual não diz respeito ao músico e por isso não falaremos dela. Mas comparando números desiguais, nasce a segunda espécie chamada proporção racional de desigualdade, da qual derivam cinco gêneros assim chamados: Multiplice, Superparticulare, Superpartiente, Multiplice Superparticulare e Multiplice Superpartienti. Destes gêneros, os três primeiros são chamados simples e os dois seguintes compostos.445

445

“Diremo adunque che la proportione prima & principalmente si ritroua ne la quantità, ò sia continua ò sia discreta: cioe quando essa si diffinisce per habitudine di due quantità di uno medesimo genere: lequali habitudini si hanno a considerare secondo che una di dette quantità è maggiore & minore, ouero equale & inequale a laltra: per la qual cosa diremo porportione quando due quantità dun medesimo genere luna a laltra insieme sono comparate, con certa & determinata habitudine: cioe che debba essere fra dui estremi, ò siano equali ò siano inequali: come appare in questi numeri 3 a 2, 2 a 3, 4 a 3, 5 a 4, & 2 a 2, 3 a 3, 4 a 4, &c. Per

244

Seguindo tal raciocínio, existem cinco formas de se comparar dois números desiguais, mas antes disso há ainda uma divisão binária que nos indica em que posição está o número maior e onde está o menor. A este respeito, Zarlino446 nos informa que quando comparamos o número maior com o menor, temos uma proporção de Maior Desigualdade, se ao contrário, temos uma proporção de Menor Desigualdade, isto significa, como explica Cerreto447, que em uma proporção de Maior Desigualdade, o número maior está sempre no numerador da fração enquanto o menor está no denominador. Do mesmo modo, a proporção de Menor Desigualdade é aquela em que o número maior está embaixo, no denominador, enquanto que o menor está acima, no numerador. Quando isso ocorre, todas as proporções vêm com o prefixo “sub” acompanhando seus nomes. Cada uma destas duas categorias se divide em cinco gêneros de proporções, cada qual indicando o tipo de relação existente entre o número maior e àquele menor. Desta forma, o primeiro gênero citado por Aaron, o Multiplice, ou Moltiplice como aparece em Zarlino e em Cerreto, faz parte das proporções de Maior Desigualdade e indica, como o próprio nome diz, as frações múltiplas, ou seja, quando o numerador contém o denominador uma, duas, ou mais vezes. Por exemplo, na proporção 2/1, o número 2 contém duas vezes o número 1 e por isso tal proporção se denomina Dupla. Do mesmo modo, 3/1, é uma proporção Tripla. Note-se que cada uma dessas proporções engloba todos os seus múltiplos e, portanto, sendo 4/2 uma proporção Dupla e 9/3, Tripla. A regra se mantém para as proporções múltiplas de Menor Desigualdade, neste caso, o denominador é que será múltiplo do numerador, não se esquecendo de acrescentar o prefixo “sub” em sua nomenclatura. Assim, as frações serão chamadas de Subdupla, Subtripla, Subquádrupla, etc.

laqual cosa si notifica che tutte le quantità bisogna siano equali ouero inequali: si che È necessario si faccia comparatione alcuna uolta dal una equale a laltra: laqual comparatione genera una spetie detta proportione rationale di equalità: la qual non cade in proposito al musico: & pero di questa non ne parleremo. Ma faccendo comaparatione di inequalità: de la quale si ordina cinque generi cosi chiamati. Multiplice. Superparticulare. & Superpartiente. Multiplice Superparticulare. e Multiplice Superpartiente: & di questi generi gli tre primi sono chiameti semplici & gli dui seguenti composti.” AARON, Pietro. Op.cit., Livro Segundo, Cap. XXXII, p. 80. 446 ZARLINO, Gioseffo. Op.cit. Primeira Parte, Cap. 22, p. 32. 447 CERRETO, Scipione. Della Prattica Musica Vocale, et Estrumentale, 1601. Bolonha: Arnaldo Forni, 2003, Livro Terceiro, Cap. XVII, p. 324.

245

Para que o leitor pudesse entender melhor sua explicação, muitas vezes complexa, Zarlino desenhou esquemas, colocando o nome das proporções envolvendo números inteiros até 10 ou um pouco mais. Aquele que se segue abaixo, pertence às proporções do gênero Múltiplo:

2/1

Dupla

3/1

Tripla

4/1

Quádrupla

5/1

Quíntupla

6/1

Sêxtupla

7/1

Sétupla

8/1

Óctupla

9/1

Nônupla

10/1

Décupla

O próximo gênero chama-se Superparticular e tal nome designa as proporções em que o número maior, contém o menor mais uma parte alíquota deste. A parte alíquota é, segundo Zarlino, uma determinada quantia que multiplicada algumas vezes dá exatamente o seu todo, de modo que o número 2 é parte alíquota do número 6, pois multiplicado 3 vezes resulta em seu total.448 Por exemplo, na proporção 3/2, o número 3 contém o 2 mais uma parte alíquota do 2, que neste caso é a unidade (1). Em todas as proporções deste gênero adicionamos em sua nomenclatura o prefixo “Sesqui” e em seguida nomeamos o número menor, que no caso das proporções de Maior Desigualdade está no denominador, para que se possa calcular a sua parte alíquota e assim descobrir o numerador. Lembre-se sempre que nas proporções de Menor Desigualdade, numerador e denominador se invertem. Seguindo esse processo, a proporção 3/2 recebe o nome de Sesquiáltera, sendo a partícula “Sesqui” o prefixo nomeador do gênero Superparticular e a “áltera”, palavra que designa o número 2. Segue-se o esquema de Zarlino: 448

ZARLINO, Gioseffo. Op.cit. Primeira Parte, Cap. 23, p. 33.

246

3/2

Sesquiáltera

4/3

Sesquiterça

5/4

Sesquiquarta

6/5

Sesquiquinta

7/6

Sesquisexta

8/7

Sesquisétima

9/8

Sesquioitava

10/9

Sesquinona

O terceiro gênero chama-se Superpartiente e significa que o número maior contém o menor mais um certo número de partes, ou como designa Zarlino, mais uma parte não alíquota, isto é, uma parte que multiplicada nunca alcançará o todo. A nomenclatura destas proporções constrói-se da seguinte maneira: o prefixo “Super” + o número de partes que o número maior supera o menor + a partícula “partiente”, que significa “partes” + a palavra que designa o número menor. Por exemplo, a proporção 7/5 recebe o nome de Superbipartientequinta, uma vez que o número 7 contém o número 5 mais duas unidades, ou a parte não alíquota “2”, que multiplicada duas vezes dá 4 e três vezes dá 6, isto é, ultrapassa o 5. Zarlino, ainda divide o gênero das Superpartienti em algumas espécies, sendo a primeira espécie aquela que ultrapassa duas unidades; a terceira, ultrapassa três unidades; a quarta, quatro e assim por diante, como na figura:

Primeira Espécie 5/3

Superbipartienteterça

7/5

Superbipartientequinta Segunda Espécie 247

7/4

Supertripartientequarta

10/7

Supertripartientesétima Terceira Espécie

9/5

Superquadripartientequinta

11/9

Superquadripartientenona

Estes três tipos de proporção descritos acima são chamados de gêneros simples; os outros dois que se seguem, são chamados de gêneros compostos, pois constituem uma conjugação do gênero Múltiplo com aqueles Superparticular e Superpartiente. Desta maneira, o quarto gênero é chamado de Múltiplo Superparticular, no qual o número maior contém o menor um certo número de vezes mais uma parte alíquota deste. Por exemplo, na proporção 10/3, o 10 contém três vezes o 3 mais uma parte alíquota, que neste caso é o 1; tal proporção se denomina Tripla Sesquiterça. Neste caso, Zarlino também divide em espécies, de acordo com o denominador (número menor):

248

Primeira Espécie 5/2

Dupla Sesquiáltera

7/2

Tripla Sesquiáltera

9/2

Quádrupla Sesquiáltera Segunda Espécie

7/3

Dupla Sesquiterça

10/3

Tripla Sesquiterça

13/3

Quádrupla Sesquiterça Terceira Espécie

9/4

Dupla Sesquiquarta

13/4

Tripla Sesquiquarta

17/4

Quádrupla Sesquiquarta

O quinto e último gênero, portanto, chama-se Múltiplo Superpartiente, no qual o número maior contém o menor um certo número de vezes mais um certo número de partes, ou, uma parte não alíquota. Por exemplo, na proporção 11/3, o número 11 contém três vezes o número 3 mais duas partes; seu nome é Tripla Superbipartienteterça. O esquema de Zarlino é muito semelhante ao do quarto gênero:

8/3 11/3 14/3

11/4 15/4 19/4

Primeira Espécie Dupla Superbipartienteterça Tripla Superbipartienteterça Quádrupla Superbipartienteterça Segunda Espécie Dupla Supertripartientequarta Tripla Supertripartientequarta Quádrupla Supertripartientequarta

249

14/5 19/5 24/5

Terceira Espécie Dupla Superquadripartientequinta Tripla Superquadripartientequinta Quádrupla Superquadripartientequinta A seguir, fizemos um resumo das duas divisões acompanhadas dos cinco gêneros

derivados:

MAIOR DESIGUALDADE (A/b) Múltipla (A= x . b) [Dupla, Tripla, Quádrupla, etc.] Superparticular (A=b+1) [Sesquiáltera, Sesquiterça, etc.] Superpartiente (A=b+1) [Superbiapartienteterça, etc.] Múltipla Superparticular (A= x .b+1) [Dupla Sesquiáltera, etc.] Múltipla Superpartiente (A=x. b+y.1) [Tripla Supartripartientequinta, etc.]

MENOR DESIGUALDADE (A/b) Submúltipla (A= x . b) [Subdupla, Subtripla, etc.] Subsuperparticular (A=b+1) [Subsesquiáltera, Subsesquiterça, etc.] Subsuperpartiente (A=b+1) [Subsuperbipartienteterça,etc.] Submúltipla Superparticular (A= x .b+1) [Subdupla Sesquiáltera, etc.] Submúltipla Superpartiente (A=x. b+y.1) [Subtripla Superpartientequinta, etc.]

Para compreender como funciona o uso das proporções na métrica musical, é preciso primeiramente entender dois conceitos imprescindíveis para a prática musical do século XVI: a battuta e os sinais de tempo. A Battuta, que em português significa “batida”, pode também ser chamada de tempo, medida, ou tactus. Zarlino explica sua origem:

[...] os Músicos, ao verem que um é mais veloz ou mais lento que o outro, devido à diversidade dos movimentos que fazem ao cantar juntos as partes de uma cantilena, ordenaram um certo Sinal, [através] do qual cada cantor pudesse se reger ao proferir a voz com medida de tempo veloz, ou lenta, segundo o que é

250

demonstrado com as diversas figuras cantáveis [...]. E imaginaram que fosse bom, se tal sinal fosse feito com a mão, para que todos os cantores pudessem ver, e o seu movimento fosse regulado à maneira do pulso humano. [...] Porque se considerarmos as qualidades que se encontram [tanto] em um [como] no outro, isto é, na Battuta e no Pulso, [...] encontraremos muita conveniência entre eles: de modo que, sendo o Pulso (como define Galeno e Paulo Eginetta), certo alargamento e estreitamento, ou ainda, um levantamento e abaixamento do coração e das artérias, é composto (como deseja Avicenna no Segundo Fen. do liv. I) de dois movimentos e de dois silêncios; a Battuta, semelhantemente, é composta das mesmas coisas: primeiramente de dois movimentos, que são o cair [positione] e o levantar [levatione] que se faz com as mãos [...], e depois de dois silêncios, porque (segundo a mente de Aristóteles) entre tais movimentos [...] sempre são encontrados. 449

Deste modo, a battuta nada mais é que um marcar regular do tempo onde todas as figuras devem ser encaixadas. Note-se que as partituras utilizadas no século XVI não continham barras de compasso, o que, sem a marcação física do tempo, torna a leitura musical extremamente complexa. É por isso que muitos textos desta época advertem que o bom cantor é aquele que sabe administrar a battuta, ou seja, que sabe reger a música corretamente enquanto canta; para os instrumentistas a solução talvez fosse marcar a battuta com o pé. Zacconi, em seu Prattica di Musica, atenta-nos para o mau uso da battuta:

O tactus [tatto] deve ser tão igual, estável e firme, que não se pode reconhecer uma mínima parte deste que seja irregular ou desigual às outras. Esse consiste em um levantar e cair de mão. Às vezes pode ser veloz, às vezes mais lento, e isto não carrega nenhum defeito se quem rege o tactus o faz restringir e alargar, de modo que tal levantada e caída seja feita de modo igual e não alterado. Existem alguns que, por querer fazer essas variações de tactus, não sabem adaptar e

449

“[...] li Musici vedendo, che per la diversità de i movimenti, che fanno cantando insieme le parti della cantilena, per essere l’uno più veloce, o più tardo dell’altro; ordinarono un certo Segno, dal quale ciascun cantante si havesse da reggere nel proferir la voce con misura di tempo veloce, o tardo, secondo che si dimostra con le figure diverse cantabili [...]. Et s’imaginarono che fusse bene, se cotal segno fusse fatto con la mano; accioche ogn’uno de i cantori lo potesse vedere, & fusse regolato nel suo movimento alla guisa del polso humano. [...] Percioche se noi consideraremo le qualità che si ritrovano in l’uno et l’altro; cioè nella Battuta; & nel Polso [...]: conciosiache essendo il Polso (come lo definisce Galeno, & Paulo Eginetta) un certo alargamento & ristrengimento; o pur vogliamo dire alzamento, & abbassamento del cuore, & delle arterie, viene ad essere composto (come vuole Avicenna nel Secondo Fen del lib. I) di due movimenti, e di due quiete, delle quali cose similmente la Battuta viene ad esser composta; & prima di due movimenti, che sono la Positione & la Levatione, che si fa con la mano [...]; & dipos due quiete: percioche (secondo la mente di Aristotele) tra questi movimenti [...] sempre si ritrovano;” ZARLINO, Gioseffo. Op.cit., Parte Terceira, Cap. 48, p. 207.

251

acomodar com arte; existem outros que erram ainda sem se dar conta, senão quando são corrigidos por outros ou, se por acaso se dão conta, não sabem o que fazer a não ser parar. Os primeiros erram porque não sabem, os segundos, por não terem se exercitado suficientemente. Aqueles que por ignorância erram, são aqueles que ainda não sabem cantar bem. Os outros que erram, são aqueles que frequentemente cantam sem administrar o tactus e, não estando acostumados, vão sempre o alterando. Estes, se desejam alcançar alguma honra, não devem cantar, porque daquele modo, basta uma síncopa ou uma passagem difícil, que se alteram e perdem o controle das figuras. Existem, por outro lado, alguns práticos que cantando sejam coisas fáceis ou difíceis, regem o tactus sem nenhuma titubeação; mas isto não é fácil fazer e necessita muito estudo e atitude. Encontrei às vezes, professores de música que erraram nesta ação por estarem mais acostumados a cantar do que a administrar o tactus, isso acontece geralmente quando se canta forte.450

Dalla Casa também, no segundo volume, dedica um parágrafo inteiro explicando como “conduzir a minuta a tempo”, no qual discorre a respeito de como é difícil executar as diminuições, por vezes muito rápidas, sem alterar o tempo, isto é, a battuta. Por isso, segundo o autor, todos deveriam em seu estudo, bater o tempo e nunca estudar sem a battuta, porque, de outra maneira, coisa boa não se pode fazer.451 Para o cantor e instrumentista do século XVI é muito importante saber qual é o sinal de tempo que rege a battuta em cada obra, isto é, se elas são escritas sob o sinal

ou

.

Outros sinais também são citados nos tratados de Zarlino, Zacconi e até no capítulo 13 da Fontegara, mas são pouco usados, pois indicam uma prática mais antiga onde se fazia constantemente o uso dos tempos perfeitos ( (

e

) e da prolação da semibreve

).

450

“Il tatto deve essere così equale, stabile e fermo, che non si possa riconoscere una pur minima parte di esso che sia irregolare o inequale alle altre. Esso consiste in un alzar e cader di mano. A volte può essere veloce, a volte più lento e ciò non apporta nessun difetto se chi regge il tatto lo fa restringere ed allargare facendo s`che la suddetta alzata e caduta avvenga in atto equale e non alterato. Vi sono alcuni che per volere fare quete variazioni di tatto, non vi si sanni adattare ed accomodare con arte; vi sono altri che errano ancora senza avvedersene, se non quando da altri vengono correti o, se pure ne accorgono, non sanno che fare se non fermarsi: i primi sbagliano perché non sanno, i secondi per non essrersi esercitati a sufficienza. Quelli che per ignoranza sbagliano nono quelli che nin sanno ancora bene cantare. Gli altri che sbagliano sono quelli che solitamente cantano senza somministrare il tatto e nin essendoci abituati, lo vanno sempre alterando; costoro, se vogliono riuscire con onore, non debbono cantare, eprché in quel modo basta una sincope o un passo difficile che essi si alterano e perdono il controllo delle figure. Vi sono invece alcuni prattici che, cantando sia cose facili che difficili, reggono il tatto senza titubanza alcuna. Ma ciò non è facile da farsi e occorre molto studio e attitudine; ho trovato a volte dei professori di musica insimile azione errare per essere più usi a cantare che a soministrare il tatto: questo avvienne più spesso quando si canta forte.” ZACCONI, Lodovico. Prattica di Musica, 1596. In: PACCHIONI, Giorgio. Selva di varî Precetti, Vol. 1: Elementi della Musica Figurata, p. 5. 451 DALLA CASA, Girolamo. Op.cit., Vol. II, “ Aos Leitores”.

252

Seguindo tal raciocínio, ao utilizar o sinal

que é chamado de tempo alla breve,

cantamos uma breve por battuta, ou duas semibreves, que são executadas uma no battere e a outra no levare, isto é, uma na parte inferior da battuta e a outra na superior. Já o sinal é cantado com uma semibreve por battuta e é chamado de tempo alla semibreve. Note-se que, segundo Zacconi, o sinal

“dá notícia que tal composição é binária e [é] formada

pelo tactus igual [isto é, dividido em duas partes iguais] de uma semibreve por tactus”. Esta é uma informação preciosa para que a execução deste repertório, feita por um músico do século XXI, não seja equivocada, uma vez que hoje tal sinal recebe o significado de uma divisão quaternária da métrica e não binária. A divisão quaternária, se não bem observada, tenderia a deixar a battuta mais lenta do que deveria ser para corresponder à velocidade de um tempo binário cômodo; tal equívoco acarretaria a perda da clareza rítmica entre as vozes, uma das principais características deste repertório. A diferença de significado pode ter sido herdada de um fenômeno interessante ocorrido no final do século XVI, quando os músicos, devido à busca pelo virtuosismo da diminuição e pela inauguração de notas cada vez menores que a breve e a semibreve, começaram a executar o sinal de tempo

da mesma maneira que o

, isto é, contando

uma semibreve por battuta. Sobre tal prática, Zacconi faz menção:

Todavia noto que o é cantado simplesmente como o , mandando, portanto, sempre uma semibreve por tactus. Esta mudança, contrária às regras, coloca-me muitas dúvidas, se bem que percebo que a maior parte dos cantores é contrária [ao uso] do tactus de semibreve somente. Por outro lado, estou resolvido a não me afastar dos preceitos musicais, coisa que traria somente confusão e erro. Devo acrescentar que o compositor, usando o , deve ser diligente e observar aquilo que o sinal requisita, mesmo que depois o cantor cante como melhor lhe for cômodo. No fundo é possível variar a velocidade do tactus e cantar um tactus de semibreve tão veloz para que se tenha o mesmo efeito de breve.452

452

“Tuttavia noto che il viene cantato né più né meno come il , mandando quindi, sempre una semibreve a tatto. Questo cambiamento, contrario alle regole, mi mette molti dubbi, sebbene mi renda conto che la maggior parte dei cantori è avvezza al tatto di semibreve solamente. D’altra parte sono risoluto a non discostarmi dai precetti musicali; cosa che poerterebbe solo confusione ed errore. Debbo aggiungere che il compositore, usando il deve essere diligente ed osservare ciò che il segno ricerca, anche se poi il cantore canterà come più gli tornerà comodo; in fondo è possíbile variare la velocità del tatto e cantare un tatto di semibreve così veloce da avere lo stesso effetto di breve.” ZACCONI, Lodovico. Op. cit., In: PACCHIONI, Giorgio. Op.cit., p. 6.

253

Entretanto, seja no repertório ou na prática extemporânea da diminuição, outras mudanças métricas eram empregadas constantemente. Segundo Zarlino, a partir do Ritmo, “nascem muitos movimentos proporcionados, [que estão] contidos nos gêneros Múltiplos e Superparticulares [...]”. Deste modo, por exemplo, a métrica ternária poderia ser notada de duas maneiras: a primeira, utilizando a proporção Tripla na frente do sinal de tempo, deste modo:

3/1

ou

3/1;

tal fração indica que no lugar da figura que corresponde à battuta

daquele sinal, são colocadas três da mesma figura. A segunda maneira utiliza a proporção Sesquiáltera,

3/2

ou

3/2,

para representar a métrica ternária, a qual indica que no lugar de

duas figuras que correspondem à metade da battuta, agora são colocadas três. Através destes dois exemplos, podemos perceber que o denominador da fração indica se a figura alterada será a unidade da battuta ou se será a figura que representa cada uma das metades, isto é, o battere e o levare. Quando vemos uma proporção Tripla em frente ao sinal alla semibreve, devemos entender que, a partir daquele momento, a battuta, de mesma velocidade, é formada de três semibreves e não mais uma. No caso da Sesquiáltera, a battuta será de três mínimas. É importante notar que a proporção muda apenas o valor temporal das figuras rítmicas enquanto que a battuta continua invariável e constante. É devido a essa invariabilidade da battuta que é possível conjugar diversas proporções métricas em uma mesma execução.

Para entender melhor como funciona essa dinâmica das proporções na métrica musical, recorreremos aos exemplos dados por Cerreto na sua descrição dos cinco gêneros de proporções. Embora Aaron tenha explicado seu funcionamento na métrica, e Zarlino desenhado alguns esquemas, o método de Cerreto é o mais elucidativo. Trata-se de treze duetos que utilizam na sua métrica

seis proporções do gênero Múltiplo, quatro do

Superparticular e um dueto para cada um dos três gêneros restantes: o Superpartiente, o Múltiplo Superparticular e o Múltiplo Superpartiente. O primeiro duo do gênero Múltiplo (ex.1) está escrito para contralto e tenor e começa com o tempo alla semibreve nas duas vozes. O tenor permanece nesta proporção enquanto que o contralto, na quinta battuta, muda para a proporção Dupla. O efeito gerado linearmente é semelhante à inserção do sinal alla breve, naturalmente em proporção dupla 254

com o tempo alla semibreve. No entanto, em quase todos os exemplos de Cerreto, os sinais são colocados somente no início da composição, de modo que qualquer outra alteração na métrica seja notada apenas através das frações. O denominador da proporção Dupla (2/1) indica que vamos alterar a figura que rege a battuta, que no tempo

é a semibreve; o

numerador, por outro lado, indica quantas dessa mesma figura caberão na battuta a partir daquele momento. Sendo assim, depois da quinta battuta, serão contadas duas semibreves, uma no battere e outra no levare. Exemplo 1.453

O segundo duo (ex. 2), também para contralto e tenor, inicia com o tempo alla semibreve nas duas vozes; a partir da sexta battuta, o contralto muda para a proporção Tripla (3/1), enquanto que o tenor continua em

. Como explicamos no duo anterior, o

número 1 da proporção Tripla, designa a alteração da battuta inteira e o número 3 indica que a partir daquele momento serão cantadas três semibreves por battuta. Para marcar o

453

Os duetos de Cerreto que estão transcritos em notação moderna foram retirados de PACCHIONI, Giorgio. Op.cit., p. 19-21.

255

tempo ternário, deve-se fazer a battuta desigual, como explica Zarlino454, na qual o battere é mais longo que o levare, porque leva duas figuras enquanto que o levare, somente uma. Note-se que com esta alteração a semibreve terá um valor muito menor do que na primeira parte do duo, entretanto, o tempo total da battuta continua o mesmo. Observemos também que contralto e tenor farão uma polirritmia de três contra dois, comprovando portanto que as advertências dos autores são muito válidas, pois se o intérprete não estiver seguro da battuta, a execução fica muito comprometida devido à complexidade rítmica da obra.

Exemplo 2.

No terceiro duo (ex. 3), também em tempo alla semibreve, o contralto muda para a proporção Quádrupla (4/1) na sexta battuta. Isto é, a partir daquele momento são colocadas quatro semibreves por battuta, duas no battere e duas no levare, sempre em divisão binária. Tal proporção também será formada se compararmos as vozes entre si, pois os valores empregados pelo contralto são quatro vezes maiores que aqueles utilizados pelo tenor.

454

“É verdade que os modernos aplicaram primeiramente à battuta, ora a breve, ora a semibreve imperfeitas; fazendo-as iguais ao tempo do Pulso, distinto em dois movimentos [...]. Depois a aplicaram, ora a breve com a semibreve, e ora a semibreve com a mínima; e dividiram-na em dois movimentos desiguais, aplicando no battere [positione] o tempo longo e no levare [levatione] o tempo breve.” ZARLINO, Gioseffo. Op.cit., Parte Terceira, Cap.48, p. 208.

256

Exemplo 3.

Os próximos três duos utilizam proporções de menor desigualdade do gênero Submúltiplo. Essas proporções invertidas, na maioria das vezes, servem para voltar a uma situação anterior, seja para uma outra proporção ou para os sinais

e

. Ganassi, no

capítulo 15 da Fontegara, escreve o seguinte:

este prefixo "sub", mesmo que acima não tenha te dito coisa alguma, sabe que sempre quando em uma comparação o número menor vier antes do maior, se adiciona a tal número o [prefixo] "sub", quase querendo dizer que, colocando uma Sesquiquinta e encontrando depois na partitura [uma] Subsesquiquinta, entende-se [que] a Sesquiquinta mencionada acima [deve] ser destruída e anulada, como aqui: 5:4 para 4:5 e 6:5 para 5:6.

Uma exceção ocorre no quarto duo de Cerreto (ex. 4), no qual, as duas vozes iniciam com o tempo alla breve e na quarta battuta, o contralto muda para a proporção Subdupla (1/2), que corresponderia ao tempo alla semibreve. Quando desejamos passar de um sinal para o outro, já que ambos se relacionam através da proporção Dupla, é possível mudar de

para

, sem escrevê-los, apenas aplicando tal fração; para fazer o caminho

contrário, como veremos neste duo, utiliza-se a sua inversão, isto é, a Subdupla (1/2).

Exemplo 4.

257

Já a proporção de menor desigualdade utilizada no quinto duo (ex. 5) tem a função de anular uma proporção anterior, como nos explicou anteriormente Ganassi. O duo inicia com contralto e tenor na proporção Tripla (

3/1);

na quarta battuta, o contralto muda para a

proporção Subtripla, ou seja, anula a proporção para voltar ao sinal alla semibreve, colocado no início do pentagrama. Essa mudança provoca novamente uma polirritmia de dois contra três entre as duas vozes. Exemplo 5.455

455

Infelizmente o quinto duo não foi editado por Pacchioni, a transcrição é de nossa autoria.

258

O sexto duo (ex. 6) começa com a linha do contralto sob o sinal que rege a battuta de longa (

) e a linha do tenor, sob o sinal alla semibreve; na sétima battuta, o contralto

muda para a proporção Subquádrupla, que corresponderia ao sinal alla semibreve. Neste mesmo ponto, o tenor muda para o sinal alla breve. Note-se que tal mudança não foi feita usando uma proporção, como em todos os demais exemplos, mas apenas escrevendo o sinal . No início do duo, contralto e tenor mantêm entre si uma relação quádrupla, já que a figura que representa a battuta do primeiro é quatro vezes maior que a do segundo; a partir da sétima battuta, esta relação diminui para a proporção Subdupla, porque a battuta do tempo “alla semibreve” é a metade daquela utilizada pelo alla breve. É importante observar que as proporções podem ser comparadas ente si, de acordo com relação existente entre as proporções que estão numa mesma voz, ou em vozes diferentes. Ganassi, como veremos mais adiante, está sempre comparando proporções entre si: tal comparação é uma tópica da teoria das proporções e recebe o nome de “proporcionalidade”. Daniele Barbaro, em seu comentário ao livro terceiro de Vitrúvio, explica que a proporção é a relação entre duas grandezas, e a proporcionalidade, “a comparação não de uma quantidade à outra, mas de uma proporção a outra”.456 Ainda para o autor, é na proporcionalidade que se encontra o segredo da arte.457

456

BARBARO, Daniele. Dieci libri dell'architettura di M. Vitruvio, 1556. Apud: WITTKOWER, Rudolf. Op.cit., p. 180. 457 Ibidem.

259

Exemplo 6.

Os próximos quatro duetos já pertencem à explicação do gênero Superparticular e por isso, o sétimo duo (ex. 7) é uma demonstração da proporção Sesquiáltera (3/2). Composto também para contralto e tenor, a mudança de

para

3/2

ocorre na linha do contralto a

partir da quinta battuta. O tenor mantém a battuta binária alla semibreve. Aqui, o denominador 2 indica que a figura a ser tomada como parâmetro é aquela que preenche a metade da battuta, neste caso, a mínima. Já o numerador 3, indica que a partir daquele momento serão colocadas três dessas “metades” na battuta e não mais duas; lembrando que tal proporção requer a battuta desigual e formará com a voz debaixo uma polirritmia de três contra dois.

260

Exemplo 7.

O próximo duo (ex. 8) mostra uma relação entre duas proporções e não mais entre proporção e sinal de tempo. A voz do contralto inicia já com a proporção Sesquiáltera (3/2) em relação ao sinal

, isto é, três semibreves por battuta; enquanto que o tenor canta

sempre em tempo alla breve. Na terceira battuta, aparece na linha do contralto a proporção Sesquiterça (4/3) que indica o retorno a uma battuta igual com duas semibreves no battere e duas no levare. Tal tempo corresponderia ao sinal tenor uma proporção Dupla.

Exemplo 8.

261

, isto é, alla longa e gera com a voz do

Nono e décimo duetos utilizam proporções de menor desigualdade, correspondentes aos dois exemplos anteriores, isto é, a Subsesquiáltera e a Subsesquiterça. O primeiro deles (ex. 9), é composto para soprano e tenor e as duas vozes começam em proporção Sesquiáltera, com a diferença que o soprano está em Sesquiáltera do tempo alla semibreve (três mínimas por battuta) e o tenor, do tempo alla breve (três semibreves por battuta). Na terceira battuta do soprano, aparece a Subsesquiáltera que indica a anulação da proporção para voltar ao tempo

.

Exemplo 9.

O último exemplo deste gênero (ex. 10) é, portanto, um duo para contralto e tenor, onde o contralto inicia em proporção Sesquiáltera do tempo alla breve e o tenor, em tempo alla breve simples. Na terceira battuta, o contralto muda para a proporção Sesquiterça e na 262

quinta, retorna à métrica ternária através da proporção Subsesquterça. Observando as frações, a linha do soprano começa com uma battuta desigual de três semibreves por battuta, a seguir, no lugar dessas três figuras, foram colocadas quatro (duas no battere e duas no levare) como nos informa o denominador (3) e o numerador (4) da proporção. Para voltar à situação de “Sesquiáltera” (três semibreves por battuta), não adianta simplesmente colocar o 3/2 correspondente, é preciso antes anular a proporção anterior, invertendo-a, de 4/3 para 3/4, e onde cabiam quatro semibreves volta a caber três. Como o tenor continua em tempo alla breve, forma com as duas primeiras battute uma polirritmia de três contra dois, ou seja, uma proporção Sesquiáltera; nas duas seguintes, forma uma proporção Dupla, pois o contralto está fazendo um tempo correspondente ao sinal alla longa; e nas cinco battute finais, retorna à Sesquiáltera em relação ao tenor.

Exemplo 10.

Para finalizar, Cerreto compõe um dueto para cada um dos próximos gêneros. Estas proporções, por serem muito complexas em relação à métrica, acabam tendo um significado 263

mais especulativo que prático. O décimo primeiro dueto, portanto, é para soprano e tenor. O tenor canta sempre em tempo imperfeito alla semibreve, enquanto que o soprano começa com o tempo perfeito,

, isto é, a battuta continua sendo de uma semibreve, mas, devido à

perfeição do tempo, em uma breve cabe três semibreves. Na sétima battuta, o soprano muda para a proporção Superbipartienteterça, informando que onde cabiam três agora cabem cinco; e que posteriormente é anulada pela proporção Subsuperbipartienteterça (3/5). Tal proporção parece ser incoerente, pois a battuta do tempo

deveria ser binária e não

ternária, e por isso, não se sabe ao certo como distribuir as notas e executar tal dueto. Pacchioni, em sua transcrição, atenta também para um problema com as breves perfeitas e imperfeitas da proporção 5/3, afirmando que:

A transcrição deste exemplo é insatisfatória, devido ao valor que somos obrigados a atribuir a terceira breve do soprano em relação as breves brancas seguintes. Todos os valores reportados são originais, o que fornece a todos a possibilidade de resolver esse rebus.458

Exemplo 11.

458

PACCHIONI, Giorgio. Op.cit., p. 21.

264

O décimo segundo exemplo (ex. 12) pertence ao gênero Múltiplo Superparticular. O duo composto por Cerreto é para tenor e baixo, onde o baixo é escrito em tempo alla breve e o tenor, com a proporção Dupla Sesquiáltera,

5/2,

isto é, cinco semibreves por battuta

no lugar das duas habituais do tempo alla breve. Na quarta battuta, tal proporção é anulada através da sua inversa, a proporção Subdupla Sesquiáltera (2/5). Na primeira parte do dueto o tenor forma com o baixo uma relação de cinco contra dois, também proporção Dupla Sesquiáltera.

Exemplo 12.

265

O último duo, do mesmo modo, representa o gênero Múltiplo Superpartiente. O tenor inicia com a proporção Sesquiáltera do tempo alla breve imperfeito, enquanto que o baixo é composto sob a proporção Sesquiáltera do tempo alla breve perfeito. Na segunda battuta, o tenor muda para a proporção Dupla Superbipartienteterça (8/3), onde no lugar de três semibreves por battuta serão colocadas oito. Na battuta seguinte, tal situação é anulada, retornado à métrica ternária original. Exemplo 13.

A partir da descrição destes treze duetos foi possível compreender e abordar os possíveis usos dos diversos gêneros de proporção na métrica musical. Notamos que as proporções de maior desigualdade servem para alterar a quantidade de figuras da battuta, levando em consideração o seu todo ou a sua metade. Já àquelas de menor desigualdade 266

servem para anular uma determinada proporção para voltar ao sinal de tempo inicial ou qualquer outra proporção precedente. Pode-se ainda notar, através das proporções Dupla, Subdupla, Quádrupla e Subquádrupla, as mudanças entre os sinais

,

e

, sem

escrevê-los. E para finalizar, é possível também, através da proporcionalidade, relacionar as proporções que estão tanto na mesma linha como entre as vozes, de modo a criar outras novas proporções.

267

3.3.3. Comentário sobre o sistema de diminuição ensinado por Ganassi. Após termos compreendido através das fontes primárias o caminho feito pela prática da diminuição nos séculos XVI e XVII e analisado a nomenclatura e o uso das proporções na métrica musical, faremos um breve comentário sobre o modo de diminuir elaborado por Ganassi, a fim de tentar elucidar algumas dúvidas que a leitura do texto original pode causar devido à complexidade da escrita. No capítulo 9, Ganassi divide o diminuir em três modalidades, isto é, elenca três fatores que podem ser modificados e combinados durante a execução: a minuta, as vie e a proportione. A minuta, traduzida por “figuras”, designa todas as figuras rítmicas miúdas, isto é, menores que a semibreve, e que são características do processo de diminuição. É da minuta, que a diminuição deriva seu nome e por isso, muitas vezes encontramos os dois termos como sinônimo nos tratados. As vie, traduzidas por “caminhos”, significam neste contexto, todos os caminhos que as notas percorrem durante diminuição. E finalmente a proporção que, como vimos no item 3.3.2, irá alterar a métrica da diminuição enquanto que as demais partes continuam como está no original. Cada um destes três elementos podem ser organizados de maneira simples ou composta, isto é, se temos uma diminuição somente em colcheias, podemos classificá-la em “simples de figuras”, pois utilizou um só tipo de figura. Entretanto, se usar duas ou mais figuras diferentes, será chamada de diminuição “composta de figuras”. Da mesma forma com os “caminhos”, se o percurso das notas é constituído da repetição de padrões melódicos, a diminuição é chamada de “simples de caminhos”; mas se a diminuição formar vários padrões ou percorrer um caminho mais “abstrato”, será chamada de “composta de caminhos”. Com as proporções não será diferente, se a diminuição for feita do começo ao fim sob o sinal de tempo original, ou ainda, executada desde o princípio com a mesma proporção, será chamada de diminuição “simples de proporção”; assim como a utilização de várias proporções dentro de uma execução, será considerada diminuição “composta de proporção”. Embora essa divisão detalhada não tenha persistido nos demais tratados, 268

encontramos alguns resquícios dela no “diminuir misto” de Dalla Casa (composto de figuras) e nas “perfídias” (simples de caminhos) e “sestuple” (diminuir proporcionado) de Virgiliano. O processo de diminuição pode ainda ser dividido em duas categorias: “simples ou composto em particular” e “simples ou composto em geral”. A “diminuição em geral” é aquela que possui todos os três elementos simples ou todos compostos. Já a “diminuição em particular” possui dois elementos simples e um composto, ou vice e versa. Para lembrar, o termo “particular” indica que existe uma exceção entre os três elementos, isto é, um elemento que pertence ao modo oposto aos demais. Assim, os três elementos da diminuição, podem-se combinar em oito maneiras diferentes, como no quadro abaixo:

SIMPLES EM PARTICULAR Simples: Figuras e Caminhos Composto: Proporção Simples: Figuras e Proporção Composto: Caminhos Simples: Caminhos e Proporção Composto: Figuras

COMPOSTO EM PARTICULAR Composto: Figuras e Caminhos Simples: Proporção Composto: Figuras e Proporção Simples: Caminhos Composto: Caminhos e Proporção Simples: Figuras

EM GERAL Simples Composto

Os exemplos que estão no capítulo 12 mostram como executar na prática tais combinações. Ganassi, apesar de ter oferecido oito exemplos, parece ter-se esquecido do modo de diminuir composto em particular de figuras, proporção e simples de via. Foi repetido em seu lugar, o diminuir composto em particular de figuras, caminhos e simples de proporção (ex. 7). A seguir, transcreveremos novamente os exemplos para analisá-los. Em todos os exemplos, o pentagrama de cima representa o sujeito a ser diminuído: uma escalinha de dó até lá em semibreves. As barras de compasso foram colocadas para melhor visualizar cada battuta.

Exemplo 1.

269

O primeiro exemplo se refere ao diminuir simples em particular de figuras, proporção e composto de caminhos. Simples de figuras porque a diminuição é constituída apenas de semínimas. Simples de proporção porque está até o final sob a battuta alla semibreve. Composto de caminhos porque não possui padrão melódico, isto é, cada battuta possui um desenho (movimento) diferente.

Exemplo 2.

O segundo exemplo representa o diminuir simples em particular de caminhos, proporção e composto de figuras. Simples de caminhos porque apresenta uma seqüência ascendente em terças (dó lá, ré si, mi dó, fá ré, sol mi, lá), “ornamentada” sempre da mesma maneira. Simples de proporção porque está do começo ao fim em proporção Sesquiáltera. Composto de figuras, pois o padrão melódico utiliza semínimas, colcheias e semicolcheias.

Exemplo 3.

No terceiro exemplo tivemos uma nota acrescentada ao sujeito, que vai até si bemol. O tipo de diminuição escrita representa o diminuir simples em particular de figuras, caminhos e composto de proporção. Simples de figuras por utilizar somente semínimas. Simples de caminhos porque, apesar de os movimentos não serem exatamente iguais, o que é impossível quando se muda de proporção, Ganassi fez um desenho de circular entre as notas do sujeito, onde a próxima nota é alcançada através de uma seqüência ascendente de quatro graus (lá si do ré, si dó ré mi, dó ré mi fá, etc.). Por fim, composto de proporção por iniciar com a Sesquiáltera ( 3), passar para a proporção Subsesquiquinta na terceira 270

battuta e ainda para a Superbipartientequinta na quinta battuta. Note-se uma terceira função, não exemplificada nos duos de Cerreto, para as frações de menor desigualdade: alargar o valor da figuras, ou seja, diminuir a quantidade de notas que cabem na battuta. Como Ganassi sempre relaciona as proporções através das semínimas, a Sesquiáltera aqui ganha a forma do seu primeiro múltiplo, 6/4, seis semínimas no lugar das quatro do tempo alla semibreve. Com a Subsesquiquinta (5/6), passam a caber cinco semínimas na battuta no lugar das seis anteriores. Com a segunda mudança de proporção, para a Superbipartientequinta, ocorre um estreitamento das figuras e a battuta passa a comportar sete semínimas. A sensação obtida é de um retardando e acelerando da passagem.

Exemplo 4.

Para completar o primeiro quadro, vem o exemplo do diminuir simples em geral. Simples de figuras por só usar semínimas. Simples de caminhos por apresentar uma seqüência ascendente idêntica em cada grau da escala. E simples de proporção por estar sempre em tempo alla semibreve. Este seria o exemplo mais fácil de todos, talvez um bom princípio para quem deseja adentrar ao universo da diminuição.

Exemplo 5.

O quinto exemplo representa o diminuir composto em particular de figuras, caminhos e simples de proporção. Composto de figuras porque faz uso de semínimas, colcheias e semicolcheias. Composto de caminhos porque não faz nenhum padrão, cada battuta faz um movimento melódico e o ritmo é totalmente diferente. É importante observar

271

que caminhos melódicos padronizados requerem ritmos de certa forma padronizados também. E por último, simples de proporção por não ultrapassar o sinal alla semibreve.

Exemplo 6.

O sexto exemplo é do diminuir composto em particular de caminhos, proporção e simples de figuras. Composto de caminhos por não ter um desenho melódico igual. Composto de proporção por ter uma proporção diferente a cada battuta. E simples de figuras por ser escrito somente em semínimas. Analisando um pouco as proporções empregadas, vemos que o trecho inicia em proporção Sesquiáltera, muda para Subsesquiquinta na segunda battuta, criando o mesmo efeito ocorrido no terceiro exemplo. Na terceira battuta, o autor deseja retornar à Sesquiáltera, mas para isso deve anular a proporção anterior, invertendo-a, isto é, utilizando a proporção Sesquiquinta (6/5). Na quarta battuta, a Sesquiquinta é anulada novamente pela sua inversa e na quinta battuta temos, como no ex. 3, a proporção Superbipartientequinta (7/5). Resumindo, o exemplo começa com seis semínimas por battuta, passa para cinco, retorna a seis, passa novamente para cinco e acelera para sete.

Exemplo 7.

O sétimo exemplo é novamente uma diminuição composta em particular de figuras, caminhos e simples de proporção. Composta de figuras porque utiliza semínimas, colcheias e semicolcheias. Composta de caminhos porque não possui padrão nem melódico e nem rítmico. Simples de proporção porque, apesar de estar em uma proporção incomum, que é a

272

Sesquiquarta, onde se coloca cinco semínimas no lugar das quatro do tempo alla semibreve, tal proporção não muda até o final do sujeito diminuído.

Exemplo 8.

O oitavo e último exemplo, representa a diminuição composta em geral por ter os três elementos compostos: figuras, caminhos e proporção. É composto de figuras por conter semínimas, colcheias e semicolcheias; de caminhos por não construir nenhum padrão melódico; e de proporção por mudar de métrica a cada battuta. O trecho inicia com o tempo alla semibreve, que indica quatro semínimas por battuta; na próxima, muda para a proporção Sesquiáltera, que comporta seis semínimas no lugar das quatro anteriores; em seguida, Ganassi muda para a conhecida Subsesquiquinta (note o ritmo complexo que ele escreve nesta battuta); e na quarta battuta, para a Superbipartientequinta (7/5); a última, está em proporção Sesquisétima (8/7). Note-se que um tempo com oito semínimas corresponde ao sinal alla breve, entretanto, não adiantaria escrever tal sinal sem antes anular a proporção que antecede; desta vez, a anulação ocorre através da relação entre numerador e denominador da fração, na qual, o denominador nos informa a quantidade de semínimas da battuta anterior (7) e o numerador, a nova ordem, isto é, quantas semínimas caberão a partir daquele momento. Seguindo, o capítulo 13 traz algumas explicações sobre a maneira como os exemplos serão notados, e ainda sobre como diminuir sem infringir o contraponto. Os exemplos estão organizados em quatro regras de acordo com a proporção utilizada, cada uma delas, contém cerca de dez exemplos de diminuição para cada intervalo de origem. Estes, compreendem intervalos ascendentes e descendentes a partir da segunda até a quinta, e também alguns exemplos sobre o uníssono. Tais intervalos podem ainda ser intermediados por algumas notas de passagem ou saltos (ex. 9), e quando isso ocorre, são chamados de intervalos “quebrados” [spezati] ou “intermediados”. 273

Exemplo 9.

Ganassi explica também que iniciará seus exemplos da Primeira Regra, com o intervalo de segunda ascendente não quebrada, sob os sinais de tempos momento, o autor faz uma advertência em relação ao confundido com

e

e

. Neste

, alla breve, para que não seja

, que exigem a battuta de semibreve. Acompanhando os exemplos,

vimos que estes alternam intervalos inteiros com aqueles intermediados por notas de passagem, até mudar o intervalo, nesta ordem: segundas descendentes, terças ascendentes, terças descendentes, quartas ascendentes, quartas descendentes, quintas ascendentes e quintas descendentes. Nos números 13 e 14 dos intervalos de segunda, temos dez exemplos de diminuição em uníssono sobre as notas mi, sol e dó. Alguns dos exemplos estão notados na clave de dó na segunda linha, os demais na clave de dó na primeira. No final do capítulo, o autor ainda adverte sobre os intervalos, afirmando que os exemplos feitos sobre uma segunda, servem para qualquer intervalo de segunda, ou seja, transpondo as diminuições; e indo mais longe, ele diz ser possível adaptar tais exemplos em outros intervalos diferente que estão escrito nas margens. Algumas destas adaptações estão marcadas nas margens dos exemplos, e são descritas com algum detalhamento no

274

capítulo 18, de leitura um tanto complexa e obscura, o que torna a sua utilização prática ainda mais difícil de compreender. Outra informação importante contida no capítulo 13 são as regras de como diminuir, constituídas, na verdade, em uma principal regra e duas “licenças” para que a diminuição não seja tão restrita. Sendo assim, quando se diminui um intervalo de segunda ascendente, como “sol-lá”, deve-se iniciar a diminuição na primeira nota “sol”, ou na sua oitava, e terminar com o intervalo original, isto é, as duas últimas notas da diminuição devem ser “sol-lá” (ex. 10). Tal regra mantém as consonâncias originais da obra e não provoca movimentos de quintas e oitavas paralelas indesejados, pois mantém a mesma disposição escrita pelo compositor. Seguindo, a primeira licença consiste em poder terminar a diminuição alcançando a segunda nota com qualquer intervalo de segunda, ascendente ou descendente, ou qualquer outra consonância “não quebrada” (ex. 11). Sobre tal procedimento, o autor adverte que com tal modo de diminuir algumas vezes acontecerão alguns erros de contraponto, o que é escusável devido à velocidade das notas, desde que o músico seja consciente daquilo que faz. O terceiro modo seria “quebrar a ordem do seu início e final com uma síncopa”, isto é, inserir uma pausa onde deveria cair tais consonâncias (ex.12), tal procedimento, embora algumas vezes sejam engenhosos (”poderá vir com razão”), em outras causará erros (“fará padecer”) de contraponto, pois “é impossível que em um diminuir veloz não nasçam alguns erros”.

Exemplo 10.

Exemplo 11.

275

Exemplo 12.

Os capítulos 14 a 17 constituem explicações sobre o diminuir das quatro regras em que estão distribuídos os exemplos. Tais regras dizem respeito à proporção métrica utilizada, tendo na “Primeira Regra”, exemplos de diminuição sob tempo alla semibreve; na “Segunda Regra”, exemplos sob a proporção Sesquiquarta ( exemplos sob a Sesquiáltera ( Supertripartientequarta (

7/4).

6/4);

5/4);

na “Terceira Regra”,

e na “Quarta Regra”, exemplos sob a

As proporções escolhidas por Ganassi mostram que o autor

estava interessado em alterar o valor das semínimas em relação ao tempo alla semibreve, no qual cabem quatro por battuta. No capítulo 14, o autor nos informa ser possível adaptar os exemplos da Primeira Regra para a métrica da Sesquiáltera. Ele já havia mencionado tal informação no capítulo anterior, advertindo que teria também anotado a Sesquiáltera nas margens dos exemplos para nos lembrar dessa possibilidade. A princípio nos questionamos se tal adaptação consiste em alterar os valores das figuras dos exemplos da Primeira Regra para encaixá-los na dita proporção, ou, se ele estaria mencionando uma prática similar àquela demonstrada nos duetos de Cerreto; isto é, diminuir utilizando as proporções enquanto as demais vozes continuam sob o tempo binário, causando assim, uma execução rica em polirritmias. No entanto, quando o autor afirma que, ao executar tal adaptação “será formada a proporção Subsesquiáltera (2/3)”, comprova que ele deseja realmente fazer uma diminuição binária dentro da métrica ternária e não adaptar rearranjar as figuras para caber em tal proporção, pois se assim fosse, que necessidade teria de escrever os exemplos da Terceira Regra?

276

É interessante também notar que, nas explicações de tais capítulos, o autor despende grande tempo relacionando as proporções entre si para criar novas proporções, segundo a tópica da “proporcionalidade”. Deste modo, na Primeira Regra, surgem a Subsesquiáltera, como já vimos, e a Sesquiterça (4/3), formada quando se quiser retornar ao tempo alla semibreve a partir da Sesquiáltera e indicando uma comparação horizontal ao contrário da anterior, que é vertical. Na Segunda Regra, surge a proporção Subsesquiquinta (5/6) da relação entre a Sesquiquarta (5/4) e a Sesquiáltera (6/4). Isto é, se estiveres diminuindo em Sesquiáltera e quiser passar, na mesma voz, para a Sesquiquarta, terá que anular a proporção anterior pela Subsesquiquinta, “dizendo” que no lugar daquelas seis semínimas agora vão quatro por battuta, e tal comparação ocorre horizontalmente. Mas também é possível gerar tal proporção da comparação entre a voz diminuída e as demais em uma música composta em Sesquiáltera, e tal comparação ocorre verticalmente. Na Terceira Regra não há nenhuma comparação de proporcionalidade e por fim, na Quarta Regra surge a proporção Sesquisexta, que é fruto da comparação

ente a

Supertripartientequarta com a Sesquiáltera; lembrando que tal comparação, pode-se dar das duas maneiras explicadas anteriormente, isto é, horizontal e verticalmente. No final desta regra, o autor afirma que a próxima proporção seria 8/4, mas ele não a escreve por ser exatamente o dobro daquela da Regra Primeira.

Tal proporção, de nome Dupla, é

semelhante ao tempo alla breve e a instrução que o autor nos dá para diminuir empregandoa é “comutar as figuras”, isto é, dobrar os seus valores. Os demais capítulos explicam a forma como Ganassi organizou os exemplos, discorrem um pouco sobre os a relação dos intervalos em uma diminuição e ampliam todo o sistema para figuras maiores como a breve e a longa, e menores, como a mínima. É possível também, como o autor nos informa no capítulo 21, alterar a proporção somente em metade da battuta, o que é demonstrado através de um exemplo. A partir de todas estas informações é possível notar o quão rico e variado é o sistema de diminuição proposto por Ganassi e, visto que suas idéias são frutos de seu tempo, o quanto é interessante toda a música praticada no século XVI.

277

CONCLUSÃO

Neste estudo buscou-se oferecer ao intérprete da flauta doce, uma tradução fiel da Obra Intitulada Fontegara, devidamente acompanhada de notas e comentários que elucidam erros e pontos confusos da escrita, assim como outras informações complementares ao entendimento da obra. Apesar de não ser um texto muito extenso, a Fontegara apresenta uma leitura árdua e complexa, o que nos trouxe grande dificuldade em várias etapas da tradução. Em primeiro lugar, constatou-se que, apesar do esforço do autor em escrever usando o dialeto toscano, o texto ainda preserva uma forte influência do dialeto veneziano. Muitas vezes encontramos a letra “z” no lugar de “gi” ou “ci”, como por exemplo, em zorno (giorno=dia); ou então, expressões provenientes de termos marítimos como stroppare, no sentido de prender (tampar) os furos da flauta e arrivare al desiato porto, no sentido de alcançar seus objetivos. Em segundo lugar, os tipos usados por Ganassi em seus tratados requerem certo hábito e presteza, pois várias letras estão contidas em abreviações que, muitas vezes possuem sinais quase idênticos. Por exemplo, os sinais qualquer vogal, como em

e

: o primeiro significa “pr” +

(proferiri=proferires); e o segundo, “per”, como em

(perfetto=perfeito). Outro sinal constantemente utilizado é uma espécie de til (~) que substitui algumas vezes a letra “n”, como em “m”, como em

(instrumento), ou a letra

(composition=composição). No entanto, ele também serve

para abreviar o “ue” acompanhado da letra “q”, como em as duas letras, “n” e “m”, juntas, como em

(quello=aquele) ou ainda

(animo= ânimo). Além disso, o texto possui

vários erros, letras invertidas e quase não possui pontuação e letras capitulares, e, quando as possui, nem sempre estão no início de uma nova frase.

278

Acreditamos que, por tais razões, uma tradução como a de Peter, a qual foi feita para uma língua que não tem parentesco com o italiano como é o alemão, é mais suscetível a cair em tais armadilhas do texto e, por não conter termos semelhantes, é obrigada a reescrever com outras palavras. De fato, verificamos, através de sua versão em inglês, que tal procedimento ocorre em quase a totalidade da obra. Tal problema foi também observado por Lasocki, em seu artigo “Recorder in Print: 2003”459, no qual faz uma resenha da tradução para o francês feita por Vossart e Navarre. No artigo, o autor confessa não ter se dado conta de quão imprecisa era a tradução de Peter e Swainson, até ler a tradução belga. Para exemplificar, o autor nos transcreve um trecho do capítulo 1, o qual julga ser a mais bela e famosa passagem da Fontegara:

And just as a painter imitates natural effects by using various colours, as instrument can imitate the expression of the human voice by varying the pressure of the breath and shading the tone by means of suitable fingering. In this matter I have had much experience and I have heard that it is possible with some players, to perceive, as it were, words to their music; thus one may truly say that with this instrument only the form of the human body is absent, just as in a fine picture, only the breath is lacking. This should convince you that the aim of the recorder player is to imitate as closely as possible all the capabilities of the human voice. For this it is able to do.460

Para melhor compreendermos, aqui está o texto no original:

Si il dipintore imita li effetti de natura con varii colori lo instrumento immitera il proferir della humana uoce con la proportion del fiato & offuscation della lingua con lo agiuto de deti & di questo ne o fatto esperientia & audito da altri sonatori farli intendere con il suo sonar le parolre di essa cosa che si poteua ben dire a quello instrumento non mancarli altro che la forma dil corpo humano si come si dice alla pintura ben fatta non mancarli iolum il fiato: si che hauete a essere certi del suo termine per dite rason de poter imitar il parlar.

LASOCKI, David. “Recorder in Print: 2003”, American Recorder 46, n.3, 2005, p. 18. GANASSI, Silvestro. Opera Intitulata Fontegara. A treatise on the Art of Playing the Recorder and of Free Ornamentation. [...], p. 9

459 460

279

E em nossa tradução:

E se o pintor imita os efeitos da natureza com várias cores, o instrumento imitará o proferir da voz humana com a proporção do sopro e com a oclusão da língua, [esta] com a ajuda dos dentes. Sobre isso, fiz experiência, e, ouvindo outros tocadores capazes de fazer-se entender com o seu tocar, as palavras dessa coisa, poder-se-ia dizer que àquele instrumento não falta nada além da forma do corpo humano. Assim como se diz que à pintura bem feita não falta nada além da respiração. Assim, deveis estar certos do seu propósito de poder imitar o falar.

Este também é o trecho que possui o ambíguo “deti”, traduzido por Peter e Swainson, assim como por Vossart e Navarre, como “dedos”, e, por nós e Salvatore, como “dentes”. Note-se que a interpretação dada pela pesquisadora Hadden, como mencionamos no item 3.2., é muito semelhante ao texto da tradução inglesa, que nem menciona a “língua” na passagem. Uma tradução pouco acurada do original faz com que sejamos muitas vezes tendenciosos em nossas interpretações, mesmo quando conhecemos razoavelmente o idioma original. Por esse motivo, em nosso procedimento, a tradução inglesa foi desconsiderada. Utilizamos algumas vezes a tradução belga para elucidar pontos obscuros, e esta nos foi bastante útil para compreender o capítulo 18, o qual consideramos ser o mais problemático. No entanto, tal tradução também “completa” o texto com palavras inexistentes, como é o caso do capítulo 9:

Pero tu intenderai che altro non e diminuire che uariare la cosa ouer processo che di natura se dimostra soda e semplice[...] Mas compreenderás que diminuir não é nada além do que variar uma coisa, ou um processo, que por sua natureza se mostra sólido e simples [...] Tu comprendras que diminuer n’est rien d’autre que varier un texte ou une phrase qui, dans sa nature, se montre clair et simple [...]

Pelo original podemos claramente compreender que, nesta frase, Ganassi está apenas afirmando a natureza do processo de diminuição. Este, não é outra coisa além do que variar uma obra escrita originalmente em notação branca, como eram comumente escritas as obras vocais arranjadas para instrumentos, nas quais, durante a diminuição, é 280

necessário quebrar as notas “inteiras”, isto é, semibreves e mínimas, colocando em seus lugares, as minutas, isto é, semínimas, colcheias e semicolcheias. Simplesmente não há lugar para frases e textos nesta definição.

A partir daquilo que foi afirmado, julgamos mais acurada a transcrição para o italiano moderno de Salvatore, a qual foi diversas vezes consultada. É digna de menção a proposta do autor em esclarecer todos os conceitos da obra através das vastas notas de rodapé e da inserção de dezenove anexos contendo fontes primárias contemporâneas à Fontegara, a fim de fornecer todo o repertório da teoria e prática da música quinhentista necessário a uma compreensão adequada do tratado. Tal postura foi adotada por nós, principalmente na elaboração do terceiro capítulo. Portanto, este terceiro capítulo foi estruturado de modo a fornecer um guia para a leitura, no qual foram destacadas três principais vias de pensamento. A primeira delas segue o modelo acima, a qual busca trazer ao universo do flautista doce, assim como também daqueles que trabalham segundo a linha de pesquisa historicamente orientada, todos os elementos da preceptiva musical do século XVI e XVII, necessários à compreensão do conteúdo e da terminologia empregada na obra. Destacam-se neste sentido, as obras de Aaron, Zarlino e Zacconi, que foram amplamente utilizadas na definição de conceitos como a battuta, os sinais de tempo, as sílabas de solmização e as proporções métricas. É importante também notar que como a formação do flautista doce brasileiro ainda é totalmente fundamentada na música do século XVIII, o intérprete, ao deparar-se com o repertório do século XVI, acaba não sabendo como executá-lo corretamente, ou o faz apenas com as ferramentas que possui em mãos. Um exemplo elucidativo referente a esta questão está na dificuldade de se executar mudanças de métrica, que ocorrem entre as métricas binárias e ternárias de uma vasta quantidade de obras pertencentes a este século. A este respeito, é muito comum ouvir ou ver em edições modernas quando se tem uma mudança para a métrica ternária, a indicação

, isto é, “figura é igual a figura”, o

que, após a leitura atenta dos tratados, torna-se inconcebível, pois é exatamente o tamanho 281

das figuras que a as proporções desejam alterar, sendo o único elemento constante e invariável para a prática desses músicos antigos, inequivocamente, a battuta. Em segundo lugar, buscou-se também trazer para o flautista leitor da Fontegara, aquilo há de mais novo e atualizado dentro das pesquisas a respeito do tratado e do uso da flauta doce nos séculos XV, XVI e XVII. Neste campo, destacam-se os pesquisadores que participaram do Simpósio Musicque de Joye ocorrido na cidade de Utrecht em 2003, com especial atenção a Keith Polk, por comprovar que o uso do conjunto de flautas para a execução de polifonia vocal, ao contrário do que se pensa, remonta ao século XV, momento em que houve um grande aumento do interesse pelo instrumento. Também é digno de menção o monumental artigo de Peter van Heighen, desmistificando e esclarecendo muitos pontos da prática dos conjuntos e da flauta doce no século XVI. Não podendo deixar de mencionar também os trabalhos de Adrian Brown, maior estudioso dos aspectos construtivos dos instrumentos renascentistas e principalmente de David Lasocki que, através de seu gigantesco catálogo de inventários e aquisições, datados entre 1388 e 1630, possibilitou inúmeras pesquisas como as mencionadas acima. Por fim, considerou-se também como objetivo do terceiro capítulo, elaborar um comentário do tratado, dividido em três partes, a fim de simplificar o entendimento do texto sem ter a necessidade de alterar os termos do original. No que se refere à arte da diminuição, assunto que ocupa a maior parte do tratado, achou-se relevante, devido ao pouco conhecimento que o intérprete brasileiro tem a respeito dessa prática, fazer uma resenha dos principais tratados que abordam o assunto, destacando as mudanças de estilo e as novidades inseridas por cada autor. Tal panorama da diminuição serviu para elucidar que, embora a Fontegara seja a primeira preceptiva da diminuição, ela constitui o sistema mais rico e bem detalhado desta prática. Além disso, observou-se com grande interesse, o modo como as regras e os modelos de exemplificação foram emulados e transformados por cada autor e ainda, como a diminuição contribuiu para o desenvolvimento de uma escrita idiomática instrumental. Neste ponto, faz-se necessário retornar ao capítulo 1, a fim de discorrer a respeito dos resultados da pesquisa bibliográfica sobre a vida de Silvestro Ganassi e o contexto histórico-cultural da Fontegara. Como já foi mencionado na introdução desta dissertação, 282

durante a pesquisa, percebemos que as informações biográficas do autor estavam dispersas entre as referências, e, muitos aspectos relevantes, tais como a possível relação familiar de Ganassi com os músicos do Concerto Palatino de Bolonha, não estavam presentes em todos os relatos e, tampouco foram indicadas as fontes da maioria dos dados tidos como exatos, mas que provêm da própria informação fornecida pelo autor em suas obras. Do mesmo modo, encontramos duas citações importantíssimas para entender a relação do autor com seus contemporâneos, assim como a sua influência no ambiente cultural veneziano. A primeira destas duas citações, nunca antes mencionadas pelas biografias461, é o poema de Philippo Oriolo da Bassano em que o músico aparece no monte Parnaso, em companhia dos piffari mais reconhecidos da Itália do norte no século XVI. A segunda citação, que na realidade é dupla, refere-se à menção de Silvestro dal Fontego, em dois dos principais tratados da pintura veneziana quinhentista: o Dialogo di Pittura de Paolo Pino (1548) e o Dialogo intitolato l’Aretino, de Ludovico Dolce (1557). Segundo tais obras, Ganassi era, além de músico, bom pintor, embora se considerasse, como vimos no frontispício da Lettione Seconda, apenas um “desejoso da pintura”. O autor também está inserido nestes diálogos, como auctoritas da comparação entre as duas artes e também da tópica do pintor perfeito que, seguindo o ideal cortesão, deve conter outras virtudes além da pintura. Nada se sabe a respeito da sua atividade como pintor, além das possíveis especulações sobre a impressão suas obras, o que nos concederia afirmar que todos os frontispícios e ilustrações de suas obras podem ter sido desenhados e gravados pelo próprio autor. A respeito do contexto da obra constatou-se que os estudos referentes ao ambiente veneziano do primeiro quarto do século XVI, estavam consideravelmente desenvolvidos no campo da arquitetura e da história da arte desde a década de 1980, e suas contribuições mais significativas devem-se às excelentes publicações de Manfredo Tafuri. Ainda notamos

Note-se que os documentos foram encontrados em edições modernas e possuíam notas explicativas sobre Ganassi. 461

283

que somente nos últimos anos, tais aspectos foram incorporados nas pesquisas musicais, destacando-se as publicações de Fenlon, Howard e Moretti.462 Os estudos mostram que, apesar de visto com certa desaprovação, devido ao seu caráter colérico e à sua relação indireta com os turcos através de seus filhos bastardos, Andrea Gritti foi responsável por um magnífico programa de renovação urbana e cultural, que visava reerguer a imagem da cidade após as devastadoras perdas de território durante as guerras contra a Liga de Cambrai. Tal programa consistia na restauração do chamado Mito de Veneza, baseado na concórdia e imortalidade de seu sistema de governo, no qual a música cumpria papel simbólico fundamental como representante da concórdia e da pax interna. Sendo assim, a teoria das proporções contida no tratado e a dedicatória ao doge Gritti coloca a Fontegara em um lugar de destaque dentro do cenário da renovatio, no qual ela cumpre papel de propagar a magnificência e glória dos músicos de Veneza. Concluímos, portanto, que a Fontegara, embora seja pouco abordada devido a sua complexidade, consiste em uma fonte fundamental para o estudo da flauta doce, bem como da música veneziana do século XVI. Relacioná-la com maior detalhe com as grandes reformas e com a formação humanista de Gritti, poderá trazer ainda em uma próxima pesquisa, uma nova e inusitada perspectiva da obra.

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ANEXO I

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ANEXO II

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