Direitos Reais - José Alberto Vieira e Menezes Leitão

September 27, 2018 | Author: 大象城堡 | Category: Law Of Obligations, Property Law, Science, Portugal, Roman Law
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sebenta dos manuais dos professores, conforme a organização índice de José Alberto Vieira, com o complemento de Luis Men...

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José Alberto Vieira | Luís Menezes Leitão

2017/2018 葡京法律的大学 大象城堡

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Parte Primeira – O sistema de direitos reais1 O sistema normativo ou interno dos Direito Reais: a origem do sistema interno de Direitos Reais encontra-se como sabemos no Direito Romano. A classificação de GAIUS que divide o sistema normativo do Direito Romano em personae, res e actiones leva a diferenciar o Direito patrimonial, que estava compreendido na res, a capacidade jurídica e o que hoje abrangemos no Direito da Família, tratado a propósito da personae, e a tutela processual dos direitos, integrado nas actiones. A res, por sua vez, incluía todos os direitos patrimoniais, ou seja, as duas grandes categorias de direitos: os direitos reais e os direitos de crédito (obligationes). Esclareçase, porém, que a designação Direitos Reais ou Direito das Coisas não era conhecida no Direito Romano. Oque surge referenciado no Direito Romano é a res, designação para a propriedade, e o ius in re, direitos sobre coisa alheia (direitos reais menores), que mais tarde na doutrina surgiram mencionados como ius in re (propriedade) e ius in re aliena (direitos reais menores), por influência dos romanistas da Idade Média. No Direito Romano os direitos reais tinham por objeto uma coisa e atribuíam um senhorio total ou parcial sobre ela, o qual dispensava a colaboração de uma pessoa, contrariamente às obligationes. É conhecida, porém, a perspetiva dos romanos de olharem os direitos patrimoniais não como direitos subjetivos, mas como ações, ou seja, não de acordo com a posição jurídica e sim consoante a tutela processual. Enquanto os direitos pessoais de crédito recebiam tutela através da actio in personam, os direitos sobre as coisas eram defendidos por uma actio in rem. A actio in personam vem a ser intentada quando o devedor não efetua a prestação a que se encontra obrigado e dirige-se contra o devedor: é in personam. Diversamente, a actio in rem visa atuar a defesa de um direito sobre uma coisa contra todo aquele que se põe a atuar a defesa de um direito sobre uma coisa contra todo aquele que se põe a si próprio como obstáculo entre o titular do direito real e a sua coisa. Deste modo, esta ação não vem a ser interposta contra alguém que deva realizar uma atividade a favor do autor, mas contra aquele que lhe impede o gozo de uma coisa, podendo ser dirigida contra quem quer que seja, isto é, contra qualquer um. A actio in rem permitia, assim, ao titular do direito real perseguir a sua coisa para aonde quer que ela fosse, independentemente da pessoa do possuidor, o qual é, para efeitos de tutela, indiferente. Na ausência de fontes que enunciem de um modo ordenado as várias figuras de direito reais, a natureza real decorre, ao menos num primeiro momento, da tutela processual da actio in rem. O Direito Romano desenvolveu os tipos mais importantes de direito reais. No Direito Romano antigo, eram a propriedade, as servidões (servitutes) e o usufruto, com a limitação que é o direito de uso. No período justinianeu, a evolução permite reconhecer igualmente a enfiteuse, a superfície e, como garantia das obrigações, o penhor e a hipoteca. Dentro dos direitos reais, a propriedade no Direito Romano é o direito mais extenso. A contraposição entre as obrigações e os direitos reais e, em particular, o desenvolvimento dos tipos de direitos reais constitui uma das mais importantes heranças do Direito Romano. O sistema normativo de Direitos Reais recebeu um novo influxo com a codificação civil. À dispersão das fontes e a sua relativa desorganização, ou ordenação periférica em compilações, sucedeu uma regulação sintética constante de um único diploma legal: o Código Civil. Historicamente, a primeira evolução histórica significativa desde o Direito Romano foi trazida pelo Code Civil Francês de 1804. O Code Civil aparece estruturado em três Livros, Das 1

VIEIRA, José Alberto; Direitos Reais; 2.ª Edição; Almedina Editores, S.A., Coimbra, fevereiro 2016.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Pessoas, Dos Bens E Das Diferentes Modificações Da Propriedade e Dos Diversos Modos De Aquisição Da Propriedade. Parte-se da noção de pessoa (Livro I), ponto de vista agregador do sistema, e desta depois para o património, sem o qual a pessoa não se realiza. O Livro II surge inteiramente dedicado à disciplina dos Direito Reais, embora essa designação não seja usada, e encontra-se dividido em quatro títulos, Da Distinção Dos Bens, Da Propriedade, Do Usufruto, Uso E Habitação e Das Servidões Ou Serviços Fundiários. A posse não surge regulada no Livo II, mas no Livro II, juntamente com o regime da prescrição. O conteúdo desta regulação do Code Civil é possivelmente, dentro dos códigos civis modernos, o que menos recebeu da herança do Direito Comum. É conhecido a forte influência do costume, especialmente o costume de Paris, na elaboração das soluções normativas do Code. O Code Civil representa uma enorme evolução na sistemática interna do Direito. Aqui a matéria encontra a sua unidade mediante pontos de vista unitários: a pessoa, o património e dos modos de aquisição deste. Estes correspondem, contudo, a uma perspetiva ideológica marcada do pensamento liberal individualista e menos a uma preocupação sistemática. O Code Civil viria a exercer a sua influência numa Europa em grande parte dominada pelas armas napoleónicas. Contudo, o prestígio alcançado por este diploma influenciou outros Estados a adotar a codificação segundo o modelo francês. Portugal foi um deles com o Código de Seabra de 1867. O Code Civil francês marca a primeira fase da codificação civil e do sistema interno dos Direitos Reais organizado no âmbito de um Código Civil. Essa fase durou quase um século. Nesse período, que corresponde a todo o século XIX, desenvolve-se na Alemanha uma ciência jurídica com preocupações sistematizadoras do Direito Civil. Tendo como percursor Savigny, a ciência jurídica alemã do século XIX foi desenvolvida pela pandectística, por incidir os seus estudos no Direito Romano, nos Digesta ou Pandekten. É essa a ciência a que se deve o Bürgerliches Gesetzbuch alemão, mais conhecido pela sigla BGB. O BGB divide-se em cinco Livros: Parte Geral (I), Direito das Relações Jurídicas Obrigacionais (II), Direito das Coisas (III), Direito da Família (IV), Direito das Sucessões (V). Esta é a denominada sistematização germânica do Direito Civil. Ela apresenta-se, na verdade, como um modelo sistemático heterogéneo. O Direito das Obrigações e os Direitos Reais recebem o Direito Romano com as modificações geradas pelo Direito Comum. No entanto, a classificação entre direitos de crédito e direitos reais não surge apenas como cultural, ela revela igualmente “formas de manifestação conceituais do direito subjetivo”. Por outras palavras, ela é também concetual e abstrata. Dentro da conceção kantiana de ciência, a pandectística moldou o material jurídico debaixo da noção de relação jurídica, que constitui o conceito sintético a priori que viabiliza a ciência do Direito. Cada um dos ramos do Direito Civil surge, pois, estruturado em volta do conceito de relação jurídica e todos os direitos subjetivos são definidos segundo um modelo relacional, num passo que se tornara nítido já em Savigny. O BGB já não trata unitariamente o património como fonte de aquisição de capital e garantia de responsabilidade, como faziam o Direito prussiano e o Direito austríaco, autonomizando os Direitos Reais como parte do Direito Patrimonial Privado. Ao mesmo tempo, ele separa os Direitos Reais do Direito das Obrigações, como decorria da contraposição romana entre actio in rem e actio in personam mantida no Direito Comum sob um prisma substantivo. À posição individual de uma pessoa defronte do seu património, com os seus poderes e deveres, a posição tradicional, o BGB contrapõe um direito subjetivo sobre coisas. Esse direito subjetivo, cuja aquisição, conteúdo e perda têm a sua sede normativa no Livro II, concretiza a atribuição jurídica de uma coisa a uma pessoa, diferentemente do direito de crédito, que dá a um credor um direito à atividade (prestação) de outra pessoa, e é um direito absoluto, contrariamente ao direito obrigacional, meramente relativo. Os direitos reais têm por objeto coisas. Todavia, para o legislador do BGB nem todas as coisas constituem objeto dos direitos reais. As coisas incorpóreas estão excluídas, restando unicamente as coisas corpóreas. Estas são o objeto dos direitos reais. Paradoxalmente, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão o regime das coisas não consta do Livro dedicado aos Direitos Reais, aparecendo como um trecho da regulação da Parte Geral. Diferentemente do Code Civil francês, que procedeu ao tratamento dessa parte do Direito Civil como se houvesse apenas o direito de propriedade a considerar, no confronto do qual os restantes direitos reais constituem meros desmembramentos, o BGB trouxe, pela primeira vez, uma denominação genérica desta disciplina normativa: Direito das Coisas. A propriedade perde o estatuto de paradigma central e emerge como um direito real ao lado de outros, não obstante permanecer como o direito real mais extenso e importante. O Livro III do BGB não contém qualquer disposição genérica sobre o Direito das Coisas. Produto de um pensamento sistemático desenvolvido e de uma doutrina jurídica que aspirava a conferir caráter científico ao Direito, o BB irradiou a sua influência para fora do domínio tradicional da língua alemã, penetrando mesmo em países culturalmente distantes da Alemanha, como foi o caso de Portugal, com o Código Civil de 1966. Depois do BGB, o Codice Civile italiano de 1942 marcou outra etapa na sistematização do Direito Civil e dos Direitos Reais. Nos Direitos Reais, o Codice Civile não emprega nenhuma designação específica para este ramo do Direito, preferindo aludir simplesmente à propriedade, mantendo a traça de raiz napoleónica. No Livro Terceiro, o Codice apresenta um Título dedicado aos bens, definindo estes como «as coisas que podem constituir objeto de direitos» (artigo 810.º). O Codice Civile italiano exerceu um fascínio particular na última codificação civil portuguesa. Uma boa parte das soluções que o Código Civil português consagra nos regimes jurídicos dos vários direitos reais são inspirados no Codice Civile, cuja influencia neste domínio se projeta bem para além do BGB alemão.

O sistema normativo português de Direitos Reais: a evolução histórica permite detetar em Portugal trê grandes períodos de evolução do sistema normativo ou interno de Direitos Reais: o primeiro período dura até à primeira codificação civil, e inclui a prática do Direito Comum e das Ordenações do Reino; o segundo período coincide com a vigência do Código Civil de Seabra; o terceiro período começa com a entrada em vigor o Código Civil de 1966 e permanece na atualidade. O Código Civil de Seabra mescla duas tendências comuns à época: por um lado, a tradição romanística do Direito Comum, por outro, o influxo jusracionalista, recebido através da doutrina francesa e da influência marcante do Code Civil. Estas tendências ditaram a sistemática do primeiro Código Civil português. Assim, o Código de Seabra encontrava-se dividido em quatro Partes: Parte I, Da Capacidade Civil, Parte II, Da Aquisição Dos Direitos, Parte III, Do Direito De Propriedade, e Parte IV, Da Ofensa Dos Direitos E Da Sua Reparação. Tal como no Code Civil francês, a disciplina de Direitos Reais encontra-se no Código Civil de Seabra autonomizada numa Parte (III) do Código Civil, subordinada, como em toda a codificação de matriz liberal, à propriedade, no lugar central do sistema normativo relativo a este ramo do Direito, embora o direito de propriedade seja apenas um dos direitos reais aí previstos. O exacerbamento da propriedade não se queda, no entanto, pela tomada da parte pelo todo. Ele está, sobretudo, na atração que a propriedade exerce para todas as outras regulações que possam trazer dentro dos seus efeitos a aquisição deste direito (as Sucessões, as Obrigações, etc.) e que são tratadas pelo prisma de factos aquisitivos da propriedade. A explicação para um tal exacerbamento da propriedade encontra-se na assimilação desta ao património, meio de realização da pessoa individual. Pessoa e bens (ou património) são o binómio em que se funda a estruturação do Direito Civil. Tudo o que são pessoas, cabe na disciplina jurídica dos bens, o mesmo equivale a dizer, na propriedade. O Código Civil de 1966 corresponde ao início do terceiro período do sistema interno ou normativo português de Direitos Reais. Com ele, o Direito português entrou dentro da terceira sistemática, impondo definitivamente a evolução que se fazia sentir no sistema científico ou externo em Portugal desde Guilherme Moreira. Olhado de perto e fazendo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a comparação com o Código de Seabra, o Código Civil português de 1966 pouco inovou a não ser na arrumação exterior das matérias. Ele adotou, como se sabe, o modelo pandectístico do BGB alemão, encontrando-se dividido em cinco Livros: o primeiro relativo à Parte Geral, o segundo ao Direito das Obrigações, o terceiro ao Direito das Coisas, o quarto ao Direito da Família e o quinto ao Direito das Sucessões. Em Direitos Reais, o legislador português optou por uma designação genérica de referência, Direito das Coisas, como tinha feito o legislador alemão no BGB. A orientação ideológica do liberalismo, que vê na propriedade o paradigma e matriz dos direitos patrimoniais, desaparece do Direito português. Fruto de uma conceção mais autoritária do Estado ou quiçá debaixo de uma moderada influência de um princípio de função social, que um pensamento liberal individualista não poderia tolerar, mas que são sinais de tempos diferentes, a propriedade surge configurada apenas como um dos direitos reais constantes do elenco legal. A ordenação interna das matérias tem alguma semelhança com o BGB. Também o Código Civil concentra a disciplina dos direitos reais de gozo no Livro III, iniciando a regulação com a posse e seguindo com a propriedade, passando para os restantes direitos reais desta categoria logo a seguir. Como o seu homólogo alemão, o Código Civil de 1966 não dedica qualquer parte geral aos Direitos Reais. Não há nenhuma enunciação de princípios materiais, nenhuma regulamentação de institutos, de conceitos, de factos jurídicos ou simplesmente de regras com alcance geral. Não que não seja possível descobrir estes elementos no regime jurídico, na verdade, eles estão lá, sobretudo no regime da propriedade, mas com enfoque neste direito, o que arrasta por vezes problemas interpretativos delicados de extensão a outros direitos reais. Tal como no BGB, o regime jurídico das coisa ficou fora da sua sede natural, o Livro III, para ser regulado na Parte Geral como objeto das relações jurídicas (artigos 202.º a 216.º CC). Um ponto controverso resulta da definição do objeto dos direitos reais. O artigo 1303.º CC inculca a ideia de que a propriedade incide também sobre as coisas incorpóreas, remetendo, no entanto, o Direito de Autor e o Direito Industrial para lei especial. Estamos defronte de regimes especiais de Direitos Reais que têm coisas corpóreas por objeto? Responderemos adiante negativamente a esta questão, mas a colocação do artigo 1303.º CC a seguir à definição do objeto dos Direitos Reais, levada a cabo no preceito anterior em sede de propriedade (artigo 1302.º CC), é de molde a levantar interrogações legítimas. Uma diferença do nosso Código Civil para o BGB na ordenação das matérias está na colocação dos direitos reais de garantia no Livro do Direito das Obrigações (Livro II), assim como na previsão das principais categorias de direitos reais de aquisição, a promessa real e a preferência convencional com eficácia real, nesse contexto. O regime jurídico de Direitos Reais perde assim unidade, disperso por duas sedes distintas: a real, no Livro III, e a obrigacional, no Livro II. Outra diferença de peso consiste na indiferenciação entre o regime jurídico das coisas móveis e o das coisas imóveis. O Código Civil português não possui nada de comparável ao segundo capítulo do Livro III do BGB, onde se encontra uma extensa regulamentação dos direitos reais sobre imóveis. Desde a sua entrada em vigor, o Código Civil vigente foi apenas objeto de modificações no Livro III em nove ocasiões. Com exceção da enfiteuse – que representa sempre uma diminuição do catálogo legal de direitos reais de gozo e uma nova restrição da autonomia privada na escolha de formas de aproveitamento do gozo das coisas corpóreas – e da propriedade horizontal, cujo regime foi refundido com alguma profundidade, as modificações legislativas ao Livro III e ao Livro II, na matéria dos Direitos Reais, foram pontuais e de alcance muito reduzido, podendo-se qualificar como de pouca monta. O seu impacto no sistema normativo ou interno foi praticamente nulo. O sistema normativo de Direitos Reias não se confina, no entanto, ao Código Civil. É notada, de resto, a incidência de normas de Direito Público no conteúdo dos direitos reais, numa publicização desta disciplina que não tem parado de crescer, sobretudo na área urbanística. Mas mesmo limitando-nos ao Direito Privado, numerosos diplomas avulsos regem hoje matérias de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Direitos Reais fora do Código Civil. Ao analisarmos os três períodos do sistema normativo português de Direitos Reais, ressalta uma indiscutível tendência para a estabilidade das soluções materiais, filiadas largamente na prática do Direito Comum e, por isso, com uma grande influência do Direito Romano. Se há domínio normativo onde o Direito Português foi fortemente influenciado pelo Direito Romano, esse domínio é o de Direitos Reais. O grande salto qualitativo do sistema normativo é dado do primeiro para o segundo período, com a primeira codificação civil, pois com ela finalmente o pensamento científico penetra nele, possibilitando uma arrumação da matéria segundo pontos de vista centrais, que já não são puramente empíricos. A transição do segundo para o terceiro período não trouxe qualquer rutura com a situação anterior. A adaptação à terceira sistemática pandectística verificou-se principalmente ao nível da arrumação exterior das matérias, enquanto ao nível das soluções materiais as mudanças não são muitas, embora em alguns preceitos se note a forte influência do Codice Civile italiano. Para além da introdução do direito de superfície, o Código Civil de 1966 retirou a usucapião do domínio da prescrição e devolveu-a à posse, onde tem a sua origem histórica, fazendo cessar a pertinência da contraposição entre uma prescrição aquisitiva (a usucapião) e a prescrição extintiva. Os direitos reais menores deixam de ser qualificados como propriedades imperfeitas, uma vitória da tentação da oneração sobre a teoria do desmembramento, e alguns direitos reais foram suprimidos (o censo, o quinhão e o compáscuo). A revolução do 25 de abril de 1974, que impulsionou mudanças em outos setores, passou praticamente ao lado do sistema normativo dos Direitos Reais. O Decreto-Lei n.º 496/77, 25 novembro limitou-se a tocar na redação de dois preceitos. Também o artigo 101.º, n.º2 CRP 1976 proibiu a colonia, direito real de base consuetudinária da Madeira. Todo o dinamismo legislativo se concentra praticamente nas sucessivas modificações do direito real de habitação periódica. Pouca permeabilidade à mudança e a estabilidade da disciplina normativa são as marcas impressivas da vigência do Código Civil de 1966 no que respeita ao sistema normativo de Direitos Reais.

O contributo da jurisprudência portuguesa para o sistema normativo de Direitos Reais: reconhece-se hoje a importância do contributo jurisprudencial para o desenvolvimento do Direito, mesmo nas ordens jurídicas de Direito continental. Esse contributo pode ser tão rico ao ponto de já não ser possível o conhecimento do Direito vigente sem a indagação da jurisprudência. Em Códigos Civis com períodos de vigência prolongada, a alteração do substrato de regulação, pelo movimento incessante das relações da vida e dos circunstancialismos que levaram à sua feitura, pela entrada em vigor de outras leis ou pela alteração das que estavam em vigor, gera frequentemente a necessidade de diferentes leituras do material normativo, mesmo quando este permanece aparentemente sem alteração. À jurisprudência cabe então a tarefa de fazer evoluir o sistema normativo dentro da sua teleologia e dos seus princípios. Um Código Civil funciona a princípio como um fator inibidor do desenvolvimento jurisprudencial do Direito. Ele consolida normalmente os últimos conhecimentos científicos e, por isso, a tendência inicial de partida é para uma exegese dos seus textos. O Código Civil Anotado de Pires de Lima / Antunes Varela, dado o prestígio dos seus autores e envolvimento do então Ministro da Justiça Antunes Varela nos trabalhos preparatórios do Código Civil, facilitou uma abordagem jurisprudencial de tipo positivista. O resultado foi um tom exegético recorrente, uma utilização constante de fórmulas repetidas, muitas vezes meras repetições das fórmulas literais da lei, uma adesão geral e acrítica às posições expressadas no Código Civil Anotado, mesmo quando os fatores em jogo requeriam uma nova abordagem e soluções diferenciadas em atenção à evolução social entretanto registada. Os traços visíveis dessa orientação encontram-se na manutenção de uma orientação subjetivista na posse, na dificuldade de superar as amarras subjetivistas para reconhecer uma posse fora do âmbito dos direitos reais de gozo, na

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão persistência inteiramente desadequada de uma conceção subjetiva psicológica de boa fé em matéria de posse e de acessão industrial, no fraco desenvolvimento dado ao princípio da boa fé nos Direitos Reais, na incapacidade de generalização de dispositivos normativos de alcance mais alargado do que o contexto da sua regulamentação. Em matéria de posse, a jurisprudência manteve a orientação subjetivista, salvo em raras ocasiões, exigindo o corpus e o animus, com fórmulas sempre repetidas, mesmo quando o artigo 1253.º CC revela a clara insuficiência dessa teoria para fundamentar todos os casos de detenção. Esta orientação serve igualmente para recusar a qualificação de posse a situações em que o Código Civil atribui expressamente tutela possessória, na locação (artigo 1307.º, n.º2 CC), no comodato (artigo 1133.º, n.º2 CC), na parceria pecuária (artigo 1125.º, .º2 CC) e no depósito (artigo 1188.º, n.º2 CC), aparentemente por falta de animus. Registe-se, no entanto, a tomada de decisões num sentido diverso. Assim, o reconhecimento da posse ao promitente-comprador. O mesmo subjetivismo aflora na conceção relevante de boa fé subjetiva em matéria de aquisição de posse. O psicologismo manteve-se arreigado na interpretação do novo Código Civil, como no anterior, apesar do intenso movimento do Direito no sentido do incremento dos deveres de diligência das pessoas e mesmo quando a boa fé entendida no sentido psicológico contraria vetores teleológicos do sistema normativo. Se alguém adquire a posse de imóvel ignorando a situação registal pode invocar boa fé se o titular do direito real for aquele que tiver a inscrição registal a seu favor? Como compatibilizar essa interpretação com a função de publicidade que tem o registo predial (segundo o artigo 1.º CRp) e com a presunção de titularidade fixada pelo artigo 7.º? Se a ignorância voluntária (e, por vezes, conveniente) se sobrepõe à normal diligência da consulta do registo predial, então o escopo deste fica em larga parte comprometido. Pior do que tudo, esta orientação mantém uma cultura de laxismo e de ignorância nas pessoas, uma síndrome de um Portugal arrasado, subdesenvolvido e atávico. Com coerência, mas sem uma ponderação valorativa adequada, a conceção subjetiva psicológica foi reiterada em matéria de acessão industrial e mantém-se em decisões recentes. O Código Civil português, como os seus congéneres europeus, não contempla uma parte geral dedicada a preceitos de alcance genérico, aplicáveis a todos os direitos reais ou a uma categoria, nomeadamente, aos direitos reais de gozo. A disciplina de Direitos Reais inicia-se logo com a posse e continua pelos restantes direitos reais de gozo, sem um título, capítulo ou secção que contenha as disposições gerais deste ramo do Direito. Apesar disso, reconhece-se que existem preceitos com alcance geral, previstos normalmente a propósito da propriedade. Defronte desta insuficiência do sistema normativo ou interno, poder-se-ia esperar algum contributo construtivo da jurisprudência, com especial relevo para a matéria dos princípios normativos dos Direitos Reais. Em particular, até por confronto com o ultradinâmico Direito das Obrigações, no esclarecimento de um princípio de boa fé com especificidades relativas a este ramo de Direito. Contudo, também aqui o panorama jurisprudencial revela-se desanimador. Talvez em parte a justificação para isso resida na quase ausência de investigação cientifica de temas específicos na área dos Direitos Reais, muito em particular no tocante aos princípios deste ramo de Direito. A generalização de soluções particulares do sistema normativo é, em geral, muito reduzida, ou praticamente inexistente.

O sistema científico ou externo de Direitos Reais: o sistema científico ou externo de Direitos Reais apresenta hoje um notório e marcado subdesenvolvimento no confronto com a dogmática jurídica dos outros ramos do Direito Civil, em particular, com o Direito das Obrigações. É verdade que ao sistema científico cade comunicar o Direito como resulta das fontes do sistema normativo ou interno e este tem-se pautado por uma considerável estabilidade. Todavia, este facto, só por si, não explica a inércia da doutrina jusrealista. Mesmo admitindo que o sistema cientifico deva permanecer fiel ao sistema normativo, porquanto a doutrina não é fonte de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Direto, isso não impede, de modo algum, todo o trabalho de redução dogmática da matéria, de descoberta de novas conexões de sentido propiciadas pelo sistema normativo, de aperfeiçoamento dos tipos e dos conceitos atinentes à disciplina em causa, à interpretação complementadora das fontes, à deteção e supressão de lacunas e, naturalmente, da arrumação da matéria num esquema expositivo que não apenas comunique o Direito como facilite o encontrar de novas soluções requeridas pela dinâmica imparável da sociedade- De resto, tem sido reconhecido que o sistema externo projeta a sua influência no sistema normativo e, desta forma, suscita a sua evolução, mesmo sem alteração do quadro legislativo. O panorama científico do sistema externo de Direitos Reais afigura-se, porém, desolador. Durante todo o o século XX até meados do século XX, as obras de Direitos Reais limitaram-se a expor cada um dos direitos reais, às vezes, sem uma única linha introdutória de caráter geral, outras, com umas breves páginas. Antes da pandectística alemã do século XIX, o tratamento dogmático deste ramo do Direito incluía normalmente a propriedade, a posse e pouco mais, muitas vezes em conjugação com matérias hoje distribuídas por outros ramos, nomeadamente o Direito das Sucessões. A influência do Direito Romano permanecia, no entanto, marcante. Em Hugo e Heise podemos antever o gérmen da autonomização científica de Direitos Reais que se seguiria na Alemanha durante todo o século XIX e que resulta de um tratamento expositivo diferenciado das matérias atinentes a outras partes do Direito Civil, para além da redução do tratamento dogmático ao regime das coisas corpóreas, que implica afastar factos ou institutos que só indiretamente têm a ver com Direitos Reais, nomeadamente, a aquisição por morte, que pertence ao Direito Sucessório. Seria, porém, a pandectística alemã a consolidar sistematicamente um ramo de Direito, incluindo expressamente outros direitos reais (de gozo e de garantia), conforme advinha da tradição romanística, mantida no Direito comum, retirando à propriedade o papel aglutinador e central do regime jurídico dos Direitos Reais – como ainda aconteceria no Code Civil napoleónico e nos outros Códigos Civis que lhe seguiram a matriz, relegada agora para uma posição de direito real entre outros. Uma análise superficial sobre as obras da pandectítica em tema de Direitos Reais revela uma hesitação quanto ao tratamento da posse, antes da propriedade ou no contexto do regime esta. Alguns autores abordam apenas os direitos reais de gozo, a maioria, porém, inclui os de garantia. De qualquer modo, a exposição dos Direitos Reais limita-se praticamente a uma enunciação separada do regime de cada um dos direitos reais, praticamente sempre na mesma ordem, com a alternância entre o começo pela posse ou pela propriedade. Na viragem do século XIX para o século XX, e já fora do pandectísmo, encontramos, em alguns casos, diferenças muito marcantes relativamente à abordagem científica anterior. A Endemann deve-se um primeiro esboço de elaboração de uma parte geral de Direitos Reais. Em contraste claro com as obras da pandectística, Endemann ocupa os primeiros vinte e quatro parágrafos da sua obra a destacar aspetos de construção geral de Direitos Reais. Depois de dois parágrafos introdutórios, sobre as fontes normativas de Direitos Reais e a regulamentação normativa exterior ao BGB. Outra evolução igualmente significativa encontra-se também em Heck. Como ele próprio sustentou em defesa dos resultados práticos da sua orientação metodológica – a jurisprudência dos interesses – a obra Grundriss des Sachenrechts contém uma abordagem sistemática de Direitos Reais, com um esboço de desenvolvimento de uma parte geral, e ostenta, assim, interesse para o desenvolvimento do sistema externo deste ramo do Direito. Com efeito, no Livro Segundo, intitulado Doutrina Geral, Heck divide a exposição em quatro títulos o primeiro título, dividido em três capítulos, incluindo sobre a determinação do conteúdo jurídico dos direitos reais, o segundo título tendo por epígrafe as modificações dos direitos reais, o terceiro título dedicado à proteção dos direitos reais e o quarto título sobre o registo predial. Embora haja alguns antecedentes anteriores, não há dúvida de que o tratamento dogmático dos Direitos Reais revela um aprofundamento do 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão sistema externo que não se encontra nos seus antecessores. Depois de Endemann e Heck, a grande tentativa de feitura de uma autêntica parte geral dos Direitos Reais pertence a Hermann Eichler. Este autor ordenou a sua exposição da matéria em parte geral e parte especial, repartindo cada uma delas por volumes diferentes, para acentuar a perspetiva da abordagem, profundamente inovadora no panorama da doutrina alemã do século XX. Após a obra de Eichler, importa ainda mencionar uma sistematização geral de Direitos Reais em Hans Stoll. Há em Stoll um tratamento integrado dos direitos reais com base na classificação de direitos reais sobre coisas imóveis e direitos reais sobre coisas móveis que transcende o âmbito dogmático de uma parte geral. A preocupação deste autor não parece estar somente no revelar dos traços gerais do regime de Direitos Reais, mas também na construção de um sistema expositivo alternativo da matéria este ramo do Direito. Nestes termos, o trabalho de Stoll configura uma rutura clara com a situação corrente no sistema científico dos Direitos Reais e a sua exposição da matéria oferece um grau de elaboração que vai muito além da enunciação quase empírica do regime de cada um dos direitos reais. Apesar do reforço destes últimos autores, a verdade é que o sistema científico de Direitos Reais continuou dominado por uma exposição marcadamente empírica, em que, eventualmente com umas linhas introdutórias dedicadas ao conceito de direito real, Às modalidades de coisas ou a considerações muito gerais, a doutrina se debruça sobre cada um dos direitos reais elencados no sistema normativo, sem nenhuma preocupação de efetuar reduções dogmáticas do material legislativo, de conferir generalidade a soluções previstas a propósito de um dos direitos – mormente a propriedade, mas cujo alcance é relativo a todos os direitos reais ou, pelo menos, para uma categoria deles (direitos reais de gozo, de garantia ou de aquisição), se suprir referência incompletas ou de articular as mesmas quando multiplicadas sem critério aparente, de eliminar contradições valorativas e de sentido, de colmatar lacunas, de precisar os conceitos e tipos constantes dos preceitos legais ou impostos pela aplicação dos mesmos, etc. Os grandes comentários contêm unicamente breves observações introdutórias de caráter muito geral antes dos desenvolvimentos relativos aos preceitos legais, o que ainda se poderia explicar pela natureza de comentário de um regime legal, não fosse tal não suceder com os outros ramos do Direito Civil, em particular, como o Direito das Obrigações. E também as obras singulares sobre Direitos Reais continuam a refletir esta tendência, já herdada da pandectística. Não muito diferente, mas específica do espaço alemão, é a repartição das matérias com base na classificação entre coisas imóveis e coisas móveis, na qual se faz a exposição do regime jurídico dos direitos reais correspondentes a cada uma das espécies de coisas, precedida de uma parte contendo o regime comum a elas: é o esquema de Fritz Baur. Outras vezes, renuncia-se mesmo à exposição do regime comum, versando separadamente o regime específico das coisas imóveis e das coisas móveis, como faz Walter Gerhardt, ou tratando somente o regime de uma dessas espécies, em regra o das coisas imóveis. A partir de meados do século XX, nota-se na doutrina alemã uma preocupação sistemática com o isolamento e a determinação do conteúdo dos princípios normativos de Direitos Reais. O esquema expositivo deste ramo do Direito não sofre grandes alterações e a comunicação de Direitos Reais continua a ser feita de um modo prevalente co incidência no regime de cada um dos direitos reais previstos na lei, mas o alcance da introdução dos princípios normativo no sistema científico ou externo de Direitos Reais supera este, com repercussões esperadas na aplicação do sistema normativo. Fora do espetro doutrinário alemão, em Itália, a colocação da propriedade como figura central dos Direitos Reais no Codice Civile de 1942 não se afigurou muito propícia a novas sendas sistematizadoras. Os resquícios do pandectismo permaneceram fortes, é certo, mas o cunho imprimido é alternativo ao da terceira sistemática alemã e, por força da pujança dos estudos romanísticos, uma boa parte das soluções do Direito Romano são retomadas. No essencial, porém, a doutrina, para além de umas sumárias observações sobre o conceito de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão direito real, o objeto da proteção jusrealista, o princípio da tipicidade e pouco mais, limita-se a expor o regime jurídico dos direitos reais, normalmente limitados aos direitos reais de gozo, sem prejuízo de obras específicas sobre direitos reais de garantia ou temas gerais. Para agravar a exposição da matéria de Direitos Reais pela doutrina italiana é feita em muitas obras debaixo da égide da propriedade. Em França, ligada a um Código Civil da primeira geração, onde a perspetiva marcadamente ideológica do liberalismo se sobrepõe a uma abordagem científica das matérias, a doutrina continua a desenvolver a disciplina debaixo da referência central à propriedade, defronte da qual os restantes direitos reais constituem meros desmembramentos. A orientação dogmática francesa dos Direitos Reais é, de resto, particularmente impermeável à metodologia cientifica iniciada com Savigny e a pandectística na Alemanha e, por isso, os seus pontos de contacto com a doutrina alemã e mesmo italiana resultam unicamente dos resquícios históricos do Direito Romano e do Direito Comum. Presa a um método exegético anacrónico, a doutrina francesa mostra-se atualmente incapaz de inspirar qualquer reforma que supere o atraso do sistema científico de Direitos Reais. Em Espanha, o cenário do jusrealismo não difere muito do que se passa nos outros países. Num movimento que situamos na obra de Fritz Baur, mas com antecedentes anteriores, nomeadamente, e pelo menos, em Endemann, os manuais de Direitos Reais começaram a expor os princípios estruturantes deste ramo de Direito. Em Portugal, foi no ensino de Direitos Reais da Faculdade de Direito de Coimbra que primeiro surgiram ecos desta corrente. Henrique Mesquita dedicou quatro páginas a expor os princípios, concentrando-se no princípio da tipicidade, no princípio da consensualidade e no princípio da publicidade. Pouco tempo depois, Orlando de Carvalho viria a dedicar maior desenvolvimento à apresentação desta matéria. Este professor analisa o princípio que denomina “da coisificação”, o princípio da atualidade ou da imediação, o princípio da especialidade ou da individualização, o princípio da compatibilidade ou da exclusão, o princípio da elasticidade ou da consolidação, o princípio da tipicidade, o princípio do numerus clausus ou da taxatividade, o princípio da causalidade, o princípio da consensualidade e o princípio da publicidade. Depois de Henrique Mesquita e de Orlando Carvalho, também Mota Pinto dedicaria um capítulo aos princípios regulamentadores da constituição e da vida dos direitos reais. Recentemente, Santos Justo continuou essa orientação. Em Lisboa, particularmente no seu ensino da Faculdade de Direito da Universidade Católica, Menezes Cordeiro não deixaria de incluir um capítulo sobre os princípios de Direitos Reais, embora apenas explicite três: a inerência, a publicidade e a tipicidade. O impacto da apresentação dos princípios normativos no sistema científico de Direitos Reais é de grande extensão, pois são eles, em primeira linha, que constituem os pontos de vista unitários que agregam e unem o material normativo do sistema interno. Todavia, esse impacto não existe somente no sistema explicativo do Direito. A identificação dos princípios normativos de Direitos Reais pela dogmática jurídica repercute-se naturalmente ao nível da interpretação e aplicação do Direito, ou seja, do próprio sistema normativo, permitindo não só fundamentar as formulações existentes, já encontradas, como desenvolver outras, alargando a capacidade de resposta do sistema normativo a novas situações emergentes da dinâmica da vida. Constitui um importante passo na construção de um moderno sistema científico de Direitos Reais a individualização e aprofundamento de princípios normativos. Para além de apurar o conceito de direito real e as suas classificações, indicar o objeto da disciplina e expor os princípios gerais dos Direitos Reais, há ainda muito trabalho a realizar para se conseguir um sistema de comunicação efetivo do Direito vigente, que não se limite a dobrar estatisticamente o sistema normativo, mas opere reduções dogmáticas do material normativo, precise os conceitos legais e concretize os tipos utilizados, que proceda a uma arrumação da matéria que tenha em conta a unidade da regulação e a necessidade de encontrar soluções coerentes, sem contradições, que proceda ao tratamento unitário daquilo que é geral, evitando repetições, que 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão só geram dificuldades interpretativas, que identifique e integre as lacunas de regulação eventualmente detetadas, de acordo com os critérios do sistema. Grande parte da regulamentação geral de Direitos Reais encontra-se hoje no regime do direito de propriedade. Esta sistematização é profundamente insatisfatória; expor tudo o que é geral a propósito da propriedade, obriga a um constante esforço de separação entre aquilo que é o regime específico e próprio da propriedade e o que é o regime geral de todos os direitos reais ou, ao menos, dos direitos reais de gozo, gerando, assim, uma potencial e escusada fonte de controvérsia, que só pode ser prejudicial ao desiderato de uma aplicação uniforme do Direito. Na medida em que se trate de matéria atinente aos direitos reais em geral e não apenas ao direito de propriedade, ela deve figurar numa parte geral dos Direitos Reais. Mesmo fora do regime jurídico da propriedade deparamos com regulações de teor geral dos direitos reais. Ora, se existem factos cuja eficácia se estende a outros direitos reais, a sua arrumação sistemática não deve ser a de um direito real em particular, ainda que haja alguma razão histórica ou outra que o justifique, mas sim a de um regime geral que tenha em conta o âmbito de aplicação dos mesmos. Esta limitação da ordenação do sistema científico não se fica por aqui. O regime de cada direito real de gozo, com exceção da propriedade, e de garantia, com exceção dos privilégios creditórios e do direito de retenção tem um preceito sobre os factos constitutivos e extintivos desse direito. Frequentemente, repete-se em cada um desses preceitos o que consta de outros, quando se poderia simplesmente indicar numa única disposição os factos constitutivos e, noutra, os factos extintivos dos direitos reais, prevendo a propósito do regime de cada um deste os factos aquisitivos e extintivos específicos. Esta técnica, que gera uma desnecessária multiplicação de preceitos, pode sugerir, erradamente, uma tipicidade de factos com eficácia real, que não foi querida nem consagrada. Em todo o caso, uma enumeração de factos constitutivos e extintivos a propósito de cada direito real pode induzir um equívoco, o da consagração de uma tipicidade de factos com eficácia real, que poderia ter sido evitado num estádio ulterior de desenvolvimento do sistema científico de Direitos Reais. Outro problema que uma deficiente sistematização dos factos com eficácia real tem suscitado prende-se com a possibilidade legal da renúncia ao direito de propriedade sobre imóveis. A renúncia não aparece prevista como facto extintivo a propósito de todos os direitos reais. A renúncia não surge prevista como facto extintivo da propriedade, como também sucede com os outros factos extintivos. O que retira uma grande parte da força do argumento sistemático, invocado por Henrique Mesquita. A ausência de uma disposição sobre a extinção da propriedade pode explicar a razão porque a renúncia não vem mencionada a propósito, sem envolver com isso a impossibilidade de renúncia do proprietário de imóveis. E eis, de novo, como uma deficiente sistematização da matéria pode induzir uma resposta incorreta a um problema. O atraso do sistema científico de Direitos Reais só pode ser recuperado com a elaboração de uma parte geral. Nesta são expostos os princípios gerais deste ramo do Direito, o seu objeto e dispõem-se as matérias que são comuns aos direitos reais ou a uma categoria eles, deixando-se de prever a propósito da propriedade, ou de um direito real em particular, regimes que, na verdade, os transcendem no seu âmbito de aplicação. Com a parte geral é possível igualmente evitar a dispersão sistemática e a multiplicação de referências normativas que só causam problemas interpretativos. Regimes normativos de aplicação a mais do que um direito real devem encontrar a sua sede na parte geral e não no interior de um direito real em particular. Na realidade, se as coisas corpóreas são o objeto dos direitos reais, então este deve ser aludido num regime geral e não no regime da propriedade – como hoje sucede (artigo 1302.º CC) – que é apenas um dos direitos reais, entre outros. Se a tipicidade constitui um dos princípios estruturantes de Direitos Reais, o lugar correto da sua previsão no sistema normativo é o da parte geral e não, uma vez mais, o regime do direito de propriedade (Artigo 1306.º CC). Se há factos jurídicos com eficácia real que são comuns aos 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão direitos reais, ou mesmo a uma categoria deles, porquê repetir a sua previsão a propósito de cada um deles, quando para o efeito seria suficiente uma única disposição normativa? A falta de uma parte geral de Direito Reais provoca igualmente distorções sistemáticas. O princípio da consensualidade, outro dos princípios estruturantes de Direitos Reais, vem previsto no artigo 408.º, n.º1 CC, como se fosse um princípio do Direito das Obrigações e dissesse respeito unicamente à matéria dos contratos. Tratando-se, no entanto, de um princípio de Direitos Reais, o lugar da sua previsão no sistema normativo é neste ramo do Direito e não no Direito das Obrigações. A elaboração de uma parte geral constitui o único caminho para a recuperação do atraso, e mesmo decadência científica, de Direitos Reais e isso mesmo vem sendo progressivamente reconhecido, sobretudo, em Portugal, por Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, não sem que, todavia, se levantem vozes contrárias. Numa perspetiva oposta, de defesa da linha do ensino tradicional em Portugal e no estrangeiro encontramos Pinto Duarte. Permitimo-nos discordar abertamente deste autor. A linha de orientação defendida por ele é a grande responsável pelo atraso existente no sistema científico de Direitos Reais, a começar, desde logo, pela conceção do conceito de direito real e pela incipiente disposição da matéria no sistema normativo. Propugnar a sua adoção constitui um retrocesso e um aniquilamento deste ramo de Direito, a evitar. O desenvolvimento de Direitos Reais reside justamente na superação da incapacidade de abstração que os tratamentos doutrinários desta disciplina que os tratamentos doutrinários desta disciplina persistentemente revelam e do mero empirismo na ordenação das matérias. E isso apenas se consegue quando o tratamento científico supera a mera abordagem individualizada do regime jurídico de cada um dos direitos reais e ascende aos traços gerais que ela contém. Foi no espaço jurídico português, e mais concretamente na Faculdade de Direito de Lisboa, que mais se avançou na construção de uma parte geral de Direitos Reais. Como percursor de uma parte geral no sistema científico de Direitos Reais, indicase, desde já, o nome de Jaime de Gouveia. Segundo o testemunho de Luís Pinto Coelho, foi Jaime de Gouveia «quem introduziu entre nós o estudo de uma teoria geral dos direitos reais». Depois de Jaime de Gouveia, convém destacar os nomes de Pinto Coelho e Dias Marques. É a Oliveira Ascensão que se deve, no entanto, a elaboração acabada de uma verdadeira parte geral de Direitos Reais. Ultrapassando os esquemas formais de apresentação baseados no conceito de direito real, nas suas características, na classificação dos direitos reais e no regime jurídico das coisas, Oliveira Ascensão procede a uma intensa redução dogmática do material de Direitos Reais e a um esforço de abstração generalizadora que abarca, de um modo inovador, não só o clássico tratamento do conceito e das características do direito real, mas a também as relações jurídicas reais, os factos com eficácia real, a violação e a defesa dos direitos reais. Depois de Oliveira Ascensão, e na mesma senda, destaca-se o ensino de Menezes Cordeiro. Por último, e já no trilho aberto por Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, cabe apontar o nome de Carvalho Fernandes, igualmente com as suas Lições de Direitos Reais. A construção de uma parte geral de Direitos Reais não constitui qualquer impedimento ao desenvolvimento da parte especial, dedicada ao estudo individualizado das várias figuras com natureza real, nem, naturalmente, o substitui. A parte especial deve continuar a merecer a atenção que merece. Simplesmente, deve reconhecer-se que à medida que evolui a construção de uma parte geral se regista algum esvaziamento da parte especial, sobretudo, do regime do direito de propriedade, debaixo do qual usualmente se encontra uma boa parte do regime geral de Direitos Reais. De resto, ao longo de todos estes anos, foi ~`a parte especial de Direitos Reais que os autores dedicaram a sua atenção, descurando a construção daquilo que fundamenta justamente a autonomia científica deste ramo do Direito, os princípios normativos de Direitos Reais e demais elementos agregadores do sistema normativo. Neste estádio de desenvolvimento de Direitos Reais, justifica-se que a parte geral mereça um desenvolvimento superior. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Secção I – Os Direitos Reais2 A categoria de Direitos Reais: os Direitos Reais consistem num ramo do Direito Civil. Fazendo o Direito Português parte dos sistemas jurídicos romano-germânicos – por oposição aos sistemas da common law – vem buscar os seus quadros jurídicos essencialmente ao antigo Direito Romano, o mesmo sucedendo com a categoria Direitos Reais. Efetivamente essa categoria tem essencialmente uma origem histórica. No Direito Romano vigorava a tipicidade da tutela judicial, ultrapassada nos Direitos Modernos. Tal levava a que se contrapusessem duas categorias principais de ações:

1. As actiones in personam: destinavam-se a formular uma pretensão contra uma pessoa, que deveria ser consequência de ser individualmente determinada, não podendo extravasar da relação obrigacional existente; 2. As actionem in rem: dirigiam-se contra uma coisa, visando estabelecer a sua defesa contra qualquer pessoa que de alguma forma perturbasse o seu aproveitamento pelo titular, podendo em consequência o titular perseguir essa coisa, onde quer que ela se encontrasse. É de notar, desde já, que a posse escapava esta contraposição, na medida em que assentava noutra categoria processual, os interdicta possessionis. Esta contraposição romana entre categorias de ações está na origem de outra construção, eta agora em relação a direitos, estabelecida pelos juristas medievais, a partir o momento em que se abandonou a base processual em que assentava o Direito Romano. As ações romanas deram assim lugar a categorias de direitos subjetivos, falando-se em:

1. Iura in personam: os quais deram origem aos direitos de crédito; 2. Iura in rem: os quais deram origem aos direitos reais. Fala-se, por isso, hoje, em direitos reais, que incidem em coisas, por contraposição a direitos de crédito, que são direitos dirigidos contra pessoas. A categoria de Direitos Reais tem assim origem nas actiones in rem, correspondendo atualmente aos direitos que incidem sobre coisas. A sua atual caracterização unitária corresponde à denominada eficácia real, que consiste na eficácia do direito contra qualquer pessoa, o que atribui ao direito real cariz absoluto por contraposição com o direito de crédito, que possui apenas cariz relativo.

Objeto e características dos Direitos Reais: inicialmente, os Direitos Reais correspondem a uma categoria de direitos subjetivos, mas não a um ramo de Direito objetivo. A sua configuração como um ramo de Direito objetivo resulta apenas da pandectística alemã, a partir da classificação germânica do Direito Civil, instituída por Gustav Hugo e Friedrich Karl Von Savigny. Conforme se sabe, esta classificação distingue, além de uma parte geral, entre dois ramos de características estruturais, as Obrigações e os Direitos Reais, e dois ramos de características institucionais, o Direito da Família e o Direito das Sucessões. A autonomização do ramo dos Direitos Reais tem assim uma base estrutural: a distinção entre direitos de crédito e direitos reais., herdeira da bela contraposição romana entre as actiones in rem e as actiones in personam. É essa classificação que

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LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes; Direitos Reais; 5.ª edição; Almedina Editores, S.A., agosto 2015.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão está na base da sistematização do Código Civil, que regula o Direito das Coisas no seu Livro III, nos artigos 1251.º a 1575.º. O Livro III não regula, no entanto, todo o sistema de Direitos Reais, uma vez que se limita, além da posse, a referir vários direitos reais de gozo, ficando os direitos reais de garantia e de aquisição dispersos por outros livros do Código, precisamente, no Livro II, num capítulo denominado Garantias Especiais das Obrigações (artigos 656.º a 753.º CC). O Direito das Coisas consiste assim no Direito que regula a atribuição das coisas corpóreas com eficácia real, ou seja, eficácia absoluta perante terceiros. O Direito das Coisas constitui um ramo de Direito Civil pelo que partilha das suas características fundamentais: a liberdade e a igualdade. Por esse motivo, ficam fora dos Direitos Reais as situações jurídicas em que a atribuição das coisas não se realize sob estes parâmetros. Ficam ainda de fora dos Direitos Reais as restrições ou vinculações efetuadas ao titular do direito real por normas de Direito Público. Sendo um ramo do Direito Civil, por razões de especialidade, ficam de fora do âmbito dos Direitos Reais as matérias abrangidas pelo Direito Comercial (artigos 397.º e seguintes e 574.º e seguintes CCom). Nas Palavras de Oliveira Ascensão, o Direito das Coisas é assim aquele ramo da ordem jurídica que disciplina a atribuição das coisas em termos reais. Esta formulação constitui, no entanto, uma perífrase para referir a óbvia conclusão de que o Direito das Coisas regula a atribuição de direitos reais sobre coisas corpóreas. Trata-se consequentemente de um ramo de Direito cuja unidade resulta de uma semelhança de consequências jurídicas geradas a partir da atribuição de direitos reais sobre coisas corpóreas. Sempre que surja estruturalmente a atribuição de coisas corpóreas a determinadas pessoas, essa situação é potencialmente regulada pelo Direito das Coisas, o que só não se verificará se ocorrer a sua absorção por uma instituição pertencente a outro ramo do Direito. Os Direitos Reais têm, no entanto, uma natureza bastante heterogénea, que dificulta a construção de esquemas comuns, necessária à elaboração de uma teoria geral. Por esse motivo alguns autores têm abdicado de realizar essa construção. Manuel Gomes da Silva salientava que ao contrário do que sucedia nas Obrigações, em que é possível estabelecer uma teoria geral, porque embora com particularidades de regime todas as obrigações se reconduzem a um esquema genérico, nos Direitos Reais tal não seria possível por não haver dois diretos reais iguais. Efetivamente, a propriedade e a hipoteca são realidades estruturalmente tão diferentes, que essa heterogeneidade impossibilita a construção de uma teoria geral. Essa posição é hoje igualmente seguida por Pinto Duarte. Pensamos, no entanto, haver toda a vantagem em estabelecer uma teoria geral dos direitos reais, onde se podem estudar a um nível mais geral e abstrato todas as características comuns a essa categoria. Tal não invalida, no entanto, que depois se estudem com precisão as especificidades de cada direito real.

A tutela constitucional dos Direitos Reais: os Direitos Reais são objeto de tutela constitucional, dado que o artigo 62.º, n.º1 CRP, estabelece que a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição, acrescentando o n.º2 que a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento da justa indemnização. Existe assim uma garantia constitucional da propriedade, a qual se deve considerar como análoga à dos direitos, liberdades e garantias, beneficiando por isso, nos termos do artigo 17.º CRP, do regime estabelecido no seu artigo 18.º. A tutela constitucional da propriedade deve considerar-se extensiva a todos os direitos reais, e mesmo a todos os direitos patrimoniais privados, como é jurisprudência constante do Tribunal constitucional, o qual tem afirmado repetidamente que a tutela do direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º CRP não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de propriedade, tais como, designadamente, os direitos de crédito e os direitos sociais (Ac. TC n.º 491/02, 26 novembro 2002). Essa garantia

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão constitucional da propriedade visa essencialmente permitir aos cidadãos um espaço de liberdade, no âmbito do qual eles podem desenvolver livremente a sua vida, através do pleno aproveitamento dos bens de que são titulares. A proteção da propriedade envolve assim tanto uma componente estática, no âmbito da qual é permitida aos cidadãos a titularidade dos bens, como uma componente dinâmica, no âmbito da qual se permite aos cidadãos o seu pleno aproveitamento, designadamente através do uso, fruição, transformação e alienação do bem. Ao tutelar a propriedade privada a constituição assume a proteção da sua dupla vertente de instituto jurídico e direito individual. A proteção constitucional da propriedade não é, porém, absoluta, existindo alguma margem de liberdade conferida ao legislador ordinário na conformação do regime jurídico dos bens. O próprio legislador constitucional prevê no artigo 84.º CRP o regime do domínio público fazendo ainda referência o artigo 82.º CRP a diversas formas de propriedade dos meios de produção. Por outro lado, a proteção jurídica da propriedade não é unitária, variando a mesma em função do tipo de bem em causa, o que permite estabelecer proteções distintas em função das diversas categorias de bens. O legislador constitucional seguiu uma conceção pluralista da propriedade, admitindo várias formas de propriedade sujeitas a regimes distintos. A garantia constitucional da propriedade não impede ainda o legislador ordinário de estabelecer limites à propriedade individual. A própria Constituição estabelece aliás, alguns limites ao direito de propriedade, sendo alguns explícitos como o sancionamento do abandono dos meios de produção (artigo 88.º CRP) e outros implícitos, como o dever de pagar impostos. Em virtude da garantia constitucional da propriedade, a mesma só pode ser restringida nos casos expressamente previstos na lei, devendo a restrição ser efetuada de orma proporcional para salvaguardar direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 18.º, n.º2 CRP), tendo ainda as restrições que operar por via geral e abstrata e respeitar o núlc fundamental do direito (artigo 18.º, n.º3 CRP).

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Parte Segunda – Parte Geral Capítulo I – As situações jurídicas reais

A origem histórica do conceito de direito real: os direitos reais remontam ao Direito Romano. Paradoxalmente, porém, os romanos não conheciam a categoria direito real. O conceito de ius in re só surge com a Glosa medieval. Dentro do prisma processual do seu Direito, os romanos conheciam apenas as actiones, embora de alguma forma se pudesse dizer que ter uma actio equivalia à titularidade de um direito numa terminologia moderna. Num período mais antigo, havia a actio e a vindicatio, esta última dirigida a obter a posse de uma coisa indevidamente com um terceiro, a primeira com a finalidade de obter o cumprimento de uma obrigação. A evolução aglutina a vindicatio na actio, ambas actiones, numa fase inicial submetidas à tramitação da legis actio sacramento, no caso das ações reais, a legis actio sacramento in rem. As actiones distinguiam-se consoante eram dirigidas a obter o cumprimento de uma obrigação pelo devedor, actio in personam, ou a obter a coisa de um terceiro, actio in rem. A actio in rem tinha igualmente uma componente executiva, já que permitia a recuperação da coisa. A actio in rem baseava-se, por conseguinte, num direito de perseguir a coisa, não de demandar alguém determinado, e, por isso, ela era in rem e não in personam. A pessoa contra a qual a ação era intentada não estava nunca determinada à partida e podia ser qualquer uma que tivesse a coisa em seu poder. A identificação entre a actio in rem e uma determinada categoria de direitos (reais) a cuja tutela serve surge apenas com os glosadores. Entenda-se, porém, que a categoria dos iura in rem no Direito Romano. Os comentadores acolheram e usaram largamente a noção de ius in re, assim como se serviram da nova expressão ius reale. Tanto Bartolo como Balso falavam em ius in re e ius reale quando era de esperar o uso da actio in rem. Na Idade Média, porém, o Direito Canõnico trouxe alguma obscuridade À clareza da contraposição entre ius in re e ius in personam. Em algumas situações em que a alguém era conferido determinado benefício ou oferenda sem que fosse ainda investido na efetiva titularidade do mesmo admitia-se que pudesse obter tutela judicial contra o oferente e mesmo no confronto com terceiros. Como não tinha um ius in re e não podia lançar mão da actio in rem, a doutrina canonista falava então de um ius ad rem. A pouco e pouco, a doutrina canonista do ius ad rem terá sido introduzida para indicar o direito à entrega da coisa por parte de quem, tendo direito a essa entrega, não estava investido na posse. O efeito da introdução desta noção foi uma certa confusão de qualificação do ius ad rem como direito de natureza obrigacional À entrega da coisa ou como direito real, confusão essa que terá começado a dissipar-se, primeiro, com a obra de Doneau, em França, e depois com os trabalhos da romanística holandesa do século XVIII e da pandectística alemã do século XIX. No sentido que acabou por prevalecer, o ius ad rem identificava-se com um direito obrigacional à entrega da coisa por força de um vínculo jurídico, nomeadamente, um contrato. Por isso, Grócio pôde contrapor os ius in re ao ius ad rem. O contributo da romanística holandesa e da romanística alemã liga-se à delimitação do círculo dos direitos reais existentes. Nessa delimitação duas notas estão sempre subjacentes: o direito real exerce-se sobre a coisa, surgindo protegido por uma actio in rem. Não carece, pois, de intermediação de um sujeito passivo para o seu exercício como sucede com as obrigações. Vinnen, autor holandês do século XVIII, defendia que os direitos reais são múltiplos, incluindo «o domínio, tanto direto como útil, usufruto, servidões, penhor e posse». Huber, por sua vez,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão contrapõe o ius in re ao ius ad rem, esclarecendo que o primeiro «facultas hominis, i rem competens, sine respectu ad certam personam», noção que Heinecke sufragaria igualmente. A evolução entretanto operada permitiu a Pothier sintetizar o resultado: «Olhando para as coisas que estão no comércio, consideramos duas espécies de direitos; o direito que nós temos sobre uma coisa, que chamamos ius in rem. O ius in re é o direito que nós temos sobre uma coisa, que chamamos ius ad rem. O ius in re é o direito que nós temos sobre uma coisa, pelo qual ela nos pertence, ao menos uma certa perspetiva. O ius ad rem é o direito que nós temos, não sobre a coisa, mas somente em relação à coisa, contra a pessoa que contratou connosco a obrigação de a entregar». Pothier concui que o ius ad rem é defendido por uma ação pessoal, sendo o lugar do seu estudo o Tratado de Obrigações. A noção de ius ad rem acabaria por desaparecer, tendo hoje um mero interesse histórico. Contrariamente, o conceito de direito real consolidar-se-ia definitivamente com os trabalhos da pandectística alemã. Thibaut, ao definir direito real, acentuaria as duas notas que anteriormente demos conta: todos os direitos reais, dizendo respeito a coisas, estão ligados a uma vindicação. Puchta deixaria indicado somente o primeiro aspeto: os direitos reais relacionam-se diretamente com coisas, que são o seu objeto. Todo este percurso preparou o surgimento das diversas teorias sobre o conceito de direito real.

O conceito de direito real. Noção adotada: 1. Teoria clássica; formulação: a primeira teoria do conceito de direito real vem usualmente denominada como teoria clássica. O seu percursor moderno é Grócio. Este autor afirma que o direito real é um direito patrimonial que existe entre a pessoa e a coisa sem relação necessária a outra pessoa. Na sequência, os autores da pandectística alemã, na quase totalidade, apresentariam o direito real como um poder imediato sobre uma coisa ou como poder direto e imediato sobre uma coisa, formulada que ficaria associada à teoria clássica. Dernburg, já com o campo de fundo da crítica personalista feita por Windscheid, a definir direitos reais como «os que sujeitam diretamente a nós uma coisa corpórea». Esta conceção estaria na base do BGB alemão. Na exposição de motivos ao Código Civil alemão, pode ler-se que «a essência da realidade reside no poder direto de uma pessoa sobre uma coisa». E, mais à frente, diz-se «decisivo é somente que o direito possa ser exercido sem a vontade de um outro, não sendo exigida a existência de obrigado». Esclareça-se, em todo o caso, que o poder de que se fala vem entendido como um poder jurídico e não como um mero poder material. Isso está claro em Puchta: «o resultado desta sujeição (do objeto ao titular do direito) é um poder jurídico sobre o objeto». A teoria clássica teve sucesso em Portugal. Guilherme Moreira foi o seu primeiro aderente conhecido. Mas na Faculdade de Direito de Lisboa a penetração ocorreu igualmente. José Tavares, José Gabriel Pinto Coelho, Luís Pinto Coelho, Pessoa Jorge, de uma forma nítida, e Paulo Cunha, de um modo mais mitigado, expressaram a sua adesão ou simpatia a esta teoria. Alguns autores continuam ainda hoje a definir o direito real com recurso a fórmulas que mantêm a fidelidade à teoria clássica. Orlando Gomes afirma que o retorno à teoria clássica está prosperando à luz de novos esclarecimentos provindos de análise mais aprofundada da estrutura dos direitos reais. Henrique Mesquita, fazendo da possibilidade de uma relação jurídica ente um sujeito e uma coisa, faz, de algum modo, a apologia da teoria clássica, não obstante a sua ideia

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão dos direitos reais como direitos de domínio ou de senhorio, ainda baseada no poder direito e imediato sobre a coisa.

2. As teorias personalistas: a primeira crítica à conceção clássica é a de Windscheid. Este autor começa por repudiar que a relação jurídica possa ser concebida entre uma pessoa e uma coisa. Relembrando o ensinamento de Kant, que o Direito ordena os outros na relação social, Windscheid diz que a relação jurídica existe sempre entre pessoas. Não pode haver, do ponto de vista lógico, uma relação entre uma pessoa e uma coisa. Na mesma senda, Fuchs diria, citando Bruns, que «entre uma pessoa e coisa não é de todo possível existir um direito, apenas facto»; como o direito respeita a pessoas, apenas contra pessoas pode ser exercido. E a mesma ideia aparece expressada em Regelsberger. Windscheid iria, contudo, mais longe. Não se limitando a expor o óbice lógico da formulação tradicional, acrescenta que o conteúdo do direito real só pode ser negativo, valendo para outras pessoas como obrigação de não impedir a atuação do titular do direito. O direito real não postula poderes de atuação, apenas impõe deveres de abstenção a terceiros. Postas as coisas nestes termos, e dada a projeção deste autor alemão, não tardaram s surgir adeptos da sua construção. Em França, Planiol seria o expoente desta doutrina, em que o direito real surge, de uma forma totalmente incolor, vertido na dimensão negativa do lado passivo de uma relação jurídica, a obrigação passiva universal ou o dever geral de respeito: «um evento jurídico não pode existir entre uma pessoa e uma coisa; seria um contra-senso. Por definição, todo o direito é uma relação entre pessoas. (…) Noutros termos, o direito real, como todos os outros direitos, tem necessariamente um sujeito ativo, um sujeito passivo e um objeto. (…) Um direito real, qualquer que ele seja, consiste, assim, numa relação jurídica estabelecida entre uma pessoa como sujeito ativo e todos os outros como sujeitos passivos. Esta relação é de ordem obrigacional, o mesmo é dizer, tem a mesma natureza das obrigações propriamente ditas. A obrigação imposta a todos os outros que não o titular do direito é puramente negativa: ela consiste numa abstenção de tudo aquilo que poderá perturbar a posse daquele protegida por lei». Levada até ao fim, esta teoria apaga a separação entre direitos reais e obrigações, reconduzindo aqueles ao âmbito do Direito das Obrigações. É o conhecido monismo personalista. Esta doutrina também teve eco em Portugal, não obstante bem menor que a teoria clássica ou as formulações mistas. Caeiro da Mata sustenta que «os direitos reais resolvem-se em uma relação entre sujeitos».

3. Teorias mistas: as teorias mistas são aquelas que combinam as perspetivas de outras teorias, procurando tomar o que cada uma delas tem de bom. Quanto ao conceito de direito real, as teorias mistas conceberam dois lados ou duas vertentes do direito real, um interno e outro externo, aproveitando a máxima principal das teorias clássica e personalista. Assim, do lado interno, o direito real seria um poder direto e imediato sobre a coisa; do lado externo, o direito real teria oponibilidade erga omnes, investindo todas as outras pessoas no dever de o respeitarem (dever geral de respeito ou obrigação passiva universal). As teorias mistas do direito real teriam largo sucesso em Portugal. Entre os seus aderentes contam-se, na Faculdade de Direito de Coimbra, Manuel de andrade, Pires de Lima, Pires de Lima/Antunes Varela, Almeida Costa, Orlando de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Carvalho, Mota Pinto e Henrique Mesquita. Na Faculdade de Direito de Lisboa, o sucesso foi bem menor. Apontamos Jaime de Gouveia . Fora destas duas Universidades, apontamos Cunha Gonçalves.

4. Outras conceções: outras conceções envolvem o afrouxamento ou mesmo o desaparecimento dos traços tradicionais de caracterização dos direitos reais em face de outros direitos, nomeadamente, direitos de crédito. Uma das posições mais conhecidas é a de Demogue. Este autor começa por questionar a classificação clássica dos direitos em absolutos e relativos, afirmando que a única diferença que existe entre esses direitos reside somente na força que o legislador pretende imprimir à tutela respetiva. O direito absoluto consiste num direito de conteúdo forte, o direito relativo num direito de conteúdo fraco. Para Demogue, não pode haver um direito sobre coisas. O Direito é um fenómeno societário, supõe uma sociedade e a existência de múltiplas pessoas; estas surgem como obrigadas nos esquemas de proteção de bens. Uma relação entre uma pessoa e uma coisa só pode ser uma relação de facto, visto que a relação jurídica se dá entre pessoas. A receção da orientação kantiana do Direito como fenómeno relacional e a construção de Windscheid como crítica à teoria clássica estão bem presentes em Demogue e servem de campo de fundo à estruturação do seu pensamento. Nesta ordem de ideias, todos os direitos existem contra pessoas; simplesmente, enquanto uns (os direitos relativos) existem contra uma ou algumas pessoas somente os outros (absolutos) são oponíveis igualmente a todos (obrigação passiva universal). Para Demogue, os direitos reais constituem obrigações com um conteúdo de oponibilidade mais forte que os direitos de crédito.

5. Críticas das teorias clássica, personalista e mista: a. Teoria clássica: começando este ponto com a análise da teoria clássica, diremos ser ela que exprime mas de perto a categoria cultural e histórica dos direito reais. Desde logo, no seu aspeto mais evidente: os direitos reais são direitos sobre coisas, têm estas por objeto e visam o seu aproveitamento pelo titular. O conceito de direito real como poder direto ou imediato exprime a diferença com o direito de crédito, na medida em que aquele não carece da intermediação de um obrigado para o respetivo exercício. Uma primeira crítica que se pode apontar situa-se ao nível técnico. O direito real não constitui um poder, mas um direito subjetivo; os poderes são conteúdo dos direitos, não se devendo confundir com estes. Os juristas que do final do século XVI ao século XIX definiram o direito real como um poder sob uma coisa não tinham uma preocupação dogmática de fazer a diferença entre poder e direito. Tudo o que eles pretendiam expressar era que o direito real conferia ao titular um senhorio ou domínio sobre a coisa que a colocava no âmbito da vontade. O poder de que se fala, embora jurídico, como mencionámos anteriormente, é um poder da vontade. O problema que uma tal conceção coloca transcende já o âmbito dos Direitos Reais e entra no âmago da teoria geral do Direito Civil pois conduz à discussão sobre se o direito subjetivo consiste efetivamente num poder da vontade. A segunda crítica prende-se com a afirmada imediação do direito real, que só existiria nos direitos reais suscetíveis de posse, isto é, nos direitos reais de gozo (com exceção das servidões negativas), mas não nos direitos reais de garantia e nas servidões negativas. A formulação clássica é fundamentalmente verdadeira quanto ao aspeto que visa salientar. Os direitos reais, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão contrariamente às obrigações, não supõem a existência de um obrigado e o seu titular não precisa de ninguém para exercer o seu direito. O direito real é in rem e não in personam. Existe, no entanto, uma outra forma de repudir a imediação, que não passa por salientar que nem todos os direitos reais conferem poderes de atuação material sobre a coisa, mas sim pela defesa da tese de que há direitos reais relativos. Assim, Larroumet sustenta que, havendo direitos reais menores constituídos, existe uma relação entre os titulares, sendo ambos devedores um do outro. Não é verdade que o aproveitamento da coisa se faça através de um intermediário (que seria o titular do direito real maior): o titular do direito real pode levar a cabe esse aproveitamento sem a colaboração de ninguém. Assim, o exercício do usufruto ou da servidão não pressupõe o proprietário para nada. Como o direito real recai sore a coisa, toda a colaboração é dispensada. Uma terceira crítica encontra-se em Giorgianni. O poder direto e imediato não serviria para caracterizar o direito real, porquanto outros direitos não reais permitiriam ao titular agir da mesma maneira sobre a coisa: «é possível, por outro lado, indicar situações jurídicas tradicionalmente postas fora da categoria dos direitos reais, em que o instrumento através do qual o titular atinge a satisfação do seu interesse é constituído justamente por um poder imediato sobre a coisa (de outrem). Tais situações são a locação, o comodato e a anticrese». Apesar do brilhantismo da exposição, ela não convence. Os direitos que Giogianni sustenta terem imediação sobre a coisa não a têm efetivamente. O que se passa é que no domínio dos denominados direitos pessoais de gozo o titular a quem haja sido feita a entrega da coisa pode atuar sobre ela, de modo em tudo semelhante ao dos titulares de direitos reais de gozo, porque tem posse. Essa posse permite-lhe, inclusive, havendo esbulho, recuperar a coisa do esbulhador. Ainda assim, a atuação direta sobre a coisa requer que o titular do direito pessoal de gozo haja sido investido na posse e não a haja perdido. Ilustremos: o locatário pode exigir a entrega da coisa ao locador mediante uma ação de cumprimento, mas não pode fazê-lo mediante a reivindicação, o que aconteceria se o seu direito fosse real. Se a coisa foi entretanto esbulhada ao locador por um terceiro, o locatário não pode reivindica-lo deste, como poderia se o direito fosse real. Depende do locador para obter a coisa locada. Se o direito do locatário fosse real, defesa real, nomeadamente, a reivindicação, permitiria ao locatário obter a coisa de quem a tivesse, locador ou terceiro, sem depender do primeiro para conseguir esse efeito. Isto não sucede, porém. A imediação que Giorgianni descobre nos direitos pessoais de gozo vem da posse, que constitui um direito real distinto, e não de nenhum daqueles direitos. Sem posse, o locatário está dependente da colaboração do devedor/locador para gozar a coisa. Tudo isto destrói o argumento de Giorgianni contra a teoria clássica. Os direitos pessoais de gozo têm uma mediação no obrigado, que tem sempre de prestar a coisa ao devedor para que este a goze. Uma última crítica à teoria clássica prende-se com a estruturação do direito real num esquema relacional, em que, todavia, a relação jurídica não se processa entre pessoas, mas sim entre

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão um sujeito, o titular do direito, e o objeto deste, a coisa. Sem que tal represente qualquer forma de adesão à teoria personalista, a cuja crítica procederemos de seguida, uma relação jurídica só pode existir entre pessoas. Nessa parte, a objeção de Windscheid a esta teoria tem inteira pertinência. b. Teoria personalista: não concebemos o Direito como um fenómeno relacional, de modo a que toda e qualquer forma de proteção jurídica se deva fazer no quadro técnico da relação jurídica. A pandectistica alemã, importando para o Direito o postulado Kantiano que a Ciência assente num juízo sintético a priori e que a alteridade representa a dimensão geral do Direito, impôs o modelo lógico-jurídico da relação jurídica. Todo o fenómeno jurídico se ordenava neste modelo relacional, havendo um lado ativo, correspondente a um direito, e um lado passivo, que, nos direitos absolutos, e à míngua de melhor ideia, se encontraria no resto da humanidade, através do esquema técnico da obrigação passiva universal ou dever geral de respeito, tantas vezes depois reduzido na sua extensão, em fórmulas sempre variadas, para mitigar ou diluir o absurdo da conceção. Ora, fora de situações estruturalmente relativas, como as que emergem das obrigações, a atribuição ou disponibilização de bens às pessoas não gera, no imediato, deveres jurídicos para terceiros, pelo menos não deveres jurídicos específicos, direcionados ao respeito da situação jurídica concreta reconhecida pelo Direito. Naturalmente, a existência de um direito subjetivo determina um espaço de aproveitamento exclusivo de um bem e isto implica que todos os outros devem respeitar a atribuição normativa operada a favor do titular. Isso não quer dizer, no entanto, que cada situação jurídica integre na esfera jurídica de cada ser humano. Cada pessoa deve respeitar os direitos dos outros. Trata-se, porém, de um dever genérico, não enquadrado em qualquer relação jurídica, e cuja violação suscita o desencadear dos mecanismos repressivos e de reparação da ordem jurídica. Esse dever, precisamente por ser genérico, não se contraparte a nenhuma situação jurídica particular, seja a sua natureza real seja outra qualquer. Os direitos reais constituem situações jurídicas absolutas, não existindo um lado passivo a considerar, apenas o conteúdo de aproveitamento do bem que a ordem jurídica dispensa, como não pode deixar de ser numa situação jurídica ativa. Desta forma, a noção técnica de direito real só pode ser positiva, a vertente de aproveitamento da coisa que este direito confere ao titular e não negativa. A construção concetual do direito real não pode estar no realçar do momento imperativo da sanção, a oponibilidade aos terceiros, que pode até não existir ou ser somente eventual. Mas isso é o que sucede com a teoria de Windscheid, e de todos os outros que o seguiram. Como explica Larenz, «a tónica desloca-se, para Windscheid, da possibilidade do domínio sobre um objeto para a possibilidade de se impor judicialmente uma injunção da ordem jurídica contra outrem, o que ele designa por pretensão. O efeito da propriedade vê-o ele não tanto no poder do proprietário de decidir o que quiser acerca da coisa (de dispor dela, fáctica ou juridicamente), mas na mera possibilidade de excluir os outros da mesma coisa».

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Definir o direito real pelo seu – pretenso – lado negativo equivale a deixar na sombra todo o conteúdo de significado do representado pela possibilidade de aproveitamento de uma coisa corpórea que o direito real propicia. Dá-se, como diz Larenz, um esvaziamento de sentido do conceito de direito real ou tira-se a ele o seu conteúdo positivo, nas palavras de Ruggiero. O direito real não alude mais ao poder dado ao titular de atuar ou tirar vantagem da coisa, apenas exprimindo o dever de todos os outros respeitarem a atribuição feita pela ordem jurídica. A descaracterização do direito real afigura-se evidente e não carece de mais explicações. Deste ponto de vista, a conceção clássica revela a sua superioridade. Atente-se igualmente em que, desta forma, se dilui a possibilidade de distinguir os direitos reais de todos os outros direitos absolutos. Se estes são definidos exclusivamente por vincularem toda a massa de seres humanos ao seu respeito, não há como separar um direito real de um direito de patente ou de um direito de personalidade. Levada até ao fim, esta conceção leva à diluição da fronteira entre créditos e direitos reais, como o trabalho de Demogue bem ilustra. c. Teoria mista: desta doutrina disse já Gomes da Silva que ela «cai em todos os erros em que caíram as duas doutrinas anteriores, só aproveitando o que elas têm de mau: quanto à clássica a relação com a coisa, quanto à personalista o aspeto negativo». Na verdade, esta doutrina efetua um casamento contra natura. Combina uma teoria que procede a uma relação entre um sujeito e uma coisa com outro que parte da visão do direito como fenómeno relacional entre pessoas e tudo molda ao conceito intersubjetivo de relação jurídica. A ideia, no fundo, consiste em manter simultaneamente a essência do direito real, o domínio da atuação sobre a coisa, com o momento imperativo e sancionatório do Direito, a vinculação dos outros, entendida de modo mais ou menos amplo, a não interferirem no senhorio do titular do direito. Se cada uma das doutrinas, individualmente tomada, era suscetível de críticas, a sua combinação só as potencia. Nenhum direito subjetivo tem um lado interno e um lado externo, mas sim uma dada estrutura que repousa no objeto e conteúdo do mesmo. O direito real nem sempre admite uma atuação direta do titular sobre a coisa e não postula qualquer relação jurídica com o resto da humanidade, mesmo que, num esforço de racionalização do absurdo, se dê desta a dimensão restrita dos que estão no espaço territorial da ordem jurídica onde a coisa se encontra.

6. Tentativas de superação: a. Gomes da Silva: depois de fixar o conceito de direito subjetivo e, nomeadamente, fazer a destrinça entre direito e poder, Gomes da Silva afirma que «só pode ser direito real o que representa a afetação da coisa a um fim». E continua: «o bem afetado pela lei à realização de certo fim é a própria coisa».

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Tecnicamente superior, esta noção não confunde o direito com o poder, mantém o paradigma do direito real como direito sobre uma coisa e afasta a conexão intersubjetiva da relação jurídica, que não surge efetivamente implicada no direito real. Como pontos negativos, apontamos dois. O primeiro reside na falta de explicitação do objeto. Mencionar simplesmente a coisa abre a porta a conceções amplas que envolvem as coisas incorpóreas. Ora, apenas as coisas corpóreas podem ser objetos dos direitos reais. E se isto é assim, deve ser precisado na noção de direito real. O segundo ponto negativo reside na ligação entre a afetação da coisa e o fim. O direito subjetivo representa um espaço de liberdade no aproveitamento do bem. Atua essa liberdade o titular do direito real que não faz utilização nenhuma da coisa, sujeitando-se inclusivamente à extinção do direito. Parece, no entanto, que a afetação a um fim acaba por implicar uma espécie de vinculação do titular ao mesmo, em jeito de delimitação negativa do direito, o que levaria a distinguir exercícios lícitos, porque conformes ao fim, seja ele qual for, e exercícios ilícitos, por não o realizarem. Mesmo que não haja sido esse o sentido pretendido por Gomes da Silva, a criação de um nexo entre o aproveitamento e o fim sugere sempre limitada, interna (delimitação negativa do direito) e externamente (limites), mas não genericamente pelo fim do direito real. Estas reflexões aconselham que a noção de fim fique afastada da noção de direito real. Por muito que nos esforcemos, não encontramos nenhum resquício de finalidade no regime jurídico de todos os direitos reais, em particular, dos direitos reais de gozo. Cada titular de direito real tem um dado conteúdo de aproveitamento da coisa que a lei lhe confere e que faz uso dentro da margem de livre arbítrio que o direito comporta. b. Oliveira Ascensão: Oliveira Ascensão apresenta a seguinte noção de direito real: «direitos reais são direitos absolutos, inerentes a uma coisa e funcionalmente dirigidos à afetação desta aos interesses do sujeito». Oliveira Ascensão parece rejeitar uma definição baseada apenas na consideração do objeto dos direitos reais, introduzindo também aspetos de conteúdo, que são realmente características ou consequências do conceito, elevadas, contudo, ao âmbito da definição do mesmo. É uma técnica perigosa, pois se a característica se revela não verdadeira, a noção fica comprometida. A primeira nota distintiva apontada por Oliveira Ascensão é a de que o direito real é absoluto, no sentido de não integração numa relação jurídica. Julgamos, todavia, que, em vez de questionar a natureza jurídica da posse com base neste argumento, o que se deveria perguntar era se à luz do regime jurídico a falta de absolutidade, no sentido de oponibilidade erga omnes, compromete a natureza real, isto é, se os direitos reais são sempre absolutos, e não, pura e simplesmente, usar o conceito pré-dado de direito real para afastar essa natureza. Como veremos adiante, consideramos que existe um princípio de absolutidade em Direito Reais. Todavia, e como alerta Canaris, os princípios não valem sem exceção. O princípio da absolutidade pode não valer sempre, sem que fique comprometido o seu papel estruturante no sistema de Direito Reais. A natureza real do direito pode existir mesmo relativamente a direitos que não

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão têm ou não têm sempre eficácia absoluta. O que equivale a dizer que teremos de procurar o caráter real noutras notas distintivas que não a absolutidade e evitar colocar na definição uma característica que pode faltar em alguns casos. A segunda nota distintiva mencionada por Oliveira Ascensão é a inerência: os direitos reais são direitos inerentes a uma coisa. Isto é verdade, mas há aqui uma inversão lógica. Os direitos não são reais porque têm inerência, são reais porque têm por objeto uma coisa. É esta circunstância que evidencia a inerência e não esta que revela o seu caráter. Correto, é, pois, acentuar o objeto do direito real na definição deste e não apenas dizer que os direitos são inerentes. A última nota distintiva é mais complexa: «funcionalmente dirigidos à afetação desta aos interesses do sujeito». A influência do conceito de direito subjetivo de Gomes da Silva parece revelarse aqui. Oliveria Ascensão pretende evidenciar dois aspetos:  O primeiro deles é de que existem direitos inerentes a coisas que não são reais. Só quando a inerência tenha como objetivo a satisfação das necessidades do titular através das utilidades da coisa o direito inerente é real. Quando, ao invés, a coisa seja usada para determinar o devedor de uma prestação, no caso das obrigações propter rem, o direito em causa tem a natureza de um crédito. Menezes Cordeiro lembra que aproveitamento propiciado pelo direito real não se reduz às utilidades naturais, envolvendo também o «aproveitamento puramente jurídico», como ocorre com os direitos reais de garantia e de aquisição. Sem prejuízo do acerto desta observação, julgamos, no entanto, que a crítica certeira é outra. Se a coisa serve apenas para determinar o sujeito passivo de uma obrigação, como sucede em algumas obrigações propter rem, e não ocorre nenhum aproveitamento, a coisa não está implicada no direito do credor, que é meramente obrigacional. Por outras palavras, a coisa não é aí o objeto do direito do credor; esse objeto está somente na prestação. Deste modo, não sendo a coisa o objeto do direito, não há evidentemente nenhuma inerência a considerar e o direito em causa não é real;  O segundo aspeto do trecho de Oliveira Ascensão cola-se à ideia de fim que já encontrámos em Gomes da Silva, mas com maior ambiguidade, uma vez que recorre aos interesses do titular. Ora, a noção de interesses é uma da mais equívocas em Direito e o seu uso levanta problemas. A propriedade sobre uma coisa estéril e absolutamente inútil para o proprietário não deixa de constituir um direito real. c. Menezes Cordeiro: afirma que o «direito real é uma permissão normativa específica de aproveitamento de uma coisa corpórea». Este professor recorre à sua noção geral de direito subjetivo para expressar o conceito particular de direito real. Esta definição capta o aspeto essencial do caráter real do direito: ter uma coisa corpórea por objeto, e evita todos os escolhos das teorias clássica, personalista e mista, pois não faz qualquer alusão 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ao poder direto e imediato nem recorre ao expediente, tecnicamente errado para esta categoria de direitos, da relação jurídica. Trata-se, assim, de uma definição tecnicamente avançada, com a qual concordamos na generalidade. d. Carvalho Fernandes: Carvalho Fernandes define direito real como «o poder jurídico absoluto, atribuído a uma pessoa determinada para a realização de interesses jurídico-privados, mediante o aproveitamento imediato de utilidades de uma coisa corpórea». Há nesta formulação um ponto de partida prévio, a conceção de direito subjetivo do autor. Pensamos, porém, que a identificação do direito subjetivo com um poder, mesmo que assumidamente jurídico, envolve uma limitação técnica. Os direitos são a fonte de poderes jurídicos, não são eles próprios um poder. Por outro lado, e diferentemente do que faz crer esta definição, nada impede que os interesses prosseguidos através do direito real sejam públicos. Os interesses do titular não têm que ser privados só porque a tutela real se faz através do Direito privado. A alusão a um aproveitamento imediato das utilidades surge de algum modo comprometido com a teoria clássica, à qual foi movida a crítica, segundo a qual, nem todos os direitos reais outorgam posse. e. Menezes Leitão: Menezes Leitão, por sua vez, define direito real como «direito absoluto e inerente a uma coisa corpórea, que permite ao seu titular uma determinada forma de aproveitamento jurídico desta». Tecnicamente avançada, esta definição encontra-se na linha evolutiva das anteriores; evita os escolhos críticos da teoria clássica e da teoria moderna, mantendo a ligação tradicional ao seu objeto, sempre uma coisa corpórea. Porém, conquanto o caráter absoluto do direito esteja na origem histórica da natureza real, nomeadamente, através da actio in rem e da oponibilidade que esta propiciava a quem a ela podia recorrer, duvidamos que atualmente seja uma nota distintiva permanente do conceito de direito real. Podem existir direitos reais sem oponibilidade absoluta ou com uma oponibilidade limitada, como preferimos dizer. Para nós, o exemplo paradigmático encontra-se na posse, com a ausência de oponibilidade a terceiros de boa fé. Mas também podemos observar o mesmo fenómeno na situação em que se encontra o titular de direito real sobre prédio nas hipóteses em que a ordem jurídica portuguesa protege o terceiro de boa fé (efeito atributivo do registo predial). Finalmente, distinguimos um aproveitamento material e um aproveitamento jurídico da coisa e salientamos que o aproveitamento concedido pelo tipo de direito real ao seu titular pode compreender qualquer das suas formas e não apenas o aproveitamento jurídico, sendo essa a razão pela qual, como veremos de seguida, preferimos falar simplesmente em aproveitamento da coisa, sem o qualificar. f.

A nossa formulação: o ponto de partida do conceito de direito real é dado pelo seu objeto. Os direitos reais são direitos sobre coisas. Este é o legado da história e da cultura romanista aos países de Direito continental. Dentro do conceito amplo de coisa, apenas as coisas corpóreas podem ser objeto dos direitos reais. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão É outro resquício da tradição romanista. O dominus ou titular de outro direito real de gozo tinha uma actio contra aquele que tinha a coisa sem a sua autorização. Essa actio era in rem, porque o titular podia dirigir-se diretamente ao terceiro para obter a coisa. Deste modo, não estava dependente da colaboração de ninguém para tirar as vantagens da cosia. O seu direito era contra a coisa e não contra a pessoa. Embora no princípio do século XIX Thibaut ainda caracterizasse o direito real através da vindicatio, a verdade é que o direito real foi perdendo a sua ligação à actio in rem. Atualmente, os direitos reais de garantia são exercidos judicialmente através de uma ação executiva, que não é naturalmente uma ação real. E o mesmo se diga de direitos reais de aquisição, como a promessa real, cujo exercício judicial não se faz por uma ação real. Isto quer dizer, que já não é mais possível falar em direitos reais por referência a um modo específico de tutela real, embora subsistam naturalmente ações reais, como a ação de reivindicação (artigo 1311.º CC). Em todo o caso, os regime jurídicos de Direitos Reais mantiveram a sua ligação original ao objeto: as coisas corpóreas. Nenhuma outra categoria de direitos tem as coisas corpóreas por objeto; e, inversamente, todos os direitos sobre cosias corpóreas são direitos reais. É verdade que outros direitos possibilitam ao titular tirar vantagens sobre uma coisa corpórea. Dois exemplos ilustrativos são a locação e o comodato. Esta é ainda uma decorrência ado Direito Romano. O locatário e o comodatário eram defendidos, não por uma actio in rem, mas sim por uma actio in personam. A coisa não pertencia, assim, à estrutura do seu direito. Não existe naturalmente nenhuma inevitabilidade, lógica ou de outra ordem para que seja assim, mas a locação e o comodato continuaram a ser estruturados como direitos a uma prestação do devedor e não como direitos em que a coisa figura no próprio objeto do direito. Por essa razão, os direitos do locador e do comodatário são ainda hoje direitos pessoais e não direitos reais. Os direitos reais outorgam o aproveitamento de uma coisa corpórea. Esse aproveitamento pode ser muito variado, desde os direitos reais que concedem o gozo da coisa, até aos direitos reais de aquisição e de garantia que se limitam a assegurar a aquisição de outro direito ou a possibilidade de realização de dinheiro com a venda da coisa. O aproveitamento da coisa pode ser material ou jurídico. Usualmente, tende a considerar-se apenas o primeiro; mas não há nenhuma razão para que isso suceda. Nos direitos reais de garantia e de aquisição o aproveitamento da coisa é meramente jurídico; nos direitos reais de gozo, tanto o aproveitamento material, através da posse, como o aproveitamento jurídico podem existir no conteúdo do direito real. Definimos direito real como o que atribui ao seu titular um determinado aproveitamento de uma coisa corpórea. Na sua singeleza, esta definição aponta os aspetos fundamentais. O direito real é, antes do mais, um direito subjetivo. No caso dos direitos reais, esses bens são coisas corpóreas. O direito real é, assim, um direito sobre uma coisa corpórea ou contra uma coisa, como, por vezes, se exprimem os romanistas. Temos, deste modo, salientando o direito real como direito subjetivo autonomizado pelo seu objeto. Poderíamos ficar por aqui. Um direito subjetivo que tem uma coisa corpórea por objeto só pode ser um direito real. Pensamos, contudo, que

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão se trataria de uma definição incolor e sem substância. Afinal, o escopo normativo do direito subjetivo real, como de qualquer outro direito subjetivo, é o de permitir o aproveitamento do objeto pelo titular. A caracterização do direito real pelo conteúdo faz-se mencionando um determinado aproveitamento do seu objeto. Não se pode ir mais longe na determinação desse conteúdo quando se define direito real. Essa tarefa deve ser levada a cabo na análise de cada tipo de direito real, pois cada um dos direitos reais atribui um conteúdo diverso de aproveitamento da coisa e existem tantas formas de aproveitamento quantos os tipos de direitos reais consagrados na lei. O aproveitamento de uma coisa corpórea, só por si, não permite qualificar um direito como direito real. Existem direitos que conferem o aproveitamento de uma coisa que não são reais, porquanto o aproveitamento surge através da colaboração de um devedor. Os direitos pessoais de gozo (a locação, o comodato, etc.) constituem um bom exemplo. Para além de outorgar um determinado tipo de aproveitamento de uma coisa corpórea, o direito só é real se tiver essa cosia por objeto. A implicação da coisa na estrutura do direito real, se constitui o resultado natural da tradição romanista, representa o último e definitivo traço da distinção entre direitos de crédito e direitos reais. Sem esse traço, desaparece a autonomia científica de Direito Reais e toda a matéria deste ramo do Direito de resumirá a uma regulação patrimonial, de cariz obrigacional, eventualmente com especialidades.

Classificação de direito reais: a classificação principal distingue os direitos reais em:  Direitos reais de gozo: atribuem o aproveitamento da coisa através de uma combinação de poderes que consubstanciam o gozo da coisa;  Direito reais de garantia: não atribuem nenhum dos poderes de gozo da coisa, mas apenas a possibilidade de realização de um valor em dinheiro pelo produto da venda da coisa em processo judicial executivo;  Direitos reais de aquisição: determinam a afetação de uma coisa à aquisição de um outro direito. O Direito Romano e o Direito comum conheciam apenas as duas primeiras categorias; a terceira representa uma evolução recente. Outra classificação importante distingue:  Direitos reais maiores; e  direitos reais menores. Um direito real é maior em relação a outro quando o conteúdo de aproveitamento da coisa é mais extenso. Assim, a propriedade é o direito real de maior extensão, pelo que será sempre o direito real maior. No confronto com ela, todos os outros direitos são direitos reais menores. A relação entre direito real maior e menor coloca-se igualmente entre os restantes direitos reais de gozo. O direito de propriedade representa um direito sobre coisa própria. A propriedade constitui a afetação última de uma coisa a uma pessoa. Em relação a ela, qualquer outro direito real é ius in re aliena, direito sobre coisa alheia (do proprietário). Podemos, deste modo, distinguir direitos reais sobre coisa própria (a propriedade, incluindo a compropriedade) e direitos sobre coisa alheia (todos os outros).

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A oneração: os autores mais antigos concebiam a propriedade como o direito real perfeito e completo. No confronto com ela, os outros direitos reais de gozo eram propriedades imperfeitas ou incompletas. Pothier explica isto: «uma propriedade é plena e perfeita quando é perpétua e a coisa não está carregada de direitos reais a favor de outras pessoas que não o proprietário. Ao contrário, ela é imperfeita quando se resolve ao fim de um certo tempo ou pela ocorrência de uma dada condição». A incidência de outros direitos reais sobre a propriedade tornavam-na imperfeita. Esta conceção influenciou o Code Civil francês e todos os outros que o seguiram no seu modelo estruturante. No âmbito do Código Civil de Seabra, a doutrina refletia esta terminologia, o que mostra bem como as conceções da civilística francesa anteriores ao Code Civil penetraram fundo nos quadros normativos da primeira codificação civil portuguesa. Na base desta conceção está a ideia de que a propriedade constitui o direito real principal, do qual todos os outros derivam por desmembramento. Ouçamos de novo Pothier: «existem várias espécies de ius in re, que se chamam também direitos reais. O principal é o direito de domínio da propriedade. As outras espécies de direitos reais que emanam dele e que são como seus desmembramentos são os direitos de domínio de superioridade». Esta ideia levou ao surgimento da denominada teoria do desmembramento. Segundo esta teoria, os direitos reais menores derivam da fragmentação (desmembramento) dos poderes do proprietário a favor do titular do direito real menor. A redação do n.º1 do artigo 1306.º CC vigente parece ainda influenciada nesta teoria. A crítica à teoria do desmembramento veio da denominada teoria da oneração. Os direitos reais menores não representam qualquer forma de desmembramento da propriedade, mas tipos diversos de aproveitamento da coisa. A sua incidência sobre a coisa não conduz a uma transmissão do conteúdo da propriedade para o direito novo, mas apenas a oneração daquele por este. Quer dizer, a constituição do direito real menor não se faz por derivação do conteúdo da propriedade, privando desse conteúdo. O direito real menor tem um conteúdo próprio, que quando incide sobre a coisa limita o aproveitamento do proprietário, porque ambos concorrem sobre a mesma coisa. A teoria da oneração rejeita, pois, que os outros direitos reais resultem da transferência de conteúdo da propriedade, concebendo-os antes como tipos autónomos, diversos da propriedade e que quando incidem sobre a mesma coisa comprimem aquele direito, impedindo o proprietário de gozar com a coisa em toda a zona de sobreposição de conteúdo entre os dois direitos. Pode assim dizer-se, que naquilo que é conteúdo do direito real menor, o direito maior fica onerado, ou seja, o titular deste último fica impedido de realizar o aproveitamento da coisa que o direito real menor providencia a quem couber. Não temos dúvidas em expressar a nossa adesão sem reservas à teoria da oneração. O desmembramento só se compreende num pano de fundo em que se posiciona a propriedade no centro do sistema de direitos reais e se diminui o papel dos direitos reais menores na distribuição das vantagens das coisas corpóreas. Ele configura uma persistente resistência à perda da centralidade da propriedade no sistema científico e normativo de Direitos Reais. A oneração dá-se quando dois ou mais direitos reais têm a mesma coisa por objeto. Na visão corrente, o direito onerado é sempre um direito real maior e o direito onerador um direito real menor. O conteúdo do direito real maior fica numa situação de compressão e o seu titular impossibilitaado de fazer o aproveitamento da coisa nessa zona de sobreposição doo conteúdo dos dois direitos. A lei resolve o conflito da concorrência de dois direitos reais

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão distgintos a favor do titular do direito menor. No entanto, o titular do direito maior pode continuar a aproveitar a coisa em tudo aquilo em que seu direito não é afetado pela oneração. No entanto, os estudos de Luís Pinto Coelho sobre a compropriedade trouxeram para o Direito português uma perspetiva diversa, que seria acolhida também por Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro: os direitos em comunhão oneram-se reciprocamente, em moldes inteiramente semelhantes aos que ocorrem na relação entre um direito real maior e um direito real menor. Assim, tanto existe oneração quando uma servidão predial se constitui no âmbito do direito de usufruto, como quando existem dois comproprietários (co-usufrutuários, co-superifiários) sobre a mesma coisa. Desta forma, existe oneração quando dois ou mais direitos reais compatíveis concorrem sobre a mesma coisa, sejam direitos reais da mesma natureza sejam direitos reais de diferente natureza, com a diferença de que, no primeiro caso, todos os direitos reais (da mesma natureza) ficam onerados, enquanto, no segundo caso, o direito real onerado é o maior. Falamos em direitos reais compatíveis para se perceber os limites da oneração. Esta só se dá segundo o regime jurídico se os dois direitos em concurso puderem coexistir simultaneamente sobre a mesma coisa. Duas propriedades singulares não se podem onerar reciprocamente, porquanto a ordem jurídica só admite uma propriedade singular sobre a coisa. Na compropriedade, diversamente, admite-se a concorrência (concurso) simultânea de direitos de (com)propriedade.

A elasticidade dos direitos reais de gozo: quando um direito real de gozo se encontra onerado o seu conteúdo típico não se transfere (sequer em parte) para o direito real menor, dado que este tem o seu conteúdo próprio. O que parece certo, em todo o caso, é que o titular do direto onerado não pode exercer os poderes ou outras situações ativas do seu direito que sejam afetadas pelo aproveitamento concedido pelo direito onerador ao titular respetivo. Se não há transferência, o que sucede então ao conteúdo do direito real onerado? A resposta é que fica comprimido, como que suspenso, enquanto a oneração durar. Esta compreensão do direito real onerado atinge apenas a parte do conteúdo do direito onerador. Pelo contrário, na parte restante, o titular do direito onerado pode continuar a exercer normalmente o mesmo. Assim, o proprietário onerado com um usufruto pode dispor do seu direito, nomeadamente, transmitindo-o a terceiro. Os atos de disposição não alteram a situação de oneração e o novo proprietário adquire a propriedade onerada com o usufruto, tal qual existia antes da alienação. E isto é assim em todos os casos de oneração. Com a extinção do direito onerador, a oneração cessa, a compressão acaba e o direito real readquire a configuração típica do seu conteúdo. Dito de uma forma tecnicamente mais apurada, o direito real retoma a sua plenitude. A esta capacidade do direito real de se comprimir com a oneração e de regressar à sua configuração normal típica uma vez cessada aquela, leva os autores a acentuar um característica do direito real: a elasticidade. Os direitos reais seriam direitos providos de elasticidade. Alguns autores vão mais longe e falam num princípio de elasticidade. Cremos, no entanto, que há exagero em falar num princípio de elasticidade como princípio de Direitos Reais. No rigor das coisas, a elasticidade acha-se somente nos direitos reais de gozo, e não em todos. As servidões prediais, por serem o direito real de gozo de menor extensão, não têm elasticidade. Pensamos, deste modo, não ser correto dizer que a elasticidade constitui um princípio ou mesmo uma característica dos direitos reais. Ela existe tendencialmente nos direitos reais de gozo e designa aí o movimento de compressão e de descompressão que o direito real sofre com a oneração e a extinção do direito onerador.

Situações jurídicas propter rem. Obrigações propter rem: por situações jurídicas propter rem ou ob rem entendem-se aquelas cujo sujeito ativo ou passivo se determina em atenção à titularidade de um direito real. Dito de outra forma, o sujeito ativo ou passivo da situação

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão jurídica propter rem é o titular de um direito real. Dentro das situações jurídicas propter rem, as mais relevantes são as designadas obrigações reais ou, mais corretamente, propter rem. Nelas, o sujeito passivo da obrigação surge determinado pela titularidade do direito real. Como exemplos de obrigações propter rem podem apontar-se as presentes nos artigos 1411,º 1424.º, 1472.º, n.º2, 1489.º, n.º1 e 1567.º, n.º1 CC, entre outras. As obrigações propter rem não correspondem a uma categoria legal. A lei nunca lhes faz qualquer referência. No entanto, nas doutrinas latinas tem sido levado a cabo um trabalho de dogmatização da figura, que permanece, no entanto, envolta num manto de obscuridade, quer na sua delimitação quer na distinção de outras figuras próximas, em particular, dos ónus reais. Numa primeira aproximação, as obrigações propter rem representam deveres de prestar que impendem sobre o titular de um direito real a favor de outra pessoa. A partir daqui a controvérsia começa. Os deveres em causa podem ser impostos a favor de um não titular de direito real sobre a coisa ou apenas entre titulares de direitos reais sobre a mesma coisa? O dever de prestar da obrigação propter rem é sempre positivo ou pode consistir num non facere ou pati? As obrigações propter rem são autónomas relativamente ao direito real ou estão com ele numa relação de acessoriedade? As obrigações propter rem estão sujeitas ao regime obrigacional comum, como obrigações autónomas, ou a outro regime? Henrique Mesquita configura as obrigações propter rem como beneficiando um titular de outro direito real, um contitular do mesmo direito ou, finalmente, de outras pessoas que não são determinadas através da titularidade de um direito real sobre a coisa. Prensamos, porém, que este último âmbito leva a uma dispersão muito grande, indutora de uma desagregação da categoria. Os exemplos legais de obrigações propter rem mostram que através delas se regula o modo como titular do direito real deve exercer o seu direito quando em concorrência com outro direito real sobre a mesma coisa. A concorrência de direitos tendo a mesma coisa por objeto impõe muitas vezes a necessidade de regular a sua utilização pelos titulares, como forma de evitar o aparecimento de conflitos, de potenciar o valor económico do aproveitamento da coisa e, sobretudo, de disciplinar o exercício do direito de cada um. Porquanto vários direitos reais podem coexistir simultaneamente sobre uma mesma coisa, ocorrendo situações de atuação concorrente e, por conseguinte, de conflito potencial entre titulares, o exercício desses direitos tem de ser regulado. Essa regulação é, assim, o escopo das obrigações propter rem. Confinando as obrigações propter rem às situações de conflito entre titulares de direitos reais sobre a mesma coisa, afastamos do âmbito desta figura as obrigações de Direito Público, a favor do Estado ou de outras entidades públicas, e mantemos a ligação estrita ao Direito Privado. Em Portugal, Henrique Mesquita considera que as obrigações propter rem englobam apenas os deveres de prestação de conteúdo positivo, sustentando que os outros (deveres negativos) se resolvem através da ponderação do próprio conceito de Direito Real. Não encontramos justificação para uma tal restrição (vide, v.g. artigo 1470.º, n.º1 CC). Na nossa ótica, pois, as obrigações propter rem integram prestações positivas e negativas, quando os respetivos sujeitos, do lado ativo e passivo, sejam simultaneamente titulares de direitos reais sobre a mesma coisa. Note-se, portanto, que as prestações negativas que indicamos se integram na relação entre titulares de direitos reais sobre a mesma coisa – não respeitando a quaisquer outros terceiros, muito menos àqueles que usualmente surgem contemplados na obrigação passiva universal ou na esfera de proteção do direito real – e têm por finalidade regular o exercício de um dos direitos reais defronte do titular de outro direito real. Discute-se na doutrina se as obrigações propter rem constituem uma relação distinta do direito real, sendo acessórias a um direito principal (o direito real). A discussão tem tido lugar a propósito do regime jurídico das servidões e surge amiúde atravessada pela polémica quanto à admissibilidade de direitos reais in faciendo, particularmente servitus in faciendo, sob o pano de fundo do brocardo servitus in faciendo consistere nequit, segundo o qual, as servidões in faciendo eram proibidas no Direito 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Romano. Uma doutrina mais antiga divisa na obrigação propter rem uma relação obrigacional distinta do direito real. Para isto concorreria o próprio conceito de ius in re. Uma vez que as prestações atinentes às obrigações propter rem não têm a coisa por objeto, estas não poderiam fazer parte do conteúdo do direito real. Seriam autónomas, embora acessórias ao direito real. Esta visão deve ter-se hoje por ultrapassada. O direito real, como situação jurídica complexa, integra simultaneamente no seu conteúdo um conjunto de poderes e faculdades a par de outras situações negativas (deveres, sujeições, etc.). Estas situações negativas delimitam o aproveitamento típico do direito real, fixando-lhe a extensão, que não é assim dada somente pelos poderes, faculdades ou outras situações ativas. Concebido o direito real desta forma, não custa perceber que as obrigações propter rem não têm autonomia, sendo parte do conteúdo negativo do direito real e compondo a sua estrutura complexa. Perde, assim, todo o seu peso o argumento tradicional, segundo o qual, estas obrigações, por não terem uma coisa por objeto, não poderiam ter natureza real, sendo a sua natureza, pessoal, mista ou outra. O facto de as obrigações propter rem pertencerem ao conteúdo do direito real não permite considerar aplicável, sem mais, o regime do Direito das obrigações; e esta aplicabilidade não pode advir do mero facto de as obrigações propter rem se estruturarem sobre um dever de prestar do titular do direito real e um direito à prestação de outra pessoa. Diferentemente, o regime jurídico das obrigações terá aplicação às obrigações propter rem somente quando não houver no regime geral uma regulação específica ou não for afastada por ele. Para compreender isto, importa não esquecer que o conteúdo do direito real é regulado pelo regime jurídico de Direitos Reais. O facto de haver prestações a cumprir pelo titular do direito real não desvirtua a natureza do direito que o compreende nem o pode submeter naturalmente ao Direito das Obrigações. A situação jurídica (o direito real) globalmente considerada tem natureza real e fica sujeita ao ramo de Direito respetivo. No fundo, a relevância teórica da figura da obrigação propter rem reside na circunstância de ligado ao aproveitamento da coisa surgirem deveres de comportamento a que fica adstrito o titular do direito real. Esses deveres têm uma estrutura obrigacional, mas o seu regime jurídico não é simplesmente o do Direito das Obrigações, uma vez que se integram no conteúdo de um direito real, regido pelo Direito das Coisas. Eles servem ainda uma lógica de aproveitamento de uma coisa, regulando o exercício de direitos reais em concorrência, e não podem ser analisados simplesmente como se tratasse de uma relação obrigacional autónoma. No nosso entendimento, as denominadas obrigações propter rem não têm qualquer relação de acessoriedade com o direito real, fazendo parte do conteúdo do mesmo. Portanto, as obrigações reais não correspondem a relação jurídicas distintas do direito real e autónomas deste, integrando o conteúdo complexo do direito real. Como obrigações, as obrigações propter rem postulam a existência de relações jurídicas reais, que nós circunscrevemos aos casos de concurso de direitos reais sobre a mesma coisa, ou seja, entre os titulares desses direitos reais. O problema que nós queremos agora versar é outro, é o de compatibilizar a natureza real do direito com a existência de deveres de prestar no seu conteúdo, tendo sido este o argumento principal da recusa de muitos autores em integrarem as obrigações propter rem no conteúdo do direito real. O direito real tem uma coisa como objeto; na estrutura deste direito encontra-se uma coisa. No entanto, o concurso de vários direitos reais sobre o mesmo objeto determina a necessidade de regulação do exercício concorrente dos mesmos. As obrigações propter rem promovem essa regulação numa situação complexa cujo objeto é uma coisa, sem desvirtuarem a natureza do direito. No seu conjunto, o direito real recai numa coisa, servindo os deveres de prestar para regular o aproveitamento da mesma. A falta de autonomia das obrigações reais numa situação complexa que tem uma coisa corpórea por objeto comunicalhe a natureza respetiva. Fazendo parte do conteúdo de um direito real, as obrigações propter rem têm a natureza desse direito. A falta de autonomia das obrigações propter rem permite 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão igualmente rejeitar a admissibilidade de direitos reais in faciendo. Não existem direitos reais in faciendo; o que existem são prestações (positivas ou negativas) integradas no conteúdo do direito real submetidas a um escopo legal de regulação do exercício de direitos reais em concorrência sobre a mesma coisa. Várias vezes se afirma que as obrigações propter rem se transmitem com a transmissão do direito real (e seriam, por isso, ambulatórias) e se extinguem quando este se extingue, particularmente na hipótese da renúncia liberatória. Tem, no entanto, pouco interesse pôr as coisas nestes termos, como se a obrigação propter rem tivesse autonomia e pudesse ser considerada isoladamente do conteúdo do direito real em que surge. Se a fonte da obrigação propter rem é o direito real, o seu titular apenas se encontra vinculado ao cumprimento enquanto persistir a titularidade do direito. Se esta deixa de existir, a obrigação propter rem vinculará o novo titular, se o houver. A transmissão do direito real exonera o transmitente do dever de prestar, fazendo-o recair no novo adquirente. E isto, mesmo relativamente a dívidas vencidas. Afastamo-nos neste ponto da visão corrente. De facto, se a fonte da obrigação propter rem é o direito real, o titular respetivo está investido no dever de a cumprir, mesmo que eventualmente haja adquirido o direito após o vencimento da mesma. Isto explica-se, porque a responsabilidade civil pelo incumprimento só pode exigir-se ao devedor relapso e não ao adquirente que não era devedor quando a dívida se venceu. Mas já quanto À obrigação propter rem, sendo ela uma decorrência do direito real, do seu conteúdo, todo o titular do direito está obrigado a cumpri-la, ainda que não tivesse essa qualidade no momento em que a obrigação se venceu. O que dissemos afasta um critério comum de diferenciação entre as obrigações propter rem e os ónus reais. A diferença entre estes não reside no facto de as primeiras serem intransmissíveis ao novo titular do direito real enquanto os ónus reais o são, porquanto também nas obrigações propter rem o novo titular se encontra vinculado ao cumprimento respetivo. O problema que abordamos de seguida consiste na apreciação da validade da constituição de obrigações propter rem fora dos casos contemplados na lei. É admitida a livre criação de obrigações propter rem ou esta encontra-se sujeita a um princípio de taxatividade? Alguns autores mencionam uma tipicidade das obrigações propter rem (Henrique Mesquita): «trata-se de uma categoria que deve resultar determinada através de hipóteses tipicamente previstas (…); de outro modo, são aplicáveis as regras gerais das obrigações». A lei portuguesa não confirma aparentemente esta perspetiva. As obrigações propter rem podem ter a sua fonte diretamente na lei ou em negócio jurídico. E, com efeito, são várias as hipóteses em que a lei admite a previsão de obrigações, por via negocial, no título constitutivo. Assim acontece nos artigos 1445.º, 1485.º, 1530 e 1564.º CC. Por outro lado, a lei admite igualmente que no título constitutivo seja alterado o sujeito passivo da obrigação propter rem. Significa isto, afinal, que a autonomia privada vale aqui com toda a sua plenitude e toda a espécie de obrigações propter rem pode ser convencionada? Um primeiro obstáculo a isto provém do princípio da tipicidade (artigo 1306.º, nº.1 CC). A validade da constituição de obrigações de fonte negocial que importem, no seu alcance prático, a supressão ou diminuição do aproveitamento típico do direito real deve considerar-se excluída. Há, neste caso, violação da tipicidade legal (artigo 1306.º, n.º1 CC). Em todo o caso, este argumento não pode valer para as obrigações propter rem que não firam o conteúdo injuntivo típico do direito real. Para estas há a considerar, no entanto, um segundo obstáculo. Esse obstáculo prende-se com a falta de publicidade. As obrigações propter rem, por pertencerem ao conteúdo do direito real, não são objeto de publicidade autónoma. Elas representam, porém, um gravame importante para o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão adquirente do direito real, que fica obrigado a desenvolver uma atividade com a qual pode não ter contacto, se a mesma deriva unicamente do título constitutivo e não da lei. Por outro lado, e dentro da nossa perspetiva de que as obrigações propter rem são parte integrante do conteúdo do direito real, parece difícil admitir que os particulares possam fixar livremente esse conteúdo fora do âmbito do tipo legal, dando ao exercício do direito real em concurso com outro a conformação que quiserem. Isto leva-nos a pensar que as obrigações propter rem de fonte negocial só podem ser validamente convencionadas se incidirem sobre os aspetos do exercício do direito real que a lei contemple, nomeadamente, para afastarem o regime supletivo legal, estabelecendo outra solução. As obrigações que não estejam nestas condições não podem valer como obrigações propter rem, ficando quanto muito sujeitas ao regime geral das obrigações. E com isto chegamos a uma orientação praticamente coincidente com a de Henrique Mesquita. Os particulares podem prever negocialmente obrigações propter rem sempre que se trate de regime supletivo legal e no âmbito do direito real pelos particulares, as obrigações propter rem não serão válidas como tal, podendo valer somente como obrigações gerais, sujeitas ao regime do Direito das Obrigações e não fazendo parte do conteúdo do direito real. Nesta ordem de ideias, admitimos falar numa taxatividade das obrigações propter rem.

Ónus reais: a categoria dos ónus reais não tem contornos precisos. A dogmatização da mesma na doutrina ora apresenta uma assimilação com as obrigações propter rem ora surge como uma categoria distinta daquelas, com critérios de distinção sempre variados. Em nossa opinião, justifica-se separar o tratamento dogmático das duas categorias. Embora a sua evolução histórica haja corrido em paralelo com as obrigações propter rem, são efetivamente categorias que aludem a situações diversas. Começamos por chamar a atenção para o facto da expressão ónus real não ser utilizada no sentido técnico que lhe está associado como situação jurídica. O ónus real não representa um verdadeiro ónus. Por outro lado, frequentemente, aliás, esta expressão surge na lei para designar situações que não correspondem aos tradicionais ónus reais. Por exemplo, na alínea r) do artigo 2.º CRPr alude-se ao «ónus de casa de renda limitada ou de renda económica», quando é certo que a figura não constitui qualquer ónus real. Portanto, e como prevenção, há que contara com as utilizações pouco criteriosas da expressão ónus real, que nada têm a ver com a figura em análise. Numa primeira aproximação, o ónus real designa uma prestação positiva a que se encontra obrigado o titular de um direito real defronte de outra pessoa. Neste sentido, e este supomos ser um aspeto pacífico, o ónus real constitui uma modalidade de situação jurídica propter rem. Discute-se a prestação englobada tanto o dare de uma coisa como um facere, ou se apenas a entrega de coisa, em género ou dinheiro, pode ser objeto de um ónus real. A doutrina portuguesa dominante considera que os ónus reais apenas englobam as prestações positivas de dare, excluindo, pois as de facere. Na doutrina estrangeira, os autores italianos incluem por vezes prestações negativas, mas não põem em causa as prestações positivas, sejam de facere sejam de dare. E, na Alemanha, a admissibilidade de prestações de facere nos ónus reais não é objeto de nenhuma controvérsia. Antes de darmos a nossa resposta, convém fazer uma delimitação prévia. A doutrina tem distinguido ónus reais puros e ónus reais integrados em direitos reais. O cânon superficiário (artigo 1530.º CC) seria um exemplo destes últimos: ele integra a posição jurídica do proprietário do solo onerado com um direito de superfície, quando o mesmo seja convencionado (artigo 1530.º, n.º1, in fine CC). Esta distinção é fundamental. Os denominados ónus integrados em direitos reais não apresentam nenhuma característica que permite diferenciá-los das obrigações propter rem. Eles são, assim, parte do conteúdo do direito real, quer do direito real do sujeito ativo quer do direito real do obrigado à prestação. Isto quer dizer, que apenas se justifica dogmaticamente falar de ónus reais relativamente aos ónus reais puros, ou seja, àqueles que não fazem parte do

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão conteúdo de um direito real. Os outros não se distinguem das obrigações propter rem. Voltando, então, ao problema que enunciámos – saber se a prestação positiva do ónus real pode ser de facere ou de dare ou só de dare, seria decerto possível, na variedade dos exemplos históricos conhecidos, encontrar casos em que o ónus real tem por objeto uma prestação de facere. O que interessa, no entanto, são os dados do Direito positivo português vigente. E os exemplos conhecidos dos ónus reais, o apanágio do cônjuge sobrevivo, a reserva de quantia sobre coisa doada, a contribuição autárquica, a taxa municipal de conservação de esgotos, etc., apoiam solidamente a tese de que a prestação do ónus real consiste somente num dare. Nada disto impede, naturalmente, os interessados de convencionarem que o titular de um direito real sobre um prédio fique, nessa qualidade, obrigado a realizar um facere a favor de outra pessoa. O direito do credor não constitui, no entanto, um ónus real, na aceção técnica da figura e a situação não se diferenciará de qualquer outra obrigação, sujeita ao regime comum do Direito das Obrigações. Estamos, assim, em condições de definir ónus real: o ónus real é o direito de exigir a entrega, singular ou periódica, de coisa, em géneros ou dinheiro, a quem for o titular de um direito real de gozo sobre um prédio. O ónus real tem por objeto uma prestação de dare, como dissemos. A coisa a entregar pode ser uma qualquer, em regra, será dinheiro, como mostram os exemplos acima indicados. O ónus real atinge o titular de um direito real sobre um prédio, impondo-lhe uma obrigação de entrega de coisa. A determinação do sujeito passivo da obrigação pela titularidade de um direito real de gozo sobre um prédio permite falar numa situação jurídica propter rem. Por último, o titular do ónus real não beneficia de um direito real concorrente sobre o prédio ou, pelo menos, a prestação correspondente ao ónus não lhe é devida nessa qualidade. Se assim fosse, estaríamos perante uma obrigação propter rem. Por isso dissemos que o cânon superficiário não constitui um exemplo de ónus real. Os ónus reais conferem ao titular o direito de exigir a entrega de coisa seja qual for o titular do direito real de gozo sobre o prédio. Por conseguinte, havendo uma transmissão do direito real, o novo titular está obrigado a cumprir a prestação ao credor, ainda que exista mora anterior à transmissão, ou seja, mesmo que o crédito se haja vencido antes do novo titular ter adquirido o seu direito. Deste modo, a transmissão do direito real sobre o prédio gravado com o ónus real não surte efeito liberatório. O ónus real continua a ser exigível ao titular do direito real. Henrique Mesquita afirma que o que distingue as obrigações reais dos ónus reais é o facto de a estes últimos estar acoplada uma garantia real. O ónus real conferiria ao titular uma garantia sobre a coisa, o que não sucederia nas obrigações propter rem. Demos anteriormente as nossas definições de obrigação propter rem e de ónus real e mantivemos as figuras diferenciadas. Não voltaremos a este ponto; o que nos interessa agora é somente aferir se o ónus real comporta uma garantia a favor do beneficiário. A primeira dificuldade reside em saber de que garantia se trata, havendo um numerus clausus de garantias reais. A segunda dificuldade encontra-se na formalização da garantia real e na sua publicidade. Resulta esta da mera constituição e registo do ónus real ou supõe, pelo menos, um registo autónomo? Um outro ponto do regime jurídico desmente a integração da vertente de garantia do ónus real, sugerindo, ao invés, que a garantia é exterior a ele. A contribuição autárquica e os outros impostos prediais, que representam ónus reais de Direito Público, são garantidos por privilégios creditórios (artigo 744.º, n.º1 CC). É patente, neste caso, que a garantia não integra o conteúdo do ónus real, advindo da previsão específica de um direito real de garantia autónomo. Tudo isto, na ausência de dados concludentes do regime jurídico, nos leva a pensar que a garantia do ónus real só pode existir nos termos gerais, ou seja, se for convencionada pelas partes, recorrendo ao catálogo legal de garantias reais, ou se for prevista pela lei. Em caso de incumprimento do ónus real, e caso não haja garantia real constituída a seu favor, o beneficiário concorre com os credores comuns ao património do devedor, incluindo naturalmente a coisa que serve para a determinação propter rem. Discute大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão se a natureza jurídica do ónus real. As posições dos autores portugueses variam consideravelmente, quer na argumentação usada quer mesmo na categoria de direitos reais que o incluem, quando defendem a sua natureza real. Pensamos, todavia, que o problema da natureza do ónus real só tem relevo relativamente aos ónus reais de Direito Privado. Os ónus reais de Direito Publico têm a natureza que resultar do regime jurídico que os estabelece. A contribuição autárquica ou a taxa municipal de conservação de esgotos, por exemplo, constituem impostos e nenhum sentido faz discutir se têm natureza real, obrigacional ou outra. Dentro dos ónus reais de Direito Privado, o problema da natureza respeita unicamente aos denominados ónus reais puros. Os outros constituem obrigações propter rem e não têm autonomia face ao direito real em cujo conteúdo se integram. Posto isto, começamos por relembrar o que deixámos explicitado atrás. A natureza real provém de um dado estrutural: os direitos reais são direitos subjetivos que têm coisas corpóreas por objeto. Se a coisa não está implicada no objeto do direito, ainda que proporcione um aproveitamento ao titular do direito, como sucede na locação ou no comodato, o direito não é real. Como dissemos atrás, não perfilhamos a tese de que a inerência seja suficiente para a qualificação de uma situação jurídica como real. Parece-nos, aliás, que tal afirmação é inexata. Um direito tem inerência porque o seu objeto é uma coisa corpórea e não se dissocia dela e não porque é inerente. Ora, o objeto do ónus real é uma prestação. O ónus real impõe ao titular de um direito real de gozo sobre um prédio um dever de entregar uma coisa ao credor. Em contrapartida, este tem o poder de exigir a entrega. É incorreto dizer que este poder é inerente. O poder dirige-se contra o devedor, para que este realize a entrega, e não contra a própria coisa, como sucede nos verdadeiros direitos reais. Nos ónus, a coisa serve apenas para determinar a titularidade passiva do ónus real e não para facultar qualquer forma de aproveitamento da mesma. A utilização da coisa para a determinação do sujeito passivo de uma obrigação não pode ser confundida com inerência. Trata-se apenas do caráter propter rem do ónus real. Menezes Cordeiro supôs ter ultrapassado este escolho argumentativo distinguindo, na esteira de Oliveira Ascensão, entre o ónus real, como fonte de créditos, e estes. O primeiro teria uma natureza – real – diferenciada da natureza dos créditos. Não podemos concordar com esta construção, pois o ónus real não se distingue do poder de exigir a prestação de entrega de coisa, confundindo-se com ele. Não existe, assim, um ónus real e um crédito ou créditos à entrega; o que existe é tão-somente o ónus rel. Assentando numa relação jurídica, dando a um credor o poder de exigir uma atividade (prestação de dare) e ao titular do direito real de gozo sobre um prédio (devedor) o dever de realizar aquela, o ónus real tem natureza obrigacional. A coisa não só não integra o objeto do direito do credor como se limita a servir o propósito de determinar o sujeito passivo da obrigação. Em termos de construção jurídica, não teria de ser assim. O ónus real poderia incidir sobre a própria coisa, atribuindo, por exemplo, uma parcela dos frutos ao titular do direito. Seria, nesse caso, um direito real de gozo. A dissociação do objeto do ónus – a prestação – e a coisa não permite firmar, no entanto, a natureza real dos ónus reais usualmente indicados. A evolução portuguesa posterior ao período feudal, a partir do liberalismo oitocentista, foi eliminando progressivamente os ónus reais. Considerados socialmente indesejáveis, por manterem a propriedade sujeita a uma teia de vínculos, eles foram sendo revogados, apesar de ainda no domínio do Código de Seabra se haver mantido uma confusão terminológica entre ónus reais e direitos reais menores. Essa tendência, comum aos países latinos, não contagiou o Direito alemão e o Direito Suíço. Na Alemanha, o BGB mantém ainda uma secção destinada aos ónus reais, o mesmo acontecendo no Código Civil Suíço. Atualmente, os ónus reais só existem quando a lei os preveja. Pode falar-se, assim, numa tipicidade ou taxatividade dos ónus reais. Esta tipicidade não advém, todavia, do facto de os ónus reais serem direitos reais, não o são, como vimos no ponto anterior, mas sim da regra, segundo a qual, ninguém pode ficar obrigado por 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão uma convenção celebrada por outra pessoa senão nos casos previstos na lei (artigo 406.º, n.º2 CC). Deste modo, os ónus reais só podem ser validamente convencionados nos casos legalmente contemplados. Fora destes casos, as obrigações que vinculem o titular de um direito real em atenção à coisa objeto do seu direito ficam sujeitas as regime comum.

Pretensões reais: o sistema científico português de Direitos Reais manteve-se tradicionalmente distante da doutrina alemã das pretensões. Encontramos, todavia, algumas referências à figura em Oliveira Ascensão, Henrique Mesquita e Santos Justo. A violação do direito real pode, porém, motivar pretensões destinadas a obter a restituição da coisa ilicitamente na posse ou detenção de terceiro. É o que tipicamente sucede com a ação de reivindicação, na qual o reivindicante solicita do possuidor a entrega da coisa, ou na ação possessória de restituição, que tem o mesmo pedido. Tanto na ação de reivindicação como na ação possessória de restituição o autor exerce uma pretensão à entrega da coisa. Essa pretensão decorre do exercício do direito real e não está dependente de um devedor determinado. Tratase, por isso, de uma pretensão real. A pretensão real também pode existir na contestação à existência de outro direito real, na ação negatória, como na afirmação da sua existência, na ação confessória. Para além destes casos, existe pretensão real sempre que o titular de um direito real exerce este direito contra terceiro. A pretensão real tem o seu fundamento numa situação jurídica real que é exercida contra alguém. Supomos que os casos apresentados mostram que não é necessário existir uma violação do direito real ou que esteja sempre em causa a entrega da coisa indevidamente com um terceiro. Diremos, assim, que sempre que o titular de um direito real realize um pedido processual contra terceiro com fundamento nesse direito estamos defronte de uma pretensão real. Com esta formulação, afastamo-nos da construção de Henrique Mesquita, que vê nas pretensões reais relações creditórias que têm o seu fundamento no regime específico dos direitos reais. Não vemos, de resto, como no âmbito de uma ação confessória ou negatória se possa vislumbrar uma relação creditória entre as partes. Por conseguinte, assim como consideramos as obrigações propter rem partes do conteúdo do direito real, ligamos as pretensões reais ao exercício judicial do direito real, sem envolver o regime obrigacional só porque uma conduta de alguém é requerida. De outro modo, o exercício do direito real contra alguém só poderia ser explicado com recurso ao esquema obrigacional, o que contraria a autonomia não apenas normativa como dogmática de Direitos Reais. A exigência de cumprimento de deveres de conduta com base em direito real não transforma a relação jurídica subjacente numa relação obrigacional. A pretensão real representa uma manifestação processual do exercício do direito real e está sujeita ao regime jurídico de Direitos Reais.

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Secção VI – Outros Efeitos Resultantes dos Direitos Reais: As situações jurídicas propter rem Generalidades: as situações jurídicas propter rem correspondem àquelas situações jurídicas cujo sujeito ativo ou passivo é determinado em virtude da titularidade de um direito real. Correspondem assim a situações em que a existência do direito real atribui ao seu titular direitos ou obrigações em relação a outrem. As obrigações propter rem:

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1. Generalidades: como primeiro exemplo de situações jurídicas propter rem temos as denominadas obrigações propter rem, as quais correspondem a obrigações em que o respetivo devedor é determinado pela titularidade de um direito real. Trata-se assim de obrigações cujo sujeito passivo é variável, correspondendo ao que for titular naquele momento de determinado direito real, o que justifica a sua qualificação como obrigações ambulatórias. 2. Evolução histórica: a figura da obrigação propter rem tem origem no Direito Romano, correspondendo às situações que eram tuteladas por uma actio in rem scripta, ação que poderia ser dirigida contra qualquer pessoa que se encontrasse em determinada situação, o que implicava que o nome do demandado não figurasse na intentio. Apesar disso, no entanto, estas ações não eram vistas como tendo caráter real, mas antes pessoal, uma vez que a respetiva pretensão tinha por base não um direito real do demandante, mas antes um direito de crédito. 3. Regime jurídico: existem inúmeras situações em que surgem obrigações propter rem no âmbito dos direitos reais: artigos 1411.º, n.º1, 1424.º, n.º1, 1472.º, n.º1, 1474.º, 1489.º, 1530.º, n.º1 e 1567.º, n.º1 CC. As obrigações propter rem, embora constituam verdadeiras obrigações, sujeitas nesse âmbito ao Direito das Obrigações, integram o conteúdo do direito real, não tendo existência isolada do mesmo. Tem sido controvertida na doutrina se as obrigações propter rem têm necessariamente um conteúdo positivo ou se poderão ter ainda conteúdo negativo, constituindo um non facere ou num pati. a. Henrique Mesquita pronunciou-se no sentido de que as obrigações propter rem teriam essencialmente um conteúdo positivo, uma vez que os deveres negativos correspondem antes a uma delimitação do próprio conteúdo do direito real; b. José Alberto Vieira considera não haver justificação para tal restrição, qualificando como obrigação propter rem a situação do usufrutuário ter que tolerar as obras e melhoramentos efetuados pelo proprietário (artigo 1471.º CC), que se traduz num pati, ou a vinculação por ele assumida de não semear o terreno a cada três anos, em ordem a manter a terra em pousio, que corresponde a um non facere. Pensamos ser esta a melhor posição. Não devem ser confundidas com as obrigações propter rem os casos de responsabilidade civil atribuídos ao proprietário que exigem um facto culposo para se poderem constituir. As obrigações propter rem fazem parte do conteúdo do direito real, uma vez que este, como situação jurídica complexa, além do seu núcleo essencial, que consiste na faculdade de aproveitamento de uma coisa corpórea, pode incluir outros elementos, entre estes se incluindo essas obrigações. Em certos direitos reais, a lei confere uma certa amplitude para a constituição das obrigações propter rem por via negocial (artigos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão 1445.º, 1485.º, 1430.º, 1564.º e 1567.º CC). Apesar disso, no entanto, as obrigações propter rem são sujeitas ao princípio da tipicidade (artigo 1306.º, n.º1 CC), apenas se podendo constituir nos casos previstos na lei. Efetivamente, uma vez que as obrigações propter rem vinculam o titular do direito real enquanto tal, não são sujeitas ao princípio da autonomia privada, dado que não seria adequado estabelecer encargos sobre os bens fora do âmbito em que a lei o permite, e em relação aos quais não seria possível conferir a necessária publicidade. Caso venham a ser constituídas obrigações propter rem fora das hipóteses em que a lei o admite, as mesmas serão consideradas obrigações pessoais comuns, não adquirindo a natureza propter rem (artigo 1306.º, n.º1, in fine CC). As obrigações propter rem acompanham o direito real de que fazem parte nas suas vicissitudes, permanecendo ligadas a este. Em consequência dessa ligação, as obrigações propter rem são transmitidas em caso de transmissão do direito real, passando a vincular o novo adquirente desse direito. No entanto, se a obrigação propter rem se venceu enquanto a coisa estava na titularidade do alienante, já não aprece que aquela seja transmitida com o direito real, uma vez que o vencimento da mesma implicou que ela passasse a vincular pessoalmente o titular do direito. Em virtude da ligação das obrigações protper rem ao titular do direito real, as mesmas extinguem-se em consequência da extinção desse direito. É, aliás, possível em certos casos ao titular do direito real extinguir intencionalmente o direito, precisamente no intuito de se exonerar da obrigação propter rem (artigos 1411.º, n.º3, 1472.º, n.º3 e 1567.º, n.º3 CC). Não parece, porém, que a renúncia liberatória possa exonerar o titular em relação a obrigações propter rem já vencidas, mas apenas em relação àquelas que no futuro se vencem. As obrigações propter rem podem ainda extinguir-se por ter sido constituído, por via negocial ou por usucapião, um direito real com elas incompatível, como sucede com as servidões desvinculativas. Em virtude da ligação das obrigações propter rem aos direitos reais não parece possível a sua extinção por prescrição. 4. Natureza jurídica: em relação à natureza jurídica das obrigações propter rem, têm surgido na doutrina as seguintes construções: a. A teoria realista: as obrigações propter rem correspondem a verdadeiros direitos reais, uma vez que não há obstáculo a que o direito real tenha por objeto um facere, podendo haver direitos reais in faciendo. Não se trataria de obrigações, uma vez que são geradas pela propriedade, resultando de uma oneração dessa mesma propriedade. O facto de essas obrigações poderem ser extintas pela renúncia liberatória ao direito demonstraria que as mesmas não podem ser qualificadas como obrigações pessoais, uma vez que são inerentes às coisas e não às pessoas. Próximo desta teoria encontra-se entre nós Henrique Mesquita, para quem o conceito de direito real compreende não apenas os poderes conferidos ao seu titular e as restrições e limites a que está sujeito mas também as vinculações de conteúdo positivo (as obrigações reais) que sobre ele recaiam. A sua posição foi seguida por José Alberto Vieira que defendeu explicitamente a natureza real desta figura. b. A teoria personalista: as obrigações propter rem correspondem a verdadeiras obrigações, uma vez que nelas existe o dever de uma pessoa realizar uma prestação, sendo consequentemente submetidas ao regime geral das obrigações. Existe efetivamente a especialidade de a pessoa do devedor ser determinada através da relação com uma coisa, mas tal não corresponde a um direito real, uma vez que não há atribuição de um direito sobre essa coisa,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão servindo a mesma apenas para determinar o sujeito passivo da obrigação. Esta teoria foi defendida entre nós por Antunes Varela, Menezes Cordeiro, Pinto Duarte e Santos Justo. c. A teoria mista: as obrigações propter rem têm uma natureza mista, dado que recolhem elementos tanto dos direitos reais como dos direitos de crédito, podendo considerar-se como um tertium genus entre estas duas categorias de direitos patrimoniais. As obrigações propter rem consistiriam assim numa relação de natureza complexa, participando em certa medida tanto do regime dos direitos reais como do regime dos direitos de crédito. Esta posição parece ser defendida entre nós por Penha Gonçalves. d. A teoria relativa: formulada por Giorgianni, as obrigações propter rem corresponderiam a direitos reais ou direitos de crédito, consoante o critério que se adotasse. Efetivamente, os conceitos de direito real e de direito de crédito corresponderiam a uma classificação dos direitos patrimoniais, que poderia obedecer a dois critérios distintos: i. A classificação basear-se-ia na diferente estrutura dos direitos: tendo os direitos reais caráter imediato e absoluto, o que não sucederia com os direitos de crédito. As obrigações propter rem corresponderiam a direitos de crédito; ii. A classificação estaria dependente da vinculação e pertença do titular em relação a uma coisa determinada, que lhe atribuiria inerência: o que implica que o titular possa obter a satisfação do seu interesse com independência das relações de facto ou jurídicas que afetem a coisa. As obrigações propter rem corresponderiam a direitos reais. A natureza real da obrigação propter rem deve ser rejeitada dado que as mesmas têm por objeto prestações e não coisas, sendo as prestações objeto de direitos de crédito e não de direitos reais. A teoria mista deve igualmente ser rejeitada, uma vez que não há inclusão do regime da realidade na obrigação propter rem. Efetivamente, a pretensa realidade referer-se-ia apenas à origem da obrigação propter rem e não à sua natureza, uma vez que, com exclusão dessa origem, as obrigações propter rem seguem integralmente o regime dos direitos de crédito. Essa situação não deve por isso ser vista como inerência, uma vez que a ligação com a coisa constitui apenas uma forma de determinação do sujeito passivo da obrigação. Falta, por outro lado, às obrigações propter rem o caráter absoluto que caracteriza os direitos reais, uma vez que estas não são oponíveis erga omnes, mas antes se estruturam com base numa relação para com um devedor, independentemente da forma como se procede à sua determinação. A teoria relativa não é aceitável, na medida em que não toma posição sobre a distinção entre direitos reais e direitos de crédito, o que constitui uma operação prévia indispensável a qualquer tentativa de classificação. Por esse motivo, damos a nossa adesão à teoria personalista, inserindo as obrigações propter rem no âmbito dos direitos de crédito.

Os ónus reais: 1. Generalidades: ónus reais é uma expressão que a lei utiliza por vezes sem o adequado rigor. Em sentido jurídico, o ónus real constitui uma pretensão de dare, em dinheiro ou em géneros, única ou periódica, imposta ao titular de determinados bens. Tradicionalmente, o melhor exemplo de ónus real é o censo, vigente no Código de Seabra.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Hoje em dia podem considerar-se como ónus reais, no âmbito do Direito Privado, o direito a certa quantia sobre os bens doados (artigo 959.º CC) e o apanágio do cônjuge sobrevivo (artigo 2018.º CC). A lei refere expressamente a qualificação como ónus real da redução das doações sujeitas à colação (artigo 2118.º CC), mas a doutrina tem questionado essa solução. No âmbito do Direito Fiscal, constitui ainda claramente um ónus real o imposto municipal sobre imóveis, uma vez que a obrigação recai sobre o proprietário, usufrutuário ou titular do direito de superfície sobre o prédio (artigo 8.º CIMI), beneficiando os créditos de um privilégio imobiliário (artigos 122.º CIMI e 744.º CC).

2. Evolução histórica: no Direito romano, o ónus real surge no Direito Público em virtude da imposição do pagamento de certas prestações (cânones) ao povo romano, representado pelo Senado, ou ao imperador, por parte dos cultivadores de terrenos (fundi) nas províncias senatoriais ou imperiais. Esse cânon, denominado stipedium nas províncias senatoriais e tributum nas províncias imperiais funcionava como reconhecimento da propriedade (dominium) do povo romano ou do imperador sobre esses terrenos, ao mesmo tempo que permitia a sua exploração exclusiva por terceiro. Com o tempo veio, porém, a ser reconhecida a atribuição da propriedade ao cultivador, tendo o ónus real sido adquirido a natureza de imposto. No Direito Privado tem natureza de ónus real o cânon enfiteutico que o titular do domínio útil (enfiteuta) deve pagar ao titular do domínio direto (senhorio), assim como o direito deste último receber 2% do preço da alienação do domínio útil (laudemium) se não quiser preferir na sua aquisição. É também considerado ónus real o cânon atual (pensium ou solarium) pago pelo superficiário ao proprietário dos solo. Na Idade Média ocorreu uma generalização dos ónus reais, dado que a organização feudal da propriedade e a ausência de registo predial tornavam extremamente comum a proliferação de vínculos sobre os imóveis para garantia do direito a prestações por parte de certos credores. Era habitual que os senhores feudais reclamassem dos titulares de prédios rústicos prestações de facere consistentes em trabalho não retribuído. Da mesma forma, os dignatários eclesiásticos tinham direito a receber dos mesmos prestações em géneros e posteriormente em moeda, que ficaram conhecidas pelo nome de dízimos. Essas prestações eram sempre devidas pelo titular dos prédios rústicos, independentemente de quem ele fosse, sendo por isso consideradas obrigações ambulatórias, uma vez que se transmitiam com o prédio. Com a Revolução Francesa os ónus reais vieram a ser abolidos na noite de 4 agosto 1789, o que provocou que, quer o Código Civil Francês, quer os Códigos por este influenciados não contemplassem a figura. Tal não ocorreu, no entanto, com os Códigos de matriz germânica, que conservaram a figura dos ónus reais. Em Portugal, com a Revolução Liberal de 1820 e principalmente a partir do Decreto 13 agosto 2832, da autoria de Mouzinho da Silveira, procedeu-se à extinção dos numerosos encargos que incidiam sobre os prédios rústicos, como os foros, pensões, quotas, censos, razões, jugadas, teigas de Abraão, laudémios, lutuosas e quaisquer outros direitos ou prestações bem como os prazos da Coroa, relegos, reguengas, senhorios das terras e alcaidarias mores, salvo a conservação honorifica dos títulos. Essa orientação seria continuada pelo Código Civil de 1867 que proibiu, na enfiteuse, a estipulação de qualquer encargo extraordinário ou casual, a título de lutuosa, laudémio ou qualquer outro (artigo 1657.º). Esse Código conservava, no entanto, como ónus reais, o censo consignativo (artigo 1644.º) e o censo reservativo (artigo 1706.º). A avolição do censo pelo Código Civil de 1966 viria a restringir ainda mais os ónus reais, hoje restritos às figuras já indicadas.

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3. Regime jurídico: os ónus reais distinguem-se das obrigações propter rem por não fazerem parte do conteúdo de direitos reais, embora sejam igualmente constituídos em virtude da titularidade de determinados bens, aos quais permanecem ligados. Por esse motivo, enquanto que nas obrigações propter rem, o titular só fica vinculado ao cumprimento das prestações que se constituíram na vigência do seu direito, nos ónus reais o adquirente dos bens responde mesmo pelo cumprimento das prestações anteriores à sua aquisição, uma vez que sucede na titularidade da coisa a que essa obrigação se encontra unida. Por outro lado, conforme se referiu, os ónus reais atribuem preferência no pagamento sobre a coisa que gravam, estando assim acoplados a uma garantia real, enquanto que nas obrigações propter rem não existe qualquer garantia, respondendo o património do devedor em caso de incumprimento, nos termos gerais. Apesar de se encontrarem acoplados a uma garantia real, os ónus reais não se podem considerar como meros direitos reais de garantia, uma vez que não se limitam a atribuir preferência no pagamento a um credor, vinculando ainda o dono da coisa a uma verdadeira obrigação, que surge em virtude da titularidade dessa mesma coisa.

4. Natureza Jurídica: a doutrina tem discutido a natureza dos ónus reais. Podemos apontar as seguintes posições: a. Os ónus reais teriam a natureza de direitos reais: defendida, entre nós, por Menezes Cordeiro, os ónus reais seriam verdadeiros direitos reais, uma vez que neles existe inerência, dado que se produziria uma afetação jurídica de uma coisa a outrem, independentemente das situações materiais e jurídicas que afetam a coisa. Para além disso, os ónus reais possuiriam as características dos direitos reais, como a tipicidade, a sujeição a registo e a defesa através das ações reais. Uma vez que visam a aquisição de créditos, poderiam ser qualificados de direitos reais de aquisição, uma vez que aquisição de coisas pode ser (em sentido amplo) de realização pecuniária. A tese da natureza real dos ónus reais foi seguida posteriormente por Rui Pinto, que, no entanto, defende a sua qualificação como direitos reais de gozo. b. Os ónus reais teriam a natureza de obrigações propter rem: é defendida por: i.

Oliveira Ascensão: os ónus reais, embora sejam inerentes a uma coisa, não seriam direitos reais por não serem funcionalmente dirigidos a propiciar o aproveitamento da coisa.

ii. José Alberto Vieira: os ónus reais não são verdadeiros direitos reais, porque não incidem sobre coisas, sendo antes direitos a prestações, em que a ligação a coisa serve para determinar o respetivo devedor, o que apenas significa uma determinação da obrigação propter rem, não podendo ser confundida com a inerência que caracteriza os direitos reais. c. Os ónus reais teriam a natureza de obrigações propter rem, acopuladas a um direito real de garantia: defendida por Manuel Henrique Mesquita, o ónus real seria uma figura composta, englobando uma obrigação propter rem e uma garantia imobiliária. d. Os ónus reais seriam uma figura complexa, incluindo elementos reais e elementos obrigacionais: seguida por Carvalho Fernandes, qualifica o ónus real como uma figura complexa, que participa de elementos obrigacionais e de elementos reais 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão de garantia, mas estes reagem uns sobre os outros, criando um regime particular, correspondente a um ius mixium. Esta posição foi igualmente seguida por Santos Justo. Parece-nos de subscrever a terceira opção, defendida por Manuel Henrique Mesquita. Efetivamente, os ónus reais não podem ser qualificados como direitos reais, uma vez que não têm coisas corpóreas como objeto, sendo antes verdadeiras obrigações, cuja especialidade consiste em o devedor ser determinado em função da titularidade de um direito real. Só que essa situação não pode ser confundida com a inerência nos direitos reais, uma vez que não permite ao titular do ónus qualquer aproveitamento da coisa, mas apenas a possibilidade de exigir a realização de uma prestação ao seu titular. No entanto, conforme se referiu, aos ónus reais encontra-se associada uma garantia real, que incide sobre a coisa gravada com o ónus, o que implica que os ónus reais devam ser qualificados como créditos constituídos propter rem, acopulados a uma garantia real.

As pretensões reais: conforme se referiu, os direitos reais, tendo caráter absoluto, são essencialmente tutelados por deveres genéricos de respeito, o que exclui que o titular do direito possa exigir de outrem qualquer prestação, ao contrário do que sucede nos direitos de crédito. A situação altera-se, no entanto, a partir do momento em que se verifique a violação do direito real, a qual atribui ao seu titular o direito de exigir a cessação da violação, a restituição da coisa, e uma indemnização pelos danos causados. Daqui resulta que os direitos reais, tendo caráter absoluto, permitem, no entanto, atribuir pretensões de caráter relativo, com natureza obrigacional. São das denominadas pretensões reais. As pretensões reais são direitos relativos, que têm apenas a especialidade de ser originadas pelo direito real, estando consequentemente a ele ligadas. Não fazem, no entanto, parte do conteúdo desse direito real, o qual pode ser plenamente exercido, sem que alguma vez dê origem a uma pretensão dessa natureza. Sendo direitos relativos, as pretensões reais são sujeitas primordialmente ao regime dos direitos de crédito, salvo quando existam disposições específicas relativas aos direitos reais, ou a aplicação do regime obrigacional não se harmonize com os princípios gerais do Direito das Coisas. Assim, as pretensões reais estão sujeitas às normas sobre o cumprimento das obrigações (artigos 762.º e seguintes CC), sendolhes igualmente aplicável o regime da mora do devedor (artigos 804.º e seguintes CC) e da mora do credor (artigo 813.º e seguintes CC). Mas as pretensões primárias resultantes dos direitos reais, como a ação de reivindicação ou a ação negatória, não podem ser cedidas a terceiro, sendo apenas possível atribuir procuração para o seu exercício. Já as pretensões secundárias, como o direito de indemnização por responsabilidade civil, podem ser objeto de cessão, nos termos gerais (artigos 577.º e seguintes CC). A mesma solução deve ser adotada em relação à prescrição, a que só estão sujeitas as pretensões secundárias (artigo 498.º CC). Já as pretensões primárias, como a reivindicação, são imprescindíveis, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião (artigo 1313.º CC). Não é aplicável, por outro lado, às pretensões reais o regime da indemnização por incumprimento, constante dos artigos 798.º e seguintes CC. Efetivamente, a indemnização por incumprimento pressupõe a violação de uma obrigação previamente constituída, enquanto que as pretensões reais surgem diretamente em resultado da violação do direito real.

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Secção III – Conceito e Estrutura do Direito Real Generalidades: trata-se de uma questão bastante discutida no âmbito da evolução do direito, e cujo debate se tem repetido ciclicamente. De uma forma geral, a discussão tem assentado entre centrar o conceito de direito real na relação com a coisa que é seu objeto, ou antes na sua eficácia erga omnes, expressa através das ações reais, ou dos deveres de respeito que incidem sobre terceiros, havendo ainda posições que procuram conciliar as diversas vertentes.

A teoria clássica do direito real como relação entre uma pessoa e uma coisa: inicialmente, o jusracionalismo estabeleceu a divisão entre os direitos reais e os direitos de crédito com base na natureza ontológica das relações que estabelecem, considerando que os direitos reais se estruturam com base na relação de uma pessoa com uma coisa, enquanto que os direitos de crédito tomam antes por base relações entre pessoas. A contraposição das actiones in rem e in personam corresponderia assim a uma consequência da natureza deste direito. Uma vez que o direito de crédito assentava na obligatio e esta era vista como uma vinculação de uma pessoa em relação ao seu credor, o exercício desta era tutelado por uma actio in personam. Pelo contrário, o direito real estruturava-se na relação entre a pessoa e a coisa, através da qual esta era afetada ao sujeito, o que implicava que a mesma fosse tutelada pela actio in personam, a qual poderia ser dirigida contra qualquer pessoa, bastando que se encontrasse na posse da coisa. Como expoente dessa conceção temos Grotius, para quem «o direito real é um direito de propriedade entre uma pessoa e uma coisa, sem relação necessária com outra pessoa».

A crítica à teoria clássica e a configuração do direito real como uma relação absoluta: a conceção clássica veio a ser, no entanto, posta em causa ainda no jusracionalismo, quando passou a prevalecer a doutrina de que, quer as relações jurídicas, quer os direitos subjetivos, não se poderiam estabelecer entre pessoas e coisas, antes se estabelecendo necessariamente entre pessoas. Esta foi logo a conceção de Puffendorf que salientou que, sendo a propriedade uma qualidade moral, apenas poderia ser estabelecida em relação a pessoas, atribuindo ao titular o direito a dispor da coisa e aos não titulares a obrigação de se absterem de intervir sobre a mesma. Já com as coisas não se estabeleceria qualquer relação, sendo estas simples objetos dos direitos e obrigações. Assim, a propriedade seria uma relação exclusivamente entre pessoas, dado que a vontade humana nunca pode ter coisas como objeto direto, antes se estabelece em conjugação com outras vontades, ou seja com outras pessoas, com as quais entre a em relação. A propriedade não seria uma qualidade natural, mas antes uma instituição, dado que a substância física das coisas não seria alterada, independentemente das mutações que a propriedade das mesmas viesse a suportar. A propriedade das coisas resultaria assim sempre de uma convenção, expressa ou tácita, entre pessoas. Também Kant considerou que, embora nos direitos reais parecesse existir uma relação da pessoa com uma coisa, na verdade o que existia efetivamente era uma vinculação dos outros para com o proprietário da coisa, na medida que este, através da vindicatio, poderia exigir a qualquer possuidor dela que procedesse à sua entrega. Desta formulação de Kant resulta logo a importância da reivindicação para a configuração do direito real, sendo abandonada a doutrina que o via como um direito sobre a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão coisa, para passar a ser visto como um direito contra qualquer possuidor da coisa, passando assim a oponibilidade erga omnes a constituir a característica distintiva do direito real.

O debate entre Thibaut e Feuerbach sobre a importância da actio para a configuração do direito real: extremamente importante para a configuração do direito real veio a ser a polémica entre Thibaut e Feuerbach no início do século XIX.

1. Thibaut abandona a conceção tradicional, que distinguia o ius in re e o ius in personam pelo facto de que o primeiro seria um direito sobre uma coisa, enquanto que o segundo teria por objeto a ação de uma pessoa, para estabelecer essa distinção apenas com base na ligação à actio que os tutelava, baseando-a assim na contraposição romanística entre as actiones in rem e in personam. Neste enquadramento, o direito real seria aquele que era tutelado por uma actio in rem, enquanto que o direito de crédito seria aquele que era tutelado por uma actio in personam. O que caracteriza assim o direito real seria apenas o facto de ser tutelado pela ação de reivindicação, o que implicava que o mesmo não se restringisse a coisas, podendo abranger situações relativas a pessoas tuteladas por essa ação, como o poder paternal, tutelado pela vindictio filii. Desta construção retirou Thibaut a configuração do direito real como um direito absoluto, dado o facto de ser tutelado por uma ação absoluta. 2. Feuerbach vem a criticar Thibaut, sendo que para Feuerbach, o estabelecimento da distinção entre direitos reais e direitos de crédito apenas com base na classificação romana das actiones conduziria a estabelecer uma distinção meramente formal, vazia e sem qualquer utilidade para o Direito alemão, onde essas fórmulas já não existiriam. Ora, mesmo no Direito Romano, seria possível estabelecer uma distinção entre os direitos reais e direitos de crédito, que seria a causa das respetivas ações e que por isso seria independente das mesmas. Uma ação pessoal resultaria de uma obrigação, que vincularia uma pessoa para com outra à realização de determinada conduta, positiva ou negativa, e que por isso apenas contra essa pessoa teria validade. Pelo contrário, uma ação real seria aquela que resultaria de um direito que se situaria exteriormente a uma obrigação, permitindo que alguém diga em relação a um objeto que este lhe pertence. Consequentemente, o direito real seria um direito sobre determinado objeto, que teria validade contra todas as pessoas, mediante o qual o seu titular poderia ser considerado em relação com todos os outros seres humanos. O direito real estabeleceria assim exigências jurídicas em relação a sujeitos indeterminados: qualquer pessoa teria o dever de reconhecer esse direito, não perturbar o seu titular, contestando-o, e não limitar por qualquer forma o seu exercício.

A discussão doutrinária em torno do direito real após a pandectística alemã: 1. Generalidades: após a pandectística alemã, o debate em torno do direito real centra-se em função das seguintes teses: a. A teoria do poder direto e imediato sobre uma coisa: considera que o que caracteriza o direito real consiste na circunstância de ele recair direta e imediatamente sobre uma coisa corpórea, ou seja, não necessitar da colaboração de ninguém para ser exercido, contrariamente ao direito de crédito que não se pode exercer sem a colaboração do devedor. No direito real, o seu titular teria poderes que exerceria direta e imediatamente sobre a coisa, dispensando a colaboração de qualquer outro sujeito para o fazer. Esta conceção foi defendida por Wächeter, que define a propriedade como um

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão poder jurídico imediato sobre uma coisa corpórea, que se estabelecia independentemente de quaisquer outras relações existentes. A esta tese veio aderir Dernburg, que sustentou que os direitos reais implicam a atribuição imediata de uma coisa aos seus titulares, implicando que estes a tenham em sentido jurídico, mesmo quando a mesma se encontre na posse de um terceiro. A doutrina do poder imediato foi seguida igualmente por Puchta, Vangerow, Arndsts, e Neuer, e esteve na base do Código Civil Alemão. Em Portugal, a teoria clássica veio a ser adotada por Guilherme Moreira, José Tavares, José Gabriel Pinto, Luis Pinto Coelho e Fernando Pessoa Jorge. A teoria do poder imediato tem sido, porém, criticada com o argumento do que é excessivamente empírica, na medida em que baseada na relação com a coisa, não explica a forma como são juridicamente atribuídos ao titular os poderes que sobre ela tem. b. A teoria do poder absoluto: considera que o que caracteriza o direito real não é a relação com a coisa, mas antes a relação com os outros sujeitos da ordem jurídica, através da qual o titular teria a faculdade de exigir dos outros sujeitos que se abstenham de, por alguma forma, perturbar o exercício de poderes sobre a coisa. Haveria assim uma relação entre o titular do direito real e todos os outros sujeitos da ordem jurídica, ou pelo menos todos aqueles que se encontrem em condições de lesar o seu gozo sobre a coisa, sendo essa relação que explicaria juridicamente os seus poderes sobre a coisa. A teoria do poder absoluto tem raízes em Pufendorf e Kant, fundando-se modernamente na crítica de Windscheid à teoria clássica. Para Windscheid, não faria sentido configurar o direito real como um direito sobre uma coisa. Efetivamente, a relação jurídica não pode existir entre uma pessoa e uma coisa, uma vez que as relações estabelecem-se sempre entre pessoas. Em consequência, o conteúdo do direito real só poderia ser negativo, valendo para outras pessoas não estabeleceria por isso poderes, mas apenas atribuiria deveres de abstenção a terceiros, determinando-os a respeitar o gozo da coisa por parte do seu titular. O direito real seria assim um dever universal de respeito ou uma obrigação passiva universal. Na Alemanha, a tese de Windshceid vem a ser expressamente adotada por Fuchs que, em crítica à exposição de motivos do Código Civil Alemão, sustenta igualmente que o direito real nunca poderia consistir num poder imediato sobre uma coisa, já que tal não passaria de um facto, uma vez que todos os direitos se baseiam numa relação entre pessoas, havendo apenas que distinguir se se dirigem contra uma pessoa determinada ou contra uma infinidade de pessoas. Esta tese foi igualmente seguida por Regelsberger, para quem qualquer direito subjetivo se basearia numa vinculação de pessoas, havendo apenas que distinguir se apenas, várias ou todas as pessoas estariam vinculadas ao titular. Uma variante extrema desta teoria é a conceção de Thon para quem nos direitos reais não existem faculdades, mas apenas proibições, sendo importa pela ordem jurídica a todos os sujeitos, menos ao titular do direito, uma proibição de ingerência nas coisas que constituem o objeto do direito. O autor defende consequentemente que a propriedade não consiste num direito contra os outros sujeitos da ordem jurídica, mas apenas numa proibição de ingerência nas coisas alheias, cuja violação desencadeia as ações reais, não tendo o titular qualquer pretensão contra terceiros antes dessa violação. O proprietário seria assim apenas aquele que estaria protegido por normas contra o gozo da coisa por terceiros, não representando o direito de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propriedade nada mais que essa proteção normativa. A doutrian do poder absolutivo veio a ser seguinda na França por Demogue, o qual sustenta a inexistÊncia de uma diferença de natureza entre os direitos absolutos e relativos, sendo apenas antes duas variantes da mesma situação, sendo que numa se estabelece um conteúdo forte e na outra um conteúdo fraco. Para o autor seria falsa a conceção de que os direitos reais se distinguem dos direitos de cre´dito por incidirem sobre coisas, uma vez que tal implicaria confundir o direito com o seu objeto. Não haveria efetivamente direitos sobre coisas, resultando o direito antes de ações e omissões humanas, e servindo a coisa apenas para especificar o seu contéudo. Os direitos seriam assim sempre relações entre pessoas, distinguindo-se o direito real do direito de crédito por ser, enquanto direito absoluto, uma relação mais forte, já que é oponível a todos e não apenas a uma pessoa. Em França esta teoria teve como expoente máximo Planiol, que considerou o direito real como uma relação relação jurídica entre o titular do direito e todos os outros sujeitos da ordem jurídica. A doutrina do poder absoluto veio igualmente a ser seguida em Portugal por Caeiro da Mata e, ainda que com alguma hesitação por Manuel de Andrade. A teoria do poder absoluto também tem sido criticada desta vez pela sua excessiva abstração. Considera-se que é fantastico pretender a existência de uma relação entre um sujeito e todos os outros sujeitos da ordem jurídica, além de que esta conceção faz esquecer o núcleo fundamental do direito real que é precisamente a relação com a coisa. c. As teorias mistas: as teorias mistas procuram fazer a junção das duas conceções, considerando que o direito real tem um lado interno, que consiste no poder direto e imediato sobre a coisa e um lado externo, que consiste na relação com todos os outros sujeitos da ordem jurídica. As teorias mistas constituem a posição claramente dominante, na doutrina portuguesa podendo invocar-se como seus defensores Jaime de Gouveia, Pires de Lima, Inocêncio Galvão Telles, Henrique Mesquita, Antunes Varela, Orlando de Carvalho Mota Pinto, Pinto Duarte e Santos Justo. Jaime de Gouveia criticou tanto a teoria clássica como as doutrinas monistas que identificavam o direito real com a obrigação, acabando por aderir à conceção mista, reconhecendo a existência de um lado interno e externo no direito real. No entender deste autor, o direito real seria a relação jurídica que se estabelece entre o titular do direito e todas as outras pessoas que se obrigam a respeitar o poder que o titular tem de tirar da coisa, objeto do direito, todas as utilidades que a ordem jurídica consente. Também Pires de Lima sustentava a existência nos direitos reais de um lado externo e de um lado interno, ainda que fosse com base neste último que estabelecia a sua distinção em relação aos direitos de crédito. Da mesma forma Inocêncio Galvão Telles sustentava que nos direitos reais, além do elemento interno, consistente no poder sobre a coisa, há o elemento externo, consistente no dever para as outras pessoas, de respeitar o exercício desse poder. Também Henrique Mesquita defendeu expressamente a existência de um lado interno e de um lado externo dos direitos reais. Em seu seguimento, Antunes Varela referia que ao elemento externo há que juntar o lado interno do direito, se quisermos dar do estatuto real um retrato em corpo inteiro. Da mesma forma Orlando de Carvalho escrevia que como em todos os direitos, é preciso atender, no direito real, à sanção e ao conteúdo, à protectio e ao licere, ao lado externo e ao lado externo, ou com mais precisão, ao seu lado instrumental e ao seu lado essencial. Carlos Mota Pinto 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão definia o direito real como o poder de exigir de todos os outros indivíduos uma atitude de respeito pela utilização da coisa em certos termos por parte do titular ativo, o que corresponderia ao lado externo do direito. Mas para delimitar os termos da utilização da coisa, haveria que determinar conteúdo dos poderes atribuídos ao seu titular, que variam consoante o direito real em questão, o que corresponderia ao lado interno do direito. Pinto Duarte, embora considere inútil pretender estabelecer, sobretudo à partida, o conceito de direito real, entende tomar como instrumento de trabalho a conceção eclética, que é dominante. O autor enfatiza que os chamados lado interno e lado externo do direito real são incindíveis: os poderes sobre a coisa (lado interno) só têm a chamada natureza real na medida em que a sua oponibilidade a terceiro (lado externo) também seja protegida pelo direito. Finalmente também Santos Justo considera que a doutrina eclética retrata com maior fidelidade o regime jurídico dos direitos reais. A estas teorias tem-se apontado como crítica o facto de, juntando as duas conceções, poderem ser sujeitas às mesmas críticas de qualquer das anteriores. d. Novas orientações: a doutrina portuguesa mais recente tem vindo a adotar novas formulações para explicar a configuração do direito real. Como pioneiro destas novas orientações temos Manuel Duarte Gomes da Silva, defensor de uma nova conceção de direito subjetivo como a situação resultante da afetação de um bem a um fim, considerando que a mesma não se confunde com o poder, que se refere apenas à licitude do agir. Este autor definia consequentemente o direito real a partir do objeto do direito subjetivo, considerando que só pode ser real o que representa a afetação da coisa a um fim. Neste sentido temos a inerência do direito à coisa. O bem afetado pela lei à realização do fim à própria coisa. A posição de Gomes da Silva viria a ter grande influencia na doutrina posterior. Oliveira Ascensão opõe-se, porém, a esta definição, considerando que dela resulta apenas uma definição do direito real segundo o seu objeto, quando o essencial é o seu conteúdo. Mas a definição apresentada pelo autor não assenta no conteúdo do direito real, mas antes nas suas características. Os direitos reais seriam, a ser ver, em primeiro lugar direitos absolutos, uma vez que seriam oponíveis erga omnes, o que os permitiria distinguir dos direitos de crédito, em que falta essa característica. Para além disso, os direitos reais seriam direitos inerentes a uma coisa, que leva a que o direito real siga a coisa onde quer que ela se encontre e prevaleça sobre eventuais direitos de crédito que à mesma se refiram. O autor reconhece, porém, que a inerência também existe fora dos direitos reais, como nos ónus reais, o que o leva a apontar ainda uma outra característica, a funcionalidade, a qual consiste na estruturação do direito por forma a fazer o titular participar nas vantagens da coisa. O autor define assim os direitos reais como direitos absolutos, inerentes a uma coisa e, funcionalmente dirigidos a outorgar vantagens intrínsecas desta ao titular ou como direitos absolutos, inerentes a uma coisa e funcionalmente dirigidos à afetação desta aos inerentes do sujeito. Menezes Cordeiro, mostrando-se bastante influenciado pela definição de direito subjetivo de Gomes da Silva, definiu inicialmente o direito real como a afetação jurídico-privada de uma coisa corpórea aos fins de pessoas individualmente consideradas. Posteriormente, viria a reformular essa conceção, definindo o direito real como uma permissão normativa específica de aproveitamento de uma coisa corpórea. A posição de Menezes Cordeiro influenciou a doutrina posterior. Assim, Carvalho Fernandes define o direito real 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão como o poder jurídico absoluto, atribuído a uma pessoa determinada para a realização de utilidades de uma coisa corpórea. Penha Gonçalves define o direito real como situação ativa de vantagem que, tendo por seu núcleo um poder jurídico inerente a certa coisa, faculta o respetivo titular o aproveitamento, direto e exclusivo, das suas utilidades. Rui Pinto define o direito real como uma situação jurídica ativa através da qual se faz a afetação de coisas de modo inerente aos interesses de uma pessoa individualmente considerada. Também José Alberto Vieira define o direito real como aquele que atribui um determinado aproveitamento de uma coisa corpórea. 2. Posição adotada: tem razão Menezes Cordeiro, quando sustentava que o direito real representa uma permissão normativa específica de aproveitamento de uma coisa corpórea. Só que esta definição não é, porém, suficiente para caracterizar os direitos reais, uma vez que a permissão do aproveitamento de coisas corpóreas também existe em certos direitos não reais, como os direitos reais de gozo. Efetivamente, pode entender-se que o direito real é um direito absoluto, no sentido de poder ser oponível a qualquer pessoa, e incide imediatamente sobre uma coisa corpórea, à qual é inerente. Mas ao contrário do que defendeu Thibaut, no século XIX, a realidade não depende hoje da ligação a uma actio in rem, como a reivindicação, dado que a realidade também existe nos direitos reais de garantia e nos direitos reais de aquisição, os quais não se exercem através da reivindicação, mas antes respetivamente através de uma ação executiva, ou de uma ação atípica. A realidade depende, no entanto, sempre da existência de um aproveitamento jurídico de uma coisa corpórea. Esse aproveitamento, que existe, em todos os direitos reais pode ser igualmente material, como se verifica nos direitos reais de gozo, ou meramente jurídico, como sucede com os direitos reais de garantia e de aquisição. Já nos direitos pessoais de gozo, como a locação e o comodato, verifica-se um aproveitamento material de uma coisa corpórea, mas não um aproveitamento jurídico da mesma, uma vez que o direito se estrutura antes com base numa relação com o locador ou o comodante. Pensamos assim poder tentar qualificar o direito real como um direito absoluto e inerente a uma coisa corpórea, que permite ao seu titular determinada forma de aproveitamento jurídico desta

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Capítulo III – Os Princípios de Direitos Reais A relevância dos princípios normativos no sistema científico de Direitos Reais : a partir de meados do século XX, uma parte significativa da doutrina alemã quebrou um pouco da insipiência dogmática que caracterizava o ensino de Direitos Reais desde a pandectistica, assente sobretudo na exposição sequenciada de cada um dos direitos reais em especial, introduzindo o estudo dos princípios normativos deste ramo de Direito. Situámos esta tendência na obra de Fritz Baur, mas constatamos antecedentes anteriores, pelo menos Endemann. A partir daqui, os jusrealistas alemães, na sua maioria, começaram a expor os princípios estruturantes deste ramo de Direito. Em Portugal, foi no ensino de Direitos Reais da Faculdade de Direito de Coimbra que primeiro surgiram ecos desta corrente. Henrique Mesquita dedicou quatro páginas a expor os princípios concentrando-se da publicidade. Pouco tempo depois, Orlando de Carvalho viria a dedicar maior desenvolvimento à apresentação desta matéria. Este professor analisa sucessivamente o princípio que denomina da coisificação, o princípio da especialidade ou da individualização, o princípio da compatibilidade ou da exclusão, o princípio do numerus clausus ou da taxatividade, o princípio da causalidade, o princípio da consensualidade e o princípio da publicidade. Mota Pinto e, mais recentemente, Santos Justo inseriram igualmente um capítulo dedicado aos princípios gerais de Direitos Reais. Em Lisboa, particularmente no seu ensino na Faculdade de Direito da Universidade Católica, Menezes Cordeiro, embora apenas mencione três, a inerência, a publicidade e a tipicidade, rejeitando outros, nomeadamente, a absolutidade. Não nos cansamos de elogiar os impactos positivos desta orientação no sistema científico de Direitos Reais. Um ensino estruturado em princípios materiais previne a tentação de obter o Direito com recurso exclusivo a esquemas lógico-formais. Na medida em que revela as coordenadas valorativas do sistema interno combate positivismos de teor normativista. Por outro lado, escusado será dizer que o conhecimento dos princípios aumenta as potencialidades da denominada interpretação sistemática, pela conjugação de dispositivos dispersos a que obriga, e melhora, deste modo, as possibilidades de realização dos fins do sistema normativo que se revelam nesses princípios. Os princípios normativos a tratar no ensino de Direitos Reais são os princípios específicos deste ramo do Direito. Naturalmente, e sem prejuízo de eventuais restrições, os princípios gerais de Direito Civil recebem aplicação em Direitos Reais. Afinal, Direitos Reais constitui uma parte do Direito Civil e os princípios deste são também os princípios daquele ramo do Direito. Assim, e a título de exemplo, o princípio da autonomia privada constitui igualmente um princípio de Direitos Reais. São os seguintes os princípios de Direitos Reais:

1. O princípio da tipicidade ou do numerus clausus: em Portugal, os particulares não são admitidos a criar as figuras com natureza real que lhes aprouver, vendo a sua autonomia privada restringida à possibilidade de escolha dos direitos reais previstos na lei. O sistema postula, assim, um número finito de direitos reais, justamente, um numerus clausus. Fala-se, então, em tipicidade: os direitos reais são típicos, só existem o que o legislador consagrar. O princípio da tipicidade recebeu consagração legal expressa no artigo 1306.º, n.º1 CC, uma raridade no Direito comparado. A sua localização a propósito do regime da propriedade explica-se em grande parte pela ausência de uma parte geral de Direitos Reais; tudo o que tem natureza geral tende a concentrar-se no direito real paradigmático: a propriedade. Apesar disso, trata-se indiscutivelmente de um princípio geral de Direitos Reais. A fórmula usada para exprimir o princípio da tipicidade no artigo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão 1306.º, n.º1 CC encontra-se desatualizada. Ela baseia-se ainda na velha doutrina do desmembramento, que vê em cada direito real menor uma parte do domínio e não um direito real a se. Por isso se fala em figuras parcelares deste direito (a propriedade) e não em direitos reais menores. Por outro lado, ela parece limitar tecnicamente a violação da tipicidade à criação de restrições a um direito real. No entanto, esta violação pode derivar igualmente de um aumento do aproveitamento permitido pelo tipo de direito real considerado, que não constitui tecnicamente uma restrição. O princípio da tipicidade tem duas vertentes. Sugestivamente, a doutrina alemã fala, a propósito: a. Na escolha do tipo (Typenzawng), e b. Na modificação do tipo (Tupenfixierung). O princípio do numerus clausus abrange as duas. A vertente mais óbvia está na proibição da criação de um direito real diferente dos que constam do catálogo legal. A autonomia privada encontra-se limitada à escolha dentro das figuras reais admitidas pelo ordenamento. A segunda vertente prende-se com o conteúdo do direito real. A tipicidade em Direito Reaais implica forçosamente que os particulares não possam compor o conteúdo do direito real a seu belo prazer, pois, a ser assim, debaixo de uma designação unitária (usufruto, superfície, etc.) abrigar-se-iam múltiplos direitos distintos. Por isso, o respeito pelo princípio da tipicidade acarreta a proibição de modificar o conteúdo injuntivo típico do direito real previsto na lei. Em todo o caso, importa fazer uma ulterior precisão. O tipo, cada tipo, de direito real resulta da configuração imprimida pelo seu conteúdo, que se revela através da interpretação do regime jurídico que o institui. Porém, nem todo o regime jurídico de cada direito real conforma o tipo respetivo. Para essa tarefa apenas relevam as normas interpretativas. O que obriga a distinguir o conteúdo injuntivo do tipo de direito real e o conteúdo supletivo. A autonomia privada dá aos particulares a possibilidade de se moverem livremente no âmbito supletivo do regime de cada tipo de direito real, mas esta afastada naquilo que respeita ao tipo injuntivo do direito real. De outra forma, a tipicidade seria atingida, uma vez que os particulares acabariam por criar um direito real diferente do previsto na lei, embora eventualmente com o mesmo nome. Que normas imperativas são essas que não podem ser afastadas pelos particulares? As normas imperativas são naturalmente as que moldam o tipo legal do direito real. Como o direito real é um direito que confere o aproveitamento de uma coisa corpórea, essas normas estabelecem um determinado conteúdo de aproveitamento da coisa. Contudo, como nem todo o aproveitamento permitido pelo direito real integra o tipo respetivo, haverá que perscrutar a parte do conteúdo do aproveitamento que integra o tipo (conteúdo imperativo), uma tarefa que só a interpretação do regime jurídico pode solucionar relativamente a cada um dos direitos reais. A existência de um conteúdo supletivo de aproveitamento da coisa, só por si, não permite que se fale em tipos abertos de direitos reais. Discordamos, pois, de Orlando Carvalho quando este professor afirma que os tipos admitidos são, porém, tipos abertos, a não ser se com esta afirmação se queira aludir às regras supletivas constantes do regime de cada direito real. Na verdade, como quaisquer direitos subjetivos existentes, os direitos reais são tipos porque representam algumas das formas de aproveitamento possível das utilidades das coisas corpóreas, sem as esgotarem. Outras formas de aproveitamento poderiam dar lugar a diferentes tipos de direitos reais. Basta pensar em direitos reais hoje abolidos. Individualmente considerados, porém, os direitos reais não são regulados como tipos, mas sim como conceitos ou classes. Cada

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão tipo vem definido segundo o modelo concetual, com um certo número de notas distintivas. Essas notas distintivas são usualmente dadas na noção inicial com que no Direito português se inicia o regime de cada um dos direitos reais menores 3 . Elas compreendem, em regra, poderes, tendo em conta que estamos perante situações jurídicas ativas, mas pode acontecer que uma restrição, na forma de dever, surja como nota distintiva do conceito. É o que sucede com a salva rerum substantia no usufruto. As notas distintivas do conceito de direito real formam o desenho do tipo legal de direito real, o seu conteúdo injuntivo típico, como lhe chamamos. Como tal, elas não estão na disponibilidade das partes. De outro modo, esvaziar-se-ia o significado do princípio da tipicidade, normativamente consagrado (artigo 1306.º, n.º1 CC). Neste sentido, os tipos de direitos reais não são efetivamente tipos abertos, são justamente o oposto. Uma exceção surge, no entanto, na servidão predial. O artigo 1544.º CC estabelece que «podem ser objeto da servidão quaisquer utilidades… suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante». Não concretizando o gozo específico objeto do direito, dispondo que podem ser quaisquer utilidades, sem precisar o que se deva entender por utilidade, o regime da servidão predial possibilita a convenção privada de um conteúdo de aproveitame3nto que não se encontra previamente definido por inteiro. A servidão predial constitui um tipo aberto de direito real. A tipicidade trás estabilidade e segurança para a prática do sistema normativo de Direitos Reais. Estabilidade, porque os operadores jurídicos ficam rotinados a trabalhar com uma série de figuras bem demarcadas; segurança, na medida em que um número finito de figuras facilita o reconhecimento dos direitos reais e a sua punibilidade, o que pode ser importante, nomeadamente no que respeita ao funcionamento do registo predial. Todavia, com a imposição aos particulares de um catálogo legal de direitos reais, que podem ser escolhidos, mas não alterados no seu conteúdo imperativo, a lei coarta o aparecimento de novas figuras com natureza real e cristaliza as existentes. Cerceada a autonomia privada no campo de Direitos Reais, ela tende a manifestar-se através de outros esquemas, sobretudo, obrigacionais, no Direito Civil e no Direito Comercial, dinamizando o aproveitamento das coisas noutras latitudes da ordem jurídica, em detrimento deste ramo do Direito, que vai sendo secundarizado. Aqui encontra-se provavelmente uma das razões para o atraso científico de Direitos Reais e para o escasso interesse que tem despertado nos cultores do Direito Civil nas últimas décadas.

2. O princípio da inerência: os direitos reais têm por objeto coisas corpóreas. Contudo, a afetação do objeto ao direito real tem lugar de um modo particularmente intenso no regime jurídico de Direitos Reais. Cada direito real tem uma coisa determinada por objeto e, na ausência de causa legal, não pode ser dissociado ou separado dela, nomeadamente, para ter outra coisa por objeto. Esta ligação íntima entre o direito e a coisa vem usualmente denominada por inerência. A doutrina clássica portuguesa distinguia duas facetas ou lados da inerência:

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Não queremos com isto dizer que o conteúdo típico do direito real se colha somente da noção legal dada. Ao contrário, a construção do tipo de direito real faz-se defronte de todo o regime jurídico que lhe seja aplicável. Pode, por isso, suceder que as notas distintivas constantes da noção legal do direito real devam ser estendidas ou restringidas por outros preceitos.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. Um lado interno: destaca a ideia de inseparabilidade do direito e da coisa; e, b. Um lado externo: a denominada sequela. Se bem atentar esta explicação está ligada à discussão sobre as doutrinas clássica e moderna de direito real. Tradicionalmente, a sequela é vista como como a consequência dinâmica da inerência e ilustrada através de exemplos nos quais se evidencia que o titular do direito real pode ir buscar a coisa ainda que esta passe pelas mãos de várias pessoas e onde quer que ela se encontre. Achamos, porém, que este segundo aspeto, a sequela, não tem nada a ver com a inerência, mas sim com o caráter absoluto do direito real. Porquanto a lei dota o direito real de uma oponibilidade erga omnes, o titular deste direito pode fazê-lo valer contra quem tem a coisa ilicitamente. Por outro lado, o direito real pode não ter oponibilidade em alguns casos que nem por isso deixa de ser inerente a uma coisa. A posse não é oponível a terceiro de boa fé (artigo 1281.º, n.º2, parte final CC), mas é um direito com inerência a uma coisa. Vemos, assim, a partir deste exemplo, que a oponibilidade pode faltar ao direito real sem que ele deixe de ser inerente. O que mostra bem que inerência e oponibilidade absoluta são aspetos distintos do direito real, assentando em princípios diferentes. A inerência significa antes de mais que a coisa (corpórea) é objeto de um direito real e não pode ser separada dele. Se um direito real se constitui sobre uma coisa, ele só pode ter por objeto essa coisa e não uma coisa diversa. Nomeadamente, não pode ser transferido para uma outra coisa. Justamente porque o direito real é inerente a uma coisa determinada se esta perecer o direito real extingue-se. Esta solução é expressa nos artigos 1476.º, n.º1, alínea c), e alínea d) ex vi artigo 730.º e 664.º, 677.º, 752.º e 761.º CC, e deve estender-se a todos os restantes direitos reais. Em matéria de servidões prediais, o princípio da inerência aflora no artigo 1545.º, n.º1 e no artigo 1546.º CC, que estabelecem a inseparabilidade e indivisibilidade das servidões prediais. Deste modo, nos casos de mudança de servidão previstos no n.º1 do artigo 1568.º CC, em que o direito se passa a exercer noutro prédio, deve entenderse que ocorre a extinção da servidão existente e a constituição de uma outra servidão. Em alguns casos, com o perecimento da coisa, é atribuída ao titular do direito real uma outra coisa em substituição da primeira. Fala-se então em sub-rogação real especial. A questão que a sub-rogação real especial coloca é a da subsistência do direito real relativo à coisa que pereceu. Este direito mantém-se, tendo a coisa substitua por objeto, ou extingue-se? A lei portuguesa prevê algumas hipóteses de sub-rogação real especial. A primeira consta do artigo 692.º CC. Se a coisa perecer e o titular do direito real que conserva sobre a indemnização a prioridade que tinha em relação à coisa hipotecada. Pensamos ser incontestável a prioridade que tinha em relação à coisa hipotecada. Pensamos ser incontestável que a hipoteca não pode subsistir sobre o crédito indemnizatório. Neste caso, constitui-se um penhor de crédito a favor do credor hipotecário, mas a hipoteca extinguiu-se com a destruição da coisa hipotecada. Diferentemente do perecimento, a mera deterioração da coisa não implica a extinção do direito real. Se a coisa permanece a mesma, o direito real mantém-se tendo a parte restante como objeto. É o que dispõe o artigo 1478.º, n.º1 CC para o usufruto. Despojada da ideia de sequela, que nada mais traduz neste ramo do Direito que o caráter absoluto do direito real, a inerência representa efetivamente um dos princípios estruturantes de Direitos Reais. Este princípio significa, como vimos, que o regime jurídico liga de tal forma o direito à coisa que nenhum deles subsiste sem o outro. Existe, pois, uma verdadeira inseparabilidade entre o direito e a coisa que é dele objeto,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão inseparabilidade essa que redunda numa impossibilidade legal de o direito real ser dissociado da coisa, nomeadamente, transferido para uma outra, ou na extinção do direito rela em caso de perda total da coisa. Em síntese, e tendo em conta o exposto, poderíamos dizer que são dois os aspetos que estão em jogo no princípio da inerência: a. A coisa enquanto objeto do direito real; b. A inseparabilidade do direito e da coisa. E acrescentaríamos, nenhum deles tem a ver com a sequela.

3. O princípio da especialidade: com alguma afinidade com o princípio da inerência, mas com um conteúdo distinto, a doutrina alemã fala num princípio da especialidade em Direitos Reais. Em Portugal, somente alguns professores aludem a este princípio no ensino da cadeira: Menezes Leitão, Mota Pinto, Henrique Mesquita, Santos Justo e Pinto Duarte, entre outros. Ainda assim, uma boa parte das oras do ensino de Direitos Reais não deixa de mencionar que o direito real incide sobre uma coisa certa e determinada. Já desde Guilherme Moreira, pelo menos, que isso acontece. Por exemplo, Pires de Lima deixava claro que «o direito real apresenta-se sempre como um poder direto e imediato de uma pessoa sobre coisa certa e determinada». A explicação dos autores vem normalmente enquadrada na exposição sobre os caracteres do direito real, portanto, a propósito do conceito respetivo de direito real. Não vemos inconveniente em seguir a orientação alemã, enunciando um princípio da especialidade. O conteúdo que aquela doutrina afirma corresponder ao princípio da especialidade está, em grande parte, de acordo com a referência da generalidade dos autores portugueses à necessidade de existência atual e de determinação da coisa. E, por conseguinte, não apresenta, de modo algum, uma rutura com o sistema científico nacional de Direitos Reais, mas apenas um modo diferente de apresentar esta matéria. Naturalmente, não julgamos que seja indiferente comunicar um princípio de Direitos Reais ou uma característica do conceito de direito real. E discordamos de Menezes Cordeiro, segundo o qual, haveria na observação à existência atual e determinação da coisa uma mera decorrência do conceito de direito real. Um princípio material de Direito tem o conteúdo das referências normativas que o informam; ele não constitui uma mera consequência lógica do conceito de direito real. Autonomizamos o princípio da especialidade face ao princípio da inerência. Apesar de afins, o conteúdo de cada um deles não é o mesmo. Com um conteúdo próprio, o princípio da especialidade deve ser ensinado separadamente do princípio da inerência. Em primeira linha, o princípio da especialidade postula que o direito real só pode ter por objeto uma coisa com existência atual e determinada. Neste sentido, o artigo 408.º, n.º2 CC preceitua que a transferência do direito real ocorre apenas quando a coisa (coisa futura) for adquirida pelo alienante ou determinada com o conhecimento de ambas as partes. Uma coisa que não existe não pode ser objeto de um direito real. A coisa pode, porém, existir sem que o direito real esteja na titularidade do disponente. Neste caso, o negócio jurídico de disposição do direito real é válido, se a coisa for tomada como futura. No entanto, a eficácia real do negócio vem a ser deferida para o momento em que o disponente adquire o direito. Aspeto distinto respeita à determinação da coisa. Se a coisa for genérica, ainda que existente, o direito real apenas se constitui ou transmite quando a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão determinação ocorra com conhecimento de ambas as partes, sem prejuízo do regime das obrigações genéricas e do contrato de empreitada. O princípio da especialidade permite ilustrar mais um traço da distinção entre direitos reais e direitos de crédito. Ao objeto do crédito podem pertencer prestações futuras (obrigações futuras) ou indeterminadas, mas a coisa objeto do direito real tem de ser atual e determinada. Na doutrina alemã encontra-se um sentido adicional para o princípio da especialidade. Segundo um número significativo de autores, o direito real recai sobre coisa única e individualizada. Efetivamente, a escola pandectistica alemã propugnou que o direito real tivesse por objeto coisas corpóreas, como era tradição romana, afastando não somente a orientação francesa oriunda do século XVIII, que trouxera para o âmbito dos Direitos Reais a denominada propriedade intelectual ou literária e artística, cujo objeto é incorpóreo, mas igualmente a conceção prussiana e austríaca da tutela do património de uma pessoa como um todo. O Direito português seguiu a lição histórica da pandectística alemã, plasmada no BGB, limitando os direitos reais às coisas corpóreas (artigo 1302.º CC) e remetendo para outros complexos normativos a disciplina das coisas incorpóreas (artigo 1303.º CC). Ficou assente que o objeto do direito real é uma coisa corpórea. O problema subsiste, porém, nas denominadas coisas compostas. O artigo 206.º CC dispõe que «é havida como coisa composta, ou universalidade de facto, a pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma pessoa, têm um destino unitário». A uma primeira leitura, este preceito transmite a ideia de que a coisa composta integra uma multiplicidade de coisas móveis. A coisificação do conjunto não afeta a autonomia jurídica de cada coisa que o compõe. Pelo menos, é o que parece resultar do n.º2 do artigo 206.º CC, o qual admite que cada uma das coisas que integra o conjunto pode ser objeto de direitos diferentes do conjunto (podem ser objeto de relações jurídicas próprias). Tomado à letra, o artigo 206.º, n.º1 CC abona a possibilidade do direito real ter por objeto várias coisas simultaneamente, todas as que compuserem a coisa composta, dando um argumento contrário à construção de um princípio da especialidade moldado sobre a limitação do direito real a uma coisa individual. Porém, nem todos pensam assim. Henrique Mesquita avança uma formulação diversa, sublinhando que, se a lei unificar os elementos que integram o conjunto, trata-os juridicamente como se fossem uma coisa só. No fundo, haveria ainda uma única coisa – a coisa composta – e o direito real tê-la-ia como objeto. E Mota Pinto ensinava do mesmo modo. Para colocarmos corretamente o problema teremos de fazer uma breve incursão sobre o conceito de coisa composta na lei portuguesa. O artigo 206.º CC resultou do projeto de Pires de Lima, concretamente do artigo 5.º cuja redação foi transposta na íntegra. Neste preceito, Pires de Lima confessa ter-se limitado a traduzir o artigo 816.º CC italiano. Com isso, induziu, no entanto, numa confusão entre coisa composta e universalidade de facto. Segundo os romanistas, o Direito Romano apresentava uma classificação tripartida das coisas corpóreas, baseada na doutrina filosófica dos estóicos e ilustrada num conhecido trecho de Pomponius. A primeira categoria de coisas (corpora) eram as coisas simples, que constituíam unidades independentes e eram fornecidas pela natureza. A segunda categoria era dada pelas coisas compostas ex contigentibus, hoc est pluribus se cohaerentibus constat. Tratavase de uma única coisa criada artificialmente pela junção de outras coisas simples, que

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão perdiam a sua autonomia no novo conjunto. Finalmente, a terceira categoria era constituída pelas coisas compostas quod ex distantibus constat (corpora ex distantibus), coisas fisicamente separadas, mas designadas por um nome comum e tratadas como um único objeto. O exemplo clássico era o rebanho. Esta característica de unidade de um todo não homogéneo, com um nome próprio, composto por coisas que não perdem a sua individualidade apesar de integrarem um conjunto diverso, levou os medievalistas a designarem de universalidades (universitas) esta terceira categoria de coisas. A universitas, ou universitas rerum, corporea ou facti, por contraposição à universitas iruis, iurium ou incorporea, representava uma coisa distinta das suas partes componentes. Na evolução, alguma doutrina tendeu a considerar que não se justificava a individualização das coisas compostas ex contingentibus, dada a ausência de um tratamento jurídico diferenciado entre elas e as coisas simples. Se a isto acrescentarmos o tratamento especializado dos imóveis chegamos a um ponto em que a noção de coisa composta surge atinente às coisas móveis e abarca somente as coisas quod ex distantibus constat, ou seja, as universalidades de facto. Os passos que permitem a formulação do artigo 816.º CC italiano estão, assim, explicados. Pires de Lima limitou-se a dar conta do desenvolvimento específico que alguma doutrina – a mesma que levou à fórmula do artigo 816.º CC – tinha chegado. Como crítica à redação do artigo 206.º, n.º1 CC português pode-se apontar, desde logo, o olvidar da primeira categoria de coisas compostas dos romanos. As coisas compostas ex contingentibus ficam sem referência no conceito adotado de coisa composta. E essa referência tem utilidade prática. A coisa composta ex contangentibus constitui uma coisa unitária, mas representa o resultado da combinação de outras coisas, ao contrário da coisa simples. Se uma das coisas integradas na coisa composta ex contigentibus é combinada nesta última sem o consentimento do proprietário e a separação ainda é possível sem perda ou detrimento de qualquer das coisas, o regime da acessão não tem aplicação e o proprietário pode reivindica-la ou o possuidor exigir a sua restituição. Outra crítica, julgamos que a principal, está na aparente coisificação da universalidade de facto debaixo do conceito de coisa composta. A coisificação do conjunto não elimina, contudo, a independência objetiva das coisas simples que integram a universalidade. O que leva a distinguir dois níveis: o da universalidade e o das coisas que a integram. Sobre a universalidade, como coisa composta, recai um direito real unitário, que só pode ser a propriedade, havendo igualmente um direito de propriedade, distinto daquele, a incidir sobre cada uma das coisas simples. Em Portugal, uma tal doutrna, que se denominou teoria unitária, por contraposição à teoria atomística, era ensinada por Pires de Lima, vindo a ser seguida depois por Oliveira Ascensão, neste ponto, Mota Pinto e Henrique Mesquita. Julgamos, todavia, que a equiparação legal da universalidade de facto à coisa composta, como surge no artigo 206.º, n.º1 CC, só aparentemente revela uma nova coisa, superior e distinta das coisas (simples) que integram a universalidade. Para começar, não vemos como uma mesma coisa possa ser objeto de uma dupla atribuição jurídica a título de propriedade singular. Mas é o que acontece na explicação dada pela teoria unitária. Mesmo superando os problemas da dupla atribuição de direitos reais da mesma natureza sobre um objeto, constatamos que as vicissitudes jurídicas afetam exclusivamente cada uma das coisas singulares que integram a universalidade e não um pretenso direito sobre ela. Não haverá, no entanto, vicissitudes que respeitem exclusivamente à universalidade e que justifiquem a autonomia da coisa composta? Os defensores da teoria unitária defendem que sim, apontando os exemplos de doação de universalidade (artigo 1462.º CC), a que podemos acrescentar, sem dificuldade, a venda 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ou o penhor. Uma vez mais, porém, a eficácia do contrato translativo ou constitutivo de direitos reais afeta cada uma das cosias do conjunto e não este unitariamente. Se um dos animais do rebanho é propriedade de um terceiro, a doação da universalidade não produz qualquer efeito quanto a esse animal. No caso do usufruto, se um dos animais do rebanho foi dado previamente em usufruto a alguém, o usufruto do rebanho não pode abranger, pois a propriedade do animal já estava onerada com outro usufruto, que neste caso é incompatível com o segundo. O que resta, do conceito de coisa composta constante do artigo 206.º CC? Em nossa opinião, meramente a possibilidade de desencadear com uma única declaração negocial efeitos relativos a cosias diversas integradas num conjunto unitário. Este conjunto não se sobrepõe ou acresce às coisas que o integram, nem constitui o objeto de um direito unitário, vindo apenas a ser considerado para efeitos práticos que se ligam à possibilidade de dispor através de uma única declaração negocial, de todos os direitos reais (de propriedade, nomeadamente) relativos às coisas simples que o compõem, o que sucede tanto com a doação e o usufruto como com a venda ou o penhor, que não surgem explicitados na lei portuguesa. Quanto ao exercício da defesa contra a violação da propriedade ou da posse sobre todas as coisas do conjunto poder-se-á falar numa reivindicação da universalidade ou na ação de restituição desta e exemplificar com a reivindicação do rebanho ou com a restituição deste. O artigo 556.º, n.º1, alínea a) CPC admite expressamente a formulação de um pedido genérico relativamente a uma universalidade de facto. Trata-se, porém, de uma projeção meramente linguística. Em caso de defesa por meio de ação de reivindicação ou de ação possessória de restituição, o reivindicante ou o possuidor esbulhado não está liberto do ónus de determinar cada uma das coisas que se incluem na universalidade. Não é outra coisa o que resulta do n.º2 do artigo 556.º CPC, no qual se dispõe que o pedido genérico atinente à universalidade de facto deve ser concretizado, nos termos do artigo 358.º do mesmo código. Este preceito, por sua vez, obriga o autor do pedido genérico a deduzir incidente de liquidação para tornar líquido o pedido genérico, ou seja, dito de outra forma, a determinar as coisas simples que integram a universalidade. A determinação das coisas que compõem a universalidade precede a prova sobre o direito ou a posse relativamente a cada uma delas. Não é outro senão esse o propósito do incidente de liquidação. De outro modo, bastaria a prova da titularidade do direito ou da posse sobre cada uma das coisas simples que integram a universalidade e o ónus respetivo cabe naturalmente ao autor da ação. Se o demandado prova a propriedade ou a melhor posse sobre alguma ou algumas das coisas da universalidade, a reivindicação ou a restituição não terá sucesso quanto à coisa ou coisas em causa, ainda que o tenha relativamente às demais. Tudo isto elucida bem a inexistência de um direito unitário sobre o conjunto e torna inútil insistir no ponto. Mas deixa igualmente claro que a universalidade de facto não constitui uma coisa e, portanto, também não uma coisa composta. Neste ponto, a equiparação das universalidades de facto às coisas compostas no artigo 206.º CC afigura-se extremamente infeliz. Como resultado final da indagação sobre o princípio da especialidade encontramos uma limitação dos direitos reais às coisas (corpóreas) individualizadas, certas e determinadas.

4. O princípio da absolutidade: se entendermos uma situação jurídica absoluta como aquela que existe por si, sem dependência de uma outra situação de sinal contrário, então o direito real é uma situação jurídica absoluta, concretamente, um direito subjetivo absoluto por contraposição, por exemplo, aos direitos de crédito, direitos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão relativos por excelência. A contraposição entre direitos absolutos e relativos pode ainda ser analisada debaixo de três critérios: a. O da responsabilidade civil: não tem interesse para Direitos Reais. b. O da estrutura da situação jurídica considerada: atente ao modo de constituição do direito; existem direitos subjetivos que se constituem em relação jurídica e outros que se constituem fora de qualquer relacionação intersubjetiva. Debaixo de um critério estrutural, os direitos reais podem ser absolutos e relativos. Esta observação não deve surpreender, atendendo aos modos de constituição de direitos reais. A propriedade, por exemplo, pode constituir-se por ocupação, acessão e usucapião. Todos estes factos jurídicos operam a sua eficácia em contextos não relacionais, portanto, fora de qualquer relação jurídica. No entanto, também o contrato surge como fonte de constituição de direitos reais. Ora, o contrato é a fonte de uma relação jurídica entre as partes da sua eficácia real pode nascer um direito real. A relatividade que afirmamos poder existir quanto a direitos reais não deve ser mal entendida. Apenas pretendemos afirmar que o direito real se pode constituir numa relação jurídica e não que surge por contraposição a uma situação jurídica de sinal contrário. Neste aspeto e ao contrário do que sucede com os créditos, os direitos reais, mesmo quando surgem em relações jurídicas, não sofrem a incidência de outra situação jurídica passiva, correlativa a eles. Porém, ignorar a origem relacional de alguns direitos reais não ajuda a compreender corretamente a eficácia do facto constitutivo respetivo, nomeadamente, quando surja uma vicissitude extintiva do mesmo, como a resolução de um contrato de compra e venda ou de doação. Historicamente, a afirmação de que o direito real constitui um direito absoluto liga-se à sua oponibilidade erga omnes. No Direito romano a actio in rem, com o seu paradigma, a vindicatio, representava a afirmação categórica e absoluta de um direito contra qualquer terceiro que tivesse a coisa em seu poder sem título, enquanto a actio in personam era dirigida somente contra aquele que se encontrava obrigado e que, por conseguinte, se encontrava previamente determinado pela obligatio. É neste sentido que a doutrina alemã fala num princípio da absolutidade e a doutrina corrente, em Portugal e no estrangeiro, afirma que os direitos reais são direitos absolutos. A absolutidade do direito real advém da oponibilidade contra qualquer pessoa que o viole ou esteja em condições concretas de o fazer. c. O da oponibilidade: os direitos são efetivamente direitos absolutos. Eles permitem ao titular fazer vale o seu direito contra quem quer que seja que o viole, sem limitação a pessoa ou pessoa determinadas, como sucede com os direitos de crédito. Em sentido contrário, porém, pronunciou-se recentemente Menezes Cordeiro, defendendo que existem direitos reais relativos e direitos de crédito absolutos. Como exemplo de direito real relativo, Menezes Cordeiro aponta as servidões de vistas. Em nossa opinião, e com o devido respeito, julgamos que este exemplo não ilustra nenhuma relatividade. Em primeiro lugar, o preceito consagra um poder a favor do proprietário do prédio vizinho e não um direito de servidão autónomo. Mesmo que esse poder fosse relativo, no sentido de ter por sujeito passivo o proprietário do prédio vizinho, encontra-se englobado numa situação jurídica mais extensa, a propriedade, que é

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão indiscutivelmente absolutas. Em segundo lugar, e considerando agora uma servidão de vistas autónoma, com o conteúdo do artigo 1360.º, n.º1 CC, não é apenas o proprietário do prédio serviente que se encontra vinculado a ela; é todo o novo adquirente da propriedade, no caso de ela ser transmitida, assim como todos os titulares de direitos reais menores constituídos sobre o prédio serviente. Em terceiro lugar, e este pensamos ser o argumento definitivo, a servidão de vistas pode ser oposta a qualquer terceiro, nomeadamente, um possuidor formal do imóvel. Se alguém se apossa do imóvel adstrito à servidão de vistas, tendo uma mera posse formal, está tão vinculado ao respeito pela servidão de vistas como o proprietário do prédio serviente. Também neste caso o titular de servidão de vistas pode opor o seu direito ao possuidor formal. De propriedade relativa já se falou em Itália a propósito da compra de imóvel não registada, que apenas produziria efeitos entre as partes, mas já não contra terceiros. E em Portugal também se falou haver nesses casos num direito sem sequela. Todavia, atualmente, o artigo 5.º, n.º1 CRPr não retira qualquer oponibilidade ao direito real sobre imóvel cujo facto aquisitivo não haja sido registado, sujeitando unicamente o titular à resolução da sua aquisição ou uma oneração superveniente em virtude de uma aquisição tabular de terceiro, não podendo, por isso, falar-se na relatividade do direito real. No caso particular da posse, verificamos que ela não tem oponibilidade em duas situações particulares. A primeira encontra-se no artigo 1281.º, n.º2, parte final CC: «A ação de restituição da posse pode ser intentada pelo esbulhado e seus herdeiros, não só contra o esbulhador e seus herdeiros, mas ainda contra quem esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho». Utilizando o argumento a contrario, a ação de restituição da posse não pode ser intentada contra terceiro de boa fé ou, dito por outras palavras, a posse do possuidor esbulhado não é oponível a terceiro de boa fé. A segunda situação de inoponibilidade da posse atesta-se no conflito entre a posse e o direito real de gozo. Se numa ação de restituição ou de manutenção o réu invoca a exceptio dominii ou, mais amplamente, a exceção de titularidade de um direito real de gozo e faz prova do direito na ação, a posse do autor cede no confronto com o direito real (artigo 1278.º, n.º1 CC). Também se o titular do direito real de gozo intenta uma ação de reivindicação contra o possuidor da coisa, a posse deste cederá inevitavelmente (artigo 1311.º CC), não sendo oponível àquele. A inoponibilidade da posse a terceiros de boa fé não encontra justificação plausível no nosso sistema jurídico, que não consagrou o princípio posse vale título. Ela constitui hoje um trecho desarticulado do regime possessório português, apenas explicado pela sedução exercida pelo artigo 1169.º CC italiano. A não oponibilidade da posse no conflito com o titular do direito real de gozo explica-se pelo papel que ela tem no sistema de Direitos Reais. A posse consiste numa atribuição provisória de um direito real, que cede naturalmente quando o oponente demonstra um direito definitivo sobre a coisa (propriedade, usufruto, superfície, etc.). Mesmo faltando oponibilidade em algumas situações, a posse não é um direito real relativo. De resto, mesmo que o fosse, nem por isso estaria comprometida a afirmação do princípio da absolutidade em Direitos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Reais. Como salienta Canaris, os princípios não valem sem exceção; eventuais casos de direitos relativos, que julgamos não existirem, ou de direitos reais não oponíveis em algumas situações, como as que indicámos, não comprometem a afirmação do princípio. O caráter absoluto dos direitos reais, no sentido da sua oponibilidade a qualquer um que viole ou intente violar, resulta do modo como o regime jurídico estrutura defesa do titular. Nos direitos reais de gozo, a absolutidade revela-se através da defesa por reivindicação (artigo 1331.º e 1315.º CC). O titular do direito real de gozo pode demandar o terceiro que, sem qualquer direito, esteja na posse ou detenção da coisa. Ao fazê-lo, não tem de invocar e demonstrar a invalidade do título constitutivo do demandado, nem de outros anteriores; basta-lhe provar o seu direito e exigir a entrega da coisa do possuidor ou detentor que tema coisa em seu poder. A defesa do direito real confere-lhe oponibilidade geral contra terceiro, qualquer terceiro, o que caracteriza justamente o caráter absoluto de um direito subjetivo. As referências tradicionais da doutrina portuguesa à sequela não são senão modos de ilustrar o caráter absoluto dos direitos reais de gozo. Mais vale, no entanto, mencionar esta absolutidade, como princípios de Direitos Reais, a diluir as consequências da mesma por imagens, sem dúvida impressivas, mas sem conteúdo técnico preciso e mesmo tecnicamente incorretas. Nos direitos reais de aquisição, nomeadamente, na promessa real e no direito real de preferência, a oponibilidade contra terceiros advém da eficácia da ação de execução específica (artigo 830.º CC), no primeiro caso, que permite ao promitente titular do direito real demandar simultaneamente o promitente relapso e o terceiro com o qual aquele contratou, e da açaõ de preferência (artigo 1410ç.º CC), no segundo caso, que autoriza igualmente o preferente com direito real a demandar o obrigado à preferência e o terceiro com o qual este contratou. Nos direitos reais de garantia, a lei assegura ao titular a satisfação do seu crédito através dos rendimentos da coisa (consignação de rendimentos) ou do produto da venda dela (os restantes direitos reais de garantia) contra quem não tenha um melhor direito. Também estes direitos podem ser feitos valer independentemente de quem tenha a coisa em seu poder.

5. O princípio da consensualidade: no Direito romano clássico a transmissão 4 da propriedade ocorria mediante a prática de atos translativos típicos, os principais dos quais eram: a mancipatio, a in iure cessio e a traditio. O contrato produzia somente efeitos obrigacionais, constituía obrigações, mas não desencadeava a transmissão da propriedade. Celebrada a compra e venda, o comprador ficava investido num direito pessoal e o domínio era adquirido somente, quanto à res mancipi, com a mancipatio ou a in iure cessio, e, quanto às res nec mancipi, mediante a traditio ou a in iure cessio. Por sua vez, a traditio era causal, ela pressupunha uma relação com um negócio jurídico (compra e venda, doação, dote, etc.), ao contrário da mancipatio e da in iure cessio, que eram negócios abstratos, valendo independentemente da validade do negócio que lhes servia de causa. A evolução posterior trouxe alterações a esta solução. No período pré4

O Direito romano não conhecia a transmissão de direitos como hoje sucede. O comprador ou, de um modo geral, o adquirente da propriedade via constituir-se a seu favor um direito novo; em contrapartida, o vendedor ou a parte que procedia à alienação da propriedade perdia um direito com o mesmo conteúdo. A esta perda os romanos chamavam dominium transfere ou transire, fórmulas que designam atualmente a transmissão.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão justinianeu, com o declínio da mancipatio e da in iure cessio, acompanhado pelo desaparecimento da distinção das coisas em mancipi e nec manicpi, a compra e venda e a doação tornaram-se simultaneamente reais e obrigacionais, transmitindo igualmente a propriedade. Com Justiniano, porém, ocorreu um regresso à solução do período clássico e a traditio foi requerida novamente para a transmissão do direito real. A solução do Direito Romano clássico e justinianeu – compra e venda obrigatória e traditio para a transmissão da propriedade – manteve-se a regra no Direito comum. Em todo o caso, nalgumas regiões da Europa a tradição da coisa foi-se progressivamente imaterializado. Em França, depois da abolição do regime feudal pela Revolução, a transmissão da propriedade pela venda da coisa estava teoricamente sujeita à entrega da coisa numa parte do país; no entanto, a disseminação de práticas de traditio ficta, com a convenção de cláusulas de dessaisine-saisine ou de constituto possessório, iludia o princípio. No início do século XVII, um teórico do Direito Natural, Hugo Grócio, pôde voltar à defesa do consensualismo. A propriedade deveria transferir-se com a celebração do contrato, independentemente da entrega da coisa e mesmo sem ela. Puffendorf faria igualmente a defesa do princípio da consensualidade. No século XVIII, o jusracionalismo francês postularia a adoção positiva deste princípio, o que veio a acontecer com o Code Civil de 1804. A influência do Code Civil propagou-se a outros países, entre os quais, a Itália e Portugal. No primeiro, o Codice Civil de 1865 repetiu no artigo 1448.º a formulação do artigo 1583.º Code Civil, implementando em Itália a doutrina do consenso translativo. O sistema do Code Civil, e dos Direitos que o seguiram na sua inspiração, configura um sistema de título. Basta a celebração – válida – do contrato translativo (compra e venda, permuta, etc.) para que a transferência do direito real opere, sem dependência, pois, da entrega da coisa ou, no caso dos imóveis, do registo. O contrato translativo (a compra e venda, a doação, a permuta) desencadeia, pois, uma dupla eficácia: a eficácia obrigacional e a eficácia real. Quase um século depois, e debaixo da influência determinante de Gustav Hugo e Savigny, o BGB alemão adotou o sistema oposto, conhecido como sistema de modo. Mantendo a compra e venda, a doação, a permuta puramente obrigatórias, o Código Civil alemão impõe a celebração de um segundo negócio jurídico de natureza real para a constituição ou transmissão do direito real. Ao negócio jurídico real, denominado Einigung para as coisas móveis e Auflassung para os prédios, segue-se ainda a formalidade da entrega (Übergabe) quanto Às primeiras e da transcrição no registo (Eintragung) quanto aos segundos. Neste sistema, somente o negócio jurídico real gera a constituição ou a transmissão do direito real e de modo completamente independente da eficácia do negócio jurídico obrigacional (princípio da abstração), determinado a completa separação entre os dois tipos de negócio jurídico (princípio da separação). Mais próximas da solução do Direito romano clássico, algumas ordens jurídicas europeias, como a espanhola e austríaca, consagram um sistema de título e modo. O negócio jurídico, só por si, não transmite o direito real, sendo necessário um segundo negócio real. Contudo, e diferentemente do sistema de modo, a validade e eficácia do segundo negócio jurídico (negócio real) depende da validade do primeiro. O Direito português seguiu a solução do Direito romano até às Ordenações Filipinas. Nestas, estipulava-se a propósito da venda, que se «o senhor de alguma coisa a vende duas vezes a desvairadas pessoas, o que primeiro houver a entrega dela será dela feito verdadeiro senhor, se dela pagou o preço por que lhe foi vendida».

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Mello Freire, a propósito da tradição, afirma «que é o modo derivado de adquirir o domínio no direito natural. Uma vez que aceita a tradição, nada mais se ajusta à equidade natural do que ter como válida do dono que quer transferir a sua coisa para outro, §4 do tit. De rerum divisione, das Institutas». E, mais à frente, esclarece, «no Direito Romano, era absolutamente necessária a tradição, lei 20 do tit. De pactis do Código; no nosso direito, também parece ser necessária, segundo a Ord. Liv. 4, tit. 7, §7, no princípio, sendo este o fundamento da diferença entre as ações reais e pessoais». Não obstante a solução romana justinianeia ter sido a tradicional em Portugal até ao Código Civil de Seabra, o princípio da consensualidade começou a ganhar adeptos antes da primeira codificação civil portuguesa. Correia Telles escrevia no seu subsídio à elaboração do Código Civil que «logo que a compra e venda é perfeita, se o vendedor tinha a propriedade da coisa, é trespassada no comprador, independentemente de esta ser entregue, e de ter pagado o preço». O nosso primeiro Código Civil encaixou-se na corrente favorável ao consenso translativo. Com efeito, o artigo 1578.º CC Seabra preceituava: «se a mesma coisa for vendida pelo mesmo vendedor a diversas pessoas observar-se-á o seguinte: se a coisa vendida for mobiliária prevalecerá a venda mais antiga em data; se não for possível verificar a prioridade de data prevalecerá a venda feita ao que se achar de posse da coisa». No entanto, não deixa de se observar uma reminiscência romanística a favor da traditio: a entrega da coisa funcionava a favor do comprador caso não se provassem as datas das vendas. A força da consagração do consensualismo era, no entanto, mitigada relativamente aos imóveis. Segundo o artigo 1580.º CC Seabra, «se a coisa vendida for imobiliária, prevalecerá a venda primeiramente registada, e se nenhuma se achar registada o que fica disposto no artigo 1578.º». Num resquício claro da influência dominante de raiz francesa, que neste ponto não está isenta de contradições, parece que relativamente às coisas imóveis o consensualismo operava somente na relação entre as partes; no tocante à oponibilidade a terceiros do direito do comprador, tudo dependeria de o terceiro beneficiário de uma segunda venda ter ou não registo. O comprador que não registasse não teria qualquer direito contra o comprador da segunda venda, caso este houvesse registado a aquisição, o que parece configurar à partida um sistema em que o registo funciona como condição de oponibilidade do direito real contra terceiros. O princípio da consensualidade veio a ser acolhido sem sofismas no artigo 408.º, n.º1 CC, em sede de contratos, e não no Livro III dedicado a Direitos Reais. O mesmo princípio é depois reiterado a propósito da compra e venda (artigo 879.º, alínea a) CC) e da doação (artigo 954.º, alínea a) CC), os dois paradigmas de contrato real quoad effectum, um oneroso, o outro gratuito. De acordo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão com o significado do princípio acolhido, o direito real constitui-se ou transfere-se, solo consensu, no momento da celebração do contrato, instantânea ou automaticamente, sem necessidade de entrega da coisa ou do registo (relativamente aos imóveis) e sem qualquer dependência do cumprimento das obrigações estabelecidas. O contrato é, assim, a um tempo real e obrigacional, produzindo simultaneamente os dois tipos de efeitos, sem que, todavia, haja uma interferência recíproca entre eles. A transmissão da propriedade dá-se mesmo que, na compra e venda, o vendedor não entregue a coisa ou o pagamento do preço não seja cumprido ou , na doação, o doador não entregue a coisa ao donatário. O n.º2 do artigo 408.º CC introduz, no entanto, algumas exceções relativamente ao momento da aquisição do direito real, dissociando-o da celebração do contrato. O contrato não deixa de ser o único título da aquisição do direito real, e por esta via não é o da conclusão do contrato, ficando diferido, nas hipóteses contempladas no preceito, para uma altura posterior. Assim, na transmissão do direito real é o momento da aquisição do direito pelo alienante ou de determinação da coisa com conhecimento de ambas as partes; na transmissão de direitos reais sobre frutos naturais, a aquisição do direito real ocorre com a colheita, e no que respeita a partes componentes e integrantes ela ocorre com a separação material. O princípio da consensualidade tem o mesmo significado tanto para as coisas móveis como para as imóveis. Mesmo no tocante a estas últimas, o direito real deve considerar-se constituído ou transmitido por força do contrato e com a conclusão deste. A este respeito, o artigo 408.º, n.º1 e os artigos 879.º, alínea a) e 954.º, alínea a) CC não permitem fundamentar qualquer distinção. Porém, Antunes Varela veio sustentar que a aquisição do direito real sobre imóveis apenas estaria concluída com o registo da aquisição, invocando para o efeito o artigo 5.º, n.º1 CRPr. O adquirente do direito real apenas o poderia opor a terceiro caso houvesse registado a sua aquisição (efeito declarativo do registo predial). O contrato teria assim eficácia entre as partes, mas não relativamente a terceiros, que só o registo predial atribuiria, uma tese de proveniência original francesa, embora exportada depois igualmente pela Itália. Contrariamente ao defendido por Antunes Varela, o princípio da consensualidade (artigo 408.º, n,º1 CC) desencadeia a aquisição do direito real sobre o imóvel com a conclusão do contrato, não tendo a omissão da inscrição registal do facto aquisitivo qualquer interferência na eficácia real do contrato. O contrato determina por si só a constituição ou transmissão do direito real, mesmo relativamente a coisas imóveis. O proprietário, o usufrutuário, o superficiário, o titular de uma servidão predial não estão, por conseguinte, inibidos de reivindicar a coisa de terceiro ou, em geral, de defender o seu direito contra terceiros só porque não registaram a sua aquisição. Na verdade, o artigo 5.º, n.º1 CRPr nada tem a ver com o princípio da consensualidade, mas com um dos efeitos atributivos da publicidade registal: a aquisição tabular ou efeito atributivo do registo predial. Debaixo da verificação cumulativa de determinados requisitos, um terceiro de boa fé que haja adquirido o seu direito do pseudo titular inscrito, que alienara previamente o direito a quem não fez o registo da sua aquisição, pode ficar protegido contra o verdadeiro titular na ordem substantiva, contando que registe antes dele o seu contrato. Essa proteção consiste na atribuição do direito a que se refere o contrato registado, não obstante a nulidade do mesmo por falta de legitimidade do disponente, e tem o seu fundamento na fé pública registal. O titular do direito, cujo facto aquisitivo não foi registado, pode ver o seu direito extinguir-se ou ficar onerado como contrapartida da aquisição tabular do terceiro. Seja como for, esta matéria, que se liga diretamente ao princípio da publicidade em Direitos Reais, não tem qualquer relação com o princípio da 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão consensualidade, nem constituir qualquer restrição a ele. Verdadeiras exceções ao princípio da consensualidade encontramos nos artigos 687.º CC e 4.º, n.º2 CRPr 669.º, n.º1 CC. A exigência de forma escrita para a eficácia real da doação de coisa móvel desacompanhada de tradição (artigo 947.º, n.º2 CC) só constitui exceção à regra da liberdade de forma dos negócios relativos a coisas móveis, não comportando tal sentido relativamente ao princípio da consensualidade.

6. O princípio da causalidade e o princípio da unidade: o Direito Romano conheceu negócios reais abstratos e negócios reais causais variando a natureza de uns e outros consoante o período histórico perspetivado. Considerando a transmissão da propriedade através da mancipatio, o efeito real não dependia da validade jurídica da relação que lhe servia de causa; mesmo que o negócio que estava na base desse facto não fosse válido, a propriedade era transmitida para o adquirente. A mancipatio era,, assim, um negócio abstrato. Também na in iure cessio a transmissão da propriedade surgia de modo independente do negócio que lhe servia de causa, que não vinha mencionado na forma do ato. A in iure cessio representa outro caso de negócio abstrato no Direito Romano. Já a traditio variou na sua qualificação como negócio causal ou abstrato. No Direito Romano antigo, no qual a propriedade se transmitia como efeito da conclusão do contrato de compra e venda, a traditio é efetuada com mero cumprimento da obrigação de entrega pelo transmitente do direito. Com os pré-clássicos, a traditio desenvolve-se para um negócio translativo da propriedade de coisas nec mancipi, que envolve a transmissão da posse, continuando a ser essa a solução do Direito Romano clássico. Neste período, a traditio é um negócio causal, isto é, supõe uma causa válida. Já no período justinianeu, e após um tempo de regresso às conceções do Direito Romano antigo, a traditio volta a ser um negócio real translativo autónomo do negócio que lhe serve de base. Parece que a sua eficácia não dependia, nesse período, da validade do negócio causal. O princípio da causalidade, onde valha, significa que a aquisição do direito real supõe a eficácia do negócio jurídico que lhe está na base. Se este for nulo, ou vier a ser anulado, a aquisição do direito real não tem lugar. Ela supõe, assim, pode dizer-se, uma causa válida. Ao princípio da causalidade opõe-se o princípio da abstração. Conforme, primeiro Hugo, e depois Savigny, demonstraram, o contrato pode desencadear efeitos jurídicos diversos dos obrigacionais, e justamente, efeitos reais. O princípio da abstração repousa na separação entre o negócio jurídico (contrato) obrigacional e o negócio jurídico (contrato) real (princípio da separação), mas pressupõe ainda que o ordenamento jurídico torne a eficácia do negócio real independente da eficácia do negócio obrigacional. Cada um dos negócios tem os seus próprios requisitos de eficácia. A constituição ou transmissão do direito real requer unicamente a eficácia do negócio jurídico real; caso o negócio obrigacional seja inválido, a ineficácia deste não se repercute na eficácia do negócio jurídico real. Este é o sistema em vigor na Alemanha. O Direito Civil alemão separa o negócio obrigacional do negócio real (Einigung) (princípio da separação) e torna a eficácia deste completamente independente da eficácia do primeiro (princípio da abstração). Em caso de nulidade da venda, a transmissão da propriedade tem lugar se os requisitos de eficácia do negócio houverem sido respeitados. A perda patrimonial do vendedor pode depois ser corrigida através do instituto do enriquecimento sem causa. O princípio da causalidade pode coexistir com a separação entre o negócio jurídico obrigacional e o negócio jurídico real, assim como pode ser consagrado em ordens jurídicas que postulem a unidade entre o negócio obrigacional e o negócio real. Porém, qualquer que seja o caso, a constituição ou

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão transmissão do direito real só ocorre quando a causa jurídica do efeito real seja eficaz, seja um negócio jurídico autónomo, seja um negócio simultaneamente produtor de efeitos obrigacionais e reais. Diferente do problema de saber se a aquisição do direito real supõe uma causa jurídica eficaz ou não, que origina os dois princípios antagónicos, da causalidade e da abstração, é o problema de saber se essa aquisição se faz por meio de um negócio jurídico próprio e autónomo do negócio jurídico obrigacional ou se um único negócio jurídico pode ser simultaneamente a fonte de efeitos obrigacionais. Em alguns dos períodos do Direito Romano clássico e no Direito justinianeu, a compra e venda era um contrato meramente obrigacional. O comprador ficava apenas investido no direito pessoal (de crédito) à entrega da coisa (traditio). Essa solução foi adotada pelo BGB relativamente às coisas móveis. Contudo, na ordem jurídica francesa, italiana e portuguesa o negócio jurídico real não aparece separado do negócio jurídico obrigacional, havendo apenas um único negócio, que produz simultaneamente os efeitos obrigacionais e o efeito real. Isto corresponde ao princípio da unidade, por contraposição ao princípio da separação, o qual regeu em largos períodos históricos do Direito Romano e vigora atualmente na Alemanha. Na ordem jurídica portuguesa vale o princípio que, quando a lei não disponha em contrário, os negócios jurídicos são causais. Este princípio vale igualmente em Direitos Reais. Isto quer dizer, que a aquisição do direito real se dá unicamente quando o facto respetivo for juridicamente eficaz. Quanto a este aspeto, o princípio da unidade num sistema de título torna mais evidente a consequência última da ineficácia do título, que não pode deixar de ser a frustração da constituição ou transmissão do direito real por força do vício que afeta o facto jurídico (contrato) em causa. Portanto, quando no artigo 408.º, n.º1 CC se estabelece que o direito real se constitui ou transmite com o contrato (real quoad effectum), deve entender-se tratar-se de contrato eficaz. A causalidade está subjacente a este preceito, como, de um modo geral, aos restantes negócios jurídicos do nosso ordenamento. Inválido, ou de algum modo ineficaz o contrato real (quoad effectum), não há constituição ou transmissão do direito real. A escolha dos princípios da consensualidade e da causalidade, em detrimento dos princípios da abstração e da separação, não decorre de meras razões técnico-jurídicas, mas de considerações de política legislativa que estruturam um dado sistema de Direitos Reais. Os princípios da abstração e da separação surgem talhados para responder à necessidade de tutela de confiança de terceiros, particularmente de terceiros de boa fé, se a confiança for o valor sobre o qual se pretenda erguer a regulação normativa de Direitos Reais. A dissociação entre o negócio real, que surge autónomo, e o negócio obrigacional que o motiva, permite que ao terceiro que celebre o negócio real com o transmitente não possam ser opostos os vícios do primeiro negócio. Pelo que a aquisição do direito real não será normalmente posta em causa em caso de ineficácia jurídica do negócio obrigacional. O que faz destes princípios os ideais para um sistema que vise estimular a circulação das coisas e a tutela do tráfego jurídico. Diversamente, se a enfase do sistema estiver na existência de um título que fundamente a constituição ou transmissão do direito real, ou seja, na proteção do titular do direito real, então os princípios da causalidade e da unidade são os adequados para o fim em vista. Caso o negócio jurídico que serve de causa à constituição ou transmissão do direito real não seja válido, o efeito real não se produz e o direito permanece com o disponente, mesmo em detrimento da confiança legítima do terceiro. Evidentemente mesmo num sistema de título a posição do terceiro, em particular, a posição do terceiro de boa fé, tem de ser equacionada. Nalgumas ordens jurídicas que adotaram o sistema de título a proteção do terceiro adquirente da 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propriedade de coisa móvel fez-se através da consagração do princípio posse vale título. O legítimo proprietário da coisa não pode fazer valer o seu direito contra o terceiro que adquiriu de boa fé de non domino a propriedade da coisa e está na posse dela. Em Portugal, esse princípio não recebeu consagração, continuando o Direito a proteger o titular do direito real contra o terceiro de boa fé que adquiriu o seu pseudo direito de um não titular. O artigo 1301.º CC mitiga a dureza da solução, num afloramento da proteção do terceiro de boa fé que adquiriu coisa móvel de comerciante, impondo ao titular do direito real o dever de restituir ao adquirente o preço pago ao comerciante. A reivindicação da coisa não fica impedida, e o direito real do titular subsiste, contrariamente ao que sucede de acordo com o princípio posse vale título, mas o terceiro tem direito ao preço que suportou na compra, podendo reter a coisa até ser indemnizado. No respeitante a imóveis, a oponibilidade a terceiros da aquisição de direito real pode ficar dependente da inscrição registal do facto aquisitivo, não podendo o adquirente que não registou a sua aquisição fazer valer o seu direito contra terceiro. Na doutrina e na jurisprudência portuguesas fala-se a este propósito num efeito declarativo do registo predial, que teria aparentemente fundamento no artigo 5.º, n.º1 CRPr. Na verdade, porém, a lei portuguesa não vai tão longe. O direito real sobre imóveis continua a ser protegido contra terceiros mesmo que o facto aquisitivo respetivo não haja sido objeto de registo. O que acontece é que, debaixo da verificação cumulativa de certos requisitos, que variam consoante o preceito considerado, um terceiro de boa fé que não adquiriu validamente o direito real de acordo com as disposições pertinentes do Direito Civil pode vir a adquirir esse direito por força de uma norma que confere um efeito aquisitivo à inscrição registal. O registo predial tem, neste caso, um efeito atributivo (aquisição tabular) do direito real a que se refere o facto (contrato) registado. A proteção registal do terceiro de boa fé consegue-se mediante um preço; ela funciona sempre, em última análise, contra o titular do direito de propriedade segundo a ordem substantiva, cujo direito vem a ser sacrificado. A aquisição tabular favorável ao terceiro determina, correlativamente a extinção da propriedade conflituante, se o efeito atributivo ocorrer no tocante à propriedade, ou a sua oneração, se o direito adquirido pelo registo for um direito real menor. O efeito atributivo do registo predial, que não deve confundir-se com o denominado, e na nossa opinião inexistente, efeito declarativo do registo predial, tem a sua sede normativa nos artigos 5.º, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e no artigo 191.º CC.

7. O princípio da boa fé: o princípio da boa fé não surge elencado nas exposições sobre os princípios normativos de Direitos Reais. Em Portugal, os autores portugueses que expõem princípios jurídicos de Direitos Reais não lhe fazem qualquer alusão, o mesmo sucedendo com os seus homólogos alemães. A ausência de referência ao princípio da boa fé representa um sintoma claro do atraso científico em que se deixou cair esta cadeira. Enquanto noutras latitudes do pensamento jurídico, sobretudo no Direito das Obrigações, a boa fé impulsionou o aparecimento de novos institutos ou o desenvolvimento de institutos existentes, em Direitos Reais o seu papel tem sido muito mais modesto. Uma das aflorações mais importantes da boa fé no campo dos Direitos Reais não chegou a ser adotada pelo Direito português. Referimo-nos ao princípio posse vale título. O adquirente de boa fé do direito sobre coisa móvel que haja recebido do transmitente (tradição) fica protegido contra a reivindicação do proprietário; em contrapartida, este vê o seu direito extinguir-se pela tutela do terceiro de boa fé. O princípio posse vale título recebeu consagração em França, Itália e na Alemanha. O

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão artigo 1301.º CC contém uma regra com alguma analogia com o princípio posse vale título. O adquirente de coisa móvel comprada a comerciante, caso esteja de boa fé, tem direito a receber o preço pago ao vendedor se a coisa não pertencia a este. Mas não pode invocar a boa fé para fundamentar a aquisição do direito real ou a não entrega da coisa ao proprietário. Continua obrigado a este entrega em caso de reivindicação. A falta de preocupação com a tutela da boa fé através da aparência jurídica suscitada pela posse de um não titular do direito real, que a não consagração do princípio posse vale título mostra bem, não se traduz, porém, na irrelevância do princípio da boa fé em Direitos Reais. O efeito atributivo do registo predial, que em Portugal se encontra nos artigos 5.º, n.º1, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e 291.º CC, elucida, ao contrário, o relevo que o sistema normativo confere à boa fé. O fundamento do efeito atributivo do registo predial não radica no princípio da boa fé. É verdade, mas não obstante isso, essa proteção apenas vem a ser conferida ao terceiro de boa fé. A importância da boa fé em Direitos Reais surge, fundamentalmente, em dois domínios: a. Na posse, incluindo a usucapião; b. Na acessão industrial, contando com a regulação da especificação. A boa fé aparece como um dos critérios sistemáticos de caracterização da posse (artigo 1258.º CC). A ela está associado um tratamento jurídico mais favorável do possuidor. Desde logo, o possuidor de boa fé tem um poder de fruição (artigo 1270.º, n.º1 CC). A ela está associado um tratamento jurídico mais favorável do possuidor. Desde logo, o possuidor de boa fé tem um poder de fruição (artigo 1270.º, n.º1 CC), contrariamente ao possuidor de má fé (artigo 1271.º, 1.ª parte CC), que responde ainda pelos frutos que um possuidor diligente teria podido obter (artigo 1271.º, 2.ª parte CC). O possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa havendo culpa sua, enquanto o possuidor de má fé está sujeito a um regime agravado de responsabilidade civil objetiva. O possuidor de boa fé pode ainda levantar as benfeitorias voluptuárias que haja feito, contanto que não haja detrimento na coisa (artigo 1275.º, n.º1 CC), o que é negado ao possuidor de má fé. Ainda no regime possessório, mas agora no tocante à usucapião, o possuidor de boa fé beneficia de prazos menos dilatados quando comparados com os prazos de usucapião do possuidor de má fé (artigo 1294.º a 1296.º e 1298.º a 1300.º CC). Em todos estes caso, a boa fé consiste num estado de espírito do agente e isso faz dela uma boa fé em sentido subjetivo. Pergunta-se, no entanto, se estamos perante uma boa fé em sentido subjetivo. Pergunta-se, no entanto, se estamos perante uma boa fé em sentido psicológico ou se, diversamente, a boa fé a que todos estes preceitos aludem deve ser entendida em sentido ético (boa fé subjetiva ética)? A boa fé em sentido psicológico consiste na mera ignorância do sujeito relativamente a certos factos ou estados de coisas; em sentido ético, aboa fé postula o cumprimento de deveres de diligência, ou seja, uma ignorância desculpável do sujeito relativamente a factos ou estado de coisas. Esta última apresenta um nível superior de exigência. Só está de boa fé quem porfiando no sentido de conhecer o facto ou o estado de coisas não o conseguiu fazer, apesar da diligência posta na sua atuação. Em matéria de posse, a doutrina começou por manifestar uma decisiva preferência por uma conceção subjetiva de boa fé. Henrique Mesquita defende que «a boa fé do possuidor afere-se por um critério psicológico e não por um critério ético-jurídico».

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão No Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela sustentam que «o conceito de boa é de natureza psicológica, e não de índole ética ou moral (…) possui de boa fé, na verdade, quem ignora que está a lesar direitos de outrem, sem que a lei entre em indagações sobre a desculpabilidade ou censurabilidade da sua ignorância». A investigação de Menezes Cordeiro viria a introduzir argumentos no sentido da superação da boa fé subjetiva psicológica a favor de uma noção ética de boa fé, numa linha que outros seguiriam. Reconheça-se, no entanto, que esta superação não está ainda consumada, sobretudo na jurisprudência dos tribunais superiores. O psicologismo da boa fé introduz o perigo de quebras no sistema, que importa evitar. Para começar, e em primeiro lugar, uma noção psicológica de boa fé arrasta uma desarticulação com outros institutos e dispositivos normativos. Começamos com o Registo Predial. Este tem por função publicitar a situação jurídica dos imóveis (artigo 1.º CRPr), estando ao dispor de qualquer interessado que a ele se dirija para obter a informação predial relevante concernente à celebração de negócios jurídicos. E a situação registal é de tal forma relevante que funda uma presunção da titularidade do direito (artigo 7.º CRPr). Ora, se alguém celebra um negócio jurídico tendo um prédio por objeto, pode ignorar a situação registal e afirmar a sua boa fé, quando podia simplesmente consultar o registo para tomar conhecimento do direito de outrem? Por seu lado, a posse também faz presumir a titularidade do direito real (artigo 1268.º, n.º1 CC). Aquele que ignora, podendo conhecer, a posse de outrem, pode estar de boa fé na aquisição da sua posse? Se as respostas a estas perguntas forem positivas, há uma evidente quebra sistemática. A boa fé, entendida num sentido subjetivo psicológico, não se articula com as presunções de titularidade do direito real que derivam do registo predial e da posse. E não se articula porque leva a desconsiderar o princípio da publicidade em que o sistema jurídico de Direitos Reais assenta numa boa parte. Os dispositivos de publicidade inseridos numa ordem jurídica têm de contar para a apreciação daquilo que devia ser o conhecimento do possuidor no momento da aquisição da posse e, em última análise, para aferir da sua boa ou má fé. Em segundo lugar, uma conceção subjetiva psicológica de boa fé introduz igualmente uma contradição no sistema. Essa contradição resulta do facto de a proteção baseada na boa fé nem sempre assentar no mesmo critério. No artigo 291.º, n.º3 CC o terceiro só fica protegido tabularmente caso desconheça sem culpa o direito de outrem; se fosse diferente para a posse, teríamos de concluir que o possuidor receberia um tratamento mais favorável que o terceiro que confia num registo predial pré-existente. A contradição parece evidente. Ela só é evitável com uma harmonização interpretativa que considere sempre a boa fé num sentido ético. Em terceiro lugar, uma conceção subjetiva psicológica de boa fé importa uma desadequação do sistema. Compreende-se mal que evoluindo todo o Direito privado para um desenvolvimento de regras de conduta assente na boa fé (boa fé objetiva) em Direitos Reais se tutele favoravelmente os que atuam com incúria, desleixo e falta de cuidado, e se premeie, afinal, os que voluntariamente não se esforçam, não querem saber, em detrimento dos mais atentos, cuidadosos e preparados. Mesmo admitindo a pouca dinâmica evolutiva dos Direitos Reais nos últimos 100 a 150 anos, nem por isso podemos ignorar as coordenadas evolutivas do Direito privado em geral. E estas apontam para padrões sociais de comportamento que valorizam o conhecimento, a diligência e a competência do agente. O Direito português não pode continuar a acolher atavicamente o psicologismo como

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão expressão do atraso de um povo. Resta um último argumento: a impossibilidade prática de todo o psicologismo. Não há meio de conhecer o que vai no interior de cada um, a não ser pela exteriorização de um comportamento. A dificuldade surge normalmente ultrapassada com recurso ao título. A presunção constante do n.º1 do artigo 1260.º CC é fruto das dificuldades do psicologismo e está, em certa medida, em contradição com ele. Todos estes argumentos depõem a favor de uma conceção ética da voa fé subjetiva. De acordo com esta, está de boa fé aquele que desculpavelmente ignorava, ao adquirente a posse, que lesava o direito de outrem; ou, inversamente, está de má fé aquele que conhecia a violação de direito alheio e ainda o que, por não observar os deveres de cuidado e indagação que no caso cabiam, não conhecia essa violação, ou seja, o que ignorava com culpa a lesão de direito de outrem. Direitos Reais oferece um espaço relativamente restrito para a implementação da boa fé como regra de conduta (boa fé objetiva). O facto de o direito real se exercer sem a colaboração de alguém contribui decerto para essa menor relevância. Ainda assim, em Direitos Reais ocorrem manifestações gerais da boa fé objetiva. Um exemplo significativo é o do abuso do direito. Para além do abuso do direito, as situações de concurso de direitos reais sobre a mesma coisa constituem um campo privilegiado de atuação da boa fé objetiva. Dela podem emergir, em contextos particulares, deveres de proteção, de lealdade e de informação entre titulares de direitos reais. Um bom exemplo disto mesmo encontrase no artigo 1475.º CC, o qual impõe ao usufrutuário um dever de informação ao proprietário de qualquer facto de que possa advir uma lesão do direito deste. Esta regra estende-se a todas as situações em que um direito real de gozo se encontra onerado, impondo ao titular do direito real menor o dever de informar o titular do direito real maior, de qualquer facto do qual possa resultar para este último. Embora não haja uma alusão expressa à boa fé, o artigo 1475.º CC prevê um dever de informação ao titular do direito real maior que tem a sua justificação na boa fé como regra de conduta. Deste modo, também a boa fé em sentido objetivo constitui um dos princípios de Direitos Reais.

8. O princípio da territorialidade: o princípio da territorialidade, em Direitos Reais, pretende significar que a ordem jurídica portuguesa é a única a determinar o regime jurídico-real das coisas situadas em território português e que esse regime jurídico é o Direito material português. Se o princípio surge incontroverso para as coisas imóveis, como manifestação da soberania do Estado português, ele vale igualmente para as coisas móveis que se encontrem em Portugal.

9. O princípio da publicidade: a publicidade constitui um princípio de Direitos Reais. E compreende-se que assim seja. Por um lado, tratando-se de um direito oponível todos, deve ser, tanto quanto possível, reconhecível por qualquer um. Por outro lado, sendo os direitos reais livremente disponíveis, a transmissão, a oneração e a renúncia devem ser levadas a cabo por quem tem legitimidade para o efeito, quer dizer, na grande maioria dos casos, pelo titular do direito real. Ora, um terceiro interessado na aquisição de um direito real só tem possibilidade de saber quem pode dispor do direito real ou se existem outros direito reais sobre a coisa se houver algum modo ou dispositivo com a finalidade de revelar a situação jurídica da coisa. Para além disso, dado que a forma do ato de disposição no caso dos imóveis é solene, há necessidade de providenciar um meio através do qual quem o titula, o notário ou outro, possa aferir da legitimidade do disponente para ele. A publicidade em Direitos Reais pode ser espontânea ou

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão organizada. A lei pode partir do controlo material da coisa para aferir a titularidade ou para desencadear a transmissão do direito real. A posse funciona, deste modo, como um meio espontâneo de publicidade de direitos reais. A publicidade organizada surge através do registo. O registo, porém, não é global, não abarca todas as coisas corpóreas, mas apenas uma parte delas. Assim, existe um registo predial, que publicita a situação jurídica dos prédios (artigo 1.º CRPr), um registo automóvel, um registo de navios e um registo de aeronaves, para cada um destes tipos de coisas. Cada um dos registos está sujeito a um regime jurídico próprio e não tem comunicação com os restantes. O princípio da publicidade não tem o mesmo alcance em todas as ordens jurídicas. Em Portugal, ele é menor do que na Alemanha, por exemplo. Desde logo, porque na nossa ordem jurídica, a publicidade não se liga à constituição ou transmissão dos direitos reais. Por força do princípio da consensualidade, nem a tradição da coisa nem – relativamente a imóveis – o registo do facto aquisitivo são necessários para a constituição ou transmissão do direito real. O contrato desencadeia, por si só, o efeito constitutivo ou translativo (artigo 408.º, n.º1 CC), sem que sejam precisas quaisquer formalidades. Não podemos assim, falar num efeito translativo associado à publicidade. Se, pelo menos, em Portugal, não podemos mencionar um efeito de transmissão associado à publicidade, podemos decerto falar num efeito presuntivo a ela ligado. Tanto o possuidor (artigo 1268.º, n.º1 CC) como aquele a favor do qual se encontra feita a inscrição registal (artigo 7.º, n.º1 CRPr) beneficiam de uma presunção de titularidade do direito real a que se refere a posse ou o registo. Por sua vez, a publicidade pode servir de fundamento de proteção de terceiro de boa fé em caso de aquisição de direito real a titular aparente, contrariando a máxima romana nemo plus iuris ad alium transfere potest quaro ipse habet. É isto que sucede em ordens jurídicas que consagram o princípio posse vale título. Aquele que, estando de boa fé, adquire o direito real do titular aparente, havendo tradição da coisa, fica protegido contra o verdadeiro proprietário. Em Portugal, porém, a publicidade fundada na posse não protege o terceiro de boa fé contra a reivindicação do proprietário ou doutro titular de direito real de gozo. Não valendo o princípio posse vale título, posse do titular aparente não assegura proteção ao adquirente de boa fé, mesmo que tenha havido tradição da coisa. A situação muda, no entanto, quanto à publicidade registal. A necessidade de assegurar fé pública ao registo predial leva o legislador a proteger o terceiro de boa fé que adquiriu a titular aparente com base na pré-existência de uma situação registal desconforme com a realidade substantiva. Falase então no efeito atributivo do registo predial ou, simplesmente, em aquisição tabular. A aquisição tabular constitui um efeito da publicidade registal, concretamente da presunção de titularidade do direito que lhe está associada (artigo 7.º, n.º1 CRPr), e é inseparável dela. Porquanto a lei pretende que os interessados possam confiar na situação jurídica do prédio patenteada pelo registo predial (fé pública registal), protege, em alguns casos, o adquirente do titular aparente que consta do registo como tal. A proteção registal por via do efeito atributivo do registo predial ou aquisição tabular dáse relativamente a terceiro de boa fé, que adquiriu onerosamente de titular aparente e registou o facto respetivo. Ela pode ter lugar em quatro cenários distintos, que respeitam aos artigos 5.º, n.º1, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e ao artigo 291.º, n.º1 CC. Cada um destes preceitos tem o seu campo de aplicação próprio. Assim, o artigo 5.º, n.º1 CRPr aplica-se às situações de dupla disposição, nas quais um mesmo sujeito, o titular inscrito no registo, dispõe duas vezes do mesmo direito a favor de pessoas diferentes, transmitindo-o ou constituindo direitos reais menores, sendo que o primeiro adquirente cuja aquisição é, em princípio, válida, não regista a sua aquisição, deixando subsistir no 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão registo uma desconformidade que possibilita um segundo ato de disposição pela mesma pessoa. O terceiro que celebra o segundo negócio de disposição com o titular inscrito adquire o direito real, contando que esteja de boa fé, haja celebrado um negócio oneroso e registe a sua aquisição antes do registo do primeiro negócio. É esse o significado do n.º1 do artigo 5.º CRP, o de atribuir ao terceiro o direito real que não pôde adquirir por via do contrato, e não o de estabelecer uma pretensa condição de oponibilidade do direito real a terceiro. A aquisição tabular do artigo 5.º, n.º1 CRPR é tornada possível por no registo predial não constar o primeiro negócio jurídico e aquele que se encontrar, afinal, incompleto. Se o primeiro negócio jurídico vem a ser registado antes do registo do segundo negócio jurídico, a aquisição tabular não ocorre. O registo do primeiro negócio tem efeito consolidativo e este efeito impede a proteção tabular do terceiro de boa fé. O conceito de terceiro para efeito da aplicação do artigo 5.º, n.º1 CRPr foi objeto de uma larga controvérsia na doutrina e na jurisprudência portuguesas, sobretudo, durante a década de 90 do século passado. De um lado, estavam os defensores de uma conceção restrita de terceiro; do outro, os defensores de uma conceção ampla. A defesa da conceção ampla de terceiro é mais antiga e deve-se a Guilherme Moreira: «relativamente aos atos sujeitos a registo predial, consideram-se como terceiros todos aqueles que tenham adquirido e conservado direitos sobre os imóveis, que seriam lesados se o ato não registado produzisse efeitos a respeito deles». A tese oposta tem como patrono Manuel de Andrade que sustentou que terceiros são apenas «as pessoas que do mesmo autor adquiram direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio». Após uma série de arestos contraditórios, o Supremo Tribunal de Justiça teve uma primeira intervenção, a título de uniformização de jurisprudência, o Acórdão de 4 julho 1997. Decidiu-se que «terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, vejam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente». É a conhecida aceção ampla de terceiro, que parecia reunir o parecer favorável da maioria da doutrina portuguesa desde Guilherme Moreira. Menos de dois anos depois, no Acórdão n.º3/99, 18 maio, o STJ inverteu a orientação anterior, decidindo que «terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º CRPr, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa». Trata-se da conceção restrita de terceiro, defendida por Manuel de Andrade. Perante esta flutuação de jurisprudência, o legislador interviu, aditando um n.º4 ao artigo 5.º CRPr. Este preceito dispõe: «Terceiros, para efeitos do registo, são aqueles que tenham adquirido de autor comum direitos incompatíveis entre si». 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Assim, para efeitos do n.º1 do artigo 5.º CRPr, o nosso Direito abraçou a conceção restrita de terceiro. Um passo que não deixou de ser duramente criticado por Menezes Cordeiro. Como dissemos, e por força do n.º4, o artigo 5.º, n.º1 CRPr abrange unicamente os casos de dupla disposição, deixando à margem da proteção registal os atos fundados na pré-existência de um registo desconforme à realidade substantiva que não tenham sido praticados pelo titular inscrito. O conceito de terceiro inserto no n.º4 do artigo 5.º CRPr respeita exclusivamente ao âmbito de aplicação do n.º1 desse preceito Mas existem outros casos de tutela registal de terceiros no Código de Registo Predial, desde logo, no artigo 17.º, n.º2 CRPr. O artigo 17.º, n.º2 CRPr, diferentemente do artigo 5.º, n.º1 CRPr – que visa tutelar um pseudo adquirente do direito real que celebrou um negócio jurídico com quem já não tinha legitimidade substantiva para dispor do seu direito como fez –, tutela um subadquirente que adquiriu o seu direito com base num registo nulo, nos termos do artigo 16.º CRPr. Ao contrário do que sucede com o artigo 5.º, n.º1, o artigo 17.º, n.º2 CRPr estabelece expressamente cinco requisitos, cuja verificação cumulativa confere proteção registal ao terceiro que adquiriu um direito real daquele que figurava no registo como o titular do direito objeto de disposição. O primeiro requisito, a pré-existência de um registo nulo nos casos declarados no artigo 16.º, n.º1 CRPr, demarca este preceito do artigo 291.º CC, restringindo-o às nulidades registais. O artigo 291.º CC protege outro subadquirente, no que se afasta claramente do âmbito de aplicação do artigo 5.º, n.º1 CRPr. Mas este subadquirente adquiriu a sua posição jurídica real com base num negócio jurídico inválido, nulo ou anulável, e não num registo nulo, e isto permite diferenciar igualmente o campo de aplicação do artigo 291.º CC relativamente ao artigo 17.º, n.º2 CRPr. Esta interpretação não é pacífica. Menezes Cordeiro inclui as invalidades substantivas dentro do artigo 17.º, n.º2 CRPr, deixando para o artigo 291.º CC apenas as situações de invalidade substantiva quando o disponente não tenha registo a seu favor, uma posição que deixa o artigo 291.º CC praticamente sem aplicação. Não seguimos esta interpretação. Finalmente, o artigo 122.º CRPr consagra uma proteção semelhante à instituída no artigo 17.º, n.º2 CRPr, permitindo a um terceiro adquirir o direito real na conformação que resulta do registo inexato. No seu conjunto, todos estes preceitos (artigos 5.º, n.º1, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e 291.º CC) conferem uma proteção a um terceiro de boa fé em função de fé pública registal. Deste modo, ao princípio da publicidade em Direitos Reais pode vir associado um efeito atributivo, como forma de proteção de terceiros que, de boa fé, celebraram um negócio jurídico com aquele a quem a ordem jurídica atribui uma presunção de titularidade. O efeito atributivo do registo predial e o efeito presuntivo não constituem os únicos efeitos substantivos provocados pela publicidade registal. Para além destes, existem outros efeitos substantivos do registo predial, a saber:  Efeito consolidativo: não surge expressamente em nenhuma disposição. Contudo, ele está implícito no n.º1 do artigo 5.º CRPr. A inscrição registal do facto aquisitivo do direito real sobre um prédio não acrescenta nada à situação substantiva emergente do contrato real, pois, dado o princípio da consensualidade, o direito real constitui-se ou transmite-se com a celebração – válida – daquele (artigo 408.º, n.º1 CC). Porém, o adquirente que regista a sua aquisição afasta a possibilidade desta vir a ser resolvida por força da proteção tabular (aquisição tabular) de terceiro de boa fé. É o efeito regra do registo predial. Não tendo o registo efeito constitutivo em

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Portugal, o registo do facto aquisitivo a favor do adquirente consolida o direito na sua esfera jurídica, pondo-o a salvo de uma aquisição tabular de terceiro;  Efeito constitutivo: é excecional em Portugal. A sua ausência de um efeito de transmissão na publicidade registal retira ao registo o papel que tem noutras ordens jurídicas. Existe, porém, um caso em que o registo se pode considerar verdadeiramente constitutivo: a hipoteca (artigo 687.º CC e 4º., n.º2 CRPr). Apesar da opinião contrária de Oliveira Ascensão, o registo integra o processo constitutivo da hipoteca, não sendo uma mera condição de oponibilidade contra terceiros;  Efeito enunciativo: reporta-se aos casos em que o registo predial não desempenha qualquer função de publicidade dos atos registados, que não carecem dela. Esses casos são basicamente os que constam do n.º2 do artigo 5.º CRPr e ainda o registo da posse. A ausência de função publicitária do registo predial quanto a estes atos causa uma irrelevância geral do mesmo. Daí que o terceiro de boa fé não possa invocar a situação registal para beneficiar do efeito atributivo do registo predial. Assim, qualquer que seja o preceito em causa, o terceiro não fica protegido se o titular do direito real na ordem substantiva tiver a usucapião a seu favor. A incidência da publicidade registal sobre a situação real dos imóveis aconselha o ensino em Direitos Reais dos efeitos substantivos do registo predial. Esse ensino tem antecedentes firmes em alguns professores, particularmente, na Faculdade de Direito de Lisboa. Dias Marques, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, todos eles versaram o registo predial nos seus programas de Direitos Reais. E também Carvalho Fernandes o fez, na Faculdade de Direito da Universidade Católica. O ensino de Oliveira Ascensão, de Menezes Cordeiro e de Caralho Fernandes não se limita, porém, aos efeitos substantivos do registo predial, incluindo igualmente o tratamento dos princípios do registo predial. A esta matéria, nós julgamos dever acrescentar o estudo, muito sumário e breve, dos atos registais, nomeadamente, da descrição predial, da inscrição registal e dos averbamentos. O conhecimento dos atos registais potencia a compreensão da dinâmica registal e dos seus efeitos. Os princípios de registo predial são: a. O princípio da obrigatoriedade do registo; b. O princípio da legalidade; c. O princípio da instância; d. O princípio do trato sucessivo; e. O princípio da prioridade. O princípio da obrigatoriedade surgiu em tempos muito recentes na ordem jurídica portuguesa (2008). Anteriormente a este diploma, a lei portuguesa conferia legitimidade para o registo aos interessados, sem impor a alguém em particular, ao adquirente do direito real ou a outra pessoa, um dever de registar. Também não se encontrava prevista qualquer sanção para a omissão do ato de registo. A incidência de algumas desvantagens decorrentes da omissão do registo, concretamente, a sujeição à perda do direito por causa de uma aquisição tabular de terceiro de boa fé e a 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão impossibilidade de disposição jurídica do direito, não constituíam sanções em sentido técnico e não davam, em nosso entender, base suficiente para a afirmação de um princípio de obrigatoriedade do registo predial. Poder-se-ia falar num ónus de registar ou, se se preferir, no encargo do registo, mas não numa obrigatoriedade de registar. Tudo isso mudou com o Decreto-Lei n.º 116/2008. A conveniência didática encontra aqui um óbice sistemático, pela pertença da matéria a outro ramo do Direito, e suscita um problema óbvio: onde encaixar o ensino da matéria do registo predial no programa da cadeira de Direitos Reais? Na Alemanha, a matéria do registo, extensamente tratada em alguns manuais, vem descrita preponderantemente a propósito do regime jurídico dos imóveis. Contudo, nesse país, uma parte muito significativa da doutrina parte da classificação que divide o regime jurídico de Direitos Reais em Direitos Reais sobre coisas móveis (Mobiliarsachenrecht) e Direitos Reais sobre coisas imóveis (Liegenschaftrechts), uma classificação que, na ausência de fundamento bastante no sistema normativo português, nunca foi transposta pela doutrina nacional para o sistema científico de Direitos Reais apesar da sedução que o pensamento jurídico alemão exerceu sobre nós no século XX. Em Portugal, a maioria dos autores expõe a matéria do registo predial dentro de enquadramento da publicidade, embora, do ponto de vista sistemático e dogmático se manifestem diferenças entre eles. Oliveira Ascensão aborda o registo predial no Título III, dedicado à dinâmica, e, dentro deste, no Capítulo V, com o título Publicidade, depois de versar a constituição, a transmissão e a modificação de direitos reais e antes do tratamento da extinção, violação e defesa. Portanto, o registo predial surge colocado a propósito da eficácia real dos factos jurídicos. Caralho Fernandes também expõe a matéria do registo a propósito da publicidade, mas num contexto completamente diverso, o das características do direito real. A publicidade seria uma dessas características. Menezes Cordeiro opta por tratar o registo no enquadramento propiciado pelo tratamento do princípio da publicidade, portanto, na exposição dos princípios de Direitos Reais. Muito diferente das anteriores, é a abordagem de Pinto Duarte. Este professor propõe a lecionação da matéria de registo a propósito dos aspetos específicos do direito de propriedade sobre prédios. Opta, pois, por deixar a matéria fora do âmbito da parte geral de Direitos Reais, afirmando «que esta solução seria igualmente ilógica e que seria pior do ponto de vista didático». O que pensar? Se o ensino do registo predial tivesse por objeto apenas os efeitos substantivos do registo predial, esta matéria poderia ensinada de modo disperso em vários pontos do programa. Assim, o efeito consolidativo do registo predial poderia figurar na explicação dada ao princípio da consensualidade, explicando-se a sua relação, o efeito enunciativo poderia ser tratado na posse, o efeito atributivo no enquadramento dos factos constitutivos de direitos reais, etc. Não seria, assim, necessário abrir um capítulo dedicado ao registo predial. No entanto, com tal orientação, perder-se-ia a unidade sistemática da matéria e a ligação que ela tem ao princípio da publicidade. Os alunos não apreenderiam verdadeiramente a função do registo predial, nem a relação deste com o sistema normativo de Direitos Reais. Por outro lado, o ensino do registo predial não se limita aos efeitos substantivos do registo predial, ou seja, à repercussão que este registo tem nas situações jurídicas reais. A doutrina portuguesa tem avançado na teoria geral do registo predial, enunciando igualmente os princípios do registo. E a esta matéria nós acrescentamos a enunciação sumária dos principais atos registais.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Tudo isto significa um tratamento unitário da matéria do registo predial. Subsiste, porém, o problema de saber onde situar o ensino respetivo. Quanto a nós, e para começar, o ensino do registo predial só pode ter lugar na parte geral de Direitos Reais. Desde logo, porque respeita a factos com eficácia para todas as categorias de direitos reais. Ora, o regime comum a todos os direitos reais deve ser feito na parte geral e não na parte especial. Depois, porque a inserção na parte especial do ensino do registo leva a situá-lo na disciplina particular de um direito real ou de uma categoria de direitos reais. Mas se o registo o predial se reporta a factos que transcendem um direito real ou uma categoria de direitos reais, como justificar que seja ensinado no regime de um único direito real ou de uma categoria de direito real particular ou a essa categoria de direitos reais, o que induz uma perspetiva enganadora da efetiva função do registo predial, a qual, segundo o artigo 1.º CRPr, é relativa à situação jurídica dos prédios. Fica ainda o problema da escolha do direito real no enquadramento sistemático do qual se faz o ensino do registo predial. Pinto Duarte escolheu a propriedade; mas pode não a hipoteca ou o direito de preferência? Por outro lado, o facto de a matéria do registo predial ser exterior a Direitos Reais constitui outro argumento que fundamenta a sua colocação na parte geral e não na parte relativa a cada um dos direitos reais em especial. A parte especial contempla somente a disciplina específica de cada um dos direitos reais. Se esta disciplina não faz nenhuma referência ao registo, em qualquer dos direitos reais previstos na lei, como explicar que seja tratado num deles? Só numa orientação que intenta construir uma teoria geral de Direitos Reais tem lugar o ensino dos princípios e dos efeitos substantivos do registo predial, pois só num ensino com dimensão sistemática se pode introduzir matéria que é estranha a cada direito real em particular. Por isso, durante décadas, o ensino de Direitos Reais em Portugal não contemplou o registo (de móveis ou de imóveis). Sem surpresa, Dias Marques, pôde introduzir essa matéria no seu ensino desta cadeira, como o fizeram depois todos os professores que, desde Oliveira Ascensão, lançaram mãos à tarefa de construir uma parte geral no sistema científico de Direitos Reais. Não vislumbramos nenhum inconveniente didático na escolha da parte geral para o ensino do registo, como defende Pinto Duarte. O registo geral para o ensino do registo, como defende Pinto Duarte. O registo desempenha uma função de publicidade dos direitos reais e desencadeia efeitos variados, que podem repercutir-se na aquisição, perda ou oneração desses direitos. Só na parte geral se pode ter uma perspetiva do conjunto esses efeitos e ilustrar corretamente a função da publicidade registal, nomeadamente no confronto com os outros princípios de Direitos Reais, o que não sucede obviamente quando se insere a apresentação da matéria do registo no regime de um único direito real, como se apenas a ele respeitasse. Dentro da parte geral, uma vez que isolámos um princípio da publicidade, essa constitui a sede natural de exposição desta matéria. Afinal, a publicidade é a ligação do registo com o sistema de Direitos Reais. Se há um princípio da publicidade, as manifestações deste princípio cabem no seu estudo, se outras razões não impuserem um diferente enquadramento. Acompanhamos, deste modo, Menezes Cordeiro, cujo ensino coloca igualmente a matéria do registo predial no seio do princípio da publicidade.

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Secção II – Princípios Gerais dos Direitos Reais Generalidades: os princípios dos Direitos Reais correspondem às ideias gerais que subjazem às normas deste ramo de Direito e que, embora não permitam a subsunção direta para a resolução de casos concretos, como sucede com as normas, podem, enquanto critérios lógicos, sistemáticos e teleológicos servir como auziliar de interpretação dessas mesmas normas. Conforme refere José Alerto Vieiria, a autonomizçaão de um ramo de Direito depende, no entanto, da existÊncia de princípios jurídicos próprios, que lhe permitam constituir um susbsistema autónomo dentro do sistema geral da ordem jurídicca. É precisamente o que sucede com os Direitos Reais. Entendemos que devem ser distinguidos:

1. As características dos direitos reais, enquanto direitos subjetivos: . O caráter absoluto, a inerência, a sequela e a prevalênica não devem ser elevados a princípios gerais do Direito das Coisas, na medida em que representam antes características dos direitos reais.

2. Os princípios gerais dos ramo do Direito das Coisas: que correspondem aos seus fundamentos dogmáticos específicos. A consensualidade e a causalidade são princípios relativos aos negócios reais, ainda que se lhes deva fazer referênica no âmbito do princípio da transmissibilidade. Apontamos, por isso, os seguintes princípios do Direito das Coisas: a. O princípio da tipicidade; b. O princípio da especialidade; c. O princípio da elasticidade; d. O princípio da transmissibilidade; e.

Princípio da publicidade;

f.

O princípio da boa fé.

O princípio da tipicidade: um dos princípios característicos dos direitos reais é o princípio da tipicidade, ou do numerus clausus dos direitos reais. Este encontra-se previsto no artigo 106.º CC, que proíbe a constituição de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito fora dos casos previstos na lei. Com uma formulação manifestamente infeliz, esta norma visa simplesmente estabelecer a proibição da existência de direitos reais que não se encontrem previstos na lei. Efetivamente, o Código pretendeu limitar o elenco dos direitos reais àqueles que a lei reconhece e abolir todos aqueles que não correspondam aos tipos legais, designadamente aos contantes de costumes. Se, as partes ao abrigo da sua autonomia privada quiserem criar novos direitos reais, a lei nega-lhes a pretendida eficácia real, atribuindo-lhes apenas natureza obrigacional. A tipicidade assim implica uma limitação do número de realidades que podem ser qualificadas como direitos reais, não podendo os mesmos resultar do costume ou da autonomia privada, tendo que ser a lei a criar os direitos inseridos nessa categoria. A tipicidade restringe-se, no entanto, à criação de direitos reais, não abrange os negócios reais. Efetivamente, nada impede as partes de criar direitos reais reconhecidos pela lei através de contratos atípicos. A tipicidade não implica igualmente que o intérprete tenha que seguir as qualificações legais, apenas 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão reconhecendo caráter real aos direitos que a lei considera expressamente como direitos reais. Efetivamente, a tipicidade restringe-se à exigência da criação legal desses direitos, não abrangendo a respetiva qualificação, que não vincula o intérprete. Pode, por isso, o intérprete qualificar como reais direitos que a lei não reconhece expressamente como tais. Há várias razões que justificam a consagração do princípio da tipicidade dos direitos reais. Em primeiro lugar, o cariz absoluto dos direitos reais pode constituir um entrave à circulação dos bens, na medida em que permite ao titular do direito opô-lo eficazmente a qualquer adquirente de boa fé. Depois, não se apresenta adequado permitir a sobreposição sucessiva de direitos sobre as coisas, que pode dar origem aos mais variados litígios, que afetam a possibilidade de exploração dos bens. Por último, representando os direitos reais a ordenação jurídica dos bens, parece mais correto que seja o Estado a instituí-la, em vez de a deixar ao livre critério dos particulares. A tipicidade não deixa, porém, de ser sujeita a críticas, devido à sua consagração, as normas em matéria de Direitos Reais constituem a parte mais rígida e menos mutável do Direito Privado Patrimonial. Enquanto o Direito das Obrigações oferece aos privados um instrumento adaptável às mais variadas exigências práticas, e dá uma ampla possibilidade de inserir nos seus esquemas gerais os fenómenos sempre novos da vida económica, o sistema de Direitos Reais pode aparecer como que congelado e cristalizado nas formas clássicas oriundas da tradição romanística. Assim, encontramos um conjunto limitado de tipos fixos, destinados em grande parte aos mesmos fins desde tempos assaz remotos. A infração à regra da tipicidade implica nos termos do artigo 1306.º, n.º1, in fine CC, que aos novos direitos assim criados não seja atribuída eficácia real, mas eficácia meramente obrigacional, sendo este um caso de conversão legal, que foge aos pressupostos do artigo 293.º CC.

O princípio da especialidade: o princípio da especialidade exige que se possa individualizar concretamente a coisa que constitui objeto do direito real. Efetivamente, os direitos reais têm necessariamente por objeto coisas corpóreas. O princípio da especialidade refere-nos que, para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas. Se tomarmos em consideração separadamente estas três exigências poderemos dividir este princípio em três sub-princípios:

1. Determinação: exige que, para que possa ocorrer a constituição do direito real, a coisa sobre que o mesmo incide se encontre determinada. Efetivamente, se o titular apenas tiver direito a receber coisas genéricas não possui um direito real, mas apenas um direito de crédito (artigo 539.º CC), só se constituindo o direito real a partir do momento em que as coisas sejam determinadas – artigo 408.º, n.º2 CC). Pelo mesmo motivo, não existem direitos reais autónomos sobre universalidades, incidindo o direito individualmente sobre cada uma das coisas que compõem a universalidade.

2. Atualidade: exige que a coisa tenha existência presente para poder ser objeto de direitos reais. Ao contrário da prestação que pode ser relativa a coisas futuras (artigo 399.º CC) e constitui ela própria uma conduta futura do devedor, as coisas têm que ter existência presente para poder ser objeto dos direitos reais. Assim, um direito a coisas futuras não constitui um direito real, mas antes um direito de crédito, apenas se podendo transmitir o direito quando a coisa é adquirida pelo alienante (artigo 408.º, n.º2 CC). Da mesma forma, não existe um direito real sobre coisas passadas, implicando a perda da coisa a extinção do direito que sobre ela incidiu.

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3. Autonomização ou da totalidade: estabelece que para existir um direito real, o mesmo não poderá incidir apenas sobre partes de uma coisa, tendo que incidir sobre coisas autónomas. Assim, não se poderá constituir um direito real relativamente a coisas ligadas materialmente a outras, exigindo-se a sua prévia separação (artigo 408.º, n.º2, in fine CC). Da mesma forma, se a coisa vier a ser unida e incorporada noutra coisa, verificar-se-á a extinção do direito e a sua aquisição ex novo por acessão (artigos 1325.º e seguintes CC). Por esse motivo, nem sequer é possível manter a reserva de propriedade (artigo 409.º, n.º1 CC), a partir do momento em que as coisas passem a constituir partes integrantes dos prédios. O princípio da totalidade sobre, no entanto, alguma atenuação em matéria de servidões, em relação às quais se pode estabelecer a parte do prédio sobre que podem ser exercidas. Em consequência, o princípio da especialidade os negócios sobre direitos reais são considerados como negócios de disposição, e não como negócios obrigacionais.

O princípio da elasticidade: exprime a admissibilidade da sua compressão, em virtude da constituição de um novo direito real que onera a coisa, bem como da sua expansão, em caso de extinção posterior desse direito. O conteúdo do direito real não é assim imutável, variando à medida que se vão constituindo e extinguindo os direitos reais que incidem sobre a coisa. A propósito desta solução, alguma doutrina (Orlando de Carvalho) tem feito referência a um princípio de compatibilidade (ou da exclusão), referindo que só pode existir um direito real sobre determinada coisa que seja compatível com outro direito que a tenha por objeto. Não parece, porém, que se possa falar de um princípio com essas características. É manifesto que, em caso de sobreposição de direitos sobre a mesma coisa, se torna necessário que a lei restrinja um deles ou ambos, para que todos se possam harmonizar, como sucede com a compressão da propriedade, perante a constituição do usufruto, ou com o regime da compropriedade, em caso de pluralidade de titulares do mesmo bem. Os direitos são, porém, potencialmente incompatíveis entre si, como se vê pela necessidade de compressão que a lei estabelece. Não é naturalmente possível constituir sucessivamente duas propriedades sobre a mesma coisa, mas tal resulta da falta de legitimidade para a realização de uma segunda disposição do mesmo direito, e não de uma falta de compatibilidade dos direitos entre si. Como resultado do princípio da elasticidade, em consequência da extinção de um direito real maior pode retomar o seu conteúdo originário, como sucede com a propriedade, em caso de extinção de usufruto, ou com o usufruto em caso de extinção das servidões que o oneravam.

O princípio da transmissibilidade: este princípio não é especifico dos direitos reais, na medida em que a regra dos direitos patrimoniais é a de que eles são em princípio transmissíveis, tanto em vida como por morte. É, no entanto, nos direitos reais que a transmissibilidade atinge maior importância, sendo incluída na garantia constitucional da propriedade privada (artigo 62.º, n.º1 CRP). A transmissibilidade implica, em primeiro lugar, que os direitos reais possam ser objeto de sucessão por morte (artigo 2024.º CC). Há, no entanto, alguns direitos reais, em relação aos quais se exclui a hereditabilidade, como o usufruto e o uso e habitação, que não podem exceder a vida do titular (artigo 1443.º CT). Em segundo lugar, a transmissibilidade implica que o direito real possa ser transmitido por atos inter vivos. Essa solução é, no entanto, excetuada pela existência de direitos reais inalienáveis, como o uso e habitação (artigo 1488.º CC). O regime da transmissibilidade negocial dos direitos reais encontra-se regulado no artigo 408.º CC, sendo a transmissão negocial dos direitos reais regulada entre nós pelos:

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1. Princípio da consensualidade: significa que para a constituição ou transmissão do direito real basta normalmente o acordo das partes, pelo que a celebração do contrato acarreta logo a transferência do direito real (artigos 408.º, n.º1 e 1317.º, alínea a) CC). A transferência ou constituição do direito real é consequentemente imediata e instantânea. Logo no momento da celebração do contrato, o adquirente torna-se titular do direito objeto desse mesmo contrato. Assim, o efeito real verifica-se automaticamente no momento da formação do contrato, sendo, por isso, a propriedade transmitida apenas com base no simples consenso das partes, verificado nesse momento.

2. Princípio da causalidade: ligado ao princípio da consensualidade, refere que a existência de uma justa causa de aquisição é sempre necessária para que o direito real se constitua ou transmita. Como a existência de título é necessária para a constituição ou transmissão do direito real, a validade ou regularidade da causa de aquisição é imprescindível para que essa constituição ou transmissão se opere, pelo que qualquer vício no negócio causal afetará igualmente a transmissão da propriedade.

O princípio da publicidade: significa que os factos jurídicos relativos aos direitos reais devem ser dados a conhecer ao público em geral. A publicidade pode realizar-se por várias formas. A forma mais comum de assegurar a publicidade dos direitos reais é a posse. A posse desempenha uma função importante para assegurar a publicidade dos direitos reais, principalmente no caso das coisas móveis não sujeitas a registo. A lei atribui mesmo ao possuidor a presunção da titularidade do direito (artigo 1268.º, n.º1 CC), na medida em que pressupõe, até prova em contrário, que a realidade possessória coincide com a realidade substantiva. Em certos casos, a transferência da posse é mesmo necessária para que o direito real se constitua, como sucede no penhor (artigo 669.º, n.º1 CC). A forma mais perfeita de assegurar a publicidade dos direitos reais é, no entanto, através do registo a que estão sujeitos genericamente os bens imóveis (registo predial), assim como certos móveis (automóveis, navios e aeronaves).

O princípio da boa fé: a boa fé constitui um princípio geral do Direito Civil tendo, por isso, igualmente aplicação em Direitos Reais. No entanto, nesta disciplina a boa fé tem um campo de aplicação bastante mais restrito do que o que sucede em Direito das Obrigações. Tal resulta de o nosso legislador não ter consagrado o princípio posse vale título, que protege o possuídor de boa fé contra a reivindicação de móveis. Pode encontrar-se, no entanto, alguma aplicação da proteção do adquirente de boa fé no caso de coisa comprada a comerciante (artigo 1301.º CC), bem como no regime da aquisição tabular (artigos 5.º, n.º1, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr, e 291.º CC). A boa fé tem ainda relevo para efeitos da posse (artigos 1260.º e 1269.º e seguintes CC), da usucapião (artigos 1295.º e 1298.º CC) e da acessão industrial (artigos 1333.º e seguintes e 1340.º e seguintes CC). Em todos estes institutos, o legislador adota uma conceção subjetiva da posse, contrastando com a conceção objetiva primordialmente vigente em Direito das Obrigações. Há, no entanto, certos institutos gerais relativos à boa fé objetiva que têm igualmente aplicação no âmbito dos Direitos Reais, como sucede com o abuso do direito (artigo 334.º CC). Por outro lado, por vezes a lei estabelece deveres de proteção, informação e lealdade no âmbito das relações entre titulares de direitos reais, como sucede com o usufruto (artigo 1475.º CC).

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Secção IV – Características dos Direitos Reais Generalidades: a doutrina tem vindo a apontar as seguintes características dos direitos reais: 1. O caráter absoluto: a posição comum na doutrina considera que o direito real tem caráter absoluto, em virtude de ser oponível erga omnes, enquanto que o direito de crédito apenas seria oponível em relação ao devedor. Numa formulação diferente, Oliveira Ascensão considera que o direito real tem caráter absoluto porque não assenta em nenhuma relação, ao contrário do que sucede com o direito de crédito que se estrutura com base numa relação jurídica entre credor e devedor. Pelo contrário, Menezes Cordeiro considerando idêntica a oponibilidade dos direitos reais e dos créditos em relação a terceiros, entende que a absolutidade nunca é característica dos direitos reais. É manifesto que, quer seja de um prisma estrutural, quer por um prisma de oponibilidade, o direito real tem caráter absoluto, na medida em que não se estrutura com base em qualquer relação jurídica, e por isso pode ser oposto erga omnes. Como consequência do caráter absoluto do direito real resulta o facto de existir um dever genérico de respeito desse direito por parte dos outros sujeitos, aos quais o titular do direito pode sempre opor eficazmente o seu direito. Na verdade, ao contrário do que sucede com as obrigações, que pretendem estabelecer relações de cooperação entre os sujeitos, os direitos reais abstraem de qualquer relação, atribuindo ao titular um domínio reservado de atuação, que todos os outros sujeitos têm que respeitar. É neste sentido que se exprime que os direitos reais têm caráter absoluto, na medida em que são oponíveis a qualquer pessoa que se pretenda ingerir no domínio reservado ao seu titular. Nos direitos reais de gozo, a oponibilidade erga omnes resulta das ações reais, como a ação de reivindicação (artigo 1311.º a 1315.º CC), que podem ser utilizadas para defesa do direito, independentemente da demonstração da irregularidade da aquisição por parte do possuidor ou detentor da coisa. Nos direitos reais de garantia a oponibilidade consiste na faculdade de satisfação do crédito a partir dos rendimentos da coisa (consignação de rendimentos) ou do produto da sua venda (restantes direitos reais de garantia) contra quem não tenha direito preferente. Nos direitos reais de aquisição, como a promessa real ou as preferências reais, o caráter absoluto resulta de a aquisição pode ser desencadeada independentemente do atual titular do bem (cf. para a preferência o artigo 1410.º CC). 2. A inerência: significa que o direito real está de tal forma ligado à coisa que é o seu objeto, que a ela inere e não pode dela ser desligado, tendo assim a coisa que ser existente, certa e determinada para poder ser objeto do direito real. Por esse motivo, as vicissitudes que afetam a coisa determinam modificações no conteúdo do direito e qualquer transmissão do direito para outra coisa é juridicamente impossível. Conforme se referiu, os direitos reais têm por objeto coisas corpóreas. Estabelecem, no entanto, com a coisa uma ligação especialmente intensa, na medida em que não podem ser dela separados, designadamente para passarem a ter outra coisa como objeto. Há, no entanto, alguma discussão que se pode estabelecer a propósito da figura da sub-rogação, a qual pode ser geral, como na restituição dos bens do ausente (artigo 119.º CC) ou especial, como no caso de perecimento ou diminuição de valor do objeto hipotecado (artigo 692.º CC). No caso de sub-rogação geral, a questão não se coloca, pois não há um direito real, dado que estes não incidem sobre complexos de direitos, mas antes sobre um crédito à

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão restituição de bens. Já no caso de sub-rogação especial, é manifesto que o direito real se extingue quando se altera o seu objeto, constituindo-se um outro. 3. A sequela: a sequela significa que o direito persegue a coisa, onde quer que ela se encontre, mesmo que tenha sido transmitida para outra pessoa (ubi rem invenio, ibi vindico). A sequela é assim uma manifestação dinâmica da inerência, significando que o titular pode ir buscar a coisa, independentemente de qual o seu atual possuidor ou detentor, mesmo que ela venha a ser objeto de uma cadeia de transmissões. Assim, quer a ação de reivindicação nos direitos reais de gozo, quer a execução nos direitos reais de garantia, quer a aquisição nos direitos reais de aquisição são sempre possíveis, independentemente da quantidade de vezes que o bem tenha sido transmitido para terceiro de boa fé. Pelo contrário, nos direitos de crédito, o credor não pode atingir a coisa, a partir do momento em que ela sai do património do devedor. A sequela é característica de todos os direitos reais, e apenas destes. Não existe sequela nos títulos de crédito, uma vez que a posse do título determina apenas o sujeito ativo da obrigação, mas não o sujeito passivo, ao contrário do que se exigiria nos direitos reais. Também a nosso ver, não existe sequela na locação uma vez que o direito do locatário não é defendido por ações reais, mas antes por ações pessoais, ainda que se lhes confira tutela possessória. A regra emptio non tollit locatum (artigo 1057.º CC) assenta antes num fenómeno de sub-rogação legal forçada. De notar que alguma doutrina estrangeira tem considerado como exceção à sequela a regra posse vale título. Uma vez que essa solução não vigora entre nós, dado que a lei admite perfeitamente a reivindicação de móveis, mesmo contra terceiros de boa fé, não se poderá falar nesse caso de exceção à sequela. Entre nós, a reivindicação pode amplamente exercer-se mesmo contra terceiros de boa fé, que só são protegidos em casos especiais (designadamente por força das regras de registo). 4. A prevalência: significa que o direito real que primeiro se constituir prevalece sobre todos os direitos reais de constituição ou registo posterior, bem como sobre todos os direitos de crédito que se venham a constituir. Caracteriza-se, assim, por uma maior força dos direitos reais sobre os direitos de crédito, bem como pela circunstância de os direitos reais que não se possam compatibilizar sobre a mesma coisa se hierarquizarem por uma ordem de precedência, que pode ser conferida pela prioridade na constituição ou pela prioridade no registo. Este entendimento da prevalência corresponde à noção clássica, a qual veio a ser sustentada por Pires de Lima, para quem o direito real confere ao seu titular o direito de excluir em primeiro lugar todos aqueles que têm um direito de crédito e em seguida todos os que têm um direito real posterior (qui prior est tempore potior iure). A prevalência não existiria assim apenas nos direitos reais de garantia, mas também nos direitos reais de gozo, designadamente em caso de dupla alienação do mesmo direito, sendo um atributo natural de todos os direitos reais de gozo ou de garantia. O autor reconhecia, porém, a existência de limitações à aplicação da prevalência, como no caso dos privilégios creditórios que prevalecem sobre garantias reais anteriores, admitindo ainda que a mesma também pudesse existir nos direitos de crédito, quando eles fossem garantidos por privilégios gerais. A esta posição veio, no entanto, opor-se Luís Pinto Coelho, para quem a noção de prevalência deve ser restrita às situações em que exista uma pluralidade de direitos sobre a mesma coisa, o que nem sempre acontece nos exemplos referidos por Pires de Lima. No entender de Pinto Coelho, não faria sentido falar de prevalência entre direitos de natureza diferente, como direitos reais e direitos de crédito, uma vez que estes se ordenam segundo a sua natureza, mas de espécie

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão diversa, como a servidão, o usufruto, e a hipoteca, uma vez que estes coexistem entre si sem qualquer conflito. Finalmente, também não faria sentido falar de prevalência no caso de conflito entre direitos da mesma natureza que fossem compatíveis entre si, como sucederia relativamente aos direitos dos comproprietários. No entanto, no caos de dupla alienação de direitos da mesma natureza, de acordo com Pinto Coelho, também não faria sentido falar de prevalência, uma vez que, dado que com a primeira alienação o alienante perdeu a legitimidade para voltar a dispor do bem, não existiria um verdadeiro conflito entre direitos reais, mas antes um conflito entre um direito e um não-direito. A prevalência, segundo o autor, seria assim restrita aos direitos reais de garantia, único caso em que seria necessário hierarquizar direitos reais da mesma natureza incidentes sobre a mesma coisa. A tese de Pinto Coelho veio a ter bastante influência nos diversos Professores da Faculdade de Direito de Lisboa. Assim, Paulo Cunha veio igualmente sustentar a tese da limitação da prevalência aos direitos reais de garantia, considerando, no entanto, que a ordenação desses direitos se fazia segundo critérios que não tinham necessariamente a ver com a antiguidade dos direitos. Em sentido contrário, Dias Marques manteve a prevalência como característica geral dos direitos reais, considerando-a mesmo ligada à sequela, como consequência da inerência, já que seria em virtude da inseparabilidade do direito real em relação ao seu objeto, que não o só o seguiria, mas prevaleceria sobre outros direitos ulteriormente constituídos. Posteriormente, Oliveira Ascensão aderiu expressamente à tese de Luís Pinto Coelho de que não haveria prevalência nos direitos reais de gozo, uma vez que só se poderia falar de prevalência quando existisse um conflito de direitos, enquanto que na dupla alienação o segundo ato de alienação é nulo (artigo 892.º CC), pelo que nunca se chega a adquirir um direito real que pudesse entrar em conflito com o direito do primeiro adquirente. Mas o autor vai mais longe, negando que exista prevalência nos direitos reais de garantia, considerando a situação como uma mera questão de relações dos direitos reais entre si. Em consequência, Oliveira Ascensão limita a prevalência aos conflitos entre direitos reais e direitos de crédito, considerando que a mesma exprime apenas a maior força dos direitos reais sobre os créditos. Mais longe, ainda, foi, porém, Menezes Cordeiro, que negou que a prevalência seja em absoluto característica dos direitos reais. Seguindo as posições de Pinto Coelho e de Oliveira Ascensão, o autor nega que exista prevalência nos direitos reais de gozo e nos direitos reais de garantia, mas vai mais longe, negando que a prevalência se verifique sequer nos conflitos entre direitos reais e direitos de crédito. A seu ver, dado que o direito de crédito se extingue por impossibilidade quando a coisa é alienada a um terceiro, estar-se-ia assim perante um ex-direito de crédito, o que impede que se possa falar de prevalência, dado que esta pressupõe um conflito entre direitos. A esta posição veio posteriormente aderir Rui Pinto. Na escola de Coimbra não se aceitou, porém, a crítica de Luís Pinto Coelho em relação à negação da prevalência como característica dos direitos reais. Assim, Henrique Mesquita recusou expressamente essa crítica, considerando que o conflito entre dois ou mais adquirentes de pretensos direitos reais incompatíveis sobre a mesma coisa é resolvido atribuindo prevalência ao primeiro adquirente. Carlos Mota Pinto manteve a opinião de que a prevalência funcionaria como regra geral de conflitos entre direitos reais, ainda que funcionaria como regra geral de conflitos entre direitos reais, ainda que funcionasse de maneira diferente. Nos direitos reais de gozo, a prevalência funcionaria como condição de existência do direito, enquanto que nos direitos reais de garantia funcionaria como uma condição de exercício do direito, dado que um direito só poderia ser satisfeito após a satisfação do outro. Esta posição parece vir a ser igualmente seguida por Santos Justo. Na Universidade Católica 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão aderiu igualmente a esta posição Luis Carvalho Fernandes. Autores mais recentes como Rui Pinto Duarte e José Alberto Vieira não tomam posição sobre esta questão. A nosso ver, não há qualquer justificação para pôr em causa a prevalência como característica dos direitos reais, apresentando a posição contrária argumentos formalistas para pôr em causa uma característica óbvia dos direitos reais, e que permite claramente distingui-los dos direitos de crédito, independentemente da forma como a lei resolve o problema. É manifesto que os direitos de crédito não possuem prevalência, uma vez que se regem pela regra da igualdade entre credores, participando todos no concurso de credores, independentemente da data de constituição dos seus créditos (artigo 604.º, n.º1 CC). Essa situação já não se verifica se forem constituídos direitos reais, uma vez que para estes não vigora a mesma solução, sendo antes dada prioridade ao direito primeiramente constituído (prior in tempore, potior in iure), sendo esta uma primeira aproximação à prevalência (artigo 604.º, n.º1 CC). Nos direitos reais de gozo, é verdade que a prevalência vai implicar que apenas o direito resultante da primeira alienação se constitua, não se chegando o segundo direito a constituir (salva a hipótese de aquisição tabular). Não há, porém, nenhum motivo para não configurar essa situação como prevalência, uma vez que se a primeira disposição prevalece sobre a segunda (sendo esta afetada de nulidade) é precisamente porque está em causa a constituição de um direito real. Se se tratasse da constituição de um direito de crédito, o segundo negócio seria absolutamente válido. Neste sentido, se pode falar em prevalência na constituição dos direitos reais de gozo. Já nos direitos reais de garantia, a prevalência não vai implicar a não constituição desses direitos, mas apenas que um só seja satisfeito após o outro o ser. É verdade que esta situação se reconduz a um conflito entre direitos reais, mas a solução legal passa pela prevalência de um deles, ao contrário do que sucede nos direitos de crédito, em que os credores são colocados em pé de igualdade. Nesse sentido, também se pode falar em prevalência nos direitos reais de garantia. Finalmente, é manifesta a existência de prevalência na relação entre os direitos reais e os direitos de crédito. É verdade que, a partir do momento em que é constituído um direito real, o direito de crédito se extingue por impossibilidade, mas essa extinção resulta precisamente de ter sido constituído um direito real incompatível que sobre ele prevalece, o que justifica que se fale em prevalência. A prevalência é assim característica dos direitos reais, ainda que funcione em termos divergentes. Ela pode conduzir à não constituição de um direito real de gozo incompatível, à limitação da satisfação do titular de um direito real de garantia após a satisfação do outro, ou à extinção de um direito de crédito incompatível. É possível unificar, no entanto, estas situações numa característica comum de hierarquização dos direitos reais, a que reconduzimos a prevalência. Há, no entanto, por vezes algumas exceções à regra da prevalência nos direitos reais, resultantes do facto de a lei por vezes estabelecer em seu lugar critérios de prioridade baseados na natureza do direito real em questão. É o que acontece com os privilégios creditórios (artigos 745.º e seguintes CC). Embora seja característica dos direitos reais, a prevalência pode ser extensiva a direitos não reais. Assim, por exemplo, os privilégios gerais (artigo 733.º CC). A prevalência é igualmente característica de certos direitos de crédito, como os direitos pessoais de gozo, os quais não são sujeitos à regra do rateio, sendo hierarquizados pela ordem da sua constituição ou do seu registo (artigo 407.º CC).

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Conclusão: ficamos assim com quatro características dos direitos reais: 1. O caráter absoluto: consiste no facto de os direitos reais não se estruturarem com base em qualquer relação jurídica, podendo por isso ser erga omnes. 2. A inerência: consiste no facto de os direitos reais estabelecerem com a coisa uma ligação especialmente intensa, não podendo ser dela separados, designadamente para passarem a ter outra coisa como objeto; 3. A sequela: constitui uma manifestação dinâmica da inerência, significando que o titular pode ir buscar a coisa, independentemente de qual o seu atual possuidor, mesmo que ela venha a ser objeto de uma cadeia de transmissões; 4. A prevalência: significa que o direito real que primeiro se constituir prevalece sobre todos os direitos reais de constituição ou registo posterior, bem como sobre todos os direitos de crédito que se venham a constituir.

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Capítulo IV – A publicidade registal Secção I – Atos e princípios do Registo Predial

O escopo do Registo Predial: a finalidade da instituição do Registo Predial é dotar a ordem jurídica de um dispositivo organizado que permita a qualquer interessado aferir da existência e titularidade dos direitos reais sobre prédios. O artigo 1.º CRPr proclama solenemente: «o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico». Deste modo, supõe-se que a consulta do Registo Predial faculte ao interessado o conhecimento da situação jurídico-real do prédio em questão.

Os atos de registo: são três os atos registais que importa considerar:~  Descrição predial: tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios (artigo 79.º, n.º1 CRPr). Trata-se de determinar a localização física do prédio, onde e situa, qual a sua área, a sua conformação (rústico, urbano ou misto), o seu valor patrimonial constante da matriz e a situação matricial (artigo 82.º CRPr). De cada prédio é feita uma descrição distinta (artigo 79.º, n.º2 CRPr). Espera-se que todos os prédios da área territorial da Conservatória estejam descritos nesta, o que pode não suceder, dado o princípio da instância que rege toda a atividade registal. Nenhum ato registal, nomeadamente, inscrição ou averbamento é feito sem que a descrição do prédio esteja lançada. E a descrição apenas é feita na dependência de uma inscrição ou de um averbamento (artigo 80.º, n.º1 CRPr);  Inscrição: visa definir a situação jurídica dos prédios, mediante extrato dos factos a ela referentes (artigo 91.º CRPr). É este o ato a que normalmente se alude quando se menciona o registo. A inscrição reporta-se aos factos sujeitos a registo segundo o disposto nos artigo 2.º e 3.º CRPr. A inscrição pode ser o

Definitiva: constitui o registo final do facto;

o

Provisória: tem lugar quando o facto a registar é insuficiente para produzir a alteração da situação jurídica do prédio.

Há inscrições que são sempre feitas a título provisório, a denominada provisoriedade por natureza (artigo 92.º CRPr), ou outras que o são por dúvidas do Conservador quanto à registabilidade do facto cuja inscrição inicial foi requerida pelo interessado (artigo 70.º CRPr).  Averbamento: tanto a descrição predial como a inscrição registal podem ser completadas, atualizadas ou retificadas mediante este ato (artigos 88.º, n.º1 e 100.º, n.º1 CRPr).

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O objeto do registo: quando se fala no objeto do registo tem-se em vista o ato de inscrição registal. Acentua-se que o registo tem por objeto factos jurídicos e não situações jurídicas. Como decorre inequivocamente do artigo 2.º CRPr, o objeto do registo são os factos e não direitos. É verdade que nem todos os factos sujeitos a registo produzem uma eficácia real e que o Registo predial publicita efeitos que não são reais, embora estejam sempre conexos com a situação dos prédios. Seja como for, o objeto da inscrição registal é um facto. Inscrevem-se factos para, deste forma, dar a conhecer aos interessados a situação jurídica dos prédios (artigo 1.º CRPr).

O título para registo: como dissemos, a inscrição registal tem por objeto factos, os factos cuja eficácia a ordem jurídica pretende ver publicitada. Para que seja promovido o registo, porém, o facto a registar tem de estar titulado em documento escrito (artigo 43.º, n.º1 CRPr). Porquanto os factos a registar se referem a prédios, os negócios jurídicos estão normalmente sujeitos a forma escrita. O registo do facto é assim feito perante a exteriorização requerida pela ordem jurídica. Quando, porém, tal não suceda, os interessados no registo têm de titular por escrito o facto, ainda que a forma escrita seja indiferente para a sua validade ou eficácia. É o que se passa, nomeadamente, com o registo da usucapião e com o registo da posse (artigo 1295.º, n.º2 CC).

A legitimidade para registar: no artigo 36.º CRPr estabelece que «têm legitimidade para pedir o registo os sujeitos, ativos e passivos, da respetiva relação jurídica e, em geral, todas as pessoas que nele têm interesse ou que estejam obrigadas à sua promoção». A legitimidade para registar pertence, em primeiro lugar, às partes do negócio jurídico. A legitimidade não se confina, todavia, às partes a que respeita o facto a registar. O artigo 36.º CRPr estende-a aos interessados. Quem são os interessados? Decerto, não é interessado qualquer pessoa, senão a formulação do preceito teria sido outra; apesar de tudo, a alusão aos interessados tem o significado de uma restrição. Interessado, na aceção do artigo 36.º CRPr, é aquele cuja posição jurídica pode ser afetada pela falta de registo. Tipicamente, os credores do adquirente são interessados no registo, na medida em que o direito a que se reporta o facto registado integra o património afeto à satisfação do crédito. Para além dos credores, qualquer pessoa que para registar um facto que lhe respeita tenha de fazer outra inscrição prévia tem legitimidade para registar o facto de que depende o seu registo. Finalmente, todos aqueles que, segundo o disposto no artigo 8.º-B, n.º1 CRPr tenham o dever de registar o facto têm igualmente legitimidade para o fazer.

A legitimação registal: diferente da legitimidade para o registo, que responde à questão de saber quem o pode pedir, a legitimação registal prende-se coma regra, segundo a qual, só pode ser titulado um facto jurídico se o disponente tiver prévia inscrição registal a seu favor. A regra consta do artigo 9.º, n.º1 CRPr e do artigo 54.º, n.º2 CNot. Segundo o disposto no artigo 9.º, n.º1 CRPr, «os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo». Uma vez que os factos jurídicos constitutivos, modificativos, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis estão, em regra, sujeitos a escritura pública (artigo 80.º, n.º1 CNot), o notário só pode outorgar a escritura de disposição de direito real atinente a prédio caso o disponente

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão tenha registo a seu favor. E o mesmo se diga das decisões judiciais atinentes à constituição ou transmissão de um direito real a favor de uma das partes. Portanto, quem titule um facto constitutivo ou translativo de direitos reais deve certificar-se previamente que existe inscrição registal do facto aquisitivo do direito a favor do disponente. Se não houver, o ato não deve ser praticado. Os n.º2 e 3 do artigo 9.º CRPr atenuam os efeitos da imposição indireta de registo que resulta do n.º1 admitindo, excecionalmente, que seja titulado o facto constitutivo ou translativo em casos nos quais o disponente não tem registo. Pergunta-se, no entanto, qual é o valor jurídico do ato de constituição ou transmissão do direito se o mesmo houver sido celebrado mesmo sem o disponente ter registo do seu facto aquisitivo? Menezes Cordeiro sustentou a nulidade do negócio jurídico celebrado em violação do disposto no n.º1 do artigo 9.º CRPr, vindo depois a mudar de posição. Em posição diversa, Oliveira Ascensão defendeu a tese da validade, apontando apenas sanções disciplinares a quem titulou o ato em violação do preceito, tese essa que mereceu o acolhimento da jurisprudência em alguns arestos e também de Carvalho Fernandes. Pensamos não haver motivo para a cominação do desvalor da nulidade. O artigo 9.º, n.º1 CRPr não é um comando dirigido às partes, mas ao notário ou ao juiz que titula o ato. A sua violação não deve, por isso, atingir a eficácia do negócio pretendido pelas partes, mas atingir somente o agente dessa violação. Em suma, havendo violação do n.º1 do artigo 9.º CRPr, o negócio é válido, havendo lugar a aplicação de sanções disciplinares, se for o caso.

Princípios do Registo Predial: o Registo Predial estrutura-se com base em princípios. Estes são concretamente:

1. O princípio da obrigatoriedade: afastando-se da solução vigente no Direito Português, o Decreto-Lei n.º 116/2008 introduziu no Direito Português a obrigatoriedade de registo dos factos elencados no artigo 2.º e 3.º CRPr (artigo 8.º-A CRPr), embora se prevejam algumas exceções (artigo 8.º-A, n.º1 CRPr). A obrigatoriedade de registo dos factos elencados na lei não contende, de nenhuma forma, com a eficácia real dos mesmos, seja para a deter seja para simplesmente a suspender até que o registo seja feito. Como se explicou a propósito do princípio da consensualidade, a eficácia real decorre do contrato, por efeito da celebração válida deste, e não depende do registo. A obrigatoriedade de registo prevista no artigo 8.º-A CRPr não muda isto e não contende, repete-se, com a eficácia real do facto sujeito a registo. A obrigatoriedade do registo predial concretizase pela imposição de um dever de registar a uma categoria de destinatários (artigo 8.ºA CRPr). A incumbência cabe, em primeiro lugar, ao profissional que for chamado a titular o facto sujeito a registo ou a reconhecer as assinaturas das partes. Estão em causa, o notário – nos casos de escritura pública, autenticação de documento particular ou de reconhecimento de assinatura – o advogado, o solicitador e as Câmaras de Comércio e de Indústria, nos casos em que a lei lhes cometa competência para a titulação de factos sujeitos a registo. No caso de não haver intervenção de profissional, o dever mencionado cabe ao sujeito ativo do facto sujeito a registo, uma expressão usada para designar o adquirente do direito ou da situação jurídica envolvida. Para além destes, o artigo 8.º-B CRPr obriga ainda os tribunais, o Ministério Público e os Agentes e Execução nas situações referidas no n.º3. A promoção do registo por alguém com legitimidade legal para o fazer, exonera o obrigado (artigo 8.º-A, n.º5 CRPr).

2. O princípio da legalidade: vem previsto no artigo 68.º CRPr. Este princípio comporta duas modalidades:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. O controlo formal da legalidade: num sistema em que este vigore, o conservador controla unicamente o respeito pela regra da forma legal e a legitimidade das partes, sem entrar na apreciação de outros aspetos da forma legal e a legitimidade das partes, sem entrar na apreciação de outros aspetos da validade do facto a registar; b. O controlo substancial da legalidade: num sistema em que este vigore, cabe ao conservador mais do que a apreciação do respeito pela forma legal e a legitimidade das partes, um verdadeiro controlo de validade do ato sujeito a registo. O CRPr adotou um sistema de legalidade substancial, erguendo o conservador como uma instância de controlo dos requisitos de validade negocial. O artigo 68.º CRPr não limita o exame do conservador à regularidade formal dos títulos ou à aferição da legitimidade dos interessados, estendendo-o à verificação da identidade do prédio e, fundamental, à validade dos atos dispositivos nele contidos. Havendo alguma anomalia, o conservador deve recusar o registo nos casos previstos no artigo 69.º CRPr, lançando o registo como provisório por dúvidas nas situações contempladas no artigo 70.º CRPr. Este princípio deve, em todo o caso, ser contido no domínio tabular. O conservador não pode ter mais poderes do que tem o juiz num processo civil. Fora de causa está a invocação de anulabilidades. A lei atribui a legitimidade para a arguição respetiva àquele em cujo interesse a estabelece (artigo 287.º, n.º1 CC). O conservador não pode,, assim, substituir o juízo do titular do direito à anulação. Como direito subjetivo, este direito está exclusivamente na disponibilidade deste. Como ressalva ao que ficou dito, restam os casos em que a anulabilidade resulta da falta de consentimento de um terceiro ou de autorização do tribunal, porquanto a lei determina nestes caso a inscrição como provisória por natureza (alínea a) do n.º1 do artigo 92.º CRPr). O mesmo se diga relativamente a nulidades atípicas, em que a lei atribua a uma das partes o direito a fazer declarar a nulidade. O conservador não deverá recusar o registo com base no artigo 69.º CRPr, cabendo ao titular do direito exercê-lo, se assim o entender. Restam as nulidades típicas, as que estão sujeitas ao regime geral (artigo 285.º e seguintes CC). Quanto a estas importa distinguir. A nulidade estabelecida na norma visa prosseguir um escopo público ou de terceiros, que não as partes? A ser assim, o conservador deve recusar a inscrição do facto ou inscrevê-lo como provisório por dúvidas, até estas estarem removidas (artigo 70.º CRPr). Estando a teleologia da norma imperativa que sanciona a nulidade dirigida à proteção de uma das partes do negócio jurídico, valem, quanto a nós, as mesmas razões que justificam que o conservador não deva recusar o registo nos negócio anuláveis. No fundo, este princípio consagra uma segunda instância de controlo da legalidade, sobretudo, nos casos em que a celebração do negócio jurídico não foi impedida pelo notário. O papel do conservador, para além da aferição da regularidade formal e a legitimidade das partes, consiste em verificar se o negócio foi titulado de acordo com as exigências legais. Os casos documentados na jurisprudência sobre a recusa por falta de certificação pelo notário da existência de licença de construção ou habitação evidenciam ser disso do que se trata.

3. O princípio da instância: a iniciativa da prática dos atos registais pertence aos interessados no registo; o conservador não lança os registos oficiosamente. É este o significado do princípio da instância previsto no artigo 41.º CRPr que deixa, deste modo, aos particulares o funcionamento da publicidade registal, salvo quando a lei preveja 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão uma exceção. O pedido de registo deve ser apresentado no modelo oficial aprovado e deve ser entregue com os documentos que titulam o facto a registar (artigo 43.º, n.º1 CRPr).

4. O princípio do trato sucessivo: o princípio do trato sucessivo vem previsto no artigo 34.º CRPr. Dispõe o n.º1 do preceito, que «o registo definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite ou onera». O Registo Predial, tendo por finalidade dar a conhecer aos interessados a situação jurídica dos prédios (artigo 1.º CRPr), deve patentear toda a sequência dos factos jurídicos que respeitem a cada prédio descrito. Procura-se, deste modo, que a história jurídica do prédio seja retratada pelo Registo Predial e que a consulta deste pelos interessados revele os factos jurídicos relativos a ele. Com a obrigatoriedade do registo este princípio ficou fortalecido. Explicamos isto através de um exemplo do que pode acontecer em caso do registo devido não ser promovido pelo obrigado: A vendeu a propriedade do prédio x a B. A compra e venda não foi registada por ninguém. O trato sucessivo não impõe a obrigatoriedade do registo, sequer indiretamente, e, por essa razão, nesta hipótese não existe nenhuma violação do artigo 34.º, n.º1 CRPr. Contudo, porquanto o facto (a compra e venda) não foi levado ao Registo Predial, este fica incompleto e comunica a quem o consulte uma situação jurídica desconforme. Do ponto de vista substantivo, o proprietário é B, por força do contrato de compra e venda (artigo 408.º, n.º1 e 879.º, alínea a) CC); registalmente, porém, o proprietário é A, que continua a ser presumido como tal enquanto a situação registal não for alterada com o registo da compra e venda (artigo 7.º CRPr). No caso retratado, a omissão do registo não constitui uma violação do trato sucessivo, pois esta suporia uma inscrição registal não coberta pela inscrição anterior, o que não acontece. Um exemplo de violação verdadeira do trato sucessivo encontra-se na seguinte hipótese: A vendeu a propriedade do prédio x a B. A compra e venda não foi registada por ninguém. Em seguida, B consegue vender o direito a C e o conservador regista a aquisição a favor deste, sem antes ter inscrito a venda a favor de B. O registo feito com violação do trato sucessivo é nulo (artigo 16.º, alínea e) CRPr). O princípio do trato sucessivo tem o conservador como destinatário e não os particulares que requerem o registo. Por isso, a violação do mesmo é da responsabilidade do conservador, que o deve respeitar (artigo 34.º, n.º1 CRPr).

5. O princípio da prioridade: o princípio da prioridade consta do artigo 6.º CRPr. NA redação do nº1 dispõe que «o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes».

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A redação do preceito afigura-se à primeira vista deficiente, porquanto o registo tem por objeto factos e não direitos. Ela liga-se, no entanto, à amplitude de sentido que o princípio da prioridade tem na ordem jurídico-registal portuguesa, que é, na verdade, bem menor do que o teor literal do preceito sugere. O artigo 6.º, n.º1 CRPr consagra uma regra de prioridade, ou, como julgamos tecnicamente mais correto, de prevalência entre direitos compatíveis, que vale, antes de mais, para os direitos reais que se constituam com o registo, nomeadamente, a hipoteca (artigo 687.º CC e artigo 4.º, n.º2 CRPr). Como nenhum outro direito real, de gozo, garantia ou aquisição se constitui com o registo e tem a sua oponibilidade a terceiros dependente do registo do correspondente facto aquisitivo, o princípio da prioridade não tem aplicação quanto a qualquer um desses direitos. Por essa razão, dizemos que a amplitude do preceito é bem menor do que aparenta. Para além dos casos em que o registo é constitutivo de direitos reais, o que em Portugal só acontece com a hipoteca, o princípio da prioridade vale também para os direitos cuja oponibilidade possa segundo a lei ficar dependente do registo. Ilustremos isto com os direitos pessoais de gozo. Segundo o artigo 407.º, n.º1 CC, «quando, por contratos sucessivos, se constituírem, a favor de pessoas diferentes, mas sobre a mesma coisa, direitos pessoais de gozo incompatíveis entre si, prevalece o direito mais antigo em data, sem prejuízo das regras próprias do registo». O artigo 6.º, n.º1 CRPr recebe aplicação neste caso, por força do disposto na parte final do n.º1 do artigo 407.º CC. Por último, a penhora, o arresto e o arrolamento ordenamse igualmente em termos de prevalência de acordo com a data dos respetivos registos. Assim, se recaírem duas penhoras sobre o mesmo prédio, a penhora registada em primeiro lugar prevalece sobre a registada em segundo lugar e assim por diante. Em suma, o princípio da prioridade, ou da prevalência como preferimos dizer, tem um âmbito de aplicação circunscrito aos casos em que se realizam dois ou mais registos de direitos, isto é, direitos reais que segundo a ordem jurídica se constituam com o registo (a hipoteca) ou outros direitos que se refiram a um prédio (direitos pessoais de gozo, penhora, arresto, arrolamento). E significa que prevalece o direito inscrito em primeiro lugar. Num mesmo dia podem ser apresentados vários pedidos de registo de hipotecas ao mesmo prédio. Como a data é a mesma e importa estabelecer a prevalência, a lei fixa um segundo critério: a ordem das apresentações (artigo 6.º, n.º1, in fine CRPr). O critério é, no entanto, afastado quando as hipotecas concorram entre si na proporção dos respetivos créditos (artigo 6.º, n.º2 CRPr). A data do registo definitivo é a data do registo provisório, se este precedeu aquele (artigo 6.º, n.º3 CRPr). Esta regra é fundamental para assegurar a posição do titular do direito que registou primeiramente o título provisório. Tendo em conta a importância que a prevalência tem para o exercício do direito a que se reporta o registo, caso o registo seja inicialmente recusado e o interessado haja recorrido da decisão do conservador, vindo o recurso a ser procedente, a data do registo é a data do pedido inicialmente recusado, não a data da procedência do recurso.

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Secção II – Efeitos do Registo Predial

Ordem substantiva e ordem registal. A prevalência da primeira: o interesse do Registo Predial para o estudo de Direitos Reais prende-se com os efeitos substantivos que a lei registal associa ao registo. A regra em Portugal continua a ser a de que é à ordem substantiva, entendida aqui como o regime jurídico decorrente do Direito não registal, e não à ordem registal que cabe fixar a titularidade, conteúdo e subsistência das situações jurídicas reais. Em caso de divergência entre a realidade substantiva e a realidade registal é a primeira que prevalece. A função primacial do Registo Predial é publicitar as situações jurídicas reais e o seu efeito não é, em regra, atributivo de direitos reais. A prevalência da ordem substantiva sobre a ordem registal infere-se da natureza ilidível da presunção constante do artigo 7.º CRPr. Os factos que o registo atesta podem ser impugnados quanto à sua existência e validade e, feita a prova que o direito não pertence afinal àquele que o registo proclama como titular, o registo deve ser cancelado. É o que decorre do artigo 8.º, n.º1 CRPr e do artigo 13.º CRPr. A divergência ou desconformidade entre a situação registal e a situação substantiva pode acontecer em quatro casos:  Incompletude do registo: o registo diz-se incompleto quando um facto que a ele estava sujeito não foi registado. O registo fica então desatualizado, não exprimindo a eficácia jurídica do facto que não foi levado a registo. Um registo predial incompleto publicita uma realidade – registal – não conforme à realidade substantiva;  Ineficácia do registo: abrange as situações de inexistência do registo (artigo 14.º CRPr) e de nulidade registal (artigo 16.º CRPr). O registo inexistente não produz efeitos, podendo a inexistência ser requerida por qualquer pessoa e sem necessidade de declaração judicial (artigos 15.º, n.º1 e 2 CRPr). O registo nulo tem de ser declarado judicialmente e só depois do trânsito em julgado da decisão pode ser invocado (artigo 17.º, n.º1 CRPr). A inexistência e a nulidade do registo não envolvem necessariamente uma desconformidade entre a ordem substantiva e a ordem registal. Pode, no entanto, ser esse o caso, como sucede, por exemplo, quando o registo se baseia em títulos falsos (artigo 16.º, alínea a) CRPr). Um título falso não constitui decerto um facto aquisitivo válido do direito real, pelo que o registo do mesmo origina a discrepância entre a ordem registal e a ordem substantiva. A desconformidade entre a situação substantiva e a situação registal e a ordem substantiva. A desconformidade entre a situação substantiva e a situação registal proveniente de um registo ineficaz apresenta semelhanças com a do registo incompleto. Em ambos os casos aquele que consulta o Registo Predial pode ser enganado no tocante à situação jurídico-real do prédio. Há uma diferença, porém: no registo incompleto, há um fato que não consta do Registo Predial, porque nenhum dos interessados o registou; no registo ineficaz, o Registo Predial publicita uma situação não conforme à realidade substantiva por vício do próprio ato registal;  Inexatidão do registo: caso análogo ao do registo ineficaz. Segundo o n.º1 do artigo 18.º CRPr, «o registo é inexato quando se mostre lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enferme de deficiências provenientes desse título que não sejam causa de nulidade».

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão O registo inexato pode ser retificado, nos termos do artigo 120.º e seguintes CRPr. Por último, a desconformidade registal com a ordem substantiva pode advir da circunstância do facto registado ser inválido. Ao contrário do registo ineficaz, em que o ato registal – o registo – está viciado, nestas hipóteses o registo é válido e apenas o facto registado se encontra ferido de invalidade. Fala-se aqui em invalidade substantiva, para distinguir da nulidade registal prevista no artigo 16.º CRPr;  Invalidade do facto jurídico registado: o registo efetuado com um título inválido não é nulo. O artigo 16.º CRPr não prevê esta situação como causa de nulidade do registo. E também não se trata de um registo inexato segundo o artigo 18.º, n.º1 CRPr. É unicamente um registo desconforme à realidade substantiva. Como tal, e dado a regra da prevalência de ordem substantiva sobre a ordem registal, pode ser cancelado, se a invalidade do facto jurídico que lhe serviu de base for declarada judicialmente ou as partes acordarem sobre a invalidade e registarem o acordo, em conformidade com o artigo 13.º CRPr. Em atenção à confiança que o Registo Predial deve suscitar no tráfego imobiliário, a desconformidade entre a ordem registal e a ordem substantiva levanta problemas delicados de tutela de terceiro de boa fé que confia na aparência jurídica promovida pela publicidade registal, adquirindo daquele que consta do registo como titular do direito real, não o sendo. Em alguns casos, a ordem jurídica exceciona a regra da prevalência da ordem substantiva sobre a ordem registal e permite que esta funde a proteção do terceiro de boa fé. É o denominado efeito atributivo do registo predial, sobre o qual versaremos adiante.

A extensão da presunção prevista no artigo 7.º CRPr: um problema que se tem colocado é o do alcance da presunção constante do artigo 7.º CRPr, nomeadamente, se ela abrange também os elementos da descrição. Vamos expor brevemente a nossa opinião. A inscrição registal faz-se na dependência de uma descrição (artigo 91.º, n.º2 CRPr). E é natural que quem consulte o Registo Predial confie nos elementos da descrição, constando eles de uma repartição pública organizada e mantida pelo Estado. Nessa medida, a determinação para a celebração de um negócio jurídico pode haver sido influenciada pela descrição predial. Porém, a descrição predial não tem repercussão na situação substantiva do prédio. Se a área predial constante da Conservatória é maior ou menor do que a que foi averbada na descrição, se as confrontações foram mal feitas, se houve uma omissão de construções existentes no prédio, etc., a situação substantiva do prédio não foi alterada. E essa situação é a que resulta da lei, em função dos títulos (factos jurídicos) existentes. Por outro lado, o registo definitivo aludido no artigo 7.º CRPR, por contraposição a provisório, por natureza (artigo 92.º CRPr) ou por dúvidas (artigo 70.º CRPr), reporta-se à inscrição registal, não à descrição. Deste modo, a presunção de titularidade do preceito diz respeito apenas à inscrição registal. A descrição predial não fica abrangida por ela. Portanto, a presunção registal de titularidade constante do artigo 7.º, n.º1 CRPr não abarca os elementos da descrição registal, apenas o que resulta do facto inscrito tal como foi registado.

Os efeitos substantivos do registo predial: o registo predial pode produzir efeitos jurídicos nos direitos reais a que respeitam os factos registados. Todavia, numa ordem jurídica de título, em que vigora o princípio da consensualidade, o registo não interfere, em regra, na constituição ou transmissão do direito real. Ele desempenha aí a sua função normal de publicidade das situações jurídicas reais. Em alguns casos, porém, o registo predial pode ter um papel na constituição do direito real (registo constitutivo) ou surgir mesmo como o seu facto aquisitivo (aquisição tabular). Diversamente, o registo predial pode ainda ser completamente indiferente

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão até mesmo para a publicidade da situação jurídica (registo enunciativo). Falaremos em cinco efeitos jurídicos do registo predial:

1. O efeito presuntivo: o efeito presuntivo do registo predial funda-se no artigo 7.º CRPr . Como sabemos, estamos defronte de uma presunção ilidível, por conseguinte, suscetível de ser afastada mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º2 CC). Quem tem a presunção registal a seu favor, escusa de provar a titularidade do direito a que o registo alude (artigo 350.º, n.º1 CC). A presunção abrange os elementos da inscrição registal, mas não os da respetiva descrição. A presunção fundada no registo pode colidir com a presunção fundada na posse (artigo 1268.º, n.º1 CC). Nessa altura, prevalece a mais antiga. Isto quer dizer, que a presunção assente no registo predial não vale de nada se houver uma posse anterior ao registo. Neste caso, o titular inscrito terá de levar a cabo a atividade probatória tendente a demonstrar a titularidade substantiva do direito em causa. A presunção registal vale nos casos de registo nulo, mas não de registo juridicamente inexistente. O artigo 15.º, n.º1 CRPr não deixa margem para outro entendimento. Se o registo inexistente não produz qualquer efeito, também não produz o efeito presuntivo. O registo nulo, ao invés, produz o efeito presuntivo até ser cancelado com base numa decisão judicial transitada em julgado (artigo 13.º e 17.º, n.º1 CRPr).

2. O efeito consolidativo: por força do princípio da consensualidade (artigo 408.º, n.º1 CC), a constituição ou transmissão do direito real opera por mera eficácia do contrato, portanto, independentemente do registo, que, para o efeito, não é necessário, podendo deixar de ser feito. Também outros factos aquisitivos de direitos reais, a usucapião, a acessão, a decisão judicial, não carecem de registo para desencadear a sua eficácia. Neste contexto normativo, o registo não é parte integrante do facto aquisitivo do direito real. Pode-se, então, perguntar, que efeito – substantivo – tem? Para além de permitir a disposição, notarial e judicial, do direito real, o registo evita a aquisição tabular de um terceiro. É por isso que se fala em efeito consolidativo. O titular do direito real que tem o registo do facto aquisitivo respetivo, fica ao abrigo de uma aquisição tabular de terceiro.

3. O efeito constitutivo: o registo predial não tem, em regra, efeito constitutivo. Isto significa que não integra nenhum facto complexo de produção sucessiva em que ele seja o culminar da aquisição do direito real. O único exemplo em Portugal de efeito constitutivo do registo predial é a hipoteca (artigo 687.º CC e 4.º, n.º2 CRPr). O ponto, todavia, não se apresenta inteiramente pacífico. Oliveira Ascensão tem sustentado que, no caso de hipoteca, o registo é meramente condicionante da eficácia absoluta. Antes disso, parece, teríamos um direito real desprovido de oponibilidade. Não sufragamos esta posição. Em nossa opinião, o registo constitui uma parte, a parte final, do processo de constituição do direito real hipoteca, e não uma mera condição de oponibilidade. O registo tem, pois, neste caso, eficácia constitutiva de um direito real.

4. O efeito atributivo ou aquisição tabular: no sistema registal português, vigorando embora uma obrigatoriedade de registar, pode ainda assim acontecer que o registo fique incompleto, e desse modo inexato em face da realidade substantiva, por não ser registado o facto jurídico a ele sujeito. Dado que o registo predial visa dar a conhecer aos interessados a situação jurídico-real dos prédios, consagrando uma presunção de titularidade (artigo 7.º CRPr) que outorga a legitimação para qualquer ato de disposição

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão (artigo 9.º, n.º1 CRPr), se ele estiver incompleto, existe o risco de que quem vier a praticar um ato jurídico nada adquira, nomeadamente, por o titular inscrito já não ser o titular do direito na ordem substantiva e não ter, deste modo, legitimidade para dispor do seu direito. Atendendo a que a ordem substantiva prevalece sobre a ordem registal, o titular do direito real pode pedir e obter, em princípio, o cancelamento do registo predial do não titular (artigo 13.º CRPr), que vê, assim, a sua posição ser destruída. Os casos de ineficácia do registo, de inexistência jurídica e de nulidade, acrescentam outro trecho de desconformidade potencial entre a situação substantiva e a situação registal. Quer com o registo inexistente quer com o registo nulo, a situação registal pode estar em discrepância com a situação substantiva e aquele em favor do qual funciona a presunção registal não ser o titular do direito na ordem substantiva. O mesmo se diga nas hipóteses de registo inexato. Um erro no lançamento do registo arrasta consigo uma desconformidade registal. Por último, termos os casos de invalidade substantiva com registo válido. Um registo de facto inválido suscita uma óbvia desconformidade entre a ordem substantiva e a ordem registal. A prevalecer a ordem substantiva sobre a ordem registal em todos os casos, nenhum dos terceiros adquirentes de direito com base numa situação registal desconforme com a realidade substantiva ficaria protegido, independentemente do facto de ter agido com base na presunção de titularidade fundada no registo. Importa notar, todavia, que o registo predial representa um serviço do Estado e os trabalhadores do registo são funcionários públicos. Ademais, a situação registal confere legitimidade ao titular inscrito para dispor do seu direito (artigo 9.º, n.º1 CRPr) e funda uma presunção de titularidade do direito (artigo 7.º CRPr). Todos estes fatores levam a que o registo predial, para realizar efetivamente o seu escopo de conferir segurança jurídica ao comércio jurídico imobiliário (artigo 1.º CRPr), deva incutir fé pública no que publicita relativamente a qualquer pessoa que o consulte, aquilo a que a doutrina denomina usualmente de fé pública registal. De modo a assegurar esta fé pública registal, a ordem jurídica tem de equacionar o problema da proteção do terceiro que confia na aparência suscitada pelo registo e depois vem a praticar um ato de aquisição de um direito real com quem afinal não era o titular do direito, ato esse que surgirá inelutavelmente afetado pelo vício da ilegitimidade do disponente, sendo, por isso, e em regra, nulo. Proteger um terceiro que adquire um direito na base de uma situação registal desconforme à realidade substantiva significa preterir sempre o titular do direito real na ordem substantiva, em última análise, o proprietário, a favor de quem não adquiriu validamente o seu direito. A proteção de terceiro com base na ordem registal, a acontecer, constitui uma inversão da prevalência da ordem substantiva sobre a registal e ergue o ato de registo (a inscrição registal) em verdadeiro facto aquisitivo de direitos reais. Desta maneira, a norma jurídica onde se atribua tal proteção a terceiro constitui uma norma jurídica excecional, com tudo o que esta categoria de normas envolve, nomeadamente a proibição de analogia. A proteção registal contra o titular do direito real na ordem substantiva denomina-se aquisição tabular ou, sob o prisma dos efeitos jurídicos, efeito atributivo do registo predial. Essa proteção tem por fundamento a fé pública registal. A aquisição tabular não beneficia qualquer pessoa que tenha adquirido invalidamente um direito por força de uma situação registal desconforme à realidade substantiva. Beneficia apenas o terceiro para efeitos do registo predial. Seja como for, e como veremos, não há um conceito de terceiro que sirva para todas as situações em que alguém tenha adquirido um pseudo direito na base de uma situação registal desconforme. Existem quatro preceitos onde se pode radicar uma aquisição

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão tabular ou efeito atributivo do registo predial. Esses preceitos são os artigos 5.º, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e 291.º CC. a. A aquisição tabular no artigo 5.º CRPr: A consagração da conceção restrita de terceiro: o artigo 5.º, n.º1 CRPr dispõe que «os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo». Atento o sentido literal imediato induzido pela redação do n.º1 do artigo 5.º CRPr, pareceria que o direito real só teria oponibilidade contra terceiro se o facto aquisitivo desse direito houvesse sido registado. Não é isso, porem, o que decorre do artigo 5.º, n.º1 CRPr. Este preceito não tem por escopo fazer depender a oponibilidade do direito real da prévia inscrição registal da aquisição a favor do seu titular. O seu objetivo é antes proteger o terceiro que, confiando na aparência de uma situação registal desconforme à realidade substantiva, celebra um negócio jurídico inválido com o titular inscrito e regista a sua aquisição. Isto conduz-nos ao primeiro requisito de aplicação do artigo 5.º, n.º1 CRPr. O preceito abrange apenas os casos de registo incompleto, nos quais um terceiro adquire um direito num negócio jurídico inválido – concretamente nulo, por falta de legitimidade do seu disponente – e regista o facto. Sem registo do correspondente facto aquisitivo, o terceiro não obtém proteção. Chegamos, assim, a outro requisito de aplicação do artigo 5.º, n.º1 CRPr: o terceiro, para ser protegido, tem de inscrever o facto aquisitivo do seu direito. Caso o titular do direito real na ordem substantiva registe a sua aquisição antes do terceiro, este não beneficiará da proteção registal prevista no artigo 5.º, n.º1 CRPr. Sabemos já que o artigo 5.º, n.º1 CRPr supõe a pré-existência de um registo desconforme à realidade substantiva, por estar incompleto, e que o terceiro só obtém a proteção instituída naquele preceito se tiver registo; mas quem é terceiro para efeitos do registo? Na redação inicial do artigo 5.º CRPr discutiase vivamente quem deveria ser considerado terceiro para efeitos de aplicação do preceito, tendo-se gerado duas teorias a este propósito, a denominada conceção ampla de terceiro, como origem em Guilherme Moreira, e a conceção restrita, devida a Manuel de Andrade. Na formulação inicial da conceção ampla de terceiro, Guilherme Moreira defende que «relativamente aos atos sujeitos a registo predial, consideram-se como terceiros todos aqueles que tenham adquirido e conservado direitos sobre os imóveis, que seriam lesados se o ato não registado produzisse efeitos a respeito deles». Do lado da teoria oposta, Manuel de Andrade escreveu: «terceiros para efeito do registo são aqueles que adquirem de autor comum direito incompatível». Durante um aceso debate, a jurisprudência tomaria posição nos dois sentidos, tornando praticamente imprevisível a decisão de cada caso. Em face da proliferação de jurisprudência contraditória no próprio Supremo Tribunal de Justiça, este tribunal veio a uniformizar jurisprudência nos termos previstos no

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão CPC. No Acórdão uniformizador de jurisprudência de 4 julho de 1997 decidiu o STJ: «Terceiros, para efeitos do registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, vejam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente». O aresto consagrou a conceção ampla de terceiro. No entanto, a sua doutrina vigorou por pouco tempo, pois, logo em 18 maio 1999, o STJ proferiu outra decisão, o Acórdão 3/99, agora favorável à conceção restrita: «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º CRPr, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa». Pouco tempo depois, o Decreto-Lei n.º 533/99, 11 dezembro aditaria um n.º4 ao artigo 5.º CRPr: «Terceiros, para efeitos do registo, são aqueles que tenham adquirido de autor comum direitos incompatíveis entre si». O legislador português perfilhou a conceção restrita de terceiro, que está assim vertida no sistema normativo português. Deste modo, só fica protegido pelo registo predial o terceiro que, tendo registado a sua posição, haja adquirido do mesmo disponente o direito real incompatível. Ao contrário, um terceiro cuja posição jurídica não tenha resultado de um ato de disposição praticado pela mesma pessoa não fica protegido pelo artigo 5.º, n.º1 CRPr. E isto inclui o autor de hipoteca legal ou judicial, cujo direito não provém de um ato de disposição do titular inscrito no registo. O artigo 5.º, n.º1 CRPr tem por campo de aplicação os casos de incompletude registal, portanto, situações em que um facto sujeito a registo não foi registado, deixando o registo predial em desconformidade com a ordem substantiva. A sua teleologia é a da proteção do terceiro que pratica um negócio jurídico de aquisição de um direito real com aquele que figura no registo como seu titular, não o sendo. Esse negócio jurídico está viciado por falta de legitimidade do disponente, o que significa que é nulo; no entanto, pela fé pública que o registo predial deve incutir, a lei, verificados determinados requisitos, protege o terceiro que registou a sua aquisição. A proteção registal está hoje, por força do artigo 5.º, n.º4 CRPr, limitada aos terceiros que tenham adquirido o seu – pseudo – direito da mesma pessoa que o transmitiu ao titular do direito incompatível. O que restringe a proteção registal por registo incompleto aos caso de dupla disposição. Nos casos de dupla disposição cobertos pelo artigo 5.º, n.º1 CRPr a mesma pessoa dispõe duas veze do mesmo direito real sobre o prédio. Se o disponente tem registo a seu favor e o primeiro ato de disposição não é levado ao registo, a situação registal fica desconforme à realidade substantiva (registo incompleto). Porquanto o disponente continua a figurar no registo como titular do direito, a legitimação registal (artigo 9.º, n.º1 CRPr), ligada à presunção de titularidade do direito (artigo 7.º, n.º1 CRPr), permite-lhe dispor uma segunda vez. O segundo ato de disposição é, porém, nulo, por falta de legitimidade do disponente; se este dispôs do direito no

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão primeiro ato, já não tem legitimidade para dispor dele uma segunda vez (para a compra e venda e outros negócios onerosos, ex vi artigo 939.º, o artigo 892.º e, para a doação, o artigo 956.º, n.º1 CC). Contudo, uma vez que o registo está incompleto, e enquanto estiver, qualquer interessado consegue registar o segundo ato de disposição. É aqui que intervém o artigo 5.º, n.º1 CRPr. No conflito gerado entre o titular do direito real na ordem substantiva, que não tem registo do facto aquisitivo, e o pseudo adquirente, que nada adquiriu validamente na ordem substantia (o negócio por ele celebrado é nulo), aquele preceito determina a proteção do terceiro pseudo adquirente, se este registar antes do registo do primeiro negócio jurídico e caso se cumpram os demais requisitos de proteção, a que aludiremos de seguida. O significado desta proteção é a aquisição por via tabular de um direito que não havia sido adquirido por via substantiva. O terceiro adquire por força do registo o direito real a que se refere a sua inscrição registal. Daí falar-se em efeito atributivo do registo predial ou aquisição tabular. Vimos que o artigo 5.º, n.º1 CRPr confere proteção registal ao terceiro na situação de registo incompleto com dupla disposição, contado que o terceiro tenha registo da sua aquisição. Para além dos requisitos que acima enunciámos, torna-se ainda necessário que o terceiro esteja de boa fé e o facto aquisitivo seja oneroso. O artigo 5.º, n.º1 CRPr não faz qualquer menção à boa fé, mas esta é uma imposição decorrente da integração sistemática do preceito e da sua teleologia. No que se refere à integração sistemática, nos artigos 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e 291.º CC, a lei portuguesa exige a boa fé. Não pode ser diferente no artigo 5.º, n.º1 CRPr, apesar da omissão expressa deste requisito. O argumento teleológico é igualmente decisivo. A proteção registal do terceiro tem por fundamento a fé pública registal e visa preservar a confiança que o registo predial deve suscitar enquanto instituição organizada e mantida pelo Estado. Se o terceiro conhece ou devia conhecer a desconformidade entre a situação registal e a situação substantiva, a razão para a proteção do terceiro deixa de se verificar. Compreende-se que o terceiro de má fé não receba nunca a proteção da ordem jurídica registal. Se a proteção tabular envolve o sacrifício da posição jurídica do titular do direito real, esse sacrifício justifica-se apenas quando está em causa a fé pública registal. Se o terceiro conhece ou devia conhecer o direito do verdadeiro titular, o registo predial não defraudou a sua confiança na situação substantiva, e não merece, pois, qualquer proteção da ordem jurídica, ainda que o registo predial estivesse objetivamente desconforme com a realidade substantiva quando ele registou a sua pseudo aquisição. O conceito de boa fé relevante para efeitos de proteção tabular de terceiro encontra-se previsto no n.º3 do artigo 291.º CC. Ele vale para todas as hipóteses de efeito atributivo do registo predial e, portanto, também para os casos dos artigos 5.º, n.º1 17.º, n.º2 e 122.º CRPr. O artigo 291.º, n.º3 CC consagra uma boa fé subjetiva ética. Não basta, pois, o mero desconhecimento da lesão do direito alheio para a existência de boa fé. O terceiro que desconhece culposamente o direito real de terceiro está de má fé. Apenas o desconhecimento desculpável releva para a existência de boa fé. O terceiro só fica protegido pelo registo predial quando celebrou o negócio jurídico a título oneroso. Assim, se o terceiro regista uma doação, por exemplo, não pode ser protegido pelo artigo 5.º, n.º1 CRPr. Carvalho Fernandes opôs-se a este entendimento, defendendo que as aquisições a título gratuito não 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão prejudicariam a posição do terceiro de boa fé que registasse a sua aquisição antes do registo do verdadeiro titular. Mas tem contra si o argumento sistemático, que é muito ponderoso. Em todas as hipóteses em que se enunciam os requisitos da aquisição tabular do terceiro, nos artigos 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e no artigo 291.º CC, a lei é expressa em exigir que a aquisição seja a título oneroso. Por que razão haveria de ser diferente no artigo 5.º, n.º1 CRPr? A conjugação de todos os preceitos atinentes ao efeito atributivo depõe a favor de requisitos comuns da aquisição tabular, a boa fé e o caráter oneroso do facto aquisitivo, e não se vislumbra nenhum argumento em sentido diverso. Estamos, assim, em condições de enunciar sinteticamente os requisitos da proteção tabular do terceiro segundo o artigo 5.º, n.º1 e 4 CRPr: i. Pré-existênicia de um registo desconforme à realidade substantiva (registo incompleto); ii. Ato de disposição praticado com base na situação registal desconforme; iii. Boa fé do terceiro; iv. Caráter oneroso do negócio jurídico de disposição; v. Que o terceiro registe a sua aquisição antes do registo do facto aquisitivo do titular do direito real na ordem substantiva. Ao registo da aquisição do direito equivale o registo da ação de declaração de invalidade do negócio celebrado entre o duplo disponente e o terceiro. Na verdade, se o terceiro apenas consegue registar a sua aquisição após o registo da ação de declaração da nulidade do negócio por si celebrado, não pode invocar a seu favor a fé pública registal, porquanto o registo predial já patenteava a desconformidade com a ordem substantiva quando o seu registo foi feito. Conforme resulta do exposto, o alcance do artigo 5.º, n.º1 CRPr nada tem a ver com a oponibilidade do direito real. Um direito real cujo facto aquisitivo não foi registado mantém a sua oponibilidade normal contra terceiros que constituam um obstáculo ao seu exercício. Desde logo, se um terceiro esbulha a coisa ao titular do direito real, este pode lançar mão da reivindicação, nos termos gerais. Oliveira Ascensão explica isto dizendo que os terceiros estranhos, que não invoquem um direito incompatível com o titular do direito real, não estão protegidos pelo artigo 5.º, n.º1 CRPr. No entanto, não são apenas os estranhos que não têm qualquer direito incompatível com o direito real do titular que ficam à mercê da oponibilidade deste direito. Na verdade, o titular do direito real pode opô-lo aos terceiros que tenham um direito incompatível, mas não hajam registado o facto aquisitivo respetivo. A proteção registal do terceiro segundo o artigo 5.º, n.º1 CRPr requer o registo do direito. Se o terceiro não tem inscrição registal do seu direito não pode invocar a proteção do preceito. Em todo o caso, mesmo terceiro com registo a seu favor de direito incompatível fica exposto à oponibilidade geral do direito real não registado, quando:  Estiver de má fé;  Tenha adquirido a título gratuito.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão O terceiro fica protegido segundo o artigo 5.º, n.º1 CRPr quando, tendo adquirido de autor comum, o registo esteja incompleto, haja celebrado o negócio com base na situação registal desconforme à realidade substantiva, esteja de boa fé, adquira a título oneroso e registe a sua aquisição antes do registo do titulo do direito pelo titular ou do registo de ação destinada a declarar a invalidade do negócio jurídico celebrado entre o duplo disponente e o terceiro. b. A aquisição tabular no artigo 17.º, n.º2 CRPr: o artigo 17.º, n.º2 CRPr tem a seguinte redação: «A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade». O terceiro que adquira uma posição jurídica com base no registo nulo pode ter adquirido de alguém que não era substantivamente o titular do direito real que foi objeto de disposição. A lei registal dispõe, assim, que, verificados os requisitos enunciados no artigo 17.º, n.º2 CRPr, o terceiro adquirente não vê a sua posição ser afetada pela declaração de nulidade do registo predial. No entanto, o n.º2 do artigo 17.º CRPr só tem aplicação nos casos em que o ato de disposição fundado no registo é nulo e inválido, por falta de titularidade do direito real com base no qual esse ato é celebrado. Se o titular inscrito é o titular do direito real na ordem substantiva e o ato de disposição a favor do terceiro é válido, sendo apenas o registo nulo, o artigo 17.º, n.2º CRPr nada acrescenta. Por isso, apenas quando o registo nulo induz uma desconformidade com a ordem substantiva tem lugar a aplicação do artigo 17.º, n.º2 CRPr. Em segundo lugar, o artigo 17.º, n.º2 CRPr só atua contra o titular do direito real que não tenha registo do facto aquisitivo do seu direito. Se este registo existe, o preceito também não tem aplicação. O efeito atributivo do registo predial não prevalece sobre o efeito consolidativo, que é definitivo. Se o titular do direito real na ordem substantiva regista o facto aquisitivo, consolida definitivamente a sua aquisição e fica protegido contra uma eventual aquisição tabular de terceiro. Por isso, o efeito atributivo só se compatibiliza com o efeito consolidativo quando o titular do direito real na rodem substantiva não tem registo a seu favor. O primeiro requisito para aplicação do artigo 17.º, n.º2 CRPr é a préexistência de um registo nulo (com desconformidade substantiva). E o registo é nulo nos casos do artigo 16.º CRPr. De fora ficam os casos de registo juridicamente inexistente (artigo 14.º CRPr). O segundo requisito consiste num ato de disposição fundado no registo nulo. O terceiro requisito é a boa fé do terceiro. Contrariamente ao artigo 5.º, n.º CRPr, o artigo 17.º, n.º2 CRPr é expresso relativamente à exigência de boa fé. Esta é de entender sem sentido ético, de acordo com o disposto no artigo 291.º, n.º3 CC. O quarto requisito é a onerosidade da aquisição do terceiro. Em caso de doação, por exemplo, o terceiro não fica protegido. Por último, quinto requisito, o registo do facto aquisitivo do terceiro tem de preceder o registo da ação de declaração de nulidade do registo ou o registo da ação de declaração de nulidade do ato de disposição fundado no registo nulo. Valem quanto a este caso as razões que apontámos para idêntica solução no âmbito do artigo 5.º CRPr. Diferentemente do artigo 5.º CRPr, que assenta num esquema de dupla disposição de um direito

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pela mesma pessoa, o artigo 17.º, n.º2 CRPr protege um terceiro subadquirente, cuja posição adveio da celebração de um negócio jurídico com o titular inscrito com registo nulo, que não é, por conseguinte, o titular do direito real na ordem substantiva. Note-se, que o terceiro protegido não é nunca aquele que beneficia do registo nulo, mas sim o adquirente em negócio concluído com base no registo nulo. O artigo 17.º, n.º2 CRPr protege um terceiro subadquirente que adquiriu o seu pseudo direito com base num registo prévio nulo, que patenteia uma situação registal desconforme com a realidade substantiva, contando que o titular do direito real não haja registado previamente a sua aquisição. Para além de se reportar a uma situação de subaquisição, o artigo 17.º, n.º2 CRPr distingue-se nomeadamente do artigo 291.º CC, que protege igualmente um subadquirente, por o seu âmbito de aplicação supor a pré-existência de uma nulidade registal e não uma invalidade substantiva. Trata-se, pois, de uma subaquisição com nulidade registal. A ptroeção registal do artigo 17.º, n.º2 CRPr tem o significado de uma atribuição do direito real a que se refere o facto registado. Quer dizer, não obstante a invalidade (nulidade) do negócio de disposição celebrado entre o pseudo titular inscrito e o terceiro, este último adquire o direito real. O facto aquisitivo não é, porém, o negócio jurídico, que é inválido, mas o próprio registo. Daí que se fale no efeito atributivo do registo predial. c. A aquisição tabular no artigo 291.º CC: segundo o disposto no artigo 291.º CC, «a declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquirido sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio». O artigo 291.º CC é um preceito atinente à aquisição tabular, pressupondo, por isso, a pré-existÊncia de um registo desconforme à realidade substantiva por invalidade do negócio jurídico registado5. Não há nenhuma razão para apeciar diferentemente este preceito dos outros que com ele concorrem no reconhecimento de um efeito atributivo do registo predial. O fundamento da proteção é o mesmo das outras hipóteses legais: a fé pública registal. O artigo 291.º CC protege o subadquirente com invalidade substantiva e nisto distinguese quer do artigo 5.º CRPr, que protege o terceiro adquirente num esquema de dupla disposição com incompleitude registal, quer do artigo 17.º,n.º2 CRPr, que protege o terceiro subadquirente que adquiriu o seu direito com base num registo nulo. Portanto, o artigo 291.º CC tem por escopo definir a proteção do terceiro de boa fé que adquire a sua posição com base um registo desconforme por invalidade substantiva do negócio jurídico. Os requisitos do artigo 291.º CC não são inteiramente coincidentes com os do artigos 5.º e 17.º, n.º2 CRPr, o que é natural atendendo a que se trata de um preceito com um campo específico de aplicação, diverso do daqueles preceito. Em primeiro lugar, a aplicação do artigo 291.º CC supõe uma situação registal desconforme com a realidade substantiva, 5

Contra, Menazes Cordeiro, que defende não pressupor o artigo 291.º CC a existência de um registo prévio.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão por força da inscrição de um negócio jurídico inválido, nulo ou anulável, ou seja, a pré-existência de um registo desconforme por invalidade substantiva do negócio registado. Em segundo lugar, deve haver um ato de disposição do direito a que se reporta o facto registado. O titular inscrito praticou um ato de disposição negocial do seu direito a favor de terceiro. Esse ato de disposição está ferido de ilegitimidade, causando, deste modo, a nulidade do negócio jurídico celebrado e, com isso, a não produção da eficácia real no plano substantivo. Em terceiro lugar, o terceiro recebe proteção em caso de boa fé. O n.º3 do preceito clarifica que apenas está de boa fé o terceiro que desconhecia sem culpa o vício do negócio inválido. É a conceção subjetiva ética de boa fé. Em quarto lugar, só o adquirente em negócio oneroso vem a ser protegido pelo artigo 291.º, n.º1 CC. Em quinto lugar, o terceiro tem de registar a sua aquisição antes do registo da ação de declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico. A proteção registal só é conferida quando o terceiro inscreve o seu facto aquisitivo antes do registo da reação judicial à celebração do negócio jurídico inválido. O artigo 291.º CC consagra um sexto requisito de proteção do terceiro. De acordo com o n.º2 do artigo 291.º CC, «os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecideos, se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio». Quer dizer, se a ação de declaração de nulidade ou de anulação do negócio jurídico inválido for proposta e registada nos três anos subsequentes à sua celebração, os efeitos da invalidade produzem-se, arrastando consigo a nulidade dos negócios jurídicos subsequentes. O artigo 291.º CC consagra, assim, um período de tempo, três anos, durante os quais os efeitos da invalidade negocial prevalecem mesmo contra o terceiro de boa fé que adquiriu onerosamente a sua posição. O prazo dos três anos conta-se da data da celebração do primeiro negócio inválido, aquele justamente que afeta a legitimidade negocial dos sucessivos disponentes, e não de cada um dos subsequentes negócios que venham a ser posteriormente celebrados. Decorridos os três anos a que faz menção o artigo 291.º, n.º2 CC, o terceiro que reúna cumulativamente os restantes requisitos fica protegido contra o titular do direito real na ordem substantiva. Isto quer dizer, que adquire tabularmente o direito real a que se reporta o seu registo. O artigo 291.º CC constitui um dos caso de efeito atributivo do registo predial na ordem jurídica portuguesa. d. A aquisição tabular no artigo 122.º CRPr: normalmente, não se faz alusão ao artigo 122.º CRPr o contexto da aquisição tabular. Contudo, se há uma desconformidade registal com a ordem substantiva, que venha a gerar, não a nulidade do registo, mas um registo inexato nos termos do artigo 18.º, n.º1 CRPr, e o titular inscrito dispõe do direito a favor de um terceiro de boa fé, este pode ficar protegido nos termos do artigo 122.º CRPr, de modo inteiramente coincidente com o que sucede na hipótese do artigo 17.º, n.º2 CRPr. e. Análise global dos casos de aquisição tabular: o registo predial, instituído e mantido pelo Estado, tem por finalidade prover à segurança do comércio jurídico imobiliário. Acontece, porém, que a situação predial pode estar em

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão desconformidade com a ordem substantiva, isto é, o registo patentear como titular do direito real alguém que não o é efetivamente segundo o Direito aplicável. As razões para a desconformidade entre a ordem registal e a ordem substantiva podem ser variadas, desse logo, por o registo estar incompleto, em caso de incumprimento do dever de registar ou de falta de iniciativa dos interessados em promover a inscrição de um facto, por o facto registado ser inválido ou por o registo ser inexistente, nulo ou inexato. Havendo uma desconformidade entre a situação registal e a ordem substantiva, esta última prevalece, e o registo desconforme pode ser declarado inexistente, nulo, ou ser cancelado ou retificado consoante os casos. Deste modo, alcança-se a coincidência entre a ordem substantiva e a ordem registal, que deve considerarse a situação normal. No entanto, tendo em conta que o registo confere a presunção da titularidade do direito (artigo 7.º CRPr), aquele que beneficia de registo a seu favor, ainda que não seja o titular do direito real no plano substantivo, consegue praticar qualquer ato de disposição (legitimação registal – artigo 9.º CRPr). Esse ato, se o disponente não for o titular do direito real, estará viciado por falta de legitimidade daquele, o que redunda na sua nulidade. Isto levanta o problema da proteção do terceiro pseudo adquirente. Analisados os casos de aquisição tabular previstos na nossa lei (artigos 5.º, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e 291. CC), não se pode dizer que esteja consagrado um princípio geral de proteção do terceiro. Pelo contrário, essa proteção só sobrevém excecionalmente, verificados os requisitos legais respetivos. O princípio continua a ser o da prevalência da ordem substantiva, independentemente da boa fé do terceiro. Em Portugal, a boa fé não permite sanar o vício do título (facto jurídico) tanto no que respeita às coisas móveis (irrelevância do princípio posse vale título), como no tocante a imóveis. Quanto ocorra, a aquisição tabular tem por fundamento, não a boa fé, mas sim a fé pública registal. Não se trata de proteger o terceiro por causa da sua boa fé, em atenção à confiança suscitada pela situação registal, mas salvaguardar a credibilidade da instituição registal. A aquisição tabular tem lugar nos casos previstos nos artigos 5.º, 17.º, n.º2 e 122.º CRPr e 291.º CC. Cada um destes preceitos tem o seu âmbito de aplicação próprio, que não coincide com o dos outros. O artigo 5.º CRPr cobre a situação de registo incompleto com dupla disposição, o artigo 17.º, n.º2 CRPr a subaquisição com registo inexato e o artigo 291.º CC a subaquisição com invalidade substantiva. Pode acontecer que no caso concreto esteja preenchida simultaneamente a previsão de mais do que um preceito. Quando assim suceda, cabe ao interessado decidir qual dos preceitos invoca, atendendo a que os requisitos de proteção não são iguais. Em todos os casos de aquisição tabular ou de efeito atributivo do registo predial, o terceiro é alguém que celebrou um negócio jurídico inválido e, por essa razão, não adquiriu, por via substantiva, o direito real. Já sabemos que o efeito atributivo do registo predial implica a aquisição pelo terceiro do direito real objeto do facto registado. É altura de sabermos agora o que sucede ao direito do titular na ordem substantiva. f.

A posição do titular do direito real preterido pela aquisição tabular do terceiro: o efeito atributivo do registo predial dá-se sempre contra alguém, em última análise, contra o proprietário do prédio. Pode afetar igualmente outros direitos reais menores, mas repercute-se sempre na propriedade. A aquisição tabular

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pode respeitar a qualquer direito real cujo facto aquisitivo esteja sujeito a registo, nomeadamente, direitos reais menores. Nesta hipótese, a projeção da aquisição sobre a posição do proprietário é evidente: a propriedade fica onerada com o direito real menor adquirido tabularmente. Em casos como este, em que o efeito atributivo do registo predial se dá nos termos de um direito real menor, o proprietário vê o seu direito ficar onerado com o direito real menor. Não há aqui qualquer extinção a considerar. Menezes Cordeiro desenvolveu a teoria dos direitos reais naturais, direitos com natureza real que, em determinadas circunstâncias, aquisição por contrato de jogo ou aposta, usucapião e, para o que nos interessa agora, aquisição tabular de terceiro, ficariam sem oponibilidade. Rebatendo a opinião corrente que a aquisição tabular da propriedade arrasta a extinção da propriedade anterior, Menezes Cordeiro defende que o direito de propriedade afetado com aquisição tabular da propriedade por um terceiro não se extingue, ficando, no entanto, numa situação de inoponibilidade em sentido próprio. No caso de o terceiro adquirente devolver a coisa, renunciar ao seu direito ou transmiti-lo a terceiro de má fé, o direito do proprietário afetado pelo efeito atributivo do registo predial retomaria a sua oponibilidade normal. Uma teoria de direitos reais naturais, em paralelo com as obrigações naturais, num movimento de concertação sistemática do Direito Civil, é sedutora e aparenta dar uma solução mais justa para o proprietário cuja posição é atingida pela aquisição tabular. Pensamos, porém, que uma tal teoria não se harmoniza com alguns dos princípios de Direitos Reais, em particular, com os princípios da inerência e de tipicidade, já para não falar no princípio da oponibilidade absoluta. Desde logo, com o princípio da inerência. Os direitos reais são direitos inerentes a uma coisa. Se a coisa se encontra atribuída ao adquirente tabular em termos de propriedade como explicar a inerência da propriedade inoponível? Parece que esta inerência não se pode afirmar relativamente ao direito do proprietário atingido pela aquisição tabular de terceiro. Por outro lado, tratando-se de um direito real de gozo, não é só a oponibilidade que fica suspensa, é todo o aproveitamento da coisa, o uso, a fruição e a disposição. Quer dizer, para além de uma propriedade sem reivindicação (artigo 1311.º CC), teríamos de reconhecer uma propriedade sem conteúdo, ou seja, uma propriedade atípica. E por quanto tempo? Até uma renúncia ou uma transmissão a favor de um terceiro de má fé, que pode nunca vir a acontecer? E essa propriedade é passível de transmissão mortis causa? Até quando? Custa ainda perceber como sendo a propriedade um direito exclusivo se podem articular duas propriedades singulares (ou duas compropriedades com diferentes comproprietários) sobre a mesma coisa, tendo em conta que, com esta teoria, coexistem simultaneamente duas propriedades incompatíveis. O requisito da boa fé é exigido nas várias hipóteses de efeito atributivo do registo predial, mas fora delas não parece ter qualquer projeção substantiva, nomeadamente, tornar a propriedade vulnerável à reivindicação do titular da propriedade natural. Num contexto de tantas dificuldades, parece-nos muito complicado admitir a teoria dos direitos reais naturais para explicar que o direito de propriedade afetado pela aquisição tabular de terceiro não se extingue, mas permanece meramente inoponível. Pelo contrário, parece-nos crucial admitir que a proteção do terceiro de boa fé pela aquisição tabular se faz com o sacrifício da posição do anterior 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão proprietário, cujo direito se extingue. O efeito atributivo do registo predial é o resultado de uma valoração favorável à prevalência da situação registal sobre a situação substantiva e a extinção da propriedade, quando este for o direito conflituante com a posição do terceiro, é apenas a consequência dessa valoração. Esta solução, a extinção do direito real incompatível, aplica-se a todos os casos em que o direito adquirido tabularmente e o direito sacrificado tenham a mesma natureza. g. Usucapião e efeito atributivo do registo predial: o artigo 5.º, n.º2, alínea a) CRPr permite considerar como meramente enunciativo o registo da usucapião de direitos reais de gozo. Aquele que tem a usucapião a seu favor pode impedir o efeito atributivo do registo predial, pois, a usucapião não é afetada pelas vicissitudes registais, valendo por si, mesmo contra o registo da aquisição. Dito por outras palavras, o terceiro que beneficia de aquisição tabular não pode fazer valer a proteção registal contra o titular do direito real adquirido por usucapião. A usucapião que impede o efeito atributivo do registo predial é a que resulta do regime geral previsto nos artigo 1287.º e seguintes CC. Portanto, a usucapião interfere com a proteção registal do terceiro de boa fé, impondo-se a ela. Aquele que beneficie da usucapião, mesmo que não tenha registo deste facto, fica a coberto do efeito atributivo do registo predial. Desta forma, o terceiro de boa fé que esteja nas condições previstas em qualquer dos preceitos que funda o efeito atributivo do registo predial nada poderá fazer contra o titular do direito real na ordem substantiva se o facto aquisitivo do direito deste for a usucapião. Esta prevalece sobre a fé pública registal. A este propósito, Oliveira Ascensão fala impressivamente da usucapião como a última ratio do sistema de Direitos Reais.

5. O efeito enunciativo: o registo predial pode não desempenhar uma função de publicidade relativamente a alguns atos suscetíveis de registo. Encontram-se nessa situação os atos enumerados no artigo 5.º, n.º2 CRPr e, para além destes, a posse. A razão para o efeito meramente enunciativo do registo predial reside na consideração do papel de publicidade que o sistema reserva à posse. A usucapião e as servidões prediais aparentes são reconhecíveis através da posse, que publicita a situação do titular do direito real, não carecendo do registo para este efeito. Os atos relativamente aos quais o registo é enunciativo podem não constar do registo predial por falta dele. Assim, o beneficiário da usucapião não registada pode invoca-la contra o terceiro de boa fé que regista a sua aquisição. A falta do registo não impede o sucesso da invocação, pois a publicidade registal é meramente enunciativa quanto à usucapião (artigo 5.º, n.º2, alínea a) CRPr).

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Secção IX – A Publicidade dos Direitos Reais Generalidades. O registo predial: devido à especial eficácia dos direitos reais perante terceiros, torna-se necessário dar publicidade aos mesmos. Para essa situação, existe, no caso dos prédios rústicos e urbanos, o registo predial. Nos termos do artigo 1.º CRPr, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança dos comércio jurídico imobiliário. Não são assim objeto do registo predial todas as coisas imóveis enumeradas no artigo 204.º, n.º1 CC, mas apenas os prédios rústicos e urbanos. O registo predial português está a cargo das conservatórias do registo predial, as quais por sua vez constituem serviços do Instituto dos Registos e Notariado, I.P., o qual constitui um instituto público integrado na administração indireta do Estado, que prossegue atribuições do Ministério da Justiça sob a superintendência e tutela do respetivo Ministro. Desde o Decreto-Lei n.º116/2008, 4 julho que são permitidos os atos do registo predial ser requeridos em qualquer conservatória do território nacional, independentemente do lugar da situação dos prédios. Atualmente, o registo predial português continua a ser organizado com base num sistema real, baseado em descrições, que referem a situação dos prédios, havendo, no entanto, alguma concessão ao sistema pessoal, ao se estabelecer igualmente um ficheiro relativo às pessoas que são titulares destes. Assim, cada conservatória possui um ficheiro real e um ficheiro pessoal (artigo 24.º, n.º1 CRPr), sendo o ficheiro real constituído por verbetes indicativos da situação dos prédios (artigo 24.º, n.º2 CRPr) e o ficheiro pessoal por verbetes indicadores dos proprietários ou possuidores dos prédios (artigo 24.º, nº.3 CRPr). Para suporte documental dos respetivos ficheiros, existem nos serviços de registo, um diário, em suporte informático, destinado à anotação cronológica dos pedidos de registo e respetivos documentos e fichas de registo, em suporte informático, destinadas a descrições, inscrições, averbamentos e anotações (artigo 22º CRPr). As fichas de registo são ordenadas por freguesias e, dentro de cada uma delas, pelos respetivos números de descrição (artigo 23.º CRPr).

Princípios do registo predial: cabe agora examinar os princípios do registo predial, os quais correspondem aos:

1. Princípios da instância: o registo predial é sujeito, em primeiro lugar, ao princípio da instância, que significa que normalmente só se faz a requerimento dos interessados, salvo os casos de oficiosidade previstos na lei (artigo 14.º CRPr). Deste princípio resulta que os serviços de registo não têm o dever de promover oficiosamente o registo, devendo o mesmo ser requerido por quem tem legitimidade para o efeito. A lei estabelece, no entanto, exceções ao princípio da instância admitindo casos de realização do registo a título oficioso, como sucede quando se verifica a conversão em definitivo do registo de que dependem outros atos ou registos (artigo 92.º, n.º7, 101.º, n.º4, 119.º, n.º3, 148.º, n.º4 e 149.º CRPr), quando se verifica o registo de factos constituídos simultaneamente com outros (artigo 97.º, n.º1 CRPr), ou quando o registo implicar o cancelamento de outros registos (artigos 98.º, n.º3 e 100.º, n.º3 CRPr). 2. Princípio da obrigatoriedade: o Decreto-Lei n.º 116/2008, 4 julho, instituiu na nossa ordem jurídica o princípio da obrigatoriedade do registo predial, aditando ao Código do Registo Predial os artigos 8.º-A a 8.º-D, que alteraram o sistema anteriormente vigente, baseado no sistema do registo facultativo. Assim, apesar de o registo continuar a depender de pedido dos interessados, esse pedido passou a ser obrigatório. Passou a ser assim obrigatório, nos termos do artigo 8.º-A CRPr submeter a registo: 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. Os factos referidos no artigo 2.º CRPr; b. As ações, decisões e providências referidas no artigo 3.º CRPr. Há, no entanto, algumas exceções em relação à obrigatoriedade do registo. Em relação aos factos, não é obrigatório registar aqueles que sejam provisórios por natureza (Artigo 92.º, n.º1 CRPr), a aquisição sem determinação de parte ou direito e os que incidam sobre direitos de algum ou alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa, a constituição de hipoteca e o seu cancelamento com o consentimento do credor, a promessa de alienação, os pactos de preferência e a disposição testamentária de preferência, com eficácia real (artigo 8.º-A, n.º1 alínea a), i) ii), iv) e v)). Já em relação às ações e providências, não é obrigatório o registo das ações de impugnação pauliana, nem dos arrestos, arrolamentos ou providências que afetem a livre disposição dos bens (artigo 8.º-A, n.º1, alínea b), in fine CRPr), nem genericamente o registo de qualquer providência cautelar, se já se encontrar pedido o registo da ação principal (artigo 8.º-A, n.º2 CRPr). Nos termos do artigo 8.º-B, n.º1 e 3 CRPr, a obrigação de registo incide sobre as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando tais entidades não intervenham, as seguintes entidades: a. As entidades públicas, quer intervenham como sujeitos ativos, quer como sujeitos passivos, e ainda quando pratiquem atos que impliquem alterações aos elementos da descrição para os efeitos da atualização oficiosa prevista no artigo 90.º, n.º1 CRPr; b. As entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas; c. Os agentes de execução ou o oficial de justiça que realize diligências próprias do agente de execução, quanto ao registo das penhoras, e os administradores judiciais, quanto ao registo da declaração de insolvência. No entanto, essa obrigação cessa no caso de o registo já se encontrar promovido por outra entidade com legitimidade para o efeito (artigo 8.º-B, n.º5 CRPr). O prazo para o cumprimento da obrigação de registo é em princípio de dois meses a contar da data em que os factos tiverem sido titulados (artigo 8.º-C, n.º1 CRPr). Já o registo das ações referidas nas alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 3.º CRPr, sujeitas a registo obrigatório, deve ser pedido até ao termo do prazo de 10 dias após a data da audiência de julgamento (artigo 8.º-C, n.º2 CRPr), devendo o registo das respetivas decisões finais ser pedido no prazo de um mês a contar da data do respetivo trânsito em julgado (artigo 8.º-C, n.º3 CRPr). Já o registo das providências cautelares decretadas nos procedimentos referidos na alínea d) do n.º1 do artigo 3.º CRPr deve ser pedido no prazo de um mês a contar da data em que os factos tiverem sido titulados (artigo 8.º-C, n.º4 CRPr). Finalmente, os factos sujeitos a registo titulados em serviço de registo competente devem ser imediatamente apresentados (artigo 8.º-C, n.º7 CRPr). No entanto, a ultrapassagem desses prazos apenas implica o pagamento de um acréscimo de emolumentos (artigo 8.º-D, n.º1 CRPr), o qual nem sequer se aplica aos tribunais e ao Ministério Público (artigo 8.º-D, n.º2 CRPr). 3. Princípio da legalidade: o registo é, ainda, sujeito ao princípio da legalidade, o que significa qu eé objeto de controlo pelo conservador (artigo 68.º CRPr), que pode recusá-lo ou realizá-lo como provisório por dúvidas (artigos 70.º e 71.º CRPr). Como consequência do princípio da legalidade, o conservador pode ser sujeito a responsabilidade se registar ato falso ou juridicamente inexistente (artigo 153.º CRPr). O conservador deve, nos termos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão do artigo 68.º CRPr, averiguar da viabilidade do pedido de registo em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos nele contidos. O controle da legalidade não é assim meramente formal, fazendo o conservador igualmente uma fiscalização da validade substancial do ato contido no título. Tem-se, no entanto, entendido que essa fiscalização se limita à averiguação dos casos de nulidade dos atos (artigo 69.º, n.º1, alínea d) CRPr), já que o conservador não tem legitimidade para suscitar a questão da sua anulabilidade, uma vez que este valor negativo não é do conhecimento oficioso, dependendo de arguição dos interessados (artigo 287.º CC). O controle da legalidade realizado pelo conservador pode conduzir a que o pedido seja a. Recusado: a recusa do registo é sujeita a fundamentos taxativamente previstos no artigo 69.º CRPr e que são: i. Ser manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados; ii. Verificar-se que o facto já está registado ou não está sujeito a registo; iii. Ser manifesta a nulidade do facto; iv. Já ter sido o registo lavrado como provisório por dúvidas e as mesmas não se mostrarem removidas; v. Não ser possível fazer o registo como provisório por dúvidas, em virtude da falta de elementos ou pela natureza do ato.; ou b. Lavrado provisoriamente por dúvidas: já a realização do registo como provisório por dúvidas verifica-se, quando, não sendo possível o suprimento oficioso de deficiências ao abrigo do artigo 73.º CRPr, existam motivos que obstem ao registo do ato tal como é pedido e que não sejam fundamento de recusa (artigo 70.º CRPr). A decisão de recusa da prática do ato de registo nos termos requeridos pode ser impugnada mediante a interpretação de recurso hierárquico para o conselho diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área de circunscrição a que pertence o serviço de registo (artigo 140.º, n.º1 CRPr), sendo o prazo de recurso hierárquico ou da impugnação judicial de trinta dias a contar da notificação a que se refere o artigo 71.º CRPr (artigo 141.º, n.º1 CRPr). É, no entanto, ainda possível impugnar judicialmente a decisão de qualificação do ato de registo, caso o recurso hierárquico seja julgado improcedente (artigo 145.º, n.º1 CRPr). Nesse caso, a impugnação judicial é proposta no prazo de vinte dias a contar da data da notificação que tiver julgado improcedente o recurso hierárquico (artigo 145.º, n.º2 CRPr). 4. Princípio do trato sucessivo: o registo predial obedece ao princípio do trato sucessivo (artigo 34.º CRPr), o qual estabelece que o registo deve instituir uma cadeia ininterrupta de transmissões ou onerações do bem, tendo assim as inscrições que ser contínuas entre si e não podendo fazer-se qualquer inscrição a favor de um adquirente do bem, sem que exista uma inscrição prévia a favor do transmitente. Em consequência do trato sucessivo, a consulta do registo permite apurar não apenas os atuais, mas também todos os anteriores titulares de inscrições relativamente ao prédio. O artigo 34.º, n.º1 CRPr estabelece assim que o registo definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os onera, acrescentando o n.º2 que o registo definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite, quando o documento

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão comprovativo do direito do transmitente não tiver sido apresentado perante o serviço de registo. Caso exista sobre os bens do registo de aquisição ou reconhecimento de direito suscetível de ser transmitido ou de mera posse, é necessária a intervenção do respetivo titular para poder ser lavrada nova inscrição definitiva, salvo se o facto for consequência de outro anteriormente inscrito (artigo 34.º, n.º4 CRPr). O princípio do trato sucessivo admite, no entanto, algumas exceções. Assim, em primeiro lugar, a inscrição prévia é sempre dispensada no registo de aquisição com base em partilha (Artigo 34.º, n.º3 CRPr), sendo igualmente dispensada a inscrição intermédia em nome dos titulares de bens ou direitos que façam parte de herança indivisa (artigo 35.º CRPr). Em consequência do princípio do trato sucessivo, em caso de o mesmo ser interrompido, o adquirente do bem terá que proceder ao registo das inscrições intermédias, em ordem a obter o seu reatamento. No caso de tal não ser possível, por se tratar da primeira inscrição, por os títulos relativos às inscrições intermédias se terem extraviado ou perdido, ou ainda por o registo ter por base a usucapião, o adquirente terá que proceder à justificação por escritura notarial ou no âmbito doo processo de justificação previsto nos artigos 116.º e seguintes CRPr. 5. Princípio da legitimação: em matéria de registo predial, vigora igualmente o princípio da legitimação, instituído no artigo 9.º, n.º1 CRPr, o qual estabelece que os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo. A legitimação reforça a proteção conferida pelo trato sucessivo, na medida em que veda que o próprio negócio seja titulado, sem que se encontre comprovado o registo prévio a favor do transmitente. Desta solução são apenas excetuados: a. A partilha, a expropriação, a venda executiva, a penhora, o arresto, a declaração de insolvência e outras providências que afetem a livre disposição dos imóveis; b. Os atos de transmissão ou oneração por quem tenha adquirido no mesmo dia os bens transmitidos ou onerados; c. Os casos de urgência devidamente justificada por perigo de vida dos outorgantes (artigo 9.º, n.º2 CRPr). Para além disso, tratando-se de prédio situado em área onde não tenha vigorado o registo obrigatório, o primeiro ato de transmissão posterior a 1 de outubro de 1984 pode ser titulado sem a exigência prevista no n.º1, se for exibido documento comprovativo, ou feita justificação simultânea, do direito da pessoa de quem se adquire (artigo 9.º, n.º3 CRPr). A sanção para essa omissão não é, porém, a nulidade do negócio, uma vez que se coloca apenas um problema de legitimação formal e não de legitimação substantiva. Apenas o agente que o outorgar estará sujeito a sanções. 6. Princípio da prioridade: o princípio da prioridade encontra-se previsto no artigo 6.º CRPr, dele resultando que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes (artigo 6.º, n.º1 CRPr). Desta solução são apenas excetuadas as inscrições hipotecárias da mesma data, que concorrem entre si na proporção dos respetivos créditos (artigo 6.º, n.º2 CRPr). A prioridade do registo não é afetada pelos despachos de recusa ou de provisoriedade, caso os mesmos sejam procedentemente impugnados ou se verifique a conversão do registo em definitivo. Assim, a lei estabelece que em caso de recusa, o registo feito na sequência de recurso julgado procedente conserva a prioridade correspondente à

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão apresentação do ato recusado (artigo 6.º, n.º4 CRPr) e que o registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório (artigo 6.º, n.º3 CRPr). Modalidades de atos de registo: os diversos atos de registo podem ser agrupados com base em dois critérios:

1. Com base no seu conteúdo, para além dos averbamentos de cada um deles, distingue-se entre: a. Descrições: regulada nos artigos 79.º e seguintes CRPr, esta tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios (artigo 79.º, n.º1 CRPr), sendo efetuada uma descrição, distinta para cada prédio (artigo 79.º, n.º2 CRPr). Nos termos do artigo 82.º, n.º1 CRPr, a descrição deve conter: i. O número de ordem privativo dentro de cada freguesia, seguido dos algarismos correspondentes à data da apresentação de que depende; ii. A natureza rústica, urbana ou mista do prédio; iii. A denominação do prédio e a sua situação por lugar, rua, números de polícia ou confrontações; iv. A composição sumária e a área do prédio; e v. A situação matricial do prédio expressa pelo artigo de matriz, definitivo ou provisório; ou pela menção de estar omisso. A descrição pode ser:  Genérica: é a descrição feita para cada prédio ou empreendimento turístico. Na descrição genérica de prédio ou prédios em regime de propriedade horizontal é mencionada a série das letras correspondentes às frações e na de empreendimento turístico as letras correspondentes às unidades de alojamento, quando existam (artigo 82.º, n.º2 CRPr).  Subordinada: é a descrição que é efetuada nos casos de constituição da propriedade horizontal ou direito de habitação periódica, relativamente a cada fração autónoma ou unidade de alojamento ou apartamento (artigo 81.º CRPr). As descrições subordinadas relativas às frações autónomas ou unidades de alojamento contêm, além do número da descrição genérica do prédio ou do empreendimento turístico (artigo 83.º, n.º1, alínea a) e n.º2, alínea a ) CRPr). No caso das frações autónomas, haverá ainda a menção do fim a que se destinam, se constar do título (artigo 83.º, n.º1, alínea c) CRPr). No caso das unidades de alojamento, haverá ainda menção das frações temporais relativas ao início e fim de cada período de habitação (artigo 83.º, n.º3 CRPr). Os averbamentos à descrição permitem alterar, completar ou retificar os elementos das descrições (artigo 88.º, n.º1 CRPr), ainda que não prejudiquem os direitos de quem neles não teve intervenção, desde que definidos em inscrições anteriores (artigo 88.º, n.º2 CRPr). Os averbamentos devem conter além do seu número de ordem privativo e do número e data da apresentação, ou da data em que são feitos, a menção dos elementos da descrição alterados, completados ou retificados (artigo 89.º CRPr). Os elementos da descrição devem, aliás, ser oficiosamente atualizados, quando a alteração possa ser comprovada através da base de dados da entidade competente ou de documento por esta emitido ou de documento efetuado com intervenção da pessoa com legitimidade para pedir a atualização (artigo 90.º, n.º1 CRPr), podendo ocorrer mesmo a sua atualização

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão automática por decisão do presidente do Instituto dos Registos e Notariado, I.P. (artigo 90.º, n.º3 CRPr). Estão ainda previstas anotações especiais à descrição, relativas à existência de autorização da utilização, ficha técnica de habilitação ou classificação como empreendimento turístico em propriedade plural (artigo 90.ºA CRPr). b. Inscrições: já esta tem por função definir a situação jurídica do prédio mediante extrato dos factos a ele referentes (artigo 91.º, n.º1 CRPr). As inscrições só podem ser lavradas com referência a descrições genéricas ou subordinadas (artigo 92.º, n.º2 CRPr), podendo, no entanto, um facto respeitar a várias descrições, caso em que a inscrição é lavrada na ficha de cada uma delas (artigo 92.º, n.º3 CRPr). As inscrições ou as correspondentes cotas de referência são lançadas no seguimento da descrição (artigo 79.º, n.º3 CRPr), sendo que, quando forem canceladas, caducarem, ou os seus efeitos se transfiram mediante novo registo, devem as mesmas publicitar que a informação deixou de estar em vigor (artigo 79.º, n.º4 CRPr). Os requisitos gerais da inscrição encontram-se previstos no artigo 93.º CRPr. O artigo 94.º CRPr obriga ainda a que dela constem ainda certas cláusulas e convenções acessórias, enquanto que o artigo 95.º CRPr estabelece as menções especiais que devem constar de certas inscrições, referindo ainda o artigo 96.º CRPr a situação particular da inscrição hipotecária. Da mesma forma que na descrição, também podem ser efetuados averbamentos à inscrição (artigos 100.º e seguintes CRPr), os quais servem para completar, atualizar ou restringir as inscrições (artigo 100.º, n.º1 CRPr). A le especifica quais os factos que são registados por averbamento às respetivas inscrições, os quais são enumerados no artigo 101.º CRPr. OS averbamentos devem obedecer aos requisitos gerais estabelecidos no artigo 102.º CRPr, assim como aos requisitos especiais previstos no artigo 103.º CRPr. 2. Com base na sua eficácia, estabelece-se uma distinção entre: a. Atos de registo provisórios: são aqueles que têm um prazo de vigência limitado, em virtude da sua própria natureza do facto a inscrever (registo provisório por natureza) ou em virtude de existir algum vício no facto ou deficiência no processo de registo que impede o seu registo definitivo (registo provisório por dúvidas). Nos casos mais graves, referidos no artigo 69.º CRPr, o conservador deve mesmo recusar o registo que lhe é requerido. i. Os registos provisórios por natureza: encontram-se enumerados no artigo 92.º CRPr e correspondem às seguintes situações: 1. Ações e procedimentos sujeitos a registo (artigo 92.º, n.º1, alínea a) CRPr); 2. Constituição da propriedade horizontal antes de construído o prédio (artigo 92.º, n.º1, alínea b) CRPr); 3. Negócio jurídico celebrado sem poderes de representação, ates da ratificação (artigo 92.º, n.º1, alínea c) CRPr); 4. Aquisição ou oneração de bens, antes de emitido o título respetivo (artigo 92.º, n.º1, alíneas g), h) e i) CRPr); 5. Factos resultantes de decisão judicial antes de a mesma ter sido transitada em julgado (artigo 92.º, n.º1, alíneas j), l), m) e n) CRPr);

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão 6. Dependência de registo não lavrado ou lavrado provisoriamente (artigo 92.º, n.º1, alíneas c) e d) e n.º2, alíneas b) e d) CRPr); 7. Inscrições de penhora, declaração de insolvência e arresto, relativamente a bens em que exista registo de aquisição ou reconhecimento da propriedade ou mera posse a favor de terceiro (artigo 92.º, n.º2 CRPr); 8. Inscrições que, em reclamação contra a reforma de suportes documentais, se alega terem sido omitidas (artigo 92.º, n.º2, alínea d) CRPr). ii. Os registos provisórios por dúvidas encontram-se abrangidos pelo artigo 70.º CRPr e correspondem a situações em que existem motivos que obstam ao registo do ato tal como é pedido e que não são fundamento de recusa, não podendo, por outro lado, as deficiências do processo ser sanadas nos termos do artigo 73.º CRPr. Os registos provisórios devem ser convertidos em definitivos, o que é realizado através de averbamentos à inscrição (artigos 101.º, n.º2, alínea d) e 103.º, n.º2 CRPr). No caso de o registo ser provisório por natureza, o averbamento corresponde à indicação do novo facto, que afasta a provisoriedade do facto inscrito (emissão do título, trânsito em julgado da decisão judicial ou inscrição definitiva do registo de que aquele dependia). No caso de o registo ser provisório por dúvidas, a conversão efetua-se pela remoção das dúvidas que tinham surgido. Os registos provisórios caducam se não forem convertidos em definitivos ou renovados dentro do prazo da respetiva vigência (artigo 11.º, n.º2 CRPr), sendo o prazo de vigência do registo provisório de seis meses, salvo disposição em contrário (artigo 11.º, n.º3 CRPr). Apesar do aparente alcance geral, esse prazo é, no entanto, principalmente aplicável em relação ao registo provisório por dúvidas, as quais devem ser esclarecidas dentro desse prazo, sem possibilidade de renovação. Em relação ao registo provisório por natureza vigoram prazos diferentes de caducidade para as diversas inscrições (artigo 92.º, n.º3 a 6 CRPr), sendo que certas inscrições nem sequer estão sujeitas a qualquer prazo de caducidade (artigo 92.º, n.º11 CRPr). b. Atos de registo definitivos: são aqueles que produzem plenamente a sua eficácia, sem qualquer limitação de vigência.

O processo de registo: 1. Legitimidade e representação no pedido de registo: como corolário do princípio da instância, o registo só pode ser solicitado por quem tem legitimidade para o efeito, exigindo-se assim a legitimidade registal. Nos termos do artigo 36.º CRPr, têm legitimidade para pedir o registo os sujeitos, ativos ou passivos, da respetiva relação jurídica e, em geral, todas as pessoas que nele tenham interesse ou que estejam obrigadas à sua promoção. Em caso de contitularidade de direitos, a legitimidade é atribuída individualmente a cada um dos titulares, a favor de todos (artigo 37.º CRPr). Apenas no caso dos averbamentos às descrições, salvo quando se trate de factos que constem de documento oficial, essa legitimidade é restringida ao proprietário ou ao possuidor definitivamente inscrito ou com a sua intervenção (artigo 38.º, n.º1, alínea b) CRPr). No caso contrário, o interessado inscrito ainda pode solicitar o registo, se requerer a notificação judicial do proprietário ou possuidor inscrito e este não deduzir oposição

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão no prazo de 15 dias (artigo 38.º, n.º1, alínea c) CRPr). O registo pode ser ainda pedido em representação do interessado por mandatário. Neste caso, exige-se normalmente uma procuração que confira poderes especiais para o ato (artigo 39.º, n.º1 CRPr). Não carecem, no entanto, de procuração para pedir o registo aqueles que tenham poderes de representação para intervir no respetivo título (artigo 39.º, n.º2 CRPr), e os advogados, notários e solicitadores (artigo 39.º, n.º2, alínea b) CRPr), não podendo, no entanto, estes últimos apresentar sem procuração pedidos de averbamento à descrição de factos que não constem de documento oficial (artigo 39.º, n.º3 CRPr). A representação abrangem sempre a faculdade de requerer urgência na realização do registo, subsiste até à feitura do registo e implica a responsabilidade solidária do representante no pagamento dos respetivos encargos (artigo 39.º, n.º4 CRPr). 2. O pedido de registo: o processo de registo inicia-se com o pedido de registo, regulado nos artigos 41.º e seguintes CRPr. Nos termos do artigo 41.º-B CRPr, o pedido de registo pode ser efetuado pessoalmente, por via eletrónica ou pelo correio, devendo, em qualquer caso, conter os elementos referidos no artigo 42.º CRPr. Os requisitos do pedido de registo, consoante a respetiva modalidade, encontram-se regulados nos artigos 41.º-C a 41.º-E e 42.º-A CRPr, estando esta matéria regulada na Portaria n.º 621/2008, 18 julho. Os documentos que servem de base à realização dos registos, bem como o comprovativo do pedido ficam arquivados pela ordem de apresentação (artigo 26.º, n.º1 CRPr), podendo ser, no entanto, restituídos aos interessados no caso de as condições técnicas permitirem o seu arquivo em suporte eletrónico (artigo 26.º, n.º2 CRPr).

Efeitos do registo: 1. A fé pública: nos termos do artigo 1.º CRPr, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. Daqui resulta a denominada fé pública do registo, nos termos do qual o registo deve estar em conformidade com a situação jurídica substantiva do imóvel, permitindo consequentemente o registo dar a conhecer essa situação jurídica. Pode haver, porém, casos em que se verifique desconformidade entre a situação substantiva e a situação registal, os quais afetam a fé pública do registo. É o que sucede nas seguintes situações: a. Não realização do registo; b. Inexistência do registo: c. Invalidade do registo; d. Inexatidão do registo; e. Invalidade do facto jurídico registado. 2. Presunção da titularidade do direito: um dos mais importantes efeitos substantivos do registo é a atribuição ao seu titular a presunção da titularidade do direito, a que se corporiza em duas presunções (artigo 7.º CRPr): a. A de que o direito existe, tal como consta do registo; b. A de que pertence, nesses precisos termos, ao titular inscrito. Ambas as presunções são ilidíveis, nos termos gerais (artigo 350.º, n.º2 CC e artigos 3.º, n.º1, alínea b), 8.º e 13.º CRPr). Daqui resulta que o registo é normalmente meramente enunciativo (não dá nem tira direitos), estabelecendo, no entanto, uma presunção da titularidade do direito. Da presunção do artigo 7.º CRPr beneficia não apenas o titular do direito inscrito, mas também aquele que adquiriu o direito por negócio de transmissão resultante deste último titular. A presunção da titularidade do direito resultante do

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão registo pode, no entanto, entrar em conflito com a presunção da titularidade resultante da posse. Nesse caso, e conforme resulta do artigo 1268.º, n.º1 CC, a presunção resultante do registo apenas prevalecerá se esta for anterior ao início da posse, já que, no caso contrário, será a presunção a favor do possuidor que terá prevalência. 3. Registo consolidativo: o registo é igualmente consolidativo da posição do adquirente do imóvel, uma vez que a lei determina que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo (artigo 5.º, n.º1 CRPr). Assim, uma vez realizado o registo, o adquirente vê plenamente consolidada a sua posição, uma vez que passa a poder opor eficazmente o seu direito perante terceiros, o que antes lhe estava de alguma forma vedado. Tem sido, porém, objeto de alguma controvérsia qual o conceito de terceiros para efeitos do registo predial, tendo surgido na doutrina duas conceções: a. A conceção ampla: foi defendida por Guilherme Moreira, Antunes Varela e Henrique Mesquita e Carvalho Fernandes, e considerava como terceiros aqueles que tenham adquirido e conservado direitos sobre os imóveis, que seriam lesados se o ato não registado produzisse efeitos em relação a eles. b. A conceção restrita: foi defendida por Manuel de Andrade e Orlando de Carvalho e considerava que terceiros para efeitos do registo seriam apenas aqueles que tivessem adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. A Jurisprudência esteve dividida entre as duas posições, pelo que veio a ser uniformizada inicialmente a favor da conceção ampla (AUJ 15/97, de 20 Maio, pelo STJ). Considerando que a solução não tinha sido a melhor, o Supremo Tribunal de Justiça voltou em 18 de maio de 1999, a uniformizar a jurisprudência agora no sentido da conceção restrita (AUJ 3/99, 18 maio). Posteriormente, o legislador viria igualmente a tomar partido na questão, tendo o Decreto-Lei n.º 533/99, 11 dezembro, acrescentado ao Código de Registo Predial o n.º4 do artigo 5.º CRPr a dispor que terceiros, para efeitos do registo, são aqueles que tenham adquirido de autor comum direitos incompatíveis entre si, redação que ainda hoje se mantém. Ficou, assim, definitivamente estabelecida a conceção restrita de registo, com a consequente limitação do seu efeito consolidativo. A eficácia consolidativa do registo não tem, consequentemente, no nosso Direito, um alcance tal que permita pôr em causa os princípios da consensualidade e da causalidade, resultantes do artigo 408.º CC. Efetivamente, o adquirente de um direito não registado pode opor eficazmente a sua aquisição à outra parte no negócio ou aos seus herdeiros (artigo 4.º, n.º1 CRPr). Para além disso, dado que, nos termos do artigo 5.º, nº4 CRPr, apenas são terceiros os que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis com o seu, o direito poderá ser livremente oposto a quem tenha direitos sobre o bem não incompatíveis com o seu, ou cujos direitos não sejam provenientes de uma disposição efetuada por autor comum. E mesmo em relação a terceiros no sentido jurídico do termo, a inoponibilidade da sua aquisição dependerá destes terem efetuado uma aquisição a título oneroso, procedido ao seu registo e estarem de boa fé. Em consequência, o titular de um direito não registado poderá sempre opor a sua aquisição a quem não tenha igualmente registado a sua aquisição, ou tenha adquirido a título gratuito, ou se encontre de má fé. 4. Registo enunciativo: em certos casos, o registo não atribui qualquer eficácia consolidativa ao direito, uma vez que este pode ser oposto a terceiros, independentemente do registo. Nessa hipótese, a função do registo consiste apenas em dar publicidade à situação, o que implica dizer-se que o registo é meramente enunciativo. Nos termos do artigo 5.º, n.º2 CRPr, constituem hipóteses de registo meramente enunciativo as seguintes:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. A aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º1 do artigo 2.º CRPr: o facto de o seu registo ser meramente enunciativo justificavase em virtude de a mesma não ser afetada pelas vicissitudes registrais, dado que, uma vez verificada, suplanta todos os registos (ucupaio contra tabulas). Por isso, mesmo que seja registada, o seu registo em nada altera a situação daquele que a invoca, que também não é prejudicada se omitir o registo. b. As servidões aparentes: o seu registo é igualmente apenas enunciativo, uma vez que estas têm uma publicidade assegurada pela existência de sinais visíveis e permanentes que as demonstram, os quais permitem assim o seu conhecimento por terceiros independentemente do registo. c. Os factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem derivadamente especificados e determinados: antes da sua especificação o registo é enunciativo na justificação do facto de não fazer sentido dar eficácia consolidativa ao registo, enquanto o bem se encontrar indeterminado. 5. Registo aquisitivo: a regra no nosso sistema é a de que o registo não tem eficácia constitutiva ou extintiva de direitos, não podendo consequentemente atribuí-los nem retirá-los. Há, no entanto, um caso de registo constitutivo, uma vez que o artigo 4.º, n.º2 CRPr, estabelece na sequência do artigo 687.º CC, que, em relação aos factos constitutivos da hipoteca, a sua eficácia entre as próprias partes, depende do registo. A formulação legal parece indicar que a hipoteca já estaria constituída antes do registo, sendo este apenas condicionante da sua eficácia, até entre as partes. A doutrina não tem aceitado, porém, esta formulação, dado que não faz sentido considerar constituído um direito real que não possui eficácia alguma, até entre as partes. Deve, assim, considerarse a constituição da hipoteca como um facto complexo, sendo que o registo é, neste caso, um dos elementos necessários para que essa constituição ocorra. 6. Registo aquisitivo: a. A aquisição tabular: finalmente, o registo pode ter como efeito a aquisição de um direito em desconformidade com a realidade substantiva. Fala-se, nesse caso, em aquisição tabular, a qual se encontra prevista nos artigos 5.º, n.º1, 17.º, n.º2, e 122.º CRPr e artigo 291.º CC. Examinemos sucessivamente estas disposições: i. Artigo 5.º, n.º1 CRPr: a primeira hipótese de aquisição tabular encontrase neste artigo 5.º, n.º1 CRPr, e resulta da circunstância de os factos sujeitos a registo só produzirem efeitos contra terceiros depois da data dos respetivos registos. Uma vez que, de acordo com a conceção restrita de terceiros, consagrada no artigo 5.º, n.º4 CRPr, são apenas terceiros aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, esta disposição vai ser aplicável essencialmente à dupla alienação ou oneração de um bem, levando a que a disposição posterior que tenha sido previamente registada prevaleça sobre a anterior, que não foi registada. Ora, como após a primeira disposição o alienante perde a legitimidade para tornar a dispor do mesmo bem, a segunda disposição o alienante perde a legitimidade para tornar a dispor do mesmo bem, a segunda disposição é nula, e não poderia permitir a aquisição da propriedade. É assim o registo nessas condições que permite que a propriedade seja adquirida pelo adquirente na segunda disposição, através da aquisição tabular. Para a aquisição tabular prevista no artigo 5.º, n.º1 CRPr, a lei exige apenas uma dupla alienação

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ou oneração e o prévio registo da segunda disposição. Por analogia com os restantes casos de aquisição tabular, a doutrina maioritária exige, no entanto, que a segunda disposição seja realizada a título oneroso e de boa fé, sem o que se entende que o direito do primeiro adquirente não poderá ser posto em causa. ii. Artigo 17.º, n.º2 CRPr: esta segunda hipótese de aquisição tabular encontra-se prevista no artigo 17.º, n.º2 CRPr, o qual estabelece que a declaração de nulidade do registo não afeta os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes atos for anterior ao registo da ação de nulidade. Está, assim, aqui em causa uma situação de invalidade registal relativamente a uma inscrição (artigo 16.º CRPr), a qual determinou, no entanto, que fosse realizado um ato de disposição, com base nesse pseudo-direito a favor de terceiro, sub-adquirente em relação a essa inscrição. No caso de existir boa fé do terceiro e a sua aquisição tiver ocorrido a título oneroso, o seu direito como sub-adquirente não é posto em causa pela declaração de nulidade da prévia inscrição, em virtude da necessidade de proteger aqueles que confiaram na validade do registo. Ora, como é manifesto que a aquisição do sub-adquirente tinha sido efetuada a non domino, e era consequentemente inválida, temos aqui mais uma vez uma hipótese de aquisição tabular, resultante do registo. iii. Artigo 122.º CRPr: a terceira hipótese de aquisição tabular encontra-se prevista neste artigo 122.º CRPr, o qual estabelece que a retificação do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos factos correspondentes for anterior ao registo da retificação ou da pendência do respetivo processo. A situação é semelhante à que se acabou de referir, estando mais uma vez em causa a necessidade de proteção daquele que confiou na exatidão de um registo, tendo efetuado com base no mesmo uma aquisição de boa é e a título oneroso. Assim, o direito do sub-adquirente, que tenha registado a sua aquisição antes da retificação ou da pendência do respetivo processo, não vê o seu direito afetado pela posterior retificação da prévia inscrição. Está-se mais uma vez perante um caso de registo com eficácia aquisitiva de direitos. iv. Artigo 291.º CC: nos termos desta disposição, a invalidade do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo não prejudica aos direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, que tenha registado a sua aquisição, antes do registo da ação de invalidade ou do acordo das partes sobre a mesma (artigo 291.º, n.º1 CC). Os direitos do terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (artigo 291.º, n.º2 CC). Este caso já não se refere à invalidade registal, mas antes à invalidade substantiva. Nesta situação, está antes em causa um conflito entre o transmitente no primeiro negócio inválido e um subadquirente num segundo contrato, que vem a ser afetado em consequência da invalidade do primeiro contrato. É, no entanto, estranho que o terceiro seja neste caso menos protegido do que nos casos de invalidade registal, uma vez que os seus 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão direitos podem ser afetados se a ação de invalidade for proposta e registada no prazo de três anos após a celebração do negócio inválido. 1. Oliveira Ascensão: procura resolver a questão aplicando analogicamente, por maioria de razão, o artigo 291.º, n.º2 CC a casos de invalidade registal, exigindo assim igualmente um prazo de três anos neste último caso, sustentando ainda que o artigo 291.º CC tem como requisito implícito a prévia existência de um registo desconforme. 2. Menezes Cordeiro e Carvalho Fernandes: entendem que a explicação do prazo de três anos reside no facto de o artigo 291.º CC não exigir a prévia existência de um registo desconforme, pelo que merece menos proteção a confiança do terceiro em relação à regularidade da sua aquisição. Neste entendimento, o artigo 291.º CC não se aplicaria aos casos em que já existisse um registo desconforme a favor do adquirente no negócio inválido, valendo antes nessa situação o regime previsto no artigo 17.º, n.º2 CRPr. 3. Já Saraiva Matias: vem sustentar que o artigo 17.º, n.º2 CRPr apenas se pode aplicar quando se verifique e seja declarada a nulidade do registo ao abrigo do artigo 16.º CRPr. Assim, sempre que não haja registo ou este seja válido seria antes aplicável o artigo 291.º CC. 4. Parece-nos que a melhor posição é a de Menezes Cordeiro e Carvalho Fernandes: efetivamente, não se justifica aplicar o artigo 291.º CC sempre que se verifique a prévia existência de um registo desconforme, caso em que a situação jurídica do terceiro merece proteção antes do prazo de três anos. Todos os casos de existência de um prévio registo desconforme deverão ser antes regulados pelo artigo 17.º, n.º2 CRPr. b. Posição do titular do direito real preterido pela aquisição tabular do terceiro: tem sido objeto de bastante controvérsia na nossa doutrina em que situação fica o titular do direito real preterido em virtude da aquisição tabular de terceiro. i. Para Oliveira Ascensão: a aquisição tabular funciona como facto resolutivo em relação à primeira aquisição, extinguindo consequentemente o respetivo direito. ii. Já para Menezes Cordeiro: não se verifica a extinção do direito, mas antes uma mera inoponibilidade, uma vez que quem registou previamente beneficia de uma presunção iuris et de iure de titularidade do direito, enquanto subsistirem as condições de que ela depende. Em consequência, o proprietário poderia recuperar outra vez a coisa em caso de devolução, renúncia do terceiro ou transmissão para adquirente de má fé. iii. Para Carvalho Fernandes: as hipóteses de revivescência do direito referidas por Menezes Cordeiro podem ser julgadas de difícil verificação, mas não são inadmissíveis e devem ser ponderadas. Nesse caso, existiria, porém, um ato jurídico praticado pelo adquirente com base no registo que funcionaria como facto impeditivo pleno da verificação da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão presunção iuris et de iure, e que permitiria a recuperação do direito, mas apenas após a verificação desse ato. iv. Em nossa opinião: a tese da sobrevivência do direito real preterido não nos parece, no entanto, aceitável. A aquisição tabular atribui o direito real em termos definitivos ao adquirente com base no registo, sendo em consequência extinto o direito real anterior, por ser com ele incompatível. Mesmo que o adquirente com base no registo optasse por devolver a coisa ao adquirente substantivo, haveria aí um novo facto aquisitivo do direito, que não elidiria a extinção anterior. Rejeitamos, por isso, qualquer hipótese de permanência do direito anterior.

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Capítulo V – O Conteúdo dos Direitos Reais Secção I – O conteúdo positivo dos direitos reais

O aproveitamento da coisa como escopo do direito real : o direito real tem uma coisa corpórea por objeto. O escopo legal deste direito está em providenciar ao titular o aproveitamento dela. Naturalmente, o aproveitamento da coisa varia em função do conteúdo facultado pelo direito real em causa. Cada direito real, na medida em que tem um conteúdo específico, permite um aproveitamento diferente dos demais direitos reais. O aproveitamento de coisas corpóreas não conhece limites teóricos. Todas as utilidades de que uma coisa é suscetível podem ser afetadas ao conteúdo do direito real, deixando para o seu titular o aproveitamento respetivo. Porém, quando a ordem jurídica implementa um princípio de numerus clausus, limita à partida o aproveitamento da coisa aos tipos legais previamente definidos, não reconhecendo nenhum outro aproveitamento, pelo menos, sujeito à disciplina de Direitos Reais, já que a afetação de uma coisa corpórea por meio de direitos pessoais de gozo não conhece os entraves daquele princípio. Numa ordem jurídica dominada pelo princípio da tipicidade, como a portuguesa, o aproveitamento das coisas corpóreas em termos jurídico-reais apenas pode ser feito através dos tipos de direitos reais consagrados. Estes, por sua vez, podem ser agrupados em categorias em atenção ao escopo de aproveitamento que atribuem ao titular.

A tripartição dos direitos reais em função do conteúdo do aproveitamento da coisa : no Direito português o aproveitamento das coisas corpóreas em termos jurídico-reais pode ser dividido em três grandes categorias, agrupando-se cada direito real numa delas em função do escopo de aproveitamento da coisa que propicia ao titular. Essas três grandes categorias são:  O gozo da coisa;  A garantia de cumprimento de uma obrigação;  A aquisição de outro direito. Assim se chega à conhecida tripartição classificatória de direitos reais na ordem jurídica portuguesa:  Direitos reais de gozo;  Direitos reais de garantia;  Direitos reais de aquisição.

O conteúdo do direito real: o aproveitamento da coisa pelo titular do direito real é definido pelo conteúdo desse direito, que fixa o tipo legal do direito real. Ao conteúdo do direito real pertencem todas as situações jurídicas ativas e passivas que o regime jurídico determina para ele. Alguns autores falam em conteúdo positivo e conteúdo negativo, consoante se tem em conta as situações jurídicas ativas ou as situações jurídicas passivas. A dimensão impressiva do conteúdo do direito real reside no aproveitamento da coisa que possibilita ao titular e, por isso, as situações jurídicas ativas sobrelevam as passivas. Enquanto direito subjetivo, o direito real representa uma situação jurídica complexa de sinal positivo. O conteúdo de um direito é muitas 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão vezes descrito como integrando vários direitos. Assim, o artigo 1305.º CC preceitua que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e de disposição. Todavia, a propriedade representa o único direito a considerar nesse artigo; o uso, a fruição e a disposição não são direitos, constituindo situações jurídicas menores – poderes e faculdades – que integram o direito de propriedade. Os poderes são situações jurídicas ativas simples; elas não permitem decomposições em outras mais simples. O uso e a fruição que surgem no conteúdo dos direitos reais de gozo constituem poderem em sentido técnico. A disposição, diferentemente, não possuindo a natureza de um direito subjetivo, pode ser decomposta em vários situações jurídicas menores: na alienação ou oneração do direito. Aproveitando a sugestão de Menezes Cordeiro, de distinguir poder e faculdade trata-se de uma faculdade: a faculdade de disposição. Nenhum direito subjetivo apresenta apenas situações jurídicas ativas no seu conteúdo. A delimitação do direito faz-se através de regras jurídicas que impõem deveres e outras adstrições, ou seja, que preveem situações jurídicas passivas no conteúdo do direito. O mesmo se passa com os direitos reais. Por esta razão, o estudo do conteúdo do direito real compreende igualmente a vertente passiva do direito, as situações passivas a que o titular do direito real se encontra vinculado. Dentro do conteúdo do direito real, distinguimos o conteúdo típico injuntivo e o conteúdo supletivo. O primeiro tem natureza imperativa; as regras jurídicas que o determinam não podem ser afastadas pelos particulares através de cláusulas negociais, sob pena de violação do princípio da tipicidade. O desenho legal do tipo de direito real não está na disponibilidade das partes. Uma vez que as regras jurídicas que delimitam o conteúdo típico fixam o tipo legal do direito real, elas não podem ser derrogadas por convenção negocial das partes. O regime jurídico da maioria dos direitos reais deixa alguma margem de conformação do conteúdo do direito real na disponibilidade dos particulares. São as partes que determinam estes aspetos do conteúdo do direito real no exercício da sua autonomia privada. Chamamos a este conteúdo, conteúdo supletivo, porque as normas em causa têm natureza supletiva e podem ser afastadas por convenção negocial. Saber se uma parte do conteúdo do direito real tem natureza imperativa ou supletiva é um problema de interpretação das fontes de Direito. Cada tipo de direito real é pré-dado pelo sistema normativo, pois essa é a lógica do numerus clausus, mas reconhecer o conteúdo típico só pode resultar da atividade interpretativa levada a cabo sobre o regime jurídico vertido nas fontes.

O conteúdo dos direitos reais de gozo. O gozo da coisa: como a própria designação sugere, os direitos reais de gozo permitem o aproveitamento da coisa através do gozo. Convém, pois, caracterizar este fenómeno. O gozo não aparece descrito ou caracterizado em nenhum preceito normativo. Num primeiro momento histórico, no Direito romano, o gozo identifica-se com o uso. O uti ou usus consiste no aproveitamento da coisa que a conserva íntegra, excluindo, pois, a sua destruição ou o seu consumo. Um direito real que atribua o uso só admite um aproveitamento que mantém a substância da coisa. O uso da coisa não conferia a fruição no Direito Romano. A atribuição do poder de fruição, com o uso necessário para a produção dos frutos, só surge, primeiro, com o direito de usufruto e, depois, com os direitos de uso e habitação. O desenvolvimento histórico do gozo leva a considerar que o mesmo inclui o uso e a fruição da coisa.  Uso: significa o aproveitamento das utilidades da coisa com preservação da sua substância;  Fruição: refere-se ao poder de fazer seus os frutos naturais e civis produzidos pela coisa.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Dentro do gozo encontra-se, ainda, o poder de transformação. Tradicionalmente, este poder vem incluído na faculdade de disposição. Supomos, no entanto, que não existe nenhuma razão para manter um agrupamento de poderes tão diferentes. O poder de transformação é um poder material, enquanto todos os outros poderes usualmente indicados como conteúdo da disposição (o poder de alienar, o poder de onerar e o poder de renunciar) são poderes jurídicos. Por ser um poder material, o poder de transformação, para ser exercido, requer a posse da coisa, ao contrário dos poderes jurídicos de alienação, oneração e renúncia, que, como poderes jurídicos, são inteiramente independentes da posse e não a pressupõem de todo. O poder de transformação integra-se, assim, no gozo da coisa, juntamento com os poderes de uso e de fruição. No seu conjunto, estes poderes constituem o núcleo do gozo da coisa que caracteriza a categoria dos direitos reais de gozo. Porém, outros poderes devem ser igualmente considerados no âmbito do gozo da coisa:  O poder de reivindicação da coisa, que se exerce judicialmente por meio da ação respetiva (artigos 1311.º e 1315.º CC);  O poder de excluir terceiros não autorizados do gozo da coisa. A reserva do aproveitamento do direito real a alguém exclui todos os outros desse aproveitamento; o titular do direito real pode efetivar essa exclusão mesmo quando não é desapossado da coisa. Todos os direitos reais de gozo combinam em medida diversa os poderes de gozo. E, se é certo que a propriedade compreende todos os poderes de gozo, na sua extensão máxima, os restantes direitos reais de gozo ostentam uma particular combinação de poderes de gozo, cada um deles com o seu conteúdo típico, que conforma o tipo legal respetivo e que o diferencia dos demais direitos reais de gozo. O conteúdo dos direitos reais de gozo não está limitado aos poderes de gozo. A categoria dos direitos reais de gozo autonomiza-se pelo facto de atribuir o gozo da coisa, em medida variável, e não por o conteúdo desses direitos se limitar a ele. Na realidade, e como acabámos de ver, ao conteúdo dos direitos reais de gozo pertencem poderes que não são de gozo.

O conteúdo dos direitos reais de garantia: os direitos reais de garantia são direitos funcionalmente dirigidos a assegurar que, em caso de incumprimento do devedor, o credor que deles beneficia pode ser pago através da coisa objeto do direito real de garantia e com prioridade relativamente aos demais credores do devedor que não tenham melhor garantia sobre ela. Guilherme Moreira ensinava que no direito real de garantia o objeto do direito real é o valor dela. Isto deve ser conscientemente entendido. O objeto do direito real de garantia é a coisa (corpórea), mas este direito dá ao titular a possibilidade de obter o pagamento do seu crédito sobre o devedor através dos créditos gerados por ela ou através do produto – em dinheiro – da sua venda executiva. A afetação da coisa ao titular da garantia real coloca-o numa posição preferencial, dando-lhe prioridade na satisfação do seu crédito sobre os credores comuns do devedor e sobre os outros credores que não tenham sobre a coisa uma garantia real que deva prevalecer. O conteúdo fundamental do direito real de garantia consiste na atribuição ao titular de uma posição de supremacia quanto aos demais credores do autor do produto da venda da coisa. Os direitos reais de garantia não têm poderes de gozo no seu conteúdo. Mesmo os direitos reais de garantia que atribuem a posse da coisa ao credor garantido, como o penhor e o direito de retenção, não conferem poderes de gozo ao seu titular. O artigo 671.º, alínea b) CC obriga mesmo o credor pignoratício a não usar a coisa, exceto havendo consentimento do autor do penhor. O regime vale para o direito de retenção (artigos 758.º e 759.º, n.º3 CC). Com

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão exceção da consignação de rendimentos, os direitos reais de garantia são de exercício judicial, tendo este lugar no âmbito da ação executiva. Este regime resulta dos artigos 675.º CC, para o penhor, 697.º e 724.º CC, para a hipoteca, 753.º CC, para os privilégios creditórios, 758.º e 759.º, n.º1 CC para o direito de retenção. Portanto, o titular do direito real de garantia tem o poder jurídico ou de reter os rendimentos da coisa dada em consignação (na consignação de rendimentos) ou de executar a coisa objeto de garantia (nos outros direitos de garantia). Em qualquer caso, o direito real de garantia assegura sempre ao titular a satisfação do seu crédito através da coisa com prioridade – preferência, na terminologia da lei – sobre os demais credores do autor da garantia que não tenham garantia real que prevaleça.

O conteúdo dos direitos reais de aquisição: o conteúdo do direito real de aquisição ainda é mais simples que o conteúdo dos direitos reais de garantia, consistindo simplesmente no poder de fazer valer contra quem quer que seja o direito à aquisição de um outro direito. Assim, se ficou convencionada a eficácia real no contrato promessa de compra e venda da propriedade de imóvel, o direito real de aquisição permite ao titular impedir os efeitos de uma venda feita pelo promitente vendedor a terceiros em violação da promessa.

Secção II – O conteúdo negativo dos direitos reais

Considerações gerais: apesar dos direitos reais serem situações jurídicas ativas, atribuindo o aproveitamento de coisas corpóreas, ao seu conteúdo pertencem igualmente situações jurídicas passivas, deveres, estados de sujeição, ónus e outras vinculações a que o titular do direito real se encontra adstrito. No ensino de Direitos Reais em Portugal, foi Oliveira Ascensão quem divulgou este entendimento, o qual recebeu depois as adesões de Menezes Cordeiro e de Carvalho Fernandes. As regras que impõem vinculações ao titular do direito real delimitam negativamente o conteúdo do direito real. No seu conjunto, o aproveitamento da coisa facultado pelo direito real só é realmente obtido quando se ponderam e outras situações jurídicas ativas). Durante muito tempo, a propriedade foi vista como um direito absoluto, no sentido de não limitado, apesar de serem patentes as restrições que a gravam, assim como aos demais direitos reais. Mas a afirmação do conteúdo absoluto da propriedade surge proclamada enfaticamente no Code Civil francês. E durante todo o século XIX, a doutrina, incluindo a pandectística alemã, divulgou a mesma ideia, que continuou seguramente predominante na primeira metade do século XX. Em Portugal, esta visão teve possivelmente o seu expoente em Pires de Lima. A ideia de ilimitação da propriedade, correspondendo ao estádio do individualismo liberal, deve considerar-se hoje ultrapassada. Para além de limites exteriores, comuns aos direitos subjetivos, os direitos reais são delimitados negativamente por normas jurídicas que impõem deveres, sujeições e outras vinculações. Tais situações jurídicas passivas são parte do conteúdo do direito real, não são limites exteriores a uma extensão tendencialmente ilimitada.

Conteúdo negativo dos direitos reais. Classificações: sistematizando o que ficou dito, distinguimos:  Conteúdo negativo dos direitos reais: alude às situações jurídicas passivas que integram o conteúdo do direito real e o delimitam negativamente. Dentro deste conteúdo negativo podemos ainda separar: 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão o

o

O conteúdo negativo geral: que respeita a todos os direitos reais ou a uma categoria deles, que pode ser ainda ordenado em função da natureza do interesse primacial que a situação jurídica passiva visa prosseguir: 

Conteúdo negativo de Direito privado: relações de vizinhança (artigos 1344.º e seguintes CC)



Conteúdo negativo de Direito público: expropriação (artigo 1308.º CC); requisição (artigo 1309.º CC); confisco; servidões administrativas e ius aedificandi.

O conteúdo negativo específico: respeita somente a cada um dos direitos reais existentes.

 Limites gerais: sendo exteriores ao conteúdo do direito, traçam a fronteira entre o exercício permitido do direito real e aquele que contraria a ordem jurídica e, por isso, não é admitido.

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Secção VII – Classificação de Direitos Reais Generalidades: o conceito unitário de direito real, que acima expusemos, não implica que a categoria dos direitos reais não deva ser objeto de várias classificações, as quais permitem autonomiza regimes distintos em relação aos direitos reais. Efetivamente, depois de uma definição concetual do direito real em geral, a metodologia de exposição aconselha que se procure arrumar os vários direitos reais de acordo com os traços comuns aos seus diversos setores, antes de se passar ao estudo analítico de cada direito real em particular. Neste caso, a tarefa é dificultada pelo facto de a classificação dos direitos reais variar muito consoante o critério que se adote, sendo que algumas classificações têm relevo legal efetivo, enquanto que o relevo de outras é meramente doutrinal.

Direitos reais de gozo, de garantia e de aquisição: a classificação mais importante dos direitos reais é a que distingue entre: a. Direitos reais de gozo: são aqueles em que são atribuídos ao seu titular as faculdades de uso ou fruição ou disposição de uma coisa corpórea. Apenas o direito real máximo, que é a propriedade, compreende todas estas faculdades. Os outros direitos reais menores atribuem ao seu titular algumas destas faculdades. A propósito dos direitos reais de gozo, faz-se ainda referência à posse, em que é controvertida a sua qualificação como direito real. A nosso ver, a posse não constitui um direito real, pelo que deve ser tratada autonomamente, no âmbito da ordenação jurídica provisória das coisas. b. Direitos reais de garantia: são aqueles em que é conferida a um credor uma preferência no pagamento pelo valor de certa coisa, podendo assim esse credor ser pago à frente dos outros credores, evitando os riscos de o património do devedor não chegar para a liquidação de todos os créditos. Entre esses direitos reais de garantia situam-se a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção. c. Direitos reais e aquisição: são aqueles em que é conferida ao seu titular a possibilidade de pelo seu exercício vir a adquirir um direito real sobre determinada coisa. Entre eles encontram-se os direitos do beneficiário de um contrato promessa com eficácia real ou do beneficiário do pacto de preferência com eficácia real e ainda o titular de um direito legal de preferência. Tem sido controvertida a inserção dos direitos reais de garantia e de aquisição no âmbito da disciplina. José Tavares recusou que as garantias reais pudessem qualificar-se como direitos reais em sentido próprio, uma vez que constituiriam meros acessórios de direitos de crédito. Parte da doutrina recusa a qualificação como direitos reais dos chamados direitos reais de aquisição, considerando que se trata antes de direitos de crédito oponíveis a terceiros. A nosso ver, no entanto, são verdadeiros direitos reais, uma vez que partilham da mesma eficácia real que caracteriza os direitos reais de gozo, ainda que sejam exercidos através de ações distintas.

Direito real maior e direitos reais menores: outra classificação corresponderia à distinção entre: 1. O direito real maior: que atribui ao titular todas as faculdades relativas à coisa; 2. O direito real menor: que não atribuem todas essas faculdades.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Neste sentido, o direito real maior é a propriedade, enquanto que todos os outros direitos serão direitos reais menores. Quanto à relação do direito real maior com os direitos reais menores, têm sido admitidas duas teorias:

1. Teoria do desmembramento: nos direitos reais menores ocorre uma divisão da propriedade em vários direitos distintos. A constituição dos direitos reais menores implicaria assim sempre uma fragmentação da propriedade em dois direitos diferentes, sendo uma parte do conteúdo da propriedade transferida para o direito real menor e ficando esta privada desse mesmo conteúdo. Esta teoria deve-se a Pothier, tendo vindo a influenciar consideravelmente o Código Civil Francês, tratando assim todos os direitos reais menores como fenómenos de modificação da propriedade. Entre nós, esta posição foi defendida por Pires de Lima e Antunes Varela. 2. Teoria da oneração: na constituição de um direito real menor não se verifica qualquer desmembramento do direito da propriedade em dois direitos distintos, nem o direito real menor recebe uma parte dos direitos que a lei atribui ao proprietário. A constituição de um direito real menor implica antes o surgimento de um direito novo em termos de conteúdo, o qual comprime a propriedade, levando a que esta temporariamente se reduza, ainda que, por força da sua elasticidade, possa recuperar o conteúdo primitivo com a extinção do direito real menor. Enquanto vigorar o direito real menor, há, porém, uma sobreposição de direitos sobre a mesma coisa, tendo o proprietário que suportar o exercício do direito real menor, mas podendo continuar a aproveitar da coisa em tudo o que não contenda com esse exercício. Esta teoria foi defendida inicialmente por Windscheid. Entre nós, é a conceção defendida, entre outros, por Dias Marques, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro. A teoria correta é a teoria da oneração. Efetivamente, os direitos reais menores não podem ser vistos como desmembramentos da propriedade, até porque possuem aspetos novos do regime, como determinadas obrigações e causas próprias de extinção, que não existem na propriedade. Por outro lado, a teoria do desmembramento implicaria que a recuperação da totalidade do domínio só se pudesse fazer com um ato de retransmissão do direito real menor ao proprietário, quando essa recuperação se verifica automaticamente sempre que ocorra a extinção do direito real menor.

Direitos reais sobre coisa própria e sobre coisa alheia: uma coisa classificação distingue entre direitos reais sobre coisa própria ou sobre coisa alheia, consoante seja atribuída a propriedade sobre a coisa ao titular ou outro direito real. Efetivamente, uma vez que qualquer outro direito real teria sempre que coexistir com a propriedade do seu titular, aqueles são configurados como direitos reais sobre coisa alheia (iura in re aliena). Já a propriedade, incluindo a compropriedade, consiste num direito real sobre coisa própria. Sendo clássica, esta classificação falha na sua aplicação aos novos direitos que têm vindo a surgir (usufruto, superfície e propriedade horizontal).

Direitos reais de proteção definitiva e de proteção provisória: deve-se a Paulo Cunha a classificação entre direitos reais de proteção definitiva e direitos reais de proteção provisória. Para este autor, a posse formal seria um direito real de proteção provisória, uma vez que apenas seria tutelada até o momento em que o verdadeiro titular do direito real o fizesse valer ele próprio, pondo termo à proteção conferida ao possuidor. Todos os outros direitos reais seriam direitos de proteção definitiva. Esta classificação foi depois seguida por Dias Marques, Mota Pinto e Penha Gonçalves. Esta classificação veio, no entanto, a ser criticada por Menezes Cordeiro. Para este autor, a proteção da posse é tão definitiva como a de qualquer outro direito real, só cessando

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão essa proteção quando a posse cessa, o que ocorre no caso de alguém adquirir melhor direito. Mas isso sucederia com qualquer direito real, sendo todos estes vistos como provisórios pelo prisma do eterno devir dos factos humanos. Esta crítica foi depois seguida por Rui Pinto. A crítica não procede. É manifesto que a tutela da posse formal se reveste de provisoriedade, tendo o possuidor que abdicar da coisas e vier a ser convencido na questão da titularidade do direito real. A classificação faria assim todo o sentido se a posse pudesse ser qualificada como direito real. A razão para a rejeitarmos reside apenas no facto de contestarmos que a posse tenha essa natureza.

Direitos reais simples e complexos: a classificação entre direitos reais simples e complexos deve-se a Oliveira Ascensão, ao considerar existir um

1. Direito real simples: se a afetação da coia é realizada por uma forma determinada; 2. Direito real complexo: se há uma conjugação de formas de afetação da coisa. Esta figura é ainda objeto de uma subdivisão em: a. Direitos reais coletivos: são-no aqueles conjuntos de direitos reais, que não perdem autonomia entre si, como sucederia com certas universalidades de direito. b. Direitos reais compostos: são-no aqueles direitos em que se verifica essa perda de autonomia (v.g. superfície, em que o fundeiro tem a propriedade do solo e, ao mesmo tempo, uma expectativa de aquisição do edifício). A classificação veio a ter a adesão de Menezes Cordeiro, ainda que este autor conteste a subdivisão por contestar que as universalidades de direito possam ser objeto e direitos reais. A classificação tem um interesse meramente doutrinário, uma vez que, por força do princípio da tipicidade (artigo 1306.º CC), não é possível às partes conjugar várias formas de afetação da coisa, apenas a lei o podendo fazer. A classificação serve assim para explicar analiticamente os denominados direitos reais complexos.

Direitos reais autónomos e subordinadas: uma outra classificação de direitos reais distingue entre direitos reais autónomos e subordinados. São autónomos os direitos reais cuja existência não depende de nenhum outro direito como a propriedade e o usufruto. Pelo contrário, são subordinados os direitos reais de garantia, que estão dependentes da existência do direito de crédito que garantem, assim como os direitos legais de preferência, que são atribuídos aos titulares de certos direitos reais ou de crédito, cessando com a sua extinção.

Direitos reais de titularidade imediata e de titularidade mediata: uma outra classificação distingue entre os direitos reais de titularidade imediata ou de titularidade mediata. Os direitos reais são normalmente de titularidade imediata, uma vez que são atribuídos diretamente a sujeitos determinados, que se tornam assim seus titulares. Certos direitos reais são, porém, de titularidade mediata, uma vez que a sua atribuição depende da atribuição de outro direito real (v.g. servidões prediais).

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Parte II – Teoria Geral dos Direitos Reais Secção I – O conteúdo dos Direitos Reais Generalidades: definimos supra o direito real como um direito absoluto e inerente a uma coisa corpórea, que permite ao seu titular determinada forma de aproveitamento jurídico desta. Neste momento, cabe examinar o conteúdo dos direitos reais, ou seja, as faculdades em que se traduz esse aproveitamento da coisa. Por força do princípio da tipicidade (artigo 1306.º CC), as partes não gozam de liberdade em relação à atribuição dessas faculdades, pelo que o conteúdo do direito real terá que resultar da lei, através da análise dos diversos tipos legalmente consagrados. Os tipos legais possuem, no entanto, normalmente um conteúdo injuntivo, que as partes não podem derrogar, e um conteúdo supletivo, que as partes podem derrogar no título constitutivo do direito real em questão. O conteúdo do direito real pode assim resultar, quer da lei, quer do seu título constitutivo, nos casos em que este seja admitido a derrogar as normas supletivas legais. Naturalmente que o conteúdo dos direitos reais variará profundamente, não apenas consoante o direito real em questão, mas também de acordo com a categoria em que este se insere.

Exclusão da posse do âmbito do conteúdo dos direitos reais: Menezes Cordeiro insere a posse no âmbito do conteúdo de certos direitos reais, especialmente os direitos reais de gozo. Para o autor, esses direitos permitem ao seu titular fazer incidir a sua atividade sobre uma coisa, em termos de poder beneficiar das vantagens respetivas. Ora, o exercício dessa atividade, que se manifesta exteriormente, é a posse, que é por isso uma constante normal nos direitos reais de gozo, fazendo parte do seu conteúdo. Os artigos 1251.º e seguintes CC, ao disciplinarem a posse, corresponderiam assim a regulamentação geral daquilo que os direitos de gozo têm de mais claramente em comum: o exercício de poderes materiais sobre coisas corpóreas. Não nos parece, porém, que esta posição possa ser aceite. Efetivamente, a posse pode ser causal, nos casos em que o possuidor é igualmente titular do respetivo direito sobre a coisa. Só que mesmo nesse caso, conforme refere o artigo 1251.º CC, a posse não resulta da atribuição do direito, mas antes do seu exercício. No conteúdo do direito real de gozo apenas se incluem os poderes relativos à coisa, sendo o seu exercício efetivo que atribui a posse. Também no caso dos direitos reais de garantia, como o penhor e a retenção, a posse não faz parte do conteúdo do direito, sendo antes um pressuposto da sua constituição e conservação. Em consequência, os titulares desses direitos reais de garantia podem recorrer às ações possessórias, mas tal não é uma consequência do seu direito, mas antes da própria posse. Podemos, assim, concluir que, não sendo a posse um direito real, também não faz parte do conteúdo dos direitos reais. A posse liga-se, no entanto, intensamente aos direitos reais, não só porque resulta do exercício destes, mas também porque em certos casos pode ser pressuposto da sua constituição e manutenção.

O conteúdo dos direitos reais de gozo: o conteúdo dos direitos reais de gozo tem vindo a ser explicado através da clássica fórmula romana, que definia a propriedade como o ius utendi, fruendi et abutendi, com base na qual o artigo 1305.º CC se refere às faculdades de uso, fruição e disposição das coisas. Efetivamente, todos os direitos reais de gozo conferem pelo menos uma destas faculdades. Assim, por exemplo, as servidões negativas e desvinculativas, embora funcionem como restrições no prédio serviente, acabam por reforçar os poderes de uso e fruição do prédio dominante. Mesmo a nua propriedade deve ser qualificada como um direito real de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão gozo, mesmo que o gozo da coisa fique totalmente excluído durante a vigência do usufruto. Efetivamente, a nua propriedade é uma situação temporária, já que, na sua feição típica, a propriedade atribui o gozo da coisa, e virá a recuperar essa configuração com a extinção do usufruto.  A faculdade de uso da coisa (ius utendi) corresponde a uma permissão de se servir dela para qualquer fim em que a coisa posse ser utilizada. No caso da propriedade, o uso é pleno (artigo 1305.º CC), sendo atribuída ao titular a possibilidade de usar a coisa para qualquer fim em que ela possa ser utilizada. Já nos outros direitos reais de gozo, o uso pode ser limitado pelo destino económico atribuído à coisa (artigo 1446.º CC), pelas necessidades do titular (artigo 1484.º CC) ou por uma utilidade específica, suscetível de ser gozada por intermédio de um prédio (artigo 1544.º CC).  A faculdade de fruição (ius fruendi) consiste na permissão de retirar dela os rendimentos que ela possa proporcionar periodicamente, sem prejuízo da sua substância. A fruição pode ser natural, quando se refira aos frutos naturais das coisas, ou civil, consoante abranja as rendas ou interesses que a coisa produz em virtude de uma relação jurídica. A fruição não é, no entanto, essencial ao conteúdo dos direitos reais de gozo, uma vez que nem todas as coisas são suscetíveis de produzir frutos. Em qualquer caso, quem obtenha frutos a partir das coisas, mesmo que os frutos sejam meramente civis, encontra-se a exercer o direito real correspondente, pelo que adquire a posse da coisa, podendo adquiri-la por usucapião se não for titular do direito, e não se poderá operar a sua extinção por não uso na hipótese contrária.  Já a faculdade de disposição da coisa (ius abutendi) compreende os poderes de a consumir, transformá-la, aliená-la, deteriora-la ou mesmo destruí-la. Esses poderes podem ser materiais, como na hipótese da transformação,, deterioração ou destruição, ou jurídicos, como na hipótese de alienação, oneração ou renúncia ao direito. Em princípio, só o proprietário tem poderes de disposição integrais sobre a coisa, limitando-se a disposição nos outros direitos reais à alienação ou renúncia do direito, quando estas sejam permitida, e em certos casos, à sua transformação. Nos casos do direito de superfície, o conteúdo do direito reside precisamente na transformação da coisa.

O conteúdo dos direitos reais de garantia: os direitos reais de garantia caracterizam-se por atribuírem ao seu titular a preferência na satisfação de um direito de crédito em confronto com os restantes credores, sobre determinada coisa, pertencente ao devedor ou a terceiro. O titular do direito real de garantia tem sempre assim duas faculdades:  A de executar a coisa, em caso de incumprimento do seu crédito; e  A de reclamar o pagamento à frente dos restantes credores do devedor pelo produto da venda da coisa sobre que incide o seu direito. Os direito reais de garantia encontram-se, assim, funcionalmente afetos à satisfação de um direito de crédito, permitindo a execução da coisa sobre que incidem e o pagamento sobre esta, com prioridade em relação aos demais credores. Precisamente por esse motivo, em caso de execução movida em relação ao devedor a penhora iniciasse logo pelos bens sobre que incida a garantia, só podendo incidir sobre outros bens em caso de insuficiência daqueles (artigo 752.º, n.º1 CPC). Por outro lado, os credores que dispõem de garantia real têm direito de reclamar os seus créditos, em caso de execução movida por terceiro relativamente a esses bens (artigo 788.º, n.º1 CPC), devendo ser citados para o efeito (artigo 786.º CPC). Em virtude dessa ligação, os direitos reais de garantia são acessórios em relação ao crédito, apenas o garantido na medida

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão deste, e extinguindo-se caso ocorra a sua extinção (artigos 730.º, alínea a), 664.º, 677.º e 761.º CC). A garantia estende-se, ainda, no entanto, a certos acessórios do crédito, como os juros (artigos 656.º, n.º2, 666.º, n.º1 e 693.º, 734.º CC). Em certos casos, os direitos reais de garantia atribuem ao credor limitadamente as faculdades de uso (artigos 661.º, n.º1, alínea b), 671.º, alínea b), in fine, 758.º e 759.º, n.º3 CC) e de fruição da coisa (artigos 661.º, n.1º, alínea c) e n.º2, 672.º, 758.º e 759.º, n.º3 CC). Nesse caso, os direitos reais de garantia são associados à posse da coisa, sendo tutelados pelas ações possessórias (artigos 661.º, n.º1, alínea b) e 1037.º, n.º2, 670.º, alínea a) e 758.º e 759.º, n.º3 CC).

O conteúdo dos direitos reais de aquisição: os direitos reais de aquisição possibilitam a aquisição de direitos sobre a coisa, com prevalência sobre outras disposições que realize o seu titular. O seu conteúdo esgota-se, assim, totalmente nessa faculdade de aquisição.

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Capítulo VI – A Comunhão de Direitos Reais A origem histórica da comunhão no Direito Romano: o antecedente da comunhão romana surge no denominado Consortium ercto non cito, uma forma de comunhão indiferenciada entre os heredes ligada à sucessão do pater. Uma nota distintiva fundamental desta espécie de comunhão primitiva está no poder dado a cada um dos consortes de dispor sozinho da coisa vinculando os outros consortes. Quer dizer, cada consorte pode não só gozar a coisa, como aliená-la sem o consentimento dos outros. Esta forma de comunhão indiferenciada, estritamente ligada ao fenómeno sucessório, vem progressivamente dar o seu lugar a uma comunhão diferenciada, a communio iuris romana, na qual a disposição está sujeita ao consentimento de todos os comunheiros. Os romanos não conheciam os termos compropriedade e comproprietário, falando, ao invés, em communio (communio pro indivisio) e em domini ou socii. A relação de comunhão vem designada com a expressão rem communem habere, rem plurium esse e o direito do dominus ou socius com as expressões dominium pro parte ou pars dominii ou pars rei, pars rei pro indivisio. O pensamento romano sobre a propriedade era dominado pela máxima de que não é concebível um domínio pertencente a duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto. Apesar disso, cada comunheiro tem um direito sobre toda a coisa (totius rei dominium), que vem justamente apontada como comum (res communis). Não obstante a referência do direito à totalidade da coisa, alguns autores afirmam que o direito do comunheiro era representado por uma fração ideal ou abstrata, aquilo a que hoje designamos simplesmente de quota ou de quota da coisa indivisa, enquanto outros sustentam que o Direito romano oscilava entre essa conceção e a que via no direito do comunheiro um direito ao todo, limitado pelos direitos dos outros, uma disputa que marca ainda hoje a discussão sobre a natureza jurídica da comunhão. Vamos agora expor os traços gerais do conteúdo do direito de propriedade do comunheiro: a cada um dos comunheiros era permitido usar a coisa sempre que o quisesse fazer, independentemente do valor da sua quota e ainda que este valor fosse mínimo. O limite desse uso encontrava-se no respeito pela destinação económica da coisa, debaixo da ideia de que o status quo não podia ser modificado por nenhum dos domini. Caso isso sucedesse, ao comunheiro reconhecia-se um direito de proibição (ius prohibendi), que os outros comunheiros deveriam acatar. Diferentemente do uso, a fruição do comunheiro resulta da proporção do valor da sua quota, pro parte: cada comunheiro tem direito a receber os frutos da coisa na medida da sua quota. Relativamente à disposição, o Direito romano separou claramente a disposição do direito do comunheiro e a disposição da coisa. Ao comunheiro era admitida livremente a disposição da sua pars dominii. A disposição individual admitida ao comunheiro era a do seu direito. Ao invés, os atos de disposição sobre a cosia, incluindo a destruição material dela, só podiam ser praticados com o consentimento de todos. Relfetia-se aqui a ideia de que na communio a coisa pertence a todos (res communis). Havendo extinção do direito de um comunheiro, a sua posição na coisa comum acrescia aos demais na proporção das quotas existentes. No Direito romano falava-se, pois, num ius adescrescendi para tornar claro que os direitos dos comunheiros se expandiam com a extinção do direito de outro comunheiro. Por fim, a cada comunheiro reconheciam-se os mesmos meios de defesa do proprietário singular, nomeadamente, a reivindicatio, a actio publiciana, etc. Em caso de esbulho da coisa, cada socius podia, sozinho, interpor a reivindicativo contra o possuidor, não estando sujeito ao consentimento dos outros comunheiros (vindicatio pro parte). A communio romana

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão era olhada de um modo desfavorável, como uma situação transitória a que urgia pôr termo. Por isso, o comunheiro podia a todo tempo fazer cessar a comunhão. Na falta de acordo dos comunheiros para terminarem voluntariamente a comunhão, o Direito romano dispunha de várias ações, cuja finalidade principal era a transformação da communio em propriedade singular.

A comunhão de Direitos reais em Portugal. A adoção do modelo romano e o paradigma da compropriedade: aparentemente, a lei portuguesa não contempla a comunhão de direitos reais. O regime jurídico dos artigos 1403.º a 1413.º CC respeita à comunhão do direito de propriedade, estando inserto na disciplina deste direito. O artigo 1404.º CC dispõe, todavia, que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles. Esta aplicação é direta e não por analogia, o que quer dizer que o regime jurídico talhado para a compropriedade é, afinal, o regime jurídico da comunhão de direitos patrimoniais e não apenas da comunhão do direito de propriedade. A figura geral é, assim, a da comunhão e não a da compropriedade. Esta é apenas uma espécie do género. No que toca especificamente a Direitos Reais, a compropriedade constitui apenas a comunhão do direito de propriedade, podendo haver comunhão em outros direitos reais, de gozo, de garantia e de aquisição. O regime da compropriedade funciona como o paradigma da comunhão de direitos reais. Como veremos de seguida, o regime jurídico da comunhão no Direito português permite qualifica-la como uma comunhão de Direito romano, que muitos autores denominam, a nosso ver imprecisamente, comunhão por quotas, por contraposição à comunhão germânica ou comunhão de mão comum.

A constituição da comunhão de direitos reais: a comunhão pode resultar dos mesmos factos jurídicos que desencadeiam a constituição dos vários direitos reais. Naturalmente, a comunhão de direitos reais advém da existência do concurso de vários direitos reais da mesma espécie sobre uma mesma coisa, pelo que o facto que constitui a comunhão deve determinar a aquisição do direito real por uma pluralidade de pessoas.

O conteúdo do direito do comunheiro: cada comunheiro é titular de um direito independente dos demais, com a particularidade deste direito partilhar o seu objeto outros direitos reais da mesma espécie. O conteúdo positivo do direito do comunheiro é o mesmo do direito singular que está em comunhão. Não é senão este o significado que se retira do artigo 1403.º, n.º2, 1.ª parte CC e, sobretudo, do artigo 1405.º, n.º1, 1.ª parte CC. Assim, o comproprietário, sendo um proprietário, tem o conteúdo do direito que a lei fixa para a transformação material, a disposição, a reivindicação, etc. E o mesmo se diga quanto ao cousufruto, à co-superfície e aos demais direitos reais suscetíveis de comunhão. Portanto, o conteúdo do direito real do comunheiro corresponde ao aproveitamento permitido pelo tipo legal de direito real que estiver em comunhão. A comunhão trás, no entanto, especificidades ao conteúdo do direito do comunheiro. A mais significativa de todas elas é dada pela quantificação da posição do comunheiro numa porção ideal ou abstrata da coisa comum: a quota. A quota não faz variar o conteúdo do direito do comunheiro, que é idêntico, mas diferencia a posição dos comunheiros no exercício de alguns dos poderes e deveres que fazem parte dele, introduzindo uma feição quantitativa que é desconhecida na conformação singular do tipo de direito real. Outras especificidades do conteúdo surgem na veste de deveres, ou seja, no conteúdo negativo. Todos os comunheiros que tenham direito ao uso da coisa, seja qual for o direito real de gozo considerado, sofrem a incidência deste dever, que limita a extensão do gozo admitida pelo tipo de direito real em comunhão. Deste modo, se se pode dizer que o conteúdo positivo do direito do comunheiro apresenta uma inteira coincidência com a conformação 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão singular do tipo de direito real, tal não é possível relativamente ao conteúdo negativo. O regime jurídico da comunhão de direitos reais impõe aos comunheiros deveres recíprocos de atuação, os quais, visando possibilitar o aproveitamento da coisa por todos, acabam por delimitar negativamente a extensão desse aproveitamento. Na doutrina portuguesa, os autores limitamse a enunciar a enunciar os poderes dos comproprietários, desenvolvendo fundamentalmente a comunhão do direito de propriedade e ignorando as outras. É verdade que expor o conteúdo do direito de cada comunheiro equivaleria a percorrer o regime dos vários direitos reais suscetíveis de comunhão. Ora, o que interessa nesta sede é acentuar os aspetos em que o regime da comunhão importa diferenças relativamente ao conteúdo do direito real quando em titularidade singular. Para isso, nada melhor que apresentar o conteúdo do direito de maior extensão, a propriedade, pois a exposição do conteúdo deste direito, por mais abrangente, acaba pro compreender o conteúdo dos direitos reais menores. Alguns professores elucidam o conteúdo da compropriedade em atenção ao modo de exercício do direito, distinguindo poderes de exercício individual, poderes de exercício maioritário e poderes de exercício unânime. Não seguiremos esta sistematização do conteúdo, preferindo, ao invés, elencar os poderes, faculdades e deveres específicos da comunhão. Antes de entrarmos propriamente na análise das situações jurídicas da comunhão, versaremos primeiro sobre a quota e os seus efeitos na comunhão.

A quota do comunheiro: cada comunheiro tem uma posição quantitativamente determinada na comunhão, a qua a lei associa certos efeitos. A posição quantitativa do comunheiro denomina-se quota. São vários os locais onde a lei usa o termo para exprimir a posição do comunheiro. As quotas dos comunheiros resultam do título constitutivo. Porém, se este for omisso quanto a elas, a lei presume que as quotas dos comunheiros são iguais (artigo 1403.º, n.º2, in fine CC). Sendo dois os comunheiros, a sua quota será de metade, sendo três, ela será de um terço, e aí por adiante. A indicação do valor das quotas não tem de ser expressa, podendo resultar do contexto do negócio ou de outras circunstâncias reveladas pelo título constitutivo. Pires de Lima/Antunes Varela exemplificam com o diferente preço pago pelos compradores em contrato de compra e venda, que seria indicativo de uma quota proporcional ao montante do preço suportado por cada um deles. Se o título constitutivo não permitir aferir o valor das quotas de cada um dos comunheiros, a lei presume, iruis et iure, que a quota dos comuneiros é igual (artigo 1403.º, n.º2, in fine CC). A quota do comunheiro não tem de permanecer sempre a mesma. O título constitutivo fixa o seu valor no momento da constituição da comunhão, sem que, porém, esse valor seja imutável. Com efeito, o valor da quota do comunheiro pode variar por força da eficácia de factos supervenientes que tenham justamente o efeito de alterar o valor da quota. Cada comunheiro pode dispor de toda ou parte da sua quota (artigo 1408.º, n.º1, 1.ª parte CC) e, naturalmente, o adquirente pode ser outro comunheiro. Do mesmo modo, o comunheiro pode falecer e o seu sucessor ser outro comunheiro. A usucapião é outro dos factos que pode alterar a quota inicial dos comunheiros. A posse da coisa nos termos de uma quota de valor superior possibilita ao possuidor a usucapião do direito do comunheiro preterido na posse. Um outro facto que pode fazer variar posteriormente a quota do comunheiro é o que resulta daquilo que no Direito Romano vinha designado por ius adcrescendi. O ius adcrescendi foi expressamente previsto para a renúncia liberatória (artigo 1411.º, n.º3 CC), mas a regra vale igualmente para a renúncia abdicativa. Se um comunheiro renuncia ao seu direito, este acresce aos outros na proporção das respetivas quotas. À quota estão associados efeitos importantes. A quota define:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão  A fruição do comunheiro, bem como o recebimento de outros créditos ou proveitos gerados pela coisa (artigo 1405.º, n.º1 CC), se o direito real em comunhão atribuir o poder de fruição ou de recebimento de créditos e outros proveitos;  O montante a pagar nas despesas com a coisa e nos encargos devidos por ela (artigo 1405.º, n.º1 CC);  O valor do voto do comunheiro nas deliberações sobre a administração da coisa comum (artigo 1407.º, n.º1 CC);  O direito de preferência do comunheiro no caso de venda ou dação em cumprimento a estranhos do direito de outro comunheiro (artigo 1409.º, n.º3 CC);  A proporção do acrescer, em caso de renúncia de um dos comunheiros ao seu direito (artigo 1411.º, n.º3 CC para a renúncia liberatória).

Natureza jurídica e construção dogmática da compropriedade: a natureza jurídica da comunhão tem sido objeto de viva controvérsia e existem várias teorias que procuram defini-la.

1. Teoria da personalidade coletiva: uma posição que se pode dizer residual defende que na comunhão existe uma pessoa coletiva. Essa pessoa coletiva seria a titular do direito real: os comunheiros teriam apenas uma posição na pessoa coletiva;

2. Teoria da propriedade coletiva: fala-se, aqui, numa propriedade coletiva, diferente do modelo de comunhão de tradição romana.

3. Teoria de um direito sobre uma quota ideal: cada comunheiro é titular de um direito próprio, que incide sobre a coisa comum. Simplesmente, cada direito encontra-se limitado em extensão pela quota do comunheiro. Ele acaba, afinal, por incidir sobre esta.

4. Teoria de um único direito com vários (con)titulares: esta teoria tem uma formulação simples: na comunhão existe um único direito com pluralidade de titulares. No que toca especificamente à compropriedade, em vista da qual esta teoria surge desenvolvida, haveria um direito de propriedade com a titularidade repartida pelos comproprietários.

5. Teoria do concurso vários direitos reais da mesma natureza: a compropriedade representa um concurso de vários direitos de propriedade (tantos quantos os participantes) sobre todos os bens, direitos que, justamente pela concorrência, se limitam reciprocamente no seu exercício. Existem, assim, na comunhão tantos direitos como os comunheiros. Estes direitos são independentes entre si e têm a natureza do direito a que se referirem. Na compropriedade, cada comproprietário é titular de um autêntico direito de propriedade, no co-usufruto, cada co-usufrutuário tem um direito de usufruto, e assim sucessivamente. O objeto do direito do comunheiro é a coisa, a totalidade da coisa e não uma porção ideal representada pela quota. Os direitos dos comunheiros têm a mesma coisa por objeto, que é assim comum a todos eles. A incidência simultânea de vários direitos com a mesma natureza sobre a coisa induz um concurso de direitos reais, que ficam, por conseguinte, limitados na sua extensão. Por tudo o que fomos dizendo, escusado será dizer que aderimos a esta teoria, por considerarmos ser a única que se acomoda aos vários aspetos do regime jurídico da comunhão. Em jeito de síntese, divisamos na comunhão uma situação de concurso entre direitos reais da mesma natureza, portanto, uma situação em que direitos reais iguais recaem simultaneamente sobre uma mesma coisa. O objeto do direito real em 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão comunhão é a coisa, toda ela, e não a quota. Esta serve o propósito de resolver o conflito potencial entre os vários comunheiros relativamente ao exercício de poderes e deveres que assumam uma feição quantitativa, sem que constitua o próprio objeto do direito real ou defina uma porção da coisa que fique afeta ao direito. De resto, o artigo 1408.º, n.º1 C deixa claro que o comunheiro não tem legitimidade para, sozinho, dispor de parte especificada da coisa, ainda que esta, em concreto, se contenha dentro do valor da quota. Os direitos dos comunheiros oneram-se reciprocamente, limitando o exercício de cada um deles no respeito pelo conteúdo de aproveitamento dos outros.

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Secção III – A contitularidade de Direitos Reais

Generalidades: os direitos reais podem permanecer simultaneamente a vários titulares, situação que é denominada por contitularidade ou comunhão nesses direitos. A lei regula especificamente a compropriedade nos artigos 1403.º e seguintes CC, ainda que as regras sobre a mesma sejam aplicáveis com as necessárias adaptações à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles (artigo 1404.º CC), o que permite que as regras sobre a contitularidade de direitos reais sejam examinadas nessa sede. Há ainda um regime especial para a contitularidade das águas, nos termos dos artigos 1398.º e seguintes CC.

A Compropriedade: 1. Generalidades: a compropriedade é-nos definida no artigo 1403.º, n.º1 CC, que estabelece que existe propriedade em comum ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. Existe assim uma situação de compropriedade sempre que a propriedade seja atribuída a mais do que um titular. Nesse caso, conforme refere o artigo 1403.º, n.º2 CC, os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais ainda que possam ser quantitativamente diferentes, presumindo-se, no entanto, como quantitativamente iguais, se o título constitutivo não referir o contrário. Tal implica que o direito de cada comproprietário sobre a coisa não tenha faculdades inferiores ao de outros comproprietários, ainda que possa haver uma diferente repartição do exercício dessas mesmas faculdades e dos encargos da coisa, caso o montante das quotas de cada comproprietário seja distinto. Em conjunto, os comproprietários podem exercer, no entanto, todos os poderes que competem ao proprietário singular (artigo 1405.º, n.º1 CC). 2. Constituição da propriedade: a compropriedade pode ser constituída por: a. Negócio jurídico: sempre que seja atribuída por contrato ou testamento o direito de propriedade sobre uma coisa simultaneamente a vários titulares. b. Facto jurídico não negocial: nas hipóteses de: i. Usucapião: sempre que ela seja invocada após uma situação de composse em relação à coisa; ii. Ocupação: sempre que várias pessoas procedam em conjunto a esse ato; iii. Achamento: é expressamente imposta a compropriedade no achamento de tesouros, em virtude da atribuição da compropriedade no achamento de tesouros, em virtude da atribuição de metade do achado ao proprietário da coisa (artigo 1325.º CC). iv. Acessão: a lei prevê a atribuição da compropriedade, a desfazer através da licitação, em certos casos de acessão industrial (artigos 1333.º, n.º2, 1335.º, n.º3 e 1340.º, n.º2 CC). c. Sentença judicial: quando esta seja solicitada em relação às paredes e muros de meação, nos termos do artigo 1370.º CC; d. Disposição da lei: quando esta estabelece presunções de comunhão, como sucede nas hipóteses dos artigos 1358.º, n.º1, 1359.º, n.º2, 1368.º e 1371.º CC.

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3. Poderes dos comproprietários: os poderes atribuídos aos comproprietários compreendem: a. O uso da coisa comum (artigo 1406.º CC): em relação ao uso da coisa comum, dispõe o artigo 1406.º, n.º1 CC, que, na falte da acordo sobre a utilização da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, atribuindo assim isoladamente a cada um deles a faculdade de uso da coisa comum. Essa faculdade de uso é, no entanto, sujeita a dois limites, uma vez que o comproprietário não pode usar a coisa para fim diverso daquele a que ela se destina, nem pode privar os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. Existe, assim, em relação a cada comproprietário, uma: i. Restrição funcional ao poder de uso da coisa, que obriga a respeitar o fim a que a coisa se destina, trata-se de uma restrição estranha na propriedade, que constitui um direito de gozo pleno (artigo 1305.º CC). É, no entanto, compreensível em virtude da necessidade de compatibilização do uso do comproprietário com o uso pelos outros consortes, já que um uso desvirtuado da coisa a poderia deteriorar, lesando assim o seu uso posterior pelos outros. ii. Restrição quantitativa do poder de uso da coisa, esta obriga a respeitar o poder que os outros comproprietários igualmente têm de usar a coisa, o qual terá a dimensão que corresponde à dimensão quantitativa da quota de cada um (artigo 1403.º, n.º2 CC). Cada comproprietário terá assim que limitar o seu uso da coisa, por forma a que todos os outros o exerçam de acordo com a dimensão das suas quotas. Essa limitação poderá fazer-se permitindo o uso simultâneo da coisa, ou repartindo esse uso de acordo com um critério temporal (habitação da mesma casa de férias em diferentes períodos) ou espacial (cultivo por cada um de áreas diversas do terreno comum). O uso da coisa comum envolve naturalmente a posse sobre essa coisa, nos termos gerais (artigo 1251.º CC). O artigo 1406.º, n.º1 CC, vem, no entanto, esclarecer que o uso da coisa comum por um dos proprietários não constitui posse exclusiva, nem posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título. Esta solução resulta do facto de, ao usar a coisa, o comproprietário se limitar a exercer o direito que tem em comum com os outros e, portanto, também em nome destes. Assim, a aquisição de uma posse que extravase dessa situação depende da inversão do título, só sendo adquirida em função do facto que desencadeia essa inversão e não do mero uso da coisa comum. b. A reivindicação da coisa comum (artigo 1405.º,n.º2 CC): outro poder de exercício isolado pelos comproprietários é o de reivindicação da coisa comum. Efetivamente, o artigo 1405.º, n.º2 CC, estabelece que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que este seja lícito opor-lhe que esta não lhe pertence por inteiro. O comproprietário pode assim solicitar o reconhecimento da compropriedade e a consequente restituição da coisa, sempre que esta se encontre na posse ou detenção de terceiro (artigo 1311.º CC). c. A alienação ou oneração da coisa (artigo 1408.º CC): nos termos do artigo 1408.º, n.º1 CC, o comproprietário pode livremente dispor de toda a sua quota na

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão comunhão ou de parte dela, podendo livremente aliená-la ou onerá-la. Tal compreende-se em virtude de o comproprietário possuir uma posição no direito comum, a qual tem valor económico, em virtude das faculdades que atribui ao seu titular, pelo que pode naturalmente ser colocada no comércio jurídico. A disposição da quota está sujeita à mesma forma exigida para a alienação da coisa (arrigo 1408.º, n.º3 CC). O comproprietário não tem, no entanto, nenhum direito exclusivo sobre a coisa, ou mesmo sobre parte especificada desta, pelo que não pode aliená-las nem onerá-las (artigo 1408.º, n.º1, in fine CC). A disposição ou oneração de parte especificada da coisa comum sem consentimento dos consortes é havida como disposição ou oneração de coisa alheia (artigo 1408.º, n.º2 CC), regime que se estende, por maioria de razão, a disposição ou oneração de toda a coisa sem esse consentimento. Mais uma vez, essa solução explica-se em virtude do facto de o comproprietário só ser titular de uma posição num direito comum, pelo que a disposição que abranja todo o direito, ou mesmo apenas uma sua parte especificada, não pode deixar de ser vista como disposição de um bem alheio. d. O direito de preferência (artigos 1409.º e seguintes CC): a lei atribui ainda a cada um dos comproprietários direito de preferência na venda ou dação em cumprimento da quota do seu consorte (artigo 1409.º, n.º1 CC), em ordem a evitar que terceiros estranhos se imiscuam na titularidade do direito sobre a coisa. Trata-se de um direito de preferência legal, com eficácia real, a que a lei atribui mesmo o primeiro lugar entre os preferentes legais. Sendo dois ou mais os preferentes, o artigo 1409.º, n.º3 CC, manda adjudicar a quota a todos eles na proporção das suas quotas. Em caso de violação do direito de preferência, estabelece o artigo 1410.º CC, o recurso à ação de preferência, o que se compreende em virtude da eficácia real desta preferência. O comproprietário que preferiu tem o direito de fazer sua a quota alienada, desde que interponha a competente ação judicial contra alienante e adquirente no prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e deposite o preço devido nos quinze dias subsequentes à interposição da ação (artigo 1410.º, n.º1 CC). O direito de preferência e a respetiva ação não são prejudicados pela modificação ou distrate da alienação, ainda que estes efeitos resultem de confissão ou transação judicial (artigo 1410.º, n.º2 CC). e. O poder de exigir a divisão (artigos 1412.º e seguintes CC): o último poder de cada comproprietário é o poder de exigir a divisão da coisa comum, estabelecido no artigo 1412.º CC. Efetivamente, dispõe o artigo 1412.º, n.º1 CC, que nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, a menos que se tenha convencionado que a coisa deverá permanecer indivisa. Nesse caso, o prazo fixado para a indivisão da coisa não deverá exceder cinco anos, sendo, no entanto, lícito estipular a sua renovação, uma ou mais vezes, por nova convenção (artigo 1412.º, n.º2 CC). A cláusula de indivisão vale em relação a terceiros, mas deve ser registada para tal efeito se a compropriedade respeitar a coisas imóveis ou a coisas móveis sujeitas a registo (artigo 1412.º, n.º2 CC). Não tendo sido estipulada a indivisão, pode naturalmente o comproprietário requerer a divisão da coisa (artigo 1412.º, n.º1 CC). É, no entanto, manifesto que a divisão da coisa depende de a mesma poder ser fracionada sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destina (artigo 209.º CC), dado que, sendo a coisa indivisível, não poderá o comproprietário solicitar a 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão respetiva divisão. Também não poderá haver divisão se a lei o impedir, como sucede em relação aos prédios rústicos, que não podem ser fracionados em parcelas da área inferior à unidade de cultura (artigo 1376.º, n.º1 CC). Finalmente, a ação de divisão de coisa comum não pode ser julgada procedente se não estiverem preenchidos os requisitos de natureza administrativa exigidos para a divisão dos prédios, como a prévia concessão de alvará de loteamento ou licença de destaque, nos termos dos artigos 74.º e seguintes RJUE. 4. Obrigações dos comproprietários: em relação às obrigações dos comproprietários, estabelece o artigo 1405.º, n.º1 CC que estes participam nos encargos da coisa na proporção das suas quotas. Mais especificamente, o artigo 1411.º, n.º1 CC, estabelece que os comproprietários devem contribuir, na proporção das respetivas quotas, para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum. A regra é assim a repartição dos encargos da coisa por todos os condóminos em termos proporcionais às respetivas quotas. As partes poderão, no entanto, acordar outro critério, nomeadamente a utilização efetiva que os comproprietários realizam em relação à coisa. A lei consagra a possibilidade de renúncia liberatória do comproprietário à sua quota, em ordem a eximirse do pagamento dos encargos. A renúncia não é, no entanto, válida sem o consentimento dos restantes consortes quando a despesa tenha sido previamente aprovada pelo interessado, e é revogável sempre que as despesas previstas não venham a realizar-se (artigo 1411.º, n.º2 CC). A renúncia do comproprietário está sujeita à forma prescrita para a doação e aproveita a todos os consortes, na proporção das respetivas quotas (artigo 1411.º, n.º3 CC). 5. A administração da coisa comum: a administração da coisa comum encontra-se prevista no artigo 1407.º CC, abrangendo situações como os atos de fruição da coisa comum, a sua conservação ou beneficiação e ainda os atos de alienação de frutos. Em relação ao regime da administração, o artigo 1407.º CC remete, com as necessárias adaptações, para os sistemas de administração da sociedade civil, previstos no artigo 985.º CC, pelo que haverá que aplicar as respetivas regras. O artigo 985.º CC deixa à disponibilidade das partes a estipulação da mobilidade de exercício da administração. Esse artigo estabelece, no entanto, com caráter supletivo, o regime da administração disjuntiva, havendo referências exemplificativas aos sistemas de administração conjunta e maioritária. a. No sistema de administração disjuntiva (artigo 985.º CC): os poderes de administração concentram-se integralmente em cada um dos comproprietários, podendo estes individualmente praticar todos os atos de administração, sem necessidade do consentimento nem sujeição às diretivas dos outros. A atividade dos comproprietários não fica, porém, isenta de controle, uma vez que a lei atribui também a cada comproprietário o direito de oposição aos atos que os outros pretendam realizar, cabendo à maioria decidir sobre o mérito da oposição (artigo 985.º, n.º2 CC). Neste caso, a maioria legal só é formada com metade do valor das quotas (artigo 1407.º, n.º1, in fine C). Se, apesar da oposição, o comproprietário realizar o ato, o mesmo é anulável e torna o seu autor responsável pelo prejuízo a que der causa (artigo 1407.º, n.º3 CC). b. Nos sistemas de administração conjunta e maioritária: os comproprietários podem ainda estabelecer nos termos do artigo 985.º, n.ºs3 e 4, estes sistemas. i. No sistema de administração conjunta: a realização de atos de administração necessita do consenso de todos os comproprietários

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ii. No sistema de administração maioritária: exige-se apenas uma deliberação da maioria, a qual, como se referiu, é formada com base no valor das quotas. A lei estabelece, no entanto, que quando não seja possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade (artigo 1407.º, n.º2 CC). Em qualquer destes dois sistemas, os comproprietários isoladamente possuem, porém, competência para praticar os atos urgentes, destinados a evitar um dano iminente que a coisa possa sofrer (artigo 985.º, n.º5 CC). 6. A disposição da coisa comum: já os atos de disposição da coisa comum apenas podem ser praticados com o consentimento de todos os comproprietários. Aqui se compreende a alienação ou oneração da coisa (artigo 1408.º, n.º2 CC), ou a sua transformação ou destruição. A lei prevê expressamente que se o comproprietário vier a alienar ou onerar parte especificada da coisa comum, sem consentimento dos outros consortes, tal será considerado como alienação ou oneração de coisa alheia (artigo 1408.º, n.º2 CC). Naturalmente que esta disposição se aplicará, por maioria de razão, aos casos em que o comproprietários resolva alienar toda a coisa comum. Não concordamos, por isso, com a tese defendida por Vaz Serra, Ribeiro de Faria e Carvalho Fernandes, que admitem para estes casos uma conversão e redução simultânea do negócio, convertendo-se a venda da coisa comum na venda da quota ideal e reduzindo-se o contrato à venda dessa quota parte. Efetivamente, a manutenção do contrato com estas modificações vai implicar uma alteração substancial da posição do adquirente, que o pretendia ser de um bem integral, e é transformado em mero adquirente de uma quota indivisa, o que dificilmente corresponderá à sua vontade, especialmente se ele ignorava o estado de indivisão. Parece-nos, portanto, de aplicar integralmente o regime da venda de bens alheios (artigo 892.º e seguintes CC), que implicará a nulidade integral do negócio (artigo 894.º CC), salvo se o vendedor vier a adquirir as quotas dos restantes consortes (artigo 895.º CC). A aplicação do regime da venda de bens alheios verifica-se apenas em relação às partes no negócio, sendo em relação aos outros consortes considerado o negócio como ineficaz, a menos que dêem o seu consentimento, pelo que estas não carecem de solicitar a declaração de invalidade do negócio, podendo comportar-se como se não tivesse sido celebrado. 7. A extinção da compropriedade: verifica-se a extinção da compropriedade sempre que cessar a situação de contitularidade do direito em relação à coisa. Essa cessação pode resultar ou da aquisição derivada ou originária, por parte de um dos consorte ou de terceiro, da propriedade sobre toda a coisa, ou da divisão da coisa em frações, com atribuição da propriedade exclusiva ou da propriedade horizontal sobre essas frações e cada um dos consortes. Relativamente à aquisição da propriedade sobre toda a coisa, esta pode resultar ou de negócio jurídico de aquisição da coisa, ou de usucapião da sua propriedade exclusiva, por parte de um dos comproprietários ou de terceiro. A lei estabelece diversos mecanismos que facilitam a aquisição da propriedade integral da coisa pelos outros comproprietários (artigos 1409.º e seguintes e 1411.º, n.º2 e 3). Em relação à usucapião da propriedade exclusiva por um dos comproprietários, esta necessita da inversão prévia do título da posse, só começando o respetivo prazo a correr desde essa inversão do título (artigo 1406.º, n.º2 CC). Relativamente à divisão da coisa, vimos já que esta constitui um direito atribuído aos comproprietários, se não for estipulada convenção de indivisão (artigo 1412.º, n.º1 CC), a qual não pode, porém,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão exceder cinco anos (artigo 1412.º, n.º2 CC). A lei estabelece que divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei de processo (artigo 1413.º, n.º1 CC), o que implica a sua admissibilidade por convenção ou por ação judicial. A convenção de divisão da coisa comum está sujeita à forma exigida para a alienação onerosa da coisa (artigo 1413.º, n.º2 CC). Já a divisão por ação judicial é realizada através do processo especial de divisão da coisa comum (artigo 925.º e seguintes CPC). O regime é distinto, consoante a coisa seja considerada como divisível ou indivisível. No primeiro caso, a divisão faz-se em substância, em termos proporcionais às respetivas quotas. No segundo caso, a coisa deve ser objeto de adjudicação ou venda, com repartição do respetivo valor pelos consortes (artigo 925.º, n.º1 CC). Sendo a coisa em questão um edifício, e desde que estejam preenchidos os requisitos do artigo 1415.º CC, pode a divisão operar-se através da constituição em propriedade horizontal, quer por via de convenção, quer na ação de divisão da coisa comum (artigo 1417.º CC). 8. A natureza jurídica da compropriedade: a natureza jurídica da compropriedade tem sido controvertida na doutrina, tendo sido apontadas as seguintes teorias a. Teoria do direito sobre quotas: defendida, entre nós, por Guilherme Moreira, Manuel rodrigues e Carlos Mota Pinto, para cada comproprietário existe um direito a uma quota ideal ou intelectual do objeto da propriedade, o que explica a possibilidade de alienação separada dessa quota, bem como o direito de requerer a divisão da coisa comum. O facto de cada um dos consortes ter a possibilidade de uso e administração da coisa comum não constituiria obstáculo a esta configuração, pois incidindo a propriedade sobre uma quota ideal, e não sobre uma parte especificada da coisa, compreende-se que os direitos de cada comproprietário se estendam a toda a coisa. b. Teoria da pluralidade de direitos sobre a mesma coisa: defendida em Itália por Scialoja e Allara e, entre nós, por Luis Pinto Coelho, e tendo a ela aderido Cunha Gonçalves, Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro, Carvalho Fernandes, Rui Pinto e José Alberto Vieira, na compropriedade existe uma pluralidade de direitos da mesma espécie, que recaem sobre a mesma coisa, o que determina uma limitação mútua ao respetivo exercício. c. Teoria do direito único como pluralidade de titulares: defendida na doutrina portuguesa por Henrique Mesquita, tendo depois a ela aderido Pires de Lima e Antunes Varela, Rui Pinto Duarte e Santos Justo, a referência legal a quotas refere-se- a partes do direito e não a partes ideais da coisa, sendo toso os consortes co-titulares do mesmo direito, no qual possuem uma quota. Tal explicaria o facto de o comproprietário poder usar a coisa, desse que não a utilize para fim diverso a que esta se destina e não prive os outros do uso a que também têm direito, mas exigir-se o consentimento dos outros titulares para o exercício de alguns poderes, em certos casos por maioria e noutros por unanimidade. Para além disso, o facto de o comproprietário ser apenas co-titular do direito explicaria o facto de ele poder alienar ou onerar a sua quota, mas não uma parte especificada da coisa comum. d. Teoria da compropriedade como pessoa coletiva: defendida em Itália por Roggero Luzzato e Mario Dossetto, na compropriedade existiria uma pessoa coletiva, o que seria comprovado pela existência de uma relação de administração e pelas regras relativas à formação da vontade coletiva, em certos casos sujeitas a deliberação da maioria e noutros cassos a deliberação por

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão unanimidade. O direito real seria assim pertença da coletividade dos consortes, considerada como ente distinto dos sujeitos que a compõem. É manifesto que a lei não personifica a compropriedade, pelo que não faz sentido a sua qualificação como pessoa coletiva. Efetivamente, na compropriedade nem sequer se verifica uma autonomia patrimonial, que constitui o substrato indispensável a qualquer personificação. Também não parece adequada a conceção que vê a compropriedade como um direito sobre quotas, uma vez que os direitos reais incidem necessariamente sobre coisas corpóreas. Esta tese transformaria a compropriedade na titularidade de um direito incorpóreo, o que não é manifestamente compatível com a sua natureza. Quanto à tese de que haveria uma pluralidade de direitos sobre a mesma coisa, esta confunde as situações de contitularidade de direitos com as do concurso de direitos. Efetivamente, não faz sentido considerar que o direito de propriedade, enquanto direito pleno e exclusivo sobre a coisa possa concorrer com direitos idênticos de outros titulares. Para além disso, esta teoria não explica o facto de a maior parte dos poderes atribuídos aos consortes dever ser exercida conjuntamente, nem o facto de o uso da coisa comum pelos comproprietários não lhe atribuir posse exclusiva nem posse de quota superior à dele, a menos que seja invertido o título. Por essa razão, pensamos que a tese do direito único com pluralidade de titulares é a explicação mais adequada para a natureza da compropriedade. Efetivamente, na compropriedade o direito de propriedade mantémse com todas as suas características, sendo apenas atribuído conjuntamente a mais do que uma pessoa. Tal situação explica o facto de em conjunto os comproprietários poderem sempre exercer todos os poderes relativos à coisa, bem como a circunstância de a posição de cada comproprietário nesse direito poder ser alienada ou onerada, ainda que seja necessário atribuir preferência aos outros titulares. Finalmente, é essa teoria que explica o facto de uso da coisa comum pelo comproprietário não lhe atribuir posse exclusiva, nem superior à sua quota, uma vez que ele se limita a exercer o direito comum.

A contitularidade das águas: as águas podem pertencer em contitularidade a dois ou mais titulares, ou ser aproveitadas por outros co-utentes além do seu titular, situação que a lei qualifica impropriamente como condomínio das águas (artigos 1398.º e seguintes CC). A existência de uma situação de condomínio das águas obriga, em primeiro lugar, todos os co-utentes, a contribuir para as despesas necessárias ao conveniente aproveitamento delas, na proporção do seu uso, podendo para esse fim executar-se as obras necessárias e fazer-se os trabalhos indispensáveis, quando se reconheça haver perda ou diminuição de volume ou caudal (artigo 1398.º, n.º1 CC). Trata-se de uma obrigação propter rem, que recai não apenas sobre os comproprietários da água, antes de efetuada a divisão desta, mas também sobre os co-utentes, que dela se aproveitem em virtude de um ato de mera tolerância do proprietário do prédio superior. Nesta situação, não é admitida por parte dos co-utentes a renúncia liberatória ao seu direito, em benefício de outros co-utentes, desde que haja oposição destes (artigo 1398.º, n.º2 CC). Uma vez que as águas dificilmente podem ser aproveitadas simultaneamente por vários comproprietários, a existência de uma situação de contitularidade das águas vai normalmente implicar uma divisão dessas águas, que permita o seu aproveitamento por todos. Nos termos do artigo 1399.º CC, sempre que essa divisão deva realizar-se, ela deve ser efetuada, no silêncio do título, na proporção da superfície, necessidades e natureza da cultura dos terrenos a regar, podendo repartir-se o caudal ou o tempo da sua utilização, como mais convier ao seu bom aproveitamento. A lei admite a relevância dos costumes na divisão das águas, estabelecendo que as águas fruídas em comum que, por costume seguido já mais de vinte anos, estiverem divididas ou subordinadas a um regime estável e normal de distribuição continuam a ser aproveitadas por essa forma, sem nova divisão (artigo 1400.º,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão n.º1 CC). Nesse caso, a obrigatoriedade do costume impõe-se também ao co-utentes que não sejam donos da água, sem prejuízo dos direitos do proprietário, que pode a todo o tempo desviála ou reivindica-la, se estiver a ser aproveitada por quem não tem nem adquiriu direito a ela (artigo 1400.º, n.º2 CC). O costume, desde que naturalmente vigore por mais e vinte anos, vale assim igualmente para aqueles que se aproveitam da mera tolerância do titular das águas, sem prejuízo de uma eventual futura reação deste, nos termos do artigo 1391.º CC

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Capítulo VII – Os Factos Jurídicos com Eficácia Real Os factos jurídicos com eficácia real no ensino de Direitos Reais : todos os autores que procedam ao esforço de elaboração de uma parte geral em Direitos Reais autonomizam o tratamento dos factos jurídicos com eficácia real, agrupando-os em função do tipo de eficácia que produzem (constitutiva, translativa, modificativa e extintiva). No ensino escrito de Direitos Reais, seguem esta orientação Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro. Carvalho Fernandes prefere falar em vicissitudes dos direitos reais, chegando, porém, a um resultado inteiramente coincidente com o dos autores referidos. Um capítulo sobre factos jurídicos com eficácia real visa descrever agrupadamente o conjunto de factos cuja eficácia opera para todos os direitos reais ou para uma categoria deles e apresenta como vantagem evidente a desnecessidade de repetição da mesma matéria a propósito do regime jurídico de cada direito real. Se a matéria é comum a todos os direitos reais ou a uma categoria deles, deve ser exposta na parte geral, de acordo com o seu caráter genérico, evitando-se, deste modo, sucessivas e inúteis repetições na apresentação do regime de cada um dos direitos reais e a perda de perspetiva sistemática. Para a parte especial de Direitos Reais ficam os factos jurídicos cuja eficácia se restringe a um particular direito real.

Factos jurídicos e eficácia real: no mundo do Direito os efeitos jurídicos são um produto de factos jurídicos. Concretamente, os efeitos reais são o resultado de factos jurídicos com eficácia real, isto é, de factos que constituem, transmitem, modificam e extinguem situações jurídicas ou produzem qualquer outro efeito sobre estas. Os factos jurídicos com eficácia real são os chamados

1. Factos jurídicos quoad efectum (quanto aos efeitos): o efeito real decorre do próprio facto. São contratos reais quanto à constituição o mútuo (artigo 1142.º CC), o depósito (artigo 1185.º CC), o comodato (artigo 1129.º CC), a doação de coisa móvel sem observância de forma escrita (artigo 947.º, n.º2 CC) e o contrato constitutivo de penhor de coisa (artigo 669.º, n.º1 CC); e distinguem-se dos

2. Factos jurídicos reais quoad constitutionem (quanto à constituição): o caráter real advém da tradição da coisa, que é requerida para a validade e eficácia do facto. Factos jurídicos reais quanto aos efeitos são a compra e venda (artigo 879.º CC) e a doação (artigo 954.º CC). As situações jurídicas reais têm primariamente a natureza de direitos reais; todavia, outras situações jurídicas menores com natureza real podem estar envolvidas na dinâmica propiciada pelos factos jurídicos com eficácia real. Portanto, os factos jurídicos com eficácia real operam sobre as situações jurídicas reais, provocando a sua constituição, transmissão, modificação ou extinção. As situações jurídicas reais são em si uma realidade estática. Apenas os factos fazem desencadear os efeitos jurídicos.

Factos jurídicos com eficácia real exclusiva e factos jurídicos com eficácia múltipla : os factos jurídicos não têm de produzir somente efeitos jurídicos reais para merecerem a qualificação de factos jurídicos com eficácia real. Existem factos jurídicos que, conjuntamente com a eficácia real, determinam a verificação de efeitos jurídicos de outra natureza. Um facto jurídico tem eficácia real quando desencadeie um efeito sobre uma situação jurídica real,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão independentemente de poder suscitar igualmente efeitos de outra natureza (obrigacionais, sucessórios, familiares, pessoais, etc.). Deste modo, alguns factos jurídicos com eficácia real não são específicos de Direitos Reais, desencadeando efeitos relativos a outros complexos normativos, e ficando, por isso, igualmente sujeitos a uma disciplina jurídica que não é, ou não é somente, a deste ramo de Direito. Caso paradigmático é o negócio jurídico, tanto unilateral, como plurilateral. Mas outros factos não negociais, como a decisão judicial ou o decurso do tempo, podem ser apontados igualmente para ilustrar o que se disse. Existem, no entanto, factos jurídicos que só têm eficácia real, deles não resultando efeitos de outra natureza. A usucapião, a ocupação, a desnecessidade, o não uso são alguns exemplos de factos jurídicos que só têm efeitos reais. Podemos, assim, introduzir uma primeira classificação entre factos jurídicos com eficácia real, distinguindo

1. Factos jurídicos com eficácia real exclusiva: os factos jurídicos com eficácia real exclusiva devem ser regulados no contexto sistemático de Direitos Reais consoante sejam atinentes a todos os direitos reais, a uma categoria determinada (gozo, garantia ou aquisição) ou a um único direito real. Infelizmente, a falta de uma parte geral no regime jurídicos dos direitos reais diminui a clareza do sistema, levando a uma enunciação repetitiva dos factos a propósito de cada direito real ou a regular a propósito de um direito real (normalmente a propriedade) factos que são gerais ou relativos a uma categoria de direitos reais, suscitando incertezas de sentido e controvérsias de interpretação que bem podiam ser evitadas com uma melhor técnica legislativa.

2. Factos jurídicos com eficácia múltipla. Tipicidade e factos jurídicos com eficácia real: em cada um dos direitos reais de gozo e numa boa parte dos direitos reais de garantia, o Código Civil contém uma disposição dedicada à enumeração dos factos constitutivos do direito real em causa (artigos 1316.º, 1417.º, 1440.º, 1485.º, 1528.º, 1547.º CC, quanto aos direitos reais de gozo e os artigos 658.º, n.º2, 710.º, 712.º CC no que toca aos direitos reais de garantia) e em quase todos eles, com exceção da propriedade, também outra atinente aos factos extintivos (artigos 664.º, 677.º, 730.º, 752.º, 1471.º, 1485.º, 1536.º e 1569.º CC). A consagração de disposições legais dedicadas à previsão de factos constitutivos e extintivos de direitos reais levanta a questão de saber se a eficácia real pode resultar de outros factos, para além, portanto, dos enunciados em cada uma daquelas disposições. O artigo 1306.º, n.º1 CC preceitua que não é permitida a constituição, com caráter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito. Já vimos que aqui se prevê o princípio da tipicidade em Direitos Reais. Mas mencionando-se a constituição, com caráter real, alarga-se esta tipicidade aos factos com eficácia constitutiva dos direitos reais? A resposta que damos é negativa. A constituição mencionada no artigo 1306.º, n.º1 CC refere-se a situações jurídicas reais, não a factos jurídicos com eficácia real. Trata-se somente de restringir a criação de direitos reais, mas não os factos através dos quais se processa essa criação. A possibilidade de um contrato atípico pode criar direitos reais, não obstante a ausência de consagração legal, evidencia justamente que a lei portuguesa não cerceia a constituição de direitos reais através de um numerus clausus de factos jurídicos com eficácia real. E se assim é, para os factos constitutivos, é-o igualmente, por maioria de razão, para os factos jurídicos com eficácia real, translativos, modificativos e extintivos. Também eles não estão abrangidos por qualquer princípio de tipicidade. Existe uma tipicidade de direitos reais, mas não há qualquer tipicidade de factos jurídicos com eficácia real. Em face do que ficou dito, poder-se-á legitimamente perguntar da utilidade de haver uma disposição legal para os factos constitutivos e outra para os factos extintivos em praticamente todos os direitos reais de gozo e de garantia. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Se tas disposições não contêm uma enumeração taxativa desses factos, qual a parte geral em Direitos Reais, o legislador viu-se forçado a repetir no regime de cada direito real os factos que podem suscitar a constituição e a extinção dos mesmos. Para além do caráter repetitivo que tal opção arrasta, ela tem ainda o inconveniente de poder dar a impressão de consagrar um numerus clausus de factos, que não se pretendeu consagrar.

Factos jurídicos com eficácia para todos os direitos reais, factos jurídicos com eficácia restrita a uma categoria de direitos e factos jurídicos com eficácia real para um direito real em especial: existem factos jurídicos que podem estender a sua eficácia a qualquer direito real. Existem, porém, muito poucos factos cuja eficácia abranja todos os direitos reais. Se excetuarmos a eficácia da lei ao nível da constituição e extinção das situações jurídicas reais, teremos dificuldade em encontrar outros factos jurídicos reais com eficácia geral, para além da renúncia, da perda da coisa e da expropriação. Mesmo a decisão judicial parece não poder conduzir à constituição de todos os direitos reais. Outros factos jurídicos com eficácia real têm um âmbito limitado a uma categoria de direitos reais. Há depois factos jurídicos com eficácia relativa a um direito real em especial.

A sistematização dos factos jurídicos com eficácia real : ao sistema externo de Direitos Reais cabe a tarefa de ordenar os factos jurídicos com eficácia real, não apenas para os descrever, mas, igualmente, para permitir inferir o seu regime jurídico. Essa tarefa inclui-se na construção de uma parte geral, a parte geral que falta no Livro III do Código Civil. Os factos jurídicos com eficácia real devem ser ordenados primeiramente de acordo com a sua generalidade e depois atendendo à sua eficácia específica, constitutiva, translativa, modificativa ou extintiva de direitos (situações jurídicas) reais. Em atenção à sua generalidade, é possível sistematizar os factos jurídicos como eficácia real em factos jurídicos com eficácia para todos os direitos reais, factos jurídicos com eficácia restrita a uma categoria de direitos reais e factos jurídicos com eficácia real para um direito real em especial, como vimos no número anterior. Enquanto os factos jurídicos com eficácia para todos os direitos reais e os factos jurídicos com eficácia restrita a uma categoria de direitos reais devem ser ordenados na parte geral dos direitos reais, os factos jurídicos com eficácia relativa a um direito real em especial devem ser tratados a propósito do regime específico deste direito. Por isso, vamos expor unicamente os factos que devem constar da parte geral dos direitos reais, por a sua eficácia respeitar a todos ou a uma categoria deles. Os factos que são específicos de um direito real em especial têm tratamento a propósito do regime respetivo.

Secção I – Os Factos Jurídicos Constitutivos de Direitos Reais Considerações gerais: há factos jurídicos cuja eficácia constitutiva abrange todas as categorias de direitos reais, embora alguns destes direitos possam não ser efetivamente constituídos por eles. Ainda assim, estes factos têm uma amplitude que permite considera-los factos constitutivos de direitos reais. Existem apenas três factos jurídicos com eficácia constitutiva para todos os direitos reais:

1. A lei: toda a situação jurídica, e também a situação jurídica real, tem a sua fonte na lei. O que nos interessa aqui são os casos em que a lei representa o facto constitutivo de direitos reais. Em abstrato, a lei pode desencadear a constituição de qualquer direito 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão real. Em concreto, a lei aparece mencionada expressamente como facto constitutivo da hipoteca (artigos 704.º a 709.º CC), dos privilégios creditórios (artigo 733.º e seguintes CC), do usufruto (artigo 1440.º CC) e das servidões legais (artigos 1550.º e seguintes CC). A lei pode determinar só por si a constituição do direito real, como sucede com os privilégios creditórios, ou ser parte de um facto complexo de produção sucessiva. Na hipoteca legal, o direito real hipoteca só se constitui em concreto com o registo. Na servidão legal, as partes têm de constituir voluntariamente a servidão, por via de negócio jurídico, ou o titular do direito potestativo tem de recorrer a juízo para obter a condenação daquele que se encontra sujeito à constituição dela, se este não colaborar voluntariamente.

2. A decisão judicial: a decisão judicial é outro facto constitutivo de direitos reais e, como tal, vem indicada em vários preceitos normativos (artigos 658.º, 710.º, 1417.º, n.º1 e 1547.º, n.º2 CC). Não havendo uma tipicidade de factos jurídicos com eficácia real, a decisão judicial pode funcionar como facto constitutivo mesmo relativamente a direitos reais em que não surge prevista como tal.

3. O negócio jurídico: o negócio jurídico é o facto constitutivo de direitos reais com maior relevo, não obstante nem todos os direitos reais poderem ser constituídos por negócio jurídico (os privilégios creditórios, por exemplo). Como facto constitutivo de direitos reais, o negócio jurídico surge previsto em numerosos preceitos, uma vezes em geral, outras atendendo a uma das suas espécies. Assim, mencionam o negócio jurídico em geral os artigos 658.º, n.º2, 1417.º, n.º1 CC; fala em declaração unilateral o artigo 712.º CC; referem o testamento os artigos 658.º, n.º2, 1440.º, 1485.º (por remissão para o artigo 1440.º), 1528.º e 1547.º, n.º1 CC e incluem o contrato entre os factos constitutivos o artigo 413.º, 421.º, 712.º, 11316.º e 1317.º, 1440.º, 1528.º, 1547.º, n.º1 CC. Quer o negócio jurídico unilateral quer o contrato figuram entre os factos constitutivos dos direitos reais.

Factos com eficácia relativa a uma categoria de direitos reais. A usucapião: a nosso ver, existe apenas um único facto constitutivo com eficácia relativa a uma categoria de direitos reais: a usucapião. Outro facto que tem sido apontado seria a acessão. Julgamos, no entanto, que a acessão tem uma eficácia limitada à constituição do direito de propriedade, embora outros titulares de direitos reais de gozo possam igualmente beneficiar dela. Como facto constitutivo geral de direitos reais de gozo, a usucapião pode ser ensinada neste momento, justamente no contexto dos factos constitutivos de direitos reais.

Subsecção I – A usucapião

Generalidades: existem factos jurídicos com eficácia potencial para todos os direitos reais ou, pelo menos, para todas as categorias de direitos reais e factos jurídicos com eficácia restrita a uma categoria de direitos reais. A usucapião surge como exemplo de um facto constitutivo que respeita unicamente aos direitos reais de gozo. Tradicionalmente, porém, a doutrina portuguesa que intenta construir uma parte geral dos direitos reais tem sistematizado este facto a propósito da constituição de direitos reais. A usucapião pode ser regulada normativamente em mais do que um contexto, como um dos efeitos da posse, a opção sistemática do legislador português,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão como um facto constitutivo de direitos reais. Por nós, não vemos inconveniente que a usucapião seja tratada em sede dos factos jurídicos com eficácia real constitutiva, como tem sido feito pela doutrina dominante. No entanto, não se pode perder de vista que a eficácia real constitutiva da usucapião é diversa da lei, da decisão judicial e do negócio jurídico, sendo mais restrita. Preferimos, por isso, abrir uma secção votada ao tratamento da usucapião.

Antecedentes históricos da usucapião: no Direito Romano arcaico, o usus era o termo utilizado para designar a posse da coisa. Assim, a usus capio traduzia a aquisição do direito real pela posse. Na sua origem, o instituto aplicava-se também a direitos diversos da propriedade. Quanto à aquisição da propriedade por usucapião, os requisitos ao tempo da Lei das XII Tábuas eram o gozo de facto da coisa ou possesso e a duração da posse, que era fixada em dois anos para os prédios e um ano para as restantes coisas. A posse boa para usucapião não era qualquer uma, excluindo-se a usucapião relativamente à coisa roubada ou adquirida com violência. Forjou-se deste modo um requisito subjetivo para a pose, que o possuidor estivesse de boa fé no momento da aquisição da posse, ou seja, que tivesse a consciência de não estar a lesar direito de outrem. Para além da boa fé, a jurisprudência pretoriana exigia um fundamento de aquisição, um título ou iusta causa (iusta causa possidendi). A boa fé e o título eram, assim, requisitos de aquisição da propriedade por usucapião. A usucapião surgiu como instituto de ius ciuile, não podendo aplicar-se a não cidadãos. Para estes, nos territórios provinciais desenvolver-se um instituto análogo, a longi temporis praescriptio, que funcionava como causa de aquisição de propriedade, mas como uma espécie de exceção contra o autor de uma rei vindicatio para o possuidor que mantivesse a coisa por um prazo que variava entre dez e vinte anos (10-20 anos). Mais tarde, ainda no período clássico, terá sido introduzida uma praescriptio de quarenta anos (40 anos) a favor do possuidor, sem os requisitos de existência de justo título e de boa fé. Teodósio II reduziu este prazo para trinta anos (30 anos – praescriptio longissimi temporis ou triginta annorum). No período pós-clássico, por força do desaparecimento da distinção entre cidadãos romanos e estrangeiros, a usucapio e a longi temporis praescriptio tenderam-se a fundir num único instituto. A longi temporis praescriptio transforma-se um modo de aquisição do domínio e funde-se com a usucapio.

Aspetos gerais da usucapião no Direito Civil moderno e no Código Civil português : alguns traços caracterizadores do regime da usucapião no Direito Romano pré-clássico, clássico e justinianeu desapareceram no Direito moderno. A exigência de justo título ou da boa fé para a usucapião já não aparece hoje no Direito italiano, no Direito Francês e também não surge no Direito Português. No Direito Alemão, porém, a boa fé (fides) ainda é exigida para a usucapião de coisas móveis, embora o instituto tenha na Alemanha uma importância significativamente menor do que nas ordens jurídicas dos países latinos. Como traços comuns do regime da usucapião mantêm-se a posse nos termos de um direito real e a duração por um período de tempo, variável em cada ordem jurídica. Um possuidor que se mantenha na posse pelo lapso de tempo fixado na lei pode adquirir por usucapião, tenha ou não um título para a sua posse, e mesmo estando de má fé. A usucapião mantém, por conseguinte, a conformação de um facto constitutivo de direitos reais (de gozo), desligado, todavia, de qualquer valoração ética. Já não se trata mais de proteger um adquirente a non domino de boa fé que tem um título aquisitivo do direito, mas de permitir a consolidação do direito real por parte de quem já o exerce de facto através da posse. O Código Civil Português trata a usucapião no Capítulo VI do regime da posse, nos artigos 1287.º a 1301.º CC. Trata-se do resultado da influência da opção sistemática perfilhada no Codice Civile Italiano de 1942, que recuperou a denominação clássica do instituto e quebrou o tratamento sistemático unitário da prescrição da tradição justinaneia, dividida em

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão prescrição aquisitiva (a usucapião) e extintiva, que se mantém, por exemplo, no Code Civil francês. No Código Civil Português, como no italiano, a usucapião vem tratada como um efeito da posse. Tendo em conta que o Código Civil não contém uma parte geral dos direitos reais, sequer dos direitos reais de gozo, a colocação sistemática da usucapião não podia ser feita de outro modo senão no contexto da posse. O Direito Português segue a evolução moderna do instituto. A exigência de um justo título não é feita em lado nenhum do sistema normativo, podendo a usucapião beneficiar quem simplesmente se apossa da coisa, sem título algum, ou alguém que inverte o título da posse tendo uma simples detenção, e isto tanto para coisas móveis como para coisas imóveis. A boa fé não é requisito para a usucapião, quedando-se a sua relevância pela incidência de um prazo menor de posse necessária para que o possuidor possa usucapir. Também o possuidor de má fé pode beneficiar da usucapião no Direito Português atual. A existência de título e a boa fé perderam, assim, terreno na conformação do instituto da usucapião. Por outro lado, o regime jurídico português continua a desconsiderar o aproveitamento utilitário da coisa como requisito da usucapião. Não obstante da posição contrária de Oliveira Ascensão, o Direito Português não faz qualquer alusão a uma posse efetiva como requisito da posse, bastando-se com o mero controlo material da coisa (a posse) mantido pelo lapso de tempo fixado na lei.

Direitos reais de gozo usucapíveis: a usucapião só permite a aquisição de direitos reais de gozo. Nenhum outro direito real ou de outra natureza é suscetível de usucapião. Todavia, nem todos os direitos reais de gozo são usucapíveis. A lei portuguesa dispõe expressamente que não são usucapíveis o direito de uso e habitação e as servidões prediais não aparentes (artigo 1293.º CC). Estes não são, por conseguinte, direitos usucapíveis. Nada obsta à aquisição por usucapião dos direitos nus. A nua propriedade pode ser adquirida pelo possuidor formal que exerce uma posse nos termos de uma propriedade onerada por um usufruto ou por uma superfície. Nesta situação, a posse do nu proprietário coexistirá com uma posse nos termos do usufruto ou da superfície. Porquanto a usucapião tem a extensão da posse exercida, apenas permitindo a aquisição do direito a que ela se refere, a sua eficácia ocorre nos precisos termos da posse. Se esta se exterioriza como uma propriedade onerada, o direito é usucapido nos termos da posse exercida.

Requisitos gerais da usucapião: o Direito Português estabelece três requisitos gerais para a usucapião:

1. Uma posse boa para a usucapião: se a posse é o sustentáculo da usucapião, nem toda a gente serve para este efeito. É usual falar-se em posse boa para usucapião à posse que permite a aquisição do direito real de gozo. A posse boa para usucapião é uma posse que tem de revestir determinadas características, nomeadamente, ser pública e pacífica. Isto retira-se diretamente do artigo 1297.º CC, no tocante às coisas imóveis, e do artigo 1300.º, n.º1 CC, relativamente às coisas moveis. Se a posse foi adquirida com violência, o prazo para a usucapião não começa a contar enquanto ela não se tornar pacífica. Do mesmo modo, a posse oculta não conta para a usucapião, a não ser que se torne pública. Ainda assim, a contagem do prazo para a usucapião só se inicia quando a posse se torna pacífica e pública, o que demonstra que antes disso a posse não era boa para usucapião. Para além do caráter pacífico e público, nenhum outro requisito se exige. Portanto, a posse que pode desencadear a usucapião deve ser pública e pacífica. É usual afirmar-se que a posse deve ser contínua e ininterrupta. O artigo 1158.º Codice Civile Italiano fala numa posse continuada; o Código Civil Português não faz menção ao caráter contínuo da posse, mas menciona uma posse mantida por um certo lapso de tempo, o que dá no 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão mesmo. Há aqui um terceiro requisito da posse? Para além de pública e pacífica, deve exigir-se que a posse seja contínua/ininterrupta? Sem dúvida, a posse só pode servir para usucapião se o possuidor a manteve durante o prazo legal para o efeito. Mas não se trata de um requisito atinente à posse e sim à sua duração. Portanto, não estamos perante um novo requisito da posse boa para usucapião. A posse boa para usucapião é uma verdadeira posse. A detenção ou posse precária não pode fundar a usucapião. O artigo 1290.º CC dispõe inequivocamente neste sentido preceituando que apenas os detentores que hajam invertido o título da posse, e sejam, por conseguinte, possuidores, podem beneficiar da usucapião, começando a contar o prazo respetivo na data da inversão. Fica claro que só a verdadeira posse é requisito da usucapião.

2. O decurso do prazo legal de posse (duração na posse): a. A duração da posse para efeitos da usucapião: a maior complexidade do regime da usucapião reside na fixação da duração da posse necessária para a usucapião, uma vez que a lei portuguesa estabelece prazos diversos para o efeito. O principal critério de aferição do prazo legal de usucapião reside na classificação das coisas em imóveis e móveis. Depois de prescrever algumas regras gerais da Secção I do Capítulo VI dedicado à usucapião, do artigo 1287.º a 1282.º CC, a lei portuguesa abre mais duas secções, Secção II, dedicada à usucapião de direitos sobre coisas imóveis (artigos 1293.º a 1297.º CC), e a Secção III, que versa sobre a usucapião de direitos sobre coisas móveis (artigos 1298.º a 1301.º CC). i. No regime da usucapião de direitos sobre coisas imóveis, o critério principal leva a classificar os possuidores em: 1. Possuidores que tenham título aquisitivo da posse a que a posse se reporta e o hajam registado: aplica-se o disposto no artigo 1294.º CC. No entanto, este preceito estabelece dois prazos diferentes para a usucapião de acordo com um ulterior critério: a. A boa fé do possuidor (alínea a) do artigo 1294.º CC): o prazo para a usucapião é de dez anos (10 anos), a contar da data do registo; b. A má fé do possuidor (alínea b) do artigo 1294.º CC): o prazo para a usucapião é de quinze anos (15 anos), a contar da data do registo. Importa esclarecer, que a existência de título não se confunde com título válido. Desde que o registo tenha sido feito em conformidade com as disposições do Direito Registal, existe título registado para efeitos do regime da usucapião, ainda que o facto jurídico seja inválido, e o possuidor pode invocar a usucapião nos termos do artigo 1294.º CC. 2. Possuidores que não tenham registo de título: aplica-se o disposto no artigo 1296.º CC. Se o possuidor tiver título, mas sem registo do mesmo, ou não tiver, pura e simplesmente, título algum, o prazo para a usucapião é o constante do artigo 1296.º C. Também aí a lei insere um ulterior critério:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. A boa fé do possuidor: o prazo para a usucapião é de quinze anos (15 anos); b. A má fé do possuidor: o prazo para a usucapião é de vinte anos (20 anos). A lei portuguesa prevê um modo de o possuidor sem título ou sem título registável poder obter um título judicial e registá-lo, beneficiando, assim, da aplicação de prazos menores do que os constantes do artigo 1296.º CC. Com efeito, o artigo 1295.º, n.º2 CC prevê que o possuidor possa fazer declarar judicialmente que possui pública e pacificamente uma coisa nos termos de um direito, desde que a posse tenha, pelo menos, cinco anos (5 anos). A decisão judicial pode, por sua vez, ser registada (registo da mera posse). Com o registo da decisão judicial que declare a posse, o prazo para a usucapião será de:  Cinco anos (5 anos) contados da data do registo, se a posse for de boa fé (alínea a) do artigo 1295.º CC);  Dez anos (10 anos) contados da data do registo, se a posse for de má fé (alínea b) do artigo 1295.º CC). ii. No regime da usucapião de direitos sobre coisas móveis, o critério principal assenta, tendo igualmente como critério complementar a boa ou má fé do possuidor, na distinção entre: 1. Coisas móveis sujeitas a registo: surge regulado no artigo 1298.º CC: a. Se houver registo: i. Se o possuidor estiver de boa fé (alínea a)): dois anos (2 anos); ii. Se o possuidor estiver de má fé (alínea b)): quatro anos (4 anos). b. Se não houver registo: o título de aquisição para usucapir é sempre de dez anos (10 anos), independentemente da boa ou má fé do possuidor (alínea b) do artigo 1298.º CC). 2. Coisas móveis não sujeitas a registo: surge regulado no artigo 1299.º CC apresenta ainda, para além da boa ou má fé do possuidor, a existência de justo título. a. Havendo boa fé do possuídor e justo título: o prazo de duração da posse boa para a usucapião é de três anos (3 anos);

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão b. Não havendo título, independentemente da boa ou má fé do possuídor: o prazo para a usucapião é de seis anos (6 anos). iii. O artigo 1300.º, n.º2 CC consagra um prazo excecional para a usucapião de coisas móveis. Quando a posse da coisa móvel houver sido adquirida às ocultas ou com violência e o adquirente da posse tiver transmitido esta a terceiro de boa fé, o prazo para a usucapião será de quatro anos ou de sete anos (4 ou 7 anos) consoante a posse deste último seja titulada ou não titulada. O prazo de duração da posse deve ser contínuo e ininterrupto. A interrupção do prazo da usucapião por qualquer uma das causas admitidas na lei inutiliza o tempo de posse já decorrido para efeitos de usucapião e acarreta para o possuidor que intenta usucapir a necessidade de exercer a posse durante todo o tempo do prazo legal aplicável. O artigo 1254.º, n.º1 CC prevê uma importante presunção de posse com aplicação em matéria de usucapião. Nesse preceito dispõe-se que se o possuidor atual possui em tempo mais remoto, presume-se que possui igualmente no tempo intermédio. O n.º2 do mesmo artigo consagra outra presunção. Quando uma posse é titulada, presume-se que há posse desde a data do título. A primeira parte do n.º2 do artigo 1254.º CC visa afastar a presunção de facto ou iuris que poderia resultar do facto de existir uma posse atual: a posse atual não faz presumir a posse anterior. b. Duração da posse e acessão na posse: no Direito Romano consagrou-se a possibilidade do possuidor juntar a sua posse á posse do seu antecessor. Não obstante se configurar aí a posse do adquirente como uma nova posse, distinta, portanto, da posse do seu transmitente, admitiu-se a conjugação das duas posses para efeitos da usucapião. Naturalmente, a acessio possessionis (ou temporis) comportava uma assinalável vantagem, pois permitia ao possuidor atual juntar o tempo de posse do possuidor anterior ao seu. A accessio possessionis foi desenvolvida a propósito da longi temporis praescriptio e veio a ser consagrada primeiro por uma constitutio de Severe e Caracala, embora limitada ainda, neste primeiro momento, à compra e venda. No Direito Justinianeu, porém, a accessio possessionis veio a ser ampliada a qualquer causa aquisitiva e não apenas à emptio-venditio. O recurso a ela ficou, em todo o caso, dependente do preenchimento dos requisitos da usucapião, nomeadamente, a iusta causa e a bona fides. A utilidade da accessio possesionis reside justamente na usucapião. Para computar o prazo de posse necessário à usucapião, o possuidor não fica limitado ao seu tempo de posse, podendo juntar a sua posse (rectius, o seu tempo de posse) à posse do seu antecessor. A tradição romana da accessio possessionis persiste hoje nas modernas codificações europeias. A fonte do nosso artigo 1256.º CC é reconhecidamente o artigo 1146.º, 2.ª parte Codice Civile Italiano. O artigo 1256.º, n.º1 dispõe que aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor. Mencionando a sucessão na posse, o preceito pode gerar alguma confusão com a figura, diversa, da sucessão na posse (artigo 1255.º CC). Também não é rigoroso falar naquele que sucede por título diverso da sucessão por morte. Se não é de sucessão na posse que se trata,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão mais vale abdicar do uso do termo. Só gera equívocos. Na verdade, o artigo 1256.º CC alude ao adquirente da posse que a recebeu por transmissão. Este preceito abrange, assim, os factos translativos da posse, ou seja, os modos pelos quais a posse pode ser transmitida a terceiro. Ou seja, a tradição (artigo 1263.º, alínea b) CC) e o constituto possessório (artigos 1263.º, alínea c) e 1264º CC). Não é exato, à luz do artigo 1256.º, n.º1 CC, afirmar que deve haver um vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor, vínculo esse que poderia ser um negócio jurídico ou outro ato, como uma execução ou uma expropriação. Essa doutrina, defendida primeiramente por Manuel Rodrigues no domínio do Código de Seabra, foi depois seguida, na vigência do atual Código Civil, por Pires de Lima/Antunes Varela. Manuel Rodrigues vai ainda mais longe, sustentando que o vínculo deve ser válido. Já Pires de Lima/Antunes Varela falam apenas numa relação jurídica formalmente válida, restringindo o alcance da doutrina de Manuel Rodrigues. É verdade que na tradição romanista a accessio possessionis pressupunha que a nova posse do possuidor atual satisfizesse os requisitos da usucapio, nomeadamente, a iusta causa, ou seja, um título, e a bona fides. E isso deve ter influenciado a construção doutrinária do instituto por Manuel Rodrigues, sabendo-se que o mesmo foi omitido no Código de Seabra. Seja como for, não há qualquer fundamento no Direito atual para defender tal posição. Com efeito, o regime vigente da usucapião prescinde totalmente da existência de título (bem como da boa fé). Também uma posse não titulada confere ao possuidor direito a usucapir (artigo 1296.º CC para os imóveis, e os artigos 1298.º alínea b), 1299.º e 1300.º, n.º2, in fine CC para os móveis). O possuidor que, pura e simplesmente, se apossou da coisa (artigo 1263.º, alínea a) CC) ou que inverteu o título da posse por oposição contra o anterior possuidor (artigo 1263.º, alínea d) e 1265.º CC) pode, contando que a sua posse seja titulada e pacífica e haja decorrido o prazo legal, invocar com sucesso a usucapião. Nestes casos, o possuidor não tem título algum, por não beneficiar da celebração de um facto jurídico aquisitivo de um direito real de gozo, mas pode usucapir, contando que os restantes requisitos legais estejam preenchidos. Por outro lado, o Direito português ignora a distinção entre título válido e título inválido para efeitos da usucapião, com exceção do vício de forma, que o artigo 1259.º, n.º1 CC dispõe, a contrario, dar origem a uma posse sem título. O possuidor com título inválido pode usucapir e beneficia mesmo de prazos mais favoráveis, no confronto com o possuidor sem título, para a usucapião de coisas móveis (artigos 1298.º, alínea a), 1299.º e 1300.º, n.º2 CC) e de imóveis, contando que, neste último caso, o título (mesmo inválido) haja sido registado (artigo 1294.º CC). Nesta parte, aliás, a doutrina do Manuel Rodrigues supera mesmo o alcance do instituto nas fontes romanas. No Direito Romano, o possuidor atual podia juntar a sua posse à do seu antecessor, mesmo que tivesse adquirido a non domino. Com o sentido pretendido por Manuel Rodrigues, apenas o possuidor causal poderia beneficiar da acessão na posse. Ora, se o instituto da acessão visa facilitar o funcionamento da usucapião, tendo sido no seu contexto que encontrou aplicação, não faz qualquer sentido exigir para ela mais requisitos do que aqueles que se colocam à própria usucapião. O Direito Português abandonou a exigência de título e de boa fé para efeitos de usucapião e permite que o possuidor formal beneficie desta. Por que razão exigir um título para um instituto que atua no âmbito da usucapião se o regime 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão desta não o faz? Nesta ordem de ideias, o possuidor atual pode juntar a sua posse à posse do seu antecessor caso tenha adquirido a posse deste por qualquer um dos modos de transmissão da posse que o Direito Português reconhece (a tradição e o constituto possessório), independentemente da validade do título de transmissão. O título pode mesmo faltar de todo, sem que a acessão da posse seja prejudicada. Na verdade, é normal que esse título exista. O constituto possessório supõe a celebração de um contrato com eficácia real, portanto, de um título de transmissão do direito a que a posse se refere. E também a tradição da coisa é feita habitualmente em execução de um negócio jurídico ou de outro facto. Todavia, a inexistência de título não preclude a accessio possessiones. A acessão da posse constitui um poder do possuidor cujo exercício é facultativo. Era assim no Direito Romano e continua a ser no Direito positivo português. Deste modo, é ao possuidor que cabe a escolha da conveniência da junção da sua posse com a posse anterior. Essa opção pode estar ligada aos prazos de usucapião nos termos do n.º2 do artigo 1256.º CC. A posse que pode ser somada à posse atual é somente a posse do antecessor do possuidor atual ou podem ser igualmente somadas as posses dos anteriores possuidores, contando que todas elas hajam sido adquiridas por um dos factos translativos da posse (tradição e constituto possessório)? O elemento literal do artigo 1256.º, n.º1 CC aprece confinar a acessão de posses à relação entre o possuidor atual e o possuidor do qual aquele recebeu a posse, de acordo, aliás, com a evolução histórica do instituto. Não vemos, porém, qualquer razão substantiva para que assim seja. Independentemente dos caracteres da posse, que podem efetivamente ser diferentes de possuidor para possuidor, a posse sucessivamente transmitida por facto translativo, tradição e constituto possessório, é a mesma posse. O transmissário da posse adquire a posse do seu transmitente, embora decerto a incidência do título de transmissão e outros fatores (como o conhecimento ou o dever de conhecer a violação de um direito alheio) possam modificar os caracteres da posse de cada um. Se isto é assim, não se detetam razões para impedir que o possuidor atual possa somar todo o tempo de posse dos seus antecessores, e não somente do possuidor anterior, desde que a posse seja a mesma. É o facto de a posse ser a mesma que permite que o possuidor atual beneficie de todo o tempo dela, desde que começou. Naturalmente, cabe ao possuidor decidir se quer juntar ou não a sua posse. A acessão de posses com caracteres diversos está sujeita ao disposto no n.º2 do artigo 1256.º CC. A acessão da posse está centrada na usucapião, permitindo ao possuidor atual beneficiar do tempo de posse dos seus antecessores para o cômputo do prazo de posse respetivo. Este instituto tem, porém, um limite natural de aplicação, que nunca vem explicitado pela doutrina: a acessão não pode ocorrer mediante a junção da posse daquele contra o qual a usucapião funciona. Na sua origem, a accessio possessionis permitia a um comprador a non domino invocar a usucapião contra o proprietário. No entanto, admitindo-se a acessão sem o limite indicado, vai-se permitir que a usucapião atue mesmo em prejuízo daquele que transmitiu a posse ao possuidor atual, abrindo-se a porta a um intolerável aproveitamento do tempo de posse do titular do direito real que vai ser prejudicado com a invocação da usucapião. Assim, o possuidor atual apenas poderá recorrer à acessão da posse do seu transmitente caso a usucapião não venha a funcionar contra ele. O n.º2 do artigo 1256.º CC 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão estabelece limites à acessão na posse. Seguindo a doutrina italiana, Manuel Rodrigues afirma que a acessão exige que haja duas posses contínuas e homogéneas. E Pires de Lima/Antunes Varela falam que as duas posses devem ser consecutivas e homogéneas. Por posses consecutivas entende-se aquelas que se desenrolam sem a intromissão de uma posse de terceiro. Como dissemos em cima, o tempo de posse que se soma reporta-se à mesma posse, pelo que se essa posse foi interrompida deixa de ser possível a acessão. Todavia, julgamos ser despiciendo falar-se na continuidade ou consecutividade da posse, uma vez que a lei pressupõe uma transmissão da posse. Também não nos parece que seja exato falar em homogeneidade da posse. O artigo 1256º., n.º2 CC permite expressamente a soma de posses de diferente natureza, estabelecendo apenas que a soma só pode ocorrer dentro dos limites daquela que tem menor âmbito. Posse de menor âmbito significa, em primeiro lugar, posse relativa a um direito real menor. A soma de duas (ou mais) posses pode envolver posses exercidas nos termos de direitos reais de gozo diversos. Contudo, segundo o artigo 1256.º, n.º2 CC, a usucapião só pode ocorrer relativamente ao direito real menor. Posse de menor âmbito é, em segundo lugar, uma posse que tenha piores caracteres. Assim, uma posse de má fé, por exemplo, é uma posse de menor âmbito que a posse de boa fé, pois os prazos para usucapião são menores para o possuidor de boa fé. O possuidor atual cuja posse é de boa fé pode juntar a sua à posse de má fé do seu antecessor, mas fica sujeito ao prazo, pior, da usucapião da posse de má fé- A escolha é sua, dado o caráter facultativo da acessão da posse. A acessão da posse opera unicamente entre posses, embora estas possam referir-se a direitos reais de gozo diversos. Não pode haver acessão entre posse e detenção. O detentor não pode, assim, juntar o tempo de detenção com o tempo de posse para beneficiar da usucapião. c. Suspensão e interrupção da contagem do prazo de posse para usucapião: o prazo de duração da posse para usucapião pode ser interrompido. O artigo 1292.º CC determina a aplicação à usucapião do regime legal previsto para a interrupção da prescrição, ou seja, dos artigos 323.º a 327.º CC. A interrupção do prazo da usucapião determina a inutilização de todo o tempo de posse decorrido até aí e o recomeço da contagem do prazo a partir do ato interruptivo (artigo 326.º, n.º1 CC), exceto nos casos em que a interrupção ocorre por força de citação ou notificação no âmbito de um processo judicial ou de compromisso arbitral, em que o novo prazo de usucapião só começa a contar quando transitar em julgado a decisão que puser termo ao processo (artigo 327.º, n.º1 CC). São fatos interruptivos do prazo de posse para usucapião: i. A citação para ação ou a notificação judicial que exprima a vontade de exercício do direito por parte do proprietário ou do titular do direito real de gozo afetado com a posse (artigo 323.º, n.º1 CC); ii. O compromisso arbitral relativo ao direito real controvertido (artigo 324.º, n.º1 CC); iii. O reconhecimento do direito por parte do possuidor formal (artigo 325.º, n.º1 CC);

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão iv. A nova posse de outrem contra a vontade do possuidor mantida por um prazo superior a um ano sem que o possuidor esbulhado haja intentado durante um ano ação possessória de restituição para reaver a coisa (é uma causa de interrupção específica da usucapião). O prazo de posse para a usucapião pode ser suspenso, conforme determina o artigo 1292.º CC. Os artigos 318.º a 322.º CC são, assim, aplicáveis à usucapião com as necessárias adaptações. A suspensão, contrariamente à interrupção, não inutiliza o prazo de posse para usucapião até à verificação do facto suspensivo, apenas obstando a que aquele continue a correr.

3. A invocação da usucapião pelo possuidor: a eficácia da usucapião não ocorre meramente com o decurso do prazo da posse. Para que a usucapião adquira eficácia o possuidor deve invoca-la, ou seja, manifestar a sua vontade em usucapir o direito a que se refere a sua posse. Isto resulta diretamente do artigo 1292.º CC, que determina, por remissão, a aplicação do disposto no artigo 303.º CC. Segundo o artigo 303.º CC, devidamente adaptado, a usucapião, para ser eficaz, carece de ser invocada por aquele a quem aproveita, isto é, pelo possuidor. Se este, passado o prazo legal, não invoca, a usucapião não produz qualquer efeito. A eficácia da usucapião está, assim, sempre dependente da sua invocação pelo beneficiário dela, o possuidor, não sendo, portanto, automática. A invocação da usucapião pode ser feita judicial ou extrajudicialmente. Isto quer dizer, que o possuidor não precisa de recorrer ao tribunal para obter o efeito aquisitivo ligado à usucapião. A invocação da usucapião, quando extrajudicial, faz-se mediante declaração, cuja finalidade é justamente o efeito aquisitivo do direito a que se reporta a posse. Essa declaração é, quanto a nós, uma verdadeira declaração negocial e não está sujeita a forma especial6, valendo para ela a regra da liberdade de forma (artigo 219.º CC). Deste modo, a invocação da usucapião pode ser expressa ou tácita, nos termos gerais, valendo também neste domínio o princípio da equivalência das duas formas de declaração que surge consagrado no artigo 217.º CC: A usucapião também pode ser invocada pelos credores ou por outros terceiros com um interesse legítimo na sua declaração (artigo 305.º ex vi artigo 1292.º CC), mesmo contra a vontade do usucapiente. A lei portuguesa dispõe ainda que no caso de o possuidor haver renunciado à usucapião, o que só pode acontecer depois de decorrido o prazo para ela (artigo 302.º, n.º1, ex vi artigo 1292.º CC), a invocação pelos credores só é possível mediante a prova dos requisitos legais da impugnação pauliana.

O momento da eficácia da usucapião: invocada a usucapião, a eficácia aquisitiva, ou seja, a constituição do direito real de gozo, não opera apenas para o futuro, retroagindo no passado. O artigo 1288.º CC fixa esse momento na data do início da posse. Ao contrário do que sucede com o momento da contagem do prazo para usucapião, que varia, a aquisição do direito real de gozo por usucapião é sempre reportada ao início da posse (artigo 1288.º CC). O regime da usucapião faz, assim, remontar ao passado, concretamente ao momento em que a posse boa para usucapião se iniciou, o momento de aquisição do direito real de gozo. O que naturalmente 6

Uma coisa é a forma da declaração da usucapião para desencadear a sua eficácia aquisitiva, outra a exigência que ela deva ser titulada por escrito para um dado fim. A declaração de invocação da usucapião pelo possuidor, dada a ausência de prescrição legal de forma, pode ser meramente verbal. No entanto, se usucapiente pretender registar a aquisição do seu direito no Registo Predial, tem necessidade de declarar a usucapião em documento bastante para o efeito, porque no Registo Predial são apenas registados os factos titulados em documento escrito (artigo 43.º, n.º1 CRPr).

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão acarreta implicações no plano jurídico, pois, após a usucapião, o usucapiente é considerado titular de um direito real para um tempo em que, até à verificação desse facto não o era ou, melhor, poderia não o ser.

A eficácia da usucapião e o direito usucapido: o efeito primário da usucapião é aquisitivo. O artigo 1287.º CC menciona explicitamente que a posse faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. Pela usucapião, o possuidor usucapiente adquire o direito real de gozo a que a sua posse se reporta e somente este. O que se exprime pela máxima tradicional tantum praescriptum quantum possessum. Como efeito decorrente da posse, a usucapião permite ao possuidor adquirir o direito por ele exteriorizado através daquela, estando excluída a aquisição de outros direitos reais. Importa, no entanto, perguntar pela amplitude dessa aquisição quando existem outros direitos reais menores constituídos sobre a coisa possuída. A resposta a tal pergunta supõe que se olhe para os termos em que a posse foi exercida pelo usucapiente. Com efeito, esta posse pode ter sido exteriorizada de modo livre, isto é, em oposição aos possuidores nos termos de outros direitos reais menores; ou pode ter sido manifestada com respeito por essas posses. Uma posse livre, o mesmo é dizer, exercida nos termos de um direito real desonerado, permitirá ao possuidor usucapir o direito real de gozo sem os ónus representados pelos direitos reais menores constituídos anteriormente. Por conseguinte, todos os direitos reais menores que sejam incompatíveis com a posse do usucapiente extinguem-se com a usucapião. Quer dizer, com a usucapião é obtida a libertação do prédio no tocante aos direitos reais não respeitados pela posse do usucapiente (usucapio libertatis), independentemente de estarem ou não quanto a eles preenchidos os requisitos do não uso. Esta solução, mesmo na ausência de norma expressa, fundamenta-se ainda no artigo 1285.º CC. Seria estranho, com efeito, que a lei admitisse a constituição, por usucapião, de uma prioridade nova contra o proprietário anterior, que vê cessar o seu direito, e não permitisse a extinção dos direitos reais menores que não foram respeitados pela posse do usucapiente. Se o direito real máximo é afetado pela usucapião do possuidor formal nos termos da propriedade, não o serão igualmente todos os outros titulares de direitos reais? A resposta, por argumento de maioria de razão, só pode ser afirmativa. Diferente é a solução no caso do usucapiente ter admitido a coexistência da sua posse com outras posses exercidas com referência a outros direitos reais menores. Neste caso, a usucapião só se pode dar nos limites da posse. Se esta foi exercida conjuntamente com outras posses, a usucapião não se dará contra os titulares dos direitos que mantiveram uma posse simultânea com o usucapiente. Esses direitos mantêm-se, não se extinguindo. Portanto, havendo direitos reais menores constituídos sobre a coisa, a usucapião só determina a sua extinção (usucapio libertatis) caso a posse do usucapiente haja sido mantida em oposição a eles, livre das posses respetivas; pelo contrário, se o usucapiente exteriorizou a sua posse em concorrência com as dos titulares de direitos reais menores, a usucapião não os afeta. Não obstante o regime legal da usucapião tratar esta como um facto aquisitivo de direitos reais de gozo (artigos 1287.º, 1316.º, 1417.º, n.º1, 1440.º, 1528.º e 1547.º CC), a usucapião pode ter outra eficácia, nomeadamente, uma eficácia extintiva. Mas essa eficácia extintiva é ainda mais ampla. Na verdade, a usucapião atua sempre contra o proprietário da coisa sobre a qual ocorre a aquisição do direito. Contudo, o efeito da aquisição do direito real de gozo a favor do usucapiente não afeta sempre o proprietário da coisa da mesma maneira. Vejamos. Se a usucapião se refere ao direito de propriedade, porque a posse do usucapiente se exerceu nos termos desse direito, a propriedade anterior que incidia sobre essa coisa extingue-se no momento em que a usucapião produz o seu efeito aquisitivo. Verifica-se, então, um efeito extintivo da usucapião, a par do efeito aquisitivo do usucapiente. Porém, nem sempre se verifica uma eficácia extintiva da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão usucapião juntamente com o efeito aquisitivo. Quando o direito usucapido é um direito real menor, a usucapião não determina a extinção do direito de propriedade existente, mas apenas a sua oneração. Como se vê, embora o efeito primário da usucapião seja aquisitivo, pode haver outros efeitos associados a ela, a extinção ou a oneração do direito de propriedade existente até aí. A usucapião pode afetar outros direitos reais para além da propriedade, se existirem outros direitos reais constituídos sobre a coisa. Para além das situações anteriores, se a posse ad usucapionem é exercida sem respeito pelos direitos reais menores constituídos sobre a coisa, estes extinguem-se.

O poder potestativo de usucapir: a usucapião é um facto aquisitivo automático que ocorre pela simples manutenção de uma posse boa para esse efeito durante o lapso de tempo legal, pois, como sabemos, o mero decurso do prazo não permite a aquisição do direito real de gozo a que a posse se refere se o possuidor não invocar a usucapião a seu favor (artigo 303.º ex vi artigo 1292.º CC). Sendo embora um facto aquisitivo de direitos reais de gozo, a usucapião resulta do exercício de um poder potestativo atribuído ao possuidor: o poder a usucapir o direito real de gozo a que a sua posse se reporta. Este poder potestativo é atribuído ao possuidor que tenha uma posse boa para usucapião e haja mantido a mesma ininterruptamente durante o prazo legal estabelecido. O exercício deste poder, que está unicamente dependente da vontade do seu titular, ocorre com a invocação da usucapião. O facto usucapião que gera a aquisição do direito real de gozo é, assim, uma consequência do exercício do poder potestativo correspondente reconhecido ao possuidor da coisa que manteve a posse durante o tempo legalmente necessário para que a usucapião seja invocada.

Usucapião pelo possuidor causal. Sua relevância: o regime jurídico português da posse não conhece a distinção entre posse causal e posse formal. Esta ausência de diferenciação refletese igualmente em matéria de usucapião. Também o possuidor causal pode beneficiar da usucapião, cumulando, assim, dois títulos, o primeiro, que atribui o direito real de gozo que torna a sua posse causal, e que pode ser qualquer facto com eficácia real aquisitiva, e o segundo, a usucapião. À primeira vista, esta posição poderia gerar perplexidade porque ninguém é titular duas vezes do mesmo direito! Posto desta maneira, porém, o problema é mal colocado. Não se trata de atribuir duas vezes o direito à(s) mesma(s) pessoa(s), mas sim, em primeiro lugar, de facultar ao titular do direito real de gozo a demonstração da titularidade do direito por outro facto (a usucapião) que não aquele pelo qual originariamente o adquiriu. E pode haver interesse prático nisso. Conforme se pode atentar, o titular do direito real de gozo pode estar em condições de só conseguir provar o seu direito mediante o recurso à usucapião, ou, pelo menos, de ser mais fácil para si fazê-lo. Em segundo lugar, pode haver outra razão que suscite a necessidade de invocação da usucapião para fazer prevalecer o direito real de gozo do usucapiente contra outra situação jurídica real que afete o seu direito. Um exemplo paradigmático é o da oposição ao efeito atributivo do registo predial, o funcionamento da chamada usucapio contra tabulas. Como a usucapião prevalece sobre a proteção registal do terceiro de boa fé, o titular do direito real de gozo cujo direito vá ser preterido ou onerado por uma aquisição tabular de terceiro pode invocar a usucapião para deter o efeito atributivo do registo. Quer dizer, a usucapião desempenha neste segundo grupo de casos, não uma função probatória do direito, mas uma função consolidativa de uma aquisição anterior, que impede a perda do direito ou a sua oneração. Portanto, neste aspeto particular como nos outros, o possuidor causal não está em pior posição que o possuidor formal. Também ele pode invocar a usucapião a seu favor.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

As funções da usucapião: a usucapião desempenha duas funções: 1. Função consolidativa da situação fática em que as coisas se encontram: sempre que o possuidor usucapiente não é o titular do direito a que a posse se reporta; ou seja, Quando o titular do direito real de gozo não reage a um desapossamento e deixa que um terceiro exerça uma posse sem o direito real respetivo durante um período de tempo determinado, ou simplesmente quando existe uma dissociação entre quem exterioriza o direito real de gozo e quem é o seu titular, a usucapião permite que a situação de facto seja regularizada defronte da ordem jurídica pela aquisição pelo possuidor (formal) do direito a que a sua posse se reporta. Com a usucapião a situação de facto existente consolida-se com a situação jurídica respetiva e a posse passa a coincidir com a titularidade do direito real de gozo, afinal aquilo que corresponde à normalidade jurídica: o possuidor da coisa deve ser aquele que tem o direito real de gozo sobre ela. Naturalmente, esta função consolidativa faz-se sempre, em última análise, à custa do proprietário. A vantagem, porém, reside na manutenção do efeito presuntivo do direito que a lei associa à posse (artigo 1268.º, n.º1 CC) e na publicidade do direito real associada a esta, que ficaria comprometida de outro modo. A usucapião tem, pois, um papel regularizador na ordem jurídica, dando azo a que a exteriorização de um direito através da posse possa a vir a consolidar-se com a aquisição do direito exteriorizado e evitando a multiplicação de atos de disposição feridos de ilegitimidade, cuja nulidade poderia ser arguida a todo o tempo (artigo 286.º CC), com a forte insegurança jurídica daí decorrente. Este papel regulador da usucapião, resultante da sua função consolidativa, confere-lhe uma eficácia que se sobrepõe mesmo à proteção registal de terceiros de boa fé. A consolidação pela usucapião é definitiva e prevalece mesmo contra tabulas, quer dizer, contra quem quer que seja. Neste caso, a função consolidativa não beneficia apenas o possuidor formal; também o possuidor causal tira proveito dela.

2. Função probatória: a usucapião pode ser invocada mesmo por um possuidor causal, isto é, por alguém que já é titular do direito real por força de outro qualquer facto aquisitivo. Neste caso, a usucapião tem uma função probatória, permitindo ao possuidor titular do direito real de gozo provar este por um facto jurídico diverso daquele através do qual adquiriu.

Natureza da usucapião: facto aquisitivo originário? No dizer da nossa melhor doutrina, a aquisição constitui um modo de aquisição originária de direitos reis de gozo (Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro, Pires de Lima/Antunes Varela e Carvalho Fernandes). O direito adquirido por usucapião consiste num direito novo, nada tendo a ver com as situações jurídicas reais já constituídas sobre a coisa. Esta visão não é completamente pacífica. Uma corrente muito minoritária de autores nega esse efeito à usucapião (Ruggiero), salientando aspetos do regime que tornam dúbia essa colocação na classificação que divide os modos de aquisição em originária e derivada. Pertinente parece ser, contudo, a observação de que a usucapião pode ser invocada mesmo por aquele que já adquiriu o direito por outro título válido, usando-a na sua função probatória, para evitar a probatio diabolica, ou consolidativa, para evitar, por exemplo, a aquisição tabular de terceiro de boa fé. Afigura-se evidente que a usucapião não tem, nestes casos, o efeito de um facto constitutivo, o que implicaria uma aquisição dupla do mesmo direito por quem já é seu titular, uma redundância lógica e substancial exprimida pela máxima neque enim amplius quan semel res mea esse potest. Assim, a usucapião só pode ser realmente um 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão facto aquisitivo originário de direitos reais de gozo quando beneficia um possuidor formal, permitindo-lhe justamente constituir a seu favor um direito que até aí não existia na ordem jurídica.

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Secção IV – A Constituição dos Direitos Reais A constituição por negócio jurídico: a forma mais comum de constituição dos direitos reais é através do negócio jurídico. Esta forma de constituição encontra-se prevista, nomeadamente, nos direitos reais de gozo, em relação à propriedade horizontal (artigo 1417.º CC), ao usufruto (artigo 1440.º CC), ao uso e habitação (artigo 1485.º CC), à superfície (artigo 1528.º CC) e às servidões prediais (artigo 1547.º CC). Nos direitos reais de garantia, encontram-se referências à constituição negocial na consignação de rendimentos (artigo 658.º, n.º2 CC), no penhor (artigo 667.º CC) e na hipoteca (artigo 712.º CC). Em relação aos direitos reais de aquisição, verifica-se a constituição negocial no contrato-promessa com eficácia real (artigo 413.º CC) e no pacto de preferência com eficácia real (artigo 421.º CC). Em virtude da tipicidade dos direitos reais, o negócio jurídico não pode criar novos direitos reais, mas apenas aqueles que já se encontram legalmente previstos. Em certos casos, no entanto, a lei reconhece uma certa maleabilidade ao negócio jurídico para conformação do conteúdo dos direitos reais, como sucede na propriedade horizontal (artigo 1418.º CC) e no usufruto (artigo 1445.º CC).

A constituição por lei: os direitos reais ainda podem ser constituídos por lei, nos casos em que é ela própria a estabelecer o direito, como sucede com os privilégios creditórios (artigos 733.º e seguintes CC) e a hipoteca legal (artigos 704.º e seguintes CC).

A constituição por sentença judicial: outra forma de constituição dos direitos reais é através da sentença judicial. Essa forma de constituição encontra-se prevista nos direitos reais de gozo em relação à propriedade horizontal (artigo 1417.º, n.º2 CC), às servidões legais (artigo 1547.º, n.º2 CC). Nos direitos reais de garantia, a sentença judicial é prevista como forma de constituição da consignação de rendimentos (artigo 658.º CC) e da hipoteca judicial (artigos 710.º, e seguintes CC). Para além desses casos, a decisão judicial pode, no entanto, funcionar como forma de aquisição de qualquer direito real, em caos de execução específica relativamente à promessa da sua constituição negocial (artigo 830.º CC), ou caso exista previamente um direito real de aquisição (artigos 413.º, 421.º e 1410.º CC).

A usucapião: uma das formas de aquisição do direito de propriedade consiste na usucapião (artigos 1287.º e seguintes CC). A usucapião constitui uma forma voluntária de aquisição de certos direitos reais que necessita de uma posse com certas características e mantida pelos prazos legais.

1. Capacidade para a usucapião: para a usucapião apenas se exige a capacidade de gozo de direitos. Efetivamente, o artigo 1289.º, n.º1 CC, refere que a usucapião aproveita a todos os que podem adquirir, referindo o artigo 1289.º, n.º2 CC, que os incapazes podem adquirir por usucapião, tanto por si como por intermédio das pessoas que legalmente os representem.

2. Direitos que podem ser objeto da usucapião: a usucapião só pode abranger coisas objeto de direitos privadas, sejam elas móveis ou imóveis, sendo, no entanto, diferentes os prazos de usucapião nas duas situações. Em consequência, as coisas fora do comércio, como os bens integrantes do domínio público (artigo 202.º, n.º2 CC), estão naturalmente excluídas da usucapião. Já em relação aos bens do domínio privado do Estado ou de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão outras pessoas coletivas públicas, os mesmos podem ser objeto de usucapião, mas, nos termos do artigo 1304.º CC, aos prazos legais acresce metade dos mesmos para que a usucapião possa operar. Por outro lado, o artigo 1287.º CC restringe a usucapião aos direitos reais de gozo, deles ainda excluindo as servidões prediais não aparentes e os direitos de uso e habituação (artigo 1293.º CC). Em relação à aquisição por usucapião das servidões prediais não aparentes, reitera o artigo 1548.º, n.º1 CC que as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião, considerando como não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes. A razão para a não aquisição por usucapião das servidões não aparentes resulta do facto de em relação às mesmas não ser fácil determinar a existência de uma posse pública, por elas serem facilmente confundíveis com atos de tolerância do proprietário serviente. Em relação aos direitos de uso e habitação, a razão de estes não poderem ser adquiridos por usucapião resulta da necessidade de restringir a sua constituição, em virtude da limitação dos seus conteúdos e do facto de em termos práticos ser difícil a sua distinção do usufruto.

3. Requisitos da posse necessária para a usucapião: para poder ocorrer a usucapião, exigese a posse da coisa nos termos de um direito real de gozo (artigo 1287.º CC), o que exclui da usucapião as situações de mera detenção. O artigo 290.º CC refere expressamente que os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título. Exigese, assim, para a usucapião a inversão do título da posse, só se iniciando o respetivo prazo a partir da inversão do título. No entanto, o artigo 1252.º, n.º2 CC, presume, em caso de dúvida, a posse em quem exerce o poder de facto, a situação de posse em nome alheio terá que ser demonstrada por quem se opõe à usucapião. Em consequência, o Assento STJ 14/5/1996, uniformizou a jurisprudência no sentido de que «podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for elidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa». Para poder conduzir à usucapião exige-se uma posse pública e pacífica, sendo por isso a posse oculta ou violenta inidónea para a usucapião. Esta regra resulta dos artigos 1297.º e 1300.º, n.º1 CC, os quais estabelecem que se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública.

4. Prazos da usucapião: os prazos para a usucapião variam consoante se trate de: a. Coisas imóveis: a usucapião ocorre nos seguintes prazos: i. 5 anos, no caso de existir registo da mera posse e boa fé (artigo 1295.º, n.º1, alínea a) CC). No entanto, o registo de mera posse só pode ocorrer, comprovando-se mediante sentença transitada em julgado que o possuidor possuía a coisa pública e pacificamente há mais de 5 anos (artigo 1295.º, n.º2 CC), o que dilata consideravelmente este prazo; ii. 10 anos, no caso de: 1. Existir registo da mera posse, nos termos acima referidos e má fé (artigo 1295.º, n.º1, alínea b) CC);

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão 2. Existir título de aquisição e registo deste e boa fé (artigo 1294.º, alínea a) CC); iii. 15 anos, no caso de: 1. Existir título de aquisição e registo deste, mas a posse ser de má fé (artigo 1294.º, alínea b) CC); 2. Não existindo título de aquisição nem registo deste, mas a posse ser de boa fé (artigo 1296.º CC). iv. 20 anos, no caso de não existir título de aquisição nem registo deste e a posse ser de má fé (artigo 1296.º CC). b. Coisas móveis: i. Sujeitas a registo: os prazos são os seguintes: 1. 2 anos no caso de existir título de aquisição e registo deste, havendo boa fé (artigo 1298.º, alínea a) CC); 2. 4 anos, nas mesmas condições, mas havendo má fé (artigo 1298.º, alínea a) CC); 3. 10 anos, não havendo registo, independentemente do título ou da boa fé (artigo 1298.º, alínea b) CC). ii. Não sujeitas a registo: 1. 3 anos, havendo justo título e boa fé (artigo 1299.º CC); 2. 6 anos, independentemente da boa fé ou do título (artigo 1299.º CC). Há ainda um caso especial que diz respeito à posse oculta ou violenta (que não conduz, como se referiu, à usucapião). Efetivamente, se a coisa móvel vier a ser transmitida para um terceiro antes da extinção da violência ou da publicidade da posse, o terceiro pode vir a adquirir direitos sobre essa coisa passados quatro anos (4 anos), se a posse for titulada, ou sete (7 anos), na falta de título (artigo 1300.º, n.º2 CC). Estando em causa bem s do domínio privado do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, nos termos do artigo 1304.º CC, aos prazos legais acresce metade dos mesmos para que a usucapião possa operar. Em relação à forma de contagem dos prazos, o artigo 1292.º CC determina a aplicação à usucapião das regras relativas à suspensão e interrupção da prescrição. Consequentemente, o prazo para a usucapião suspende-se nos casos previstos nos artigos 318.º e seguintes CC, e interrompe-se nos casos previstos nos artigos 323.º e seguintes CC. Ocorre a suspensão do prazo da usucapião quando a sua contagem é paralisada durante a verificação de certos factos ou situações a que a lei atribui esse efeito, contando-se, no entanto, após a sua cessação o lapso de tempo anteriormente decorrido (artigos 318.º e seguintes CC). Ocorre a interrupção do prazo de usucapião quando não apenas a sua contagem é paralisada em virtude de certos factos ou situações que a lei atribui esse feito, mas também se inutiliza o prazo anteriormente decorrido (artigos 323.º e seguintes CC). As causas suspensivas da usucapião podem dizer respeito a todo o curso do prazo ou apenas ao seu termo. No primeiro caso, essas causas impedem

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que o prazo de usucapião se inicie ou continue a correr; no segundo caso, apenas que se complete. Regra geral, a suspensão verifica-se em relação ao curso do prazo (artigos 318.º, 319.º, 320.º, n.º1, in principio e n.º3, parte correspondente, e 321.º CC), mas em certos casos prevê-se que ela se verifique apenas em relação ao seu termo (artigo 320.º, n.º1, in fine e nº.3, parte correspondente e 322.º CC). Entre as causas suspensivas relativas ao curso prazo da usucapião temos: a. As relações de casamento (artigo 318.º, alínea a) CC); b. Poder paternal, tutela e curatela (artigo 318.º, alínea b) CC); c. Administração de bens imposta por lei, determinação judicial ou de terceiro (artigo 318.º, alínea c) CC); d. Administração de pessoa coletiva (artigo 318.º, alínea d) CC); e. Contrato de trabalho doméstico (artigo 318.º, alínea e) CC). Já não parece aplicável à usucapião o disposto no artigo 318.º, alínea f) CC, exigindo-se a inversão do título da posse, nos termos gerais. Para além disso, suspendem ainda a usucapião: f.

A prestação de serviço militar, em tempo de guerra ou mobilização, ou a adstrição às forças militares (artigo 319.º CC);

g. O estado de menoridade, interdição ou inabilitação (artigo 320.º CC); h. A ocorrência de força maior ou dolo por parte do obrigado nos últimos três meses do prazo (artigo 321.º CC); i.

A indeterminação do titular da herança (artigo 322.º CC).

Entre as causas interruptivas do prazo da usucapião situa-se em primeiro lugar a citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (artigo 323.º, n.º1 CC), sendo equiparada à citação ou notificação qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido (artigo 323.º, n.º4 CC). Se, no entanto, a citação ou a notificação não se fizerem no prazo de cinco dias (5 dias) após terem sido requeridas por causa não imputável ao requerente, a prescrição é interrompida logo que decorram os cinco dias (artigo 323.º, n.º2 CC). Para além da citação ou notificação judicial, interrompem ainda a usucapião o compromisso arbitral, e, no caso de cláusula compromissória ou julgamento arbitral legalmente importo, a citação ou notificação para o respetivo processo arbitral (artigo 324.º CC), bem como o reconhecimento do direito, efetuado pelo possuidor perante o proprietário, o qual pode ser tático, desde que resulte de factos que inequivocamente o exprimam (artigo 325.º CC). No caso de a interrupção do prazo da usucapião resultar de citação, notificação ou compromisso arbitral, o novo prazo para a usucapião só se inicia após o trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo (artigo 327.º CC). Os prazos para a usucapião não são, no entanto, prejudicados pela existência, em algum momento da turbação ou esbulho da posse, se vier a ser julgada procedente a ação de manutenção ou restituição, dado que, nos termos do artigo 1283.º CC é havido como nunca perturbado ou esbulhado o que foi mantido na sua posse

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ou a ela foi restituído judicialmente. O prazo da usucapião também não é prejudicado pela ocorrência da sucessão na posse, continuando a correr na esfera dos sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa (artigo 1255.º CC). Já no caso de acessão na posse, é facultativa a junção do prazo da posse do antecessor (artigo 1256.º, n.º1 CC), sendo que, se as posses forem de natureza diferente, a junção só pode ocorrer nos limites da posse que tiver menor âmbito (artigo 1256.º, n.º2 CC).

5. Invocação da usucapião: a usucapião só é eficaz se for invocada, sendo por isso voluntária (artigo 303.º, aplicável por força do artigo 1292.º CC). No entanto, uma vez invocada, os seus efeitos retroagem ao início da posse (artigo 1288.º CC). Como aquisição originária do direito, a usucapião suplanta todos os registos existentes sobre o bem (usucapio contra tabulas). Por este motivo, o registo da usucapião é meramente enunciativo (artigo 5.º, n.º2, alínea a) CRPr). A lei considera nulos todos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da usucapião ou a facilitar ou dificultar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos (artigo 300.º, aplicável por força do artigo 1292.º CC). Mesmo a renúncia à usucapião só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional (artigo 302.º, n.º1, aplicável por força do artigo 1292.º CC). A renúncia pode ser tácita, não necessitando de ser aceite pelo beneficiário (artigo 302.º, n.º2, aplicável por força do artigo 1292.º CC), só tendo legitimidade para renunciar à usucapião quem puder dispor do direito a que a usucapião tenha criado (artigo 302.º, n.º3 aplicável por força do artigo 1292.º CC). A usucapião tem que ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público (artigo 303.º, aplicável por força do artigo 1292.º CC). Pode, no entanto, ser ainda invocada pelos credores e por terceiros com legítimo interesse da sua declaração, ainda que o possuidor a ela tenha renunciado (artigo 305.º, n.º1, aplicável por força do artigo 1292.º CC). No entanto, em caso e renúncia à usucapião, a invocação da mesma pelos credores depende do preenchimento dos requisitos da impugnação pauliana (artigo 305.º, n.º2, aplicável por força do artigo 1292.º CC), não sendo o direito destes prejudicado por caso julgado formado em virtude de o devedor ter sido condenado sem invocar a usucapião (artigo 305.º, n.º3 aplicável por força do artigo 1292.º CC). A usucapião deve ser invocada através de escritura de justificação notarial, ou decisão proferida pelo Conservador no processo especial de justificação previsto nos artigos 116.º e seguintes CRPr, sendo que, em caso de inexistência de litígio, não podem as partes sequer substituí-la por ação judicial. Esta fica, assim, reservada para as hipóteses de existir litígio em relação a essa situação (artigo 3.º, n.º1, alínea a) CRPr). A escritura de justificação notarial não constitui um negócio jurídico, mas antes um quase negócio jurídico, uma vez que não cria o direito nela declarado, traduzindo-se apenas numa declaração unilateral do justificante, que o mesmo terá que comprovar, caso a mesma venha a ser impugnada. Por esse motivo, a escritura de justificação notarial não está sujeita aos vícios e limites, que porventura afetassem ou onerassem o direito anterior, dado que a usucapião constitui uma aquisição ex novo do direito.

A acessão: uma outra forma de aquisição dos direitos reais consiste na acessão, que nos termos da lei é definida como a situação que ocorre quando a coisa é propriedade de alguém se une e incorpora com uma coisa que não lhe pertencia (artigo 1325.º CC). Neste caso, perante a junção das duas coisas, a lei determina a aquisição da propriedade sobe a coisa que resultou dessa junção

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão apenas por um dos proprietários, com a consequente perda da propriedade pelo outro. A acessão não é, no entanto, restrita à aquisição da propriedade, podendo pela mesma via serem adquiridos outros direitos reais, como a lei expressamente refere a propósito do usufruto (artigo 1417.º, n.º2 CC) e da hipoteca (artigo 691.º, n.º1, alínea b) CC).

1. Distinção entre acessão e a realização de benfeitorias: embora tanto na acessão como nas benfeitorias exista a atribuição de um incremento de valor patrimonial em bens alheios, as duas situações constituem realidades diversas, ainda que a doutrina apresente critérios distintos para estabelecer essa distinção. a. Manuel Rodrigues: na acessão, há, como nas benfeitorias, a valorização do objeto possuído, mas os atos de acessão distinguem-se daquelas, porque alteram a substância do objeto da posse, porque inovam; b. Pires de Lima/Antunes Varela: a benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. A aquisição por acessão é sempre subordinada à falta de um título que dê, de per si, a origem e a disciplina da situação criada. São-no, assim, o presente nos artigos 1273.º a 1275.º, 1046.º, 1074 e 1082.º, 1138.º e 1450.º CC. c. Vaz Serra: sustentou que a distinção entre acessões e benfeitorias deve fundarse na finalidade e no regime jurídico de ambas as figuras: no caso de simples benfeitorias, atribui a lei ao autor delas um direito de levantamento (ius tollendi) ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada (artigo 1273.º CC), não, porém, um direito de propriedade sobre a coisa, pois a benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa; no caso de acessão, diversamente, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância daquele em que a obra, etc., é feita, atribuindo, assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa. d. Menezes Cordeiro: sustentou que a regra geral é a da acessão, sendo esta aplicável sempre que a coisa incorporada não seja qualificável como benfeitoria, designadamente quando valha mais do que a outra coisa, quando modifique o destino económico do conjunto, ou quando não conserve ou melhore a coisa, nem sirva para recreio do benfeitorizante, antes correspondendo ao normal exercício do direito acedido. Já as benfeitorias seriam aplicáveis quando a lei expressamente o disser, como sucede nos artigos 1046.º, 1138.º e 1450.º CC. Já no caso melindroso da mera posse, que tenderá a surgir em qualquer situação de acessão, a solução deverá ser ponderada em face de cada caso concreto. e. José Alberto Vieira: o regime das benfeitorias será aplicável sempre que a lei estabeleça essa solução, como sucede nos casos já referidos, mas tal não deverá acontecer na posse, efetuando-se assim uma restrição ao alcance literal dos artigos 1273.º e 1275.º CC. f.

A nosso ver: o regime das benfeitorias, independentemente de a lei para ele remeter, deve ceder sempre que esteja em causa uma situação de acessão, podendo esta assim ocorrer nos casos em que exista uma relação prévia com a 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão coisa, a menos que esta exclua a aplicação do seu regime. Tal não sucede, no entanto, se a lei se limitar a regular o regime das benfeitoras. Efetivamente, as benfeitorias correspondem apenas a despesas para conservar ou melhorar a coisa (artigo 216.º, n.º1 CC), havendo assim apenas uma manutenção ou um desenvolvimento do seu valor económico, que gera apenas uma manutenção ou um desenvolvimento do seu valor económico, que gera apenas obrigações de restituição das despesas ou um ius tollendi, não criando um conflito de direitos. Já na acessão, vai-se mais longe, efetuando-se uma incorporação de um valor económico novo naquele bem, através da união com outra coisa ou da sua transformação por aplicação de trabalho, o que gera um direito novo sobre a coisa, que entra em conflito com o do proprietário primitivo.

2. Classificações da acessão: nos termos do artigo 1326.º CC, distingue-se a acessão entre natural, quando resulta exclusivamente das forças da natureza e industrial, quando resulta de ação humana, que pode consistir em juntar objetos pertencentes a diferentes donos (união ou confusão) ou aplicar o trabalho próprio em matéria pertencente a outrem (especificação). A acessão industrial ainda é distinguida entre acessão industrial mobiliária e acessão industrial imobiliária, consoante respeite apenas a coisas móveis ou envolva também um imóvel, podendo qualquer delas ainda ser considerada de boa ou má fé, consoante a posição em que esteja o possuidor. a. A acessão natural: a regra geral prevista no artigo 1327.º CC é a de que pertence ao dono da coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza, ocorrendo assim uma extensão automática do direito real em relação a tudo o que acrescer à coisa em virtude de fenómenos naturais (artigo 1317.º, alínea d) CC). A lei regula, porém, de forma especial a acessão natural em resultado da força das águas, distinguindo as situações de: i. Aluvião (artigo 1328.º CC): em que a água atua de forma sucessiva e impercetível: estabelece-se a atribuição aos donos dos prédios confinantes com quaisquer correntes de água de tudo o que por ação das águas se lhes unir ou nelas for depositado, sucessiva e impercetivelmente (artigo 1328.º, n.º1 CC). A mesma aquisição ocorre em relação ao terreno que insensivelmente se for deslocando por ação das águas, de uma das margens para a outra, ou de um prédio superior para outro inferior, sem que o proprietário do terreno perdido possa invocar direitos sobre ele (artigo 1328.º, n.º2 CC). A justificação para este regime é o facto de, devido à lentidão do processo, ser inviável a identificação dos objetos ou porções de terreno que foram transferidos pelo que se justifica atribuir logo a sua propriedade ao titular da coisa principal. ii. Avulsão (artigo 1329.º CC): em que a força da água se manifesta de forma imediata e violenta, contemplando os fenómenos de: 1. Mudança de leito da corrente (artigo 1330.º CC); 2. Formação de ilhas e mouchões (artigo 1331.º CC); 3. Formação de lagos e lagoas (artigo 1332.º CC).

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A lei estabelece, para a avulsão, que se, por ação natural e violenta, a corrente arrancar quaisquer plantas ou levar qualquer objeto ou porção conhecida de terreno, e arrojar essas coisas sobre prédio alheio, o dono delas tem o direito de exigir que lhe sejam entregues, contanto que o faça dentro de seis meses (6 meses), se antes não foi notificado para fazer a remoção no prazo judicialmente assinado (artigo 1329.º, n.º1 CC). Neste caso, uma vez que o caráter súbito e violento da ação permite a identificação de quais os objetos, ainda se concede ao dono dos objetos transferidos um prazo para reclamar a sua restituição, não se dando nesse caso a acessão. Decorrido, no entanto, esse prazo sem que a remoção seja feita, a acessão ocorre nos mesmos termos da aluvião (artigo 1329.º, n.º2 CC). O regime da aluvião e da avulsão é aplicável com as necessárias adaptações à formação de ilhas e mouchões na corrente de água. Em geral, uma vez que o seu processo de formação é lento, estas pertencem ao dono da parte do leito ocupado (artigo 1331.º, n.º1 CC). Se, porém, as ilhas ou mochões se formarem por avulsão, o proprietário do terreno onde a diminuição haja ocorrido goza do direito de remoção, nas condições prescritas pelo artigo 1329.º (artigo 1331.º, n.º2 CC). Diferente é, porém, a situação se houver mudança de leito da corrente. Dispõe o artigo 1330.º, n.º1 CC, que se a corrente mudar de direção, abandonando o leito antigo, os proprietários deste conservam o direito que tinham sobre ele, e o dono do prédio invadido conserva igualmente a propriedade do terreno ocupado de novo pela corrente. O mesmo regime é aplicável no caso de a corrente se dividir em dois ramos ou braços, sem que o leito antigo seja abandonado (artigo 1330.º, n.º2 CC). Acrescenta, por fim, o artigo 1332.º CC, que as disposições anteriores relativas às correntes de água são aplicáveis aos lagos e lagoas, quando aí ocorrerem factos análogos. b. A acessão industrial: i. A acessão industrial mobiliária: a acessão industrial mobiliária pode realizar-se por três vias: 1. A união: quando se verifica a junção de dois ou mais objetos num novo, não sendo possível a sua separação sem detrimento da coisa; 2. A confusão: quando se dá uma reunião de objetos, os quais perdem por isso a sua individualidade; 3. A especificação: quando alguém modifica com o seu trabalho alguma coisa que pertence a outrem. Em relação a esta o artigo 1338.º CC exemplifica algumas situações. Esta acessão industrial mobiliária tem um pressuposto comum para se poder verificar, que é o de não ser possível fazer reverter as coisas ao estado de separação ou à sua primitiva forma, ou, sendo-o, tal implique a produção de prejuízo para uma das partes (artigos 1333.º, n.º1, 1334.º, n.º1, 1335.º, n.º1 e 1336.º, n.º1 CC). Sempre que for possível realizar

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão sem prejuízo o regresso das coisas à situação anterior, deixa de se verificar a acessão industrial mobiliária. A lei trata conjuntamente a união e a confusão, distinguindo apenas se estas são realizadas voluntária ou casualmente e, no primeiro caso, se o autor estava de boa ou má fé. A especificação é tratada autonomamente, distinguindo-se igualmente consoante o seu autor estava de boa ou má fé: 1. Se a união ou confusão foram realizadas voluntariamente, e ocorre boa fé do seu autor: faz seu o objeto adjunto o dono daquele que for de maior valor, contanto que indemnize o dono do outro ou lhe entregue coisa equivalente (artigo 1333.º, n.º1 CC). Se ambas as coisas forem de igual valor e os donos não acordarem sobre a atribuição da propriedade, abre-se licitação entre eles, sendo a coisa atribuída ao que maior valor oferecer, cabendo ao outro a parte correspondente desse valor (artigo 1333.º, n.º2 CC). Em lugar da citação, as partes podem optar pela venda a terceiro, cabendo a cada uma delas a sua parte no produto dessa venda (artigo 1333.º, n.º3 CC). O autor da confusão é, no entanto, obrigado a ficar com coisa adjunta, ainda que seja de maior valor, se o dono dela preferir a indemnização (artigo 1333.º, n.º4 CC). 2. Se a união ou confusão forem realizadas voluntariamente e ocorrer má fé do seu autor: deve o autor da união ou confusão restituir o valor da coisa e indemnizar o seu dono, quando este não prefira ficar com ambas as coisas adjuntas e pagar ao autor da união ou confusão o valor que for calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1334.º, n.º5 CC). 3. Se a união ou confusão se operar causalmente: as coisas ficam pertencentes ao dono da coisa mais valiosa, que pagará o justo valor da outra. Se, porém, este não quiser fazê-lo, assiste idêntico direito ao dono da coisa menos valiosa (artigo 1335.º, n.º1 CC). Se nenhum deles quiser ficar com a coisa, será esta vendida, e cada um haverá a parte do preço que lhe pertencer (artigo 1335.º, n.º2 CC). Se ambas as coisas forem de igual valor, realizar-se-á licitação ou a venda a terceiro, nos termo já expostos para a união ou confusão voluntárias ou de boa fé (artigo 1335.º, n.º3 e 1333.º, n.º3 e 4 CC). 4. Se a especificação for realizada de boa fé: há que distinguir se: a. É totalmente impossível restituir a coisa à primitiva forma: o autor da especificação faz sempre sua a coisa móvel transformada. b. Se é possível fazê-lo, embora com perda do valor criado pela especificação: há ainda que distinguir se: i. O valor do trabalho realizado ultrapassa o da matéria utilizada: continua a ser atribuída a 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propriedade da coisa móvel transformada ao autor da especificação. ii. Ou se não o faz: tem o dono da matéria o direito de ficar com a coisa (artigo 1336.º, n.º1 CC). No entanto, em todas estas especificações, o que ficar com a coisa é obrigado a indemnizar o outro do valor que lhe pertencer (artigo 1336.º, n.º2 CC). 5. Se a especificação for realizada de má fé: a coisa especificada será restituída a seu dono, no estado em que se encontrar, com indemnização dos danos, sem que o dono da coisa seja obrigado a indemnizar o especificador, se o valor da especificação não tiver aumentado em mais de um terço o valor da coisa especificada. No caso de ter ocorrido um aumento superior, o dono da coisa apenas tem que repor o que exceder o referido terço (artigo 1337.º CC). ii. A acessão industrial imobiliária: na acessão industrial imobiliária, verifica-se a aquisição da propriedade sobre coisas em virtude da realização de obras, sementeiras ou plantações num imóvel, podendo essa aquisição ocorrer quer em relação ao imóvel, quer em relação aos materiais, sementeiras ou plantas utilizados. A lei estabelece um regime distinto consoante a alienabilidade se verifique em relação aos materiais, sementes ou plantas (artigo 1339.º CC), em relação ao imóvel (artigos 1340.º e 1341.º CC), ou em relação a ambos (artigo 1342.º CC), regulando ainda particularmente a hipótese do prolongamento de edifício por terreno alheio (artigo 1343.º CC). Salvo no primeiro caso, o regime varia ainda consoante o autor da incorporação esteja de boa ou má fé. 1. Em caso de realização de obra, sementeira ou plantação em terreno próprio com materiais, sementes ou plantas alheias: a lei permite a aquisição pelo autor da incorporação dos materiais, sementes ou plantas utilizados, desde que pague o respetivo valor, além da indemnização a que haja lugar (artigo 1339.º CC). 2. Caso sejam realizadas obras, sementeiras ou plantações em terreno alheio com materiais, sementes ou plantas próprias: haverá que distinguir se o autor da incorporação estava de boa ou má fé. Nos termos do artigo 1340.º, n.º4 CC entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação, desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno. De acordo com a configuração ética da boa fé subjetiva, que temos sustentado, deve entender-se que não basta para existir boa fé o simples desconhecimento da alienidade do terreno, devendo exigir-se ainda que esse desconhecimento não seja culposo. Já relativamente à autorização para a incorporação, deve

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão entender-se que a mesma tem que corresponder a uma autorização pura e simples, já que se a mesma for concedida no quadro de determinado negócio ou para um fim específico não se pode considerar existir boa fé para efeitos de acessão. a. Estando o autor da incorporação de boa fé: caso o valor que as obras, sementeiras ou plantações trouxeram à totalidade do prédio seja maior do que o valor que este tinha antes, o auto da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras, e plantações (artigo 1340.º, n.º1 CC). Já se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no n.º2 do artigo 1333.º CC (artigo 1340.º, n.º2 CC). No caso de o valor acrescentado ser menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação (artigo 1340.º, n.º3 CC). b. Estando o autor da incorporação de má fé: a ei atribui ao dono do terreno o direito de exigir que a obra, sementeira ou plantação seja desfeita e que o terreno seja restituído ao seu primitivo estado às custas do seu autor, ou se o preferir, o direito de ficar com a obra, sementeira ou plantação pelo valor que for fixado segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1341.º CC). 3. Caso sejam realizadas obrigas, sementeiras ou plantações em terreno alheio com materiais, sementes ou plantas alheias: a lei atribui antes ao dono dos materiais, sementes, ou plantas os direitos que o artigo 1340.º CC reconhece ao autor da incorporação, quer este esteja de boa, quer de má fé (arrigo 1342.º, n.º1 CC). Se, porém, o dono dos materiais, sementes ou plantas tiver culpa, passa a ser sujeito ao mesmo regime que o artigo 1341.º CC estabelece para o autor de incorporação de má fé. Neste caso, se este estiver efetivamente de má fé, é solidária a responsabilidade de ambos, e a divisão do enriquecimento é feita em proporção do valor dos materiais, sementes ou plantas e da mão-de-obra (artigo 1342.º, n.º2 CC). 4. No caso de a construção de um edifício em terreno próprio determinar a ocupação, de boa fé, de uma parcela de terreno alheio: o construtor pode adquirir a propriedade do terreno ocupado, se tiverem decorrido três meses a contar do início da ocupação, sem oposição do proprietário, pagando o valor do terreno e reparando o prejuízo causado, designadamente o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão resultante da depreciação eventual do terreno restante (artigo 1343.º, n.º1 CC). O mesmo regime é aplicável em relação a qualquer direito real de terceiro sobre o terreno ocupado (artigo 1343.º, n.º2 CC).

3. Forma de atuação da acessão: apesar de o artigo 1317.º, alínea d) CC referir que a aquisição por acessão ocorre no momento da verificação do respetivo facto, a doutrina tem vindo a discutir, especialmente no âmbito da acessão industrial imobiliária, se a aquisição por acessão é automática, ocorrendo no momento da verificação da junção das coisas, ou se é potestativa, dependendo de uma manifestação de vontade do seu titular. a. A favor do caráter automático da acessão, manifestaram-se Pires de Lima e Antunes Varela, argumentando com o sentido literal dos artigos 1339.º e 1340.º CC com o facto de estes não terem regulado as consequências de o proprietário não querer adquirir a propriedade do implante, e ainda com a circunstância de a sua renúncia levar à constituição de um direito de superfície, que teria que observar a forma legal desse ato. b. Já a tese da aquisição potestativa foi defendida por Oliveira Ascensão. Para este autor, ao se referir a adquire pagando, os artigos 1339.º e 1340.º consagram o cariz potestativo da acessão, resultando esse caráter ainda mais evidente nos artigos 1333.º, n.º1 e 1343.º CC, e sendo mesmo categóricas a favor desse entendimento as disposições que subordinam a aquisição à licitação (artigos 1333.º, n.º3, 1334.º, 1335.º e 1341.º CC). Para além disso, não faria sentido impor ao beneficiário da acessão o pagamento de uma indemnização, em contrapartida de uma aquisição que ele pode não pretender. Por outro lado, a perda da propriedade só deveria ocorrer com o pagamento da indemnização, o que não se verifica na aquisição automática. Acrescenta-se, ainda, que a aquisição automática impediria as partes de estipularem solução diferente para o conflito. Finalmente a aquisição automática atribuiria o risco ao beneficiário da acessão. Esta posição veio a ser seguida por Menezes Cordeiro, Carvalho Fernandes e José Alberto Vieira. c. A aquisição deve considerar-se, tal como a usucapião, uma forma de aquisição originária dos direitos reais, adquirindo assim o titular um direito novo, que não está dependente das vicissitudes do direito anterior. No entanto, ao contrário do que sucede na usucapião (artigo 5.º, n.º2,m alínea a) CRPr), o registo da acessão não é meramente enunciativo, pelo que, no caso de esta estar sujeita a registo, serão tutelados os direitos adquiridos por terceiro e registados antes da acessão.

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Secção II – Os Factos Translativos de Direitos Reais A transmissibilidade geral dos direitos reais: sendo direitos de natureza patrimonial, os direitos reais são, em regra, transmissíveis, entre vivos e mortis causa. E a lei assinala essa transmissibilidade de forma explícita ou implícita, prevendo a transmissão do direito real, ou simplesmente incluindo o poder de disposição no conteúdo do direito, como sucede com a propriedade (artigo 1305.º CC) e com a compropriedade (artigo 1408.º, n.º1 CC). A transmissão dos direitos reais, quando o Direito a admita, provém de uma decisão livre do titular respetivo, no exercício da margem de livre apreciação que o direito subjetivo real lhe confere e que não traduz outra coisa senão o exercício da autonomia privada daquele. Em matéria de transmissão de direitos reais, o princípio da consensualidade constitui o princípio fundamental da ordem jurídica portuguesa, a qual institui um sistema de título. Com o princípio da consensualidade deve conjugar-se o princípio da causalidade: a aquisição de direito real por transmissão só pode resultar de um negócio jurídico causal. Exceções ao princípio da livre transmissibilidade encontram-se no regime do usufruto e nos direitos de uso e habitação. Exceto nos casos de cousufruto e de usufruto sucessivo, o direito de usufruto extingue-se com a morte do usufrutuário (artigo 1443.º CC). Quanto aos direitos de uso e habitação, a lei declara expressamente a sua instransmissibilidade (artigo 1488.º CC). Uma proibição parcial de transmissão vigora para o direito de retenção (artigo 760.º CC). Este direito não pode ser transmitido sem o crédito que garante. A proibição não se aplica, contudo, se houver uma transmissão conjunta do crédito e do direito de retenção. Além dos casos em que a lei expressamente declara a intransmissibilidade do direito real, essa intransmissibilidade pode ainda decorrer da ponderação do regime jurídico do direito real no seu conjunto. O penhor constitui um bom exemplo de um direito real intransmissível, embora a proibição de transmissão não conste de um preceito específico.

Admissibilidade da inalienabilidade convencional : pergunta-se se as partes podem estipular uma inalienabilidade convencional do direito real nos casos em que da lei decorre a sua transmissibilidade. A resposta a tal questão depende da própria lei admitir a limitação convencional da transmissibilidade do direito real em causa. Isso sucede com o usufruto (artigo 1444.º, n.º1 CC). Fora deste caso, a inalienabilidade convencional não pode ter eficácia real. A ter isso significaria que as partes estariam a alterar o tipo legal do direito real, mexendo no conteúdo injuntivo do tipo legal do direito e, com isso, contrariando a proibição veiculada pelo princípio da tipicidade (artigo 1306.º, n.º1 CC). Uma tal convenção está proibida e a sua estipulação importa a nulidade do negócio jurídico (artigo 294.º e 280.º, n.º1 CC). Uma inalienabilidade convencional com eficácia meramente obrigacional não nos parece defrontar com qualquer obstáculo legal. Afinal, a violação da tipicidade real suscita justamente uma conversão automática para um negócio obrigacional (artigo 1306.º, n.º1, parte final CC). Porque não uma estipulação inicial meramente obrigacional?

Os factos translativos gerais de direitos reais: os factos translativos gerais de direitos reais são os mesmos que indicámos a propósito dos factos constitutivos, como exceção da usucapião, cuja eficácia reside primariamente na constituição de direitos reais. São eles, a lei, a decisão judicial e o negócio jurídico.

Remissão: breve referência: eficácia translativa tem a denominada remissão. Ela consiste na aquisição pelo titular de um direito real maior do direito real menor que o onera, mediante o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pagamento de uma indemnização. Outrora um facto translativo com um espetro de aplicação a vários direitos reais, nomeadamente a enfiteuse e as servidões prediais, a remissão tornou-se hoje um facto translativo específico das servidões (artigo 1569.º, n.º4 CC). Não obstante, a limitação atual, a remissão permanece potencialmente um facto translativo de direitos reais e não somente um facto transmissório de servidões prediais. A remissão constitui um facto translativo e não extintivo, na medida em que determina a passagem do direito adquirido para a esfera jurídica do titular do direito real maior. Aí, poderá ou não extinguir-se por confusão, mas tal resultado não é forçoso.

Secção III – Os Factos Modificativos de Direitos Reais A modificação em Direitos Reais: a modificação pode respeitar ao sujeito titular da situação jurídica, dizendo-se nesse caso subjetiva. As modificações na titularidade de direitos reais resultam de factos constitutivos e translativos e não propriamente modificativos. A modificação objetiva, ao contrário, abrange dois níveis distintos:

1. O objeto do direito real (a coisa): deparamos com uma alteração da conformação física da coisa. A ação humana que a leva a cabo consubstancia um facto modificativo de direitos reais, pois tratando-se embora da mesma coisa, em termos jurídicos, houve uma alteração dela que se projeta na situação concreta do titular do direito real. 2. O conteúdo do direito real: atingem o núcleo de situações jurídicas menores que o compõem. E importam uma alteração do regime jurídico aplicável ao direito real.

A modificação negocial do conteúdo do direito real: as modificações ao conteúdo do direito real que decorram de uma alteração superveniente das fontes de Direito, como a lei, não levantam qualquer problema. Ao invés, deve-se perguntar se o mesmo sucede com as modificações de fonte negocial. Vários preceitos legais aludem ao título negocial do direito real (por exemplo, artigos 1416.º, n.º1, 1418.º, 1419.º, 1445.º, 1485.º e 1564.º CC). Antes de mais, o título é o facto jurídico de onde emerge o direito real considerado. Se o direito real se constitui por usucapião ou por acessão, este facto é o seu título constitutivo. Os preceitos legais que aludem ao título têm normalmente em vista o título aquisitivo. Contudo, numa perspetiva mais ampla, o título representa igualmente o conjunto de factos jurídicos que conformam o direito real até à sua extinção e não apenas o facto inicial aquisitivo. Destes preceitos retira-se que as partes podem, por via negocial, conformar o conteúdo do direito real no momento da constituição respetiva, e também introduzir alterações posteriormente. Por conseguinte, pode dizer-se que o conteúdo do direito real está sujeito a modificações por meio da celebração de negócios jurídicos com essa eficácia, ou, dito de outra forma, que o Direito Português admite a conformação negocial do conteúdo do direito real, quer no momento inicial da sua constituição quer em momento posterior. Ainda assim, esta afirmação não tem o alcance absoluto de significar que seja válida qualquer conformação do conteúdo do direito real por via de negócio jurídico. Com tal extensão, seria com certeza incorreta. Na verdade, numa ordem jurídica dominada pelo princípio da tipicidade (artigo 1306.º, n.º1 CC), a modificação do conteúdo do direito real por iniciativa negocial das partes esbarra no sentido cogente do numerus clausus. Ora, se uma tal asserção está prejudicada pelo princípio da tipicidade, que não está na disponibilidade das partes, qualquer modificação do conteúdo do direito real só será válida caso incida sobre o regime supletivo legal ou, por outras palavras, se deixar intocado o conteúdo que 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão conforma o tipo de direito real em questão, o conteúdo típico do direito, que tem natureza imperativa. Deste modo, será exata a afirmação de que o conteúdo supletivo do direito real pode ser livremente modificado pelas partes, em qualquer altura; quanto ao conteúdo injuntivo, aquele que conforma o tipo legal do direito real, nenhuma modificação negocial com eficácia real se admite, sob pena de nulidade, podendo, contudo, a modificação valer com eficácia meramente obrigacional (artigo 1306.º, n.º1, in fine CC).

Os factos modificativos de direitos reais: a lei, a decisão judicial e o negócio jurídico (unilateral e contrato) podem introduzir modificações ao conteúdo do direito real, como sucede para as vicissitudes da constituição e transmissão desse direito. Portanto, para além do negócio jurídico, também a lei e a decisão judicial podem operar como factos jurídicos com eficácia real modificativa. Para além destes factos, a modificação, podendo advir de uma perda ou deterioração parcial da coisa, é suscetível de ser efeito de factos jurídicos não negociais, nomeadamente, de factos jurídicos em sentido restrito.

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Secção V – A Transmissão dos Direitos Reais A transmissibilidade dos direitos reais: no âmbito da proteção constitucional da propriedade privada, extensivo a todos os direitos reais, encontra-se o direito à sua transmissão em vida ou por morte (artigo 62.º, n.º1 CRP). Em consequência dessa disposição, os direitos reais são normalmente transmissíveis, quer por ato inter vivos, quer mortis causa. Em relação à transmissibilidade mortis causa, a regra geral é a de que as situações jurídicas privadas são objeto de sucessão por morte (artigo 2024.º CC), com exceção daquelas que devam extinguir-se por morte do seu titular, em virtude da sua natureza ou por disposição da lei (artigo 2025.º, n.º1 CC). No âmbito dos direitos reais, a transmissibilidade por morte é a regra, havendo, no entanto, algumas exceções em que os direitos reais são apenas vitalícios, como sucede com o usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea a) CC), e o uso e habitação (artigo 1490.º CC). Em relação à transmissibilidade inter vivos, a regra geral é a alienabilidade dos direitos reais, subordinada aos princípios da consensualidade e da causalidade. O princípio da consensualidade significa que os direitos reais são transmissíveis apenas através do contrato, sem necessidade de realização de qualquer outro ato, como a tradição ou o registo, conforme se prevê no artigo 408.º CC. O princípio da causalidade significa que a transmissão do direito real depende da validade do negócio transmissivo pelo que, no caso de este ser inválido, a transmissão do direito real não chega a ocorrer. Há, no entanto, algumas exceções em relação à possibilidade de alienação dos direitos reais (v.g. artigos 1488.º, 1545.º, 1409.º e 1535.º, 760.º e 727.º CC). Tem sido discutida a possibilidade de as partes estabelecerem proibições de transmissão dos direitos reais por via negocial, através das denominadas cláusulas de inalienabilidade. Por força do princípio da tipicidade, essas cláusulas só poderão ter eficácia real no caso de estarem incluídas no próprio tipo legal do direito em causa (v.g. artigos 1444.º, nº.1, in fine, 962.º e 2286.º e seguintes e 959.º CC). No caso de tal não ocorrer, as cláusulas de inalienabilidade atentarão contra o princípio da tipicidade dos direitos reais, pelo que apenas são admissíveis com eficácia meramente obrigacional (artigo 1306.º, n.º1, in fine CC). Neste caso, a transmissão em violação dessas clausulas não será afetada de nulidade, apenas constituindo o transmitente na obrigação de indemnizar a outra parte (artigo 798.º CC). Há, no entanto, um caso em que a lei considera mesmo nula a cláusula de inalienabilidade, mesmo que com eficácia meramente obrigacional, como ocorre na hipoteca (artigo 695.º CC).

Os contratos reais: em face da alienabilidade dos direitos reais, inclui-se no âmbito da autonomia privada a possibilidade de celebração de contratos reais, os quais são negócios de disposição de direitos, pressupondo por isso a titularidade do direito que é seu objeto. Os contratos reais são, como se disse, em princípio consensuais, uma vez que a transmissão dos direitos reais se produz por mero efeito do contrato (artigo 408.º, n.º1 CC), não dependendo de nenhum ato posterior como a tradição ou o registo. Em certos casos, a lei prevê, no entanto, contratos reais quoad constitutionem, os quais necessitam da tradição da coisa de que são objeto para se constituírem (é o que sucede nos artigos 669.º, n.º1, 947.º, n.º2 e 1142.º CC). Os contratos reais são habitualmente não formais, quando incidem sobre coisas móveis (artigo 219.º CC). Estando em causa coisas imóveis, após o Decreto-Lei n.º 116/2009, 4 julho, os mesmos são obrigatoriamente celebrados por escritura pública ou documento particular autenticado (artigo 22.º do diploma, bem como a redação dada pelo mesmo aos artigos 660.º, 714.º e 947.º, n.º1 CC). Esta regra admite, no entanto, algumas exceções. Nos termos dos artigos 1317.º, alínea a) e 408.º, n.º1 CC, a transmissão do direito real ocorre habitualmente no momento da celebração do

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão contrato, apenas se verificando em momento posterior nas hipóteses previstas no arrigo 408.º, n.º2 CC, relativas a bens futuros, indeterminados, frutos naturais ou partes integrantes ou componentes de uma coisa, devido ao princípio da especialidade que caracteriza os direitos reais. Em consequência, a partir do momento da celebração do contrato, o adquirente suporta o risco relativo à perda ou deterioração da coisa (artigo 796.º CC). É possível, no entanto, convencionar que a transmissão da propriedade só ocorra após o pagamento do preço. Essa situação denomina-se a cláusula de reserva de propriedade (artigo 409.º, n.º1 CC) e está sujeita a registo, no caso de abranger bens imóveis ou móveis sujeitos a registo (artigo 409.º, n.º2 CC).

Secção VI – A Modificação dos Direitos Reais Generalidades: os direitos reais podem modificar-se, ou por alterações no seu objeto, ou por alterações no seu conteúdo. No primeiro caso, o objeto do direito real sobre alteração, o que afeta naturalmente o direito que sobre este incide em virtude da inerência desse direito à coisa. No segundo caso, o objeto mantém-se o mesmo, mas o conteúdo do direito é alterado, em virtude das faculdades atribuídas ao seu titular.

Alterações no objeto: em relação às alterações no seu objeto, estas ocorrerão em primeiro lugar na hipótese de serem realizarem benfeitoras (artigos 1273.º e 1275.º CC). Existirá ainda alteração do objeto do direito real no caso da divisão da coisa comum (artigo 1412.º e 1413.º CC), em que o direito do comproprietário a uma quota ideal de uma coisa é substituído por um direito a uma coisa autónoma. Essa situação já não ocorre, porém, em relação às servidões prediais, já que devido à sua indivisibilidade o direito não e afetado, mesmo que o prédio sobre que incidem seja dividido (artigo 1546.º CC). Para além disso, pode ocorrer modificação do direito real em caso de perda parcial da coisa (artigo 1478.º, n.º1 CC) ou transformação desta noutra que tenha valor, ainda que com finalidade económica distinta (artigo 1478.º, n.º2 CC). Já no caso de sub-rogação real, existirá a extinção do direito real com a constituição de outro direito sobre distinto objeto.

Alterações no conteúdo: em relação às alterações no seu conteúdo, estas ocorrem nas hipóteses de modificações do seu título constitutivo, o qual rege a situação de certos direitos reais menores, como a propriedade horizontal (artigos 1416.º, n.º1, 1418.º e 1419.º CC), o usufruto (artigo 1445.º CC), o uso e habitação (artigo 1485.º CC) ou as servidões (artigo 1564.º CC). As alterações ao conteúdo dos direitos reais podem ainda resultar da constituição de direitos reais menores, os quais comprimem o direito real maior. Assim, a propriedade vê o seu conteúdo alterado se sobre ela for constituído um usufruto, o mesmo sucedendo com o usufruto se sobre ele forem constituídas servidões.

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Secção IV – Os Factos Extintivos de Direitos Reais Subsecção I – Factos Extintivos Gerais

Elenco de factos extintivos com eficácia geral: os direitos reais extinguem-se, como quaisquer outros direitos subjetivos. A extinção de um direito real opera por força de um facto jurídico ao qual o Direito atribui tal eficácia. Existem factos jurídicos cuja eficácia extintiva se estende, em princípio, a todos os direitos reais, enquanto outros apresentam uma eficácia extintiva limitada a uma categoria de direitos reais ou simplesmente a um direito real específico. Como factos extintivos gerais de direitos reais, temos:       

A perda ou destruição da coisa; A renúncia; A prescrição; A caducidade; A confusão; A expropriação; A extinção por força da aquisição ou da extinção de outros direitos reais.

A perda ou destruição da coisa: os direitos reais são direitos inerentes a uma coisa corpórea. Se a coisa perece ou é destruída, qualquer que seja o facto, o direito real extingue-se. Desta forma, a perda da coisa induz automaticamente a extinção de todos os direitos reais que a tinham por objeto. É a inerência do direito real a uma coisa corpórea que explica que o direito se extinga quando o seu objeto desaparece. Alguns preceitos confirmam esta eficácia extintiva da perda da coisa: artigos 730.º, alínea c) – aplicável por remissão aos artigos 664.º, 677.º e 761.º – o artigo 1476.º, alínea d), aplicável igualmente pela remissão do artigo 1485.º e o artigo 1536.º, alínea e) CC. A perda da coisa que gera a extinção do direito real é a perda total. A este propósito, o artigo 1476.º, alínea d) e o artigo 1478.º, n.º1 CC são elucidativos para o usufruto. O alcance do seu preceituado é, todavia, geral. A regra é a de que a perda parcial, provocando embora uma diferente conformação física da coisa, não afeta a subsistência dos direitos reais, que continuam a ter a parte restante da coisa por objeto. A perda da coisa pode desencadear outros efeitos jurídicos, para além, portanto, da extinção dos direitos reais da qual era objeto. O artigo 692.º CC, aplicável igualmente à consignação de rendimentos (artigo 665.º CC), ao penhor (artigo 687.º CC) e aos privilégios creditórios, estabelece que se a coisa se perder e o dono tiver direito a ser indemnizado o credor hipotecário conserva sobre o crédito respetivo ou montante pago a título de indemnização a preferência que tinha em relação à coisa onerada. Claramente, este direito não é a própria hipoteca, até porque não tem por objeto imóvel ou móvel suscetível de hipoteca, mas um novo direito que visa assegurar a posição de prioridade que o credor hipotecário tinha sobre o imóvel perecido. Em nossa opinião, é um penhor de crédito. O artigo 1480.º, n.º1 CC contém uma regra idêntica. O teor literal do artigo 1480.º, n.º1 CC, mencionando que o usufruto passa a incidir sobre a indemnização, poderia dar a impressão da continuidade do mesmo usufruto sobre coisa diferente, num quadro de sub-rogação legal. Não é, porém, isso, que sucede. Com o perecimento da coisa o usufruto extingue-se, mas a lei atribui ao usufrutuário um novo usufruto sobre o dinheiro proveniente da indemnização devida ao proprietário. Assegura-se a continuidade da posição do usufrutuário na sua relação com o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão nu-proprietário, num quadro normativo em que ele deixou de poder reclamar diretamente do terceiro uma indemnização por violação do próprio direito. Portanto, como começámos por dizer, a perda total da coisa, por destruição ou outro facto, acarreta a extinção do direito real de que era objeto.

A renúncia: os direitos reais são direitos patrimoniais e isto significa normalmente que são livremente oponíveis. O poder de disposição do titular do direito real, muito variável em função do direito que se trata, assegura-lhe a possibilidade de extinguir o direito, se for essa a sua vontade. Inexistindo proibição legal de renúncia, que surge, por vezes, a propósito de alguns, muito poucos, direitos de natureza patrimonial, o titular do direito real tem autonomia para dispor dele no sentido da sua extinção.

1. A renúncia, liberatória ou abdicativa, constitui uma das formas de exercício do poder de disposição que é conteúdo do direito real e sobre a qual cabe ao titular decidir livremente no exercício da margem de autonomia privada que o direito subjetivo lhe confere. A renúncia supõe que o direito exista e esteja na esfera jurídica do disponente. Se o direito não existe ou já foi transmitido a terceiro, a renúncia é ineficaz. A renúncia exterioriza-se mediante declaração, que constitui um negócio jurídico unilateral, estando este sujeito à forma legal para o negócio em questão, sob pena de nulidade (artigo 220.º CC). Assim, se respeitar a um direito real de gozo sobre coisa imóvel, a renúncia está sujeita à forma de escritura pública (artigo 80.º, n.º1 CNot) – sem prejuízo do disposto no artigo 1411.º, n.º2 CC – e deve ser registada (artigo 2.º, n.º1, alínea x) CRPr), não obstante o efeito meramente enunciativo desse registo; se o direito real em caus ativer por objeto coisa móvel já a forma da renúncia será livre (artigo 219.º CC). No caso de renúncia a hipoteca, esta pode ser feita por documento particular autenticado (artigo 731.º, n.º1 CC). A eficácia real da renúncia é instantânea, desencadeia-se no momento em que a declaração negocial respetiva se torna eficaz segundo a lei (artigo 224.º, n.º1, 2.ª parte CC), contando naturalmente que o negócio jurídico seja válido. Da renúncia deve distinguir-se o abandono. 2. O abandono: respeita unicamente à posse e traduz-se na perda voluntária do corpus pelo possuidor, originando a extinção daquela (artigo 1267.º, n.º1, alínea a) CC). No abandono o possuidor quebra o controlo material que tinha sobre a coisa, deixando de o exercer por opção própria. Naturalmente, o possuidor que abandona a coisa possuída renuncia à sua posse, mas a declaração de renúncia à posse sem perda de controlo material da coisa (corpus) não implica a sua extinção. O artigo 1257.º, n.º1 CC é expresso ao dispor que a manutenção da posse supõe a mera possibilidade de atuação material. Aquele que declarou renunciar à posse mas continua com a coisa em seu poder, tem posse. Este é mais um trecho da separação entre os factos extintivos da posse e os factos extintivos dos restantes direitos reais. O abandono, isto é, a quebra voluntária do corpus pelo possuidor, pode implicar uma declaração, tácita, de renúncia do direito a que a posse se reporta. Esse será o seu sentido normal. Porém, a validade da renúncia depende ainda da observância de requisitos de forma ou de eficácia para o ato, o que não se passa com o abandono que, por natureza, é um ato informal, insuscetível de formalização, como aduz Henrique Mesquita. Pode, assim, duvidar seriamente que a renúncia opere eficazmente quanto à posse, ao mesmo se não for acompanhada do abandono. O abandono supõe simplesmente uma conduta tendente à quebra do corpus possessório. Esse comportamento não é declarativo, não tem de ser comunicado a ninguém. Como bem aponta Henrique Mesquita, no abandono puro e simples o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão abandonante não emite qualquer declaração negocial: executa ou atua a sua vontade de abandonar, sem ter que a levar ao conhecimento de quem quer que seja. O abandono não é, assim, um negócio jurídico, mas um ato jurídico em sentido restrito. Tão-pouco interessa falar aqui num negócio de atuação, como faz uma boa parte da doutrina. Para além da confusão conceitual que, em nossos entender, suscita, não surpreende a realidade das coisas. A renúncia não aparece prevista a propósito de todos os direitos reais. No campo dos direitos reais de gozo a renúncia surge em sede de compropriedade (artigo 1411.º CC), de usufruto (artigo 1476.º, alínea e), igualmente aplicável ao direito de uso e habitação – artigo 1485.º, 1472.º, n.º3 CC) e de servidão (artigo 1569.º, n.º1, alínea d) e artigo 1567.º, n.º4 CC). Relativamente aos direitos reais de garantia, a renúncia surge prevista na alínea d) do artigo 730.º CC, disposição para a qual remetem todos os regimes reais de garantia (artigos 664.º, 677.º, 752.º e 761.º CC). Não existe qualquer preceito que aluda à renúncia a propósito dos direitos reais de aquisição. Em contrapartida, a renúncia não vem prevista quanto à propriedade singular e à superfície, o que num determinado modo de ver decorreria da natureza dominial do direito à superfície, significando isto, para alguns, que o Direito português não admitiria a renúncia quanto a estes direitos ou, mais mitigadamente, não admitiria a renúncia à propriedade dos imóveis. É a posição conhecida de Pires de Lima/Antunes Varela e de Henrique Mesquita. Nesta ordem de ideias, a renúncia seria um facto extintivo de direitos reais menores, não da propriedade ou de direitos com natureza dominial, como, para alguma doutrina, é o caso da superfície. O argumento principal para excluir a propriedade singular (e a superfície) do campo de aplicação da renúncia é sistemático. Se a renúncia resultasse de um princípio geral, o legislador não teria sentido a necessidade de a prever para alguns direitos reais menores, excluindo outros, como a propriedade e a superfície. Por contrariar a solução geral, diz-se, o legislador previu a renúncia no contexto dos direitos reais menores (com exceção da superfície e, inicialmente, também da enfiteuse). Não existe, é verdade, nenhuma regra expressa quanto à admissibilidade da renúncia do proprietário. No entanto, isso não faz supor de que a situação do proprietário seja diferente da dos outros titulares de direitos reais. É verdade que a renúncia a um direito menor desonera a propriedade, enquanto tal efeito não ocorre com a propriedade; mas tal sucede, naturalmente, porquanto a propriedade é o direito real máximo. Por outro lado, não foi consagrado um preceito específico dedicado aos factos extintivos da propriedade. A renúncia não surge prevista como facto extintivo da propriedade, como também sucede com os outros factos extintivos deste direito. O que retira uma grande parte da força do argumento sistemático invocado por Henrique Mesquita. A ausência de uma disposição sobre a extinção da propriedade pode explicar a razão porque a renúncia não vem mencionada a propósito. Seja como for, a previsão de um poder de renúncia não é necessária. E este é o nosso argumento principal. A renúncia, resultando de um ato de disposição, está compreendida no âmbito do poder respetivo, o poder de disposição, que é também conteúdo do direito de propriedade (artigo 1305.º CC). Conforme salienta Wolf, o negócio de disposição pode provocar a extinção, e também a modificação e a transmissão, do direito real quando o disponente tem o poder de disposição do direito. Na ausência de específica previsão legal sobre a renúncia, o artigo 1305.º CC, inserindo o poder de disposição no conteúdo do direito de propriedade, confere ao proprietário o poder de renunciar ao seu direito. Seria estranho, aliás, que a propriedade conferisse ao proprietário o poder de destruir a coisa, fazendo-a desaparecer, como conteúdo do mencionado poder de disposição, e não permitisse àquele simplesmente desistir da titularidade do direito, deixando-a subsistir. De resto, não se encontra nenhum argumento para diferenciar o regime jurídico das coisas móveis e das coisas imóveis quanto á renúncia. A solução

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a que chegamos está conforme com a natureza da propriedade como um direito subjetivo patrimonial. É ao titular do direito de propriedade que cabe avaliar a conveniência de ter a coisa no seu património; se deixou de a ter, pode renunciar ao seu direito. Não está obrigado segundo o Direito a ficar com ela. Estamos no domínio da autonomia privada, porque se trata de exercer o conteúdo positivo de um poder reconhecido ao proprietário (o poder de disposição), e no âmbito do Direito privado. A solução vale igualmente para a superfície. O superficiário pode dispor do seu direito renunciando a ele. Os argumentos que se avançaram para justificar a solução quanto à propriedade valem igualmente para este direito. A renúncia só pode ser eficaz com o consentimento do terceiro titular de um outro direito real sobre a coisa se ela acarretar a extinção deste último. A solução compreende-se por si. A entender-se de modo diferente, o titular do direito real cuja renúncia estivesse em causa teria um poder de decisão sobre a subsistência de outros direitos existentes sobre a coisa. Ora, se o titular de um direito real maior tem de respeitar a concorrência de outros direitos menores sobre a coisa na medida da oneração existente, estranho seria que pudesse pôr-lhes um fim com uma decisão sua, sem que a vontade dos titulares dos direitos sacrificados fosse tida ou achada quanto ao desfecho. A renúncia não carece do consentimento dos outros titulares de direitos reais se não implicar a sua extinção. É o que sucede com a propriedade. A renúncia a este direito faz subsistir todos os outros direitos reais, não repercutindo neles a sua eficácia. A renúncia à propriedade sobre uma coisa imóvel não deixa esta nullius, como já tivemos ensejo de afirmar, determinando a sua passagem para o Estado, nos termos do artigo 1345.º CC. Já o mesmo não acontece com a renúncia à propriedade de uma coisa móvel, que a deixa sem dono e, portanto, suscetível de ser ocupada. A doutrina distingue:

1. Renúncia abdicativa: constitui um negócio jurídico dirigido unicamente à extinção do direito real. Dele releva um propósito puro e simples de extinção do direito. O efeito primário da renúncia abdicativa é extintivo. 2. Renúncia liberatória: tem um fim diverso, visa a exoneração das obrigações propter rem que recaem no titular do direito real. Assim, o titular do direito real que não quer ou não pode cumprir as obrigações propter rem conteúdo do seu direito tem a alternativa de se desvincular renunciando a ele a favor do seu credor. Se o fizer, dicará exonerado das mesmas. Contrariamente à renúncia abdicativa, em que o renunciante não tem de comunicar a ninguém determinado a sua declaração negocial, porque é apenas a extinção do direito real que está em causa, na renúncia liberatória o renunciante comunica ao credor da obrigação propter rem a sua vontade de fazer cessar a sua titularidade do direito. A declaração negocial respetiva é, assim, recipienda. A renúncia liberatória vem prevista nos artigos 1375.º, n.º3, 1411.º, 1472.º, n.º3 e 1567.º, n.º2 e 4 CC. Destes preceitos parece emergir o princípio que o titular de direito real obrigado por causa do seu direito (obrigações propter rem) pode renunciar a ele em beneficio do seu credor, com isto extinguindo a obrigação ou obrigações que impendiam sobre si. O direito real cujo titular a ele renunciou validamente extingue-se. Há, pois, que separar a renúncia abdicativa da renúncia liberatória, pois o regime jurídico não é coincidente:

1. Renúncia abdicativa: contando naturalmente que a declaração negocial de renúncia seja válida, com ela a coisa, se for móvel, fica nullius, se for imóvel, ingressa no património do Estado (artigo 1345.º CC). No caso de haver compropriedade, parece-nos que a melhor solução é considerar que a posição do comproprietário acresce aos outros em proporção das respetivas quotas, por analogia com o disposto no artigo 1411.º, n.º3 CC, sem prejuízo do comproprietário poder sempre rejeitar a aquisição. Se havia apenas 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão dois comproprietários, a renúncia de um deixa a coisa em propriedade singular. Tratando-se de renúncia abdicativa de um direito real menor, para além do efeito extintivo associado a ela, há ainda o efeito lateral da desoneração do direito maior. Esses, contudo, poderão não ser os únicos efeitos jurídicos a considerar. Havendo direitos reais menores constituídos sobre o direito real do renunciante, a renúncia extingue-os igualmente. Por isso, dissemos atrás que, nestes casos, a renúncia carece do consentimento dos titulares dos direitos afetados por ela. A renúncia abdicativa tem uma análise mais complexa, nomeadamente, quando é feita por um proprietário. O problema que se coloca é o de saber se o credor de um benefício do qual a renúncia liberatória foi feita adquire automaticamente o direito ou se pode recusar essa aquisição (por exemplo, a situação do artigo 1567.º, nº.4 CC). 2. Renúncia liberatória: numa ordem jurídica como a portuguesa, em que ninguém está obrigado a tolerar benefícios que não queira, uma aquisição automática da propriedade, sem o consentimento do beneficiário, está fora de questão. O beneficiário da renúncia liberatória tem de declarar que aceita a aquisição da propriedade do obrigado propter rem. Caso aceite, o credor adquire a seu favor o direito de propriedade. Trata-se de uma aquisição derivada do direito real. O credor da obrigação propter rem recebe o direito que era do devedor, não vê constituir-se a seu favor um direito novo. Em Portugal, ganhou partidários a teoria contratual da aquisição da propriedade pelo credor beneficiário da renúncia liberatória. Para esta teoria, o credor beneficiário celebraria com o renunciante um verdadeiro contrato a cuja eficácia translativa se ligaria a aquisição da propriedade. Para Henrique Mesquita, a declaração que o devedor propter rem emita tem o valor e o sentido de uma proposta contratual de transmissão, para o credor, do direito de propriedade a que a obrigação se encontra ligada. Para que se produza, porém, a transferência deste direito (para que se produza o efeito real visado pela declaração renunciativa) é indispensável que o credor aceite a proposta (que aceite a renúncia, conforme se diz no n.º4 do artigo 1567.º CC). Esta posição mereceu a adesão de Carvalho Fernandes. Diferente é a posição de Oliveira Ascensão que, impressionado com a fraca tutela que, no seu entender, adviria para o credor destinatário da proposta, sustenta que a este cabe um verdadeiro direito real de aquisição. Esta construção teria, todavia, o inconveniente de estender desrazoavelmente o prazo para o exercício do direito, criando uma situação de insegurança jurídica. Vejamos. Ao oferecer a renúncia ao direito, o devedor não está a propor a celebração de um contrato translativo do direito, mas a desonerar-se de uma obrigação real. Ainda que o credor não aceite, a renúncia tem efeito liberatório, exonerando o devedor da obrigação propter rem. Isso resulta hoje claro do artigo 1567.º, n.º4 CC. Este preceito atribui ao proprietário do prédio serviente o direito de renunciar à propriedade do prédio a favor do proprietário do prédio serviente necessárias para o exercício da servidão. Contudo, o proprietário do prédio dominante não tem de aceitar a renúncia, isto é, a aquisição da propriedade sobre o prédio serviente. O preceito é expresso ao admitir essa possibilidade. Porém, caso a recuse, ficará obrigado a suportar o custo das obras, o que significa que o devedor propter rem ficou exonerado apenas com a declaração de renúncia, não sendo necessário a aceitação pelo credor. A possibilidade de a renúncia produzir o efeito liberatório da obrigação propter rem mesmo quando o credor não aceite adquirir a propriedade sobre a coisa não retira a natureza de proposta contratual à declaração de renúncia liberatória. O devedor propter rem tem a alternativa de oferecer ao credor a propriedade da coisa no lugar de cumprir a obrigação. Declarando a renúncia, o devedor

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão faz nascer na esfera jurídica do credor um direito potestativo à aquisição da propriedade sobre ela: o direito à aceitação da proposta de transmissão. Esse direito potestativo, porém, não é um vulgar direito potestativo à celebração do contrato; ele surge na configuração de um direito real de aquisição. O seu prazo de exercício é o que o artigo 228.º CC determina para a proposta contratual. Se o credor não declarar que aceita a renúncia nesse prazo, o direito potestativo extingue-se. A declaração de renúncia extingue a obrigação propter rem, mas não implica a perda automática do direito pelo renunciante. Na verdade, a perda do direito só ocorrerá quando o credor formalizar a aceitação da renúncia. Só neste caso se conclui um contrato translativo entre o devedor renunciante e o credor da obrigação propter rem. Caso o credor não aceite a renúncia, a propriedade da coisa permanece com o devedor. Quando aquele a aceita, porém, o direito transfere-se para ele. Havendo aceitação da renúncia, a propriedade da coisa passa para o credor da obrigação propter rem. Trata-se de uma aquisição derivada da propriedade. O direito adquirido pelo credor é o direito do obrigado, não representa um direito novo. Chegados a este ponto, temos de concluir que, ao contrário da renúncia abdicativa, a renúncia liberatória não encerra um verdadeiro facto extintivo de direitos reais, tendo antes uma eficácia translativa. Tanto a declaração de renúncia liberatória como a declaração de aceitação são negócios jurídicos formais e estes negócios estão sujeitos à forma de escritura pública (artigo 80.º, n.º1 CNot). O contrato de renúncia liberatória está sujeito a registo (artigo 2.º, n.º1, alínea a) CRPr). O registo tem efeito meramente consolidativo. A aquisição do direito pelo credor dá-se por mero efeito do contrato (artigo 408.º, n.º1 CC).

A prescrição: os direitos reais, como direitos subjetivos que são, estão sujeitos à incidência do tempo como facto extintivo. A sujeição dos direitos reais de gozo ao não uso, a excluir a prescrição. No entanto, não é isto que sucede. A prescrição aparece mencionada uma vez no regime jurídico dos direitos reais, precisamente na hipoteca (alínea b) do artigo 730.º CC). Com base nesta disposição, poderia pensar-se numa generalização da aplicação desta figura às categorias restantes de direitos reais, de garantia e de aquisição. Uma análise mais atenta revela, porém, que a lei portuguesa não considera a prescrição aplicável a todos os direitos reais de garantia, nomeadamente, afasta-a na consignação de rendimentos e no penhor (artigos 664.º e 677.º CC). No entanto, em dois outros direitos reais de garantia, os privilégios creditórios e o direito de retenção, a remissão geral para o artigo 730.º CC abrange igualmente a prescrição (artigos 752.º e 761.º CC). Portanto, nos direitos reais de garantia, a prescrição é aplicável à hipoteca, aos privilégios creditórios e ao direito de retenção e excluída na consignação de rendimentos e no penhor. E o que pensar da aplicação deste facto extintivo aos direitos reais de aquisição? Nada sugere uma exclusão destes direitos do campo de aplicação da prescrição. Pelo contrário, julgamos que, na ausência de regra que disponha em sentido oposto, todos os direitos patrimoniais estão sujeitos à prescrição. Isto leva-nos a considerar aplicável a prescrição aos direitos reais de aquisição. Também eles se podem extinguir por prescrição.

Caducidade: os direitos reais caducam se não forem exercidos dentro do prazo estabelecido, por lei ou por negócio jurídico, ou se decorrer entretanto o prazo para o qual foram constituídos. Prazo fixado legalmente para o exercício de um direito real encontra-se no direito de preferência. Caso o obrigado à preferência tenha alienado o direito a terceiro e o titular do direito real de aquisição conheça os elementos da alienação, este último tem seis meses para exercer a preferência (artigo 1410.º, n.º1 CC). O prazo para o exercício do direito real pode resultar de negócio jurídico. Nos direitos reais de gozo, a lei admite que a superfície esteja sujeita a um

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão prazo inicial de exercício fixado pelas partes (artigo 1536.º, n.º1, alínea a), primeira parte CC). Relativamente aos direitos reais de aquisição, as partes podem igualmente fixar o prazo de exercício do direito real de aquisição na promessa real (artigo 411.º para a promessa monovinculante e artigo 413.º, n.º1, ambos CC, para a bivinculante) e existe sempre um prazo, legal ou convencional, para o exercício do direito de preferência (artigo 416.º, n.º2 CC). O direito real extingue-se por caducidade se decorrer o prazo para o qual foi constituído. Existem, com efeito, direitos reais que, pela conformação de conteúdo do tipo legal, são temporários. É o caso do direito de usufruto e dos direitos de uso e habitação. Outros direitos reais podem ser temporários, embora o tipo legal admita a perpetuidade ou imponha até tendencialmente. Assim, o direito de superfície pode ser constituído por um período de tempo determinado (artigo 1524.º e 1536.º, n.º1, alínea c) CC), o mesmo acontecendo com as servidões prediais (artigo 1569.º, n.º1, alínea e) CC). A propriedade é um direito tendencialmente perpétuo. Todavia, o artigo 1307.º, n.º2 CC abre a possibilidade de uma propriedade temporária, mas somente nos casos em que a lei o preveja. São casos conhecidos de propriedade temporária o testamento com cláusula fideicomissária (artigo 2293.º, n.º2 CC) e a doação com cláusula de fideicomisso (artigo 962.º CC), no que toca ao fiduciário. E é ainda, quanto a nós, o direito de propriedade do superficiário sobre o implante, na superfície temporária. Mais duvidosos serão os casos de doação com reserva de dispor sobre coisa determinada (artigo 959.º CC) e de doação com cláusula de reversão para o caso de o donatário ou este e os seus descendentes falecerem antes do doador (artigo 960.º e 961.º CC). A fixação negocial de um prazo para o exercício de um direito real depende da conformação do tipo de direito real em causa, ou seja, do seu conteúdo típico. Se o tipo não admitir que as partes fixem a duração do direito, a autonomia privada fica coartada, sob pena de violação da tipicidade legal, com a cominação de nulidade do negócio jurídico (artigo 1306.º n.º1 CC).

A confusão: a confusão designa o facto extintivo decorrente da reunião na mesma pessoa da titularidade do direito real onerado e do direito real onerador. Em regra, esta hipótese sucede quando se reúne na mesma pessoa a titularidade de um direito real maior e de um direito real menor. Pode, no entanto, acontecer que se trate de dois direitos reais da mesma natureza, nas hipóteses de comunhão de direitos reais entre dois contitulares. Neste caso, extingue-se o direito adquirido pelo comunheiro, expandindo-se o direito de que aquele era titular. Ocorre aqui a conhecida elasticidade dos direitos reais. O Código Civil usa preferencialmente o termo reunião (artigos 1476.º, n.º1, alínea b), 1536.º, n.º1, alínea b) e 1569.º, n.º1, alínea a) CC). A doutrina alemã fala preferencialmente em consolidação, acentuando o aspeto da retoma de plenitude do direito real maior, desonerado pela extinção do direito real menor. A confusão a que nos reportamos agora deve ser dissociada da confusão regulada como forma de extinção das obrigações (artigo 868.º e seguintes CC), dada a diferente eficácia que está subjacente a cada uma delas. É evidente, no entanto, que a figura geral é a mesma. Apenas a eficácia é distinta consoante o campo de aplicação, os direitos reais ou os direitos de crédito. A circunstância de a lei portuguesa mencionar a confusão unicamente no regime jurídico dos direitos reais de gozo não faz dela apenas um facto extintivo atinente a esta categoria de direitos reais. Outros direitos reais podem extinguir-se por confusão. A confusão designa, assim, um facto extintivo geral de direitos reais e não apenas de direitos reais de gozo. O efeito da confusão é a extinção do direito real menor ou de um dos direitos reais da mesma natureza. A confusão nem sempre ocorre quando a mesma pessoa é titular de dois direitos reais sobre a mesma coisa. O mesmo se diga da hipótese prevista no artigo 1541.º CC. O artigo 1541.º CC determina que a superfície se extinga, desencadeando o efeito típico da confusão, mas se o usufruto continua a onerar separadamente a parcela antes afeta à superfície, isto só pode querer dizer que a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão superfície, afinal, não se extinguiu. O usufruto não fica suspenso no ar e decerto não é a propriedade o direito onerado. Pode-se dizer, por conseguinte, que não há confusão quando a reunião de dois direitos na mesma pessoa envolver a extinção de um direito de terceiro. Esta regra surge confirmada nos artigo 699.º, n.º3 e 1541.º CC, quando corretamente interpretados, e tem a sua consagração no artigo 871.º, n.º1 CC. Apesar de inserta no regime da confusão obrigacional, esta regra aplica-se igualmente em sede de direitos reais, o que explica a solução inserta nos artigos 699.º, n.º3 e 1541.º CC. Na doutrina alemã tem-se ainda defendido que o direito real menor também não se extingue quando exista um interesse jurídico que obste à sua extinção. E o mesmo sucede na doutrina portuguesa com Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro. Portanto, para além dos casos mencionados anteriormente, não haveria ligar à extinção por confusão quando se demonstre a existência de um interesse prático que imponha a subsistência do direito real que seria afetado pela confusão. Concordando com esta orientação, que, aliás, tem no artigo 871.º (n.º2 e 4) CC um importante apoio. A confusão não tem lugar se o titular do direito real que beneficia da confusão tem um interesse jurídico atendível na subsistência do direito real menor ou da mesma natureza.

A expropriação: os direitos reais extinguem-se por expropriação, nos termos da lei. A expropriação é um facto extintivo de todos os direitos reais, sem exceção, apesar do Código Civil apenas dispor genericamente a propósito da propriedade (artigo 1308.º CC). Contudo, outros preceitos fazem-lhe menção, como o artigo 1480.º, n.º2, 1536.º, n.º1, alínea f) e 1542.º CC. Os bens expropriados não ficam nullius; sobre eles constitui-se uma propriedade originária a favor da entidade expropriante. Em certas condições, a lei prevê a reversão da propriedade para o proprietário expropriado.

A extinção por força da constituição de direito incompatível: por vezes, a constituição de um direito real tem igualmente uma eficácia extintiva de outros direitos reais. Nesses casos, a constituição de um direito real faz-se à custa de outro ou outros direitos reais previamente constituídos sobre a coisa. Toma-se o exemplo da usucapião do direito de propriedade singular. O usucapiente que adquire originariamente a propriedade singular sobre a coisa objeto da sua posse provoca simultaneamente a extinção da anterior propriedade. É a conhecida eficácia extintiva da usucapião. Outro exemplo é o do efeito atributivo do registo predial que determina a extinção do direito de propriedade do titular verdadeiro na ordem substantiva, contra o qual se dá essa aquisição. Noutras vezes, a constituição de um direito real através de um facto aquisitivo originário não provoca a extinção da propriedade, mas antes a sua oneração. A usucapião do direito de usufruto ou a aquisição tabular deste direito não causam a extinção da propriedade, uma vez que esta pode coexistir com um usufruto, sendo, portanto, compatível com ele. A propriedade fica onerada com o usufruto.

A extinção por força da extinção do direito maior onerado: quando um direito real menor está constituído sobre um direito real que não seja a propriedade a extinção do direito onerado implica, em regra, a extinção do direito onerador (artigos 699.º, n.º2, 1460.º, n.º1, 1539.º, n.º1, 1051.º, alínea c) CC). Portanto, sempre que um direito real menor esteja constituído sobre um direito real maior, a extinção deste último determina, em regra, a extinção do primeiro. Dizemos em regra, porquanto, em alguns casos, a lei portuguesa recusa o efeito extintivo do direito real menor, apesar da extinção do direito real com base no qual aquele foi constituído. Nos casos previstos no n.º3 do artigo 699.º CC, a hipoteca subsiste, não obstante o usufruto estar extinto. E também se o direito de superfície se extinguiu sendo perpétuo ou antes do prazo, se for temporário, os direitos reais de gozo e de garantia que o onerava subsistem, apesar da extinção daquele (artigo 1541.º CC). A extinção do direito real antes do prazo, na medida em que 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão prejudica direitos constituídos de terceiros, não causa a cessação destes antes do momento normal em que essa extinção ocorreria.

Subsecção II – Factos Extintivos de Direitos Reais de Gozo

O não uso: os direitos reais de gozo não estão sujeitos a prescrição. O artigo 298.º, n.º3 CC é expresso nesse sentido. Em contrapartida, podem extinguir-se por não uso nos casos especialmente previstos na lei. Perscrutando a lei, encontramos várias disposições que se referem ao não uso, embora a terminologia legal não seja sempre uniforme. Assim, o artigo 1476.º, n.º1, alínea c), 1536.º, n.º1, alíneas a) e b) e artigo 1569.º, n.º1, alínea b) CC. Para além da variação terminológica, em excesso, a previsão legal do não uso não apresenta também homogeneidade quanto aos prazos necessários para a ocorrência deste facto extintivo: vinte anos (20 anos) para o direito de usufruto, uso e habitação e servidão predial e dez anos (10 anos) para o direito de superfície. O não uso só pode ser invocado quando a lei o previr. Com efeito, o artigo 298.º, n.º3 CC dispõe que os direitos aí mencionados podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei. Portanto, os casos em que o não uso provoca a extinção do direito real são típicos. Sem previsão legal específica, o direito real de gozo não se extingue por não uso. A lei portuguesa, e o Código Civil em particular, não contém aquilo a que se possa chamar um regime geral do não uso como facto extintivo dos direitos reais de gozo. Para além da previsão geral da submissão dos direitos reais de gozo ao não uso (artigo 298.º, n.º3 CC), encontramos apenas os preceitos dispersos já atrás mencionados. Há, porém, aspetos relevantes da problemática do não uso que não têm um tratamento sistemático e bem se pode dizer que este é um dos pontos onde a ausência de uma parte geral dos direitos reais mais se faz sentir. Quando é que se começa a contar o prazo do não uso? Se o titular do direito real intercalar períodos de exercício do direito com outros em que não o exerce, há não uso? O não exercício parcial de alguns dos poderes conteúdo do direito real menor causa a extinção parcial do direito? Havendo comunhão de direitos reais (compropriedade, co-usufruto, etc.), o exercício do direito por algum ou alguns dos comunheiros evita a extinção do direito dos restantes? Não obstante a falha de tratamento sistemático da matéria da matéria, o Código Civil Português contém os traços de uma disciplina geral do não uso. Desta vez, não a propósito da propriedade, mas das servidões prediais. Com efeito, os artigos 1570.º, a 1573.º CC constituem verdadeiramente o regime geral do não uso, sem prejuízo das especificidades, particularmente de prazo, que se encontram a propósito dos outros direitos reais de gozo sujeitos ao não uso. A tipicidade dos casos de extinção de direitos reais de gozo por não uso facilita a resposta à questão de saber se a propriedade também está a ele sujeita. Em geral, a resposta é afirmativa, como decorre do próprio artigo 298.º, n.º3 CC. Ainda assim, em apenas um preceito se prevê a extinção da propriedade por não uso, no artigo 1397.º CC. Apesar de se falar nesse artigo de caducidade, é de não uso que se trata. Isto quer dizer, que em todos os outros casos a propriedade não está sujeita à extinção por não uso. O proprietário pode ficar numa situação de completa inércia relativamente ao exercício do seu direito que nem por isso ficará sujeito a vê-lo extinguir-se por não uso. O que deve entender-se por não uso para efeitos da extinção dos direitos reais de gozo? Uma interpretação atida à letra da expressão poderia contentar-se em relacionar este facto extintivo com o gozo e, por conseguinte, com a prática de atos materiais sobre a coisa objeto do direito. Oliveira Ascensão observa, com razão, que a entender-se assim algumas servidões ficariam excluídas do não uso, numa restrição infundada do campo de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão aplicação do artigo 1569.º, n.º1, alínea b) CC). O não uso sanciona a falta de exercício de um direito por parte do seu titular. Não se trata aqui de valorizar uma situação de oposição ao exercício do direito real, como pode suceder na usucapião e sucede na usucapio libertatis, mas de castigar a pura inércia do titular do direito, o qual, por qualquer razão, não exerce o seu direito de modo nenhum, desperdiçando o aproveitamento da coisa. Seria, no entanto, excessivo considerar apenas o desfrute da coisa relevante para efeitos do não uso. O exercício jurídico do direito através do poder de disposição é ainda uma forma de aproveitamento da coisa. Assim, se o titular do direito real menor constitui um direito a favor de terceiro e este não o exerce, não se verifica o não uso. A solução contrária, para além de restringir injustificadamente o aproveitamento da coisa ao exercício de atos materiais sobre ela, acaba por se repercutir no poder de disposição, tirando-lhe o alcance que tem normalmente, e que é o do exercício do direito em cujo conteúdo se integra. No limite, esta tese poderia inclusivamente forçar o titular do direito real a atual ilicitamente para evitar o não uso, consequência a evitar de tudo. Portanto, não uso significa tão-somente não exercício do direito, seja a nível da atuação material sobre a coisa, seja através do exercício do poder de disposição do direito (exercício jurídico). O titular do direito real não tem de exercer todas as situações jurídicas ativas que são conteúdo do seu direito para evitar a extinção deste por não uso. No limite, basta-lhe apenas exercer um dos poderes para obstar à aplicação da regra sobre o não uso. Esse poder pode ser o poder de disposição e o exercício do titular do direito real pode ser um puro exercício jurídico. O artigo 1572.º CC enuncia a regra geral nesta matéria. Dispõe que a servidão não deixa de considerar-se exercida por inteiro, quando o proprietário do prédio dominante aproveita apenas uma parte das utilidades que lhe são inerentes. Oliveira Ascensão deixa no ar que este preceito pode significar um princípio excecional aplicável somente em sede de direito de servidão. Não sufragamos esta posição. Nenhuma razão há para pensar que o titular do direito real deva fazer um aproveitamento da coisa que envolva todo o conteúdo do gozo do seu direito. De outra forma, de resto, estar-se-ia a transformar a permissão de aproveitamento da coisa num ónus: o titular do direito real ou esgota o conteúdo do direito no seu exercício ou perde, por não uso, o direito real. Não pensamos que a regra do não uso possa ser interpretada de modo tão amplo que tolha a liberdade do titular do direito real na escolha do aproveitamento que quer dar à coisa. Ela apenas pretende sancionar o desinteresse do titular do direito no exercício do direito, não valorar o concreto aproveitamento que ele faz. O direito real de gozo concede ao titular uma permissão genérica de aproveitamento da coisa; se exerce todas as situações ativas compreendidas no seu direito ou se exerce alguma ou até apenas uma, cabe a ele decidir. O direito real é um direito subjetivo, com a carga significativo-ideológica que comporta. É razoável pensar-se que a ordem jurídica valora negativamente o desinteresse total do direito real como forma de desonerar a propriedade. Ligar, contudo, a extinção do direito real a uma função social que o mesmo deve desempenhar parece-nos excessivo. Nada garante que a coisa tenha melhor aproveitamento pelo proprietário, cujo direito não está sujeito ao não uso… Portanto, a extinção do direito real por não uso é uma extinção de todo o direito. Não é legalmente possível a extinção parcelar do direito real relativamente aos poderes e outras situações ativas não exercidas pelo titular. Na hipótese de existirem vários comunheiros, basta o exercício de um deles para impedir a extinção dos direitos cujo titular mantivesse a inércia de exercício durante o prazo legal, fazendo acrescer a sua posição aos demais. O prazo para a extinção do direito real de gozo por não uso conta-se a partir do momento que o exercício cessou. É a regra do artigo 1570.º, n.º1 CC quanto às servidões prediais, que tem realmente uma amplitude geral nesta matéria. Se o titular do direito real nunca chegou a iniciar o exercício do mesmo, o prazo para o não uso conta-se da data da constituição do direito. Se chegou a exercêlo, esse prazo é contado da data do último ato de exercício. Se o titular do direito real intercala 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão o exercício do direito com o desinteresse absoluto, só haverá não uso desde que decorrido o prazo legal contado da data do último ato de exercício. O aproveitamento da coisa, seja material seja jurídico, impede sempre a contagem do prazo do não uso. Poder-se-ia dizer, em sentido contrário, que o artigo 298.º, n.º3 CC manda aplicar as regras da caducidade e que estas não contemplam a interrupção ou a suspensão do prazo. Mas isso implicaria que o titular do direito real que não iniciasse o exercício do seu direito no momento da constituição do mesmo veria imediatamente iniciada a contagem do prazo de não uso, que não seria interrompida, ainda que o titular mantivesse depois um exercício desde a data que o iniciou, consequência de todo inaceitável. O artigo 331.º, n.º1 CC dá um apoio decisivo à interpretação que deixamos exposta. O não uso está sujeito Às regras da caducidade em que tudo o que não se ache especificamente regulado a propósito deste facto extintivo (artigo 298.º, n.º3 CC).

A usucapio libertatis. Delimitação da figura: a figura da usucapio libertatis vem prevista no artigo 1574.º CC, o qual dispõe no seu nº.1 que a aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio só pode dar-se quando haja, por parte do proprietário do prédio serviente, oposição ao exercício da servidão. O sentido da expressão usucapio libertatis não é unívoco. Usado no contexto da usucapião, ele significa a extinção de direitos menores incompatíveis com a posse do usucapiente. Não é esse, porém, o sentido que resulta do artigo 1574.º, n.º1 CC. No contexto deste preceito, a usucapio libertatis representa um facto extintivo de servidões prediais e vem desligado da usucapião, o que pode ser fonte de alguns equívocos. Não obstante a aplicação dos prazos de usucapião, a usucapio libertatis não constitui nenhuma modalidade de usucapião, nem a sua eficácia depende da ocorrência da usucapião a favor de alguém. A lei menciona a oposição do proprietário do prédio serviente contra o titular da servidão, mas não existe nenhuma razão para limitar a oposição ao proprietário. Também o usufrutuário pode constituir servidões (artigo 1460.º CC) e nada justifica que ele não possa igualmente fazer extinguir as servidões que onerem o seu direito. Deste modo, qualquer titular de direito real de gozo maior que satisfazer os requisitos legais da usucapio libertatis pode conseguir a desoneração do seu direito quanto à servidão predial a cujo exercício se opôs. A usucapio libertatis distingue-se da usucapião regulada nos artigos 1287.º e seguintes CC. A usucapião é um facto aquisitivo de direitos reais de gozo, enquanto a usucapio libertatis tem meramente uma eficácia extintiva de direitos reais menores (de gozo). É verdade que alguns autores, falam em usucapio libertatis para designar a situação em que a posse ad usucapionem se exerce sem a concorrência de outras posses nos termos de direitos reais menores e em que, portanto, o usucapiente adquire o direito real a que a sua posse se refere com a extinção dos direitos reais menores. Mas a situação difere, ainda assim, daquela que surge contemplada no artigo 1574.º CC, em que não se dá qualquer aquisição de um direito real de gozo, mas apenas a extinção de um direito real menor por força da posse antagónica do titular do direito real maior. De certo modo, se a usucapio libertatis tem a analogia com a usucapião de assentar a sua eficácia numa posse apresenta a diferença fulcral de desencadear somente um efeito extintivo de um direito real menor, ao contrário da usucapião, que é, acima de tudo, um facto aquisitivo de direitos reais de gozo, e não apenas de direitos reais menores. Mesmo quando a usucapião a favor do possuidor provoca a extinção de outros direitos reais, incluindo direitos reais menores (usucapio libertatis noutra aceção), ela tem primacialmente um efeito aquisitivo a favor do usucapiente, sendo em virtude dessa eficácia que em prevista a propósito de cada um dos direitos reais de gozo.

A extensão da figura da usucapio libertatis para além das servidões prediais: um facto extintivo de direitos reais de gozo: a colocação sistemática da usucapio libertatis no regime jurídico das servidões prediais sugere fortemente um facto extintivo específico deste direito real.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão E o elemento literal reforça essa impressão. A maioria da doutrina portuguesa segue o enquadramento legal da figura. Contudo, Oliveira Ascensão veio sustentar um alargamento da eficácia da usucapio libertatis, que fundaria o princípio geral de que todo o titular do direito onerado pode conseguir a liberação do direito menor onerador. Pensamos que essa configura a interpretação correta dos dados normativos, que não se restringem à ponderação isolada do artigo 1574.º CC. Para começar, sabemos que o Código Civil não possui uma parte geral dos direitos reais e uma boa parte da regulação geral surge dispersa pelo Livro III e pelos outros livros, nomeadamente, a Parte Geral e o Livro II do Código Civil. E mesmo no Livro III, nem tudo o que é geral vem previsto a propósito da propriedade. Ora, uma colocação da figura da usucapio libertatis no regime das servidões prediais não constitui obstáculo decisivo ao reconhecimento de uma regra geral. Tratar-se-á apenas de mais um afloramento localizado a propósito de um direito real menor:

1. Por um lado, existem vários argumentos de maioria de razão que não podem ser perdidos de vista. O primeiro respeita à usucapião propriamente dista. Este facto permite a um possuidor formal adquirir o direito real de gozo a que a sua posse se reporta. Por que razão a ordem jurídica admite que a posse mantida durante um certo lapso de tempo confere ao possuidor o direito à aquisição do direito real (usucapião) e não admite o efeito inverso, que a posse exercida contra o titular do direito real menor provoque a extinção do direito deste? 2. Não é também verdade que a usucapião da propriedade causa a extinção da propriedade anterior? Se o direito maior pode ser perdido pela usucapião, qual a razão que justifica que o direito menor não se possa extinguir por uma posse contrária durante o mesmo lapso de tempo necessário para aquela? 3. Resta ainda ponderar a eficácia da usucapião nos direitos reais menores quando a posse ad usucapionem se exterioriza sem o concurso das posses respetivas. O possuidor que manifesta uma posse livre nos termos do direito real de gozo que exterioriza adquire um direito real desonerado. Ora, se um possuidor formal pode livrar-se com sucesso dos direitos reais menores exercendo uma posse contra eles, haverá motivo para negar o mesmo efeito ao titular de um direito real maior que se oponha à posse nos termos de um direito real menor? Se um possuidor formal consegue, através da usucapião fazer extinguir a propriedade concorrente e os direitos reais menores incompatíveis com a sua posse ad usucapionem, haverá algum princípio ou norma de Direitos Reais que se oponha à possibilidade de extinção de um direito real menor de gozo (que não seja a servidão predial) ao fim de um tempo? 4. Pela nossa parte: pensamos que a doutrina propugnada por Oliveira Ascensão corresponde inteiramente às coordenadas valorativas do sistema jurídico-real português. Um direito real de gozo menor pode ser extinto pela oposição do titular de um direito real maior por usucapio libertatis, contando que os requisitos previstos no artigo 1574.º CC sejam satisfeitos. O fundamento consolidativo subjacente à usucapião tem inteira pertinência para a usucapio libertatis. A extinção por usucapio libertatis não deve ser confundida com o não uso. Este último supõe uma inércia do titular do direito real menor no exercício deste, sem qualquer oposição do titular do direito desonerado. Diversamente, a usucapio libertatis tem na base um desapossamento do titular do direito real menor, por parte do titular do direito real maior, prevalecendo mesmo contra uma vontade de aproveitamento da coisa que não se traduza numa recuperação efetiva da posse respetiva, judicial ou extrajudicialmente. Alguns autores, pretendendo negar a usucapio libertatis a propósito da usucapião, falam numa extinção ou por não 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão uso, que seria verdadeiramente o facto extintivo dos direitos reais menores. Mas as figuras devem-se manter separadas, pois os requisitos de cada uma delas são diversos. De acordo com a nossa posição, qualquer direito real de gozo menor, o usufruto, o uso e habitação, a superfície, o direito real de habitação periódica, a servidão predial, pode extinguir-se por usucapio libertatis, desde que os requisitos previstos no artigo 1574.º CC se verifiquem no caso concreto. A usucapio libertatis configura, deste modo, um facto extintivo geral dos direitos reais de gozo e não apenas um facto extintivo específico das servidões prediais. Esta extensão permite alargar o campo de aplicação da figura às coisas móveis.

Requisitos legais da usucapio libertatis: os requisitos da usucapio libertatis são três: 1. A oposição do titular do direito real maior: mencionado expressamente no n.º1 do artigo 1574.º CC, que alude a uma oposição ao exercício da servidão. O artigo 1574.º, n.º1 CC dispõe que a aquisição da liberdade do prédio se dá quando haja oposição ao exercício da servidão. A natureza desta oposição deve ser esclarecida. A oposição traduz um desapossamento do titular do direito real menor, a perda do corpus possessório deste por ação do titular do direito real maior, que implica a quebra do controlo material da coisa por aquele. O possuidor nos termos do direito real maior – o proprietário, o usufrutuário – atua de molde a excluir o aproveitamento da coisa pelo titular do direito real menor. O que importa acentuar, em todo o caso, é que a privação do aproveitamento da coisa corre ao nível possessório, com o afastamento do possuidor nos termos do direito real menor do controlo material da coisa. O titular do direito real maior impede voluntariamente que o possuidor nos termos do direito real menor atue sobre a coisa. A oposição ao exercício do direito real menor é, assim, uma oposição ao nível estritamente possessório. Não se trata de bloquear um exercício do poder de disposição do direito de servidão mas sim exclusivamente de impedir o exercício da posse nos termos desse direito. Por conseguinte, a oposição ao exercício do direito exterioriza-se somente com uma posse contrária à posse do titular do direito real menor, ainda que este venha a exercer juridicamente o seu direito. No artigo 1574.º, n.º1 CC a oposição ao exercício do direito real menor deve ser interpretada restritivamente, abrangendo unicamente a posse do titular daquele direito. 2. Interrupção e suspensão do prazo da usucapio libertatis: resulta do n.º2 do artigo 1574.º CC. O titular do direito real pode fazer interromper ou suspender o prazo para a usucapio libertatis. Vale neste contexto o regime da usucapião, por força da remissão genérica operada no artigo 1574.º CC. 3. A invocação pelo beneficiário: decorre da analogia com o regime da usucapião. A usucapio libertatis não é automática, funcionando nos mesmos termos da usucapião. O artigo 303.º CC, para o qual remete o artigo 1292.º CC, tem igual aplicação em matéria de usucapio libertatis. O titular do direito real maior que pretenda beneficiar da usucapio libertatis tem de a invocar no final do prazo respetivo. Enquanto isso não suceder o direito real menor não se extingue, podendo o titular reivindicar a coisa. Nessa altura, a usucapio libertatis poderá ser invocada a título de exceção. A invocação da usucapio libertatis pode ser feita judicial ou extrajudicialmente. Isto quer dizer que o titular do direito real maior não necessita de recorrer ao tribunal para conseguir a desoneração do seu direito. A invocação extrajudicial da usucapio libertatis tem exatamente o meso valor da declarada por um tribunal competente. A invocação da usucapio libertatis, quando extrajudicial, faz-se mediante declaração, cuja finalidade é

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão justamente o efeito extintivo do direito real menor. Desta forma, a invocação da usucapio libertatis pode ser expressa ou tácita, nos termos gerais, valendo também neste domínio o princíio da equivalência das duas formas de declaração que surge consagrado no artigo 217.º CC. A usucapio libertatis também pode ser invocada pelos credores ou por outros terceiros com um interesse legítimo na sua declaração (artigo 305.º ex vi artigo 1292.º CC), mesmo contra a vontade do titular do direito real menor. A lei portuguesa dispõe ainda que no caso de o titular do direito real maior haver renunciado à usucapio libertatis, o que só pode acontecer depois de decorrido o prazo para ela (artigo 302.º, n.º1, ex vi artigo 1299.º e ex vi artigo 1575.º, n.º1 CC), a invocação pelos credores só é possível mediante a prova dos requisitos legais da impugnação pauliana.

O prazo da usucapio libertatis: o n.º2 do artigo 1574.º CC dispõe que o prazo para a usucapião só começa a contar da oposição, omitindo, contudo, esse prazo. Tem sido entendido pacificamente que esse prazo é o correspondente ao regime da usucapião. Assim, conforme haja se trate de coisa móvel ou imóvel, haja registo do título ou não e o desapossamento haja sido feito de boa fé ou de má fé, o prazo da usucapio libertatis variará. Estão em causa os artigos 1294.º, 1295.º, 1296.º, 1298.º, 1299.º e 1300.º, n.º 2CC aplicáveis à usucapio libertatis por força da remissão do artigo 1574.º, n.º2 CC. A contagem do prazo para a usucapio libertatis inicia-se na data do desapossamento do possuidor nos termos do direito real menor (mesmo havendo título e registo do título da aquisição do direito real – no caso de aplicação dos prazos constantes do artigo 1294.º, o prazo da oposição é sempre contado do desapossamento e não do registo do título).

O momento da eficácia da usucapio libertatis: invocada a usucapio libertatis, a eficácia extintiva, ou seja, a extinção do direito real de gozo menor, não opera apenas para o futuro, retroagindo no passado. O artigo 1288.º CC fixa esse momento na data do início da posse e esta disposição é igualmente aplicável à usucapio libertatis (artigo 1274.º, n.º1 CC). O regime da usucapio libertatis faz, assim, retroagir ao passado, concretamente ao momento em que a posse boa para usucapião se iniciou, o momento da desoneração do direito real maior. O que naturalmente acarreta implicações no plano jurídico, pois, após a usucapio libertatis, o titular do direito real maior tem o seu direito desonerado a partir da data do desapossamento do possuidor cujo direito real se extingue.

A eficácia da usucapio libertatis: a eficácia da usucapio libertatis é extintiva, como temos vindo a dizer. Essa eficácia extintiva não se limita à extinção de servidões prediais. O seu âmbito de aplicação cobre todos os direitos reais de gozo, com exceção da propriedade. Insistimos, porém, que o direito desonerado não tem de ser a propriedade, como a literalidade do artigo 1574.º CC pode inculcar. Um usufrutuário ou um superficiário pode beneficiar igualmente do efeito extintivo da usucapio libertatis. A usucapio libertatis projeta igualmente um efeito jurídico lateral, que acaba por justificar a utilidade social da figura. Ao lado da extinção do direito real menor que onerava o maior, a usucapio libertatis desagrava este último do ónus existente. A desoneração do direito real maior explica a função consolidativa que a usucapio libertatis desempenha, tal como a usucapião propriamente dita.

A usucapio libertatis como um efeito da posse: a interpretação do regime jurídico da usucapio libertatis evidencia que este facto é um dos efeitos da posse, tal qual a usucapião. Basta atentar que, à semelhança desta, repousa igualmente numa situação possessória, criada embora por um titular de direito real maior sobre a mesma coisa. Com efeito, a oposição

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão mencionada no n.º1 do artigo 1574.º CC não é mais de que uma posse livre da concorrência da posse do direito real menor, portanto, uma posse nos termos do direito real desonerado. É essa posse livre mantida por um lapso de tempo – o da usucapião – que justifica a desoneração, ou seja, a extinção do direito real menor que gravava o direito do oponente.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Secção VIII – A Extinção dos Direitos Reais

Generalidades: genericamente em relação à extinção dos direitos reais, ela pode ocorrer em virtude das seguintes situações:

1. Expropriação por utilidade pública: uma das formas de extinção é a expropriação por utilidade pública. A expropriação por utilidade pública consiste numa causa geral de extinção geral dos direitos reais, fazendo-lhe a lei referência a propósito da propriedade (artigo 1308.º CC), o usufruto (artigo 1480.º, n.º2 CC), e superfície (artigos 1536.º, alínea f) e 1542.º CC). O facto constitutivo da relação jurídica de expropriação é a declaração de utilidade pública, mas não é esta que determina a perda da propriedade. Efetivamente, nos termos do artigo 51.º, n.º5 Código das Expropriações (C. Expr.) a aquisição da propriedade pela entidade expropriante ocorre apenas no despacho judicial de adjudicação da posse e propriedade emitido posteriormente. Da mesma forma, no caso de expropriação amigável, a aquisição da propriedade verifica-se com a formalização do acordo por escritura pública ou auto (artigo 36.º C. Expr.). Sendo uma causa de extinção dos direitos reais, não implica, no entanto, que as coisas expropriadas fiquem nullius, uma vez que se verifica uma aquisição originária dessa propriedade por parte da entidade expropriante. O proprietário expropriado pode em certos casos adquirir um direito de reversão da sua propriedade (artigo 5.º CExpr), mas tal constitui um novo facto aquisitivo, e não uma anulação da expropriação. 2. Perda da coisa: por força da inerência do direito real à coisa que é seu objeto, naturalmente que a perda da coisa extingue igualmente o direito real. Esta constitui uma causa genérica de extinção dos direitos reais, fazendo-lhe o Código referência expressa a propósito do usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea d) CC) e da superfície (artigo 1536.º, n.º1, alínea e) CC). A perda da coisa tem que ser total, uma vez que se for parcial, não se verifica a extinção do direito real, mas apenas uma modificação do seu objeto (artigo 1478.º, n.º1 CC). A perda da coisa tanto pode ocorrer em virtude do seu desaparecimento como em virtude da sua destruição. Já ocorrendo uma mera deterioração da coisa, o direito mantém-se ainda que a coisa diminua de valor ou perca aptidão para o fim a que se destina. 3. Impossibilidade de exercício do direito: uma outra causa genérica de extinção dos direitos reais é a impossibilidade de exercício do direito. Efetivamente, destinando-se o direito a ser exercido pelo seu titular a impossibilidade de exercício deve conduzir à superfície no artigo 1536.º, n.º1, alínea e), in fine CC, mas deve considerar-se de aplicação generalizada a todos os direitos reais. Apenas em relação às servidões, determina o artigo 1571.º CC que a impossibilidade de exercer a servidão não importa a sua extinção, enquanto não decorrer o prazo de 20 anos para a sua extinção por não uso (artigo 1569.º, n.º1, alínea b) CC). A impossibilidade de exercício tem, no entanto, que ser definitiva para produzir a extinção do direito, já que se for temporária ocorre apenas uma suspensão desse direito. A impossibilidade não se confunde com a desnecessidade que constitui uma causa de extinção privativa das servidões constituídas por usucapião (artigo 1569.º, n.º2 CC) e das servidões legais (artigo 1569.º, n.º3 CC). 4. Abandono: o abandono (derelictio) pressupõe a cessação da relação material com a coisa (corpus) em virtude de um ato intencional do seu titular dirigido à extinção da sua propriedade (animus derelinquendi). Apesar de ser voluntário, o abandono não constitui 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão um negócio jurídico por ausência de liberdade de estipulação, não assentando numa declaração negocial, mas antes num comportamento material, a que deve ser atribuída a natureza de ato jurídico simples (artigo 295.º CC). O abandono não se encontra genericamente previsto como causa de extinção dos direitos reais, mas apenas como causa de extinção da posse (artigo 1267.º, n.º1, alínea a) CC), fazendo-lhe, no entanto, referênica o artigo 1318.º CC, a propósito da ocupação, e o artigo 1397.º CC, a propósito do direito sobre águas originariamente públicas. Parece, consequentemente, que o abandono apenas poderá ocorrer em relação a esse tipo de coisas, vigorando para os outros casos o instituto da renúncia. 5. Renúncia: uma outra causa de extinção dos direitos reais é a renúncia do seu titular. Em relação à renúncia tem-se distinguido entre: a. Renúncia abdicativa: a extinção do direito se realiza sem qualquer contrapartida para o titular. Esta aparece prevista especificamente em relação a certos direitos reais de gozo menores, como o usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea e) CC), o uso e habitação (artigo 1485.º CC) e as servidões prediais (artigo 1569.º, n.º1, alínea d) CC), a consignação de rendimentos (artigo 664.º CC), o penhor (artigo 667.º CC), o privilégio (artigo 752.º CC) e o direito de retenção (artigo 761.º CC). Inversamente não há quaisquer referências à renúncia a propósito da propriedade, da propriedade horizontal e do direito de superfície, o que tem feito surdir a controvérsia sobre a admissibilidade ou não da extinção desses direitos através da renúncia. A renúncia abdicativa aparece como resultado de um negócio jurídico dirigido diretamente à extinção do direito, o qual, no entanto, não é qualificado como doação, ainda que possa beneficiar outrem (artigo 940.º, n.º2 CC). A renúncia não depende de aceitação do destinatário (quanto ao usufruto e às servidões, artigos 1467.º, n.º2, e 1569.º, n.º5 CC). b. Renúncia liberatória: a extinção do direito tem como contrapartida a exoneração do titular em relação a certas obrigações propter rem, sendo consequentemente dependente dessa mesma exoneração. Já a renúncia liberatória aparece prevista a propósito da compropriedade (artigo 1411.º CC), usufruto (artigo 1472.º, n.º3 CC), uso e habitação (artigo 1485.º CC), e servidão (artigo 1467.º, n.º2 e 4 CC). A renúncia liberatória tem normalmente caráter unilateral, salvo no caso da compropriedade, em que exige o consentimento dos demais interessados (artigo 1411.º, n.º1 CC), devendo obedecer nesse caso à forma prescrita para a doação (artigo 1411.º, n.º3 e 947.º CC). Também no caso das servidões, a renúncia liberatória pode ser recusada pelo proprietário do prédio dominante, sem que isso o liberte de custear as obras (artigo 1567.º, n.º4, in fine CC). 6. Prescrição: a prescrição pode igualmente constituir uma causa de extinção dos direitos reais. A mesma não se aplica, no entanto, em relação aos direitos reais de gozo, face ao que se dispõe no artigo 298.º, n.º3 CC, que estão sujeitos a uma causa de extinção própria, o não uso, que se rege pelo regime da caducidade. Há, porém, uma exceção em relação à superfície, uma vez que a sua extinção nos casos previstos no artigo 1536.º, n.º1, alíneas a) e b) CC é regulada pelo regime da prescrição (artigo 1536.º, n.º3 CC). A prescrição determina, porém, a extinção de alguns direitos reais de garantia como a hipoteca (artigo 730.º, alínea b) CC), os privilégios creditórios (artigo 752.º CC), e o direito de retenção (artigo 761.º CC). Já, no entanto, em relação à consignação de rendimentos e ao penhor, a lei exclui expressamente que os mesmos se possam extinguir por prescrição (artigo 664.º e 677.º CC). Já em relação aos direitos reais de aquisição não se

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão encontra nenhuma norma a excluir a sua sujeição à prescrição, pelo que a mesma lhes deve ser considerada aplicável (artigo 298.º, n.º1 CC). 7. Caducidade: a caducidade corresponde à extinção do direito em virtude da superveniência de um facto jurídico stricto sensu, como o decurso do tempo ou a morte. A caducidade operará no caso dos direitos reais temporários, ocorrendo a sua extinção em consequência desses factos. Existem efetivamente direitos reais com natureza temporária, ainda que vitalícia, como o usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea a) CC) e o uso e habitação (artigo 1485.º CC). Outros direitos reais, como a superfície ou a servidões prediais tanto podem ser perpétuos como temporários (artigo 1536.º, n.º1, alínea c) e 1569.º, n.º1, alínea e) CC). Já em relação à propriedade, ela constitui em princípio um direito perpétuo, só sendo a propriedade temporária admitida nos casos expressamente previstos na lei (artigo 1307.º, n.º2 CC), como é exemplo a substituição fideicomissária no testamento e na doação (artigos 2286.º e 962.º CC). Todos os direitos reais com natureza temporária extinguir-se-ão por caducidade. 8. Não uso: outra causa de extinção dos direitos reais de gozo é o não uso. Efetivamente, o artigo 298.º, n.º3 CC estabelece que os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade. A lei prevê a extinção pelo não uso em relação ao usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea c) CC), ao uso e habitação (artigo 1485.º CC) e às servidões prediais (artigo 1569.º, n.º1, alínea b) CC). Já em relação à propriedade, o não uso apenas está previsto relativamente à extinção do direito sobre águas originariamente públicas (artigo 1397.º CC). Consequentemente, o não uso não é causa de extinção da propriedade sobre outros bens, nem da propriedade horizontal ou do direito de superfície. O não uso constitui assim uma causa de extinção de certos direitos reais baseada na inércia do titular do direito real de gozo em relação ao exercício das faculdades integrantes desse direito. O não uso distingue-se da prescrição dos créditos, pois a inércia do titular não consiste no não exercício dos seus poderes em relação a terceiros. Por esse motivo, o não uso também nada tem a ver com uma eventual usucapião por terceiro, uma vez que esta pressupõe a violação do direito em consequência do seu exercício por terceiro, enquanto que o não uso se basta com a mera omissão das faculdades integrantes do direito. 9. Confusão: outra causa de extinção dos direitos reais é a confusão, a qual não se confunde com a expressão equivalente que usamos em relação à extinção das obrigações (artigo 868.º CC). Efetivamente, no âmbito dos direitos reais, verifica-se a confusão sempre que na mesma pessoa se reúnem as qualidades de titular de um direito real maior e de um direito real menor, o que determina a extinção do direito real menor por já não se justificar a compressão do direito real maior nessa situação. A lei prevê a confusão como causa de extinção do usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea b) CC), do uso e habitação (artigo 1485.º CC), da superfície (artigo 1536.º, n.º1, alínea d) CC), das servidões prediais (artigo 1569.º, n.º1, alínea a) CC). 10. Perda da posse: a perda da posse da coisa não constitui normalmente causa de extinção do direito real incidente sobre ela, enquanto não decorrer o prazo necessário para a usucapião por parte do novo possuidor. No entanto, a lei fixa o momento da aquisição por usucapião no início da posse (artigo 1317.º, alínea c) CC), ocorrendo assim uma retroação dos efeitos da aquisição ao momento da perda da posse pelo titular. Em certos casos, no entanto, a posse da coisa desempenha uma função de publicidade, essencial à

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão manutenção de certos direitos reais de garantia, como o penhor ou o direito de retenção, pelo que nestes casos a restituição da coisa implica igualmente a perda do direito (artigos 677.º e 761.º CC). 11. Usucapio libertatis; uma outra forma de extinção do direito real encontra-se na usucapio libertatis, caso em que o titular do direito real maior, por via da oposição pelo tempo necessário à usucapião, ao exercício de um direito real menor, consegue obter a libertação do seu direito real maior daquele direito menor que o onerava. A usucapio libertatis encontra-se apenas prevista como forma de extinção das servidões prediais (artigo 1547.º CC), mas a doutrina tem-na considerado uma forma geral de extinção dos direitos reais menores, com o argumento de que não há razão para que o proprietário, quando exerce o seu direito em contrariedade com esse direito real menor, adquira a liberação desse ónus, quando essa liberação ocorreria igualmente, caso fosse a propriedade plena adquirida por um terceiro por via da usucapião. Ao contrário do que refere o artigo 1574.º CC, a usucapio libertatis não constitui uma forma de aquisição da liberdade da coisa por usucapião, uma vez que a liberdade não é um bem que se adquira, mas antes uma forma de extinção dos direitos reais menores, moldada sobre o regime da usucapião. Ao contrário do que se refere no artigo 1574.º CC, a usucapio libertatis não constitui uma forma de aquisição da liberdade da coisa por usucapião, uma vez que a liberdade não é um bem que se adquira, mas antes uma forma de extinção dos direitos reais menores, moldada sobre o regime da usucapião. Assim, para que a usucapio libertatis possa ocorrer, são necessários os seguintes requisitos: a. A oposição ao exercício do direito real menor por parte do titular do direito real maior: exige-se que ocorra um desapossamento do direito real menor por parte do titular do direito real maior, passando este a impedir a posse daquele direito. Não basta o simples criar de dificuldades ao exercício do direito, tendo a oposição que se traduzir num impedimento efetivo. b. O decurso do prazo legal para a usucapião (artigos 1294.º e seguintes e 1298.º e seguintes), sendo esses prazos sujeitos às mesmas regras de suspensão e interrupção que vigoram para a prescrição (artigos 1292.º e 318.º e seguintes e 323.º e seguintes CC). O prazo para a usucapião só começa a contar desde a oposição (artigo 1574.º, n.º2 CC). c. A Invocação pelo beneficiário: a usucapio libertatis necessita ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, nos termos estabelecidos para a usucapião (artigo 1292.º e 303.º CC). Preenchidos todos estes requisitos, a usucapio libertatis produz a extinção do direito real menor, devendo considerar-se que esta ocorre no momento do início da oposição, nos termos dos artigos 1288.º e 1317.º, alínea c) CC. 12. Constituição de um direito real incompatível: um outro caso em que se verifica a extinção dos direitos reais é o que ocorre na hipótese de ser constituído um direito real com ele incompatível. Assim sucede nas hipóteses de usucapião e da aquisição tabular. Em relação à usucapião, quando esta se verifica, nos termos dos artigos 1287.º e seguintes CC, como aquisição originária, faz extinguir todos os direitos que incidam sobre a coisa, retroagindo os seus efeitos ao inicio da posse. A mesma situação ocorre em caso de aquisição tabular, resultante do efeito atributivo do registo. Efetivamente, o adquirente com base no registo nos termos dos artigos 5.º, n.º1, 17.º, n.º2 CRPr e 291.º CC, ao prevalecer sobre o titular do direito com base na realidade substantiva, faz extinguir o direito que anteriormente existia sobre a coisa.

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13. Extinção do direito real maior com base no qual o direito se constituiu: a última hipótese de extinção dos direitos reais reside na extinção do direito real maior com base no qual aquele direito se constituiu. Esta solução é uma consequência da regra de que ninguém pode atribuir a outrem mais direitos do que aqueles que tem (nemo pluris iuris in alium transfere potest quam ispe habet). Em consequência, o titular de um direito não pode onerar o seu direito com encargos que extravasem da sua duração (artigo 1460.º, n.º1, in fine CC para o usufruto), e se o fizer esses direitos extinguem-se com a extinção do direito sobre o qual se constituíram. A regra da extinção do direito real menor em consequência da extinção do direito real maior encontra-se estabelecida para as relações entre a hipoteca e o usufruto no artigo 699.º, n.º2 CC, bem como para a superfície no artigo 1539.º, n.º1 CC. Há que salientar que esta solução não é aplicável a casos inesperados de extinção do direito que afetem a sua duração normal, em ordem a evitar que as legítimas expectativas do titular do direito real menor venham a ser lesadas. Assim, se o usufruto se extinguir por renúncia ou por confusão, a hipoteca subsiste, como se essa extinção não se tivesse verificado (artigo 699.º, n.º3 CC). Fenómeno semelhante ocorre em caso de extinção do direito de superfície perpétuo, ou do temporário antes do decurso do prazo (artigo 1541.º CC).

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Capítulo VIII – Violação e Defesa do Direito Real Justificação para um capítulo autónomo no ensino de Direitos Reais : a matéria da violação e defesa do direito real apenas surgiu no ensino de Direitos Reais em Portugal com Oliveira Ascensão. De um modo inovador, este autor veio criar na parte geral do sistema científico de Direitos Reais uma abordagem autónoma da violação e defesa do direito real, fazendo-o, todavia, em capítulos separados, um dedicado à violação, o outro à defesa. No capítulo atinente à violação, Oliveira Ascensão aborda somente dois pontos:  Pretensão real e ilicitude;  A violação das situações jurídicas propter rem. No capítulo seguinte analisa os meios de tutela dos direitos reais, desde a ação direta, objeto de uma remissão genérica, às ações reais propriamente ditas, nas quais a ação de reivindicação, a ação negatória, a ação confessória e a ação de demarcação. Seguindo neste ponto a linha orientativa de Oliveira Ascensão, também Menezes Cordeiro introduziu na parte geral um capítulo denominado Da patologia dos direitos reais. Não nos parece que se adeque ao caráter científico desta disciplina a omissão completa do estudo da tutela dos direitos reais em caso de violação. Esta vicissitude pode ocorrer durante o período de existência do direito real e importa conhecer os meios específicos que o ordenamento dispõe para essa eventualidade. Por isso, a defesa do direito real deve constar de qualquer programa de ensino de Direitos Reais. Se as ações reais visam a tutela de uma categoria de direitos reais e não de um direito real em particular, a colocação correta desta matéria no sistema científico de Direitos Reais é a parte geral. E neste sentido depõe igualmente o ensino de Oliveira Ascensão.

A violação do direito real e as ações reais: há violação do direito real quando um terceiro impede ou diminui de alguma forma o aproveitamento da coisa contra a vontade do titular. A violação do direito real pode suceder de múltiplas formas. Nem todas elas requerem, porém, uma defesa pelo titular através de ações reais. Caso haja alguém civilmente responsável pelos danos, o titular do direito real de gozo tem um direito de indemnização. A ação de indemnização, contudo, apesar de no caso visar reparar os danos decorrentes da violação de um direito real, não deixa de ser uma ação pessoal, não se tornando numa ação real, não deixa de ser uma ação pessoal. Portanto, assim como nem todas as formas de defesa do direito real são judiciais, nem todas as ações que podem ser movidas pelo titular do direito real violado, em consequência da violação, têm natureza real. Nos direitos reais de gozo, a forma mais comum de violação consiste na privação da posse da coisa através do esbulho. E é a perda da posse que legitima o recurso à ação de reivindicação, embora esta possa igualmente ter lugar em hipóteses nas quais não ocorreu nenhum esbulho. Não se pode pensar, porém, que a violação do direito real consiste apenas na privação da coisa. A ameaça de perturbação do aproveitamento da coisa, assim como a perturbação efetiva, mesmo sem desapossamento, constituem igualmente situações de violação do direito real. Por último, o incumprimento da prestação correspondente à obrigação propter rem representa também a violação do direito real correspondente. A violação do direito real resulta de um comportamento humano de um terceiro, em regra por ação, em casos muito raros, por omissão. Terceiro é aqui o não titular do direito real. Qualquer pessoa que não seja o titular do direito é quanto a este um terceiro, ainda que não seja um estranho relativamente à coisa. Vem isto a propósito de esclarecer que o proprietário ou outro titular de um direito real

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão sobre a coisa é também um terceiro no confronto com os demais direitos reais que a tenham por objeto. Deste modo, se o proprietário desapossa a coisa do usufrutuário ou impede o titular da servidão de passagem de a exercer, pratica uma violação deste direito real.

Violação do direito real, ilicitude e ação real: na medida em que a violação do direito real existe sempre que o titular do direito real é impedido de aproveitar a coisa nos termos desse direito ou vê diminuído esse aproveitamento por facto de terceiro, devemos dissociar a violação da ilicitude. A violação designa a situação objetiva que atinge o aproveitamento da coisa pelo titular do direito real e é independente de qualquer valoração que o Direito faça à conduta de alguém, quer dizer, ao comportamento (ação ou omissão) daquele que violou o direito real. A defesa do direito real supõe a violação do mesmo. É, contudo, irrelevante que o autor haja cometido um facto ilícito. O titular do direito real pode defender o seu direito real em caso de violação ainda que aquele ou aqueles que a tenham cometido não hajam atuado ilicitamente. A ação real tem, assim, por escopo propiciar ao titular do direito real o aproveitamento da coisa permitido pelo direito, pondo fim à sua violação, seja esta ilícita ou não. A ausência de ilicitude na violação do direito real não obsta à procedência da ação real, enquanto meio de tutela destinado a restaurar a possibilidade de aproveitamento da coisa pelo titular do direito real.

As ações reais: na origem das ações reais encontramos as actio in rem do Direito romano. A actio in rem tinha por finalidade assegurar ao proprietário da coisa a sua recuperação em caso de desapossamento por terceiro. O tipo mais importante de actio in rem, a rei vindicatio, tinha um duplo objetivo:  Fixar a propriedade do autor; e  Obter a entrega da coisa. Por contraposição à actio in personam, que supunha um desvalor determinado e era sempre dirigida contra ele, a actio in rem poderia ser movida contra qualquer pessoa, à partida indeterminada, vindo essa determinação a ocorrer somente com o desapossamento do titular do direito real por uma pessoa concreta. Esta diferença provinha da diversa estrutura dos direitos que se faziam valer e que as ações patenteavam. A actio in rem era entendida literalmente como uma ação contra uma coisa, sendo indiferente a pessoa do demandado, que podia ser qualquer um, contrariamente à actio in personam, que pressupunha o vínculo obrigacional que se fazia valer contra o devedor da obligatio. A ação de reivindicação tem uma função restitutória ou integrativa: devolver a coisa ao titular do direito real ou promover a entrega, no caso de ele nunca haver sido possuidor. Nem todas as ações reais têm, porém, como objetivo promover a conciliação da posse com a titularidade do direito real. Quando é que se pode dizer que uma ação é real? As ações que promovem a devolução da coisa titular do direito real ou que previnem a perturbação na posse são indiscutivelmente ações reais. Assim, é real a ação de reivindicação (artigos 1311.º e 1315.º CC), como reais são as ações possessórias de prevenção, de manutenção e de restituição (artigos 1276.º e seguintes CC). A natureza real de uma ação não resulta somente da discussão possessória sobre uma coisa. Por maioria de razão, quando o pedido principal (ou um deles) da ação consiste na declaração judicial de existência ou de inexistência de um direito real sobre uma coisa, a ação é real. Não obstante não haverem sido tipificadas no nosso Direito, a ação confessória e a ação negatória são ações reais. Para além destes casos, a ação tem ainda a natureza de ação real quando o seu objetivo seja o de fixar os contornos físicos do objeto, como a ação de demarcação, ou ainda de fixar os termos da atuação do titular do direito real sobre a coisa.

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A ação de reivindicação: no Direito romano a rei vindicatio era uma actio in rem. Era in rem porquanto se dirigia a uma coisa e não a uma pessoa, permitindo ao proprietário persegui-la para aonde quer que ela fosse e sem atinência à pessoa do possuidor, que para o efeito era completamente indiferente. No Direito romano clássico, a rei vindicatio dava ao proprietário quiritário a possibilidade de fazer declarar o seu direito e obter a condenação do possuidor à entrega da coisa. Para a propriedade provincial adotou-se um ação análoga, mediante a adaptação da fórmula da rei vindicatio, enquanto para a propriedade pretoriana foi introduzida a actio Publiciana. Com a unificação da propriedade no Direito romano justinianeu, a reivindicatio passou a ser o meio de defesa da propriedade em geral e não apenas do domínio quiritário. No início a reivindicatio era deduzida pelo proprietário desapossado contra o possuidor. No Direito clássico tardio assistiu-se a uma mudança, passando a admitir-se a demanda contra o simples detentor, que estava obrigado a identificar o possuidor. O reivindicante tinha o encargo de fazer a prova da sua propriedade, o que implicava demonstrar a propriedade do antecessor, do antecessor deste, e assim sucessivamente, até ao primeiro adquirente da propriedade ou proprietário originário. Uma boa parte dos traços romanísticos da reivindicativo mantiveram-se no Direito comum e inspiraram o regime jurídico deste meio de defesa dos direitos reais de gozo nas ordens jurídicas europeias de Direito continental. Segundo o artigo 1311.º CC, a ação de reivindicação pode ser intentada contra o possuidor ou o detentor que tem a coisa consigo. Deste modo, o titular do direito real de gozo não tem que procurar saber quem é o possuidor nem embrenhar-se na discussão complexa sobre se quem tem a coisa é possuidor ou detentor. Aquele que tiver a coisa em seu poder pode ser demandado na ação de reivindicação, seja possuidor seja detentor. O nosso Direito Civil não impõe ao detentor demandado numa ação de reivindicação o dever de identificar o possuidor. A demonstração da posse do demandado não constitui pressuposto da legitimidade passiva do réu, conforme sucedeu no Direito romano clássico, nem tão-pouco uma condição de procedência da ação. Se o detentor demandado não prova um direito a ter a coisa consigo que possa valer ante o autor, a ação será procedente, contando que o reivindicante faça a prova do seu direito. Na falta de uma parte geral em Direitos Reais, o regime jurídico da propriedade alberga a disciplina substantiva da ação de reivindicação. Com efeito, o artigo 1315.º CC declara aplicável o regime da reivindicação à defesa de todo o direito real, o que mostra bem que a reivindicação não é específica da propriedade, constituindo o meio de defesa de uma categoria de direitos reais: os direitos reais de gozo. Como também sucedia no Direito Romano, o reivindicante, para obter a condenação na entrega da coisa, tem de demonstrar a titularidade do direito. A prova do direito é, assim, o primeiro pressuposto em que assenta o sucesso da reivindicação. Quem invoca um direito como fundamento para obter a condenação do réu na entrega da coisa, tem de fazer a prova de que é titular do mesmo. Se essa prova falha, a reivindicação deve ser declarada improcedente. Contrariamente a uma ideia muito divulgada, a ação de reivindicação não tem dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade e a entrega da coisa. A ação de reivindicação tem um pedido principal: a entrega da coisa. Simplesmente, como a titularidade do direito real de gozo representa um fundamento de procedência da ação, o reivindicante tem de fazer prova do mesmo. Isto não vale, porém, a dizer que o reivindicante tenha de deduzir um pedido autónomo de reconhecimento do direito, e cumulá-lo com o pedido de entrega da coisa. Basta fazer este último. A finalidade da ação de reivindicação não se encontra na apreciação judicial da existência do direito do reivindicante, mas na condenação do réu na entrega da coisa. Portanto, na ação de reivindicação, o reivindicante invoca um direito real de gozo e pede ao tribunal que condene o réu a entregar-lhe a coisa. É conveniente separar três aspetos distintos da ação de reivindicação:

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1. O fundamento da ação (o direito real do autor): é o direito real de gozo violado com a posse ou detenção do réu. Isso decorre expressamente do n.º1 do artigo 1311.º CC, quando se alude ao reconhecimento do direito de propriedade. Neste ponto, importa deixar bem claro que na ação de reivindicação o autor invoca um direito real de gozo, que não a posse. Se apenas esta surge aduzida, a ação é possessória e não de reivindicação e somente pode valer quanto à posse;

2. A causa de pedir: segundo o artigo 581.º, n.º 1 CPC (2013), nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real. Isto quer dizer, que na ação de reivindicação o autor deve apontar o facto jurídico aquisitivo do direito real que invoca como fundamento do pedido de entrega da coisa, não bastando a referência genérica ao direito ou a um facto aquisitivo deste que não seja especificado. A causa de pedir consiste somente no facto aquisitivo do direito real e não na violação deste direito ou na coincidência entre a coisa reivindicada e a possuída ou detida pelo réu. O autor apenas tem de indicar o facto pelo qual adquiriu o direito alegado. Esse facto não tem de ser um facto aquisitivo originário. Se o facto ou a sucessão por morte, será esse o facto indicado pelo autor. Aquele que adquiriu o direito real de gozo através de um facto translativo (aquisição derivada), como o comprador ou o donatário, por exemplo, se não beneficiar de uma presunção legal de titularidade, tem de reconstituir a cadeia de titulares. A existência de uma presunção legal de que o autor beneficia, só por si, não equivale à indicação do facto aquisitivo. A presunção apenas inverte o ónus da prova relativamente a um facto. Não basta, pois, como causa de pedir da ação de reivindicação. Porém, a afirmação da titularidade do direito real acompanhada da junção de certidão predial pode satisfazer a exigência legal relativa à causa de pedir, considerando-se que o facto aquisitivo do direito é o que resulta da inscrição predial.

3. O pedido: na ação de reivindicação, consiste na entrega da coisa ao autor. Como vimos, este é o único pedido que tem de ser feito na reivindicação. Temos, deste modo, o desenho da ação de reivindicação. O autor invoca a titularidade de um direito real de gozo, indica o facto jurídico concreto donde emerge essa aquisição e pede ao tribunal que condene o réu que tem a coisa em seu poder a entregar-lha. A procedência da ação de reivindicação encontra-se, no entanto, sujeita à demonstração cumulativa de três condições, a que chamamos condições de procedência e que são as seguintes: a. O autor seja titular do direito real de gozo invocado: o autor tem de fazer a prova do seu direito, ou seja, demonstrar que adquiriu o direito por um facto jurídico válido e eficaz. É a isto que se liga tradicionalmente a prova diabólica (diabolica probatio). A prova do facto aquisitivo do direito do autor é feita nos termos gerais. Se o autor beneficia de presunção legal, o ónus da prova invertese, cabendo ao réu demonstrar que o autor não é titular do direito invocado. As presunções mais importantes a considerar para este efeito são a presunção fundada no registo predial (artigo 7.º CRPr) e a presunção fundada na posse (artigo 1268.º, n.º1 CC). Não beneficiando o autor de nenhuma das presunções legais e caso o réu tenha contestado a titularidade daquele quanto ao direito real invocado, o primeiro tem de desenvolver a atividade probatória tendente à demonstração dessa titularidade. Sendo o facto aquisitivo derivado, a prova da titularidade do autor faz-se reconstruindo a cadeia dos adquirentes anteriores até a uma aquisição originária, ou seja, o autor tem de provar a validade dos factos translativos do direito até ao seu, o que significa provar a 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão titularidade do direito na esfera jurídica dos transmitentes anteriores até ao transmitente do seu direito. Esta atividade probatória tem como limite a aquisição originária do direito. Provando-se um facto aquisitivo originário do direito real, não há que recuar mais atrás, pois esse é o momento da constituição do direito adquirido pelo autor. O facto aquisitivo originário pode beneficiar o transmitente do autor ou outro dos anteriores transmitentes do direito. Se o facto aquisitivo originário ocorreu na esfera jurídica de um dos transmitentes anteriores, os factos translativos subsequentes devem ser provados até ao autor. O fardo probatório da reconstituição das titularidades anteriores do direito até chegar à sua não afeta o autor se ele puder invocar um facto aquisitivo originário (por exemplo, a usucapião, a acessão ou a ocupação). Nesse caso, tudo se reduz à demonstração do facto aduzido como aquisitivo do direito alegado na ação. b. O réu tenha a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor: se o reivindicante demanda um possuidor anterior que já transmitiu a sua posse a um terceiro, a ação só poderá improceder. De outra forma, o tribunal condenaria o réu a uma atividade impossível: a entrega de uma coisa que não está em seu poder. Não releva para a lei o estatuto possessório do demandado. Este pode ser um possuidor ou um detentor (artigo 1311.º, n.º1 CC). Tão pouco tem o autor de provar a qualidade de possuidor ou de detentor do demandado. Que o réu tenha a coisa em seu poder é tudo o que o reivindicante tem de demonstrar quanto a este ponto, independentemente de aquele ser detentor ou possuidor. Caso seja demandado um detentor, a lei portuguesa não obriga o réu a identificar o possuidor. Mas este pode intervir ou ser chamado a intervir pelo detentor demandado nos termos regulados no CPC para a intervenção de terceiros. c. O réu não pode ser titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo: liga-se à existência ou não de um direito do demandado a ter a coisa em seu poder. Esse direito pode ser um direito real, de gozo ou de garantia (penhor, direito de retenção), ou um direito de outra natureza, como um direito pessoal de gozo. E compreende-se que assim seja. A reivindicação encerra uma reação contra a violação do direito real do autor, permitindo a este que obtenha a entrega da coisa; todavia, se o réu tem um direito que legitima a posse ou detenção da coisa, o direito do autor tem de ser confrontado como o direito do réu. Se a articulação entre ambos os direitos determinar que a coisa deva permanecer com o réu, o que é o caso se o direito do autor está onerado com um direito real do réu ou se existe um direito pessoal de gozo validamente constituído a favor do réu, a ação de reivindicação deve ser declarada improcedente, pois, a ser de outro modo, ficaria preterido o direito do réu apenas porque o autor reivindicou a coisa. A ação de reivindicação só procede caso o réu não tenha o direito a ter a coisa consigo para o exercer; se tem a ação deverá improceder. Estamos agora em condições de apreender o esquema de funcionamento da ação de reivindicação. Nesta ação, o autor alega a titularidade de um direito real de gozo, indica o facto aquisitivo do seu direito e pede ao tribunal que condene o réu a entregar-lhe a coisa. Para que a ação seja procedente, contudo, o autor deve provar o facto aquisitivo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão do direito e que o réu tem a coisa em seu poder. Se o autor faz a prova de que é titular do direito real de gozo invocado na ação e de que o réu tem a coisa em seu poder o réu apenas pode evitar a procedência da ação provando ser titular de um direito que legitime a posse ou detenção da coisa e obste, assim, à entrega da coisa ao reivindicante. Apesar a formulação literal ampla do artigo 1315.º CC, que determina a aplicação das disposições precedentes à defesa de todo o direito real, a ação de reivindicação respeita unicamente aos seus direitos reais de gozo e não a quaisquer outros direitos reais, ainda que atribuam posse, como o penhor ou o direito de retenção. Se o titular de algum destes direitos reais de garantia é esbulhado por terceiro, a defesa da posse é garantida apenas pela ação de restituição e nunca pela ação de reivindicação. A ação de reivindicação constitui o meio de defesa do direito real de gozo – com exceção da posse – quando o titular da posse – quando o titular está desapossado da coisa e não se estende a nenhum outro direito real. Ação de reivindicação é a ação de defesa do direito real de gozo contra aquele que tem a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor, e não a entrega ao titular do direito. Também a ação possessória de restituição tem por escopo a devolução da coisa ao autor. Simplesmente, enquanto na ação de reivindicação o autor invoca um direito real de gozo definitivo, na ação de restituição o autor invoca apenas a sua posse, não o direito real a que ela se refere. Se invoca este, a ação é de reivindicação, não de restituição. Uma vez que a ordem jurídica confere ao titular do direito real desapossado a alternativa entre a ação de reivindicação (defesa do direito real) e a ação de restituição (defesa da posse), para quele tudo consiste numa escolha. A ação de reivindicação constitui uma ação real de defesa do direito real de gozo. Deste modo, ela pode ser intentada contra todo aquele que viole esse direito, incluindo outros titulares de direitos reais sobre a coisa. A ação de reivindicação pode levar ao confronto do direito real de gozo do autor com a posse do réu. Ora, aposse é igualmente um direito real, como teremos oportunidade de demonstrar. Pode, assim, perguntar-se legitimamente qual dos dois direitos prevalece neste conflito, o direito real de gozo do autor ou a posse do réu? Não pode haver dúvidas na resposta. A propriedade ou o direito real de gozo prevalece sempre sobre a posse. Esta solução tem um fundamento normativo expresso no artigo 1311.º, n.º1 CC, dado que de acordo com este preceito o proprietário (todo o titular de um direito real de gozo – artigo 1315.º CC) pode pedir a restituição da coisa de qualquer possuidor ou detentor da coisa, o que supõe a prevalência do direito real sobre a posse, em qualquer caso. A ação de reivindicação tem por objetivo obter a restituição da coisa que não se encontra com o reivindicante, mas tal não significa que, pelo menos no momento da interposição da ação, o autor não seja ainda possuidor da coisa. Com efeito, nos termos da alínea d) do artigo 1267.º CC, a posse só se extingue um ano após o esbulho, prazo esse que não decorre se a posse foi tomada ocultamente, enquanto não se tornar pública, ou se foi tomada com violência, enquanto esta não cessar (artigo 1267.º, n.º2 CC). Convém, pois, sublinhar, que a ação de reivindicação pode ser intentada pelo reivindicante que tem a posse jurídica da coisa contra o terceiro que tem a posse ou detenção efetiva dela.

A ação negatória: a actio negatoria era igualmente uma actio in rem no Direito Romano, desde o período clássico. Com ela, o proprietário quiritário pedia que fosse negada a existência de um direito real menor e que cessasse a perturbação existente mediante a restituição da coisa no estado em que estaria se a perturbação não houvesse tido lugar. Através desta ação, o proprietário prosseguia uma finalidade dupla:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão  A declaração de que a propriedade se encontrava liberta do direito real menor; e  Cessação da perturbação, com a reconstituição do estado em que a coisa estaria se não fosse ela. A ação negatória surgiu como uma ação de defesa da propriedade, como a ação de reivindicação. O seu espetro, porém, é bem maior. Ela pode ser intentada pelo titular de um direito real maior, e não apenas pelo proprietário, contra aquele que se arroga a titularidade de um direito real menor e tem por objetivo principal a demonstração de que o ónus invocado pelo réu não existe. Não vemos nenhum inconveniente em qualificar como negatória a ação em que o proprietário possuidor pede ao tribunal que declare que o réu não é o proprietário. Não se trata aqui de fazer declarar a inexistência de um ónus, mas de afastar a pretensão real de alguém que se arroga o mesmo direito real do autor. A ação não é de reivindicação porquanto não se pede a restituição da coisa, e é negatória, uma vez que o pedido consiste na declaração da inexistência do direito do réu. O Direito português atual não autonomiza a ação negatória como ação real típica. No seu lugar, pode ser intentada uma ação de simples apreciação negativa, uma ação declarativa que segue as regras do processo comum e que tem por fim a declaração da inexistência de um direito. Ainda assim, e apesar da ausência de previsão legal, a doutrina não deixa de apontar a ação negatória como uma modalidade de ação real. Existem, no entanto, diferenças assinaláveis entre a actio negatoria romana e a ação negatória no Direito português vigente. Uma das finalidades da actio negatoria no Direito romano era a eliminação da posse do réu, como a restituição da coisa ao autor. Essa finalidade não pode ser conseguida meramente com uma ação de simples apreciação negativa, que se dirige à declaração judicial de que o direito que o réu se arroga não existe. Se o autor pretende ainda a entrega da coisa, tem de fazer o pedido respetivo, o que leva a extravasar do âmbito processual da ação de simples apreciação negativa para entrar no da ação condenatória. E o mesmo se diga relativamente à indemnização pelos danos sofridos. O fundamento da ação negatória é o direito real do autor; a causa de pedir, o facto jurídico do qual emerge o direito real invocado pelo autor da ação e o pedido, a declaração da inexistência do direito real menor do réu. O autor, alegando a titularidade de um direito real (maior), aduz o facto de aquisição do direito que invoca e deduz ao tribunal o pedido de declaração da inexistência do direito do réu. Como condição de procedência da ação temos:  O autor seja o titular do direito real invocado  O réu não prove que o direito real (menor) existe. A prova do facto aquisitivo do direito real invocado pelo autor pertence naturalmente a este. A doutrina aponta aqui uma exigência menos intensa de prova relativamente à ação de reivindicação, afastando a necessidade da prova diabólica. Na verdade, a declaração da inexistência do direito do réu, a prova do direito deve ser menos rigorosa e exigente do que na ação de reivindicação, bastando formar no tribunal a convicção de verosimilhança de que o direito existe e o autor é o seu titular. As presunções legais de titularidade do direito real têm igualmente na ação negatória um campo de aplicação. A prova de que o direito do réu existe cabe a este. A ser feita essa prova, a ação negatória será improcedente. Já se o réu não consegue provar que tem o direito, a ação deverá proceder. O non liquet probatório funciona sempre contra o réu na ação negatória. A improcedência da ação negatória tem o efeito de declarar a existência do direito do réu. Não se vê outro resultado possível, uma vez que essa improcedência equivale ao reconhecimento do direito do réu.

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A ação confessória: o Direito Romano cometeu a vindicatio servitutis e a vindicatio usufructus – mais tarde uniformizadas na actio confessoria pelos compiladores – à tutela das servidões e do usufruto. O escopo desta actio, uma actio in rem no Direito Romano, era fazer o proprietário confessar que existia um direito de servidão sobre a coisa. O autor tinha de provar a servidão e nas servidões prediais também a propriedade do prédio dominante. Com a actio confessoria o autor conseguiria retomar o exercício do seu direito, ser indemnizado dos seus danos e obter uma garantia contra turbações futuras mediante a cautio amplius non turbando. Na configuração usual da ação confessória, o autor pretende afirmar contra o réu a existência de um direito real menor que este último não aceita. Se o proprietário contesta o usufruto ou a servidão, o que pretende afirmar esse direito pode intentar uma ação confessória com a finalidade de obter a declaração judicial da existência do mesmo. Tal como sucede relativamente à ação negatória, a ação confessória constitui uma ação real típica na ordem jurídica portuguesa, apesar de também a ela se referir a doutrina mais recente. No seu lugar, pode ser intentada uma ação de simples apreciação positiva, uma ação declarativa que segue as regras do processo comum e que tem por fim a declaração da existência de um direito. O fundamento da ação confessória é o direito real do autor; a causa de pedir, o facto jurídico aquisitivo desse direito e o pedido, a declaração da existÊ3ncia do direito real menor do réu. O autor, alegando a titularidade de um direito real (menor), aduz o facto de aquisição do direito que invoca e deduz ao tribunal o pedido de declaração da existência do direito do réu. Como condição de procedência da ação, temos uma única:  O autor seja o titular do direito real invocado. Ao autor cabe provar o ónus probatório da aquisição do direito real; ao réu pertence demonstrar, em contraprova, que esse direito nunca se constituiu ou já se extinguiu. A prova do autor é uma prova semelhante à prova diabólica. Se alguém invoca a titularidade de um direito real sobre a coisa tem de provar o facto aquisitivo respetivo, se necessário reconstituindo a cadeia de titulares anteriores até uma aquisição originária. Há, porém, um limite para essa prova: se o autor reconstitui a cadeia de transmissão (incluindo a sucessão) até ao direito do réu, não tem de provar mais nada. O réu não pode pretender que o autor faça uma prova para além do momento de aquisição do seu próprio direito. A ação confessória é uma ação real no sentido por nós propugnado. Ela diferencia-se da ação de reivindicação por não envolver um pedido de entrega da coisa. Se o autor pede ao tribunal que declare o seu direito e condene o réu a entregar-lhe a coisa, a ação é de reivindicação (artigo 1311.º, n.º1 CC). Na ação confessória, o autor apenas pede a declaração da existência do direito, ou porque já tem a posse da coisa e pretende o reconhecimento de que essa posse coincide com a titularidade do direito a que respeita ou, não tendo a posse, pretende obter a declaração judicial do direito para poder iniciar, de seguida, o seu exercício.

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Secção VII – A Defesa dos Direitos Reais Generalidades: essencial para a caracterização do direito real é a sua defesa, que se exerce através das ações reais, as quais compreendem a ação de reivindicação, a ação confessória, a ação negatória e a ação de demarcação. As ações reais caracterizam-se por serem oponíveis contra qualquer pessoa que viole o direito e têm como causa de pedir o facto de onde emana o direito real (artigo 581.º, n.º4 CPC). A elas não corresponde, no entanto, qualquer forma de processo especial, seguindo os termos do processo comum de declaração. As ações reais não constituem, porém, a única forma de tutela dos direitos reais. Efetivamente, sempre que se verifique simultaneamente com o direito uma situação possessória (posse causal) e a violação do direito corresponda igualmente a uma violação dessa posse, o titular do direito poderá reagir apenas com base na defesa possessória. Nesse caso, as ações possessórias poderão ser colocadas ao servido da defesa do direito real. A violação dos direitos reais poderá dar igualmente origem a ações pessoais, como sucede quando estiver em causa a responsabilidade civil pela violação do direito ou a condenação na cessação ou abstenção de atos lesivos. Poderá ainda recorrer-se a procedimentos cautelares sempre que esteja em causa o risco de lesão do direito, os quais podem ser instaurados previamente ou no decurso da ação respetiva. Finalmente, os direitos reais admitem formas de tutela privada, como sucede com a ação direta (artigos 1314.º e 336.º CC). Restringiremos neste momento a nossa análise às ações reais, referindo sucessivamente a ação de reivindicação, a ação confessória, a ação negatória e a ação de demarcação.

Ação de reivindicação: a ação de reivindicação constitui uma ação declarativa de condenação, sujeita a um regime especial previsto nos artigos 1331.º e seguintes CC. Nos termos do artigo 1311.º, n.º1 CC, o proprietário pode exigir de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, mandando o artigo 1315.º CC estender esse regime a qualquer titular de direitos reais, embora se deva considerar esta extensão restrita aos direitos reais que atribuem a posse da coisa. Só tem assim legitimidade ativa para recorrer à reivindicação quem seja titular de um direito real que atribua a posse da coisa, mas não tenha essa posse. Por sua vez, tem legitimidade passiva para a ação de reivindicação quem seja possuidor ou detentor da coisa, mas não seja titular do correspondente direito real. A ação de reivindicação baseia-se em dois pedidos, sendo o primeiro o de reconhecimento do direito real que assiste ao autor e o segundo, como consequência do mesmo, o de restituição da coisa (artigo 1311.º, n.º1 CC). Uma vez que a ação de reivindicação segue os termos do processo comum, não há obstáculo à cumulação desses pedidos com outros (artigos 555.º, n.º1 e 36.º CPC), designadamente com o pedido de indemnização pelos danos resultantes da privação da coisa. Para que possa proceder a ação de reivindicação, é necessário fazer a prova da titularidade do direito real. Para esse efeito, não basta, porém, a demonstração de uma aquisição derivada do direito, uma vez que nada garante que o autor adquiriu a coisa ao seu legítimo proprietário. Para proceder a ação de reivindicação, é assim necessária a demonstração de uma aquisição originária do direito, como a usucapião, por parte do autor ou de anterior titular do direito, a quem aquele tenha adquirido. Essa prova, que pode ser extremamente difícil em concreto (probatio diabolica) é, no entanto, dispensada quando existem presunções de propriedade, como a derivada da posse (artigo 1268.º, n.º1 CC) ou do registo (artigo 7.º CRPr). Uma vez demonstrada a titularidade do direito real, a defesa na ação de reivindicação é limitada, uma vez que o artigo 1311.º, n.º1 CC estabelece que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão na lei. A recusa da restituição ocorrerá sempre que o possuidor ou detentor for titular de algum direito que legitime essa posse ou detenção, designadamente um direito real ou pessoal de gozo relativo à coisa. Nos termos do artigo 1313.º CC, a ação de reivindicação é imprescritível, podendo consequentemente ser instaurada a todo o tempo, ainda que naturalmente tenha que ser julgada improcedente caso ocorra a aquisição por usucapião a favor de outrem. A ação de reivindicação está sujeita a registo (artigo 3.º, n.º1, alínea a) CRPr). Em consequência, em caso de transmissão da coisa em litígio, a ação não produzirá efeitos em relação ao adquirente, se este tiver registado a sua aquisição antes do registo da ação (artigo 263.º, n.º3 CPC).

Ação confessória: outra ação destinada à defesa dos direitos reais é a ação confessória. Esta ação distingue-se da reivindicação por não envolver um pedido de entrega da coisa, sendo consequentemente uma ação de simples apreciação positiva (artigo 10.º, n.º3, alínea a) CPC). No Direito Romano, a ação confessória era essencialmente destinada à defesa dos direitos reais menores, como a servidão e o usufruto, contra atos do proprietário contrários ao exercício desses direitos. O autor solicitava assim que o proprietário fosse condenado ao reconhecimento do seu direito real menor sobre a coisa, o que levaria a que ele levantasse a oposição colocada ao exercício desse direito. Atualmente, a ação confessória perdeu grande parte da sua utilidade, na medida em que a reivindicação pode ser usada para tutela de qualquer direito real (artigo 1315.º CC), nada impedindo assim que a mesma seja usada em defesa dos direitos reais menores contra os atos do proprietário, sendo até essa a solução preferível para se obter a condenação do proprietário a cessar a oposição ao exercício do direito. Nada impede, no entanto, que o titular do direito real menor continue a recorrer à ação confessória, se achar suficiente a condenação no reconhecimento do seu direito.

Ação negatória: constitui igualmente uma ação real, constitui precisamente o inverso da ação confessória, na medida em que é instaurada pelo proprietário, contra quem invoca ter um direito real sobre um bem seu em ordem a obter a declaração de inexistência desse direito. A ação negatória consiste assim uma ação de simples apreciação negativa (artigo 10.º, n.º3, alínea a) CPC). Como tal, é ao réu que compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artigo 343.º, n.º1 CC).

Ação de demarcação: constitui a ação usada para estabelecer os limites entre os prédios no âmbito das relações de vizinhança (artigos 1353.º e seguintes CC). A ação de demarcação era qualificada como uma ação de arbitramento e sujeita a processo especial pelo artigo 1058.º CPC 1961, mas a revogação dessa disposição leva a que ela siga atualmente a forma de processo comum. O tribunal terá, no entanto, que respeitar o disposto no artigo 1354.º, n.º1 CC, decidindo a ação em conformidade com os títulos de cada uma das partes. Na falta de títulos suficientes, a demarcação é realizada de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova. Se, porém, os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio em partes iguais (artigo 1354.º, n.º2 CC). Se os títulos indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribuir-se-á a falta ou o acréscimo proporcionalmente à parte de cada um (artigo 1354.º, n.º1 CC). A ação de demarcação é imprescritível, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião (artigo 1355.º CC).

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PARTE ESPECIAL

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Título Único – Direitos Reais de Gozo Capítulo IX – A Posse O lugar da posse no Sistema científico de Direitos Reais: a colocação da posse no sistema científico de Direitos Reais constitui provavelmente um dos pontos do programa desta cadeira que mais oscilação tem sofrido ao longo dos anos. Várias têm sido as soluções ensaiadas pelos professores encarregados de a lecionar.

1. Começando por Coimbra: a. Guilherme Moreira, verificamos que este Professor, depois de umas breves considerações iniciais, ensinava a posse, seguindo-se a propriedade. A posse era, pois, o primeiro direito real a ser ensinado e só depois vinha a propriedade. b. Pires de Lima, por sua vez, restringia o programa de Direitos Reais ao estudo da propriedade. Porém, nas Noções Fundamentais De Direito Civil, a posse vem situada no final da exposição de Direitos Reais, depois da propriedade perfeita e das várias propriedades imperfeitas, ou seja, no fim do elenco dos direitos reais. c. Henrique Mesquita segue Guilherme Moreira, inserindo a posse antes da propriedade. d. Mota Pinto fez o mesmo, iniciando o estudo da Parte Especial com a posse. Essa é também a orientação atual de Santos Justo. 2. Em Lisboa, a. José Gabriel Pinto Coelho, no ano letivo de 1922-1923, lecionou a posse depois da propriedade. b. E assim fez também fez José Tavares, no ano letivo 1929-1930, cuja sequência seguida consiste no estudo da propriedade, em primeiro lugar, seguindo a posse, do usufruto, da enfiteuse e das servidões. c. Pedro Martins, o regente que se seguiu a José Tavares, manteve idêntica orientação, ensinando primeiro a propriedade e depois a posse. d. Jaime de Gouveia, diferentemente, seguia a orientação de Guilherme Moreira, e ensinava primeiro a posse e só depois a propriedade. e. Luís Pinto Coelho afastou-se das orientações em voga no seu tempo; este professor defendia pertencer a posse ao conteúdo dos direitos a que respeitava e adquiria deles a respetiva natureza, de direito real se era exercida nos termos de um direito real, de direito de crédito se fosse esse o direito a que respeita. Em conformidade, optava por colocar o ensino da posse no final da enumeração dos direitos reais. No aspeto em que a posse pertence ao conteúdo do direito real viria também a ser secundado por Paulo Cunha. f. Dias Marques, numa posição próxima de Luís Pinto Coelho, também refutaria que a posse tivesse sempre natureza real, afirmando que a posse, atribuindo uma tutela provisória, ora se reporta a direitos reais ora a direitos que não têm essa natureza, sem que acrescente algo ao elenco dos direitos reais. Nesta

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ordem de ideias, à posse era feita uma breve menção no final do elenco dos direitos reais, com omissão do tratamento do regime jurídico respetivo. g. Depois de Dias Marques, Oliveira Ascensão tomaria conta do ensino de Direitos Reais por um período de tempo significativo. A sua conceção de posse distinguese de todas as demais seguidas até hoje em Portugal. Este professor defende que a posse é um direito subjetivo relativo, sem natureza real. Até aqui há alguns pontos de contacto com outros professores, nomeadamente da Faculdade de Direito de Lisboa, que refutam a natureza real da posse em todos os casos, como Luís Pinto Coelho, Paulo Cunha ou Dias Marques. O que o ensino de Oliveira Ascensão tem de original, no entanto, é a colocação da posse como capítulo autónomo antes da parte geral de Direitos Reais e dentro dos capítulos preliminares que dedica à matéria. Parece que a posse fica num limbo, nem na parte geral, nem na parte especial de Direitos Reais, como se fosse exterior a esta disciplina. É a consequência de se retirar à posse natureza real e ter de a enquadrar no ensino deste ramo de Direito. h. Menezes Cordeiro oferece outra perspetiva, incluindo a posse no conteúdo dos direitos reais, uma posição que tem antecedentes em Luís Pinto Coelho e Paulo Cunha. 3. Fora das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, a. Carvalho Fernandes posiciona a posse como o primeiro dos direitos reais de gozo, a que se segue o elenco legal, pela ordem constante do Código Civil, acrescido do direito real de habitação periódica. b. Em Pinto Duarte a posse surge no final da exposição dos vários direitos reais, não apenas dos direitos reais de gozo, mas dos direitos reais de todas as categorias. No seu relatório sobre o ensino de Direitos Reais, Pinto Duarte explica que a figura não tem, na atualidade, um papel central. Nenhum motivo há para começar o ensino dos Direitos Reais pela posse. As razões que historicamente determinam que a posse fosse a raiz e a âncora do direito de propriedade (e, por extensão, dos outros direitos reais) têm estado a desparecer. E, mais à frente, conclui: seria contribuir para criar uma falsa representação do papel da posse antepor o seu ensino ao ensino das demais figuras compreendidas nos direitos reais. 4. Nas ordens jurídicas que nos influenciam de perto encontram-se duas orientações definidas: a. Na Alemanha: seguindo a sistemática do BGB, a doutrina inicia a exposição dos direitos reais com a posse, seguindo-se a dos demais direitos reais de gozo. b. Em Itália: diversamente, a posse surge no final da exposição dos direitos reais de gozo. Na verdade, esta diferente arrumação da posse, mais do que um antagonismo fundado na afirmação de uma diferente natureza da posse, pode filiar-se simplesmente na sistematização legal. O BGB inicia o Livro III (Direitos Reais) com a posse, enquanto que no Codice Civile a posse conclui a regulação normativa de Direitos Reais. Pensamos, porém, que esta diferença radica numa razão mais funda. Na natureza provisória que a posse confere ao possuidor. Mais sensível a este aspeto da tutela possessória, o legislador italiano terá remetido a posse para o fim da regulação de Direitos Reais. 5. José Alberto Vieira: nós entendemos que a posse constitui um direito distinto daquele a que se reporta e não meramente uma parte do conteúdo deste último. Enquanto tal,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pode ter uma natureza diversa dele. Também julgamos que, quando se refere a um direito real de gozo, a posse, sendo embora um direito distinto deste, tem a natureza de direito real (de gozo). Porquanto o regime jurídico da posse (artigo 1251.º e seguintes CC) respeita à posse exercida nos termos de um direito real de gozo, a sua inserção sistemática é a dos direitos reais de gozo. E é aí que também colocamos a exposição do regime jurídico respetivo. Subsiste, porém, a questão de saber se a posse deve ser lecionada no princípio dos direitos reais de gozo, antes da propriedade, ou no fim, como faz uma boa parte dos autores italianos, seguindo a ordenação do seu Código Civil. Em abstrato, qualquer das duas orientações é aceitável. A posse, representando uma ordenação provisória de uma coisa corpórea a uma pessoa, cede quando em conflito com o direito real de gozo, levando o titular deste a triunfar sobre o possuidor. A atribuição definitiva da coisa prevalece sempre sobre a atribuição provisória dada pela posse. Nesta ordem de ideias, pode-se justificar que a posse fique ordenada no fim da exposição dos direitos reais de gozo, como um direito real mais fraco ou enfraquecido, como afirmam alguns autores italianos. A mesma ideia de tutela provisória pode, porém, fundamentar igualmente o posicionamento do regime da pessoa antes dos demais direitos reais, dentro da lógica que a tutela provisória precede a definitiva, embora esta prevaleça quando a posse conflitue com um direito real de gozo. Por outro lado, o facto de a quase totalidade dos direitos reais de gozo, com exceção das servidões negativas, requerer a posse da coisa para o seu exercício faz desta um prius relativamente ao regime daqueles. O que parece aconselhar que seja regulada antes deles, como aconteceu no Direito alemão e no Direito português. Mantemos, assim, a orientação tradicional do nosso Direito, iniciando a exposição da parte especial de Direitos Reais com a posse.

Antecedentes históricos da posse moderna: a posse é um produto histórico do Direito Romano. Os romanos desenvolveram a ideia de posse para descrever a situação de alguém que tem o poder de facto sobre uma coisa, o senhorio sobre ela, a sua dominação, num sentido físico ou material, independentemente da existência de título de aquisição, quer dizer, da titularidade de um direito real sobre a coisa, e mesmo que essa situação de facto haja sido criada ilicitamente, por exemplo, através de furto. Para os romanos, sempre foi claro que a posse é distinta da propriedade e não se confunde com ela: «separata esse debet possessio a proprietate» ou «nihil commune habet possessio cum proprietate». Pode-se ser proprietário e não ter posse, e vice-versa. Em todo o caso, a posse é concebida como imagem exterior da propriedade, sem se confundir, no entanto, com ela. O poder de facto de alguém sobre uma coisa não conferia um estatuto unitário no Direito Romano. Na realidade, é possível distinguir a:

1. Possessio naturalis: também denominada possessio corpore, não é uma verdadeira posse, mas detenção, falando-se, por isso, em naturaliter possidere ou detinere. O detentor também tem o elemento de facto que está na base da posse, no entanto, e segundo a maioria dos romanistas, não tem a intenção de exercer um direito próprio, o animus possidendi, atuando em nome e por conta de outra pessoa, que é verdadeira possuidora. As fontes não são, contudo, inteiramente unívocas na referência à possessio

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão naturalis, que em alguns casos parece indicar igualmente a posse e não somente a detenção. 2. Possessio: a simples possessio é a posse, por contraposição à detenção; no Direito Romano ela envolve um elemento material, que os romanos denominavam possidere corpore, e que surge posteriormente designado por corpus, numa evolução terminologicamente incorreta, mas que se tornou usual na doutrina, e – pelo menos segundo a grande maioria dos romanistas – um elemento subjetivo, o animus possidendi ou possidentis, possessoris, affectio possidendi, propositum possidendi, animus rem sibi habendi, animus domini, etc. Quem tem o corpus possidere sem o animus possidendi é mero detentor. A possessio atribui ao possuidor a tutela interdital, uma forma de tutela admitida pelo pretor para defender a posse contra atos turbativos ou de esbulho praticados por terceiros. Porque justamente permite a defesa por interditos, a possessio aparece designada nas fontes romanas como possessio ad interdicta. 3. Possessio civilis: finalmente, esta (possessio civilis, civiliter, iure civilu possidere ou civilis possessio) é, para utilizar uma expressão de Sanfilippo, uma posse qualificada, porquanto se trata de uma posse fundada numa iusta causa, isto é, um facto reconhecido pelo ius civile para transferir a propriedade, independentemente da validade desse facto. No Direito Romano clássico, a possessio civilis era um verdadeiro direito, ao contrário da possessio, e dava azo a uma proteção possessória mediante a actio Publiciana, concedida pelo pretor. A possessio civilis é a posse requerida por lei para a aquisição da propriedade por usucapião. Mantida por um certo período de tempo, esta posse facultava ao possuidor a aquisição do dominium. Daí ser, por vezes, conhecida por possessio ad usucapionem. A origem histórica da posse, não obstante as incertezas, parece fundar-se em dois troncos:

1. O primeiro, no antigo usus da Roma primitiva, que recebe referência expressa na Lei das XII Tábuas, a propósito do prazo para a usucapio. Durante o Direito Romano antigo, o usus, mais tarde denominado habere, reflete o estado de facto semelhante, mas não coincidente com esta. 2. O segundo tronco radica na concessão de terras agrícolas do Estado (ager publicus populi Romani) aos paterfamilias, contra uma renda ou a título gratuito. Ao paterfamilias não era atribuído o dominium sobre as terras do ager publicus, mas sima a possessio da coisa, que possivelmente cumulava com a sua possessio sobre terras do domínio privado. A possesio do ager publicus podia ser revogada pela autoridade pública a todo o tempo, tendo, no entanto, a sua defesa garantida contra a interferência de terceiros por meio de providências decretadas pelo pretor: os interditos (possessio ad interdicta). Com efeito, se bem que de inicio o possessor se pudesse apenas defender pelos seus próprios meios, com ot empo foram sendo criados pelo pretor vários interdicta, os quais permitiam uma defesa judicial contra o terceiro agressor da possessio. A vindicatio e a contravindicatio não eram reconhecidas ao possuidor. O alargamento posterior da tutela interdital fora da possessio do ager publicus, às situações de facto correspondentes ao antigo usus ou habere, operou a consolidação da possessio, agora tratada unitariamente. A possessio designa, assim, no Direito Romano a situação de facto por contraposição à situação de Direito, a situação em que se encontra o que está investido no senhorio sobre a coisa defronte do dominium ou de outro direito, que pode ou não estar na titularidade do possessor.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

A noção legal de posse: tem sido notado que definir a posse é uma das tarefas mais árduas do Direito. Pietro Bonfante afirma mesmo que a noção de posse é a mais controvertida do Direito. O Código Civil português inicia o Livro III, dedicado aos Direitos Reais, com a noção de posse. Preceitua o artigo 1251.º CC que «posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real». À formulação escolhida pelo legislador português, têm sido dirigidas várias críticas. Por nós, acentuamos três:

1. Ao nível técnico jurídico, a utilização do termo poder no artigo 1251.º CC acarreta uma considerável ambiguidade. Na dogmática jurídica, o poder consiste numa situação jurídica ativa menos extensa do que o direito subjetivo, do qual se distingue. Se o legislador se quis referir a ele na sua aceção técnica, a opção não foi certamente feliz, pois a posse engloba vários poderes e não um só. E a observação não deixa de ser igualmente verdadeira se se vê na posse uma mera situação de facto, pois esta não pode ser aludida através de um termo que exprime uma situação jurídica. 2. Ao mencionar que a posse é um poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, o artigo 1251.º CC transmite o sentido inexato que a posse pressupõe um comportamento ativo do possuidor, quando é certo que o artigo 1257.º, n.º1, parte final CC dispõe claramente que há posse desde que o possuidor posse atuar materialmente sobre a coisa quando queira, por conseguinte, mesmo que não atue. 3. A atuação por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real pode não revelar qualquer posse. A disposição da propriedade ou de outro direito real de gozo a favor de um terceiro, mediante uma compra e venda, uma doação ou testamento, não pressupõe a posse e pode muito vem dar-se sem que ela exista a favor do disponente. Mais do que avançar com uma noção, o legislador deveria ter-se concentrado com os aspetos atinentes ao regime jurídico da posse, deixando para a doutrina o trabalho de construção dogmática desta figura.

A autonomia da posse: na linguagem corrente e na conceção social, a posse vem frequentemente confundida com a propriedade, numa indistinção em que ambas surgem como sinónimas da mesma realidade jurídica. Com efeito, é comum a alusão à propriedade como posse e ao proprietário como possuidor, mesmo sem contar com outros usos do termo (tomada de posse, posse do cargo, posse de estado, posse do direito, etc.) que nada têm a ver com o significado que a posse assume em Direitos Reais. Na perspetiva de Direitos Reais, porém, essa confusão não deve ser feita. Dentro de um plano estritamente jurídico, a posse e a propriedade são realidades diferenciadas. Isto sucede, com clareza, desde o Direito Romano: separata esse debet possessio a proprietate ou nihil commune habet possessio cum proprietate. Nas palavras de Bonfante, para os antigos a posse é a imago dominii, é a presunção da propriedade, mas não se confunde com ela. O Direito moderno manteve esta separação entre a posse e a propriedade, admitindo não só um diferente regime jurídico para cada uma destas realidades, mas a possibilidade de dissociação entre a propriedade e a posse, investidas em pessoas diferentes. No Direito Português, essa separação era clara já no Código Civil de Seabra e acentuou.se com o novo Código Civil de 1966, que trata a posse no Título I do Livro III, artigos 1251.º a 1301.º, CC,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão e a propriedade no Título II do mesmo Livro. A autonomia da posse face à propriedade radica igualmente na circunstância de a posse se poder referir a outros direitos para além da propriedade, direitos reais de gozo e direitos de outra natureza, nomeadamente, pessoais, como veremos adiante. A isto acresce, que a posse pode existir sem que o direito a que se refere esteja validamente constituído, isto é, sem que haja um direito que lhe corresponda. A posse formal não deixa de ser uma verdadeira posse. A autonomia da posse defronte dos outros direitos reais de gozo, e, de um modo geral, de todos os direitos a que se pode reportar, é uma herança da nossa história, da receção do Direito Romano e da manutenção dos seus quadros dogmáticos até à atualidade. Sendo a posse independente do direito real ou, como nós preferimos dizer, sendo a posse outro direito real de gozo ao lado dos restantes, tem um conteúdo singular que, no confronto com os outros direitos reais, conforma o tipo de direito real em que se traduz. A autonomia da posse explica que os seus factos constitutivos, translativos, modificativos e extintivos sejam específicos, diversos dos outros direitos reais, e que à posse o Direito associe a produção de efeitos jurídicos próprios (presunção de titularidade do direito, fruição, benfeitorias, tutela possessória, usucapião, etc.). A autonomia da posse não se compatibiliza com a ideia de que a ela integra o conteúdo do direito real. Apesar dos nomes ilustres que durante o século XX defenderam esta posição em Portugal, Luís Pinto Coelho, Paulo Cunha, Menezes Cordeiro, ela não traduz a separação que desde a sua origem marca o regime da posse no confronto com o direito real nos termos do qual se exerce. A crítica de Jhering a este entendimento, feita à mais de cem anos, permanece hoje inteiramente válida. Acrescentamoslhe algumas observações mais. Com efeito, se o possuidor não é titular do direito real a que a posse se refere (posse formal), a posse é conteúdo de que direito? Se, inversamente, o titular do direito real de gozo não tem posse, poderá dizer-se que ao conteúdo do seu direito pertence a posse? E como explicar factos constitutivos translativos e extintivos (a par de outros efeitos) diferentes que respeitam aos direitos que são exteriorizados através dela? Por exemplo, a posse transmite-se por tradição (incluindo a traditio brevi manu) e constituto possessório, mas a propriedade não se transmite por nenhum destes modos; quer dizer, que uma parte do conteúdo do direito real se adquire de uma maneira e outra (a posse) doutra? E o que sucede quando a aquisição do direito real se dá tendo a posse como pressuposto, na usucapião ou na ocupação, por exemplo? Já Jhering demonstrou que o momento da posse nestes factos não permite confundi-la com o direito (a propriedade ou outro) cuja aquisição permite. Como dissemos, a posse constitui um direito distinto do direito exteriorizado no seu exercício. Se o possuidor tem simultaneamente a titularidade do direito real, então na mesma esfera jurídica reúnem-se dois direitos: a posse e o direito real a que ela se refere; caso a posse surja dissociada do direito real, ao possuidor apenas cabe a posse. De qualquer modo, a posse nunca integra o conteúdo do direito que exterioriza no comportamento do possuidor.

A função da posse: Jhering, em estudo dedicado ao tema, classifica as teorias que buscam o fundamento da posse em:  Relativas: buscam o fundamento da posse no exterior dela. Dentro destas, distingue quatro: o As que proíbem a violência, defendidas por Savigny (a violação da posse é um delito) e Rudorff (a violação da posse consiste numa violação da ordem jurídica); o A que sustenta que ninguém pode molestar a posição de outro sem ter um direito prevalente (Thibaut); o A que defende que o possuidor, que tem um direito à posse, não pode ser molestado até demonstração em contrario (Röber);

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão o As teorias que explicam a função da posse como defesa da propriedade; o Como possível propriedade (opinião antiga); o Como inicio da propriedade (Gans); o No interesse da necessária complementação da defesa da propriedade (Jhering).  Absolutas: procuram o fundamento da posse no interior da posse. Dentro destas, a posse seria tuteladas porque: o Ela seria a vontade na sua incorporação fática (Gans, Puchta, Bruns); o Permitiria a defesa da propriedade através do controlo fático da coisa (Stahl). A doutrina moderna tem encontrado diferentes funções para a posse. Para alguns, a posse tem uma função de publicidade e de legitimação (Hans Stoll). Para outros tem uma função de proteção e publicidade (Schap/Schur) ou só de publicidade (Eckert). Na versão mais corrente, porém, a posse tem uma

1. Função de proteção: revela-se através das ações possessórias e da ação de indemnização pela violação da posse. O possuidor pode reagir contra ameaças, turbações e esbulho da coisa possuída e tem direito a uma reparação dos prejuízos contra o terceiro violador da posse. 2. Função de conservação (continuidade): revela-se em mais do que um aspeto: a. Na tutela atribuída ao possuidor contra quem constituiu o direito a seu favor. O locatário, o comodatário, o depositário e o parceiro pensador podem usar as ações possessórias mesmo contra o locador, o comodante, o depositante ou o proprietário. b. Fortalecimento da posição do titular de direitos pessoais de gozo. A posse reforça a tutela destes direitos defronte de terceiros. c. Na usucapião, ou seja, na consolidação do possuidor do direito real de gozo exteriorizado através da posse. 3. Função de publicidade: liga-se à presunção de titularidade do direito associada à posse e, nalguns sistemas jurídicos, que não o português, à tutela da boa é e à transmissão de direitos reais. Em Portugal,

1. Menezes Cordeiro defendeu recentemente que a posse tem duas funções: a. A tutela dominial: a posse defende a propriedade ou o direito base através das presunções legais e das ações possessórias; e b. A tutela da confiança: seriam protegidas a confiança do possuidor, que não será molestado, e de terceiros que, com referência aos bens possuídos, terão, pelo menos, um interlocutor provisório. 2. Pinto Duarte: por sua vez, aponta três funções: a. A defesa da paz pública; b. O valor da continuidade; e c. A proteção da confiança. Num tema tão controverso e difícil, nenhuma teoria sobre a função da posse abarca com certeza toda a complexidade do instituto nem pode ter a pretensão de encontrar a explicação definitiva para o problema.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

3. Quanto a nós, não há uma única função da posse. A posse desempenha várias funções e só a ponderação de todas elas transmite uma imagem real do papel que a posse tem no ordenamento jurídico. a. A primeira função da posse é a de atribuir provisoriamente um direito a quem tem o controlo material da coisa corpórea. É uma ideia que encontramos em autores estrangeiros, como Heck, Wolff/Raiser, Trabucchi e em autores portugueses, como Dias Marques, Henrique Mesquita e Santos Justo, embora sem grandes desenvolvimentos. Paulo Cunha fala da posse como um direito de proteção provisória, uma ideia que está na linha dos autores citados. A atribuição diz-se provisória justamente porque se apresenta resolúvel em alguns casos. Quando a fosse é formal e o proprietário, ou outro titular de direito real de gozo, faz valer o seu direito contra o possuidor, nomeadamente, através da reivindicação, a posse cede no confronto com a propriedade (ou o direito real de gozo) e vem a extinguir-se. O possuidor formal perde, então, a sua posição para o titular do direito real. O possuidor formal só conserva a sua posse enquanto a titularidade do direito real de gozo não é demonstrada (artigo 1278.º, n.º1 CC). Isso é igualmente verdade para o possuidor causal que não invoca o seu direito no confronto com outro titular de direito real de gozo. Havendo conflito entre a posse e o direito real, a primeira cederá sempre a favor do segundo. O direito real constitui uma afetação definitiva da coisa ao seu titular, enquanto a posse confere apenas uma atribuição provisória. Esta atribuição provisória, contudo, enquanto dura, representa em si um direito subjetivo e implica, como sucede relativamente a todos os direitos subjetivos, uma proibição de ingerência para terceiros, podendo o possuidor defender a sua posição com recurso aos esquemas normativos de tutela da posse. b. Neste sentido, pode-se dizer que a posse desempenha igualmente uma função de prevenção da violência ou de garantia da paz social, pois todos sabem que a posse constitui uma afetação jurídica da coisa ao possuidor e que uma ofensa a ela constitui uma ação ilícita reprimida pela ordem jurídica. A atribuição provisória de um direito, a posse, a quem tem o controlo material da coisa nos termos de um direito (propriedade, usufruto ou outro), faz-se com total independência da titularidade deste direito. Por conseguinte, também nos casos de posse formal. Por isso, julgamos que as teses que veem na função da posse uma função de proteção do direito nos termos do qual o possuidor atua ou, muito mais restritivamente, de defesa da propriedade, não se articulam bem com o facto do reconhecimento da posse não estar em nada dependente da prova da titularidade de um direito de base. Se a tutela da posse facilita, em alguns casos, a defesa do direito nos termos do qual ela se exerce, esse é somente um efeito indireto decorrente da afetação jurídica em que a posse consiste. A proteção possessória ocorre, no entanto, mesmo que o possuidor não seja titular do direito a que se refere a sua posse. Uma atribuição provisória da coisa a um sujeito, nos termos de um direito real, implicando a proibição jurídica de ingerência de terceiros, para além de um conteúdo próprio de aproveitamento, seria talvez explicação suficiente para a função da posse. De resto, ninguém pergunta pela função dos restantes direitos reais, aceitando-se que eles permitem, em maior ou menor medida, o aproveitamento da coisa; porque razão se faz isso para a posse? A resposta é que a posse tem uma relação

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão particular com os restantes direitos reais de gozo, sendo um pressuposto fático de aproveitamento do conteúdo integral de praticamente todos eles. O gozo de uma coisa supõe quase sempre que a coisa esteja em poder do titular do direito. Ora, é a posse da coisa que assegura ao titular do direito de gozo o controlo material sobre ela. Sem posse, fica o poder de disposição jurídica do direito, quando seja normativamente consagrado, mas não o uso e a fruição da coisa, que só a posse garante. Por isso, também o titular do direito real de gozo carece da posse para o exercer quanto a uma larga fatia do seu conteúdo. c. Por outro lado, o controlo material da coisa arrasta consigo uma aparência de titularidade de um direito sobre ela. Alguns ordenamentos aproveitam esta aparência que a posse gera para lhe associar um efeito de legitimação negocial, de transmissão do direito real e mesmo de tutela de terceiro de boa fé. O ordenamento português não vai tão longe, pois o princípio posse vale título, consagrado em Itália, em França e na Alemanha, não foi adotado pelo Direito português, mas também ele permite fundar, com alcance menor é certo, uma função de publicidade da posse. Esta resulta da presunção da titularidade do direito real nos termos do qual a posse se exerce (artigo 1268.º, n.º1 CC). O possuidor, presume a lei, é titular do direito a que a sua posse se reporta. A função publicitária da posse desenvolve-se, sobretudo, para as coisas móveis, uma vez que quanto aos imóveis existe um sistema organizado de registo predial que assegura a publicidade respetiva e que consagra também uma presunção de titularidade (artigo 7.º CRPr). d. Por último, a posse tem uma função de conservação, como diz a mais autorizada doutrina alemã, ou de consolidação, como preferimos dizer. Esta função de consolidação fundamenta-se, a nosso ver, na usucapião. Quando o possuidor não é titular do direito real de gozo exteriorizado pela posse, o ordenamento faculta-lhe – verificados os requisitos legais – a aquisição desse direito, com preterição, em última análise, do proprietário da coisa. O ordenamento consegue, assim, que a exteriorização do direito coincida com a atribuição jurídica do mesmo ao possuidor. Em jeito de síntese, e conforme o exposto, diremos que a posse desempenha quatro funções principais: a. De atribuição provisória do direito nos termos do qual é exercida; b. De garantia da paz social, através da prevenção da violência; c. De publicidade; d. De consolidação.

A posse como exteriorização de um direito: toda a posse constitui a exteriorização de um direito. Pode-se discutir se esse direito tem de ser um direito real de gozo ou se pode ser um direito de outra natureza, mas a posse exerce-se sempre nos termos de um direito, que exterioriza. A ligação da posse a um direito retira-se de vários preceitos legais, desde logo, do artigo 1251.º CC, onde se dispõe que existe posse quando alguém atua por forma corresponder ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Essa ligação inicia-se logo no momento da constituição da posse e prolonga-se ao longo de todo o período em que a posse é mantida. Com efeito, o artigo 1263.º, alínea a) CC, preceitua que a posse se adquire pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito e o artigo 1257.º, n.º1 CC, estabelece que a posse se mantém enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar. Se a ligação da posse à exteriorização

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão de um direito vem a ser quebrada, a posse extingue-se. É o que resulta da alínea a) do artigo 1253.º CC. Este artigo, que vem usualmente interpretado no sentido de consagrar a doutrina subjetivista da posse com a alusão ao animus possessório, tem, na verdade, um sentido bem diferente. A posse passa a detenção quando aquele que tem a coisa em seu poder esclarece para a comunidade que não atua sobre a coisa nos termos de um direito próprio. Porquanto a posse constitui a exteriorização de um direito sobre uma coisa, se aquele que tem a coisa em seu poder deixa de atuar como titular de um direito a ordem jurídica nega-lhe a posse, atribuindo-lhe o estatuto de detentor (artigo 1253.º, alínea a) CC). O efeito presuntivo da titularidade do direito, a tutela da posse, a possibilidade de usucapião todos estes efeitos repousam no pressuposto que o possuidor age nos termos de um direito. Quando a ligação da posse à exteriorização do direito não existe, o ordenamento recusa a posse, qualificando a situação de mera detenção.

Os elementos da posse. As teorias subjetivistas e objetivistas da posse e a solução portuguesa: a exposição sobre os elementos da posse encontra-se profundamente marcada pela discussão entre dois vultos da civilística europeia do século XIX: Savigny e Jhering. Cada um destes eminentes autores ficou ligado a uma das duas principais doutrinas sobre os elementos da posse. A Savigny ligou-se a teoria subjetivista da posse e a Jhering a teoria objetivista7. De certo modo, pelo menos no que toca à doutrina subjetivista da posse, a relevância do animus para a posse já era bem conhecida muito antes dos estudos de Savigny – nomeadamente, para distinção de situações que não obtinham o tratamento jurídico da posse – não sendo uma criação do próprio Savigny. Anteriormente a ele, Donelus escrevera: «is possidet qui rem tenet domini affectu, id est qui pro sua, seu tamquam suam tenet, eique ita insitit». É, no entanto, Savigny que consolida este ensinamento e o projeta com a força do seu prestigio. Savigny começa por afirmar que por posse de uma coisa todos pensam o estado no qual não é possível somente a influência física própria sobre a coisa, mas em que também toda a influência alheia pode ser evitada. E, mais à frente, esclarece que este estado, no qual a posse se baseia, tem o nome de detenção. A detenção não seria um conceito jurídico, mas nela residiria o exercício da propriedade e o estado fático correspondente a este direito. Segundo Savigny, a detenção, só por si, não equivaleria a posse. Ela seria insuficiente para esse efeito. Para que alguém seja possuidor, não pode ter uma simples detenção, deve também querer tê-la. A esta vontade de detenção Savigny começa por chamar animus possidendi. Fazendo luz sobre o que entende por animus possidendi, Savigny esclarece, num passo depois fortemente criticado, que este deve ser explicado como animus domini ou animus sibi habendi. Deste modo, só pode ser possuidor o que, para além da detenção, tiver o animus, a intenção de ser proprietário, mesmo que não o seja e o saiba. Nesta construção, a posse desdobra-se em dois elementos:  O elemento físico da relação material entre um sujeito e uma coisa, que Savigny denominava detenção e a doutrina posterior praticamente universalizou sob a referência ao corpus; e  O animus, para aquele autor, a vontade de atuar como proprietário, ou a vontade de atuar como titular de um direito real de gozo, na interpretação

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Relembramos que as teorias em confronto se encontram historicamente limitadas pelos textos do Direito Romano, sobre o qual versam e para o qual intentam dar uma interpretação.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que veio a tornar-se dominante. Faltando o animus, a posse não existe, há mera detenção; e isto mesmo que o sujeito tenha o controlo físico da coisa. Altamente controversa na redução do animus à propriedade, muito discutível defronte de direitos que no Direito Romano eram tidos como suscetíveis de posse (o credor pignoratício, o precarista e o sequestratário), e na construção de uma posse derivada, para evitar a crítica que lhe foi movida de limitar a posse (e o animus) à propriedade, a teoria subjetivista de Savigny tornou-se a doutrina clássica da posse. Mesmo depois da aparição da teoria objetivista pela pena de Jhering, a teoria subjetivista, com algumas revisões, continuou sendo vista como a teoria ortodoxa da posse. Reduzindo a exposição subjetivista a uma fórmula:

216 Teoria subjetivista (Savigny)

Posse = a + x + c Detenção = a + c a – elemento intencional comum a toda a situação de posse; x – elemento que deve juntar-se à vontade, para que se possa falar em animus domini c - corpus A teoria objetivista deve-se a Jhering. Este autor desenvolve a teoria da posse com base num elemento real e noutro suposto: o corpus possessório e a intenção inerente à ação do possuidor. Havendo corpus, há, em princípio, posse, a não ser que a lei descaracterize a situação para mera detenção. O animus está subjacente à ação do possuidor. Ninguém age sem ter vontade. Por isso, quem tem o corpus possessório terá também vontade de atuar como titular de um direito real. Simplesmente, o animus ou vontade não releva como elemento autónomo da posse, ele integra o próprio corpus possessório. Este, só por si, é suficiente para fundamentar a posse e só não haverá posse se existir uma norma jurídica que qualifique a situação como mera detenção. Numa fórmula objetivista: Teoria objetivista (Jhering)

Posse = a + x - n Detenção = c - n a – elemento intencional comum a toda a situação de posse; x – elemento que deve juntar-se à vontade, para que se possa falar em animus domini

Caracterização do corpus possessório: c – corpus

n – norma jurídica que qualifica a situação como detenção. Nesta fórmula, segundo Jhering, n é a causa da detenção, a norma legal que descaracteriza a posse para mera detenção. As duas teorias exprimem uma visão muito diferente da posse. Enquanto a teoria subjetivista deixa a decisão sobre a posse com o possuidor, na perscrutação da sua vontade relativamente à situação, numa estranha renúncia à ordenação jurídica pelo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Direito, a teoria objetivista atribui à lei o critério de aferição de uma situação como posse ou detenção. Sempre que um sujeito tenha a coisa em seu poder, existe posse, a não ser que, por força de uma norma legal concreta, a posse lhe seja negada. O subjetivismo de Savigny foi sujeita a uma revisão tendente a eliminar a redução do animus à propriedade, que não se moldava ao Direito Romano clássico, que já conhecia a posse relativamente a outros direitos (do credor pignoratício, do precarista e do sequestratário), e, sobretudo, aos Direitos modernos, que reconheciam a posse a outros titulares de direitos reais de gozo, o que não se harmonizava com o entendimento de uma vontade de posse limitada à propriedade (animus domini). Curiosamente, não obstante ter tido lugar na Alemanha, a polémica doutrinária sobre os elementos da posse não marcaria a doutrina alemã. Os ecos da discussão são hoje praticamente ignorados pelos jusrealistas alemães, que apenas referem o problema da intenção a propósito da aquisição da posse por apreensão material da coisa. É no espaço latino, particularmente, italiano, francês e português que a controvérsia subjetivismo/objetivismo em matéria de posse surge desenvolvida e ganha dimensão. Em Portugal, a doutrina subjetivista teve defensores mesmo antes do Código de Seabra.

1. Mello Freire: definia a posse como a naturalis facultas rei insistendi animo sibi habendi; e 2. Lobão como detentio cum animo dominantes seu affectu dominii; 3. Enquanto Corrêa Telles distinguia a posse da detenção com fundamento na intenção. A intenção, segundo estes autores, é referida ao direito de propriedade, num desenvolvimento inteiramente coincidente com a abordagem de Savigny.

4. Já segundo Coelho da Rocha, para se dar posse no sentido jurídico, é necessário, além da detenção, o ânimo de ter, ou dispor da coisa como própria; ou, ao menos, de dispor dela em seu próprio nome, ainda que a propriedade seja de outrem, numa diferente interpretação do elemento intenciona, que alarga a outros direitos para além da propriedade. O Código de Seabra regulou a posse sem qualquer menção ao animus. É conhecida a aversão do Visconde de Seabra ao subjetivismo, do qual dizia «só pode servir para dar logar a disputas». Todas as tentativas de consagrar no projeto desse Código a referência ao animus possidendi foram rejeitadas. A ausência de qualquer menção ao animus não logrou evitar o surgimento de interpretações de cariz subjetivista, num desenvolvimento interpretativo que o Código de Seabra não facultava. A influencia estrangeira, muito marcada pela ortodoxia possessória baseada em Savigny, fez-se sentir de um modo poderoso entre nós. A doutrina italiana e a doutrina francesa tinham absorvido a polémica entre Savigny e Jhering e penetraram nos nossos civilistas, influenciando-os no sentido da corrente dominante (a subjetivista).

5. O primeiro estudo publicado entre nós sobre a posse, da autoria de Manuel Rodrigues, veio advogar o subjetivismo em matéria possessória: «a posse é constituída por dois elementos: o corpus e o animus possidendi». O autor entende, porém, o animus no sentido da teoria da causa e concebe-o para os direitos reais de gozo e para outros direitos, nomeadamente, de crédito. 6. Posteriormente, Pires de Lima veio defender a teoria subjetivista. A ela aderiram, em Coimbra, Mota Pinto, Orlando de Carvalho, Henrique Mesquita e Santos Justo. Em Lisboa, José Tavares, Dias Marques e, num primeiro momento, Oliveira Ascensão, também eles ensinaram a posse numa perspetiva subjetivista. A esta perspetiva,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão juntaram-se Paula Costa e Silva e Rui Pinto. Fora do ensino universitário em Lisboa e Coimbra, veja-se também Cunha Gonçalves. 7. Adotada no Código Civil Anotado de Pires de Lima/Antunes Varela, durante muitos anos uma obra de larga influencia na jurisprudência, a teoria subjetivista recebeu uma adesão maciça dos tribunais portugueses, numa tendência que até hoje se mantém. 8. O panorama começaria, aos poucos, a alterar-se na década de setenta do século XX, com a defesa da conceção objetivista da posse, primeiro com Menezes Cordeiro e depois com Oliveira Ascensão, que inverteu a sua primeira posição sobre o tema. Carvalho Fernandes e Menezes Leitão viriam a sufragar igualmente a doutrina objetivista da posse. 9. Mais recentemente, Menezes Cordeiro, revendo a sua posição anterior, defendeu que o sistema português da posse é um sistema misto. A contraposição das alíneas b) e c) do artigo 1253.º CC, por um lado, com a alínea a), do mesmo preceito, por outro, conduziria fatalmente a esse resultado. Conquanto largamente minoritário, o objetivismo desenvolver criticas decisivas ao subjetivismo, que ainda hoje permanecem sem resposta:  A primeira dificuldade do subjetivismo reside logo na própria densificação do animus. Savigny, como sabemos, baseou-se nos textos romanos para afirmar que a posse é a exteriorização da propriedade e, por isso, a intenção do possuidor seria a de atuar como proprietário (animus domini ou animus sibi habendi). Esta tese é provavelmente inexata mesmo defronte dos dados do Direito Romano (nomeadamente, a partir do Direito justinaneu) e, não obstante numerosas adesões, tendeu a ser superada por interpretações mais latas do elemento intencional, denominado muitas vezes simplesmente como animus possidendi para abranger outros direitos, uma expressão redundante e fundamentalmente imprecisa, porque reporta-se a um direito exteriorizado através da posse, não à posse em si mesma.  A segunda dificuldade da teoria subjetivista encontra-se em definir como se apura a intenção do possuidor. Trata-se de uma vontade psicológica, a procurar no íntimo do possuidor, uma vontade declarada por este ou, anda, uma vontade retirada por interpretação do título do possuidor (teoria da causa)? Perante os obstáculos probatórios resultantes da impossibilidade de perscrutar a consciência do possuidor – nenhuma pessoa está em condições de saber qual é a vontade de outra no seu interior – ou de encontrar na prática corrente do sistema uma declaração do possuidor sobre a intenção com que atua sobre a coisa buscam-se formas expeditas de fundamentar a existência hipotética do animus. Uma delas consiste em extrair do corpus o animus possessório; o primeiro faria presumir o segundo. Trata-se de uma via ensaiada pela jurisprudência portuguesa e presente em Jhering. Alguns defensores da teoria subjetivista da posse procuram fundamentar o animus do possuidor com o título deste (o testamento, o contrato de compra e venda, de doação, etc.). Todavia, as doutrinas que retiram o animus do título são verdadeiramente doutrinas objetivistas e não subjetivistas, na medida em que a vontade não é deduzida da pessoa do possuidor, mas de um facto jurídico exterior a ela.  Uma terceira dificuldade da teoria subjetivista da posse liga-se aos casos em que o ordenamento jurídico reconhece a posse a incapazes. O Código Civil português não nega a posse ao menor ou àquele que padece de uma doença ou qualquer outro fator inibidor da vontade que impossibilite a consciência da sua atuação. Pode, decerto, buscar-se no

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão representante legal a vontade que o representado não está em condições de formular em termos que juridicamente sejam imputáveis a este último. Mas, quanto ao incapaz de facto, cuja incapacidade não está judicialmente declarada e não tem, por conseguinte, representante legal, como encontrar uma intenção que sirva ao Direito como animus possidendi?  Uma quarta dificuldade da teoria subjetivista revela-se quando se descobre que, afinal, a posse pode existir mesmo contra a vontade do possuidor. Havendo corpus possessório, estado, por conseguinte, a coisa debaixo do controlo material de alguém, e não ocorrendo nenhum dos casos em que a lei descaracteriza a posse para detenção, a posse existe, mesmo que o possuidor não tenha a intenção de exercer um direito sobre ela, contando que essa intenção não seja declarada.  A quinta dificuldade advém do facto de a lei poder recusar a posse a quem tem o animus de exercer um direito real de gozo sobre a coisa e tem a coisa em seu poder (corpus). Quer dizer, mesmo com o animus do sujeito, pode não haver posse. As hipóteses das alíneas b) e c) do artigo 1253.º CC são inequívocas quanto a este aspeto. Os dois últimos argumentos mostram com particular nitidez que não é aquele que está investido no controlo material que decide sobre a posse, mas sim o Direito. Seria, aliás, estranho que a ordem jurídica renunciasse à afetação jurídica de uma coisa através da pose, depositando esta na vontade arbitrária do interessado e deixando a mesma flutuar ao sabor dos seus humores. Como Jhering tão eloquentemente chamou à atenção, alguém podia adormecer como possuidor, levantar-se como detentor e passar o dia a transitar da posse para a detenção consoante os impulsos interiores da sua vontade! OS argumentos avançados constituem criticas profundas ao subjetivismo e comprometem a sua adoção, ao menos em termos puros, como os propugnados por Savigny e os seus seguidores. Seja como for, mais do que engendrar esquemas dogmáticos abstratos de posse, o que importa desvendar é o sistema consagrado normativamente pelo legislador. Os arautos do subjetivismo e objetivismo trabalham sobre os textos do Direito Romano. As fontes do Direito português são outras e apenas essas contam para determinar a orientação seguida pela nossa ordem jurídica. Olhemos agora para os dados do nosso Direito, a fim de comprovarmos a opção do legislador português. O artigo 1251.º CC apresenta uma noção de posse sem nenhuma menção à intenção ou vontade do possuidor. Dispõe-se aí, simplesmente, que a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma corresponde ao exercício de um direito real. Nos artigos seguintes vem explicitado que esse poder é um poder de facto. Esta expressão surge no artigo 1252.º e no artigo 1253.º, alínea a) CC; ela pretende traduzir o habitualmente designado corpus possessório, ou seja, o controlo material de uma coisa corpórea por um sujeito. Quer dizer, a noção de posse vertida no artigo 1251º CC faz coincidir a posse com o chamado corpus possessório, denominado poder de facto, e deixa ignorado qualquer elemento intencional. Nenhuma menção ao animus surge no artigo 1251.º CC. Se a definição de posse do artigo 1251.º CC não faz qualquer referência ao animus ou vontade, poderíamos esperar encontra-la a propósito da regulação dos factos constitutivos da posse, nomeadamente, no apossamento e na inversão do título da posse. E isto porquanto no domínio de uma teoria subjetivista de posse a aquisição desta por alguém supõe uma intenção de atuar nos termos de um direito real. Todavia, os regimes dos artigos 1263.º, alínea a) (apossamento) e 1265.º CC (inversão do título da posse) também não aludem ao animus, que não é exigido para a aquisição da posse em qualquer destes factos. Por outro lado, depois de apresentar uma noção de posse (artigo 1251.º CC) e de dispor que a posse pode ser exercida direta ou indiretamente pelo possuidor (artigo 1252.º CC), o Código Civil elenca logo no artigo 1253.º CC os grupos de casos em que, não obstante haver poder de facto (corpus possessório),

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão não é atribuída posse ou, noutra formulação, a posse vem descaracterizada para mera detenção. Se bem atentarmos, esta técnica segue o esquema de Jhering, o qual explicava que os casos de detenção resultavam da incidência de uma norma jurídica que afastava a posse quando havia corpus. Por outras palavras, havendo corpus existiria posse, exceto se uma particular regra jurídica afastasse essa solução, descaracterizando a situação para mera detenção. Uma referência à intenção surge, no entanto, na alínea a) do artigo 1253.º CC. Os autores subjetivistas agarram-se a este preceito, sustentando que ele fundamenta a consagração da doutrina subjetivista da posse pela ordem jurídica portuguesa.

1. No Código Civil anotado, de Pires de Lima/Antunes Varela, afirma-se que «ao elemento subjetivista – o animus – não se refere ostensivamente o artigo 1251.º, mas ele deriva de outras disposições do Código, especialmente do artigo 1253.º».

2. Na verdade, e contrariamente ao que vem defendido por Pires de Lima/Antunes Varela, as alíneas b) e c) do artigo 1253.º CC não supõem qualquer animus, ou, dito de forma mais exata, a sua solução não se altera, qualquer que seja o animus do detentor. Ainda que tenha animus de atuar como titular de um direito real, aquele que se aproveita da tolerância do possuidor não beneficia nunca de posse, assim como dela não beneficia aquele que, tendo a coisa em seu poder, se limita a exteriorizar um direito de outrem (alínea c)). Conforme dissemos no anteriormente, a irrelevância do animus para conferir a posse nas situações em que existe o poder de facto (corpus) evidencia só por si que é o Direito que decide quem tem posse e não a vontade do sujeito que tem a coisa em seu poder. Nos casos das alíneas b) e c) do artigo 1253.º CC, o sujeito pode ter corpus e animus e ainda não lhe ser reconhecida a posse, havendo mera detenção. Para além dos argumentos que explanámos anteriormente, também o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 1253.º CC compromete qualquer posição que queira ver no Direito português um sistema subjetivista quanto à posse, ao menos um sistema subjetivista puro. Uma teoria subjetivista da posse não explica as soluções consagradas naqueles preceitos. Chegados a este ponto, resta analisar a alínea a) do artigo 1253.º CC, tantas vezes invocada em nome da teoria subjetivista da posse, na ausência de qualquer outro lugar onde a intenção venha referida. Nessa alínea, pode ler-se que não são havidos como possuidores os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito. Terá realmente a alínea mencionada o significado que tantos lhe têm dado, de fundamentar a consagração da teoria subjetivista da posse no Direito Português. A nossa opinião, adiantamo-la, é negativa. Começamos por realçar que não resulta da alínea a) do artigo 1253.º CC que a intenção seja um elemento constitutivo da posse. O preceito sugere mesmo o contrário. Seria de esperar, de resto, que se o animus tivesse o papel de um elemento constitutivo da posse no Direito português a referência a ele constasse do artigo 1251.º CC, juntamente com o elemento objetivo (o poder de facto ou corpus), e não de um preceito dedicado à detenção. Com efeito, a função desempenhada pela intenção no Direito português, segundo a alínea a) do artigo 1253.º CC, é justamente a oposta à defendida pela teoria subjetivista: a de afastar a posse numa situação em que normalmente ela existiria. A intenção funciona como vetor de exclusão da pose, não de atribuição da mesma. Poderíamos expor este entendimento através da fórmula seguinte:

Detenção = corpus - animus 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Como vemos, há uma distância considerável entre o papel que o animus toma na teoria subjetivista da posse e a função reconhecida à intenção no Direito português. Para a primeira, o animus é um dos elementos da posse; no ordenamento português, ele serve, ao invés, para descaracterizar uma situação que seria, à partida, posse. Quando é que se pode dizer que a intenção afasta a posse segundo a alínea a) do artigo 1253.º CC?

1. Oliveira Ascensão dá os seguintes exemplos de aplicação deste artigo: «Suponhamos que um emigrante deixou na sua aldeia bens ao abandono. Um vizinho toma conta deles mas declara categoricamente que o faz apenas em nome do emigrante, a quem restituirá tudo logo que ele regresse. Ou que aquele que cultiva a terra alheia declara que trabalha para o dono da terra». O autor continua, explicando: «Em qualquer destes casos, não se adquiriu posse, que tem de significar um poder autónomo exercido sobre a coisa. (…) Nestes casos, não há posse, diznos a lei – há mera detenção». 2. Menezes Cordeiro viria posteriormente a qualificar estes exemplos no contexto da alínea c) do artigo 1253.º CC, alegando tratar-se de casos de gestão de negócios. 3. Não cremos que a objeção seja exata. Sem a declaração do interveniente a situação seria possessória, e só com a declaração prestada muda o tratamento jurídico da mesma. É com a declaração do interveniente que se percebe que a intervenção ocorre por conta de outrem (gestão de negócios) e não representa a exteriorização de um direito próprio sobre a coisa. Na verdade, o artigo 1253.º, alínea a) CC aplica-se aos casos em que aquele que tem o corpus possessório esclarece socialmente que não tem nenhum direito sobre a coisa. Porquanto a posse é tutelada enquanto exteriorização de um direito, quando aquele que tem a coisa em seu poder se comporta de modo a esclarecer a comunidade que não se arroga nenhum direito sobre ela, a ordem jurídica trata a situação como mera detenção. A é proprietário e possuidor de um carro velho estacionado na rua. Pretendendo que os serviços camarários removam o carro para um depósito de carros velhos, A faz saber junto dos seus vizinhos que já não é proprietário do carro, embora conserve consigo as chaves respetivas. No exemplo dado, a declaração feita pelo possuidor, que tem o significado de uma renúncia à propriedade, projeta-se também ao nível possesório, retirando-lhe a posse (alínea a) do artigo 1253.º CC). Não obstante o corpus persistir, A passa a ser mero detentor após ter declarado que renunciava à propriedade do carro. A intenção a que se refere a alínea a) do artigo 1253.º CC só pode ser uma intenção declarada. Não existe outra possibilidade. Por um lado, a vontade interior, enquanto não exteriorizada, não permite avaliar qualquer intenção do sujeito. As dificuldades de qualquer subjetivismo que se funde numa intenção psicológica dos indivíduos são inultrapassáveis. Não há volta a dar, ninguém pode entrar na consciência dos outros; se a pessoa não objetiva um comportamento declarativo, não há como saber a sua intenção. Por outro lado, a teoria da causa também não ajuda nada a este propósito. O título de aquisição de um direito (um contrato, a usucapião, um testamento, etc.) pode servir para atestar que o sujeito atua sobre a coisa nos termos desse direito. Mas justamente nessas situações haverá posse, porquanto ocorre uma exteriorização de um dirieto. O problema está quando o título já não corresponde à situação, por exemplo, porque o titular do direito renunciou a ele, ou quando, pura e simplesmente, não há título algum e o sujeito 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão aparentemente arroga-se um direito sobre a coisa. A declaração do próprio sujeito que tem o domínio mateiral da coisa de que não atua sobre ela nos termos de um dirieto é aproveitada pelo Direito para descaracterizar a posse. Sem exteriorização de um direito, não há posse. Se o interessado esclarece socialmente, mediante um comportamento declarativo, que não tem qualquer direito sobre a coisa, a sua declaração desvaloriza a situação para mera detenção. a. Menezes Cordeiro rejeita que a declaração do próprio possa evitar a posse, por duas razões fundamentais: i. A irrelevância da protestatio facta contraria: de acordo com as regras gerais, a atuação voluntária não é descaracterizada pelo ato de o agente fazer (meras) declarações em contrário; ii. A posse não dá direitos apenas; também provoca o aparecimento de deveres; assim, o possuidor de má fé responde pela perda ou deteriorição da coisa (artigo 1269.º CC), deve restituir os frutos e responde pelos frutos que o proprietário diligente poderia ter obtido (artigo 1271.º CC). Não é crível que alguém pudesse frutar-se a esses deveres, declarando não querer ser possuidor. b. Discordamos desta análise. Começando pelo primeiro argumento, a regra geral da protestatio facta contraria não impede a consagração de regras contrárias, de natureza excecional. O legislador pode pretender conferir relevância à declaração do interessado na prossecução de objetivos mais gerais do sistema jurídico. O artigo 1253.º, alínea a) CC é justamente uma dessas regras contrárias, que confere relevância à declaração do sujeito sobre os termos da sua atuação, nomeadamente, quando ela afasta o exercício de um direito sobre a coisa, descaracterizando a posse para mera detenção. Desta maneira, o sistema mantém a sua coerência interna, de fazer corresponder a posse à exteriorização de um direito sobre a coisa, que se perderia caso a posse se mantivesse mesmo nos casos em que o detentor negasse a titularidade de um direito. O segundo argumento parece impressionante, mas perde toda a sua força quando se pondera o regime a que está sujeito o detentor e quando se faz o confronto com o do possuidor de má fé. A conclusão a que se chega é que também o detentor é responsável pela perda ou deterioração da coisa, nos termos gerais, não tem obviamente direito aos frutos (só possuidor de boa fé tem) e é responsável pelos danos causados ao titular do direito real no aproveitamento da coisa. Ao contrário do que faz crer Menezes Cordeiro, a declaração do sujeito de que não está a atuar nos termos de um dirieto sobre a coisa só pode prejudicá-lo, se for, nomeadamente, um possuidor de boa fé. Estamos, assim, convencidos que nenhuma das objeções levantadas tem realmente pertinência para afastar o sentido aqui propugnado para a alínea a) do artigo 1253.º CC. Deste modo, mesmo num contexto em que se faz alusão à intenção, o Código Civil português requer um elemento objetivo: uma declaração. Não é qualquer intenção que releva, nomeadamente, aquela que permanecer no interior do sujeito, tãopouco a que se pode extrair do título; apenas a intenção declarada tem relevância. Essa relevância é negativa. A intenção desempenha a função de descaracterizar para detenção uma situaçaõ que à partida seria de posse. E com isto o sistema mantém coerência; a posse permanece sempre como a exteriorização de um direito. Reafirmamos, assim, que o Código Civil portuguÊs é integralmente objetivista em sede de regulação de posse. Havendo corpus 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão possessório e não incidindo nenhuma norma jurídica que descaracterize a situação para mera detenção, nomeadamente qualquer das alíneas do artigo 1253.º CC, existirá posse. O animus não é, assim, um dos elementos da posse.

Caracterização do corpus possessório: dissemos que a posse assenta no corpus. Os romanos não conheciam este termo, que foi introduzido posteriormente pela romanística, falando preferencialmente em tenere, em possidere ou corporalis. Também Savigny não usa a locução corpus, referindo-se sempre à detenção como elemento material da posse. O uso do termo corpus está, porém, disseminado e é corrente, razão pela qual também nós recorreremos a ele. Muitas vezes, o corpus possessório vem definido como uma relação material ou de facto entre um sujeito e uma coisa, noção que serve, outras vezes, para caracterizar a própria posse. Savigny, por exemplo, afirma: «nós partimos do conceito geral de detenção, isto é, da relação material á qual corresponde a propriedade como uma relação jurídica». José Tavares diz, por sua vez, que «dois elementos concorrem para formar a pose: um puramente material ou físico, consistente na relação exterior ou de facto em que a couse se encontra com a pessoa; o outro psíquico ou intelectual(…)». Uma relação supõe, porém, dois sujeitos de Direito e não constitui termo idóneo para designar a ligação de domínio existente entre uma pessoa e uma coisa. Por isso, rejeitamos que se posse falar de relação, material ou jurídica, para definir o corpus possessório. Toda a gente está de acordo que a noção de corpus possessório traduz uma situação de sujeição de uma coisa a uma pessoa, implicando um controlo material sobre ela. Alguns autores vão, todavia, mais longe, introduzindo como ulterior componente dessa sujeição a exclusão de terceiros.

1. Savigny foi possivelmente o primeiro a defender este sentido para o corpus. Segundo o autor, todos pensam na posse de uma coisa como o estado em que não apenas é possível uma interferência física sobre a coisa, mas sim igualmente em que uma interferência alheia pode ser evitada. Windscheid apoiaria esta formulação. A conceção de Savigny e Windscheid parece limitar o corpus possessório, e assim a posse, àqueles que têm força suficiente para evitar a interferência de terceiros sobre a coisa. E quase ninguém está em condições de assegurar isso pelos seus meios. Por outro lado, pode haver, de facto, interferência de terceiros sem perda do controlo material da coisa; pense-se em imóveis não confinados por uma barreira física de acesso (vedação, muro, porta, etc.) ou coisas móveis que circulem em locais públicos. Outras formulações, visando explicar o papel de terceiros no corpus possessório, foram tentadas.

2. Sacco/Caterina caracterizam o corpus distinguindo dois elementos: a sujeição da coisa à pessoa e a abstenção de terceiros. Esta última vem explicada como um facto omissivo material e decomposta em dois subelementos: um material e um espiritual (a consciência do respeito pelo direito de outrem) A construção de Sacco/Caterina parecenos mais avisada do que a de Savigny/Windscheid quanto à repercussão dos terceiros no corpus, na medida em que concebe a não interferência de terceiros como o resultado de uma opção voluntária destes no respeito pela situação possessória e não na capacidade de cada um para vedar o acesso de terceiros à coisa. Em todo o caso, não pode ser sufragada. A lei não reconhece a posse a alguém em atenção a qualquer

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abstenção de terceiros sobre a coisa. Esta abstenção pode ser relevante para a manutenção da posse, uma vez que a atuação de terceiro pode quebrar o corpus possessório, e assim pôr fim à posse do possuidor; contudo, não determina a sua existência. Por outro lado, o corpus pode existir mesmo com a intervenção de terceiros sobre a coisa. Os casos de composse, que a lei portuguesa admite, e de várias posses exercidas simultaneamente nos termos de direitos distintos, exemplificam isso mesmo. Num plano explicativo diverso, Eolff/Raiser sustentaram que saber se uma relação de uma pessoa com uma coisa é uma relação fática de domínio deve ser avaliado segundo as conceções do tráfico, orientação que a seguir se tornou dominante na Alemanha. Numa formulação próxima, Schwab/Prütting opinam que a ordem social influencia a delimitação da posse, porquanto o respeito pelo direito conduz ao reconhecimento do domínio de facto sobre a coisa. A conceção social determina quem deve ser visto como possuidor. Também para Baur/Stürner saber quando existe um senhorio de facto sobre a coisa, que é decisivo para a posse, depende da conceção da vida. Para isto deve-se atender a distintos pontos de vista: uma verta relação espacial com a coisa e a duração desta relação. O que pensar desta orientação? Duvidamos que uma genérica remissão para as conceções do tráfico possa trazer uma delimitação operativa do corpus possessório. Quer-nos parecer, ao invés, que ela implica até uma renúncia do Direito em estabelecer os limites desse elemento da posse, e com isso da própria posse, pois remete para fora do âmbito do sistema jurídico a caracterização do corpus. Por isso, não nos parece aceitável esta orientação. A decisão sobre se uma dada situação constitui o corpus possessório é o produto da interpretação/aplicação de regras jurídicas, das regras que aludem ao poder de facto. No Direito português, os artigos 1252.º e 1253.º CC mencionam o possuidor como o que exerce o poder de facto sobre a coisa, enquanto o artigo 1257.º CC, em sede de conservação da posse, reporta-se à atuação correspondente ao exercício do direito ou à possibilidade de a continuar. Todos estes preceitos têm em vista o corpus possessório. Deles parece resultar que o poder de facto acarreta a prática de atos que traduzem o exercício de um direito (real) ou, pelo menos, a possibilidade de prática desses atos. Ora, a atuação material sobre a coisa ou a possibilidade dessa atuação supõe o controlo material dela ou, como alguns preferem dizer, o domínio da coisa. O corpus possessório projeta-se, por conseguinte, a um nível físico, significando que alguém pode praticar os atos de aproveitamento da coisa correspondentes ao direito que exterioriza. Não pode haver sujeição física de uma coisa a um sujeito se terceiros, arrogando-se o mesmo direito ou um direito incompatível, atuam também sobre a coisa. Por isso, julgamos que o corpus possessório alude simplesmente ao estado de facto em que um sujeito tem o controlo material da coisa e pode atuar sobre ela nos termos de um direito. Para concluir, uma palavra sobre aqueles que atuam materialmente sobre a coisa, sem, contudo, ficarem investidos no controlo da coisa. Em muitos casos, as pessoas contactam fisicamente sobre coisas, atuando materialmente sobre elas. Em alguns desses casos o contacto pode durar por um período de tempo considerável. O passageiro do Metropolitano desloca-se nos túneis e estações de rede de transporte, o aluno usa a cadeira e a mesa na sala de aula, o aldeão atravessa o prédio de um vizinho para chegar mais depressa ao trabalho, o condutor para o carro para descansar e passeia no prédio à beira da estrada. Nestes casos, não pode falar-se na existência de corpus possessório a favor destas pessoas, porquanto de nenhuma delas se pode dizer ter o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão controlo material sobre a coisa. O simples contacto material sobre uma coisa, seja efémero e ocasional seja periódico e duradouro, não basta para constituir o corpus possessório a favor de alguém. E sem corpus, não há posse, nem sequer detenção. O corpus possessório não requer uma ligação física constante do possuidor à coisa. Sem dúvida essa ligação é essencial no momento de aquisição da posse, mas a partir desse momento o corpus subsiste com a mera possibilidade de atuação material sobre a coisa. O artigo 1257.º, n.º1 CC deixa claro que neste caso a posse permanecia solo animus e alguns autores modernos acompanham essa explicação, mesmo quando a posse se exerce por intermédio de um possuidor nos termos de um direito real menor. Mas também aqui a referência ao animus se afigura deslocada. Tudo está em compreender que o corpus possessório, assentando no controlo material da coisa, se basta com a mera possibilidade, abstrata, de atuação, sem necessitar para existir de uma ligação física constante entre o possuidor e a coisa. Deste modo, não se torna necessária a prática ininterrupta do possuidor não afeta a sua subsistência, desde que a possibilidade de o possuidor renovar a sua atuação sobre a coisa não seja afetada pela intervenção de um terceiro que se erga em obstáculo a ela. Por maioria de razão, também uma prática descontínua de atos materiais não compromete o corpus possessório, desde que a descontinuidade não advenha de facto de um terceiro que impeça a atuação sobre a coisa. Não há limite temporal à inércia do possuidor enquanto ele mantém o controlo material da coisa. Contudo, uma inércia demasiado prolongada pode revelar uma situação de abandono. Só em concreto se pode aferir se a inércia significa uma quebra da ligação física com a coisa (abandono) ou se não é esse o caso. O corpus possessório pode existir mesmo havendo outras posses sobre a mesma coisa. É o que sucede, desde logo, com a composse, em que várias pessoas controlam materialmente a coisa nos termos do mesmo direito. Para além da composse, quando são exteriorizados diferentes direitos reais de gozo sobre a coisa, a situação normal é corresponder uma posse a cada um deles. É o fenómeno conhecido da sobreposição de posses. Assim, o controlo material correspondente ao corpus possessório não tem de ser exclusivo, no sentido de só poder existir um controlo material por pessoa ou só nos termos do mesmo direito. Podendo recair simultaneamente vários direitos reais de gozo sobre a coisa, existirá, em princípio, um número igual de posses. O controlo material por um possuidor nos termos do seu direito não prejudica o controlo que outro exerça sobre a coisa em relação a outro direito compatível. No fundo, a existência de vários corpus possessórios não decorre de outra coisa senão da concorrência e sobreposição de direitos reais que o sistema jurídico admite poderem recair sobre a mesma coisa. Por último, uma referência breve a um fenómeno já designado por imaterialização da posse e que tem uma das suas manifestações na possibilidade de a posse subsistir sem o corpus possessório. A hipótese vem prevista na alínea d) do artigo 1267.º C: segundo este preceito, em caso de esbulho, a posse mantém-se pelo prazo de um ano. Uma posse já existente pode, por conseguinte, durar por um ano mesmo sem corpus. A explicação para esta hipótese, em que o ordenamento jurídico permite a posse dissociada do corpus, reside no facto de se pretender assegurar a defesa da posse com recurso às ações possessórias, em particular, à ação possessória de restituição. Se a posse se extinguisse imediatamente com a perda do corpus possessório, o possuidor ficaria impedido de a defender contra o esbulhador. Assim, tem um ano para intentar ação possessória de restituição (artigo 1282.º CC). Isto não quer dizer que haja posse sem corpus. Uma posse não pode constituir-se nem manter-se indefinidamente sem o controlo material da coisa, que é o elemento estruturante do seu reconhecimento pelo Direito. O que se passa é que, durante um ano, a posse vem a ser mantida enquanto direito – portanto, como situação jurídica – sem a situação de facto a ele correspondente, para permitir a recuperação da coisa pelo possuidor esbulhado.

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Posse e detenção. A detenção como ausência de exteriorização de um direito próprio sobre a coisa: no Direito Romano quem tinha o poder de facto sem preencher os requisitos da possessio não era possessor, sendo a situação qualificada como naturalis possessio. A posse natural não conferia a proteção dos interdicta, estes cabiam unicamente ao possuidor. A orientação do Direito Romano, com oscilações históricas, sobrevivei até aos nossos dias. Nem todo o controlo material da coisa (o poder de facto ou corpus) atribui posse. Se bem que a posse requeira o corpus possessório, é ao Direito que cabe estabelecer os casos em que, por existir esse corpus, a posse é atribuída, e aqueles em que é recusada. Para se afirmar da existência de posse num dado caso concreto, para além do corpus, deve averiguar-se igualmente da incidência de uma norma jurídica que qualifique a situação como mera detenção. Havendo corpus, mas a ele não correspondendo nenhuma posse, fala-se em detenção. O artigo 1253.º CC usa ainda como sinónimo a expressão possuidor precário. Pensamos, contudo, que nada se ganha na proliferação de termos sucedâneos numa matéria já carregada com uma grande dispersão terminológica. Quem tem detenção é detentor, não possuidor, ainda que precário. Por isso, limitamo-nos a falar em detenção e detentor e abstemo-nos de usar a terminologia posse precária e possuidor precário. O detentor é aquele que tem o poder de facto (o corpus) sobre a coisa, não lhe sendo, no entanto, reconhecida a posse. Trata-se de uma pura situação de facto, a que o Direito português não associa quaisquer efeitos jurídicos. A distinção entre posse e detenção é fulcral. O possuidor beneficia dos efeitos da posse: presume-se titular do direito a que a posse se refere (artigo 1268.º CC), recebe tutela possessória (artigos 1276.º e seguintes CC), tem direito a ser indemnizado em caso da violação da posse (artigo 1284.º CC), tem direito aos frutos se estiver de boa fé (artigo 1270.º, n.º1 CC), fica sujeito ao regime das benfeitorias (artigo 1273.º a 1275.º CC) e goza de um regime excecional de responsabilidade civil em caso de perda ou deterioração (se estiver de boa fé – artigo 1269.º CC); o detentor, em contrapartida, não recebe nenhuma proteção do ordenamento. A atribuição provisória do direito em que a posse consiste respeita unicamente ao possuidor e não ao detentor, cuja posição não assume caráter jurídico; a detenção não constitui um direito subjetivo, ao contrário da posse, nem se reconduz a nenhuma outra situação jurídica ativa. A detenção resulta da incidência de uma norma jurídica que retira ao corpus a sua consequência normal de atribuição de posse. Nesta matéria, o preceito fundamental é o artigo 1253.º CC, que afasta a posse em três grupos de casos:

1. Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito: já tivemos ensejo de nos referirmos ao sentido da alínea a) do artigo 1253.º CC, a propósito da problemática dos elementos da posse e em crítica ao subjetivismo. Reportando-nos aos que então dissemos, a lei portuguesa prevê nesta alínea os casos em que alguém, que até esse momento exteriorizava uma atuação nos termos de um direito real, declara não ter qualquer direito sobre a coisa. Tal declaração pode vir comunicar a que título é feita a intervenção sobre a coisa, clarificando que não é feita nos termos de um direito real próprio, ou significar a extinção do direito real até aí exteriorizado sobre ela, como é o caso da declaração de renúncia ao direito. Conforme dissemos anteriormente, a intenção mencionada na alínea a) do artigo 1253.º CC é a intenção declarada, assente num comportamento do detentor que comunica para o exterior, para os interessados, que não atua sobre a coisa nos termos de um direito real próprio. A diferença para a alínea c) do artigo 1253.º CC, é que nesta se atende exclusivamente ao título, elemento objetivo, pelo qual o detentor tem a coisa em seu poder, enquanto a alínea a), superano o que em contrário resultar do título eventualmente existente, se baseia somente naquilo que o interessado declara. A 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão intenção declarada daquele que tema coisa em seu poder, de não atuar nos termos de um direito real, descaracteriza a situação, que seria de posse, para mera detenção. Tal acontece porque fica esclarecido na ordem social que o detentor da coisa não afirma qualquer direito real sobre ela. Deste modo, uma vez que a posse se reporta sempre a um direito, que surge exteriorizado através dela, se do comportamento declarativo do interessado resulta que não tem um direito real sobre a coisa, a lei não lhe atribui a posse ou, se ela existia até aí, retira-lha. A intenção não assume no recorte da alínea a) do artigo 1253.º CC a função de elemento constitutivo da pose. Não é com esse sentido que o preceito a contempla. A intenção, entendida como intenção declarada, objetivada num comportamento exterior, desempenha, bem diversamente, a função de manter a posse no âmbito restrito da exteriorização de um direito real. O seu sentido é, pois, negativo; não confere posse, antes a retira em situações que normalmente seriam de posse. 2. Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito: a alínea b) do artigo 1253.º CC consagra os denominados atos de mera tolerância, abrangidos os casos em que é permitido a alguém o aproveitamento material da coisa, mediante autorização expressa ou tácita do possuidor, sem que haja lugar à constituição de qualquer direito a favor do beneficiário da autorização. É a orientação que encontramos em Henrique Mesquita, em Menezes Cordeiro e em Pires de Lima /Antunes Varela, a que nós próprios aderimos. Ainda assim, mostra-se necessário fazer uma ulterior precisão sobre a alínea b) do artigo 1253.º CC, para que fique bem delimitado o campo de aplicação da mesma face à alínea c). E esta precisão é a seguinte: nos atos de mera tolerância, o detentor não goza de qualquer título relativo a um direito real (ou outro) sobre a coisa. A mera autorização de uso de uma coisa, fora do contexto de um facto constitutivo de um direito real (ou de outro direito), não confere posse ao beneficiário dela, que é um mero detentor. Tradicionalmente, no Direito português anterior ao Código Civil vigente, a mera tolerância não gerava nem posse nem detenção. Porém, por influência italiana, o legislador português inseriu na alínea b) do artigo 1253.º CC os atos de mera tolerância, considerando detentor quem deles se aproveita. A nova qualificação não tem alcance prático, visto que a detenção não gera qualquer efeito jurídico no Direito português atual e a posição do detentor é, do ponto de vista do regime da posse, igual àquele que nem sequer o chega a ser. A alínea b) do artigo 1253.º CC revela igualmente a teleologia geral de distinção entre a posse e a detenção. Uma vez que aquele que se aproveita da tolerância do possuidor não adquire qualquer direito real, não tem posse. Sem exteriorização de um direito real não há posse. 3. Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem: no artigo 1253.º, alínea c) CC encontram-se previstos os casos em que alguém possui em nome de outra. Desde logo, os trabalhadores relativamente aos bens da entidade patronal que tenham em seu poder, os representantes do possuidor, incluindo o mandatário com poderes de representação, e todos aqueles que adquiram posse nos termos de um direito real menor ou de outro direito. A compreensão deste preceito passa pela análise do título do sujeito que tem a coisa consigo. Se alguém tem uma coisa em seu poder como procurador não atua sobre ela nos termos de um direito próprio; logo, é detentor. Continuando a exemplificar, se o trabalhador tem o caro da empresa nos termos do contrato de trabalho, este contrato fundamenta a detenção em nome da proprietária (empresa); se o usufrutuário adquiriu o seu direito por testamento, este negócio jurídico determina que possui nos termos da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propriedade alheia, pois o usufruto é um direito sobre coisa alheia, como todos os direitos reais menores. Quando alguém atua sobre a coisa nos termos de um título que não atribui a propriedade, é sempre detentor em nome do proprietário, possui em nome deste, para recorrer ao dizer da alínea c) do artigo 1253.º CC. Em todo o caso, há duas situações diversas que cabem nesta alínea e que importa destrinçar: a. A daqueles que atuam sobre a coisa em nome do proprietário, sem afirmarem nenhum direito próprio quanto a ela (o procurador, o mandatário sem poderes de representação, o trabalhador, etc.): são apenas detentores, têm uma simples detenção, limitando-se a atuar sobre a coisa em seu poder por conta e em nome do proprietário; e b. A daqueles que, atuando sobre a coisa em nome do proprietário, sendo, por conseguinte, detentores relativamente a este direito, são simultaneamente possuidores nos termos de um direito próprio (o usufrutuário, o usuário e morador usuário, o superficiário, o titular do direito real de habitação periódica, o titular da servidão predial): diferentemente, têm detenção e posse: detenção em nome do proprietário (posse em nome alheio, como lhe chama a lei) e posse, em nome próprio, nos termos do direito que afirmam sobre a coisa. Sem prejuízo do que se dirá no ponto seguinte no tocante à possibilidade de a posse se exercer nos termos de direitos subjetivos que não são direitos reais de gozo, sempre que alguém retenha a coisa em seu poder com referência a um direito real menor, para o exercer, tem posse quanto a esse direito real e é detentor quanto à propriedade. A afirmação de um direito real sobre a coisa, ainda que seja um direito real menor, confere a posse a quem tem a coisa (corpus). Essa posse é uma posse em nome próprio quanto ao direito exteriorizado e compatibiliza-se com a posse do proprietário, que a exerce através do possuidor nos termos do direito real menor, que, no que a este aspeto diz respeito, age como um representante na posse (artigo 1252.º, n.º1 CC). Todas as situações de detenção previstas nas alíneas a) a c) do artigo 1275.º CC apresentam um traço em comum: em todas elas não existe a exteriorização de um direito próprio pelo detentor. É esse traço comum que unifica o regime da detenção e dá um critério objetivo para a distinção entre a posse e a detenção. Quem tem a coisa em seu poder e não exterioriza um direito real de gozo sobre ela não tem posse, apenas detenção; inversamente, aquele que, atuando sobre a coisa, exteriorize um direito real próprio sobre ela, tem posse. Na alínea a) do artigo 1253.º CC é o interessado quem declara que não é titular do direito real sobre a coisa; na alínea b) não há qualquer direito a considerar, pois os atos de mera tolerância assentam justamente na ausência de um direito por parte de quem atua sobre a coisa; enquanto que, na alínea c), a incidência de um título descaracteriza a posse, apontando para a propriedade de outrem. Fica agora claro que a atribuição provisória do direito em que consiste a posse assenta numa razão de fundo: o possuidor arroga-se a titularidade de um direito; como a coisa está em seu poder, a lei parte da presunção de que o direito lhe pertence (artigo 1268.º, n.º1 CC), embora deixe as portas abertas para a demonstração do contrário. Podemos assim dizer, que a posse representa a exteriorização de um direito e que a detenção constitui, ao invés, uma atuação sobre coisa alheia, independentemente do detentor ser simultaneamente possuidor, por referência a um direito próprio. O direito a que se reporta a exteriorização possessória, que permite o exercício da posse, é, nos termos do artigo 1251.º e seguintes CC, um direito real de gozo. Mas outros direitos subjetivos, incluindo direitos reais de garantia, permitem uma atuação do titular sobre a coisa.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Haverá posse nestes casos ou tudo se resume a atos de mera detenção? A essa pergunta dedicaremos o ponto seguinte.

O âmbito da posse: do artigo 1251.º CC resulta que a pose regulada no Título I do Livro III é a posse nos termos de um direito real de gozo. Quando no preceito se menciona a atuação por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, a lei tem em vista unicamente os direitos reais de gozo. Esta restrição coloca problemas de interpretação face a outros dispositivos normativos. Existem preceitos que atribuem ações possessórias a titulares de direitos que não são direitos reais de gozo, mesmo no regime jurídico-real. O artigo 670.º, alínea a) CC reconhece ao credor pignoratício o direito de usar, em relação à coisa empenhada, das ações destinadas à defessa da posse, ainda que seja contra o próprio dono. O artigo 758.º CC estende ao titular do direito de retenção os direitos do credor pignoratício, o que significa que ele tem a tutela possessória. Portanto, mesmo no interior do sistema jurídicoreal, a lei portuguesa confere tutela possessória a titulares de direitos reais que não são de gozo.. A extensão da tutela possessória opera igualmente fora dos Direitos Reais, beneficiando titulares de direitos que não têm natureza real. O locatário (artigo 1037.º, n.º2 CC), o comodatário (artigo 1133.º, n.º2 CC), o parceiro pensador (artigo 1125.º, n.º2 CC) e o depositário (artigo 1188.º, n.º2 CC), todos eles beneficiam da tutela possessória. O que pensar nestes casos? Em todos eles há posse ou existe apenas detenção? Começamos por esclarecer que cada um destes titulares de direitos subjetivos, quer de direitos reais de garantia (penhor, direito de retenção), quer de direitos pessoais de gozo (locatário, comodatário, parceiro pensador, depositário), é sempre detentor nos termos da propriedade, possuindo em nome de outrem quanto a este direito. A questão não se coloca, assim, no tocante à propriedade. A questão coloca-se, sim, perante o direito que cada um exterioriza sobre a coisa, o direito de penhor, o direito de retenção, o direito do locatário, o direito do comodatário, o direito do parceiro pensador, o direito do depositário. É cada um destes titulares de direito subjetivo possuidor nos termos do direito que exterioriza? Com exceção do penhor, relativamente ao qual no Direito Romano se reconhecia o caráter de possuidor ao credor pignoratício, em todos os outros casos a tradição romana, respeitada pelos romanistas das várias receções, era a de rejeitar a posse e a de reconhecer aí uma mera possessio naturalis (detenção). Modernamente, uma forte corrente subjetivista, ligada a Savigny, responde à questão de modo igualmente negativo, porque nestes casos o animus possidendi não cobriria a atuação nos termos de tais direitos. O animus cobriria apenas a atuação do proprietário sobre a coisa (tese de Savigny e seus seguidores diretos) ou dos titulares de outros direitos reais de gozo (animus possidendi). Como se entende que a posse se estrutura na soma do corpus com o animus, na falta deste último, haveria mera detenção. Nesta linha de raciocínio, o locatário, o comodatário, o depositário, etc., são detentores. Se nos libertarmos do espartilho doutrinário do subjetivismo, não há nenhuma razão para limitarmos o âmbito da posse aos direitos reais de gozo. Se a posse repousa numa atuação material sobre uma coisa corpórea nos termos de um direito, ela pode ser referida a todos os direitos subjetivos que confiram poderes para essa atuação, independentemente da natureza, real ou outra, do direito subjetivo em questão. A não ser, claro, que haja uma norma jurídica que negue a posse nestes casos. Procurando o sentido das várias alíneas do artigo 1253.º CC, não encontramos nenhuma norma que afaste a posse relativamente a qualquer dos casos enunciados. O artigo 1253.º, alínea c) CC tem, naturalmente, aplicação, mas apenas para fixar que o credor pignoratício, o retentor, o comodatário, o locador, o parceiro pensador, o depositário são detentores quanto à propriedade. Nenhum argumento contrário resulta, porém, em relação a cada um dos direitos considerados. Seria, aliás, estranho que o encontrássemos. Na verdade, a outorga da tutela possessória (das ações possessórias) assenta num

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão reconhecimento implícito da posse. As ações possessórias são atribuídas ao titular do direito real de garantia (penhor, direito de retenção) ou do direito pessoal de gozo (direito do locatário, direito do comodatário, direito do parceiro pensador, direito do locatário) para defesa da posse que cada deles tem quando exterioriza um direito sobre a coisa. A posse é o direito que se faz valer na ação possessória. Não há tutela possessória sem posse. E o que dizer nas situações em que o direito subjetivo em causa permite o controlo material da coisa, mas a lei não prevê a tutela possessória? Casos paradigmáticos são o do contrato promessa, com ou sem eficácia real, em que tenha havido tradição da coisa e o contrato de compra e venda com reserva de propriedade, acompanhado de entrega da coisa ao comprador. O credor que tem a coisa em seu poder – o promitente comprador ou o comprador com reserva de propriedade – tem posse? A pergunta estende-se naturalmente a todos os casos em que alguém exterioriza poderes de atuação sobre uma coisa corpórea nos termos de um direito subjetivo. Não obstante a ausência de elementos normativos explícitos, a resposta não pode ser senão afirmativa. Em todas essas situações existe corpus possessório; alguém tem o controlo material sobre uma coisa corpórea, podendo, se quiser, atuar sobre ela. O controlo material processa-se nos termos de um direito, que é exteriorizado por aquele que atua sobre a coisa. Nos exemplos apontados em cima, esse direito é um direito de crédito ou um direito real de aquisição (promessa com eficácia real). Finalmente, não existe norma legal a afastar a posse; nomeadamente, o artigo 1253.º CC não o faz. Por conseguinte, todos os ingredientes do reconhecimento normativo da posse ocorrem igualmente nestes casos. Não há qualquer razão para negar a posse a quem exerce um controlo material sobre uma coisa corpórea nos termos de um direito. Em abstrato, a ordem jurídica poderia restringir a posse aos direitos reais de gozo. Todavia, o legislador português não hesitou em consagrar uma tutela possessória no quadro de direitos subjetivos que não são reais. Essa tutela está vertida na locação, no comodato, na parceria pecuária e no depósito. Desta forma, o argumento sistemático perde validade. Por outro lado, a previsão de tutela possessória para uns casos e não para outros, sem que se vislumbre qualquer razão de fundo para um tratamento diferenciado, atenta contra o princípio da igualdade, pois trata de modo desigual situações iguais ou muito semelhantes. Nenhuma diferenciação substancial existe, por exemplo, entre o comodatário e o comprador com reserva de propriedade; por que razão, então, o primeiro pode defender a sua posse contra ato de terceiro ou do seu contraente e o segundo não pode? Finalmente, e não obstante as raízes históricas da posse, nenhuma diferença se nota entre uma atuação material sobre uma coisa corpórea nos termos de um direito subjetivo não real e nos termos de um direito real. Quanto muito, a diferença existirá no regime jurídico e natureza do direito que permite a posse. E não se diga que a falta de previsão de uma tutela possessória fora dos casos contemplados na lei revela um propósito de negação da posse, como se todas as situações não reguladas por norma expressa tivessem de receber do uma solução contrária à que existe para as situações reguladas. O silêncio do legislador não pode, porém, ser interpretado neste sentido. O reconhecimento da posse sempre que se manifesta um controlo material de uma coisa corpórea nos termos de direitos de crédito constitui a comprovação de que a posse transcende o universo dos Direitos Reais. Num sistema objetivista de posse, em que esta se afere em função da existência de um controlo material da coisa nos termos de um direito e pela ausência de uma norma que descaracterize a situação para mera detenção, sempre que alguém atue sobre uma coisa nos termos de um direito próprio tem posse e não mera detenção. Assim, o promitente adquirente que recebeu a coisa por tradição do promitente transmitente tem posse, nos termos do seu direito de crédito ou direito real de aquisição (se o contrato promessa tiver eficácia real), como tem posse o comprador com reserva de propriedade a quem a coisa foi entregue pelo vendedor. Numa linha que já remonta a Manuel Rodrigues, e que passa hoje por Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, defendemos que a posse pode existir nos 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão termos de direitos reais e nos termos de outros direitos subjetivos, nomeadamente, de crédito, desde que facultem ao titular poderes para uma atuação material sobre a coisa e aquele tenha a coisa no seu controlo. Dizer que existe posse fora do âmbito dos direitos reais de gozo não equivale a dizer que o regime dos artigos 1251.º e seguintes CC se aplica integralmente sempre que haja posse. Na verdade, este regime só se aplica diretamente à posse nos termos de direitos reais de gozo. Questiona-se, no entanto, se algumas das disposições normativas do regime jurídico da posse podem ter igualmente aplicação à posse nos termos de outros direitos.

1. Oliveira Ascensão admite que os preceitos atinentes aos meios de tutela, ao direito de indemnização por violação da posse (artigo 1284.º CC), à presunção da titularidade (artigo 1268.º CC), à sucessão da posse (artigo 1255.º CC) são generalizáveis. 2. O regime jurídico da posse encontra-se moldado à posse nos termos de direitos reais de gozo e não se afigura facilmente justificável uma extensão à posse exercida nos termos de outros direitos. Por exemplo, a presunção de titularidade (artigo 1268.º CC) liga-se à função de publicidade que a posse desempenha nos Direitos Reais, não existindo qualquer paralelo com regime jurídico dos créditos ou dos outros direitos subjetivos, pelo que se nos afigura de negar que a posse constitua presunção de titularidade de outros direitos subjetivos que não sejam reais. Também a sucessão na posse encontra a sua justificação no regime da usucapião: ora, a usucapião só favorece o possuidor que atua por preferência a um direito real de gozo. Do regime da posse, apenas a parte relativa à tutela possessória (artigos 1276.º a 1286.º CC) pode ser aplicada à posse exercida fora dos direitos reais de gozo. Trata-se de um conjunto de regras que não visam especificamente a posse nos termos dos direitos reais de gozo. As ações possessórias estão, assim, ao dispor de qualquer possuidor. O mesmo se diga do direito de indemnização por violação da posse (artigo 1284.º CC); sendo a posse um direito, ela confere ao possuidor o direito à reparação dos prejuízos causados. A parte do regime da posse respeitante à tutela possessória é a única que admite a sua extensão à posse exercida com referência a outros direitos subjetivos que não sejam direitos reais de gozo. Todo o restante regime jurídico da posse não é suscetível de generalização. Em particular, a usucapião só pode beneficiar os possuidores nos termos de direitos reais de gozo. É um dado seguro do regime jurídico português da usucapião.

Posse imediata e posse com intermediação: em regra, o possuidor atua diretamente sobre a coisa que controla fisicamente; é nisso que consiste o corpus possessório. Porém, em alguns casos, a coisa aparece detida por um terceiro, que age em nome do possuidor. Nestes casos, não obstante a coisa estar fisicamente com o detentor, o possuidor continua a ter posse, uma posse exercida através da detenção de outrem. Poderia parecer que deveria ser negada a posse, uma vez que o possuidor não coincidiria com aquele que tem o poder de facto. A verdade, porém, é que o detentor atua em nome do possuidor e isto significa que este mantém o controlo material sobre a coisa, e, portanto, o corpus possessório. A posse com intermediação tem a sua base legal no artigo 1252.º, n.º1 CC: «A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem». Reconhecidamente, este preceito teve a sua fonte no Codice Civile Italiano. Aquele que atua sobre uma coisa corpórea em nome de outrem é mero detentor, segundo a alínea c) do artigo 1253.º CC. Assim, o locatário é detentor quanto ao senhorio em cujo nome detém relativamente ao direito (propriedade, usufruto) com base no qual foi celebrado o contrato de locação; e o mesmo se diga do comodatário, do parceiro pensador ou do depositário. Não há nenhuma

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão incongruência entre o que dissemos agora e a afirmada qualidade de possuidor do locatário, comodatário, parceiro pensador, depositário. Estes são possuidores nos termos do direito pessoal de gozo que exteriorizam, mas são detentores quanto à propriedade, representando na posse o proprietário. O mesmo se passa na relação entre o possuidor nos termos de um direito real maior e o possuidor nos termos de um direito real menor. O usufrutuário que tem a coisa em seu poder para exercer o direito, é possuidor nos termos do usufrutuário e detentor nos termos da propriedade, atuando em nome do proprietário quanto a este direito. A detenção da coisa por terceiro permite a coexistência de várias posses nos termos de direitos diferentes, sem impossibilitar a subsistência da pose nos termos do direito real maior quando a coisa deva estar com o titular do direito real menor para o exercício respetivo.

As classificações da posse: o artigo 1258.º CC distingue várias classificações de posse. Segundo o preceito, «a posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta». As classificações legais não esgotam todo o espetro da posse e outras classificações surgem na doutrina, nomeadamente, as que contrapõem a posse formal à causal, a posse civil à posse interdictal e posse efetiva à posse não efetiva.

1. Posse causal e posse formal: a. a posse diz-se causal quando o possuidor é simultaneamente titular do direito real a que a posse se reporta; b. diz-se formal quando essa titularidade falta. A usucapiu a propriedade do prédio x com efeitos a 1 de janeiro de 1985 e controla materialmente o prédio. A sua posse é uma posse causal. B ocupou um cão abandonado, ficando com ele. A sua posse é causal. C celebrou com D uma compra e venda da propriedade do prédio Y por escrito particular, recebendo a coisa do vendedor. A posse de C é formal. E furtou o veículo z, levando-o para a sua garagem. A sua posse é formal. Pode parecer estranho que a ordem jurídica reconheça a posse sem que o possuidor tenha a titularidade do direito correspondente. Na verdade, a situação normal é a de que o titular do direito real de gozo seja igualmente possuidor, pois o exercício do direito passa em grande parte pela atuação material sobre a coisa dele objeto. A posse formal constitui objetivamente uma violação do direito real, em última análise, do proprietário. Porém, o Direito português não distingue a posse formal da posse causal. Tanto uma como outra constituem posses e estão sujeitas ao regime da posse dos artigos 1251.º e seguintes CC. Quer dizer, a falta de titularidade do direito real de gozo não representa nenhum obstáculo à existência da posse e à sua tutela. Contando que haja corpus e a lei não desqualifique a situação para mera detenção (v.g. nos casos do artigo 1253.º CC), a posse existe e é tutelada como tal. Para se compreender isto, haverá que ponderar que a aquisição da posse se faz por factos aquisitivos específicos deste direito (o apossamento, a inversão do título da posse, a tradição, incluindo a traditio brevi manu, e o constituto possessório) com completa desconsideração sobre a existência de um título válido de aquisição do direito real de gozo a que se refere a posse em questão. Porquanto a posse assenta num corpus possessório que pode ser adquirido sem

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão dependência da aquisição válida do direito real, pode haver posse dissociada do direito real de gozo e, ao invés, titularidade do direito real de gozo sem posse, para aqueles titulares de direitos reais que a perderam (nomeadamente nos termos da alínea d) do n.º1 do artigo 1267.º CC) ou nunca a tiveram. O exemplo paradigmático é o do autor do furto. O ladrão adquire posse por apossamento; naturalmente, não se torna com isso proprietário, porque o furto não é um facto aquisitivo da propriedade (artigo 1316.º CC), mas constitui uma posse a seu favor (alínea a) do artigo 1263.º CC). A classificação entre posse causal e posse formal, se não é pressuposta no regime jurídico da posse, nem por isso deixa apagar alguns traços de diferença. O possuidor formal tem o conteúdo de gozo estabelecido nos artigos 1268.º a 1275.º CC (efeitos da posse), mas o possuidor causal fundamenta o seu gozo a coisa no conteúdo do direito de que é titular. Em caso de conflito possessório, o possuidor formal apenas pode invocar a sua posse contra aquele com o qual tem o conflito, contrariamente ao que sucede com o possuidor causal, que pode sempre invocar o seu direito real de gozo para vencer a oposição do possuidor formal (artigo 1278.º, n.º1 CC). 2. Posse civil e posse interdictal: ao tratarmos do âmbito da posse, vimos que o Direito português reconhece a existência de posse em direitos reais que não são de gozo (penhor, direito de retenção) e em direitos subjetivos de outra natureza, mormente direitos de crédito (do comodatário, locatário, parceiro pensador e depositário). A posse reportada a outros direitos que não direitos reais de gozo não tem, no entanto, o mesmo tratamento jurídico, isto é, não está sujeita ao mesmo regime jurídico destes direitos. A usucapião, por exemplo, é apenas efeito da posse nos termos de um direito real de gozo e nunca pode beneficiar um possuidor nos termos de outro direito. Para ilustrar a contraposição entre o possuidor sujeito ao regime dos artigos 1251.º e seguintes CC, o possuidor nos termos de um direito real de gozo, e o possuidor que beneficia apenas de tutela possessória e, por analogia, de alguns outros efeitos da posse, mas não da usucapio, Menezes Cordeiro recuperou a velha terminologia romana. Porém, nas fontes romanas a possessio civilis contrapõe-se à possessio naturalis e não à posse interdictal; por outro lado, a leitura histórica desta classificação oferece um tal grau de complexidade e de controvérsia que duvidamos de algum beneficio que advenha para o sistema científico da sua adoção. 3. Posse efetiva e não efetiva: outra classificação doutrinária distingue a posse efetiva da posse não efetiva ou entre posse efetiva e posse civil. A posse é efetiva quando o possuidor mantém o controlo material da coisa através do corpus possessório, sendo civil ou não efetiva quando permanece como mero direito desacompanhada do corpus. A posse assenta num domínio material ou de facto que um sujeito mantém sobre uma coisa. No entanto, a lei pode imaterializar a posse, fazendo-a subsistir como mera situação jurídica desacompanhada do poder de facto. É o que se passa na situação contemplada na alínea d) do artigo 1267.º CC, em que a posse permanece não obstante a coisa já estar fora do controlo material do possuidor. 4. Posse titulada e não titulada: no Direito Romano do período clássico, a possessio civilis, para além do poder de facto sobre a coisa, requeria uma iusta causa possessionis, ou seja, um título aquisitivo do direito segundo o ius civile: a compra e venda, a doação, a constituição de dote, um legado real, etc. No Direito português atual, a pose não tem de ser titulada, podendo igualmente ser não titulada. Quer dizer, a ausência de um título de aquisição do direito exteriorizado através da posse não prejudica a existência desta, embora depois haja aspetos do regime jurídico em que a distinção ganha relevância.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Segundo o artigo 1259.º, n.º1 CC, diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico. Começamos por esclarecer o que se deva entender por modo legítimo de adquirir. Em primeiro lugar, a posse, para ser titulada, pressupõe que o possuidor afira a sua atuação sobre a coisa a um facto aquisitivo do direito. Esse facto é relativo à aquisição do direito a que se reporta a posse (a propriedade, o usufruto, o uso e habitação, a superfície, a servidão predial) e não à própria posse. Isto compreende-se por si. A ser diferente, o autor do furto, que tem na base um apossamento, facto constitutivo da posse (artigo 1263.º, alínea a) CC), teria uma posse tutelada! O facto jurídico que titula a posse refere-se à aquisição do direito nos termos do qual a posse se exterioriza. Em segundo lugar, o facto que titula a posse deve ter eficácia real para determinar a constituição ou a transmissão para o possuidor do direito a que se refere a posse. Assim, a usucapião, o contrato promessa de compra e venda, o contrato de doação, o contrato de permuta, por exemplo, podem titular uma posse nos termos da propriedade ou do usufruto, mas um contrato de comodato ou de arrendamento já não pode ter esse efeito, pois não é um facto com eficácia real, que possa transmitir a propriedade ou o usufruto, ou constituir este direito. Em terceiro lugar, o artigo 1259.º CC abstrai da validade substancial do facto jurídico com eficácia real para qualificar a posse como titulada. Um facto jurídico com a eficácia real para produzir a constituição ou transmissão para o possuidor do direito real exteriorizado na posse titula esta, mesmo se for substancialmente inválido. Um contrato de compra e venda viciado por erro, coação psicológica, simulação, etc., e por isso anulável ou nulo consoante o vício em questão, titula uma posse nos termos da propriedade, porque é um modo de legítimo de adquirir esse direito segundo o Direito Português (alínea a) do artigo 879.º CC). Acentua-se, por isso, que o facto jurídico tem de ser idóneo, em abstrato, para produzir a constituição ou transmissão do direito real em causa, ainda que em concreto seja ineficaz, por virtude de algum vício de natureza substancial, incluindo expressamente a falta de legitimidade do disponente (venda ou doação a non domino). O vício de forma do negócio jurídico, diversamente, gera sempre uma posse não titulada, ainda que o mesmo possua em abstrato eficácia real para a aquisição do direito pelo possuidor. Um anacronismo que o nosso Direito continua a dar guarida. O n.º2 do artigo 1259.º CC dispõe que o título deve existir, não podendo ser putativo. Aquele que o invoca tem o ónus de o provar. A posse titulada tem um regime mais favorecido do que a posse não titulada em alguns aspetos. Assim, presume-se que a posse titulada é uma posse de boa fé e a não titularidade de má fé (artigo 1260.º, n.º2 CC). Trata-se, em todo o caso, de uma presunção ilidível. Não obstante a existência de título, pode ser provada a má fé, como se pode provar a voa fé do possuidor sem título. A adquiriu de F, por entrega, a posse relativa ao livro x, nos termos de um contrato de compra e venda. A sabe, no entanto, que F furtou o livro a G e que não é o seu dono. O título existe (contrato de compra e venda), mas a posse é de má fé. B recebeu de C as chaves do prédio x, de que é o último proprietário por usucapião declarada judicialmente, nos termos de um contrato de doação da propriedade celebrado verbalmente. A posse de B é não titulada, mas, apesar disso, de boa fé.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Havendo título, a posse presume-se existente desde a data do título (artigo 1254.º, n.º2 CC). Não havendo, ter-se-á de provar o momento do seu início, o que será naturalmente relevante em matéria de prazos para a usucapião e de aquisição do direito por este facto (artigo 1288.º CC). Por último, em caso de conflito de posses, em que haja necessidade de atribuir a coisa a um dos litigantes pela melhor posse (artigo 1278.º, n.º2 CC), a pose titulada leva vantagem sobre a não titulada, ou, como dispõe o artigo 1278.º, n.º3 CC: é melhor posse a que for titulada. Em matéria de usucapião, uma relevância direta desta classificação só acontece na situação contemplada no n.º2 do artigo 1300.º CC. Mas o regime da usucapião não deixa de refletir a importância do título da posse nos outros casos. Tratando-se da usucapião de imóveis, havendo título e registo deste, o prazo para a usucapião é menor do que não havendo título, embora o possuidor só possa aproveitar este prazo caso registe o título (artigo 1294.º e 1296.º CC). O mesmo se passa relativamente à usucapião de coisas móveis sujeitas a registo (artigo 1298.º CC). No regime da usucapião de coisas móveis não sujeitas a registo o prazo menor (três anos) supõe a conjugação de título e boa fé.

5. Posse de boa fé e posse de má fé: o artigo 1260.º, n.º1 CC dispõe do seguinte modo: «a posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem». Há que distrinçar se por boa fé se entende o possuidor que ignora que a sua posse viola direito alheio (boa fé subjetiva psicológica) ou se está apenas de boa fé o possuidor que desconhece sem culpa que a sua posse lesa direitos alheios (boa fé subjetiva ética). À luz da primeira conceção, basta a mera ignorância do possuidor para haver automaticamente boa fé. A segunda, diferentemente, supõe uma avaliação da desculpabilidade ou não da ignorância do agente; uma ignorância culposa equivale a má fé. Não obstante a forte corrente contrária, que tem a seu favor o elemento literal, propugna-se uma interpretação favorável à conceção ética de boa fé, na linha preconizada por Menezes Cordeiro. Certos preconceitos culturais, que só podem ser justificados pelo atraso do país, têm dado amparo ao psicologismo, que funciona como uma forma de proteção da ignorância contra o esclarecimento. Este estado de coisas não se coaduna com a exigência de salvaguarda dos direitos tutelados pela ordem jurídica. A falta de diligência e de empenho do possuidor, a incompetência, o desleixo, a incúria ou o desprezo que ele revele relativamente aos direitos de terceiros devem recair sobre ele e não sobre os outros, como se estes tivessem de suportar a impreparação ou a falta de cuidado do possuidor. A boa fé não pode ser um prémio que o Direito atribui ao possuidor que não revela consideração pelos direitos dos outros. Também aqui há que superar um atavismo cultural histórico que tolhe toda a matéria da boa fé em Direitos Reais. 6. Posse pacífica e posse violenta: no n.º1 do artigo 1261.º CC dispõe que a posse pacífica é a que foi adquirida sem violência. Acentua-se, deste modo, que o momento da apreciação deste carater da posse é o da aquisição respetiva. Uma posse adquirida sem violência é pacífica para sempre, ainda que seja depois mantida com violência. Inversamente, uma posse adquirida com violência, mas mantida pacificamente, é violenta, não obstante o desfavor desta qualificação surgir depois mitigado pela cessação da violência, como veremos adiante. O n.º2 do artigo 1261.º CC vem dispor que a posse é violenta quando é exercida coação física ou psicológica, os termos do artigo 255.º CC, sobre o possuidor. Esta última pode dizer respeito à pessoa ou património do possuidor ou de terceiros (artigo 255.º, n.º2 CC). É usual sustentar que a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão violência respeita tanto à pessoa como à coisa objeto da posse. A jurisprudência portuguesa tem acolhido este entendimento, indo, no entanto, demasiado longe. A coação física e a coação psicológica exercem-se sobre a pessoa do possuidor e não sobre a coisa, apesar de poderem envolver direta e imediatamente uma ação sobre esta. Assim, se um terceiro usa explosivos no prédio para atemorizar o possuidor, forçando a sua saída, a posse é violenta, como o será se o terceiro surgir no prédio rodeado de capangas preparados para agressão. O que releva neste caso é a coação psicológica sobre o possuidor e não uma eventual com meios violentos (explosivos) sobre a coisa possuída. Não será, contudo, o caso se o possuidor está fora e não pode ser assustado pelo recurso a esses meios. O rebentamento de uma porta de um prédio com explosivos, com o possuidor ausente e desconhecendo a situação, por muito impressionante que possa ser, não traduz nenhum ato de coação física ou psicológica sobre ele. A posse eventualmente daí resultante (por apossamento) é pacífica. A é proprietário e possuidor de um prédio e mora no estrangeiro. O prédio encontra-se murado e a entrada está fechada com uma porta blindada, não estando ninguém a habitá-lo. B, pretendendo instalar-se no prédio, usa um trator para deitar abaixo a porta e entrar. A posse de B é pacífica ou violenta? Segundo o artigo 1261.º CC, é pacífica, porquanto nenhuma coação física ou psicológica foi exercida sobre o possuidor A. Concluímos o ponto, reiterando que a violência tem o possuidor por destinatário e não a coisa. E que uma atuação sobre esta, ainda que com recurso a meios violentos, só pode significar coação física ou psicológica se dirigida ao possuidor. A esta classificação ligam-se uma série de diferenças de regime jurídico. Para começar, o possuidor que for esbulhado com violência pode interpor um procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra o esbulhador (artigo 1279.º CC). Este é condenado a restituir a coisa ao possuidor esbulhado sem contraditório, nem análise de títulos. A reação à violência não dá espaço para contemplações a quem a ela recorre para satisfazer os seus intentos. A posse adquirida com violência é tida como posse de má fé, sem possibilidade de prova em contrário (artigo 1260.º, nº3 CC). Não adianta o esbulhador provar inclusive a titularidade do direito. A caracterização da posse como de má fé surge como sanção pela violência praticada na obtenção da posse. O prazo de um ano para a perda da posse previsto na alínea d) do n.º1 do artigo 1267.º CC não se inicia enquanto a violência não cessar (artigo 1267.º, n.º2 CC). Quer dizer, o esbulhado vem mesmo a perder a posse se não reagir ao esbulho no prazo de um ano; contudo, o ano não se conta do início da posse do esbulhador, mas do momento em que a violência sobre o possuidor esbulhado houver terminado. A ameaçou a vida de B para obter a posse do automóvel x, na posse do último. Essa ameaça prolongou-se ainda durante 30 dias após B ter entregue a coisa a A, em 1 de janeiro de 2006. Neste caso, o prazo de um ano constante do artigo 1260.º, n.º1, alínea d) CC só inicia a sua contagem em 31 de janeiro de 2006 e não a 1 de janeiro, quando A adquiriu a posse. Enquanto durar a violência, a posse não é boa para a usucapião. Isto não significa que a posse violenta exclua a usucapião. Os artigos 1297.º e 1300.º, n.º1 CC não consagram tal solução. Uma posse adquirida com violência pode servir de base à usucapião, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão contando que o possuidor possua a coisa pacificamente por todo o prazo legal de usucapião. Todavia, enquanto durar a violência, o prazo para a usucapião não corre. 7. Posse pública e posse oculta: esta classificação encontra-se no artigo 1262.º CC, o qual, calha a verdade, apenas define a posse pública. A posse oculta, ao invés, deve depreender-se, é a que não é pública. Segundo o artigo 1262.º CC, posse pública é a que esse exerce de modo a poder ser conhecida dos interessados. Contrariamente ao que sucede relativamente aos outros carateres da posse, esta classificação entre posse publica e posse oculta não se afere ao momento da aquisição da posse, mas ao modo como esta é exercida. A posse é pública quando pode ser conhecida dos interessados. O primeiro aspeto relevante desta definição é que a lei portuguesa não exige o conhecimento efetivo da posse; o que conta somente é a cognoscibilidade da posse, ou seja, o esta poder ser conhecida. A posse é pública mesmo que os interessados não a conheçam, desde que a possam conhecer. A é proprietário do imóvel x, situado no Porto, mas vive em Guimarães e não se desloca ao Porto com frequência. B instala-se no prédio (apossamento) e fica lá a viver peramententemente, desconhecendo A esse facto. A posse de B é pública, porquanto B, mesmo ignorando a posse daquele, pode conhecê-la. Como se vê deste exemplo, a circunstância de o possuidor não se encontrar junto da coisa, porque mora noutro local, e, por isso, não ficar a conhecer a nova posse de outrem, não afasta o caráter público dessa posse, uma vez que, não conhecendo embora essa nova posse, poderia conhecer. Quando é que se pode dizer que há cognoscibilidade para o efeito de caracterizar a posse de alguém como pública? Salientamos, desde já, que é estranha a este domínio a ideia de dever. A cognoscibilidade não advém de um dever de conhecer que impenderia sobre o possuidor interessado. A cognoscibilidade resulta de uma possibilidade efetiva de conhecimento a partir de um comportamento normalmente diligente em relação à coisa. Quer dizer, parte-se daquilo que se entende ser a atuação de um possuidor medianamente diligente em relação à sua coisa e verifica-se se o possuidor em questão agindo dessa forma conheceria ou não a nova posse de outrem. Exemplificando com a posse de um imóvel, é normal que o possuidor cuide do mesmo, deslocando-se a ele ou procurando inteirar-se da sua situação. Se assim proceder, conhecerá certamente a nova posse de outrem. Se nada fizer, não conhecerá, mas aí não porque não pudesse conhecer, mas porque não atuou com a normalidade esperada. A posse de outrem é pública. O registo da posse, possível nos termos da alínea a) do nº.1 do artigo 2.º CRPr, torna a posse pública. Contudo, e como acabámos de ver, não é necessária a publicidade por via do registo predial para que a posse se qualifique como tal. De resto, a lei portuguesa prescindiu mesmo da menção ao registo que surgia no anteprojeto de Pinto Coelho. A publicidade da posse não advém do conhecimento de toda a gente ou de qualquer pessoa. O artigo 1262.º CC abrange unicamente os interessados. Que interessados são esses? Certamente todos aqueles que tiverem posse sobre a coisa, mas não só; também os titulares de direitos reais de gozo que não sejam possuidores são interessados na aceção do preceito. A caracterização da posse oculta levanta alguns problemas delicados, a começar pela sua admissibilidade. Na verdade, a posse supõe um controlo material da coisa pelo possuidor, o corpus possessório, o que nem sempre

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão é compatível com a falta de publicidade. Aquele que às escondidas, sem os interessados saberem, leva o gado a beber no ribeiro do vizinho ou aproveita a lenha desse prédio, não domina materialmente a coisa, não tem corpus possessório e, logo, não tem sequer posse. Sugestivamente, o artigo 1263.º, alínea a) CC exige uma prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais para que o apossamento seja consumado. Tomado à letra, este preceito é certamente excessivo, como vimos no lugar próprio. Alerta, porém, para o facto de a tomada do controlo material correspondente ao corpus possessório nem sempre se conjugar com o caráter oculto da atuação sobre a coisa. Nos casos em que o caráter oculto da atuação corresponde verdadeiramente à ausência de corpus, não há posse a considerar. Falta, desde logo, o pressuposto fático da posse, o domínio ou controlo material da coisa. Todavia, existem outros casos em que o caráter oculto da atuação aparece associado ao controlo material da coisa. A apropria-se secretamente da carteira de B no metropolitano. C furta o automóvel de D e leva-o para um local escondido. Nesta última categoria de casos, há posse, mas ela é oculta, porquanto o possuidor interessado, tendo embora perdido o controlo material da coisa, não sabe nem pode saber quem a tem em seu poder (artigo 1262.º CC). Na realidade, a posse oculta é uma verdadeira posse, e o possuidor às ocultas um possuidor. Ele tem o controlo material da coisa sem que a lei descaracterize a situação para mera detenção. As diferenças de regime entre posse pública e posse oculta retiram a este última alguns dos efeitos principais da posse, nomeadamente, a usucapião, sem, contudo, porem em causa a própria existência da posse. Tomemos o exemplo anterior do furto do automóvel de D por C e suponhamos agora que este último é roubado por E. Como tem posse, C pode lançar mão da ação de restituição de posse contra E (artigo 1278.º e 1281, n.º1 CC), assim como pode exigir uma indemnização a este último por violação da posse (artigo 1284.º, n.º1 CC). Conforme dissemos, a classificação entre posse pública e posse oculta acarreta um regime penalizado para a posse oculta. Para começar, quando a posse é tomada ocultamente, o prazo de um ano para a perda da posse do possuidor esbulhado (artigo 1267.º, n.º1, alínea d) CC) só começa a contar quando a posse oculta se torne conhecida deste último (artigo 1267.º, n.º2 CC). Já não basta então a mera suscetibilidade de conhecimento, como decorreria aparentemente do artigo 1262.º CC, exigindo-se um conhecimento efetivo da nova posse. O prazo para a usucapião não começa a contar enquanto a posse permanecer oculta, tanto para as coisas móveis (artigo 1300.º, n.º1 CC), como para as imóveis (artigo 1297.º CC). A posse oculta é, assim, uma posse sem usucapião, mas só enquanto permanecer como tal; tornando-se pública a posse que era oculta, o prazo para a usucapião começa imediatamente a contar. Embora não surja explicitado no artigo 1278.º, n.º3 CC, a posse pública é melhor posse que a posse oculta e prevalece sobre esta em caso de conflito. Por último, o possuidor só pode obter o título judicial para registo da posse desde que tenha possuído pública e pacificamente por tempo não inferior a cinco anos (artigo 1295.º, n.º2 CC). Como se depreende, a posse oculta não pode ser titulada desta forma.

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Os factos constitutivos da posse: no Direito português, existem dois factos constitutivos da posse:

1. O apossamento: o apossamento designa a apreensão do controlo material da coisa por aquele que até aí a não tinha em seu poder. Segundo a alínea a) do artigo 1263.º CC, seriam necessários três requisitos para haver apossamento: a. A prática de atos materiais: o apossamento constitui a tomada do controlo material da coisa e concretiza-se, pois, através dos atos físicos necessários à sua apreensão. Como o que está em causa é a investidura no corpus possessório de alguém que não tinha a coisa consigo, o agente tem de atuar de molde a tê-la em seu poder. A aproveita o seu amigo estar distraído e coloca o telemóvel dele no seu bolso, com intenção de se apropriar do mesmo. B, sabendo que o andar x está devoluto, arromba a fechadura e instala-se lá. C furta as chaves do automóvel de D no restaurante e foge como ele, escondendo-o na sua garagem. O apossamento ocorre, por conseguinte, num nível fático de atuação, supondo um comportamento através do qual o agente ganha o seu controlo material. O controlo material adquirido não tem de ser exclusivo, no sentido de privar outras pessoas do controlo material que também tenham sobre a coisa. Mas isto tem de ser bem entendido para não gerar confusões. Um apossamento nos termos da propriedade singular priva o possuidor anterior nos termos da propriedade do acesso à coisa; se este continua a poder atuar sobre a coisa é porque o apossamento não se consumou. No entanto, um apossamento nos termos da propriedade pode coexistir com o controlo material que outros possuidores nos termos do mesmo direito real, em situações de comunhão, ou de direitos reais menores exerçam igualmente sobre a coisa. Se o proprietário de um prédio inicia a sua passagem sistemática pelo prédio vizinho e o possuidor deste nada faz para o impedir, consumando-se o apossamento a certa altura com o controlo material da área utilizada, a posse nos termos da servidão predial de passagem não afasta naturalmente a posse exercida relativamente à propriedade no prédio serviente. Por último, o apossamento pode ocorrer nos termos de qualquer direito real de gozo e não apenas quanto à propriedade. Neste caso, é claro que a constituição da posse a favor daquele que se apossa da coisa não é incompatível com o controlo material que outros exercem sobre a coisa por referência a outros direitos reais de gozo, desde logo, a propriedade. A vende o usufruto do prédio x a B, mas recusa-se injustificadamente a fazer a entrega da coisa ao usufrutuário. B instala-se, então, no prédio contra a vontade de A, para iniciar o exercício do seu direito. Aferindo a sua atuação ao título (compra e venda), B concretiza um apossamento nos termos de um usufruto e a sua posse coexistirá com a do proprietário. O apossamento surge ao nível da atuação física sobre a coisa; trata-se da criação de um estado de facto em que o agente, querendo, passa a ter a possibilidade 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão de atuar diretamente sobre ela. Desde Savigny que se acentua que o apossamento supõe a sujeição física da coisa ao agente. Relativamente à situação de terceiros, importa considerar a posição dos possuidores cujo corpus é afetado pelo apossamento de outrem. O apossamento só se concretiza com a quebra do corpus de possuidor anterior. Mas é possível destacar, pelo menos, dois grupos de casos: i. O apossamento acarreta a quebra do corpus possessório de todos os possuidores da coisa, de modo a que o novo possuidor controla a coisa por inteiro, o que é sinónimo da exteriorização de uma propriedade singular não onerada; ii. O apossamento apenas quebra o corpus de uma das posses, justamente aquela cujo exercício é incompatível com o direito exteriorizado pelo novo possuidor, respeitando as outras. A possui o prédio x nos termos da propriedade e B nos termos de usufruto. C afasta A do controlo material da coisa, mas atua respeitando a posse de B, neste caso, apenas a posse de A é posta em causa, não a de B, que permanece. b. Reiteração da prática dos atos materiais: o artigo 1263.º, alínea a) CC menciona a prática reiterada dos atos materiais. Muito justamente, Oliveira Ascensão critica a formulação do preceito, na medida em que ele induz falsamente a necessidade de uma repetição da atuação material, quando o que está em causa é somente a tomada do controlo material da coisa, que se pode consumar num único ato. Na verdade, o controlo material da coisa pode advir somente de um conjunto de atos repetidos. O proprietário que leva o seu rebanho a pastar uma vez no prédio do vizinho, não tem certamente o controlo material sobre ele, de modo a se poder falar de uma posse nos termos de uma servidão predial de pasto. No entanto, a continuação da prática de atos desse tipo pode induzir um controlo material do imóvel para o exercício da servidão. Simplesmente, existem muitas outras situações em que um único ato ou um número muito limitado de atos não repetidos, basta para consumar a apropriação física da coisa e a tomada de controlo material sobre ela. O carteirista que furta a carteira a um passageiro no transporte realiza num único ato o apossamento da coisa. Decisivo será, assim, não a repetição da atuação material, que, de resto, pode ser muito diferenciada, mas a intensidade da atuação sobre a coisa para consumar o controlo dela. Um controlo material da coisa que seja episódico, efémero, transitório não é suficiente para o apossamento. Este requer que o possuidor esteja em condições de atuar duradouramente sobre a coisa, ou seja, de a conservar debaixo do seu poder. Isto não quer dizer, porém, que a posse tenha de se manter duradouramente para que haja apossamento, mas que deve existir essa possibilidade abstrata. A circunstância do possuidor abandonar a coisa logo a seguir à sua apreensão material ou de ser dela privado por um ato de terceiro não obsta ao apossamento se o agente chegou a consumar a apreensão material da coisa e tinha a possibilidade de manter o controlo dela. O tempo não é assim relevante para o apossamento; o que conta é sempre a intensidade da atuação para criar o controlo material da coisa pelo sujeito. Schwab/Prüting discordam 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão aparentemente, afirmando que tem de haver sempre um momento para a aquisição do poder de facto sobre a coisa. Pensamos, todavia, que isto nada tem a ver com um significado autónomo do tempo para a aquisição da posse por apossamento. A encontrou um animal sem dono e pegou nele para o levar para casa. No caminho, surge um terceiro que lhe furta o animal. O apossamento chegou a consumar-se com a apreensão do animal, pois o possuidor estava em condições de continuar a atuação material não fora o ato do terceiro. Do mesmo modo, se imediatamente após ter consumado a apreensão do animal, A se arrepende e solta o mesmo, chegou a haver apossamento. c. Publicidade dos atos materiais: a referência à publicidade na alínea a) do artigo 1263.º CC deve igualmente ser esclarecida. Como veremos adiante, a lei portuguesa admite a posse oculta, que não é naturalmente uma posse exercida com publicidade. Como compatibilizar, assim, a previsão da posse oculta como verdadeira posse com o requisito de publicidade dos atos materiais do apossamento? Pensamos que a explicação se encontra no facto de se pretender negar a posse àqueles que praticam atos materiais de aproveitamento da coisa às escondidas do possuidor, sem que, contudo, afastem este do controlo material. O caráter da atuação equivale aqui à ausência de um controlo material, portanto, do corpus e, logo, da própria posse. A leva o seu gado a beber no riacho do prédio vizinho todas as noites, aproveitando a escuridão para não tornar notado o seu comportamento ao possuidor. B usa o trator de C quando este não se encontra no prédio a trabalhar. Nestes dois exemplos, os atos materiais são praticados às ocultas, mas não é isso que impede a posse de A e B. O que obsta à posse destes é a circunstância de não terem o controlo material da coisa e, deste modo, o corpus possessório. Já se B levasse o trator consigo, apossar-se-ia do mesmo, ainda que C não pudesse conhecer a pessoa do esbulhador. Em todo o caso, o caráter oculto da atuação material do agente não obsta à constituição de uma posse a favor deste, por apossamento, sempre que este envolva a tomada do controlo material da coisa. Havendo corpus e não descaracterizando a lei a situação para mera detenção, há posse, ainda que oculta. Na Alemanha, tem-se sustentado uma posição diferente, que a obtenção da posse deve ser reconhecida do exterior. Julgamos, no entanto, que esta posição não se harmoniza com a previsão da posse oculta como verdadeira posse que ocorre no Direito português. Teria sido preferível não fazer qualquer menção à publicidade em sede de apossamento. Não se harmoniza bem com o requisito básico da posse, o corpus, que pode existir sem publicidade, e cria uma potencial contradição com o regime da posse oculta, que também é posse. O animus ou vontade de ter a posse tem sido muitas vezes mencionado como requisito do apossamento, no Direito Romano e no Direito atual, falando, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão porém, os autores modernos numa vontade naturalística e não numa vontade jurídico-negocial. Os autores referem que uma atuação dirigida ao controlo da coisa não seria pensável sem a vontade correspondente do sujeito. Em Portugal, i. Manuel Rodrigues: veio defender que o ato de investidura na posse háde conter um elemento que estabeleça a relação material da posse com a coisa, e há-de conter um elemento espiritual que signifique a intenção de exercer um direito no próprio interesse. No ato de aquisição há-de haver, portanto, o corpus e o animus, o facto material e a intenção de exercer o direito no próprio interesse. ii. Pires de Lima/Antunes Varela: seguiriam o mesmo trilho. Comentando a alínea a) do artigo 1263.º CC, os autores afirmam que estes atos, de per si, podem não conduzir à posse se faltar o animus possidendi. Esta alínea vale, assim, como um complemento ou uma confirmação do conceito de posse expresso no artigo 1251.º CC. O disposto no artigo 1266.º CC confirmaria, segundo os autores, que o animus é um elemento essencial para a aquisição da posse. iii. Esclareça-se, em todo o caso, que o animus domini ou corresponde ao direito real é: o animus possidendi ou, mais precisamente, o animus rem sibi habendi, a vontade de ter a coisa como possuidor. É de exigir uma intenção ou animus de posse para que haja apossamento? De modo inteiramente análogo ao que sucede em termos de definição de posse no artigo 1251.º CC, o Código Civil português omite qualquer referência à intenção ou animus na alínea a) do artigo 1263.º CC. Neste preceito, mencionam-se apenas os atos materiais, sem alusão à intenção ou animus de possuir. O que não surpreende. O Código Civil português é na estruturação do regime da posse profundamente objetivista. Tal como o animus não é elemento constitutivo da posse, ele não é necessário no apossamento. Basta, pois, a apreensão da coisa que induza o controlo material sobre ela para que o apossamento esteja consumado e a posse se constitua, se não se verificar nenhum dos casos previstos no artigo 1253.º CC, e isto seja qual for a vontade que o agente tenha e ainda que não tenha vontade nenhuma de possuir. Contrariamente ao que pretendem Pires de Lima/Antunes Varela, o artigo 1266.º CC não abona uma posição favorável ao animus possidendi. Este preceito, estabelecendo uma regra de capacidade em matéria de aquisição de posse, começa por dispor que os que não têm uso da razão podem adquirir posse sobre coisas móveis nullius. Um doente mental pode, assim, apossar-se de um animal selvagem, por exemplo, adquirindo posse. Se a doença lhe tolda o discernimento de todo não é possível falar-se numa intenção minimamente estruturada. Não há aqui qualquer animus de posse a considerar. Mais claro ainda é o caso de uma posse adquirida por recém nascido. Aparentemente, seguindo-se à letra do artigo 1266.º CC, um bebé não poderia adquirir posse de um imóvel por apossamento, pois não tem ainda decerto o uso da razão. O preceito tem, porém, de ser objeto de uma restrição no seu alcance, pois não se pretende obviar a uma posse de coisa imóvel adquirida através de outrem, nomeadamente, um representante. Os pais podem constituir uma posse de um prédio para o seu filho bebé, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão nos termos amplos que o artigo 1252.º, n.º1 CC permite o exercício da posse através de intermediário. Sempre se poderia, porém, dizer que, não tendo a criança o uso da razão, o animus possessório residiria nos representantes. E é aqui que o argumento falha. Sustentando os autores subjetivistas que a vontade requerida não é uma vontade jurídico-negocial, mas uma vontade naturalística, evidenciam com isto que, afinal, não é necessária a vontade no apossamento. Se a vontade não é negocial, mas naturalística, não pode ser substituída por esquemas jurídicos. Voltando ao nosso exemplo, o bebé adquire posse de um imóvel com a atuação dos seus representantes, ainda que não tenha, não possa ter, vontade de posse quanto a essa coisa. O que mostra bem que a vontade não é precisa para o apossamento. Um último argumento pode ser avançado. O apossamento pode verificarse mesmo sem o conhecimento daquele que se apossa. O proprietário do imóvel ausente no estrangeiro torna-se possuidor da água da chuva caída no seu imóvel ainda que desconheça de todo que ela se encontra em seu poder. A existência do controlo material sobre a coisa é suficiente para o apossamento, salvo quando a lei afastar a posse. Portanto, sempre que a atuação material sobre uma coisa corpórea permita criar o controlo sobre ela, permitindo que o agente possa renovar a atuação sempre que queira, por si ou por representante, há apossamento, sem necessidade de se aferir do animus de posse. O apossamento pode ter lugar através da atuação de alguém que atue por conta do adquirente da posse. Assim, se, por exemplo, os trabalhadores de uma empresa efetivam o controlo material de uma coisa por conta daquela, é a empresa, e não os trabalhadores, quem adquire a posse por apossamento. Trata-se de uma aplicação da regra que dispõe que a posse pode ser exercida através de outrem (artigo 1252.º, n.º1 CC). Se pode haver posse por intermédio de outrem, por maioria de razão, tem de se admitir que tal sucede também com o apossamento. Nesta ordem de ideias, o apossamento pode ser levado a cabo por uma pessoa coletiva, que adquire posse originariamente nos mesmos termos de uma pessoa singular. 2. A inversão do título da posse: o artigo 1263.º, alínea d) CC dispõe que a posse se adquire por inversão do título da posse (interventivo possessionis). Esta figura vem depois regulada no artigo 1265.º CC, nos termos do qual, a inversão do título da posse por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse. O artigo 1265.º CC teve por fonte próxima o Codice Civile italiano. Segundo o qual, se alguém começou por ter detenção, não pode adquirir a posse a não ser que o título venha a ser modificado por causa proveniente de um terceiro ou por força da oposição daquele contra o possuidor. Esta regra veio a consagrar solução já proclamada no Direito Romano, onde se dizia nemo causam possessionis sibi ipse mature potest. Na inversão do título da posse, o detentor da coisa passa a exteriorizar um direito próprio sobre ela ou, como outros preferem dizer, a afirmar uma posse em nome próprio. Aquele que até aí atuava sobre a coisa em nome alheio, em nome do possuidor, começa a fazê-lo nos termos do seu próprio direito. É completamente indiferente que não seja titular desse direito; a inversão do título da posse não é um facto aquisitivo do direito real, mas simplesmente da posse. Se aquele

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que tem a coisa em seu poder começa a exteriorizar um direito contra o possuidor anterior, o Direito faz corresponder a posse à nova exteriorização. A inversão do título da posse provoca a aquisição da posse relativa ao direito a que o detentor passa a referir a sua atuação sobre a coisa. A, arrendatário do prédio x, deixa de pagar as rendas a B, proprietário e senhorio, comunicando a este último ser ele o dono da coisa; C, usufrutuário do quadro y, propriedade de D, recusa a entrega a este no final do usufruto, alegando ter adquirido o direito de propriedade por compra a E. Nestes dois casos, A e C adquirem a posse nos termos da propriedade, mesmo que não beneficiem de nenhum facto aquisitivo válido do direito real (no caso, a propriedade) que passam a exteriorizar. Na maior parte das vezes, o detentor arroga-se o mesmo direito de possuidor. Mas o direito a que se refere a atuação daquele não tem de ser o mesmo direito deste último. O que se atesta claramente do exemplo seguinte: A, arrendatário do prédio x, opõe-se contra B, senhorio nos termos da propriedade e titular deste direito, invocando ser titular de um usufruto. Existindo inversão do título da posse, ele dá-se para o usufruto, o direito exteriorizado por A, e não para a propriedade. A inversão do título da posse opera sempre por um detentor, isto é, alguém que tem o corpus possessório, sem que o Direito reconheça a posse (artigo 1253.º CC). Faltando o corpus, não pode haver inversão do título da posse. A inversão do título da posse distingue-se, assim, muito claramente do apossamento, que supõe uma inexistência prévia do corpus possessório. É discutível se qualquer detentor pode inverter o título da posse, e, por conseguinte, também aquele que não afirma nenhum direito próprio sobre a coisa (simples detentor ou detentor precário) ou se apenas o detentor que possua nos termos de um direito próprio (outro direito diferente do possuidor) o pode fazer. Neste último caso, a inversão designaria os casos de evolução da posse de um direito real menor (por exemplo, o usufruto ou superfície) ou de um direito de outra natureza (arrendamento, comodato, parceria pecuária, etc.) para um direito maior (a propriedade ou outro direito real menor mais extenso do que aquele que o detentor até aí exteriorizava). Nenhuma razão há para limitar a inversão do título da posse aos detentores que sejam simultaneamente possuidores nos termos de um direito próprio. Por outro lado, a formulação ampla do artigo 1265.º CC cobre todas as situações de detenção e não apenas as que coexistem com uma posse em nome próprio. A é caseiro no prédio x possuído por B. C é usufrutuário e possuidor nos termos desse direito da máquina empilhadora x, possuída quanto à propriedade por D. Tanto A como C, e não apenas este último, podem inverter o título da posse contra B e D, respetivamente. O facto de A ser um simples detentor, sem referir a sua atuação sobre o prédio a nenhum direito real menor ou a outro direito, não obsta a que possa inverter o seu título de posse.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A inversão do título da posse tem lugar contra a vontade do possuidor contra o qual ela atua. Havendo vontade deste último, ocorre uma hipótese de traditio mani brevi. O regime jurídico da inversão do título da posse não deixa espaço ao paradigma subjetivista da posse, que não consegue explicar como a inversão do título da posse não se dá simplesmente com uma mudança do animus, a passagem do animus detinendi para animus possidendi. Se há trecho do regime jurídico da posse que elucida bem que o animus é despiciendo para alterar a situação jurídica possessória é justamente o regime da inversão do título da posse. Mesmo havendo um animus de posse pelo detentor, o artigo 1265.º CC dispõe que a inversão do título da posse só ocorre perante a verificação de dois factos:  Oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía: o artigo 1265.º CC não esclarece o que se deve entender por oposição do detentor. Há, pois, que interpretar o preceito. o Em primeiro lugar, a oposição pode ser material, jurídica ou revestir as duas formas: o detentor que paga a contribuição autárquica no lugar do possuidor ou que recebe a renda do arrendatário no lugar daquele pratica atos jurídicos de oposição ao possuidor. Todavia, o detentor que constrói um muro à volta da casa para impedir a entrada do possuidor age materialmente. E uma combinação de atos materiais e jurídicos é decerto possível. Isto mostra que a inversão do título da posse por oposição não tem natureza jurídico-negocial. Não existe nenhum propósito de comunicação de efeitos jurídicos a um destinatário, determinado ou indeterminado. A conduta de oposição não tem forçosamente um conteúdo de comunicação. O seu efeito, a constituição da posse, liga-se a um comportamento não declarativo do detentor. Trata-se, antes, de um ato jurídico. o Em segundo lugar, a oposição pode ser judicial ou extrajudicial: o detentor que demanda o possuidor pedindo ao tribunal que declare ser ele o titular de um direito e não o possuidor ou que peça ao tribunal que declare ser ele titular de um direito contra o possuidor inverte o título da posse. o Em terceiro lugar, o comportamento de oposição deve ser exteriormente reconhecível pelo possuidor: o comportamento de oposição deve ser exteriormente reconhecível pelo possuidor quando a oposição não lhe é comunicada e significar, inequivocamente, a afirmação de um direito próprio pelo detentor, diverso naturalmente do até aí exteriorizado por ele. A não entrega da coisa no final do prazo contratual, o incumprimento de obrigações, como é o caso do não pagamento das rendas pelo senhorio, a controvérsia sobre a validade do contrato ou sobre as obrigações das partes, por exemplo, não têm por si só o significado correspondente a uma inversão do título da posse se não forem acompanhadas da afirmação inequívoca de um direito próprio sobre a coisa.  Ato de terceiro: o que se deve entender por ato de terceiro para o efeito da inversão da posse, como sua segunda modalidade? Antes de mais, o ato de terceiro consiste num negócio jurídico, unilateral (um testamento) ou multilateral (um contrato). Este negócio jurídico deve ter, em abstrato, eficácia real para fundar a constituição ou transmissão do direito real em causa a favor do detentor. Dizemos, em abstrato, porquanto a lei (artigo 1265º CC) não supõe a validade do

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão negócio, apenas a sua idoneidade para fundar uma posse nos termos de um direito real próprio. Um negócio nulo, mas em abstrato idóneo para a constituição ou transmissão do direito real, permite a inversão do título da posse pelo detentor. Este negócio jurídico tem, em todo o caso, de fundamentar a exteriorização de um direito próprio pelo até aí detentor, pois, ainda que seja juridicamente ineficaz, há-de atribuir um novo direito a que o detentor passe a referir a sua atuação sobre a coisa. O negócio jurídico que beneficia o detentor permite a este exteriorizar um direito real que até aí não exercia. Diferentemente do que sucede com a primeira modalidade de inversão do título da posse, por oposição, ocorre nesta segunda modalidade a incidência de um novo título, que é constituído pelo negócio jurídico que beneficia o detentor. Este título funda objetivamente a atuação do detentor nos termos do direito real a que esse título se refere. Ora, porquanto a posse coincide com a exteriorização do direito real, se o detentor passa, por força do novo título, a atuar sobre a coisa nos termos de um direito real, o Direito faz corresponder o seu estatuto possessório à nova exteriorização. O até aí detentor passa a possuidor. A, superficiário do prédio x, cujo direito foi constituído por compra ao proprietário B, beneficia de deixa testamentária de C, que lhe lega a propriedade do prédio; C, como comodatário de D, alegadamente proprietário do prédio y, celebra com E um contrato de compra e venda da propriedade. Nestes exemplos, os detentores nos termos da propriedade beneficiam de negócios jurídicos aquisitivos do direito de propriedade e vão atuar sobre a coisa nos termos deste direito. Por isso, o artigo 1265.º CC determina a mudança do estatuto jurídico-possessório; o até aí detentor adquire a posse relativa ao direito agora exteriorizado, ou seja, a propriedade. Alguns autores afirmam que o terceiro pode ser o próprio possuidor. Tal interpretação é de rejeitar. Se é o possuidor a transmitir ou a constituir o direito, haverá traditio brevi manu, eventualmente, constituto possessório, mas não inversão do título da posse. Esta dá-se sempre contra o possuidor. Nada impede, todavia, que aquele que constitui ou transmite o direito real seja o proprietário ou um outro titular de direito real menor, desde que não seja o possuidor contra o qual funciona a inversão do título da posse. A, possuidor do relógio x nos termos da propriedade alugou-o a B por um ano. Dois meses depois, C, proprietário do relógio, doa-o a B. Com a doação, B inicia uma atuação como proprietário, uma vez que é esse o direito a que a doação se reporta. Há inversão do título da posse; B deixa de ser detentor e passa a possuir o relógio como proprietário.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A lei portuguesa menciona o ato de terceiro capaz de transferir a posse. Em consonância com o sentido literal, parece que deveríamos considerar os factos translativos da posse, ou seja, a tradição, a traditio brevi manu e constituto possessório. Porém, só pode estar em causa um facto suscetível de constituir ou transmitir o direito real a que a posse se refere e não a própria posse. Se o preceito abrangesse um facto translativo da posse (a tradição, a traditio brevi manu e o constituto possessório), seria este e não a inversão do título a provocar a aquisição da posse pelo detentor. A previsão da inversão do título da posse por ato de terceiro careceria, assim, de sentido útil, pois o detentor adquiriria sempre a posse, embora por outro facto. Nesta ordem de ideias, o ato de terceiro deve ser – em abstrato – suscetível de constituir ou transmitir o direito real a que a posse se reporta. Assim, e vulgarmente, a compra e venda, a doação, a permuta, o testamento, etc., constituem exemplos de atos praticados por terceiro, com ou sem o detentor, que têm por efeito a inversão do título da posse relativamente a este último. Como se vê, o estatuto do detentor muda, não por causa de uma qualquer intenção que porventura anime o seu espírito (o animus dos subjetivistas), mas por força da exteriorização de um direito real sobre a coisa. Uma vez que na ordem jurídica portuguesa o estatuto possessório coincide com a exteriorização que é levada a cabo sobre a coisa, quando o detentor afirma um direito real sobre ela, através de oposição e ainda que sem título ou com este, a lei faz coincidir a posse com o direito exteriorizado e o detentor passa a possuidor nos termos deste direito. A inversão do título da posse pode dar-se por um compossuidor contra os outros compossuidores. A hipótese vem admitida no artigo 1406.º, n.º2 CC, quanto aos comproprietários, mas respeita, na verdade, a todas as situações de composse. O compossuidor (ou alguns dos compossuidores) atua como possuidor único nos termos de um direito, por oposição ou por ato de terceiro, excluindo os outros da atuação material sobre a coisa. Não basta, pois, um uso de maior extensão que a quota do compossuidor na coisa comum, sendo necessária a quebra do corpus possessório dos compossuidores contra os quais funciona a inversão. A inversão do título da posse muda a situação jurídico-real da coisa apenas no que concerne à posse: o detentor passa a possuidor. Porém, no que concerne à titularidade ou não de um direito real de gozo (ou qualquer outro direito) nada muda com a inversão do título da posse. O possuidor afetado com a inversão do título não perde o direito real de que era titular e o detentor que operou a inversão não adquire o direito real que passa a arrogar-se contra o possuidor. A inversão do título da posse configura um facto constitutivo da posse ou, noutra terminologia, um modo de aquisição originária da posse. A posse assim adquirida é uma posse nova, com carateres próprios, nada tendo a ver com a posse do possuidor esbulhado. Aquele que inverte o título da posse e tem uma posse pública e pacífica pode adquirir o direito real a que se refere a sua posse, contando que os outros requisitos se verifiquem igualmente (artigo 1290.º CC). O prazo para a usucapião conta-se da data da inversão do título, o que se compreende, pois só a partir desse momento há posse.

Os factos translativos da posse: 1. A tradição da coisa: a tradição (traditio) a coisa é o facto paradigmático de transmissão da posse. Ela significa a perda voluntária do controlo material da coisa pelo antigo possuidor mediante a entrega desta ao novo possuidor. O primeiro demite-se, por sua

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão vontade, do corpus possessório e passa-o ao último. Este, em contrapartida, recebe o controlo material da coisa, ficando investido numa posse já existente. Uma vez que a posse assenta num controlo material sobre uma coisa corpórea, a tradição requer a passagem desse controlo para o novo possuidor, o que é feito através do ato de entrega. Num primeiro momento da evolução da traditio, no Direito Romano, a entrega supõe uma apreensão material da coisa pelo novo possuidor, numa operação mão a mão com o anterior. Nos fundi, bastava ao novo possuidor pisar a terra. O Direito Romano assistiu, no entanto, a uma tendência que se denominou de espiritualização da traditio. A pouco e pouco, prescinde-se da apreensão material da coisa da traditio para a admitir em formas crescentemente imaterializadas, que os juristas medievos viriam a denominar de traditio ficta. A traditio ficta abrangia os seguintes casos: a. Tradição simbólica: esta, pelo menos com a significação que lhe é dada hoje, representa uma evolução do Direito comum. No Direito Romano clássico não se reconhecia a tradição pela simples entrega do título das mercadorias (traditio per chartam), essa é uma terminologia achada na Idade Média. Mesmo a entrega das chaves para a traditio de mercadorias guardadas em armazém é no Direito Romano feita no local onde as coisas estão, apud horrea, na fórmula de um texto legal de Papiniano. b. Traditio longa manu: desenvolve-se, inicialmente, quanto às coisas móveis, significando uma progressiva desnecessidade de a coisa ser entregue em mão para a transferência da posse, exigindo-se, no entanto, a presença dos interventores. A posse é transferida por ordem do transmitente mediante a colocação da coisa à disposição do adquirente (depósito em sua casa), ou, com o seu consentimento, de terceiro, desde que seja in praesentia, in re praesenti, in conspecto, na linguagem das fontes. Mas a traditio longa manu era admitida igualmente para imóveis, tornando prescindível a entrada no prédio. O anterior possuidor colocava o imóvel à disposição do adquirente (vacuam possessionem tradere, in vacuam possessionem inducere) deixando-o livre para este, que, a partir daí, podia instalar-se na coisa com causa justa (vacua possessio). O exemplo mais conhecido dado por Celso é o das partes que no alto de uma torre assinalam a transferência da posse de um imóvel confinante. A posse transmitese assim oculis e affectu, numa evolução que daria primazia a este último elemento. c. Traditio brevi manu: designa os casos de aquisição de posse por um detentor com fundamento na alteração do seu título. O locatário ou o comodatário que já tinham a coisa em seu poder e adquiriam a propriedade tornavam-se possuidores, pela traditio brevi manu. Esta figura radica, assim, na existência de uma detenção prévia da coisa, que se transforma em posse pela alteração do título da detenção. d. Constituto possessório: que trataremos abaixo. As fórmulas clássicas e justinianeias do Direito Romano, que compreendiam a traditio longa manu e a traditio brevi manu desapareceram do Direito atual. O artigo 1263.º, alínea b) CC menciona apenas a tradição, distinguindo, porém, a tradição material e a tradição simbólica. Enquanto a tradição material respeita à entrega da coisa mão a mão, possível unicamente no que respeita a coisas móveis, a tradição simbólica abrange todas as formas pelas quais o possuidor renuncia voluntariamente ao seu senhorio sobre a coisa, colocando a coisa à disposição do adquirente. E isso tanto pode ser através da entrega de outra coisa que represente a coisa cuja posse se transfere, as chaves ou os 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão documentos (a guia de transporte, o conhecimento de embarque, o talão de depósito, etc.), nas hipóteses mais correntemente associadas à tradição simbólica, como deixando livre a coisa para o adquirente apreender, aquilo que os romanos designavam a vacuam possessionem tradere ou in vacuam possessionem inducere, a demissão do corpus possessório a favor do novo possuidor. A vende a B o imóvel x, um prédio rústico, deixando o mesmo devoluto para B aí se instalar. Há tradição – simbólica – da coisa. O possuidor demitese do seu controlo material para permitir o novo controlo do adquirente. Também a traditio brevi mani se deve considerar compreendida na alínea b) do artigo 1263.º CC. Ela ocorre sempre que o detentor adquire do possuidor o direito nos termos do qual detinha a coisa. A, proprietário, arrendou o imóvel x a B, que o goza nos termos do seu direito de arrendamento. Entretanto, A doa a B a propriedade. Este último adquire a posse por tradição (traditio brevi manu). C, proprietário do prédio x, constitui um direito de superfície a favor de D, que constrói a obra, vindo o último mais tarde a adquirir a propriedade ao primeiro por contrato atípico. Com o contrato, D adquiriu a posse de C, não havendo necessidade de operar a entrega do prédio, que já se encontrava materialmente com ele. Na traditio brevi manu a tradição opera como um efeito jurídico do contrato aquisitivo do direito nos termos do qual o até aí detentor passa a atuar sobre a coisa. Trata-se verdadeiramente de uma transmissão jurídica da posse. A traditio brevi manu permite considerar transmitida a posse como efeito do contrato translativo do direito – como o constituto possessório – poupando as partes a um formalismo de dupla entrega. Se o vendedor tivesse de entregar a coisa ao comprador ao arrendatário para depois… a entregar a ele. Assim, a posse considera-se transmitida, por tradição, por efeito do contrato, evitando-se o duplo formalismo de entrega (do arrendatário para o senhorio/vendedor e deste para o arrendatário /comprador). A tradição de uma coisa pode ter lugar por força de um ato de constituição ou transmissão de um direito real, e é isso que normalmente sucede. O vendedor, o doador, o permutante entregam a coisa ao adquirente do direito, por força do contrato (de compra e venda, de doação, de permuta) celebrado. A tradição pode, porém, operar por força de um contrato translativo da própria posse e mesmo que não haja acordo, se a demissão do corpus se processar voluntariamente a favor de outra pessoa, ou seja, se a entrega da coisa se consumar. Repousando unicamente na transferência voluntária do controlo material da coisa para outra pessoa, a tradição ocorre simplesmente quando fica consumada a entrega, material ou simbólica, da coisa e o corpus possessório passa para o adquirente. Contrariamente ao que se passa relativamente à constituição ou transmissão do direito real, que dependem da validade do facto aquisitivo respetivo, a transmissão da posse por tradição não vem a ser afetada pela invalidade (ou ineficácia em sentido amplo) do negócio jurídico que lhe serviu de causa, se o houver. A doou a B o livro x, entregando-o a este no momento da doação. Mais tarde, A obtém a declaração judicial de nulidade do contrato. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A invalidade deste negócio jurídico não afeta a aquisição da posse por B, por tradição (artigo 1263.º, alínea b) CC). B tornou-se assim possuidor desde a entrega do livro, embora a sua posse seja formal. A tradição é, no sistema jurídico português, a regra geral quanto à transmissão da posse. Fora dos casos de constituto possessório, a transmissão da posse supõe a tradição da coisa. Faltando esta, a posse não se transmite, ainda que o direito real a que ela se refere se transmita. A dissociação entre a posse e o direito real (nihi commune habet proprietas cum possessione) manifesta-se também aqui a propósito da transmissão respetiva.

250 A, proprietário do anel y, sem a posse do mesmo, vende-o a B, sem que a entrega seja feita. Nesta hipótese, a transmissão da propriedade, que opera como efeito do contrato de compra e venda (artigo 879.º, alínea a) e 408.º, n.º1 CC), não é acompanhada da transmissão da posse. B é um proprietário sem posse. Esta separação de factos translativos propicia a dissociação entre a situação real e a situação possessória. O titular do direito real, máxime o proprietário, pode não ser o possuidor e vice versa. Essa dissociação é suscetível de resultar de uma transmissão do direito real desacompanhada da tradição da coisa ou desta sem aquela. 2. O constituto possessório: na sua origem, no Direito Romano, o constituto possessório representa uma das formas pelas quais se concretizava a traditio, na crescente imaterialização que esta conheceu. Na Idade Média, o constitutum aparece mencionado nas modalidades de traditio ficta. E nas ordens jurídicas de traça romanística, o constituto ainda hoje vem incluído no âmbito da traditio. O constituto possessório representa, de certo modo, o oposto da traditio brevi manu, como por vezes vem salientado. Enquanto naquela o detentor torna-se possuidor pela prática de um facto aquisitivo do direito real, no constituto possessório o possuidor passa a detentor, continuando embora a ter a coisa consigo. Hipóteses práticas de constituto possessório ocorrem quando o proprietário vende a coisa, mas celebra simultaneamente com o comprador um arrendamento, um comodato, um depósito, ou doa a propriedade e reserva para si o usufruto no contrato de doação. O constituto possessório integra uma transmissão da posse por simples consenso, assemenlhando-se em matéria de posse ao princípio da consensualidade vigente em algumas ordens jurídicas, como a portuguesa, no que toca à constituição e transmissão de direitos reais. A construção clássica moderna do constituto possessório vê nele a confluência de dois atos jurídicos, um principal e outro acessório. O principal, um ato de transmissão do direito real, o acessório, um ato mediante o qual o até aí possuídor seja considerado detentor, ou seja, um outro contrato que justificaria a detenção da coisa. O Código Civil português autonomizou o constituto possessório da tradição, num passo normativo cuja justificação dogmática escasseia. Tudo indica, no entanto, que o constituto seja uma espécie de traditio simbólica, sujeita embora ao regime específico do artigo 1264.º CC. Este preceito estabelece três requisitos para o constituto possessório:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão  Um negócio jurídico de transmissão de um direito real de gozo;  Que o transmitente do direito real seja possuidor;  Uma causa jurídica para a detenção da coisa. O constituto possessório surge como um efeito jurídico de um contrato real quanto aos efeitos (compra e venda, doação, permuta, etc.). A transmissão da posse acompanha a transmissão do direito a ela relativo. O constituto possessório requer uma causa jurídica. É esta causa que justifica legalmente que, sem entrega da coisa, o adquirente do direito real se torne possuidor dela e aquele que a tem em seu poder veja a sua posição descaracterizada para mera detenção. Que causa jurídica é essa? A causa jurídica do constituto possessório é, antes de mais, um contrato. O comprador que celebra simultaneamente com a venda um outro contrato com o vendedor (depósito, arrendamento, comodato, alugues, etc.), nos termos do qual se constitui um direito que requer a atuação material sobre a coisa, adquire a posse que o transmitente/vendedor tinha relativamente ao direito real transmitido, ainda que, em cumprimento do contrato celebrado, este último permaneça com a coisa em seu poder. Pode, no entanto, a causa ser uma mera convenção negocial do contrato de transmissão. Um exemplo claro retirase da compra e venda (ou doação) com reserva de usufruto. A cláusula de reserva de usufruto não constitui um contrato autónomo, tendo apenas o significado de uma estipulação contratual da compra e venda (ou doação). O contrato ou a convenção negocial justifica que o possuidor transmitente não tenha de entregar a coisa para que a posse se considere transmitida para o adquirente. Em termos práticos, isso poupa às partes o inconveniente de uma dupla entrega da coisa, que seria despropositada. Não ocorrendo uma causa jurídica que justifique a não entrega da coisa ao adquirente do direito real, não há lugar ao constituto possessório. O constituto possessório não está para a posse como o princípio da consensualidade (artigo 408.º, n.º1 CC) se encontra para os restantes direitos reais. A regra geral quando à transmissão da posse continua a ser a tradição, material ou simbólica. E o transmitente do direito real encontra-se obrigado a entregar a coisa ao adquirente (alínea b) do artigo 1879.º CC, para a compra e venda, aplicável a outros contratos onerosos – artigo 929.º, e a alínea b) do artigo 954.º CC, para a doação). Se não o faz, a posse continua com ele, não se transmitindo. O constituto possessório tem igualmente aplicação, implicando a transferência da posse para o adquirente do direito real, quando, por força de um contrato que haja de continuar em vigor, um terceiro detenha a coisa. A locação dá um bom exemplo. O constituto possessório com detenção de terceiro representa uma elucidação clara da espiritualização da posse. Mesmo sem receber a coisa, ou outra que a simbolize, a posse tem-se vem a ser transmitida pelo adquirente do direito real. O constituto possessório configura uma modalidade de transmissão jurídica da posse, de modo em tudo análogo à traditio brevi manu. Como um efeito jurídico de um contrato, o constituto possessório depende da validade do facto jurídico que o desencadeia. Sendo inválido o contrato translativo do direito, qualquer que seja o vício que a gera e a espécie de invalidade (nulidade ou anulabilidade), a eficácia translativa da posse é atingida, como sucede aos restantes efeitos do negócio jurídico. Deste modo, o requisito de um ato de transmissão do direito real constante do n.º1 do artigo 1264.º CC deve ser entendido no sentido de um ato jurídico válido.

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A sucessão na posse: a sucessão na posse, prevista no artigo 1255.º CC, designa um fenómeno diferente da transmissão. Conceitualmente, esta implica a deslocação do direito do transmitente para o transmissário como efeito de um contrato jurídico translativo. Justamente porque a transmissão de uma situação jurídica provém da eficácia de um contrato, é preciso contar com a incidência desse facto na posição jurídica do adquirente transmissário. A transmissão tem implícita uma ideia de movimento da situação jurídica, da esfera jurídica do transmitente para a do transmissário. Diversamente, na sucessão a situação jurídica permanece estática, e é o sucessor que entra na posição jurídica do sucedido. Esta diferença tem fundado um diferente tratamento dogmático entre a transmissão e a sucessão na posse. A posse do sucessor é a posse do de cuius. Por isso, a lei dispõe que a posse continua nos sucessores. Muitas vezes, há a tendência para se fazer uma nova caracterização da posse do sucessor, mas tal operação é incorreta. Havendo sucessão na posse, os carateres da posse dos sucessores são os mesmos da posse do falecido, o que se compreende, tratando-se da mesma posse. A aquisição da posse por sucessão não carece de uma apreensão material da coisa. Uma vez que a posse continua nos sucessores, sendo a mesma posse do de cuius, a apreensão material é desnecessária, por já ter sido consumada anteriormente.

Os factos extintivos da posse: a posse pode extinguir-se. A extinção da posse pode acontecer por vontade do possuidor ou sem ela. Neste último caso, a extinção pode acontecer por facto da natureza, por facto de terceiro, que designaremos genericamente por esbulho, ou por disposição legal. O artigo 1267.º, n.º1 CC estabelece como factos extintivos da posse:

1. O abandono (alínea a)): conforme já tivemos oportunidade de dizer, o abandono consiste na perda voluntária do corpus pelo possuidor. No abandono, o possuidor quebra o controlo material que tinha sobre a coisa, deixando de o exercer por opção própria. Como consequência, a posse extingue-se (artigo 1267.º, n.º1, alínea a) CC). Menezes Cordeiro, fazendo o paralelo entre o abandono e o apossamento, defende ser necessário que o primeiro deva ter um mínimo de publicidade, de modo a poder ser conhecido pelos interessados. Discordamos. Nada na lei impõe a publicidade do apossamento, nem isso se adequa à generalidade das situações. Se alguém quer deitar no lixo um televisor velho ou um livro usado não tem de o evidenciar a ninguém. E se o televisor ou o livro forem levados pelos serviços de limpeza a posse extingue-se por abandono, atendendo à perda do corpus, mesmo que mais ninguém saiba. O abandono só extingue a posse havendo perda do corpus. Não basta um íntimo e escondido desejo de abandono do possuidor para que a posse se extinga. A pura intenção (animus) de não possuir é juridicamente irrelevante se o controlo material da coisa permanecer inalterado. E como, uma vez constituída a posse, ela se conserva com a mera suscetibilidade de atuação material sobre a coisa, conforme se dispõe na parte final do n.º1 do artigo 1257.º CC, tem de haver uma quebra efetiva do domínio fático da coisa para que se possa falar de abandono. Assim, o proprietário do veículo que o deixa na via pública sem querer saber dele, mas que conserva as chaves consigo, podendo a todo o tempo retomar a atuação sobre a coisa, mantém a sua posse (artigo 1257.º, n.º1 CC). Perde-a, no entanto, se deixa o veículo num depósito de ferro velho para que o comerciante faça o que quiser. O abandono é outro dos pontos do regime jurídico que mostra bem como a intenção, o animus, não tem relevância para o juízo sobre a existência da posse.

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2. A perda da coisa (alínea b)): a perda da coisa, por contraposição ao abandono, existe quando, involuntariamente, o possuidor deixa de estar no controlo material dela, sem que tal se deva a um ato de terceiro. Como salienta Menezes Cordeiro, a perda da posse só implica a extinção da posse quando o possuidor estiver impossibilitado de encontrar a coisa. Só nessa hipótese ocorre a quebra do corpus, do controlo material da coisa, em que a posse assenta. 3. A destruição material da coisa (alínea b)): a posse tem por objeto uma coisa corpórea. Se, por força de um facto humano ou da natureza, a coisa é integralmente destruída, desaparecendo enquanto tal, a posse extingue-se. É, de resto, o que sucede com todos os direitos reais. A destruição material da coisa que determina a extinção da posse é a destruição total. A destruição parcial deixa subsistir a posse na parte restante. 4. A colocação da coisa fora do comércio (alínea b)): a apropriação jurídico-privada de coisas corpóreas só é legalmente possível relativamente a coisas no comércio (artigo 202.º, n.º2 CC). Se uma coisa é posta legalmente no domínio público, extingue-se a posse que sobre ela incida. 5. O esbulho (alínea d)): o esbulho consiste na privação da coisa por ato de terceiro contra a vontade do possuidor. O esbulhador toma o controlo material da coisa, afastando o controlo do possuidor. A partir desse momento, cessa o domínio ou senhorio da coisa em que repousava a posse do possuidor, deixando este de poder atuar sobre a coisa segundo a sua vontade. O corpus possessório fica, assim, destruído e, com isso, a posse cessa. As formas típicas de esbulho são o apossamento e a inversão do título da posse pelo detentor da coisa. A lei portuguesa, porém, não prevê a extinção da posse no momento em que o esbulho fica consumado. Com efeito, o possuidor esbulhado só perde a posse um ano após o esbulho (artigo 1267.º, n.º1, alínea d) CC). Durante esse ano, o esbulhado permanece possuidor, coexistindo a sua posse com a nova posse do esbulhador, adquirida pelo apossamento ou pela inversão do título da posse. A permanência de uma posse sem corpus durante o período de um ano arrasta consigo alguns problemas de construção dogmática. O primeiro advém da própria ideia de uma posse privada de objeto. O possuidor esbulhado não tem a coisa consigo, nem é possível dizer que o esbulhador o representa na posse, possuindo em seu nome, porquanto é evidente que o esbulhador afirma uma posse em nome próprio, em oposição à posse do esbulhado, independentemente da titularidade do direito a que essa posse se refere e da consciência que ele possa ter acerca da violação do direito do possuidor esbulhado. Uma teoria que veja na posse uma situação (ou relação) de facto não consegue explicar como a mesma subsiste se o possuidor não tem a coisa consigo, tendo sido desapossado. Desaparecido o pressuposto de facto da posse, esta não pode subsistir. Esta objeção não pode, contudo, ser levantada se a posse for regulada como uma situação de jurídica (um direito subjetivo). A situação jurídica pode subsistir na titularidade de alguém mesmo após a sua violação. Este argumento, porém, levado demasiado longe, corre o risco de esvaziar a posse do seu significado social. A posse ligase ao senhorio sobre uma coisa. A razão para a subsistência de uma posse despida do corpus possessório é de ordem prática. Ao possuidor deve ser dada a possibilidade de reagir judicialmente contra o esbulhador. Tradicionalmente, essa reação processa-se através das ações possessórias. Como poderia, no entanto, reagir o possuidor esbulhado mediante a interposição de uma ação possessória se houvesse perdido a posse com o esbulho? A ação possessória tem por fundamento a posse. A fim de garantir a defesa possessória contra o esbulho, a lei portuguesa fixa um prazo de um ano para a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão interposição da ação respetiva (artigo 1284.º CC). O prazo constante do artigo 127.º, n.º1, alínea d) CC deve, deste modo, ser articulado com a defesa possessória. A posse jurídica que permanece não obstante o esbulho assegura ao possuidor a possibilidade da sua defesa. Um segundo problema de construção dogmática prende-se com a possibilidade de, sobre a mesma coisa, existirem duas posses nos termos do mesmo direito. Não podem existir duas propriedades singulares ou dois usufrutos singulares sobre a mesma coisa; como explicar, então, que duas posses atinentes ao mesmo direito coexistam simultaneamente? A explicação reside no caráter relativo da posse. Na verdade, na relação entre o esbulhador e o esbulhado apenas um deles é o possuidor. E será aquele que tiver melhor posse, de acordo com o disposto nos n.º2 e 3 do artigo 1268.º CC, e nenhum deles fizer prova do seu direito (artigo 1268.º, n.º1 CC). Na relação do esbulhador com terceiros, porém, aquele é possuidor, beneficiando da tutela legal da posse. A cedência da posse mencionada na alínea c) do n.º1 do artigo 1267.º CC não constitui um facto extintivo da posse, uma vez que se liga a uma transmissão da posse para outrem. É verdade que o transmitente da posse a perde e, nessa medida, deixa de ser possuidor, mas a posse não se extingue, passa para o seu adquirente. A cedência descreve o outro lado da transmissão da posse, o do transmitente, sem ser um facto extintivo da posse. A enumeração constante do n.º1 do artigo 1267.º CC não é taxativa quanto aos factos extintivos da posse. Para além desses, pode dizer-se que a posse se extingue, em alguns casos, pela expropriação da coisa. Outros factos apontados como de extinção da posse parecem-nos de rejeitar. Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro mencionam a omissão de exercício ou o não uso como facto extintivo da posse, e o último autor alude ainda à aquisição da posse por terceiro de boa fé (artigo 1281.º, n.º2, in fine CC) como tendo igualmente essa eficácia. Os casos de extinção da posse retratam situações nas quais, por qualquer razão, o corpus possessório foi perdido ou a lei interveio, dispondo a extinção da posse. Assentando no corpus, ou seja num efetivo e existente controlo material de uma coisa nos termos de um direito, a posse extingue-se quando o possuidor, por sua vontade ou sem ela, deixa de ter esse controlo material. Assim como a obtenção do senhorio e domínio da coisa atribuem a posse, mesmo que a esta não corresponda qualquer direito, a perda do poder de facto conduz à sua extinção. Para além dos casos em que o possuidor perde o senhorio da coisa, a lei pode intervir fazendo extinguir a posse. Se uma coisa na posse de alguém é colocada legalmente no domínio público do Estado, ficando fora do comércio, a posse cessou. No fundo, do mesmo modo que a posse resulta de um controlo material de uma coisa não descaracterizado por disposição normativa, a perda desse controlo pelo possuidor, ou a lei, nalguns casos, acaba com ela. Os elementos que permitem estruturar a posse são os mesmos que determinam a sua extinção.

Pretensos factos extintivos da posse. Referência ao não uso e à aquisição da posse por terceiro de boa fé: 1. Oliveira Ascensão: deende que o regime da posse deve ser aproximado do regime dos outros direitos reais de gozo quanto ao não uso, sustentando que a omissão da prática de atos possessórios conduz à extinção da posse. Esta omissão permitira, no entender do autor, elidir a presunção do artigo 1257.º, n.º2 CC. 2. Menezes Cordeiro: parece concordar, defendendo a ideia da extinção da posse no caso do direito real se extinguir por não uso.

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3. Não subscrevemos esta posição: a posse encontra-se, em princípio, com quem tem a coisa e exerce sobre ela o poder de facto a que alude a lei portuguesa. E isto mesmo que o possuidor não seja o titular do direito real. Se o comprador de compra e venda nula recebeu a coisa das mãos do vendedor, é possuidor (pela traditio), ainda que a sua posse seja formal, isto é, ainda que não haja adquirido o direito comprado. Por qu erazão háde ser diferente quando ocorre um facto extintivo do direito real de gozo e o ex-titular mantém a coisa em seu poder? Não é verdade que o corpus se mantém? Onde está a disposição legal que descaracteriza a posse para simples detenção? Será que o possuidor causal fica em pior posição que o possuidor formal, que nunca poderá ver a sua posse extinguir-se por não uso (não é titular do direito a que a sua posse se refere)? Na verdade, e como salientámos, num passo que surge incontroverso, a lei portuguesa constrói o corpus possessório como uma situação em que o possuidor pode atuar sobre a coisa quando quer, ainda que não o faça (artigo 1257.º, n.º2 CC). Quer dizer, a posse conserva-se enquanto para o possuidor exista a suscetibilidade de atuação material sobre a coisa. A separação da posse e do direito real quanto às respetivas causas de aquisição e extinção projeta-se também no que toca ao não uso, que é facto extintivo de direitos reais de gozo, mas não da posse, que tem os seus próprios factos extintivos, os quais não passam pela extinção da situação jurídica a que a posse se refere. Por último, no que respeita à função social, responderemos apenas que tal princípio não foi acolhido pelo Direito português e, como tal, não serve para justificar a solução propugnada por Oliveira Ascensão. A omissão da prática de atos possessórios com manutenção do corpus não conduz à extinção da posse. Enquanto o possuidor mantiver a possibilidade de atuar sobre a coisa a posse mantém-se. É o que resulta do disposto no n.º2 do artigo 1257.º, n.º2 CC. A posse não se extingue por não uso. Menezes Cordeiro aponta o preceituado no artigo 1281.º, n.º2 CC no fim como estabelecendo um outro facto extintivo da posse, criticando a solução legal, que não se harmoniza com a ausência de consagração do princípio posse vale título no Direito Português. A crítica deste professor afigura-se-nos inteiramente justa. Há uma ínsita antinomia entre o afastamento do princípio posse vale título, que permitira ao adquirente de boa fé a aquisição da propriedade a non domino e o acolhimento de uma proteção meramente possessória a ele. Não partilhamos, todavia, o entendimento expressado quanto à existência de um outro facto extintivo da posse. Não há dúvida que, se a posse da coisa esbulhada é transmitida a um terceiro que desconhece de boa fé estar a lesar o direito do possuidor esbulhado, este não pode fazer valer a sua posse mediante uma ação de restituição (artigo 1281.º, n.º2 CC). Isto não quer dizer, no entanto, que a sua posse se extinguiu. Basta pensar que a posse da coisa pode voltar para o esbulhador ou ser transferida para outro terceiro que esteja de má fé, por conhecer o esbulho. Nestes casos, a posse mantém a sua oponibilidade normal e o possuidor esbulhado pode recuperar a coisa através de uma ação de restituição da posse. Estes exemplos elucidam bem que a posse apenas não é oponível a terceiro de boa fé, sem que isso signifique a sua extinção. Poderemos, assim, falar de mera inoponibilidade da posse do possuidor esbulhado ao terceiro de boa fé, mas não de extinção da posse deste pela transmissão da posse da coisa a terceiro de boa fé.

Efeitos da posse. A presunção de titularidade do direito real como um efeito da posse: a doutrina que qualifica a posse como um mero facto afirma maioritariamente que se trata de um facto ao qual o Direito associa consequências jurídicas, falando, por conseguinte, em efeitos da posse. Quem, como nós, veja na posse um direito e não um mero facto menciona o conteúdo 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão do direito. Seja como for, isso não quer dizer que da posse não decorram igualmente efeitos jurídicos que não fazem parte do conteúdo desse direito. O principal efeito da posse vem previsto no artigo 1268.º, n.º1 CC. A posse faz presumir a titularidade do direito a que essa posse se reporta. Quem tem posse como proprietário, presume-se proprietário, quem tem posse como superficiário, presume-se superficiário, e assim sucessivamente. A presunção de titularidade do direito prende-se diretamente com a função de publicidade a que a posse se encontra associada.

O conteúdo da posse: generalidades: teremos oportunidade de mais tarde fundar o nosso entendimento da posse como uma situação jurídica, concretamente, um direito real de gozo. Enquanto direito subjetivo, a posse tem um conteúdo; esse conteúdo é composto por situações jurídicas menores, ativas e passivas (poderes, deveres, ónus, etc.), que têm no Direito a sua fonte. Quanto às situações jurídicas ativas, é frequente a sua assimilação a direitos, como se estes esgotassem o universo daquelas. Assim, é corrente falar-se no direito do possuidor aos frutos ou no direito de indemnização por violação da posse. E, nunca, ou raramente, na terminologia da lei ou dos autores, estas situações jurídicas aparecem designadas corretamente por aquilo que são: meros poderes conteúdo do direito posse. Utilizaremos a designação correta das situações envolvidas no conteúdo da posse, sem que isso represente mais do que uma precisão terminológica, que fica devidamente assinalada. De uma forma sintética, encontramos no conteúdo da posse:

1. O poder de uso do possuidor: a posse dá ao possuidor o poder de usar a coisa. Podemos, assim, dizer, que o uso pertence ao conteúdo da posse. a. Defende Oliveira Ascensão, que só o uso do possuidor de boa fé é lícito e não gera dever de indemnizar. Nesta ordem de ideias, embora o autor não o diga, parece que o uso do possuidor de má fé – que conhece ou ignora culposamente a violação do direito de outrem – é ilícito e gera um dever de indemnizar, nos termos gerais. b. Todavia, um poder jurídico que, por definição, tem por fonte o Direito não pode ser ilícito. Ou o Direito o atribui ou não o faz. Mas se o atribui, não pode ser ilícito. Quanto muito, poderia dizer-se que o possuidor de má fé não tem o uso da coisa. Parece-nos, contudo, muito difícil negar um poder de uso ao possuidor, mesmo ao possuidor de má fé. Se a posse é constituída em violação de um direito subjetivo de um terceiro, o possuidor pode ser chamado a indemnizar o titular, dentro dos esquemas gerais de imputação de danos. Mas tal não impede a consideração de um poder de uso para o possuidor de má fé. O uso da coisa pelo possuidor de má fé não vem negado em nenhuma disposição da regulação jurídica da posse e aparece até pressuposto em alguns dos preceitos dessa regulação, nomeadamente, os atinentes aos frutos (artigo 1271.º CC) e às benfeitorias (artigos 1273.º a 1275.º CC). O uso da coisa é, no nosso entender, um dos aspetos do conteúdo da posse exercida nos termos de um direito real de gozo. 2. O poder de fruição do possuidor de boa fé. Seus limites: o possuidor de boa fé tem o poder de fruição, conforme se dispõe no n.º1 do artigo 1270.º CC. Esse poder extinguese quando o possuidor tem conhecimento de estar a lesar um direito alheio. Ao possuidor de má fé, em contrapartida, não lhe é reconhecido nenhum poder de fruição. E fica, inclusivamente, sujeito a um regime gravoso de responsabilidade, restituir os frutos gerados pela coisa e indemnizar o titular do direito real pelos frutos que um

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão proprietário diligente poderia ter obtido (artigo 1271.º CC). O possuidor de boa fé tem de restituir ao titular do direito real os frutos gerados pela coisa após a cessação da boa fé. Em todo o caso, ao possuidor reconhece-se o direito a ser indemnizado das despesas – de investimento, de produção, etc. – que suportou, até ao limite do valor dos frutos (artigo 1270.º, n.º2 CC). O n.º3 do artigo 1270.º CC consagra uma regra excecional em matéria de legitimidade negocial, conferindo ao possuidor formal, de boa fé, legitimidade para alienar os frutos a terceiro antes da colheita. Seja como for, o preço cabe ao titular do direito real de gozo, deduzindo da indemnização a que se refere o n.º2 do mesmo artigo. Não obstante a latitude com que o poder de fruição vem inserido no conteúdo da posse, a verdade é que nem mesmo a posse de boa fé atribui sempre ao possuidor o poder de fruir. Há posses que não atribuem a fruição ao possuidor. Como explicar esta solução defronte do preceituado no artigo 1270.º, n.º1 CC? A explicação encontra-se o facto de o conteúdo da posse surgir decalcado da propriedade, como se toda a posse se exercesse nos termos deste direito. Como o proprietário tem a fruição da coisa, o regime jurídico regula este aspeto do gozo, reconhecendo ao possuidor de boa fé o direito a ficar com os frutos gerados por ela. No entanto, a posse também se processa por referência aos outros direitos reais de gozo, alguns dos quais (usufruto, uso e habitação, direito real de habitação periódica) conferem ao seu titular todo ou algum poder de fruição, enquanto outros (superfície, servidões) não. Quando o direito real de gozo nos termos do qual a posse surge exteriorizada não atribui a fruição ao titular, o possuidor não tem o poder de fruição. Seria de facto incompreensível que a posse exercida nos termos de um direito real conferisse ao possuidor um conteúdo maior de aproveitamento daquele que o Direito reconhece ao titular do direito. Assim, se o possuidor de boa fé nos termos de uma superfície ou de uma servidão fizer seus os frutos, está obrigado a restitui-los ao titular do direito que atribua a fruição da coisa (proprietário, usufrutuário, titular do direito de uso ou habitação, titular do direito real de habitação periódica). Se os vendeu ou consumiu, está obrigado a ressarcir o seu enriquecimento ao titular do direito real de gozo a que couber a fruição, segundo o disposto no enriquecimento sem causa. 3. O poder de indemnização por benfeitorias feitas na coisa: o possuidor pode exercer o uso que tem sobre a coisa inserindo nela melhoramentos. Fala-se, então, em benfeitorias. O regime jurídico das benfeitorias assenta, como se sabe, na tripartição entre benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias. Quer o possuidor de boa fé, como o possuidor de má fé podem realizar benfeitorias. A lei portuguesa não distingue entre possuidor de boa fé e possuidor de má fé a não ser quanto às benfeitorias voluptuárias que não se possam levantar sem o detrimento da coisa (artigo 1275.º, n.º2 CC). Em tudo o resto, o regime é o mesmo. O possuidor tem direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que fez na coisa (artigo 1273.º, n.º1, 1.ª parte CC). Quanto às benfeitorias úteis, elas podem ser levantadas pelo possuidor, contando que não impliquem uma deterioração da coisa (artigo 1273.º, n.º1, 2.ª parte CC). Se assim acontecer, o possuidor tem o direito a ser indemnizado pelo titular do direito real, indemnização essa calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1273.º, n.º2 CC). O possuidor de boa fé pode levantar as benfeitorias voluptuárias que haja feito na coisa, mas não tem esse direito se o levantamento supuser o detrimento da coisa (artigo 1275.º, n.º1 CC). Nesse caso, não tem direito a qualquer indemnização. 4. O poder de indemnização por violação da posse: a violação ilícita da posse, do direito à posse, sujeita o infrator à responsabilidade civil pelos danos causados (artigo 1284.º,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão n.º1 CC), sem prejuízo de outras sanções legais que ao caso caibam. O possuidor tem, assim, o poder de ser indemnizado por aquele que ilicitamente violar a sua posse. 5. O poder de usucapião. Remissão: o possuidor tem o poder (potestativo) de usucapir o direito real de gozo a que a sua posse e reporta, caso os requisitos legais estejam preenchidos. Optámos por fazer o tratamento da usucapião numa das suas vertentes: facto aquisitivo de direitos reais de gozo. Por essa razão, remetemos para aí o tratamento completo do poder de usucapir que pertence ao possuidor. 6. O poder de acessão. Remissão: a acessão da posse é um poder que a lei faculta ao possuidor de juntar o seu tempo de posse ao tempo de posse do possuidor do qual ela foi adquirida (artigo 1256.º, n.º1 CC), de modo a facultar a usucapião. Pela sua estreita ligação à usucapião, analisamos a acessão da posse a propósito do regime jurídico respetivo. 7. O poder de defesa da posse (tutela possessória): enquanto situação jurídica, a posse é tutelada pelo ordenamento jurídico português. Essa tutela realiza-se através das denominadas ações possessórias. Pela sua importância, abriremos uma secção destinada exclusivamente à defesa da posse. 8. O dever de pagamento dos encargos com a coisa (possuidor de boa fé): como dissemos, no conteúdo da posse não cabem apenas situações jurídicas ativas, mas também deveres. O artigo 1272.º CC coloca no possuidor o dever de pagamento dos encargos gerados pela coisa na proporção do seu poder de fruição. Assim, se, por exemplo, há impostos prediais a pagar, o possuidor tem o dever de suportar o imposto devido pelo titular do direito real na proporção dos frutos que recebeu. Este dever incumbe ao possuidor de boa fé, uma vez que se liga ao poder de fruição, que o possuidor de má fé não tem. 9. O dever de restituir os frutos (possuidor de má fé): não tendo poder de fruição, o possuidor de má fé está obrigado a restituir ao titular do direito real de gozo os frutos, naturais ou civis, gerados pela coisa (artigo 1271.º CC). Esse dever cessa naturalmente com a extinção da posse. 10. O dever de indemnizar o titular do direito real em caso de perda ou deterioração da coisa: o possuidor de má fé fica sujeito a um regime excecional de responsabilidade civil. Em caso de perda ou deterioração da coisa, ele responde pelos danos, tenha ou não culpa na produção do facto danoso (artigo 1269.º CC). Este sentido retira-se pela utilização do argumento a contrario sensu sobre o artigo 1269.º CC. Responsabilizando o possuidor de boa fé pela perda ou deterioração da coisa apenas em caso de culpa, este preceito faz impender sobre o possuidor de má fé o risco de perda ou deterioração da coisa. Trata-se de um caso de responsabilidade civil objetiva. O possuidor de má fé responde pela perda ou deterioração da coisa independentemente de culpa, portanto, mesmo que não a tenha. O artigo 1269.º CC consagra, deste modo, uma inversão do risco de perecimento da coisa, que deixa de correr por conta do titular do direito real, do proprietário e dos restantes titulares de direitos reais, para passar a correr por conta do possuidor de má fé. Esta solução tem sido apontada como desajustada, pela injustiça que a inversão do risco de perecimento da coisa cria relativamente a casos em que o dano ocorreria mesmo que ela se encontrasse com o titular do direito real. Henrique Mesquita propôs uma restrição ao alcance absoluto do artigo 1269.º C, mediante a aplicação direta do regime da mora do devedor, concretamente, do artigo 807.º, n.º2 CC (relevância negativa da causa virtual), uma posição que mais tarde suscitaria a adesão de Pires de Lima/Antunes Varela e de Menezes Cordeiro. Estamos de acordo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão com a doutrina propugnada por estes autores. O possuidor de má fé só pode ser responsabilizado pela perda ou deterioração da coisa caso a mesma não sofresse dano se estivesse com o titular do direito real de gozo. O artigo 1269.º CC deve, pois, ser objetivo, de uma interpretação restritiva. Ao conteúdo de um direito subjetivo pertencem situações jurídicas (menores) ativas e situações jurídicas passivas, um dado da dogmática jurídica atual que deve ter-se por assente. A posse não é exceção. O conteúdo da posse não é o mesmo em todas as situações. Particularmente, a lei acentua diferenças no conteúdo da posse consoante o possuidor esteja de boa fé ou de má fé.

O conteúdo variável da posse: uma das peculiaridades do regime jurídico da posse é a variabilidade do seu conteúdo. Com efeito, o conteúdo da posse pode apresentar diferenças em função de particulares caracteres da posse. A este propósito, a distinção fundamental é entre a posse de boa fé e a posse de má fé. Enquanto o possuidor de boa fé pode fazer seus os frutos da coisa (até ao momento em que tiver conhecimento do direito de outrem) – caso o direito a que se refere a sua posse inclua o poder de fruição (a propriedade ou o usufruto, por exemplo) – o possuidor de má fé não tem tal poder. O possuidor de boa fé tem um poder de fruição; o possuidor de má fé não tem. O possuidor de boa fé tem o dever de participar nos encargos gerados pela coisa na proporção do seu direito aos frutos; o possuidor de má fé é responsável pelos frutos que um possuidor diligente teria podido obter. Estas diferenças mostram que o conteúdo típico do direito posse pode oscilar, e oscila efetivamente, em atenção aos caracteres da posse. De alguma forma, e sem pretendermos ir demasiado longe, podemos falar em vários tipos de posse ou em conteúdos típicos distintos da posse, assinalando que, neste contexto, não há uma posse única, mas posses (a posse do possuidor de boa fé, a posse do possuidor de má fé, etc.).

Os meios de defesa da posse: o Direito providencia ao possuidor meios de defesa da sua pose. Genericamente, esses meios podem ser extrajudiciais ou judiciais. As ações possessórias são típicas, isto é, só existem aquelas que a lei prevê. Atualmente, o Código Civil consagra três ações possessórias e um procedimento cautelar. A estes meios de defesa da posse, há que juntar os embargos de terceiro (artigo 1285.º CC). As ações possessórias são:  Ações de prevenção (artigo 1276.º CC);  Ação de manutenção da posse (artigo 1278.º CC);  Ação de restituição da posse (artigo 1278.º CC). O procedimento cautelar é a restituição provisória da posse (artigo 1279.º CC). Os embargos de terceiro não são uma ação possessória propriamente dita, mas são um meio judicial de defesa da posse em processo de execução.

O fundamento da tutela possessória: a posse: dizer-se que a tutela possessória pressupõe a posse parece uma evidência de saber tautológico. A verdade, porém, é que em alguns momentos da história se previu a possibilidade de os detentores recorrerem à tutela possessória. Ainda hoje o Code Civile Italiano prevê que alguns detentores possam lançar mão da ação de restituição. O Direito português vigente afastou-se dessa solução. Só o possuidor pode defender a posse com recurso às ações possessórias, não o detentor. Assim, em todos os locais do sistema jurídico se prevê a tutela possessória o beneficiário desta é somente o possuidor. Podemos dizer, deste modo, que o fundamento das ações possessórias é a posse. Nestas ações, o autor invoca a sua posse para obter a condenação judicial do terceiro a respeitá-la. A condenação concreta que pode surgir depende da ação possessória considerada, uma vez que o pedido não é o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão mesmo que em cada uma delas. Seja como for, todas as ações possessórias têm em comum o facto de o fundamento da ação ser a posse do autor. A demonstração da posse não constitui simples matéria de facto. Verificar a existência do controlo material da coisa, de corpus possessório, é matéria de facto. Contudo, saber se existe ou não posse é estritamente matéria de Direito. A posse não é uma mera situação de facto, é um direito que resulta da interpretação/aplicação de normas jurídicas. Portanto, saber se há ou não posse é uma questão de Direito.

A restituição provisória da posse: o artigo 1279.º CC dispõe que sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito a ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador. Este preceito fixa, assim, três requisitos, a saber:  A existência de uma posse;  Um ato de esbulho da coisa;  A violência no esbulho. A restituição provisória da posse constitui um meio de tutela da posse, pelo que supõe logicamente a existência de uma posse. A especificidade deste meio de tutela da posse advém, no entanto, da reação a um esbulho violento. Não é qualquer esbulho que fundamenta a restituição provisória da posse nos termos do artigo 279.º CC, e, por conseguinte, ele não se aplica em todos os casos de esbulho. Apenas o esbulho com violência suscita a aplicação do preceito. A violência é de considerar de acordo com o disposto no artigo 1261.º, n.º2 CC. O esbulho é violento sempre que o esbulhador empregue coação física ou psicológica sobre o possuidor para obter a coisa. O artigo 1279.º CC consagra uma solução excecional do ponto de vista do Direito Processual Civil. Se for feita a prova da posse, do esbulho e da violência, o possuidor esbulhado obtém a condenação judicial do esbulhador à restituição da coisa sem este ser ouvido no processo, ou seja, sem contraditório processual. O sacrifício do princípio do contraditório encontra a sua justificação na reação à violência. Sendo esta intolerável para a ordem jurídica, o esbulhador não é admitido sequer a pronunciar-se sobre a pretensão do esbulhado e é condenado a devolver a coisa ao esbulhado antes de poder intervir processualmente. A restituição provisória da posse tem a sua regulação processual como procedimento cautelar, encontrando-se a disciplina respetiva nos artigos 393.º a 395.º CPC. O artigo 393.º CPC preceitua que, no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência. Encontramos aqui os três requisitos substanciais previstos no artigo 1279.º CC. Como dissemos anteriormente, a posse tem de ser demonstrada pelo autor do procedimento cautelar, o possuidor esbulhado. Mas a prova de facto limita-se à existência do corpus possessório. A posse como situação jurídica resulta de uma interpretação/aplicação do Direito a essa situação de facto, a fazer pelo juiz. O artigo 394.º CPC dispõe, por sua vez, que se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador. Conforme dissemos, a violência do esbulho justifica o sacrifício do princípio do contraditório. Quem usa da violência para obter a coisa perde o direito a intervir e a ser ouvido no procedimento cautelar de restituição provisória da posse. Resta dizer, que, em termos processuais, o esbulho sem violência também pode ser defendido através de um procedimento cautelar, mas este segue a tramitação comum e não a especial dos artigos 393.º e 394.º CPC (artigo 395.º CPC), que respeita apenas à restituição provisória da posse em caso de esbulho violento.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

A ação de prevenção: à ação de prevenção dedica o nosso Código Civil o artigo 1276.º CC: «Se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar». A ação de prevenção destina-se a prevenir a prática de atos de turbação ou esbulho de terceiro, sejam eles judiciais ou extrajudiciais, e, neste último caso, materiais ou jurídicos. O terceiro em causa pode ser qualquer um, pessoa singular ou coletiva, de Direito privado ou de Direito público, como o Estado, uma autarquia local um instituto público, etc. Uma vez que esta ação requer que não tenha havido ainda perturbação na posse da coisa, o seu escopo é unicamente evitar que esta perturbação venha a ter lugar, obtendo-se a condenação judicial do autor da ameaça a abster-se de concretizar atos de turbação ou esbulho sobre a coisa. Para além de determinar a posse, o possuidor terá de provar ainda o justo receio de ser perturbado ou esbulhado. Não basta, pois, o simples receio. O possuidor terá de fazer prova de indícios que sustentem a convicção do julgador que a violação da posse se afigura como uma possibilidade real, o justo receio de que a lei fala. Na ação de prevenção, o tribunal não pode condenar o autor da ameaça em multa ou indemnização por violação da posse, porquanto a violação da posse não teve ainda lugar. Por isso, o artigo 1276.º CC contém apenas na parte final a ressalva da aplicação de qualquer destas duas sanções, sem que, contudo, qualquer delas possa resultar da ação de prevenção.

A ação de manutenção: a ação de manutenção vem prevista no artigo 1278.º, n.º1 CC: «No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado (…) será mantido (…) enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito». Diferentemente da ação de prevenção, a ação de manutenção supõe que um terceiro concretizou uma ação de violação da posse, através da prática de atos de turbação. São atos de turbação todos os atos materiais que não impliquem o esbulho, isto é, o desapossamento efetivo da coisa. Se A coloca caixotes de mercadorias na garagem do vizinho B, para aproveitar o espaço deste, sem afastar o controlo material do último sobre a coisa, está a levar a cabo atos de turbação. A relação adequada de B contra o terceiro consiste na ação de manutenção, uma vez que não foi consumado um esbulho. Na ação de manutenção, ao contrário da ação de prevenção, não se está mais perante uma perspetiva abstrata de violação da posse, de uma possibilidade de isso acontecer, pressupondose ao invés que o terceiro perpetrou já atos materiais sobre a coisa que perturbem o gozo dela pelo possuidor. A diferença entre a ação de manutenção e a ação de restituição está em que a primeira pressupõe que o possuidor mantém a coisa consigo, não tendo sido consumado o desapossamento. A reação contra uma tentativa falhada de esbulho deve ser feita através de ação de manutenção e não por via da ação de restituição.

A ação de restituição: a ação de restituição encontra-se igualmente prevista no artigo 1278.º, n.º1 CC, conjuntamente com a ação de manutenção. Trata-se, contido, de ações possessórias distintas. De acordo com aquele artigo, «no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor (…) esbulhado será (…) restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito».

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A ação de restituição tem lugar quando o possuidor foi privado da coisa pelo esbulho. Neste caso, o corpus possessório é destruído pela intervenção de um terceiro, que concretiza um desapossamento da coisa, retirando-a da esfera de poder do possuidor. A ação de restituição distingue-se facilmente da ação de prevenção. Nesta não se verificam atos materiais de ofensa da posse, o possuidor apenas tem um receio justificado que tal venha a suceder no futuro, enquanto na ação de restituição um terceiro intervém sobre a coisa possuída, subtraindo-as ao controlo material do possuidor. Conforme vimos no número anterior, a ação de restituição também se distingue claramente da ação de restituição, visto que esta se dirige apenas aos casos em que a violação da posse através de atos materiais não retirou o corpus possessório ao possuidor, o qual, apesar de perturbado, ainda permanece com a coisa em seu poder.

Legitimidade ativa para as ações possessórias: a legitimidade ativa para as ações possessórias vem regulada no artigo 1281.º CC, o qual, contudo, apenas menciona as ações de manutenção e de restituição, omitindo a referência às ações de prevenção. Seja como for, afigura-se claro que a legitimidade ativa para a ação de prevenção pertence ao possuidor ameaçado. Se este entretanto morre, os seus herdeiros têm igualmente legitimidade para a interposição desta ação. À legitimidade ativa para a ação de manutenção refere-se o n.º1 do artigo 1281.º CC. Segundo este artigo, a ação de manutenção da posse pode ser intentada pelo perturbado ou pelos seus herdeiros. Quer dizer, o possuidor perturbado tem legitimidade para intentar a ação de manutenção, cabendo esta legitimidade aos seus herdeiros caso faleça. Nas ações de restituição, o n.º2 do artigo 1281.º CC mantém a regra do n.º1: a ação de restituição da posse pode ser intentada pelo esbulhado ou pelos seus herdeiros. O possuidor esbulhado tem legitimidade para interpor a ação de restituição, assim, como as têm os seus herdeiros se ele morrer. A regra geral no tocante à legitimidade ativa nas ações possessória é, por conseguinte, que essa legitimidade cabe ao possuidor. É a solução natural e conforme ao conteúdo jurídico do direito posse. O poder de defender a posse é um poder integrado na situação jurídica (direito subjetivo) posse. Ao titular deste direito, cabe exercê-lo. Falecendo o titular do direito, os herdeiros têm legitimidade para defender a posse ofendida.

Legitimidade passiva nas ações possessórias: a legitimidade passiva nas ações possessórias surge regulada na lei portuguesa unicamente por referência às ações de manutenção e de restituição, registando-se um silêncio no que respeita às ações de prevenção. Não restam dúvidas, todavia, que a ação de prevenção só pode ser intentada contra o autor das ameaças. Uma vez que não há ainda violação da posse, não faz sentido considerar a legitimidade passiva para uma ação de indemnização no caso daquele falecer entretanto. Quanto às ações de manutenção, a legitimidade passiva, de acordo com o n.º1 do artigo 1281.º CC, cabe ao perturbador: a ação de manutenção pode ser intentada pelo perturbado ou os seus herdeiros, mas apenas contra o perturbador. Falecendo o perturbador, o possuidor pode intentar uma ação de indemnização contra os herdeiros («salva a ação de indemnização contra os herdeiros deste»), mas não uma ação de manutenção da posse. Isso explica-se pelo facto de não haverem sido os herdeiros a praticar os atos de turbação e, por conseguinte, uma ação de manutenção não ter quanto a ele qualquer sentido útil. Pela problemática específica da legitimidade passiva para a ação de restituição, abrimos um novo número.

Legitimidade passiva para a ação de restituição da posse. A inoponobilidade da posse a terceiros de boa fé: o artigo 1281.º, n.º1 CC dispõe que a ação de restituição pode ser interposta contra o esbulhador. Aquele que tira a coisa ao possuidor pode sempre ser demandado pelo esbulhado. Caso o esbulhador haja falecido e a coisa esteja com os seus herdeiros, a ação de restituição pode igualmente ser intentada contra estes. Pode acontecer, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão porém, que o esbulhador transmita a coisa a terceiro. Pergunta-se, nesse caso, se a ação de restituição pode ser movida contra ele. A furtou o automóvel a B e vende-o depois a C, entregando-lhe a coisa. Pode o possuidor B demandar C numa ação de restituição? A parte final do artigo 1281.º, n.º2 CC distingue entre o terceiro de boa fé e o terceiro de má fé. Quando alude àquele que esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho, a lei portuguesa tem em vista o terceiro possuidor de má fé ao qual a posse da coisa esbulhada foi transmitida. E admite-se quanto a este que o possuidor esbulhado possa fazer valer a sua posse numa ação de restituição. Estando o terceiro de boa fé, a posse não lhe é oponível. Não se trata, no entanto, de um problema de legitimidade passiva para a ação de restituição, mas simplesmente de inoponibilidade de um direito (a posse) contra terceiro. A ação de restituição, se movida contra terceiro de boa fé, será improcedente, por falta de oponibilidade do terceiro. Se C estiver de boa fé (dentro de uma conceção subjetiva ética), a posse de B não lhe será oponível, e a ação de restituição, caso venha a ser intentada pelo último contra o primeiro, será improcedente. A inoponibilidade da posse a terceiro de boa fé foi introduzida no Direito Português no novo Código Civil, por influencia direta do Codice Civile italiano. Trata-se de uma solução dificilmente justificável num sistema que não positivou a regra posse vale título. Com efeito, percebe-se mal que o terceiro não posse invocar a sua boa fé para evitar o sucesso da ação de reivindicação, e, portanto, que o titular do direito real de gozo reaveja a coisa nesta ação apesar da boa fé do possuidor, mas posse obstar ao sucesso da ação possessória de restituição com esse fundamento. Tudo o que com isto se consegue é que o titular do direito real de gozo (o proprietário, o usufrutuário, etc.) seja obrigado a recorrer à ação de reivindicação porque não pode recuperar a coisa mediante a ação de restituição, podendo ficar numa situação mais difícil quanto à prova. B tem de interpor contra C uma ação de reivindicação, pois, se intentar uma ação de restituição, C pode invocar a sua boa fé e a consequente inoponibilidade a ele da posse do autor (artigo 1281.º, n.º2, in fine CC). Por outro lado, o possuidor formal ficará definitivamente afastado da coisa, pois, não sendo titular de um direito real de gozo, a inoponibilidade da sua posse deixa-o sem meios judiciais de a reaver. Supondo, agora, que B é possuidor formal, ele não pode reaver a coisa mediante uma ação de restituição enquanto ela estiver com C ou transitar para outro possuidor de má fé. Uma vez que a ação de reivindicação lhe está vedada, por não ser titular de um direito real de gozo, não pode obter judicialmente a entrega da coisa. O esbulhador pode constituir uma posse a favor de terceiro, nos termos de outro direito, mantendo, no entanto, a sua posse. Neste caso, o esbulhado pode opor a sua posse a este terceiro? Retomando o nosso exemplo, A vende o usufruto do automóvel furtado a C, entregando-lhe a coisa para o exercício deste direito. Pode B opor a sua posse a C, possuidor nos termos do usufruto, contando que ele é igualmente um possuidor em nome alheio (em nome de A) quanto à propriedade? 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Pires de Lima/Antunes Varela entendem que não, com o argumento literal de que se trata de um detentor e não do possuidor, como menciona o n.º2 do artigo 1281.º CC. O argumento parece-nos ser puramente formal. Se o detentor representa o possuidor na posse e tem a coisa consigo, o esbulhado deve demanda-lo diretamente para reaver a sua coisa. Note-se que o detentor não é um terceiro, é o representante do possuidor na posse (artigo 1252.º, n.º1 CC). Ao pedir a restituição da coisa ao detentor o possuidor esbulhado está, juridicamente, a exercer o seu direito contra o esbulhador. Mais complexa é a situação do detentor que é simultaneamente possuidor nos termos de outro direito. Tomemos o exemplo do possuidor formal nos termos do usufruto, que detém a coisa quanto à propriedade em nome do esbulhador. Neste caso, o esbulhado pode reaver a sua posse como proprietário, mesmo demandando somente o detentor. Contudo, no que respeita à posse do usufrutuário, tudo depende do possuidor estar de boa fé ou de má fé. Se estiver de má fé, a posse do esbulhado élhe igualmente oponível; estando de boa fé, verifica-se uma inoponibilidade da pose do esbulhado relativamente ao possuidor, de acordo com o disposto no n.º2, parte final do artigo 1281.º CC. O possuidor nos termos do usufruto pode invocar a inoponibilidade a ele da posse do esbulhado. Restará ao esbulhado, se for proprietário, a ação de reivindicação para recuperar a coisa. A inoponibilidade da posse a terceiro de boa fé não torna a aquisição da posse por este num facto extintivo da posse do esbulhado, como já tivemos oportunidade de esclarecer. Basta que a posse retorne ao esbulhador ou seja transmitida a um terceiro que esteja de má fé para que ela retome a sua oponibilidade normal e o esbulhado possa reaver a coisa por meio da ação de restituição.

Caducidade das ações possessórias: as ações de manutenção ou de restituição da posse devem ser intentadas no prazo de um ano após a turbação ou o esbulho, sob pena de caducidade do direito (artigo 1282.º CC). Se os atos de turbação ou de esbulho forem praticados às ocultas, o prazo só se inicia quando forem conhecidos do possuidor perturbado ou esbulhado.

Conflito de posses em ação de manutenção e restituição. A melhor posse : uma vez que o esbulho não conduz automaticamente à perda da posse do possuidor esbulhado, que subsiste pelo período de um ano se for pública e pacífica (artigo 1267.º, n.º1, alínea d) e n.º2 CC), durante o ano subsequente a esse facto podem coexistir várias posses incompatíveis, isto é, em conflito, sobre a mesma coisa. Desde logo, as posses do esbulhado e do esbulhador, mas não só, bastando pensar-se na possibilidade do esbulhador transmitir a posse a um terceiro, este a outro terceiro e assim sucessivamente. O artigo 1278.º, n.º2 CC preceitua que se a posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse. Qual é a melhor posse? O n.º3 do artigo 1278.º CC responde. Constitui melhor posse a que for titulada. O que há de apurar-se em face do artigo 1259.º CC Se nenhuma das posses em conflito for titulada, a melhor posse é a mais antiga. Tendo as posses do autor e do réu a mesma antiguidade, prevalece (é melhor posse) a posse atual. Este preceito suscita algumas dúvidas. E se ambas as posses são tituladas, qual delas é melhor posse? Em nossa opinião, dentro da teleologia do n.º3 do artigo 1278.º CC, a melhor posse é a mais antiga. Funciona o segundo critério legal de resolução do conflito possessório. E se, porventura, ambas forem tituladas e tiverem a mesma antiguidade, prevalecerá a posse atual. A, possuidor causal do livro y, comprado a Z, foi esbulhado por C, no dia 2 de abril de 2006. B vendeu e entregou o livro a C três dias depois, conhecendo o comprador o furto anterior. Se A mover uma ação de restituição contra C, o conflito possessório entre o autor e o réu é dirimido através da ponderação da melhor posse.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Qual é a melhor posse? Sendo ambas as posses tituladas, julgamos que a melhor posse é a mais antiga. Ou seja, é melhor posse a de A. A ação de manutenção e a ação de restituição são ações possessórias. Nelas, o autor invoca exclusivamente a sua posse e pede ao tribunal a condenação do réu a não praticar atos de perturbação da posse (ação de manutenção) ou na devolução da coisa (ação de restituição). Se o autor invoca o direito real (a propriedade, o usufruto, a superfície, a servidão predial, etc.) e pede a condenação do réu a reconhecer o seu direito e a entregar-lhe a coisa, a ação já não pode ser qualificada como ação possessória, sendo antes uma ação de reivindicação. Do mesmo modo, a ação de manutenção ou de restituição apenas vem a ser decidida como conflito possessório caso o réu não invoque – ou caso o fazendo não o prove – a titularidade de um direito real de gozo. Como veremos, se o réu exceciona a titularidade de um direito real e o prova, o conflito entre o autor e réu não vem a ser dirimido como um conflito possessório, mas como um conflito entre a posse do autor e o direito real do réu. A resolução de uma ação de manutenção ou de restituição segundo a regra da melhor posse (artigo 1278.º, n.º2 e 3 CC) tem lugar unicamente enquanto conflito se processa entre a posse do autor e a posse do réu. Extravasando a discussão para a titularidade do direito real, opondo este a uma posse contrária, o conflito não é mais possessório, mas de hierarquia de direitos reais de gozo, entre a posse e o direito real de gozo suscitado pelo réu. Este é o significado profundo do n.º1 do artigo 1278.º CC. O possuidor esbulhado só será mantido ou restituído na hipótese de o réu não demonstrar na ação a titularidade de um direito real incompatível com a posse do autor.

A invocação da exceptio dominii na ação de manutenção ou de restituição: na ação de manutenção ou restituição o réu pode defender-se contra o pedido do autor invocando ser o proprietário da coisa, aquilo que tradicionalmente se designa pela exceptio dominii. Não obstante a designação, exceptio dominii, a defesa respeita realmente a qualquer direito real de gozo e não apenas à propriedade. Assim, o réu pode alegar ser usufrutuário, superficiário ou titular de qualquer outro direito real de gozo. Naturalmente, não se tratará neste caso de uma verdadeira exceção de propriedade, mas de uma exceção de titularidade de um direito real de gozo. Com a exceptio dominii ou a exceção respeitante a outro direito real de gozo, a discussão no processo deixa de se confinar à questão possessória, passando a envolver o direito de fundo sobre a coisa. A razão para a admissão da discussão sobre o direito real, e não meramente sobre a posse, numa ação possessória, em que o fundamento está na posse, é de economia processual. Não faria sentido que o titular do direito real de gozo tivesse que recorrer a outra ação, nomeadamente à ação de reivindicação, para provar o seu direito, após ser numa única ação, a ação possessória. Se a titularidade do direito real do réu vem a ser provada na ação possessória de manutenção ou restituição, esta deve ser decidida de acordo com a hierarquização entre a posse e o direito real em causa. É neste momento que a provisoriedade da atribuição possessória se manifesta e o possuidor vê a sua posição ceder perante o titular do direito real de gozo. Por representar somente uma tutela provisória, a posse cede sempre no confronto com o direito real de gozo, que constitui uma atribuição definitiva da coisa ao titular, sendo, por isso, mais forte. Isso resulta com clareza do preceituado em sede de reivindicação (artigo 1311.º CC), onde se estabelece a oponibilidade (e a prevalência) da propriedade (e dos restantes direitos reais – artigo 1315.º CC) à posse (e à detenção). No momento do conflito entre a posse e o direito real, a ordem jurídica corrige a desconformidade existente com a dissociação entre a titularidade do direito real e a posse, fazendo com que esta coincida com aquela. O preço é o sacrifício da posse formal, o detrimento desta em favor da atribuição definitiva da posição que o direito real não possessório representa. É este o significado profundo do artigo 1278.º, n.º1

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão CC. Dispõe este preceito que o possuidor perturbado é mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito. Quer dizer, se o autor e réu apenas esgrimem a posse, sem entrarem na discussão da titularidade do direito real de gozo, o conflito é decidido em termos puramente possessórios, prevalecendo a melhor posse (artigo 1278.º, n.º2 CC). Porém, se a questão da titularidade de um direito real é trazida pelo réu, soba forma de invocação de que é proprietário (exceptio dominii) ou titular de um outro direito real de gozo, e a prova do direito é feita no processo, a ação possessória deve ser declarada improcedente e a coisa mantida com o réu, pois o direito real prevalece sobre a posse. Conforme decorre do que ficou exposto nos números anteriores, as ações de manutenção e de restituição são ações possessórias. Nelas, o autor invoca simplesmente a sua posse e pede ao tribunal a condenação do réu a entregar-lhe a coisa. Pode acontecer que o réu não conteste a posse do autor. Neste caso, a ação de manutenção ou restituição será procedente. Invocando o réu uma posse incompatível com o autor, o conflito é resolvido na base da melhor posse (artigo 1278.º, n.º2 e 3 CC). A coisa deverá ficar com o possuidor que tiver melhor posse. Se o réu se defender invocando um direito real de gozo, a ação desloca-se do plano puramente possessório para o plano da hierarquia entre a posse do autor e o direito real do réu. Provando o autor a posse e o réu, por sua vez, um direito real de gozo, a ação será sempre improcedente, pois a atribuição provisória representada pela posse cede defronte da atribuição definitiva do direito real não possessório. A invocação da exceptio dominii é hoje deduzida no processo declarativo comum, segundo as regras gerais.

Os embargos de terceiro: os embargos de terceiro foram objeto de previsão no artigo 1285.º CC. Todo o regime adjetivo encontra-se hoje nos artigos 351.º a 359.º CPC. Os embargos de terceiro caracterizam-se, segundo o artigo 1285.º CC, por ser um meio de defesa da posse contra uma diligência ordenada judicialmente; por exemplo, uma penhora, um arresto ou um arrolamento. Assim, um possuidor que veja a coisa por si possuída ser objeto de uma penhora no âmbito de uma execução em que não é o executado, pode defender-se deduzindo embargos.

A posse singular: a posse diz-se singular quando é exercida por uma única pessoa nos termos de um direito real de gozo. Não deixa de haver posse singular na hipótese de a coisa se encontrar com um detentor. Se, por exemplo, a coisa está com um mandatário, para este a vender, o mandante continua possuidor e é um possuidor singular, visto que o detentor não tem nenhuma posição possessória sobre a coisa. À posse singular contrapõe-se a chamada composse.

A composse: a composse existe quanto mais do que uma pessoa tem posse sobre a coisa nos termos de um direito da mesma natureza. A sua verificação liga-se evidentemente às situações de comunhão de direitos reais (artigo 1404.º CC), nas quais vários direitos reais da mesma natureza incidem simultaneamente sobre a coisa. Assim, havendo compropriedade, e caso os comproprietários tenham posse, cada um deles possui nos termos do direito de compropriedade juntamente com os outros. Como não há uma única propriedade singular, mas vários direitos de compropriedade, segundo o modelo explicativo que seguimos, cada um dos comproprietários possui a coisa em concorrência com os demais por referência ao mesmo direito real. O mesmo sucede em todas as outras hipóteses de comunhão de direitos reais, cousufruto, co-superfície, etc. A e B compraram o imóvel x a C, tendo este entregue a coisa aos dois compradores. Com a tradição da coisa aos compradores, estes tornaram-se ambos compossuidores nos termos da compropriedade. A é (com)possuidor

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão relativamente ao seu direito de compropriedade e B (com)possuidor no tocante ao seu. Havendo composse, cada um dos compossuidores possui a coisa em nome próprio nos termos do seu direito (de compropriedade, de co-usufruto, etc.), sendo detentor relativamente aos direitos dos outros comunheiros. Por conseguinte, cada compossuidor é simultaneamente possuidor e detentor. Possuidor relativamente ao direito (compropriedade, co-usufruto, etc.), que exterioriza sobre a coisa, detentor no tocante à posição dos outros compossuidores. O artigo 1406.º, n.º2 CC apoia esta interpretação, dispondo que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título. Ora, como se sabe, somente o detentor pode inverter o título da posse (artigo 1265.º CC). O comproprietário que inverte o título da posse contra o outro ou outros comproprietários tem a posição de detentor no que concerne à posse destes últimos e, por isso, pode inverter o título da sua posse. Em conclusão, a composse designa uma situação de existência de pluralidade de posses nos termos de um direito da mesma natureza. Duas ou mais pessoas são simultaneamente possuidores – e reciprocamente detentoras – nos termos do mesmo direito. Os elementos constitutivos da posse não mudam na composse. Também nesta os compossuidores têm de ter o controlo material da coisa ou corpus possessório. Simplesmente, esse controlo material ou corpus surge repartido pelos vários compossuidores, de modo que cada um deles, sozinho, não tem o controlo material da coisa, surgindo este da ação conjunta de todos. O corpus possessório pode ser exteriorizado através de um intermediário ou representante, que atue sobre a coisa em nome do compossuidor e não em seu nome. Não se regista neste ponto nenhuma diferença entre a posse singular e a composse. Dito por outras palavras, a posse pode ser exercida pelo compossuidor através de um detentor. No limite, todos os compossuidores podem atuar o seu controlo material da coisa através de um detentor (ou vários). Porquanto a posse supõe, para além do corpus possessório, a ausência de uma norma legal que descaracterize a situação para mera detenção, a composse só existe fora dos casos elencados no artigo 1253.º CC ou noutro preceito normativo com a mesma função. Questão discutida consiste em saber se a composse se exerce nos termos de direito da mesma natureza (direitos homólogos) ou se pode haver composse relativa a diferentes direitos (direitos heterogéneos).

1. Em Itália, Messineo e Favarra defendem que a composse pode existir com direitos heterogéneos e apontam o exemplo da – segundo os autores – composse entre o credor pignoratício e aquele que constitui o penhor. 2. Em Portugal, o artigo 669.º, n.º2 CC, seguindo os antecedentes do BGB e do Codice Civile, dispõe: «A entrega da coisa pode consistir na simples atribuição da composse ao credor, se essa atribuição privar o autor do penhor da possibilidade de dispor materialmente da coisa». Significa isto que há composse entre o autor do penhor e o credor pignoratício? A resposta é negativa. O que o preceito estabelece é a necessidade de constituição de uma posse a favor do credor pignoratício. Essa posse não tem de ser a mesma posse do autor do penhor, nem pode ser. Essa posse não tem termos da propriedade, a constituição da posse a favor do credor pignoratício, através da entrega da coisa, não faz deste evidentemente um possuidor no que toca à propriedade, mas somente quanto ao direito de penhor, que é o direito exteriorizado pelo credor pignoratício. A menção a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão uma composse no artigo 669.º, n.º2 CC explica-se apenas pelos antecedentes do Direito Comparado, sobretudo, do Codice Civile. A infelicidade da redação do preceito está na utilização do termo composse, quando tudo o que está em causa é a constituição de uma nova posse a favor do credor pignoratício. Esta posse acresce à do autor do penhor, numa situação que a seguir descrevemos como de sobreposição de posses, não se cumula com a dele em composse. Portanto, a composse existe unicamente quando a posse é exercida simultaneamente por vários possuidores nos termos de direitos da mesma natureza. O Código Civil consagrou um preceito à composse, o artigo 1286.º CC. A regra de maior alcance consta do n.º3: «são aplicáveis à composse as disposições do presente título». A composse traduz uma pluralidade de posses; cada uma dessas posses está sujeita ao regime geral constante dos artigos 1251.º e seguintes CC. O compossuidor, por exemplo, pode adquirir por usucapião o direito a que se refere a sua (com)posse como pode o possuidor singular. Os n.º1 e 2 contêm duas regras específicas: a. A primeira regra específica da composse constante do n.º1 do artigo 1286.º CC representa um mero afloramento da regra geral existente em matéria de defesa de direitos em comunhão que surge no artigo 1405.º, n.º2 CC (aplicável a todas as situações de comunhão ex vi artigo 1404.º CC). Cada compossuidor pode defender a sua (com)posse, assim como a posse integral da coisa (para o direito exteriorizado), sem que o terceiro possa objetar que a posse não lhe pertence por inteiro. b. A segunda regra, essa excecional, afasta a ação de manutenção do âmbito da tutela possessória entre os compossuidores. Em caso de turbação, o compossuidor perturbado não pode lançar mão da ação de manutenção, cabendo-lhe apenas a ação direta, de acordo com o disposto no artigo 336.º CC( artigo 1277.º CC).

Sobreposição de posses: diferente da situação de composse é a sobreposição de posses. É verdade que se pode dizer que há igualmente uma sobreposição de posses nas situações de composse, pois que os compossuidores são igualmente possuidores nos termos do direito que exteriorizam sobre a coisa e, nesse sentido, existem várias posses. Todavia, a figura da sobreposição de posses tem uma maior amplitude. Existe sobreposição de posses sempre que haja mais do que uma posse em simultâneo sobre a coisa, nos termos do mesmo ou de diferente direito real de gozo. Se as várias posses são exercidas nos termos do mesmo direito, temos de distinguir consoante essas posses são compatíveis ou incompatíveis. Se são compatíveis, como sucede com a posse dos comproprietários ou outros comunheiros (co-usufrutuários, cosuperficiários, etc.), há uma simples composse. Se as posses atuadas por dois ou mais possuidores nos termos do mesmo direito são incompatíveis, há sobreposição de posses, e não composse. A situação pode ocorrer por força de um esbulho, em que o possuidor esbulhado mantém a posse pelo prazo de um ano (artigo 1267.º, n.º1, alínea d) CC) e o esbulhador adquire uma nova posse pelo facto aquisitivo respetivo (apossamento ou inversão do título da posse). E se figurarmos um novo esbulho ao esbulhador, por parte de outro terceiro, prolongamos o cenário, que se pode estender sucessivamente. A posse do possuidor esbulhado e do esbulhador (e do esbulhador do esbulhador) pode respeitar ao mesmo direito real de gozo (de propriedade, usufruto, etc.) ou a um diferente direito real, por exemplo, porque o esbulhado tinha uma posse como proprietário pleno e o esbulhado arroga-se o usufruto sobre a coisa. O que importa é que possuidor esbulhado, que mantém a posse segundo o disposto no artigo 1267.º, n.º1, alínea d) CC, e esbulhador exteriorizam sobre a coisa direitos incompatíveis. Existe ainda sobreposição de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão posses quando estão constituídas em simultâneo várias posses nos termos de diferentes direitos reais de gozo. Estas posses são, em princípio, compatíveis e coexistem sobre a mesma coisa, da mesma forma que coexistem os direitos reais maiores e os direitos reais menores que os oneram.

A posse: situação de facto ou de direito? Trata-se de uma controvérsia clássica do tratamento doutrinário da posse, saber se esta representa um mero facto (uma situação de facto) ou um direito, e, neste último caso, de que direito se trata. Não obstante algumas fórmulas controversas, admite-se genericamente que no Direito Romano se concebia a posse como mero estado facto (res facti). Isso era inequívoco para a possessio naturalis, a qual não tinha nenhuma tutela jurídica. Mas igualmente a possessio defendida pelos interdicta era entendida como um mero facto. Este entendimento herdado do Direito Romano obteve desde sempre um largo acolhimento doutrinário. Algumas dificuldades subsistiam, porém. A posse é defendida por meios possessórios e há consequências jurídicas que lhe estão associadas. Segundo os defensores desta teoria, trata-se de efeitos jurídicos produzidos pela situação de facto posse. Windscheid dizia: «certo, a este facto estão ligadas consequências jurídicas; mas não é por isso que – a posse – se torna um direito. De outro modo, também o contrato e o testamento se poderiam denominar direitos». Uma linha diversa pode ancorar-se em Savigny. Este autor explica que a posse em si constitui um mero facto, mas que a ela se ligam consequências jurídicas, e que isso faz dela simultaneamente um facto e um direito, uma teoria híbrida que lhe valeu algumas críticas. Não obstante, a sua posição teve, e ainda tem, defensores prestigiados. Uma doutrina crescente, que remonta ao próprio Savigny, concebe a posse como uma posição jurídica, um direito, embora se discuta depois se esse direito é um direito real ou tem outra qualquer natureza. A discussão permanece aberta. Em todo o caso, e diferentemente dos romanistas, que se pronunciaram sobre os textos do Direito Romano, a doutrina atual pondera os dados do Direito positivo. E se é certo que há uma linha comum que o instituto da posse mantém nas diversas ordens jurídicas, há, por outro lado, dados normativos que são específicos a cada uma delas e que podem mudar o sentido da resposta a dar à questão de saber se a posse é um facto (res facti, como os romanos a denominavam) ou um direito. A posse assenta numa situação de facto, num controlo material da coisa ou corpus possessório, mas não se deve confundir com este; são aspetos distintos. O corpus não é ainda a posse, revestindo a natureza de um mero facto: o controlo material de uma coisa corpórea por uma pessoa. Contrariamente ao uso linguístico, que tende a denomina-lo posse, este controlo material ou corpus não equivale a ela, como resulta com clareza dos casos de detenção, em que aquele que tem fisicamente a coisa consigo não é considerado possuidor. A posse, enquanto tal, é o produto de uma interpretação/aplicação de regras jurídicas, aquelas justamente que conferem a qualidade de possuidor à pessoa que tem o controlo material da coisa ou corpus. Este é, por assim dizer, o pressuposto fático da atribuição do direito posse, mas este direito, ou a posse para falarmos com mais clareza, advém unicamente de uma valoração jurídica da situação de facto. Antes dela, não há ainda posse. Debruçamo-nos sobre o regime jurídico português, concluímos que a posse é um direito. Vejamos as razões que fundamentam esta asserção:

1. Começamos pela detenção: ela evidencia que o controlo material da coisa pelo sujeito não outorga posse automaticamente. Se alguém se apossa de uma coisa por intermédio de outra pessoa, quem tem a coisa consigo não é possuidor é o que dispõe a alínea c) do artigo 1253.º CC. Seria, no entanto, de esperar que se a posse fosse um facto aquele

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que tem o poder sobre a coisa coincidisse com o possuidor. Porém, isso não sucede. O representado é quem adquire a posse, não o representante, apesar de ter, ao menos no momento inicial, o poder físico sobre a coisa. Também se alguém tem a coisa consigo e declara renunciar ao seu direito real, passa a detentor (alínea a) do artigo 1253.º CC), não obstante ter o controlo material da coisa. Estes dois argumentos mostram que a detenção só existe como resultado da aplicação das regras jurídicas que afastam a posse. Se a posse fosse um mero facto, não haveria espaço para uma distinção entre posse e detenção, pois o que as torna diferentes é a valoração que o Direito faz de cada uma delas, a detenção como facto, a que não corresponde qualquer efeito jurídico, a posse como direito, com um conteúdo próprio. 2. O segundo ponto de análise advém da existência de tutela possessória: a tutela da posse pressupõe um direito (ou uma situação jurídica ativa) que se faz valer processualmente. Aqueles que atribuem à posse a natureza de um facto discordam disto, afirmando que os factos jurídicos produzem efeitos e a tutela possessória seria um dos efeitos jurídicos que a posse suscitaria. Que um facto jurídico produza efeitos jurídicos é uma evidência que carece de ulteriores explicitações. É um dado adquirido da Teoria Geral do Direito. Mas que um facto jurídico seja tutelado por via de uma ou várias ações ultrapassa esta Teoria Geral. Nas ações fazem-se valer direitos (ou outras situações jurídicas ativas) e não factos. O facto jurídico será, quando muito, a causa de pedir de uma ação judicial, mas não o próprio objeto da tutela. A atribuição da tutela possessória ao possuidor, contrariamente ao detentor, evidencia justamente a natureza da posse como um direito, o direito posse, que surge defendido através dos meios possessórios consagrados. A ordem jurídica tutela a posse porque o possuidor tem um direito a defender. 3. Um terceiro argumento favorável à tese da posse como um direito encontra-se na violação da posse: para além da tutela possessória, o possuidor tem direito a ser indemnizado pelo prejuízo sofrido com a turbação ou o esbulho (artigo 1284.º, n.º1 CC). Não se vê que o fundamento da pretensão indemnizatória possa ser outro que não a violação da posse. A responsabilidade em causa, que é extracontratual, funda-se, segundo o disposto no artigo 483.º, n.º1 CC, na violação de uma situação jurídica. Uma situação de facto não pode ser violada e não gera, por conseguinte, responsabilidade civil. 4. Em quarto lugar, deparamos com o fenómeno da transmissão da posse: como vimos a propósito do regime da transmissão da posse, forma-se encontrando, desde o Direito Romano, formas de tradição que, em alguns casos, prescindem da entrega física ou material da coisa (imaterialização da posse). A imaterialização evoluiu até que a posse se considera transmitida como um efeito jurídico negocial, sem a tradição da coisa, como sucede no constituto possessório. Uma transmissão jurídica da posse só se explica se a natureza jurídica desta for a de uma situação jurídica. Só as situações jurídicas se transmitem, não os factos. Ainda no contexto da transmissão, mas agora mortis causa, a posse é hereditável. No Direito português, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores (artigo 1255.º CC). Isto não acontecia assim no Direito Romano, em que a posse não era considerada suscetível de sucessão. A sucessão na posse ocorre porquanto a lei a concebe como uma situação jurídica. Não há sucessão de situações de facto. Este apresenta-se, assim, como um dos mais decisivos argumentos no sentido favorável à tese da posse como um direito.

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5. A possibilidade de a posse subsistir sem o corpus dá um outro argumento: segundo o artigo 1267.º, n.º1, alínea d) CC, o esbulho da coisa não conduz imediatamente à perda da posse. Pelo contrário, a posse permanece durante o ano posterior ao esbulho, e até mais de um ano se a posse do esbulhado for oculta ou houver sido adquirida com violência, enquanto não se tornar conhecida do esbulhado ou a violência cessar. Este é igualmente outro dos pontos em que mais nitidamente se percebe o afastamento entre a situação de facto (o corpus) e a posse. O Direito português mantém a posse naquele que foi esbulhado, ainda que o controlo material sobre a coisa haja sido perdido a favor de um terceiro. Se a posse fosse uma mera situação de facto não se conseguiria justificar como ela subsistiria perdido o corpus. A razão para isto acontecer está na natureza de situação jurídica da posse. A posse requer o controlo material da coisa para ser atribuída, podendo, contudo, subsistir sem ela. Este regime não é explicável sendo a posse uma mera situação de facto. 6. Um ulterior argumento reside naquilo que no Direito Romano se designava pelos commoda possessionis e que a doutrina defensora da tese da posse como situação de facto aponta como os efeitos da posse: conforme ilustrámos anteriormente, a posse outorga ao possuidor o aproveitamento da coisa. Esse aproveitamento vai do uso, que o controlo material propicia, à fruição, no caso do possuidor de boa fé, e à disposição, material (benfeitorias) e jurídica (transmissão da posse). O uso, a fruição e a disposição apresentam a configuração típica do gozo, comum aos direitos reais desta categoria. Trata-se de verdadeiros poderes jurídicos, que integram o conteúdo da proteção possessória. A posse estrutura-se juridicamente como qualquer outro direito real de gozo, com conteúdo próprio de aproveitamento facultado ao possuidor. 7. Resta, por último, a presunção de titularidade do direito consagrada no artigo 1268.º, n.º1 CC: esta seria explicável em virtude da situação de facto posse. Um direito não faz presumir outro direito, dir-se-á. Simplesmente, esta presunção só funciona a favor de quem tem posse. Ora, só depois de se saber se o Direito não descaracteriza o corpus para mera detenção é que o artigo 1268.º, n.º1 CC é aplicável – porque então há posse. A presunção constante do artigo 1268.º, n.º1 CC só atua após a valoração jurídica da situação como posse e não defronte da mera situação de facto. O detentor não goza desta presunção. 8. Como se vê, não precisamos de invocar o argumento sistemático. A pose vem regulada como um direito real de gozo, a par dos restantes, no Livro III do Código Civil. Esta colocação da posse no sistema interno supõe implícita uma qualificação legal da posse como direito real. Só por si, todavia, este posicionamento sistemático seria insuficiente para apoiar a doutrina da natureza jurídica da posse, sabendo nós que essa natureza só pode advir do regime jurídico instituído e não da arrumação sistemática da matéria. Mas, como afirma Oliveira Ascensão, a qualificação legal só deve ser afastada quando houver razões para isso e, conforme expusemos abundantemente, o regime jurídico reforça a colocação sistemática, não a afasta. Todos estes argumentos abonam a teoria da posse como um direito e põem em crise a aferição tradicional, ainda dominante no espetro doutrinal, da posse como mera situação de facto. A posse é uma situação jurídica que se constitui sobre uma situação de facto, o corpus, mas que se diferencia dela por ser um direito.

A posse como direito real de gozo: definida a natureza da posse como uma situação jurídica, importa analisar a que modalidade de situação jurídica corresponde. Já muitas vezes aludimos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a ela como um direito; no entanto, no tratamento doutrinário desta questão, nem todos os autores concordam em qualificar a posse da mesma maneira:

1. Gentile assaca-lhe a natureza de interesse legítimo, uma situação jurídica que justificaria a tutela possessória, sem ter, no entanto, a dignidade de um direito subjetivo. 2. Natoli, diferentemente, fala na posse como expectativa jurídica. 3. Mesmo no campo daqueles que afirmam tratar-se a posse de um direito subjetivo se discute de qual direito se trata. É conhecida a tese de Savigny de que a posse pertence ao Direito das Obrigações. Outros, não deixando de reconhecer ser a posse um direito subjetivo, recusam também a natureza de direito real, deixando-o, porém, num limbo assistemático. Na doutrina italiana, surgiu a tese da posse como um diritto affievolito, propugnada inicialmente por Branca e seguida depois por Montel, a que não será estranha a influência alemã, particularmente de Landsberg, Stammler, v. Thur e de Wolff/Raiser, que acentuam a natureza provisória da posse. Em Portugal, Oliveira Ascensão, afirmando ser a posse um direito não absoluto, afasta a natureza real. E também Menezes Cordeiro se filia agora nessa orientação. 4. A tese da posse como um interesse legítimo só é viável se detetarmos a admissão de uma forma de tutela que é concedida, não para assegurar a atribuição de um bem a alguém, mas para, por essa via, se obter a satisfação de um ou mais interesses determinados. Com a posse, o Estado garantiria a defesa da paz social ou a prevenção da violência entre as pessoas pela disputa das coisas. Não é isso que se passa, porém. Na posse, a coisa é envolvida como objeto de liberdade, que lhe vem reconhecido para ele realizar o aproveitamento da coisa enquanto a posse durar. A posse não confere apenas uma tutela da posição possessória ao possuidor; ela atribui-lhe poderes de aproveitamento que têm a coisa por objeto. Na posse, não existem meros interesses tutelados; há uma verdadeira atribuição – ainda que provisória – de uma coisa a um sujeito, ou seja, um direito subjetivo. Pensamos que o que dissemos é igualmente suficiente para afastar a tese da posse como expectativa jurídica. Esta tese sublinha excessivamente a importância da usucapião no contexto da posse, como se esta fosse unicamente um meio de permitir ao possuidor a aquisição definitiva do direito real. Todavia, a usucapião representa apenas um dos poderes do conteúdo jurídico da posse ao lado de outros. Torná-lo o foco central da figura, descentra a análise. A usucapião surge como um poder jurídico do possuidor, mas um poder que tem por fonte um direito, sem se confundir com este. A discussão sobre a natureza da posse teve o seu início durante o século XIX. A diversidade das posições expressadas durante esse período permite identificar várias teorias, algumas das quais vieram depois a fazer escola.

1. O ponto de partida encontra-se em Savigny: para este autor, a posse pertence ao Direito das Obrigações, o que faz dela um direito de crédito. Esta qualificação não motivou, no entanto, o entusiasmo de outros autores e permanece atida ao nome de Savigny. Não parece difícil perceber porquê. Não há na posse uma relação jurídica que o possuidor seja parte, nem se vislumbra qual o crédito e qual a prestação que integram a relação obrigacional. O possuidor faz um aproveitamento direto da coisa, sem a imediação de ninguém. De qualquer forma, ao admitir que a posse pode ser um direito e ao discutir a classe de direitos a que a posse pertence, Savigny lançou as bases da discussão ulterior. E nisso reside um dos seus méritos.

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2. Num campo diametralmente oposto, Puchta identifica cinco categorias de direitos

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subjetivos e defende que a posse consiste num direito de personalidade, num direito á própria pessoa, um reflexo do entendimento, segundo o qual, a posse tutela a vontade do possuidor. Também esta doutrina não teve mais defensores. A posse tem natureza patrimonial e não pessoal; por outro lado, o seu objeto é uma coisa corpórea e não um bem da personalidade. Em forte polémica com Savnigny, Gans avançou a tese de que a posse seria o princípio ou começo da propriedade, uma ideia que também não sufragaria o aplauso da doutrina subsequente. A posse pode respeitar a outros direitos que não a propriedade, não tem uma relação exclusiva com este direito. Uma outra teoria defende a natureza plural da posse, apurada em função do direito que ela exterioriza. Se a posse se manifesta num direito real, num direito de crédito, num direito sucessório ou num direito familiar, a sua natureza corresponde a esse direito. Nesta teoria, a posse não se reconduz a um direito real, mas também não tem a natureza de um crédito, como defendia Savigny, assumindo a natureza dos direitos a que se pode referir. Esta teoria foi apresentada por Strohal na Alemanha e encontraria eco em Portugal: Luís Pinto Coelho, Paulo Cunha e Dias Marques, todos eles admitiram que a posse possa ter mais do que uma natureza em função do direito que exterioriza. Ao lado destas teorias, têm surgido outras que negam à posse a natureza de direito real, sem contudo apontarem uma natureza alternativa. Oliveira Ascensão, impressionado com a limitação de oponibilidade da posse resultante do artigo 1281.º, n.º2 CC nega à posse caráter real, aproximando-a dos direitos relativos, ressalvando embora que ela não é um puro direito relativo. Menezes Cordeiro invoca um argumento histórico – a posse não era defendida por actiones in rem no Direito Romano – para rejeitar a natureza real da posse, fazendo, em todo o caso, uma precisão importante: a posse é um instituto de Direitos Reais. Admite, em todo o caso, que possa ser um direito de gozo diferenciado. Por último, deparamos com a teoria da posse direito real, a qual defende que, qualquer que seja o direito exteriorizado através da posse, esta é sempre um direito real. Na doutrina portuguesa, a esta teoria ficaria ligado o nome de Manuel Rodrigues, a que se seguiram Menezes Cordeiro, que, entretanto, reviu a sua posição, e Carvalho Fernandes. O que pensar: efetivamente, a posse não era defendida no Direito Romano por uma actio in rem, como os demais direitos reais, mas sim pelos interdicta. Julgamos, porém, que dar a este argumento valor definitivo equivale a afirmar que a realidade se cristalizou na História e que os sistemas jurídicos de base romanística têm de manter o pensamento jurídico dos romanos. E já aludimos à circunstância de a ligação do direito real à actio in rem haver desaparecido a partir do século XIX. A contraposição entre posse facto e posse direito mostra que uma evolução atuou no sentido de romper a caracterização romana da posse como pura situação de facto. Nada impede que o passo seguinte da evolução seja a inclusão da posse no numerus clausus das figuras com natureza real. A posse apresenta realmente peculiaridades no seu regime jurídico que não se encontram no regime dos restantes direitos reais de gozo. Para começar, a aquisição da posse pode dar-se sem título algum e mesmo através da prática de um facto ilícito, civil e penal (furto e roubo), podendo existir, por isso, em violação de outros direitos reais atribuídos pela ordem jurídica – nomeadamente, e desde logo, a propriedade – e constituir o possuidor em responsabilidade civil a favor do titular do

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão direito real. Quando se constitui, a posse não onera direito real algum, sequer a propriedade, ainda que ela se processe nos termos de um direito real menor. Também o proprietário que perdeu a posse da coisa para um terceiro não fica com o seu direito onerado. Coexistindo embora potencialmente com qualquer direito real de gozo, e sendo mesmo exercida em contradição com ele, a posse não constitui um ónus que limita o direito real. Ao contrário dos demais direitos reais de gozo sobre prédios, cujos factos aquisitivos, modificativos, translativos e extintivos estão sujeitos a registo, a fim de garantir a publicidade, a posse não está sujeita a ele e quando vem a ser registada, uma possibilidade que o Direito português abre aos interessados (artigo 2.º, n.º1, alínea e CRP), o efeito do registo é meramente enunciativo e não consolidativo, como em regra sucede com o registo dos factos relativos aos demais direitos reais de gozo. O possuidor nem sempre pode opor a posse em caso de esbulho, o que acontece quando a coisa vai parar a um terceiro de boa fé. A posse é inoponível a este (artigo 1282.º, n.º2, in fine CC), o que faz dela um direito com uma oponibilidade limitada quando confrontada com os demais direitos reais. Por outro lado, a posse cede defronte dos demais direitos reais de gozo, não podendo ser feita valer contra estes, o que a torna uma forma de tutela mais fraca do que aqueles ou enfraquecido, como dizem alguns autores italianos. Isso acontece em caso de reivindicação pelo titular do direito real contra o possuidor formal (artigos 1311.º e 1315.º CC) e também na ação de restituição quando o réu invoca a exceptio dominii ou a exceção de titularidade de qualquer outro direito real de gozo (artigo 1278.º, n.º1 CC). A falta de oponibilidade da posse em algumas situações e, sobretudo, a suscetibilidade de cessar a todo o momento por meio da reivindicação do proprietário ou de outro titular de direito real conferem à posse uma feição de tutela provisória ou de um direito condicionado à vontade do titular do direito real, como outros preferem dizer. Por último, a posse constitui-se, transmite-se e extingue-se por via de factos diversos dos restantes direitos reais. O apossamento, a inversão do título da posse, o constituto possessório, o abandono respeitam somente à posse. Tudo isto justifica a negação da natureza real à posse e a sua remissão para o campo obscuro e sistematicamente desalinhado das situações jurídicas sui generis? A natureza provisória da posse não fundamenta a exclusão deste direito da categoria dos direitos reais de gozo. A propriedade pode ser temporária (artigo 1307.º CC) e outros direitos reais de gozo têm o seu tipo conformado em função de uma duração limitada, como é o caso do usufruto. Há, por outro lado, direitos reais cuja subsistência está na vontade de outro titular de direito real. O penhor, a hipoteca e os demais direitos reais de garantia extinguem-se com o pagamento da dívida garantida. Têm, por essa razão, uma duração sujeita à vontade do proprietário, que como devedor ou terceiro garante pode pagar a dívida, na maioria dos casos, a qualquer momento, e com isso extinguir a garantia real. Ora, em nenhum dos casos apontados se nega a natureza real do direito em questão. Se a posse atribui uma tutela provisória no sentido de que pode acabar por cessar, isso também sucede com outros direitos reais sem comprometer a sua natureza. A posse tem uma coisa corpórea por objeto e não se dissocia do seu objeto em caso nenhum. Quanto a este aspeto, não existe nenhuma diferença entre a posse e os outros direitos reais de gozo. Também a posse apresenta inerência a uma coisa corpórea. A posse tem oponibilidade erga omnes, sendo, por isso, um direito absoluto. Oliveira Ascensão argumenta que falta à posse o caráter absoluto, mas não tem razão. A lei portuguesa dá ao possuidor o poder de reagir contra quem quer que seja o esbulhador da coisa (ou os seus herdeiros) através da ação de restituição. A posse pode ser oposta a qualquer pessoa, desde que haja esbulhado a coisa e nisto consiste o seu caráter absoluto. Para 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão além do esbulhador, a posse tem ainda oponibilidade contra o terceiro que não esbulhou, contando que esteja de má fé (artigo 1281.º, n.º1, in fine CC). Apenas o terceiro de boa fé a quem a posse da coisa haja sido transmitida após o esbulho não pode ser incomodado pelo possuidor esbulhado, uma solução estranhíssima e incompreensível do ordenamento português, que não contempla o princípio posse vale título. Deste modo, a posse ostenta o mesmo caráter absoluto dos restantes direitos reais de gozo, sofrendo unicamente a limitação da oponibilidade nos casos em que o terceiro que adquiriu a posse após o esbulho – do esbulhador ou de outro terceiro – esteja de boa fé. Esta limitação de oponibilidade não chega, todavia, para afastar a posse do campo dos direitos absolutos. Tendo uma coisa corpórea por objeto, não vemos como se posa recusar a natureza real da posse. A cedência desta defronte dos restantes direitos reais de gozo, havendo conflito entre a posse e um outro direito real, resulta da natureza provisória da atribuição jurídica realizada pelo Direito, sem comprometer a natureza real dessa atribuição. A natureza real da posse não respeita unicamente à posse formal, mas simplesmente à posse, seja formal ou causal. A autonomia da posse relativamente ao direito nos termos do qual se exerce impõe uma consideração separada de direito real quando o direito exteriorizado por ela não tem essa natureza. E real ou de outra natureza, na titularidade do possuidor. Quanto a nós, a posse é, pois, um direito real. Será, no entanto, um direito real de gozo? A posse exercida nos termos de um direito real de gozo confere ao possuidor um aproveitamento que integra os poderes típicos desta categoria de direitos, nomeadamente, o poder de usar a coisa, de a transformar (benfeitorias) e, em alguns casos, quanto ao possuidor de boa fé, o poder de fruir. Se o gozo integra o conteúdo do direito posse não vemos a que outra conclusão chegar que não seja a de que a posse constitui um dos tipos de direitos reais de gozo constantes do numerus clausus legal.

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Secção II – O fundamento da proteção possessória

As diversas teorias: 1. Generalidades: numa das suas obras fundamentais sobre a posse, Jhering sistematiza as teorias existentes sobre a posse em absolutas e relativas. A seu ver, as teorias relativas corresponderiam àquelas que buscam o fundamento da proteção possessória, não na posse em si, mas antes em circunstâncias, objetivos ou proposições jurídicas exteriores a ela, considerando que a posse serve para defender outros institutos que, sem ela, não poderiam ser plenamente exercidos. Já as teorias absolutas corresponderiam àquelas em que o fundamento da proteção possessória é encontrado no próprio instituto da posse. Jhering efetua a seguinte enumeração de teorias relativas: a. Proibição da violência, porque: i. A turbação da posse é um delito contra o possuidor (Savigny); ii. Ou contra a ordem jurídica (Rudorff); b. Princípio jurídico segundo o qual ninguém pode ultrapassar juridicamente outrem sem apresentar um fundamento prevalecente para o seu direito (Thibaut); c. Preferência pela ilibação, segundo a qual, a menos que seja apresentada contraprova em sentido contrário, a posição do possuidor deve ser protegida (Röder); d. Defesa da propriedade, porque: i. Constitui uma propriedade provável (tese clássica); ii. Corresponde a uma propriedade inicial (Gans); iii. Existe interesse necessário num complemento da tutela da propriedade (Jhering). Já as teorias absolutas, na opinião de Jhering, corresponderiam às seguintes: a. A vontade do possuidor na sua incorporação fática (Gans, Puchta, Bruns); b. A preservação do controle fático da coisa, atento o valor económico representado pelo mesmo (Stahll). 2. As teorias relativas: conforme se referiu, a tese da proibição da violência admite duas versões, sendo uma protagonizada por Savigny e outra por Rudorff. Para Savigny, dado que a posse não constitui uma violação de um direito, a menso que esse direito exista concomitantemente com a posse. No entanto, dada a proibição geral da violência, a turbação da posse ou esbulho constitui um delito contra o possuidor, em virtude da sua forma, que o legitima a recorrer aos interditos possessórios, que lhe são conferidos com base no direito que o possuidor tem de que ninguém exerça violência contra ele. Savigny considera que o possuidor não é titular de qualquer direito independente, afirmando que o ilícito consiste neste caso na violência contra as pessoas, que a ordem jurídica reprime, não permitindo em consequência a alteração de qualquer situação fática resultante do seu exercício. Já Rudorff afasta-se de Savigny por considerar que a justificação da proteção possessória não reside na tutela do próprio possuidor contra ilícitos mas antes nas consequências públicas da atividade violenta, considerada como violação da ordem pública, sendo a proteção possessória uma consequência da proibição da autotutela dos direitos. A tese da exigência de um fundamento jurídico prevalecente deve-se a Thibaut. Para este autor existe necessariamente um princípio imposto pela razão, segundo o qual

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ninguém pode ultrapassar juridicamente outrem, a menos que possua uma causa jurídica mais forte para o seu direito prevalecente. Assim, aquele que, com base numa simples situação fática, exerce juridicamente um direito, deve ser provisoriamente protegido até que alguém, exibindo um direito melhor, o obrigue a abdicar dessa mesma situação fática. A tese da preferência pela ilibação deve-se a Röder. Para este autor, o fundamento da proteção possessória reside num direito originário à ilibação, expresso na regra quilibet praesumitur iustus donec probetur contrarium. Dessa regra resultaria que o possuidor deve ser protegido, uma vez que a existência de uma relação exterior, ligando uma pessoa à coisa que ela possui, corresponde possivelmente a um dirieto para cujo exercício a coisa é necessária, que assim exige por força dessa relação, a qual não é por isso ilícita. A tese da presunção da propriedade constitui a posição clássica nesta matéria, tendo sido defendida por Savigny até à 5.ª edição da sua Das Recht des Besitzes. Para esta tese, a proteção do possuidor resulta do facto de se presumir que quem possui uma coisa é igualmente proprietário dela. Assim, a posse é vista como uma sombra da propriedade, como uma propriedade presumida, o que constitui, no entanto, apenas a fundamentação do instituto da posse em geral e não do direito concreto de cada possuidor. A tese que vê a justificação da proteção possessória no facto de a posse constituir o início da propriedade deve-se a Gans. A justificação para esta doutrina reside no facto de a posse poder conduzir à usucapião, tendo assim a proteção possessória como justificação o facto de ela poder permitir uma aquisição da propriedade. A tese é, no entanto, criticável uma vez que apenas se aplica à posse boa para usucapião, não atribuindo qualquer explicação para o fundamento da tutela da posse que não reveste estas características. Já a tese que vê o fundamento da tutela possessória na existência de um interesse em complementar a proteção da propriedade deve-se ao próprio Jhering. Para este autor, a proteção possessória é um complemento necessário da tutela da propriedade, uma facilidade de prova a favor do proprietário que, por extensão, é aproveitada por aquele que não é proprietário. Efetivamente, uma vez quea prova da propriedade nem sempre é possível, a defesa da mesma contra as turbações e esbulhos exige que seja concedido ao possuidor um meio de defesa através da posse, o qual obriga a que seja o esbulhador a apresentar um título relativo ao seu direito. O facto de a posse poder proteger igualmente quem não é proprietário não é para Jhering objeção à sua tese, dado que, sendo a posse a exteriorização do direito de propriedade, é em função desse mesmo direito que é concedida a sua proteção. O facto de poder beneficiar um não titular constituirá uma consequência necessária da proteção legal da propriedade, semelhante ao que suede nos títulos de crédito em que é considerado credor aquele que apresenta o título. A posse funciona assim como uma guarda avançada da propriedade, como num terreno em que os exércitos das primeiras linhas combatem apenas com armas leves, sem usar os canhões. 3. As teorias absolutas: de entre as teorias absolutas, cabe examinar, em primeiro lugar, a teoria da vontade, defendida por Bruns. Para esta teoria, haverá que distinguir se a detenção está de acordo com a vontade universal, ou seja, com a lei, ou se é um mero ato de vontade individual. No primeiro caso, já não existiria qualquer direito mas continuaria a haver uma proteção pelo Estdo, enquanto não for demonstrado que ele ofende a vontade universal, ou seja, o direito. Assim, para Bruns, embora a possa ser adquirida em contrariedade ao Direito, a vontade que nela se manifesta é merecedora de proteção, atenta a liberdade que ela representa e que constitui a base do sistema jurídico. A coação e a violência contra essa vontade representam por isso ilícitos que a lei

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão deve reprimir. Não sendo a posse um direito, mas um facto, não deixa de por isso de ser protegida contra a violência, uma vez que é manifestação positiva de uma vontade. A proteção possessória representa assim a tutela dos direitos gerais da vontade, como seja, a personalidade e a liberdade das pessoas. Já a tese da preservação do controlo fático da coisa deve-se a Stahl. Para este autor, a razão da proteção possessória reside no facto de ela constituir uma forma de apropriação das utilidades proporcionadas pelas coisas. Efetivamente, na base da posse existiria um estado de facto criador de utilidades, que beneficiaria da proteção legal, atento o valor económico que representa. Dado, no entanto, que a essência da posse não reside na própria coisa, mas na aparência, num estado de facto, a proteção da posse não garante o domínio da coisa em relação a todos os sujeitos da ordem jurídica, assegurando apenas em termos provisórios o estado de facto existente contra aquele que o pretende fazer cessar.

Posição adotada: as teorias que fundamentam a posse na propriedade têm, hoje, que ser rejeitadas, uma vez que a posse extravasa do âmbito da propriedade, sendo hoje a sua tutela concedida inclusivamente no âmbito dos direitos pessoais de gozo. A defesa da paz pública é um elemento importante na justificação da tutela possessória, mas não parece ser o elemento decisivo, uma vez que está em causa antes de tudo uma proteção dada ao possuidor na conservação da sua situação. A razão da proteção possessória resulta assim da circunstância de o controlo fático sobre a coisa exercido no próprio interesse constituir um valor económico, que deve ser disciplinado e protegido como tal.

Secção III – Posse e detenção

Generalidades: a distinção entre a posse e a detenção ocorre logo no âmbito do Direito Romano, em que ao lado da possessio civilis apareceu uma denominada possessio naturalis, depois denominada detenção, em que se verifica um exercício efetivo de poderes sobre a coisa, mas em que por algum motivo não se poderia atribuir a quem exerce esses poderes efeitos da posse. Em consequência distingue-se no Direito moderno entre a posse e a detenção, consoante quem exerce o controlo material sobre a coisa beneficie ou não dos efeitos da posse.

A distinção entre a formulação subjetivista de Savigny e a formulação objetivista de Jhering: em relação à distinção entre a posse e a detenção, o debate ainda hoje é centrado na contraposição entre a formulação subjetivista de Savigny e a formulação objetivista de Jhering. Para Savigny, é essencial à posse a detenção, ou seja, a possibilidade física de exercer controlo sobre uma coisa, com exclusão de todos os outros, o que, por exemplo, o navegador tem em relação ao seu barco, mas já não em relação à água sobre a qual ele se encontra. Só que a detenção não seria um conceito jurídico, já que se limitaria ao exercício fático de poderes sobre uma coisa (corpus), sendo assim uma situação de facto, embora relacionada com o exercício do direito correspondente, que atribui juridicamente esses poderes. Assim, para se obter a posse, exigir-se-ia para além da detenção um elemento psicológico, o animus, cuja caracterização transforma a detenção em posse. Efetivamente, o animus possidendi corresponde à intenção de atuar como proprietário (animus domini), o qual seria essencial à posse. O detentor, que se limita a exercer um direito de propriedade alheio, não possui o correspondente animus possidendi, possuindo antes o animus correspondente a deter a coisa em nome alheio (animus detenendi),

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão não tendo por isso posse. Como exemplo de detentor teríamos o locatário que, não considerando a coisa como sua, possui-a nomine alieno e não nomine próprio, não tendo por isso animus domini. Em consequência, o detentor não beneficia das ações conferidas pelo pretor para tutela da posse (interdicta possessionis), o que se explicaria por só a posse ser juridicamente tutelada, não beneficiando a detenção de qualquer tutela. Contraditoriamente, no entanto, o autor admite a existência de posse no penhor de coisas, apesar de reconhecer que o credor pignoratício não possui animus domini, porque não pretende exercer a coisa como sua, defendendo que nesse caso a atribuição dos interdicta resulta de ocorrer uma alienação do ius possessionis por parte do devedor aquando da constituição do penhor, existindo nesse caso uma posse derivada, em que o animus domini é aquele que existia no alienante. A mesma explicação é dada pelo autor em relação aos casos do precarista e do sequestratário, ainda que considere que a atribuição dos interditos corresponde nestes casos a uma anomalia do sistema possessório. Em oposição à doutrina de Savigny, veio Jhering na sua obra Der Besitzwille construir uma teoria objetivista da posse. Para este autor, a vontade não é relevante para distinguir a posse da detenção, pelo que o elemento distintivo entre as duas não poderia ser o animus. Efetivamente, a vontade é sempre necessária em ambas as situações, uma vez que sem vontade existe apenas a justaposição material da coisa a uma pessoa, a qual não tem qualquer significado jurídico, como no exemplo de alguém colocar um objeto na mão de uma pessoa que se encontra a dormir. Fundamental para a posse é antes a existência de um interesse que a lei disciplina, podendo a relação possessória ser vista como a constatação de um interesse de uma pessoa sobre a coisa. Por esse motivo, a vontade nem sequer teria utilidade para estabelecer a distinção entre posse da coisa em nome alheio ou em nome próprio, havendo antes que averiguar se o detentor da coisa atua no seu interesse próprio ou antes no interesse alheio. Para Jhering, o que é essencial à posse é a relação material com a coisa, acompanhada de querer manter essa relação, pelo que em princípio a detenção conduz sempre à posse, uma vez que esta se basta com a existência de um poder físico sobre a coisa voluntariamente mantido e exercido, que se traduz em termos positivos no exercício de poderes sobre a coisa, e em termos negativos, na exclusão dos outros em relação a ela. Por esse motivo, tanto na detenção como na posse existiriam sempre corpus e animus, uma vez que estes são elementos essenciais de qualquer relação com a coisa, dado que esta exige sempre a materialização de uma vontade pelo que o animus não poderia existir sem o corpus, nem o corpus sem o animus. A detenção não é por isso concebível sem a vontade. A razão para a sua existência não reside consequentemente em si própria, mas antes num interesse estranho a ela, devendo por isso o conceito de detenção ser qualificado como um efeito jurídico reflexo. A detenção não resulta por isso da configuração da vontade do detentor, mas antes da necessidade de proteção de outrem, a quem se pretende atribuir em seu lugar a posição de possuidor. Em princípio, toda e qualquer apreensão da coisa deve-se presumir corresponder à posse, a menos que ocorra uma contraprova em sentido contrário. Para a detenção não conduzir à posse exigese assim apenas que a ordem jurídica desqualifique a relação do detentor com a coisa, retirandolhe a tutela interdital, em virtude de não considerar a causa possessionis como merecedora dessa tutela, passando esta assim a ser qualificada como mera detenção. É o que se verifica, a seu ver, nas situações do locatário, comodatário, depositário e do mandatário, aos quais é recusada a tutela interdital. Mas já não seria o caso do credor pignoratício, sequestratário, e precarista, que beneficiam dessa tutela, tendo consequentemente posse. Jhering expressou através de fórmulas algébricas a distinção entre a sua tese e a de Savigny. Se designarmos a posse por x, por y a detenção, por c o corpus, por a o animus, por α a intenção particular que qualifica o animus possidendi, e por n a disposição legal que exclui certas relações

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão possessórias da proteção interdital, na doutrina de Savigny, a distinção entre a posse e a detenção estabelecer-se-ia pela fórmula seguinte: x=a+α+c y=a+c Já na tese de Jhering, a fórmula seria antes a seguinte: x=a+c y=a+c-n Apesar de muito difundida, esta formulação algébrica não é inteiramente exata, uma vez que a conceção de animus dos dois autores é radicalmente diferente. Em Savigny, o animus possidendi corresponde necessariamente a um animus domini, ou seja, à intenção de possuidor como dono, pelo que, sempre que alguém tiver o controlo material da coisa com a intenção de atuar como dono dela, é considerado seu possuidor e beneficia dos interditos. O autor reconhece a ausência de animus domini no credor pignoratício e sequestrário, vendo-se por isso obrigado a criar o conceito de posse derivada para explicar o facto de serem estes, e não o proprietário, a poder utilizar os interditos. Pelo contrário, em Jhering, o animus é apenas um animus possessionis, referindo-se unicamente à mera consciência do controlo da coisa por parte do possuidor, pelo que também existiria no credor pignoratício, precarista e sequestratário. Jhering ultrapassa o problema da diferença de configuração do animus, acrescentando um elemento (α) na explicação da doutrina de Savigny, mas essa autonomização não corresponde minimamente ao pensamento deste autor, que por isso não admite a existência de animus na detenção. Assim, na conceção subjetiva de Savigny, para a ocorrência de posse, exigir-se-ia, além do corpus – controlo fático sobre a coisa – um animus, que corresponderia a uma intenção específica do possuidor, o qual teria que consistir na intenção de agir como proprietário (animus domini). A detenção corresponderia a um corpus desacompanhado de animus, enquanto na posse ocorreriam as duas situações. Na conceção objetiva de Jhering, tanto na posse como na detenção ocorreria a verificação do corpus e animus, distinguindo-se uma da outra pelo facto de na detenção ocorrer uma disposição legal que descaracteriza a situação como posse, retirando os interditos ao possuidor.

A solução da lei portuguesa: não é possível negar que a lei portuguesa se inspirou intencionalmente na doutrina subjetivista de Savigny, continuando a maioria da doutrina e da jurisprudência a defender essa solução. Efetivamente, o artigo 1253.º, alíneas a) e c) CC introduzem no âmbito da detenção o exercício do poder de facto sem intenção de agir como beneficiário do direito, e o exercício da posse em nome alheio, o que corresponde à exigência do animus domini para caracterizar a posse, qualificando como detenção os casos em que não se tem a intenção de possuir a coisa para si, designadamente quando a intenção é de a possuir para outrem (nomine alieno), o que corresponde à formulação subjetivista. Recorde-se que para Jhering tanto há animus na posse como na detenção, sendo irrelevante se se possui em nome próprio ou em nome alheio. Não admira, por isso, que a maioria da doutrina portuguesa continue a defender a conceção subjetivista de Savigny. Há uma parte da doutrina que qualifica a lei portuguesa como objetivista, na esteira de Jhering. Como justificação para essa posição, sustentase que, além de prever expressamente uma definição de posse em que não se faz referência ao animus (artigo 1251.º CC), refere no artigo 1253.º CC as situações que considera não corresponderem à posse, mas antes à mera detenção, o que corresponde precisamente à teoria objetivista, segundo a qual toda a detenção deve considerar-se posse, desde que seja 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão voluntariamente exercida e a lei não determine o contrário. Ora, as alíneas b) e c) correspondem, quer aos atos de mera tolerância, quer à existência de posse em representação de outrem, as quais são pela lei qualificadas como mera detenção. Nestes dois casos, a lei não retira a qualidade de possuidor ao detentor por lhe faltar uma vontade específica, mas antes por que pretende atribuir posse a outrem, ou por não pretender penalizar a mera tolerância com a perda da posse, ou por considerar que a posse deve ser atribuída à pessoa em nome de quem é exercida. Por esse motivo, dado que uma dupla posse não é possível, ao detentor é retirada a tutela possessória no interesse da outrem a quem a lei pretende atribuir a posse. A alínea a) tem, no entanto, motivado alguma controvérsia na doutrina portuguesa, atento o facto de a referência nela à intenção ser dificilmente compatível com uma orientação objetivista. Para Oliveira Ascensão, ela corresponde às situações em que o agente declara não querer ser possuidor, tendo posteriormente aderido à sua posição Carvalho Fernandes e José Alberto Vieira. Menezes Cordeiro, depois de numa primeira fase ter considerado que aí estariam em causa os atos facultativos, veio depois defender que essa norma se referiria às situações em que a própria lei exclui a existência de posse, como na hipótese de exercício de poderes sobre bens do domínio público (artigo 1267.º, n.º1, alínea b) CC), ou de sonegação de bens da herança (artigo 2096.º, n.º2 CC). A esta posição veio posteriormente aderir Pedro de Albuquerque. Há que reequacionar os termos em que o debate tem sido colocado. Recorde-se que a discussão entre Savigny e Jhering relativamente à distinção entre a detenção e a posse resulta do facto de os textos romanos negarem os interditos possessórios ao locatário, comodatário e depositário, ainda que os conferissem ao credor pignoratício, o que justifica a distinção entre a detenção e a posse. Sucede, porém, que a nossa ordem jurídica concede as ações possessórias em todas estas situações, o que implica que entre nós a distinção entre a posse e a detenção tenha que ser estabelecida em termos distintos. Em primeiro lugar, parece-nos hoje indubitável a formulação objetivista da lei portuguesa. Efetivamente, o artigo 1251.º CC não define a posse como uma detenção a que tem que acrescer o animus, não partindo assim da detenção para chegar à posse, como exige a teoria subjetivista. Antes pelo contrário, a posse é genericamente atribuída em todos os casos em que alguém atua por forma correspondente ao exercício de um direito real e, como vimos, igualmente em certos direitos pessoais de gozo, independentemente da intenção do possuidor. A detenção é vista como uma posse legalmente descaracterizada, dado que haverá posse sempre que alguém não se encontre em alguma das situações em que a lei recuse a tutela possessória, nomeadamente o artigo 1253.º CC. Neste sentido, a alínea a) do artigo 1253.º CC não pode ser encarada como uma formulação subjetivista, na medida em que a sua referência à intenção não serve para converter toda a detenção em posse, sendo antes um dos casos legais da qualificação de uma situação aparentemente possessória como mera detenção. As explicações utilizadas para esta norma não têm sido porém suficientes. A ideia de Oliveira Ascensão de que se exigiria uma intenção declarada esbarra com a irrelevância da protestatio facta contraria. Mas a formulação de Menezes Cordeiro é também insuficiente, dado que o artigo 1253.º, alínea a) CC, não pode ser interpretado como mera referência a outros casos legais em que a lei nega a tutela possessória, dado que tal implicaria converter o preceito numa mera norma remissiva, sem conteúdo útil. Uma interpretação possível é a da que esta norma pretendeu abranger os atos facultativos. Esta expressão tem sido entendida com os seguintes significados:

1. Exercício pelo proprietário de um poder incluído no seu direito, que poderia igualmente integrar um direito sobre coisa alheia; 2. Exercício de poderes sobre bens do domínio público;

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

3. Não exercício pelo proprietário de faculdades que a este assistem, beneficiando-se assim indiretamente outrem, mas não podendo este, por não ter posse, adquirir por usucapião servidões negativas; 4. O ato facultativo corresponderia ao ato de mera tolerância, podendo distinguir-se deste por envolver uma permissão expressa, enquanto que no ato de mera tolerância a permissão seria tática. Qualquer destas situações não parece, porém, corresponder ao disposto no artigo 1253.º, alínea a) CC. Na primeira situação, a questão coloca-se, não em termos possessórios, mas antes em termos de conflito entre titulares de direitos reais, sendo objeto de tratamento em outras disposições (artigo 1406.º, n.º2 CC). Quanto à segunda, esta é especificamente regulada no artigo 1267.º, n.º1, alínea b) CC. Relativamente à terceira situação, não é naturalmente posse o não exercício por outrem de poderes correspondentes ao seu direito, uma vez que tal não se adequa à definição de posse do artigo 1251.º CC. Finalmente, a última hipótese cabe perfeitamente no artigo 1253.º, alínea b) CC, pelo que não se justifica que a ela façamos corresponder à alínea a). Só assim uma explicação adequada para o artigo 1253.º, alínea a): ele corresponde a situações em que há exercício de poderes de facto sobre a coisa, mas os mesmos correspondem ao conteúdo de um direito ao qual a lei não reconhece a tutela possessória. Assim, por exemplo, a lei reconhece a tutela possessória ao credor pignoratício, locatário e comodatário, mas não a reconhece ao hóspede no contrato de hospedagem, nem ao titular do direito real de habitação periódica (artigo 21.º, n.º1, alínea c) Decreto-Lei n.º275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011, 10 março). Será, então, a estas situações que se refere o artigo 1253.º, alínea a) CC. Já o artigo 1253.º, alínea b) CC refere-se aos atos de mera tolerância. Esta disposição deve ser interpretada em termos amplos, em ordem a poder extravasar da simples relação de simpatia e obsequidade entre vizinhos, abrangendo todos os casos em que o exercício de poderes sobre a coisa resulta de uma autorização expressa ou tácita, emanada do proprietário, sem que no entanto essa autorização vise conceder algum direito ao detentor. Finalmente, o artigo 1253.º, alínea c) CC, refere-se aos representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, a todos os que possuem em nome alheio de outrem. Nestas alíneas abrangem-se as situações dos titulares de direitos reais menores ou de direitos pessoais de gozo, que possuem, simultaneamente com a posse em nome próprio do seu próprio direito, a posse em nome alheio do direito de propriedade. Para além disso, estará aqui em causa o exercício da posse por em representação doutrem (artigo 1252.º, n.º2 CC), como o que é exercido por procuradores ou mandatários com representação do possuidor, devendo ainda a disposição ser extensiva aos seus auxiliares com contemplatio domini. Já os mandatários sem representação não poderão ser considerados como detentores, uma vez que são possuidores em nome próprio.

Secção IV – O âmbito da posse

As coisas sobre as quais se pode exercer a posse: nos termos do artigo 1251.º CC, a posse é relacionada com o exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Desta formulação resulta que em princípio a posse só pode ter por objeto coisas adequadas a constituírem objeto dos direitos reais. A posse incide apenas sobre coisas móveis (artigo 1302.º CC). Assim, não constituirão objeto de posse nem os bens intelectuais, nem as quotas em sociedades. Já o estabelecimento comercial, na medida em que, além de uma universalidade de direito, é também

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão uma universalidade de facto, poderá ser objeto de posse. A posse não pode incidir sobre coisas fora do comércio, como os bens do domínio público e as coisas insuscetíveis de apropriação individual (artigo 202.º, n.º2 CC). Efetivamente, a posse é uma instituição do comércio jurídico privado pelo que o uso de bens públicos é insuscetível de atribuir posse. Em consequência, a posse é perdida se a coisa for colocada fora do comércio (artigo 1267.º, alínea b) CC). A posse incide tanto sobre coisas imóveis como sobre coisas móveis, só sendo a distinção entre estas coisas relevantes para efeitos dos prazos de usucapião (artigos 1293.º e seguintes e 1298.º e seguintes CC). Entre nós, não se encontra consagrada a regra da posse vale título dos móveis, ao contrário do que se estabelece no Code Civil Francês, que atribui a propriedade ao possuidor de boa fé de coisas móveis, apenas admitindo consequentemente neste caso as ações de restituição de posse ou de reivindicação das coisas móveis em caso de má fé do possuidor. Qualquer coisa móvel ou imóvel pode ser objeto de posse. Em relação aos prédios rústicos e urbanos (artigo 204.º, n.º1, alínea a) CC), a posse estende-se a todos os seus limites, sejam estes horizontais ou verticais, pelo que haverá naturalmente turbação ou esbulho parcial da posse se for invadido o seu espaço aéreo ou o subsolo do prédio. Assim, a colocação de gruas sobre o prédio ou a sua invasão por tuneis ou canalizações traduzir-se-ão naturalmente num esbulho parcial da posse. Em relação às águas (artigo 204.º, n.º1, alínea b) CC), a posse das mesmas refere-se não à quantidade específica do líquido, mas antes à sua massa indistinta a qual, embora constantemente se renove, permanece individualizada pela sua localização. Tratando-se de fontes ou nascentes, a lei exige, para permitir a usucapião, que existam obras visíveis e permanentes relativas à captação da água (artigo 1390.º, n.º1 CC), mas não parece que a simples posse necessite dessas mesmas obras, bastando o aproveitamento da água. Já em relação à energia, a mesma pode ser objeto de posse por parte de quem controlo a sua fonte emissora ou utiliza uma instalação destinada à sua condução. Quem interrompe ou desviar o fluxo de energia está, assim, a lesar a posse.

Direitos abrangidos pela tutela possessória: o artigo 1251.º CC refere que a posse se limita ao exercício do direito de propriedade ou de outros direitos reais. A referência legal é, no entanto, objeto de controvérsia. Efetivamente, em primeiro lugar, há direitos reais que não conferem a posse da coisa, como a hipoteca e os privilégios creditórios. Por outro lado, há direitos de crédito que atribuem, pelo menos, a defesa da posse da coisa ao seu titular, como nos artigos 1037.º, n.º2 (locação), 1125.º (parceria), 1133.º (comodato) e 1188.º, n.º2 (depósito), todos CC. Tornase, por isso, importante examinar quais são os direitos cujo exercício pode dar lugar a uma situação possessória. É manifesta a existência de posse nos direitos reais de gozo, uma vez que os mesmos conferem sempre ao seu titular alguma forma de aproveitamento da coisa, podendo o gozo ser pleno, como sucede na propriedade, ou limitado, como ocorre nos restantes direitos reais. Entendemos, no entanto, que há um direito real de gozo de tal forma limitado no tempo que o seu exercício não permite atribuir ao titular a tutela possessória, que é o direito real de habitação periódica (artigo 21.º, n.º1, alínea c) do Decreto Lei n.º 275/93, 5 agosto, republicado no Decreto-Lei n.º37/2011, 10 março). Pode, assim, existir posse, quer em termos de propriedade plena, quer em termos de usufruto, uso e habitação, superfície e servidões prediais. A posse pode naturalmente exercer-se em termos de usufruto, caso em que o usufrutuário reunirá a qualidade de detentor em relação ao direito de propriedade e de possuidor em nome próprio em relação ao usufruto, podendo interpor ações possessórias contra qualquer pessoa perturbe ou esbulho o exercício do seu direito. A tutela possessória do usufruto não impedirá o nu proprietário de continuar a beneficiar das ações possessórias, podendo igualmente reagir perante o esbulho da coisa por terceiro, ou mesmo contra atos do próprio usufrutuário que ultrapassem os seus poderes sobre a coisa. Também em relação ao uso e habitação, o facto de estes não poderem ser

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão adquiridos por usucapião (artigo 1293.º, alínea b) CC) não impede que beneficiem de tutela possessória, nos mesmos termos que o usufruto. A tutela possessória da superfície apresenta-se como mais complexa, na medida em que esta abrange não apenas o direito sobre as construções e plantações realizadas em terreno alheio, mas também a própria faculdade de construir ou plantar. Ora, se é indubitável a possibilidade de existência de posse sobre as construções e plantações, já parece de rejeitar, em face do artigo 1251.º e 1263.º, alínea b) CC, que se possa possuir a mera faculdade de construir ou plantar, devendo exigir-se que se tenha iniciado a construção ou as plantações para que se possa conceder a tutela possessória. Também as servidões prediais, sejam elas aparentes ou não aparentes, contínuas ou descontínuas, positivas, negativas ou desvinculativas, são sempre suscetível de tutela possessória. O facto de as servidões não aparentes não poderem ser adquiridas por usucapião (artigo 1263.º, alínea a) CC) não exclui a sua tutela possessória, exigindo-se, no entanto, para a concessão das ações possessórias, um título provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho transmitiu (artigo 1280.º CC). Em relação aos direitos reais de garantia apenas permite conferir a tutela possessória se se verificar alguma forma de apreensão material da coisa por parte do credor respetivo (como ocorre no penhor e no direito de retenção). Direitos reais de garantia em que essa situação não se verifica (como a hipoteca e os privilégios creditórios) não são naturalmente suscetíveis de posse. É manifesto que direitos reais de garantia, como o penhor e o direito de retenção, são suscetíveis de posse, atento o facto de a lei lhes atribuir as ações possessórias (artigos 670.º, alínea a) e 758.º CC), o que pressupõe naturalmente a existência de posse. Já em relação à consignação de rendimentos a discussão sobre a posse do credor será equivalente à discussão em torno da posse do locatário, em torno da equiparação a que a lei procede (artigo 661.º, alínea b) CC. Da mesma forma, em caso de penhora e arresto a questão terá que ser colocada nos mesmos termos do que em relação à posse do depositário, atenta a situação de depósito judicial, que é por essa via instituída (artigos 756.º e seguintes e 765.º e seguintes CPC). Relativamente aos direitos pessoas de gozo, entendemos que os mesmos são suscetíveis de posse, na medida em que atribuem poderes sobre a coisa, que a lei tutela através das competentes ações possessórias (artigos 1037.º, n.º2, 1125.º, n.º2, 1133.º, .º2 e 1188.º, n.º2 CC). A existência de posse nestes direitos não implica, porém, a sua qualificação como direitos reais (ao contrário do que poderia ser sustentado através de uma argumentação concetualista a partir do artigo 1251.º CC), uma vez que neste caso o direito ao gozo da coisa é obtido a partir de uma prestação do devedor, resultando, portanto, de um direito de crédito. Efetivamente, o titular apenas adquire o direito a uma prestação do devedor, que consiste em assegurar o gozo de uma coisa corpórea, tutelável através da ação de cumprimento. A satisfação dessa prestação pressupõe, porém, a atribuição ao credor um direito à posse das coisas entregues, o que justifica que a lei lhe atribua as ações possessórias para defesa dessa situação jurídica. Pelas mesmas razões também nos parece existir posse no caso do promitente-comprador que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido. Efetivamente, nessa situação o promitente-comprador exerce antecipadamente os poderes correspondentes ao exercício do direito de propriedade, o que justifica que beneficie da tutela possessória.

O concurso de posses: cabe agora falar do concurso de posses, fenómeno que se verifica sempre que várias pessoas tenham posse sobre a mesma coisa. Podemos neste âmbito distinguir entre:

1. Sobreposição: consideramos existir sobreposição de posses, sempre que a mesma coisa seja possuída nos termos de direitos com âmbitos distintos. A sobreposição ocorre em virtude de a posse ser possível em relação aos direitos reais de gozo, a vários direitos reais de garantia, e também aos direitos pessoais de gozo, os quais concorrerão

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão naturalmente com a posse do proprietário. Assim, nesses casos, pode ocorrer um fenómeno de sobreposição de posses sobre a mesma coisa. Se o proprietário, que tem a posse da coisa, constituir um usufruto sobre a mesma, passarão a subsistir duas posses sobre o mesmo objeto: a posse em termos de direito de propriedade e a posse em termos de usufruto. No entanto, se apenas o usufrutuário exercer os poderes de facto sobre a coisa, ele terá posse em nome próprio em relação ao usufruto, exercendo também em nome alheio a posse relativa à propriedade. 2. Comunhão: existe comunhão de posses ou composse se a coisa for possuída por vários titulares com base num direito ou num acordo comum. A comunhão ocorre quando é atribuída a posse da coisa simultaneamente a vários titulares, com base num direito ou acordo comum, ficando assim todos eles na situação de compossuidores. Essa hipótese encontra-se prevista genericamente no artigo 1286.º CC e pode ocorrer no caso de a posse se referir a um direito real exercido em comunhão (artigo 1403.º e seguintes CC) ou ainda, no caso de penhor, ser acordada a atribuição meramente da composse ao credor pignoratício (artigo 669.º, n.º2 CC). 3. Conflito de posses: este verifica-se sempre que existam duas posses em conflito sobre a mesma coisa, o qual terá que ser resolvido com a atribuição da posse a um dos litigantes. No caso de conflito de posses, existiu a aquisição da posse por um novo possuidor, mas a posse do anterior não se extinguiu imediatamente, uma vez que ele apenas a perde ao fim de um ano (artigo 1267.º, n.º1, alínea d) CC). Nesse caso, o antigo possuidor poderá recorrer à ação de manutenção ou restituição da posse, sendo normalmente resolvido o conflito a ser favor enquanto não for convencido da titularidade do direito (artigo 1278.º, n.º1 CC). No entanto, se a sua própria posse não tiver mais de um ano, a manutenção ou restituição está dependente da inexistência da melhor posse (artigo 1278.º, n.º2 CC). Nesse caso, o conflito resolve-se atribuindo prioridade à posse titulada sobre a não titulada, à posse mais antiga em caso de falta de título, ou à posse atual, se ambas tiverem a mesma antiguidade (artigo 1278.º, n.º3 CC).

Secção V – Classificações da posse

Generalidades: para além da distinção fundamental entre a detenção e a posse, a que já fizemos referência, a posse é suscetível de ser objeto de várias classificações, consoante o regime que lhe está associado. O artigo 1258.º CC faz referência a estas classificações, referindo que a posse pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta. Acrescentamos a estas, na esteira de Menezes Cordeiro, as classificações entre posse causal e posse formal, posse civil e interdictal e posse efetiva e não efetiva.

Posse causal e posse formal: a posse causal é aquela que é acompanhada da titularidade do direito. A posse formal é aquela em que a titularidade do direito não se verifica. Atualmente, qualquer titular de um direito real pode invocar a generalidade dos efeitos da pose a seu favor, desde que seja simultaneamente possuidor. Não está, por isso, o titular do direito obrigado a recorrer à defesa petitória, que implicaria a demonstração da efetiva titularidade, podendo utilizar para o efeito as ações possessórias. A posse não decorre, no entanto, automaticamente da titularidade do direito exigindo-se um efetivo controlo material da coisa. A titularidade do direito nem sequer atribui qualquer presunção de posse. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Posse civil e interdictal: esta distinção tem por base a contraposição romanística entre a possessio civilis e a possessio naturalis. A posse civil permitiria atribuir todos os efeitos possessórios, incluindo a usucapião. Já a posse interdictal significaria apenas a atribuição das ações possessórias e, eventualmente, de alguns outros efeitos da posse, mas nunca da usucapião. Atualmente, no nosso Direito, poderemos considerar como posse civil aquela que se exerce nos termos dos direitos reais de gozo, sendo considerada como posse interdictal aquela que corresponda a direitos reais de garantia ou direitos pessoais de gozo. Efetivamente, estes direitos nunca se adquirem por usucapião (artigo 1287.º CC), mas permitem o uso das ações possessórias (artigos 670.º, alínea a) , 758.º, 1927.º, n.º2, 1125.º, n.º2, 1133.º, n.º2 e 1188.º, n.º2 CC). Normalmente, a posse destes direitos não atribui direito aos frutos da coisa (artigo 1132.º CC), ainda que em certos casos o possa fazer (artigos 672.º e 758.º CC). Salvo no caso do depositário (artigo 1189.º CC), atribui, no entanto, a faculdade de usar a coisa. Em certos casos, há ainda lugar ao reembolso de benfeitorias (artigos 670.º, alínea b) e 758.º CC). No caso dos direitos pessoais de gozo, o reembolso das benfeitorias é efetuado nos termos da posse de má fé (artigos 1046.º, n.º1 e 1138.º, n.º2 CC), sendo que em certos casos nem se admite esse reembolso (artigos 1046.º, n.º2 e 1138.º, n.º2 CC).

Posse efetiva e não efetiva: posse efetiva é aquela em que existe um controlo material sobre a coisa. Posse não efetiva é aquela em que a situação possessória resulta apenas da lei. Efetivamente, a lei por vezes mantém a situação possessória, apesar de já se ter perdido o controlo material sobre a coisa (artigos 1278.º, n.º1 e 1282.º CC, por exemplo).

Posse titulada e não titulada: posse titulada é aquela que se funda num modo legítimo de adquirir, independentemente do direito do transmitente ou da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259.º. n.º1 CC). Posse não titulada é aquela que não derivou desse modo legítimo de adquirir. Assim, quem compra um objeto terá posse titulada ainda que o contrato seja substancialmente inválido, enquanto que quem o furta terá uma posse não titulada. Uma vez que a lei apenas considera titulada a posse independentemente da validade substancial do negócio jurídico, parece que não será titulada a posse fundada em negócio formalmente inválido, como na hipótese de venda de um terreno por escrito particular (artigo 220.º CC). Mas já será titulada a posse no caso de venda de um bem por quem não é seu legítimo proprietário, apesar de a lei considerar igualmente nulo o negócio em questão (artigo 892.º CC). Nos termos do artigo 1259.º, n.º2 CC, o título não se presume, tendo a sua existência que ser provada por quem o invoca, cabendo assim ao possuidor fazer a prova dos factos relativos ao título, sob pena de a posse se ter por não titulada. Consequentemente, também não será relevante o título meramente putativo, que só exista na convicção do possuidor. Mesmo que este esteja convencido erradamente de que adquiriu por título legitimo a posse, quando tal não ocorreu, a posse não deixa de se considerar como não titulada.

Posse de boa fé e de má fé: posse de boa fé é aquela em que o possuidor ignorava, ao adquirila, que lesava o direito de outrem (artigo 1260.º, n.º1 CC). Posse de má fé é aquela em que não se verificava essa ignorância, no momento de aquisição da posse. A lei refere-se aqui à boa fé em sentido subjetivo, o que, de acordo com a posição atualmente dominante, deve ser interpretado num sentido ético e não meramente psicológico, considerando-se de boa fé apenas o possuidor que ignorava sem culpa que se encontrava a lesar o direito de outrem. O legislador tem o cuidado de referir que a posse titulada se presume de boa fé e a não titulada de má fé (artigo 1260.º, n.º2 CC), referindo ainda que a posse adquirida por violência é sempre considerada de má fé, ainda que seja titulada (artigo 1260.º, n.º3 CC) As duas primeiras presunções são naturalmente ilidíveis, podendo ser demonstrada a existência de má fé, mesmo perante título aparentemente legítimo, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ou a existência de boa fé, por parte de quem adquiriu a posse sem qualquer título. Pelo contrário, a última presunção é inilidível, destinando-se a sancionar a atuação violenta por parte do possuidor. É ainda de referir que a citação para a ação faz cessar a boa fé do possuidor (artigo 564.º, alínea a) CPC), pelo que a sua posse deixa de poder ser considerada de boa fé a partir desse momento.

Posse violenta e posse pacífica: posse violenta é aquela em que para adquiri-la o possuidor usou de coação física ou de coação moral (artigo 1261.º, n.º2 CC). Pelo contrário, posse pacífica é aquela que foi adquirida sem violência (artigo 1261.º, n.º1 CC). Conforme se referiu, a posse violenta é sempre qualificada de má fé, ainda que seja titulada (artigo 1260.º, n.º3 CC). A violência na aquisição da posse tanto pode ser exercida contra coisas como contra pessoas, devendo considerar-se como posse violenta não apenas a situação daquele que coage outrem a entregarlhe um objeto, mas também a daquele que entra em casa alheia por arrombamento, mesmo que nesse momento a casa estivesse vazia. A violência na posse não se confunde, no entanto, com a ilicitude na sua aquisição, já que quem furta um objeto não usa de violência, sendo por isso a sua posse pacífica. A violência na aquisição da posse permite ao possuidor interpor o procedimento cautelar de restituição provisória de posse (artigo 1279.º CC e 377.º e seguintes CPC). A posse violenta não pode ser registada (artigo 1295.º, n.º2 CC) e não permite a contagem do prazo para a usucapião (artigos 1297.º e 1300.º, n.º1 CC).

Posse pública e posse oculta: a posse pública é a que se exerce de forma a ser reconhecida de todos os interessados (artigo 1262.º CC). Pelo contrário, posse oculta é aquela em que esse conhecimento não seja possível. A posse tomada ocultamente implica que o prazo para o possuidor intentar as ações correspondentes apenas se inicie após o conhecimento do esbulho (artigo 1282.º, in fine CC). Para além disso, a posse oculta não pode ser registada (artigo 1295.º, n.º2 CC) e não permite a contagem do prazo para a usucapião (artigos 1297.º e 1300.º, n.º1 CC).

Secção VI – Vicissitudes da posse

Generalidades: cabe agora examinar as vicissitudes da posse. Estas correspondem aos fenómenos que determinam a constituição da posse, a sua manutenção, a sua modificação, a sua transmissão para outrem e a sua extinção. Examinemos sucessivamente estas situações.

A constituição da posse: 1. Generalidades: nos termos do artigo 1263.º CC, a posse adquire-se: a. Pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito; b. Pela tradição material ou simbólica da coisa, realizada pelo antigo possuidor; c. Pelo constituto possessório; d. Por inversão do título da posse. 2. O apossamento: a primeira causa de aquisição da posse é assim o apossamento. Este consiste na prática em relação à coisa, de atos materiais, por forma repetida, e com publicidade (artigo 1263.º, alínea a) CC). Em relação ao anterior possuidor, o apossamento traduz-se num esbulho da coisa. Para se poder verificar o apossamento, tem que ser praticados atos materiais em relação à coisa, correspondendo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão consequentemente a um aproveitamento direto da mesma (uti, frui, consumere). Já a simples prática de atos jurídicos a um mero aproveitamento indireto da mesma, não é suscetível de consubstanciar apossamento. Efetivamente, todos podem praticar atos jurídicos relativas às coisas, como a sua venda, doação, e locação, sem que tal implique o exercício de quaisquer poderes sobre a mesma. Os atos materiais que caracterizam o apossamento devem traduzir uma forma de apreensão da coisa, cujo significado varia consoante se trate de coisas móveis ou imóveis. No âmbito das coisas móveis, a apreensão implica a deslocação da coisa móvel do lugar em que se encontra para ser colocada na esfera de ação do novo possuídor. Já no caso de coisas imóveis, a apreensão implica a prática de atos que consubstanciem um efetivo aproveitamento do imóvel, como a sua habitação, realização de modificações, cultivo do terreno, colheita de frutos, demarcação e vedação. Os atos materiais têm que corresponder ao exercício de determinado direito sobre a coisa, resultando da extensão desse exercício qual o direito nos termos do qual se possui. Assim, aquele que passa por um prédio rústico não pode invocar a sua posse em termos de propriedade, na medida em que apenas exerce uma servidão de passagem. Mas, para se possuir como proprietário, não é necessário que o possuidor simultaneamente use, frua e transforme a coisa, bastando o exercício de alguns desses poderes, uma vez que se deve presumir que a posse corresponde ao exercício do direito de propriedade, apenas se limitando a mesma a outros direitos se houver indícios nesse sentido. A prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito tem que ser reiterada, já que a posse pressupõe uma certa duração da relação com a coisa. Assim, aquele que se limita a atravessar uma vez um terreno, ou recolhe momentaneamente um objeto para o colocar outra vez no mesmo sítio, não chega a adquirir a posse. Finalmente, a lei refere que a prática dos atos materiais deve ser realizada com publicidade. Este requisito corresponde à formulação tradicional, que sustentava que os atos clandestinos não poderiam determinar a aquisição da posse, uma vez que o animus celendi lhes retiraria o caráter de afirmação de um direito, para os qualificar como delitos, furtos e usurpações. Hoje, em dia, no entanto, a lei tanto admite a posse pública, como a posse oculta (artigo 1262.º CC), determinando apenas que esta última, assim como a posse violenta, não pode conduzir à usucapião (artigo 1297.º e 1300.º CC). Resulta, por outro lado, claramente do artigo 1267.º, n.º2 CC que a posse se pode iniciar ocultamente, exigindo-se apenas nesse caso que se verifique o conhecimento do antigo possuidor para que se inicie o prazo de caducidade das ações possessórias (artigo 1282.º CC). A referência à publicidade neste preceito deve por isso ser interpretada no sentido de que esta é exigida apenas para a constituição da posse civil, permanecendo a posse como meramente interdictal até que essa publicidade se verifique. 3. A tradição material ou simbólica da coisa: a segunda causa de aquisição da posse é a tradição (traditio) da coisa. A tradição é composta por um elemento negativo, correspondente à cedência da coisa pelo anterior possuidor, e um elemento positivo, correspondente à sua apreensão pelo novo, o qual denuncia a aquisição de poderes sobre o objeto da posse. A tradição pode ser: a. Material: aqui há uma entrega e recebimento físicos da coisa. No âmbito dos imóveis, exigir-se-ia uma deslocação do adquirente ao imóvel, entrando efetivamente nele. Em relação aos móveis, seria necessário o transporte das coisas, como no caso de elas serem levadas pelo adquirente ou seu

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão representante, entregues no seu domicílio ou colocadas sobre vigilância de guardas seus. b. Simbólica: já aqui, a transmissão da posse dá-se com base num acordo entre as partes nesse sentido, dispensando-se o contacto material do adquirente com a coisa. Não basta para esse efeito, no entanto, o controlo relativo à transmissão do direito suscetível de posse, sendo necessário um acordo específico relativamente à transmissão da própria posse. Nesse âmbito, tem-se distinguido, de acordo com a tradição romanística, entre: i. A traditio longa manu: também denominada oculis et affectu, as partes à distância procedem à entrega da coisa por simples acordo sem contacto com ela, como no caso de alguém transmitir a posse de um terreno, indicando qual é numa torre nas suas proximidades, ou se uma das partes indicasse à outra para ir buscar um cavalo apontando para ele. ii. A traditio ficta: as partes procedem à entrega da coisa através de um objeto que a simboliza, como a entrega dos seus documentos (traditio chartae) ou das chaves da mesma (traditio clavium). iii. A traditio brevi manu: as partes acordam transformar a situação de detenção em posse, como na hipótese de quem já é detentor da coisa celebrasse com o antigo possuidor um contrato destinado a transmitirlhe a posse. 4. O constituto possessório: a terceira causa de aquisição da posse consiste no constituto possessório, previsto no artigo 1264.º CC. Este é o inverso da traditio brevi manu, e consiste na passagem do possuidor a mero detentor, continuando a ter a coisa consigo, enquanto que a posse se transmite para outrem. Essa situação verifica-se sempre que o possuidor contrata com a outra parte a transmissão do direito sobre a coisa, sendo que simultaneamente as partes acordam numa causa jurídica para a detenção da mesma. Essa situação verifica-se sempre que o possuidor contrata com a outra parte a transmissão do direito sobre a coisa, sendo que simultaneamente as partes acordam numa causa jurídica para a detenção da mesma. É o que sucede se, por exemplo, o vendedor de uma coisa acorda com o comprador ficar locatário ou depositário da mesma. O constituto possessório exige, assim, os seguintes requisitos: a. A celebração de um contrato transmissivo de um direito real que confira a posse da coisa: efetivamente, neste caso, a aquisição da posse resulta de um contrato de transmissão de um direito à posse. b. Que o transmitente do direito real seja possuidor: o constituto possessório pressupõe a existência de posse no alienante pelo que, se ele não for possuidor, não se poderá verificar a constituição da posse no adquirente, ainda que o alienante seja o efetivo titular do direito transmitido. c. A existência de uma causa jurídica para a detenção da coisa: ou seja, exige que as partes estipulem uma causa jurídica para a detenção, que leve a que o alienante possa passar a ser considerado como possuidor em nome alheio. Efetivamente, a posse não se transmite por mero consenso das partes, ao contrário do que sucede genericamente com os direitos reais (artigo 408.º CC), sendo a forma comum de transmissão a tradição material ou simbólica da coisa (artigo 1263.º, alínea b) CC). Por outro lado, devido à configuração objetiva da posse, o alienante

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão do direito real deve ser considerado possuidor enquanto não entregar a coisa, apenas passando a detentor se as partes assim configurarem a situação. 5. A inversão do título da posse: a quarta causa de aquisição da posse é a inversão do título da posse (interversio possessionis), prevista no artigo 1265.º CC. A inversão do título da posse consiste na passagem de uma situação de detenção (posse em nome alheio), a uma situação de verdadeira posse. Em relação ao possuidor primitivo, a inversão do título da posse traduz-se num esbulho da coisa. A inversão do título da posse pode ocorrer por duas vias: a. A oposição (contraditio) do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía: o detentor pratica atos que contradizem a situação de estar a possuir em nome alheio, opondo-se assim à posse daquele em cujo nome possuía. Tal basta para adquirir ele mesmo a posse, cabendo ao anterior possuidor reagir contra o esbulho da coisa. A inversão do título da posse terá que resultar de atos que indiciem inequivocamente que o detentor quer doravante passar a possuir em nome próprio, não se podendo inferir essa inversão de simples omissões. Assim, a cessação da relação de administração de vens alheios (v.g. mandato ou tutela), sem quer a coisa seja restituída não implica a inversão do título da posse. Da mesma forma, o facto de o arrendatário não pagar as rendas não constitui inversão do título. Mas já constituirá inversão do título o facto de o arrendatário comunicar ao proprietário de que a razão por que não paga as rendas resulta de ter passado a considerar-se a ele próprio como proprietário. b. A verificação de um ato de terceiro capaz de transmitir a posse: verifica-se um ato de terceiro capaz de transferir a posse, o que leva a que o detentor adquira um título distinto para a sua situação possessória, diferente daquele pelo qual possuía em nome alheio. Para poder dar-se a inversão o novo título terá que: i. Provir de terceiro; ii. Representar uma causa jurídica suficiente para uma transferência da posse; iii. Traduzir exteriormente uma nova posse de terceiro. A exigência de que o novo título provenha de terceiro permite distinguir a inversão do título da posse da traditio brevi manu, caso em que a posse resulta de transmissão pelo antigo possuidor. A exigência de que a causa jurídica seja suficiente para a transferência de posse resulta da necessidade de substituição do anterior título para outro idóneo. É o que sucede na hipótese de o arrendatário comprar a coisa a terceiro, caso em que a situação anterior de arrendamento é substituída por uma nova posse resultante da compra, entretanto, efetuada a pessoa distinta do possuidor. Esta nova posse tem, no entanto, que se traduzir exteriormente, pelo que, se o arrendatário continuar naquele caso a pagar a renda ao seu senhorio, a inversão já não se verificará.

Manutenção da posse: uma vez adquirida a posse, questiona-se o que é necessário para que ela se mantenha em quem a adquiriu. Neste caso, mais uma vez se verifica uma discussão entre as posições de Savigny e de Jhering.

1. Savigny: a posse exige sempre um corpus e um animus, pelo que será conservada enquanto não desaparecer qualquer destes elementos, o que só ocorrerá caso se verifique um corpus ou um animus de sinal contrário (in contrarium actus) àquela posse. O corpus em sentido contrário corresponderá a qualquer elemento que retire ao

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão possuidor a faculdade de dispor do objeto possuído, enquanto que o animus de sinal contrário existirá sempre que o possuidor deixe de querer possuir. Assim, a pose, uma vez adquirida, manter-se-á sempre que o possuidor posse repetir o ato de apreensão, já que essa faculdade só se perde com a existência de uma nova posse, ou com a destruição legal ou natural da coisa. A posse extinguir-se-á, porém, igualmente no caso de o possuidor manifestar expressamente a intenção de não possuir. 2. Jhering: critica a posição de Savigny, sendo que, para este autor, uma vez que a posse corresponde à exteriorização da propriedade, a manutenção da posse pressupõe que os poderes fáticos sobre a coisa continuem a ser exercidos. Não seria assim suficiente que o possuidor possa repetir o ato de apreensão, exigindo-se antes que ele adote um comportamento que evidencie o interesse em ser dono da coisa, designadamente através da sua utilização ou da sua proteção contra eventuais riscos que a ameacem. Consequentemente, a posse deve ser considerada perdida a partir do momento em que o possuidor vê perturbada a sua relação com a coisa, e não adota a diligência habitual num proprietário para recuperar essa relação, sendo a diligência do proprietário assim o elemento indispensável para a conservação da posse. Uma vez que a posse exige sempre uma atuação por parte do possuidor, a mesma cessará sempre que o possuidor não proceda em relação à coisa como o faria um proprietário diligente. A contraposição entre estas duas doutrinas tem sido explicada com base num exemplo. Para Savigny, se o possuidor deixasse uma coisa numa floresta, conservaria a sua posse enquanto a pudesse ir buscar de volta, mesmo que só voltasse à floresta meses ou anos depois. Já para Jhering, a posse estaria imediatamente perdida quando a coisa é largada na floresta, uma vez que essa não é uma conduta típica de um proprietário diligente. A nossa lei refere, no artigo 1257.º, n.º1 CC, que a posse se mantém enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de o continuar, o que parece corresponder à doutrina de Savigny. Esta solução, já consignada no Código de Seabra, veio, no entanto, a ser considerada inaplicável por Manuel Rodrigues em relação aos direitos reais suscetíveis de extinção pelo não uso, para evitar que pudessem continuar a beneficiar da tutela possessória após a sua extinção. A não ser essa a solução, por exemplo, o titular de uma servidão que se extinguisse pelo não uso continuaria a beneficia da tutela possessória, após a extinção do seu direito. Mas já Pires de Lima e Antunes Varela rejeitaram essa posição, entendendo que enquanto não fosse judicialmente declarada a extinção da servidão pelo não uso, faz todo o sentido que o seu titular continue a beneficiar da tutela possessória. Menezes Cordeiro admitiu que o não uso possa extinguir a posse, nos mesmos termos em que extingue o direito respetivo. A nosso ver, não faz sentido considerar a mera possibilidade de repetição do ato de apossamento como suficiente para a conservação da posse, ao contrário do que defendia Savigny, nem nos parece que a expressão legal deva ser interpretada nesse sentido. Mas também não nos parece, como sustenta Jhering, que se exija a conduta normal de um proprietário diligente para se poder conservar a posse, uma vez que a mesma se caracteriza pelo exercício de poderes correspondentes àquele direito, independentemente da diligência com que são exercidos. Interpretamos assim a referência legal à possibilidade de continuação do exercício do direito no sentido de que basta assegurar um certo controlo sobre a coisa para conservar a posse sobre ela. Assim, quem deixa a coisa numa floresta perde a posse por abandono, constituindo o ato de a ir buscar de volta uma repetição do apossamento. Mas já não perde a posse quem estaciona um automóvel na via pública, uma vez que o condutor mantém o controlo da coisa enquanto conservar as chaves. Neste enquadramento, não se justifica defender a extinção pelo não uso, dado que é a cessação do controlo sobre a coisa que implica a perda da posse, a qual se verifica no momento dessa

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão cessação. O artigo 1257.º, n.º2 CC estabelece ainda que se presume que a posse continua em nome de quem a começou. Desta disposição resulta de que basta provar a constituição da posse para que a lei presuma a sua continuação, não sendo assim exigível, designadamente para efeitos de usucapião que se demonstre a prática constante de atos relativos à posse.

Modificação da posse: verifica-se a modificação da posse sempre que ocorrer alteração das características da mesma, o que tem relevância para os efeitos da posse. Assim, a posse pode deixar de ser de boa fé e passar a ser de má fé, passando a partir desse momento a vigorar o regime desta em relação a frutos (artigo 1271.º CC), benfeitorias (artigo 1273.º CC) e prazo para a aquisição por usucapião. Da mesma forma, a posse pode deixar de ser violenta, a partir do momento em que cessa a violência, ou deixar de ser oculta quando passa a ser exercida publicamente, caso em que se inicia o prazo para usucapião (artigos 1297.º e 1300.º CC).

A sucessão na posse: sendo uma situação jurídica patrimonial, a posse pode ser objeto de sucessão nos termos gerais (artigo 2024.º CC). No caso de morte do possuidor, a lei determina que a sucessão na sua posse é automática, e ocorre independentemente da apreensão material da coisa (artigo 1255.º CC). A doutrina tem, no entanto, discutido se este fenómeno apenas se verifica no caso de os sucessores serem herdeiros do de cuius ou se também ocorre no caso de legatários seus. Entendemos ser preferível a segunda posição, pois vemos justificação para distinguir em relação à sucessão na posse entre herdeiros e legatários (artigo 2030.º, n.º1 CC), uma vez que essa distinção se baseia apenas em a sucessão ocorrer na totalidade ou numa quota do património ou antes em bens determinados (artigo 2030.º, n.º2 CC). Ambos estão sujeitos ao mesmo regime de aceitação e repúdio (artigos 2050.º e seguintes e 2249.º CC), pelo que a sucessão na posse deve ocorrer em ambos os casos.

A acessão na posse: diferente da sucessão é o caso da acessão na posse, que pode ocorrer quando se verifica uma aquisição derivada da posse, por título distinto da sucessão por morte (artigo 1256.º CC). Nesse caso, a junção da posse do anterior titular é facultativa, ainda que possa ser vantajoso proceder a ela, em ordem a permitir atingir o prazo da usucapião. Nesse caso, porém, a junção da posse só se pode dar nos limites da posse com menor âmbito (artigo 1256.º, n.º2 CC). Assim, o possuidor a título de usufrutuário pode invocar a posse do anterior proprietário, mas apenas para efeitos da posse do seu usufruto. Da mesma forma, se o transmitente tinha uma posse não titulada e de má fé, a acessão na posse apenas pode ocorrer nesse âmbito, mesmo que, para o adquirente, ela já fosse titulada e de boa fé. Tem sido, porém, questionado na doutrina se, para se poder operar a acessão na posse, o título pelo qual se operou a transmissão tem que ser válido, ou se a acessão pode ocorrer independentemente da validade do título.

3. A exigência da validade do título é defendida por Manuel Rodrigues que sustenta que, se o ato de transmissão do direito não é válido, não há transmissão do ius possidendi que aqui é a causa da junção do ius possessionis, embora o negócio jurídico nulo caracterize, como se disse, a posse. Esta posição foi seguida por Santos Justo que sustenta que o Direito Romano considerou a acesio possessionis com grande rigor, exigindo que o anterior e o atual possuidor realizassem um negócio jurídico real. 4. Já Pires de Lima e Antunes Varela limita-se a exigir a validade formal do título, excluindo a acessão na posse, por exemplo, no caso da venda de imóveis por mero acordo verbal. Parecem assim admitir essa acessão em caso de negócios substancialmente inválidos. 5. Diferente é a posição de Menezes Cordeiro. Este autor considera que, para transmitir a posse, não é preciso qualquer contrato válido: basta a tradição ou o constituto possessório, um e outro ínsitos (eventualmente) num qualquer esquema abstratamente

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão idóneo para transmitir direitos, ainda que concretamente, o não sejam. O autor sustenta, por outro lado, que a tese contrária iria impedir a usucapião nos casos de falta de título e de boa fé, o que se apresentaria como contrário ao artigo 1296.º CC. 6. A nosso ver, deve ser seguida esta última posição. Efetivamente, o artigo 1256.º CC não exige a validade (substancial ou formal) do negócio para permitir a acessão na posse, mas apenas que a sucessão na posse de outrem resulte de um título diverso da sucessão por morte, como a tradição ou o constituto possessório. Por outro lado, não há qualquer razão para excluir a acessão em caso de posse não titulada, como necessariamente ocorreria se se exigisse a validade formal do negócio transmissivo da posse (artigo 1259.º, n.º1 CC). A tese contrária implicaria assim que a posse não titulada só conduziria à usucapião se o seu prazo decorresse integralmente na esfera do mesmo possuidor, o que constituiria uma exigência desproporcionada, que a lei não estabelece em lugar nenhum.

Perda da posse: examinemos, agora, o regime da perda da posse. Nos termos do artigo 1267.º CC a perda da posse pode ocorrer em virtude de qualquer destas situações:

1. Abandono: o abandono consiste na situação inversa do apossamento. Neste caso, o possuidor abdica da sua posse sobre a coisa, o que lhe é lícito fazer, em virtude da admissibilidade genérica da renúncia aos direitos privados. O abandono não se confunde, no entanto, com a renúncia, dado que implica um ato material, por virtude do qual o corpus deixa de existir. Mas, para além desse ato material, terá que existir um animus contrário à manutenção da posse, sem o que se verificará uma mera inação, a qual não chega para se considerar perdida a posse. O abandono tem, no entanto, uma configuração diferente, consoante se trata de móveis ou imóveis. Em relação aos móveis, para que exista abandono, basta que cesse voluntariamente o controlo da coisa por parte do seu anterior possuidor. Esse ato não apenas extingue a posse, mas também qualquer outro direito real que o possuidor detivesse sobre ela, o que pode tornar a coisa nullius e em consequência suscetivel de ocupação (artigo 1318.º CC). Já em relação aos imóveis, tem sido controvertido se poderá extinguir-se por abandono a posse relativa a direitos reais sobre imóveis, que a lei não admite que se possam extinguir por renúncia, como sucede com a propriedade e o direito de superfície. Manuel Rodrigues defendia que a posse nos termos do direito de propriedade não era suscetível de se extinguir por abandono. Pires de Lima e Antunes Varela sustentam essa doutrina em relação ao direito de propriedade e à superfície, entendendo que a posse desses direitos não se perde enquanto não se constituir uma posse de ano e dia a favor de terceiro. 2. Perda ou destruição material da coisa ou esta ser colocada fora do comércio: a perda ou destruição da coisa consiste igualmente numa situação de perda da posse, uma vez que neste caso deixa de existir o controlo material sobre a coisa. Da mesma forma, se a coisa for colocada fora do comércio como, por exemplo, na hipótese de expropriação por utilidade pública ocorre igualmente a perda da posse. Em ambos os casos se verifica a cessação do corpus por impossibilidade de continuar a exercer poderes de facto sobre a coisa, sendo no primeiro caso essa impossibilidade física e no segundo caso jurídica. Essa cessação do corpus determina a perda da posse, independentemente da subsistência eventual do animus nesse caso. 3. Cedência: a cedência constitui outro caso de perda de posse. Efetivamente, se o novo possuidor recebe a posse do anterior, este vem a perdê-la. A cedência pode resultar quer de tradição material ou simbólica da coisa (artigo 1263.º, alínea b) CC), quer de constituto possessório (artigo 1263.º, alínea c) CC), uma vez que em ambos os casos o titular da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão posse fica privado dela por decidir atribuí-la a outrem. Pode igualmente considerar-se como cedência a inversão do título da posse em sentido inverso ao previsto na lei, quando o possuidor, passando a estar convencido de que a coisa afinal pertence a outrem, passar a atuar como mero possuidor em nome alheio, designadamente pagando rendas, ou prestando contas da sua administração. 4. Posse de outrem, mesmo contra a vontade do anterior titular, se a nova posse houver durado mais de um ano: a última causa de perda da posse consiste na posse de outrem por mais de um ano. Nos termos do artigo 1267.º, n.º2 CC, essa nova posse conta-se desde o início, se foi tomada publicamente, ou desde que é conhecida do esbulhado, se foi tomada ocultamente. Se foi tomada por violência, só se conta a partir da cessação desta. Durante o ano após o inicio da nova posse, haverá uma sobreposição de posses sobre a coisa, pois o novo possuidor já tem a posse e o anterior só a perderá ao fim de um ano. Em todas estas situações se verifica a cessação do elemento material (corpus) ou do elemento intencional (animus) em que se traduz a posse, podendo em certos casos ocorrer a cessação de ambos os elementos.

Secção VII – Efeitos da posse

Generalidades: a posse caracteriza-se por atribuir determinados benefícios ao possuidor, habitualmente designado por commoda possessionis, o que levava os autores clássicos a classificar como felizes aqueles que possuem as coisas (beati possidentes). Efetivamente, a posse pode atribuir ao seu titular os seguintes direitos:

1. Atribuição de uma presunção da titularidade do direito: relativamente à presunção da titularidade do direito, esta consta do artigo 1268.º CC. Conforme já se referiu, o sistema português não adota a regra posse vale título, não atribuindo assim a propriedade apenas em função da posse de boa fé das coisas móveis. No entanto, o facto de alguém estar na pose de uma coisa implica que a lei presume que ele é igualmente titular do direito sobre a mesma, dispensando-o de ter que provar essa titularidade para exercer a posse (possideo quia possideo). Consequentemente, a menos que se prove a existência de um direito real sobre a coisa, o possuidor verá conservada a sua posse. A posse implica assim a presunção da propriedade, o que dá uma importante vantagem ao possuidor. Como se refere num célebre adágio da vela common law inglesa: possesion is 9/10 of the law. Esta presunção só não se aplicará se houver outra pessoa que tenha registado a sua aquisição com data anterior ao início da posse, pois neste caso a presunção conferida pelo registo prevalecerá sobre a presunção conferida pela posse. 2. Direito de uso da coisa: outro direito que é reconhecido ao possuidor é o direito de usar a coisa, o que corresponde ao exercício da posse sobre ela. A licitude do uso da coisa possuída ocorre tanto na posse de boa fé como na posse de má fé, uma vez que mesmo nesta última a responsabilidade do possuidor, ainda que objetiva, só ocorre em caso de perda ou deterioração da coisa (artigo 1269.º, a contrario CC), o que significa que o possuidor não é responsável pelo seu uso, e ele não tiver essas consequências. O simples uso da coisa não constitui por isso o possuidor no dever de indemnizar.

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3. Direito aos frutos percebidos da coisa, no caso de a posse ser de boa fé: outro efeito da posse diz respeito à atribuição do direito aos frutos da coisa. No âmbito do artigo 1270.º CC determina-se que o possuidor de boa fé tem direito a fazer seus os frutos por ele percebidos até ao momento em que cessa a sua boa fé. Pelo contrário, o possuidor de má fé não apenas deve restituir os frutos que a coisa produziu até ao termo da posse como ainda responde por aqueles que um proprietário diligente teria obtido (artigo 1271.º CC). O regime legal compreende-se, atendendo ao facto de o poder de fruição competir ao titular do direito, o que legitima este a reclamar, não apenas os frutos pendentes, mas também os percebidos ou que o poderiam ter sido durante a posse, nos termos do artigo 1271.º CC. Essa solução é apenas excetuada no caso de existir boa fé, dada a proteção que merece aquele que, desconhecendo sem culpa que se encontra a lesar o direito de outrem, investe na coisa o seu trabalho ou capital, contando com os rendimentos dela, nos mesmos termos do que qualquer proprietário. É assim a tutela da boa fé que legitima a atribuição dos frutos percebidos ao possuidor. Refere o artigo 1270.º, n.º1 CC, que o possuidor de boa fé faz seus os frutos naturais percebidos até ao dia em que souber que está com a sua posse o direito de outrem e os frutos civis correspondentes ao mesmo período. O direito do possuidor já não se estende aos frutos pendentes, que devem ser atribuídos ao titular do direito (artigo 1270.º n.º2 CC). Este regime compreende-se pelo facto de os frutos, enquanto não forem separados, não constituírem um objeto próprio, mantendo-se a sua titularidade no proprietário. Apenas a perceção dos frutos permite a sua atribuição ao possuidor de boa fé. O artigo 1270.º, n.º3 CC determina ainda que, se o possuidor tiver alienado frutos antes da colheita e antes de cessar a boa fé, a alienação subsiste, mas o produto da colheita pertence ao titular do direito deduzida a indemnização pelas despesas de cultura, sementes ou matérias-primas e, em geral, por todas as despesas de produção. Apesar da atribuição dos frutos pendentes ao proprietário, a lei não considera nula alienação realizada de boa fé, como resultaria da aplicação do regime da venda de bens alheios, determinando a sua subsistência, ainda que o produto da colheita seja atribuído ao titular do direito, adquirindo o possuidor apenas essa indemnização. A nossa doutrina parece entender que nesta norma se prevê a restituição do commodum ex negotiatione, devendo o possuidor entregar ao titular do direito o produto da alienação. Não parece ser essa, porém, a melhor interpretação desta disposição. Efetivamente, a lei refere expressamente o produto da colheita e não o produto da alienação, estando assim em causa o valor gerado pela colheita e não os ganhos resultantes da sua alienação pelo possuidor. O artigo 1270.º, n.º3 CC remete para o artigo 1270.º, n.º2 CC, e este referese expressamente ao valor dos frutos, sendo a indemnização deduzida apenas a respeitante a despesas de produção destes. Caso se tratasse de uma restituição do commodum ex negotatione, a indemnização a deduzir deveria também abranger as despesas resultantes da alienação, o que a lei não prevê. Parece assim que esta norma se destina apenas a fazer funcionar o limite do enriquecimento à hipótese de alienação de frutos, continuando o objeto da restituição a ser o valor deles (artigo 479.º, n.º1 CC), limitado ao produto da venda, enquanto enriquecimento subsistente em virtude da boa fé do possuidor (artigo 479.º, n.º2 CC). O possuidor nada tem assim que restituir acima do valor dos frutos alienados, podendo conservar os ganhos resultantes da alienação que excedam esse valor. 4. Direito ao pagamento dos encargos da coisa, em caso de não atribuição dos frutos: nos termos do artigo 1272.º CC, os encargos com a coisa são pagos pelo titular do direito e

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pelo possuidor, na medida dos direitos de cada um deles sobre os frutos no período a que respeitam os encargos. Esta solução é igualmente estabelecida pela proibição do enriquecimento sem causa, já que aquele a que são atribuídos os frutos relativos a determinado período tem naturalmente que suportar os encargos com a coisa durante com a coisa durante este período, sem o que se enriqueceria injustificada à custa de outrem. Assim, o possuidor de boa fé, na medida em que tem direito a fazer seus os frutos percebidos, também tem igualmente que suportar os encargos com a coisa relativamente a esse período. Pelo contrário, o possuidor de má fé é obrigado a restituir todos os frutos percebidos, o que lhe dá direito a ser indemnizado das despesas de cultura, sementes e matérias-primas e dos restantes encargos de produção e colheita, desde que não sejam superiores ao valor desses frutos (artigo 216.º, n.º1 CC). Em derrogação ao artigo 215.º, n.º2 CC, a mesma situação ocorre em relação à atribuição dos frutos pendentes ao proprietário, no caso de boa fé. Efetivamente, se ao tempo em que cessa a boa fé estiverem pendentes frutos naturais, é o titular obrigado a indemnizar o possuidor das despesas de cultura, sementes ou matérias primas e, em geral, de todas as despesas de produção, desde que não sejam superiores ao valor dos frutos que vierem a ser colhidos (artigo 1270.º, n.º2 CC). Trata-se, em ambos os casos, de uma situação de enriquecimento por despesas efetuadas, uma vez que o possuidor faz uma despesa mas o benefício que a despesa produz é atribuído pela lei ao proprietário, o que implica que a despesa não tenha causa jurídica e, portanto, a lei determine a sua restituição nos limites do enriquecimento (o valor dos frutos). 5. Direito ao reembolso de benfeitorias realizadas na coisa: a posse atribui ainda direito ao reembolso pelas benfeitorias realizadas pelo possuidor na coisa, direito esse que pode ser exercido perante o respetivo proprietário. Esse direito compreende-se em função da proibição do enriquecimento sem causa (artigo 473.º, n.º1 CC), estando-se aqui perante a categoria de enriquecimento por despesas, na modalidade de enriquecimento por incrementos de valor em coisa alheia. Efetivamente, se o proprietário não tivesse que restituir as benfeitorias, ficaria enriquecido à custa do possuidor, consistindo o enriquecimento na poupança de despesas, no caso de benfeitorias necessárias, e no ius tollendi ou na restituição do seu valor, no caso de benfeitorias úteis. Daí que se atribua ao possuidor o direito ao reembolso das benfeitorias, direito que igualmente se verifica no caso de má fé, já que se o possuidor de má fé não tivesse direito a esse reembolso, tenderia a deteriorar-se o objeto possuído, o que acabaria por reverter em prejuízo do proprietário. O regime legal varia, no entanto, consoante se trate de benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias (artigo 216.º CC). Em relação às benfeitorias necessárias é sempre possível ao possuidor reclamar indemnização pela sua realização. Quanto às benfeitorias úteis, elas podem ser levantadas pelo possuidor, desde que o levantamento não provoque a deterioração da coisa, caso em que apenas haverá lugar à restituição do seu valor, segundo o enriquecimento sem causa (artigo 1273.º CC). Já quanto às benfeitorias voluptuárias, o possuidor de boa fé tem o direito de as levantar se o puder fazer não se dando detrimento da coisa. No caso contrário, não pode levantá-las nem reclamar o seu valor. Já o possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito (artigo 1275.º CC). Em caso de boa fé, o direito do possuidor ao reembolso ou restituição das benfeitorias beneficia da garantia do direito de retenção (artigo 754.º CC). Em caso de má fé, essa garantia é excluída (artigo 756.º, alínea c) CC).

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6. Direito de indemnização em caso de turbação ou esbulho: a posse é entre nós tutelada pela responsabilidade civil delitual (artigo 483.º CC), pelo que o possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado pelos prejuízos que lhe tenha causado a turbação ou o esbulho (artigo 1284.º CC). 7. Aquisição da propriedade, após a sua manutenção por certo lapso de tempo (usucapião): a posse pode permitir a aquisição da propriedade por usucapião (artigo 1287.º CC). A posse atribui, no entanto, também certos deveres ao possuidor como sejam:

1. Responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa: o possuidor é igualmente sujeito à responsabilidade pelo perecimento ou deterioração da coisa, a qual varia consoante esteja de boa fé ou de má fé. Se estiver de boa fé o possuidor só é responsável se tiver procedido com culpa (artigo 1269.º CC). Já em caso de má fé o possuidor fica sujeita a uma responsabilidade pelo risco (artigo 1269.º, a contrario CC) como devedor em mora (artigo 807.º, n.º1 CC), uma vez que adquiriu a posse por facto ilícito (artigo 805.º, n.º2, alínea b) CC). Fica, no entanto, salva ao possuidor a possibilidade de provar que o proprietário teria igualmente sofridos os danos se a coisa estivesse na sua posse (artigo 807.º, n.º2 CC). 2. Responsabilidade pelos frutos que um proprietário diligente teria obtido, em caso de posse de má fé: ocorrendo má fé do possuidor, este é obrigado a restituir os frutos que a coisa produziu até ao termo da posse, devendo ainda responder pelo valor daqueles que um proprietário diligente teria obtido (artigo 1271.º CC). Trata-se de uma solução que se explica em virtude do enriquecimento sem causa obtido pelo possuidor de má fé (artigo 473.º CC), devendo esta disposição ser vista com uma concretização das regras de restituição do enriquecimento sem causa, previstas nos artigos 478.º e 480.º CC. 3. Obrigação de pagamento dos encargos da coisa, em caso de atribuição dos frutos: o artigo 1272.º CC estabelece que os encargos da coisa são pagos pelo titular do direito e pelo possuidor, na medida dos direitos de cada um deles sobre os frutos no período a que respeitam os encargos. Desta disposição resulta que, no caso de serem atribuídos os frutos ao possuidor, o que ocorre na hipótese de boa fé, até ao momento em que esta cessa, este ficará obrigado a suportar os encargos da coisa correspondentes.

Secção VIII – Defesa da posse

Generalidades: conforme se referiu, a concessão da tutela possessória visa acautelar a paz jurídica e a continuação do valor que representa a utilização da coisa. Por esse motivo, a lei confere ao possuidor os seguintes meios para a defesa da posse: 1. 2. 3. 4.

Ação de prevenção (artigo 1276.º CC); Ação de manutenção (artigo 1278.º CC); Ação de restituição (artigo 1278.º CC); Procedimento cautelar de restituição provisória no caso de esbulho violento (artigo 1279.º CC); 5. Embargo de terceiro (artigo 1285.º CC); 6. Ação direta (artigos 127.º e 336.º CC).

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A ação direta corresponde a uma fórmula de autotutela da posse. As ações de prevenção, manutenção e restituição, incluindo o procedimento cautelar em caso de esbulho violento, destinam-se a reagir contra atuações materiais suscetíveis de lesar a posse. Já os embargos de terceiro destinam-se a reagir contra lesões da posse causada por atos jurídicos.

Legitimidade ativa para as ações possessórias: só pode recorrer às ações possessórias quem detenha a posse da coisa nos termos de um direito real (artigo 1251.º CC), incluindo os direitos reais de garantia suscetíveis de posse (artigos 670.º, alínea a e 758.º CC) ou nos termos de um direito pessoal de gozo que beneficie dessa tutela (artigo 1037.º, n.º2, 1125.º, n.º2, 1133.º, n.º2, e 1188.º, n.º2 CC). Estando em causa direitos de outra natureza, como os direitos familiares ou os direitos relativos a concessões do domínio público, já não será admissível o recurso à tutela possessória. As ações possessórias não podem igualmente ser usadas para tutela das servidões não aparentes, salvo quando a posse se funde em título provindo do proprietário serviente ou de que lho transmitiu (artigo 1280.º CC). A razão para esta exclusão resulta do facto de as servidões não aparentes poderem ser confundidas com atos de tolerância do proprietário, exigindo a lei por isso um título específico para lhes conferir a tutela possessória. É controvertido, no entanto, o significado a dar à expressão título, devendo considerar-se como tal o facto jurídico, fonte da servidão, o qual pode ser o contrato, testamento, ou a destinação do antigo proprietário. Já em relação à pessoa de quem provém, o Código refere-se apenas ao atual proprietário do prédio serviente e àquele imediatamente anterior, não admitindo que títulos provindos de proprietários mais distantes legitimem a defesa possessória das servidões não aparentes. Por outro lado, as ações possessórias não podem ser usadas para tutela de situações de mera detenção. O detentor não terá por isso legitimidade para recorrer à defesa possessória. Nos casos de detenção a tutela possessória deve ser exercida por parte da pessoa em cujo nome se possui. Em caso de falecimento do possuidor, a legitimidade para instaurar as ações possessórias é transmitida aos seus herdeiros (artigo 1281.º CC), o que está em conformidade com o caráter automático da sucessão na posse (artigo 1255.º CC).

Legitimidade passiva para as ações possessórias: uma vez que as ações possessórias têm sempre por fundamento uma conduta que perturba ou viola a relação do possuidor com a coisa objeto da posse, é naturalmente o autor dessa conduta que tem legitimidade passiva para a ação possessória. Por isso, em relação às ações de prevenção e manutenção da posse, a lei restringe naturalmente a legitimidade passiva para a ação em relação ao perturbador, apenas admitindo, em caso de turbação efetiva, uma ação de indemnização contra os seus herdeiros (artigo 1281.º, n.º1 CC). Já em relação às ações de esbulho, as mesmas podem ser instauradas não apenas contra o perturbador e seus herdeiros, mas também contra quem esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho. Verifica-se assim uma extensão da legitimidade passiva em relação aos herdeiros do esbulhador, e também aos possuidores da coisa que tenham conhecimento do esbulho (artigo 1281.º, n.º2 CC).

Processamento das ações possessórias: anteriormente à Reforma do Processo Civil de 1995/1996, os meios de defesa da posse eram objeto de processo especial, relativo às ações possessórias propriamente ditas e aos embargos de terceiro, existindo ainda um processo especial de natureza controvertida, a posse ou entrega judicial. Conforme se lê no Relatório do Decreto-Lei n.º 329-A/95, 12 Dezembro, essa sujeição a processo especial foi abolida por se considerar que a única justificação que para tal existia era a invocação da questão da propriedade e essa poderia ser sujeita às regras gerais do pedido reconvencional. Outra inovação da Reforma foi retirar aos embargos de terceiro a natureza exclusiva de meio de defesa da posse, passando a configurá-los como um incidente de oposição de terceiros, utilizável não apenas para defesa da 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão posse, mas também de qualquer outro direito incompatível com a diligência judicialmente ordenada (artigo 342.º CPC). Não obstante esta modificação, as ações possessórias conservaram a sua natureza típica nos artigos 1276.º e seguintes CC, ainda que atualmente não lhes corresponda qualquer forma de processo especial, ainda que atualmente não lhes corresponda qualquer forma de processo especial, sendo assim sujeitas ao processo comum. Caso o réu queira suscitar a questão da propriedade terá que instaurar um pedido reconvencional, nos termos do artigo 266.º CPC. O artigo 595.º, n.º5 CPC esclarece, no entanto, quais as consequências da invocação pelo réu do direito de propriedade nas ações possessórias, variando estas, consoante seja ou não impugnada a posse do autor e consoante haja ou não reconhecimento do direito de propriedade pelo réu. Se o réu invocar a titularidade do direito de propriedade, mas não impugnar a posse do autor, e houver elementos no processo, que permitam conhecer logo da propriedade, o juiz reconhece logo essa propriedade a favor do réu, indeferindo o pedido do autor, em virtude da prevalência da reivindicação da propriedade sobre as ações possessórias. Já se não puder apreciar-se logo a questão da propriedade, o juiz ordena a imediata manutenção ou restituição de posse, sem prejuízo do que venha a decidir-se a final quanto à questão da titularidade do direito (artigo 510.º, n.º5 CC). Ou seja, a ação é provisoriamente decidida no saneador a favor do autor, prosseguindo depois o processo para discussão da reconvenção do réu relativa à propriedade. Se o réu invocar a titularidade do direito de propriedade, impugnando ao mesmo tempo a posse do autor, tanto a ação relativa à posse como a reconvenção relativa à propriedade não poderão ser decididas logo no saneador, sendo as mesmas objeto de julgamento. Se, porém, o autor reconhecer a propriedade do réu, a ação terá que ser naturalmente decidida a favor do réu, em face da referida prevalência dos meios petitórios sobre os meios possessórios. Tal só não se verificará se o réu for titular de um direito real ou pessoal de gozo sobre a coisa, que lhe permita recusar a sua entrega (artigo 1311.º, n.º2 CC).

Regime específico das ações possessórias: 1. Ação de prevenção: a ação de prevenção encontra-se prevista no artigo 1276.º CC, o qual estabelece que se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuizo que causar. A ação de prevenção tem assim por fundamento o justo receio do possuidor de que vai ser perturbado ou esbulhado da sua posse, podendo esse receio resultar de palavras ou atos. No entanto, os atos em questão terão que ser materiais, uma vez que, se estiverem em causa atos judiciais, a forma adequada de reação é através dos embargos de terceiro com função preventiva (artigo 350.º CPC). Não basta, para se poder recorrer à ação de prevenção, uma mera apreensão do possuidor, exigindo-se que o seu receio seja justo, o que só ocorre quando a violação da sua posse for uma futura consequência lógica dos factos já praticados por outrem ou houver sérias razões para crer que o autor vai executar as ameaças que fez. A ação de prevenção permite igualmente a utilização do procedimento cautelar comum, nos termos dos artigo 326.º e 379.º CPC. O caso especial de o justo receio decorrer de obra, trabalho ou serviço é especificamente tutelado através do embargo de obra nova (artigos 397.º e seguintes CPC). 2. As ações de manutenção e de restituição da posse: as ações possessórias mais comuns correspondem às ações de manutenção e de restituição da posse. A ação de manutenção pressupõe a existência de alguma turbação da posse, ainda que o possuidor não tenha ficado dela privado, pedindo este assim a sua permanência na posse. Já a ação de restituição pressupõe que já se tenha consumado o esbulho da posse, pelo que o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão possuidor solicita a restituição do objeto à sua posse. A questão não é, no entanto, decisiva em termos processuais, dado que o artigo 609.º, n.º3 CPC, estabelece que se tiver sido requerida a manutenção em lugar da restituição da posse, ou esta em vez daquela, o juiz conhecerá do pedido correspondente à situação realmente verificada. A turbação pressupõe, de acordo com a sua definição clássica, um ato material que afete o exercício da posse, em virtude de uma pretensão contrária à posse de outrem, e a conservação dessa posse na esfera do possuidor. Já o esbulhado pressupõe a privação da posse por parte do possuidor, em resultado de um ato material (apossamento) ou jurídico (inversão do título da posse) de outrem com a finalidade de constituir uma posse própria. Em ambos os casos ocorre uma violação da posse, que deve ser dirigida à constituição de uma nova situação possessória, sem o que ocorrerá apenas um dano na esfera do possuidor. As duas figuras distinguem-se porque a turbação pressupõe a manutenção da posse, enquanto que o esbulho implica a sua perda. É de notar, porém, que o esbulho pode ser parcial, quando apenas uma parte do objeto possuído é subtraído ao seu anterior possuidor. A lei estabelece que, no caso de recorrer ao tribunal o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido da titularidade do direito (artigo 1278.º, n.º1 CC), bastando assim a demonstração da posse e da turbação ou esbulho para que a ação seja julgada procedente. No caso, porém, de a posse não ter mais de um ano, exige-se, para que a ação seja julgada procedente, que a parte contrária não tenha melhor posse (artigo 1278.º, n.º2 CC), sendo considerada melhor posse a que for titulada ou, na falta de título, a mais antiga, ou ainda, em caso de idêntica antiguidade, a posse atual (artigo 1278.º, n.º3 CC). A ação de manutenção e restituição da posse deixam, porém, de poder ser instauradas e, se o tiverem sido, tornam-se supervenientemente inúteis a partir do momento em que haja decisão sobre a titularidade do direito, de acordo com o princípio petitorium absorbet possessorium. As ações de manutenção e de restituição de posse têm um prazo especial para ser instauradas, já que o artigo 1282.º CC estabelece que estas caducam se não forem instauradas no prazo de um ano após a turbação ou esbulho, ou do seu conhecimento, quando tenha sido praticado às ocultas. A razão para este prazo resulta do facto de a apreciação da turbação ou esbulho ser difícil se passar muito tempo após esses factos. Por outro lado, se o perturbador não repete a turbação no prazo de um ano é de presumir que desistiu dos seus intentos e, se o esbulhado não reage dentro do mesmo prazo, é porque reconhece direito ao esbulhador. Caso as ações de manutenção ou de restituição da posse venham a ser julgadas procedentes, o possuidor é havido como nunca perturbado ou esbulhado (artigo 1283.º CC), o que implica não haver afetação da contagem do prazo da posse, designadamente para efeitos da usucapião. Para além disso, o possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que tenha sofrido em consequência da turbação ou do esbulho (artigo 1284.º, n.º1 CC), sendo a restituição da posse feita à custa do esbulhador e no lugar do esbulho (artigo 1284.º, n.º2 CC). Da mesma forma que a ação de prevenção, também as ações de manutenção e restituição de posse admitem hoje o recurso ao procedimento cautelar comum, nos termos dos artigos 362.º e 379.º CPC, bem como, no caso de a violação da posse resultar se obra, trabalho ou serviço, ao embargo de obra nova (artigos 392.º e seguintes CPC). 3. A ação de restituição em caso de esbulho violento: a ação de restituição no caso de esbulho violento encontra-se prevista no artigo 1279.º CC, o qual estabelece que sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador. Esta solução tem origem no facto de o esbulho violento merecer uma forte repressão da ordem jurídica, que justifica a criação de um procedimento cautelar expedito para determinar imediatamente a restituição da posse, sem audiência do esbulhador (spoliatus ante omnia restituendus). A ação de restituição em caso de esbulho violento é tutelada através do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, o qual, nos termos do artigo 377.º CPC, tem como pressupostos a posse, o esbulho e a violência. Exige-se, assim, em primeiro lugar, como é regra geral nas ações possessórias uma situação possessória, não bastando a mera detenção. Depois, é necessário que o possuidor tenha sido esbulhado da posse, não bastando a mera turbação. Finalmente, o esbulho tem que ter sido violento, o que abrange não apenas a coação física, mas também a coação moral nos termos do artigo 255.º CC (artigo 1261.º, n.º2 CC). O ónus da prova dos factos compete ao requerente do procedimento, nos termos gerais, ainda que, nos termos gerais, a prova seja meramente sumária (artigo 368.º, n.º1 CPC), bastando para o decretamento da providência a existência de uma probabilidade séria de existência do direito (artigo 368.º, n.º1 CPC). Ao contrário do que é regra geral nos procedimentos cautelares (artigo 366.º, n.º1 CPC), a providência da restituição provisória da posse é decretada sem audiência da parte contrária (artigo 1279.º, in fine CC e artigo 278.º CPC), sendo esta derrogação ao princípio do contraditório justificada pela violência do esbulho. 4. Os embargos de terceiro: o artigo 1285.º CC inclui os embargos de terceiro entre os meios relativos à defesa da posse. Efetivamente, antes da reforma do processo civil de 1995/1996, os embargos de terceiro encontravam-se incluídos entre os meios possessórios, posteriormente revogado o regime onde se encontravam. A reforma de 1995-1996 passou a qualificar os embargos de terceiros, sendo qualificados como uma forma de oposição de terceiros, e regulada nos artigos 342.º a 350.º CPC. Nos termos do artigo 342.º, n.º1 CPC, os embargos de terceiro destinam-se a reagir contra qualquer ato judicialmente ordenado, de apreensão e entrega de bens, que ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa. Atualmente, os embargos de terceiro não se limitam assim à defesa da posse, podendo abranger qualquer outro direito, o qual pode ser invocado cumulativamente com a posse. No entanto, os embargos de terceiro continuam a ser a única forma de defesa da posse contra atos judiciais, não sendo possível neste caso recorrer aos outros meios possessórios. Nos termos do artigo 342.º, n.º2 CPC, não é, no entanto, admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens efetuada em processo de insolvência. Efetivamente, nesta hipótese, o possuidor deverá requerer a restituição de separação de bens da massa insolvente, nos termos dos artigos 141.º e seguintes CIRE. A legitimidade para a dedução de embargos de terceiro é ampla, bastando que se tenha a posse ou algum direito ofendido com a diligência, e que não se seja parte no processo em que a respetiva diligência foi ordenada (artigo 342.º, n.º1 CPC). A lei admite inclusivamente que o cônjuge que tenha a posição de terceiro possa utilizar os embargos para defesa dos seus direitos relativamente aos bens próprios e aos bens comuns que hajam sido indevidamente atingidos pela diligência (artigo 343.º CPC). Em relação ao processamento dos embargos, o mesmo ocorre por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante (artigo 344.º, n.º1 CPC). O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respetivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas (artigo 344.º, n.º2 CPC). Os embargos de terceiro compreendem uma fase introdutória e uma fase subsequente. A fase introdutória inicia-se se não houver razões para o indeferimento liminar da petição, designadamente por ela ter sido interposta fora de tempo (artigo 345.º, in principio CPC). Essa fase decorre sem oposição da parte contrária, destina-se a averiguar se os embargos devem ou não ser recebidos. Para esse efeito, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante (artigo 345.º, in fine CPC). Caso ocorra rejeição dos embargos, a mesma não obsta a que o embargante proponha ação em que peça a declaração da titularidade do direito que obsta à realização ou ao âmbito da diligência, ou reivindique a coisa apreendida (artigo 346.º CPC). Já o recebimento dos embargos determina a suspensão dos termos do processo em que se inserem, quanto aos bens a que dizem respeito, bem como a restituição provisória da posse, se o embargante a houver requerido, podendo, todavia, o juiz condicioná-lo à prestação de caução por parte deste (artigo 347.º CPC). Inicia-se, então, a fase subsequente dos embargos de terceiro, sendo notificadas para contestar as partes primitivas, e seguindo-se os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, conforme o valor (artigo 348.º, n.º1 CPC). Quando os embargos se fundam apenas na invocação da posse, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida (artigo 348.º, n.º2 CPC). A sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados, caso eles tenham solicitado o reconhecimento do seu direito de propriedade (artigo 349.º CPC). Os embargos de terceiro podem ainda ser deduzidos a título preventivo, antes de realizada mas depois de ordenada a diligência processual ofensiva da posse ou do direito em questão (artigo 350.º. n.º1 CPC). Nesse caso, aplicamse os termos anteriormente referidos com as necessárias adaptações, não sendo, no entanto, a diligência efetuada antes de proferida decisão na fase introdutória dos embargos e, sendo estes recebidos, continuará suspensa até à decisão final, podendo o juiz determinar que o embargante preste caução (artigo 350.º, n.º2 CPC).

Secção IX – Natureza da posse Em relação à natureza da posse, suscita-se a controvérsia entre aqueles que consideram a posse um facto, e aqueles que a vêm como um direito, havendo ainda posições que as vêm simultaneamente como um facto e um direito. A tese que vê a posse como um mero facto corresponde à formulação tradicional tendo sido defendida na pandectística entre outros por Windscheid. Para este autor, quer no Direito Romano, quer no Direito Alemão, a posse reconduzse a um mero facto, o qual, embora produza consequências jurídicas, não é em si uma posição jurídica, pois a proteção do possuidor não resulta de ele ter um direito, mas antes de ser vedado aos outros o recurso à força. Por esse motivo, a posse não seria direito, mas antes um mero facto, não fazendo sentido incluir no âmbito da posse as consequências jurídicas da mesma. No entanto, dado que estabelece uma relação jurídica com a coisa, a mais direta e simples relação possível, a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão posse deve ser incluída no sistema dos Direitos Reais. A tese que vê a posse simultaneamente como um facto e um direito deve-se a Savigny. Para este autor, na sua configuração primitiva a posse apresenta-se apenas como um facto, uma vez que é independente de todas as regras estabelecidas para a aquisição e perda de direitos. Efetivamente, a posse pode ser adquirida pela força e ser transmitida por negócio a que faltem os requisitos legais. Por outro lado, nunca ocorre uma verdadeira sucessão na posse, na medida em que a posse do novo possuidor é sempre uma posse nova, independente daquela que anteriormente possuiu. Por estes motivos, a posse seria um mero facto. No entanto, a evolução da posse teria permitido que a mesma fosse sendo objeto de negócios jurídicos, sendo atribuída em situações em que não há apreensão material da coisa, caso em que a mesma teria que ser configurada como um direito, sendo assim simultaneamente facto e direito. Mas para a configuração da posse como direito não seria relevante o facto de a mesma poder conduzir à usucapião, uma vez que aí a posse seria apenas um elemento de um processo de aquisição da propriedade. A configuração da posse como um direito resultaria por isso apenas da concessão dos interditos, em caso de turbação ou esbulho. Por esse motivo, Savigny defende que a posse se inclua no Direito das Obrigações e não nos Direitos Reais, uma vez que os interdicta teriam na base um facto ilícito, a turbação ou o esbulho, o que implicaria que a posse devesse ser considerada como uma obligatio ex maleficio. A posição atualmente maioritária configura, porém, a posse como um direito, sendo objeto de controvérsia qual a natureza desse mesmo direito. A tese de que a posse é um direito real é defendida, entre nós, por Manuel Rogrigues e Carvalho Fernandes. Manuel Rodrigues configurou a posse como um direito real, uma vez que não apenas consiste num poder direto e imediato sobre a coisa, como também atribui ao seu titular a faculdade de exigir de todos os indivíduos uma abstenção que lhe permita exercer todos os elementos constitutivos do direito que exterioriza. Para Carvalho Fernandes, a natureza real da posse é demonstrada pela inserção legislativa da posse entre os direitos reais, quer na sistematização do Código, quer nas normas de conflitos (artigo 46.º, n.º1 CC), e pelo facto de a posse atribuir ao seu titular as faculdades de uso e fruição de uma coisa. O autor considera que o facto de a ação de restituição da posse não poder ser instaurada contra terceiro de boa fé (artigo 1282.º, n.º2 CC) não exclui a existência de sequela na posse, uma vez que se trata apena de uma situação de inoponibilidade do direito real. A posição de que a posse é um direito subjetivo sem natureza real é defendida, entre nós, por Oliveira Ascensão e presentemente por Menezes Cordeiro. Para Oliveira Ascensão, a posse é um direito, mas não é um direito real, na medida em que não constitui um direito inerente à coisa, nem absoluto, dado que o artigo 1281.º, n.º.2 CC, não admite a interposição de restituição de posse contra quem não tenha conhecimento do esbulho da coisa. Por isso, o autor sustenta que a defesa da posse fundase em razões relativas: o esbulho ou o conhecimento do mesmo. O autor reconhece, porém, que a posse não é um puro direito relativo, pois não assenta numa relação, nomeadamente na relação entre o titular e um eventual titular do direito definitivo e que existe na posse a funcionalidade, pois a situação é sempre dirigida ao aproveitamento da coisa. O possuidor não tem, no entanto, a possibilidade de acompanhar a coisa, que é dada pela inerência. A posse é assim uma figura híbrida: não é direito relativo, mas tem meios de defesa próprios de direito relativo. Já Menezes Cordeiro, depois de ter inicialmente defendido a natureza real da posse, defende hoje que a posse não se pode integrar por razões histórico-culturais no sistema dos direitos reais, uma vez que não era tutelada no Direito Romano por actiones in rem, mas antes pelos interdicta possesionis. O autor entende que, por isso, a posse não é um direito real de gozo constituindo antes um direito de gozo diferenciado. Entendemos dever acompanhar esta última conceção configurando a posse com um direito real de gozo sem natureza real. Efetivamente, o artigo 1281.º, n.º2 CC, demonstra a ausência de inerência na posse, uma vez que a ação de restituição não pode ser instaurada contra terceiro de boa fé. Por outro lado, ao contrário do que sucede 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão nos direitos reais a tutela possessória não resulta da atribuição prévia de um direito sobre a coisa, surgindo a posteriori em virtude da situação de facto criada, que é o que determina a atribuição dos interditos. Não podemos dizer consequentemente que existe na posse uma permissão normativa de aproveitamento de uma coisa corpórea, uma vez que apenas existe uma tutela provisória da continuação do aproveitamento da coisa, que já vinha sendo realizado pelo titular. Por esse motivo, a posse não pode ser qualificada como um direito real.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Capítulo X – A Propriedade Secção I – Noção e conteúdo típico da propriedade

As várias aceções do termo propriedade: para além da flutuação histórica dos regimes jurídicos, desde o Direito Romano até ao presente, a propriedade é suscetível de ser analisada sob vários pontos de vista, dentro dos quais o Direito é apenas um deles. A história, a filosofia, a economia, todos estes ramos do saber nos apresentam a propriedade debaixo de perspetivas não coincidentes com a análise jurídica do tema. Mesmo olhando para o campo específico do Direito, também não encontramos uma conceção unitária da propriedade. O sentido do termo propriedade na Constituição é, decerto, muito mais amplo do que aquele que o mesmo recebe na abordagem jusprivatista, particularmente, no Direito Civil. Numa aceção ampla, a propriedade representa decerto um dos aspetos de maior controvérsia da história civilizacional do homem. Estando a riqueza associada aos bens produtivos, ter a propriedade destes equivale ao domínio da produção da riqueza e uma posição de proponderância, ou mesmo de poder, na relação com outros, seja essa relação entre povos ou Estados, entre estes e aqueles que estão sujeitos à sua soberania ou meramente entre privados. Daí que a atribuição da propriedade, seja quais forem as regras que a rejam, assuma uma importância capital em qualquer ordem jurídica. Numa matéria de tão grande sensibilidade social, não espanta que, não obstante o seu lastro cultural indesmentível, a propriedade assuma uma certa vulnerabilidade às conceções de ideologia política e económica vigentes na ordem jurídica, sobretudo, ao nível constitucional. E isto mesmo em relação à propriedade de Direito Civil. Assim, nos Estados de economia socialista, com a apropriação coletiva dos bens de produção, a propriedade individual tende a rarear, substituída pela propriedade coletiva. Ao invés, nos Estados em que as ordens jurídicas respetivas se regem pelo princípio da apropriação jurídico-privada dos bens, a propriedade individual constitui a regra. O Direito acaba, deste modo, por repercutir, em maior ou menor medida, as doutrinas filosóficas e económicas da propriedade. Essa repercussão tende a verificar-se, sobretudo, ao nível do Direito Público, nomeadamente, constitucional, enquanto o Direito Civil tende a manter uma matriz cultural mais vincada, sendo, por isso, mais estável e menor permeável à mudança. Seja ao nível constitucional seja ao nível do Direito Civil, a propriedade apresenta-se como um produto da cultura de um povo e, como tal, surge historicamente condicionada. O confronto entre as várias ordens jurídicas, mesmo aquelas que partilham as mesmas raízes, mostra que há traços distintivos que são fruto de circunstâncias históricas diferenciadas. Podemos dizer, por conseguinte, que assim como varia em função da parte do ordenamento que se considera (o Direito Público ou o Direito Civil), a propriedade muda de ordem jurídica para ordem jurídica e igualmente no interior desta, consoante o tempo histórico que se toma em consideração. Como relembra Baur, a propriedade é uma filha do seu tempo.

A conceção constitucional da propriedade: o artigo 62.º, n.º1 CRP dispõe que a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. Em primeiro lugar, este preceito garante a existência da propriedade privada em Portugal. Fica, deste modo, assegurada a propriedade de Direito Civil, ao lado de outras formas de apropriação de bens, nomeadamente, públicas. Em segundo lugar, a garantia da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propriedade privada significa a liberdade de afetação dos bens pelo titular do Direito patrimonial. As pessoas, individuais ou coletivas, são livres de desenvolver os seus fins através da utilização dos bens que lhe pertençam. Quando a lei lhes coarta essa possibilidade, impedindo de todo o aproveitamento dos bens pelo titular, a propriedade vem a ser posta em causa, devendo ser questionada a constitucionalidade daquela. Por último, a garantia da propriedade confere o direito à disposição do direito patrimonial, em vida ou por morte. Na prossecução dos seus fins, a pessoa, individual ou coletiva, tem liberdade para dispor dos bens conforme entenda, sendo juiz da sua própria conveniência na transmissão dos mesmos. A garantia constitucional da propriedade tem primariamente em vista a relação do Estado com os membros da ordem jurídica e tem por objetivo salvaguardar não só a existência, mas o seu respeito pelos órgãos do Estado e da administração pública em geral. A atividade legislativa e administrativa deve ser exercida de modo a não pôr em causa a propriedade de alguém. Assim, ninguém pode ser sujeito a requisição ou expropriação por utilidade pública fora dos casos previstos na lei e sempre mediante o pagamento de uma indemnização (artigo 62.º, n.º2 CRP). Qualquer outra forma de provação do uso dos bens em propriedade privada pela administração pública encontra-se sujeita aos mesmos limites. A aceção constitucional da propriedade compreende um sentido muito mais lato do que o sentido técnico do direito de propriedade no Direito Civil. De uma forma geral, pode dizer-se que, no sentido constitucional do termo (artigo 62.º CRP), por propriedade se entende a titularidade de um direito patrimonial. As participações dos sócios e associados em pessoas coletivas privadas, como as sociedades, e patrimónios autónomos, bem como os direitos subjetivos que não têm coisas corpóreas por objeto, os créditos, o direito de autor, os direitos privativos industriais (patentes, marcas), etc., todos eles caem no âmbito da garantia constitucional da propriedade privada. A aceção constitucional ou de Direito Público da propriedade baseia-se, assim, no caráter patrimonial do direito considerado, abrangendo uma multiplicidade de direitos subjetivos de diferente natureza, todos eles pertencentes a ramos diversos da ordem jurídica. Com ela não pode confundir-se a propriedade regulada nos artigos 1302.º e seguintes CC. A garantia constitucional da propriedade privada não contende com a existência de restrições. Embora a Constituição não o diga, a ressalva da parte final do artigo 1305.º CC projeta o seu sentido para todos os direitos de natureza patrimonial. Toda a propriedade existe dentro dos limites da lei e encontra-se sujeita às restrições por ela impostas. Não existem propriedades ilimitadas. Essa visão, típica do individualismo liberal do século XIX, encontra-se hoje superada. Todos os direitos de índole patrimonial estão sujeitos a restrições, que se pode dizer serem imanentes a eles, e o legislador pode muito bem consagrá-las, em maior ou menor medida. Tais restrições podem ser guiadas por finalidades de interesse público (saúde pública, ambiente, urbanismo, educação, etc.) ou de interesse privado (por exemplo, vizinhança). Na atualidade, a fatia maior das restrições da propriedade em sentido técnico encontra-se justamente no Direito Público, sinal de que o aproveitamento das coisas pelo proprietário se faz também no respeito de interesses atendíveis da comunidade e dos fins de natureza geral que a ordem jurídica prossegue.

A conceção juscivilista de propriedade: a primeira nota distintiva a dar do conceito civilístico de propriedade é de que este constitui um direito real, um ius in re, defendido por uma ação real (a ação de reivindicação). Era assim no Direito Romano, no qual o dominium era defendido por uma actio in rem, a rei vindicatio. Dentro dos direitos reais, porém, e segunda nota distintiva, o direito de propriedade constitui o direito de maior extensão. Esta maior extensão prende-se naturalmente com o aproveitamento da coisa propiciado por este tipo de direito real no confronto com os demais direitos reais. Direito real maior ou com maior extensão não significa, de modo algum, direito ilimitado. Como diz Branca, o mais amplo, mas não ilimitado. Já no

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão domínio do Código Civil de Seabra, Pires de Lima afirmava que uma propriedade ilimitada é hoje inconcebível. Atualmente, esta ideia decorre diretamente do artigo 1305.º CC, no qual se ressalvam expressamente os limites da lei e as restrições por ela impostas. As restrições são parte do conteúdo (negativo) do próprio direito, não constituindo obstáculos normativos exteriores a um aproveitamento ilimitado. Terceira nota distintiva: ao proprietário cabe o exclusivo do aproveitamento da coisa. Apenas a propriedade confere esta exclusividade. Os demais direitos reais supõem, pelo menos, a concorrência do direito de propriedade. Qualquer direito real menor coexiste tendencialmente com a propriedade, mas esta pode existir sem a concorrência de qualquer outro direito real. Quarta nota distintiva: a propriedade realiza a atribuição final de uma coisa corpórea. E tanto assim é, que todos os outros direitos reais são ius in re aliena, direitos sobre coisa alheia (do proprietário), e nenhum deles confere ao titular o poder de consumir ou destruir a coisa. A última nota distintiva da propriedade civil reside no seu objeto. A propriedade de Direito Civil português tem por objeto coisas corpóreas. Era esse o entendimento propugnado por Guilherme Moreira, seguido depois por Pires de Lima e outros estudiosos de Direitos Reais. Isto decorre hoje, com toda a clareza, do artigo 1302.º CC e constitui uma projeção do pandectismo e da influência do BGB alemão no nosso Direito Civil. Assim, e não obstante o uso linguístico corrente, não é exato falar em propriedade intelectual – propriedade literária e artística e propriedade de Direito Civil. Sobre as coisas incorpóreas incidem direitos intelectuais, o direito de autor para a obra literária e artística e direitos privativos industriais (patente, modelos de utilidade, marca, nome de estabelecimento, insígnia, desenhos e modelos e outros) para os bens industriais. Estes direitos são também direitos absolutos e têm coisas – incorpóreas – por objeto, mas não constituem direitos reais, nomeadamente, não constituem direitos de propriedade em sentido técnico. De resto, completando a definição do objeto dos direitos reais contida no artigo 1302.º CC, o artigo 1303.º CC remete a disciplina das coisas incorpóreas para legislação especial. Esta legislação, de Direito de Autor e de Direito Industrial, não regula nenhuma propriedade especial, mas uma categoria diversa de direitos subjetivos: os direitos sobre bens intelectuais (coisas incorpóreas). A propriedade civil tem unicamente coisas corpóreas por objeto. A limitação às coisas corpóreas exclui igualmente do âmbito da propriedade civil a titularidade da empresa, do estabelecimento comercial e de agrupamentos de coisas (as denominadas universalidades de facto, como a biblioteca ou o rebanho). Quanto às universalidades de facto, e conforme se deixou exposto no tratamento dado ao princípio da especialidade, a explicação para esta exclusão encontra-se no facto dos direitos reais, e também a propriedade, apenas poderem ter por objeto coisas individualizadas, certas e determinadas. A propriedade civil tem sido objeto de definições que ora sublinham o aspeto da disponibilidade da coisa pelo proprietário ora a relação de pertença entre um sujeito e uma coisa.

1. A primeira ficou conhecida pela teoria do senhorio, a segunda como teoria da pertença. A teoria do senhorio tem antecedentes antigos. Bartolo, a quem se deve provavelmente a primeira noção técnica de propriedade, definia-a como o ius de re corporali perfecte disponendi nisi lege prohibeatur, uma definição que permaneceria na doutrina italiana do século XVI, nos filósofos romanistas da escola de Direito Natural e em Pothier. Para este mestre francês, o direito de propriedade, atendendo aos seus efeitos, deve definirse como o direito de dispor de uma coisa segundo a sua vontade ou ius de re liberà disponendi ou ius utendi et abutendi. 2. Entre os pandectistas, Vangerow, depois de esclarecer que o dominium existe somente na possibilidade jurídica de exercer todos os poderes pensáveis sobre uma coisa

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão corpórea, afirma, contra Wirth, que a propriedade representa o senhorio total sobre a coisa. 3. Dernburg explicava com eloquência que a propriedade é o direito de senhorio geral sobre uma coisa corpórea. Em Thibaut, Böcking e Windscheid encontramos noções com o mesmo teor. Na doutrina atual, a teoria do senhorio continua a inspirar vários autores. Ela teve também a sua projeção em Portugal. Borges Carneiro dizia que o domínio ou senhorio de uma coisa consiste no direito de dispor e de usar della com exclusão de outrem. Também Henrique Mesquita ensina que o proprietário tem a soberania ou o domínio pleno sobre o objeto, em relação ao qual dispõe de uma espécie de poder omnímodo. 4. Na Alemanha do século XIX, Wirth insistiu numa nova definição de propriedade, que tira a tónica caracterizadora ao domínio e aos poderes que este direito atribui ao proprietário e sublinha que a propriedade consiste antes numa relação de pertença entre uma pessoa e uma coisa. Ao seu pensamento, e daqueles que o partilharam, deuse o nome de teoria da pertença. No nosso país, algumas definições podem considerarse dentro desta teoria. Liz Teixeira afirma que no sentido próprio ou restrito, diz-se propriedade ou domínio o direito, pelo qual uma coisa pertence a alguém completamente, plenamente… Opiniões compromissórias entre estas duas teorias surgiram igualmente. Ficou conhecida a posição de Scialoja, segundo o qual, a propriedade é uma relação de Direito Privado pela qual uma coisa como pertença a uma pessoa é inteiramente sujeita à vontade desta em tudo aquilo que não seja vedado pelo Direito Público e pela concorrência de outros direitos. José Tavares mostrou simpatia por esta construção, mas adicionou-lhe uma nota de licitude no exercício do direito (o fim jurídico ou lícito do exercício do poder). E, de um modo inteiramente análogo, também Pires e Lima o fez num primeiro momento, vindo depois a abandonar a sua posição anterior. 5. Não julgamos necessário optar por nenhuma destas formulações, pois não cremos que qualquer delas ilustre suficientemente a propriedade. Preferimos, ao invés, destacar as notas distintivas do direito de propriedade, sem esquecer que este direito não representa qualquer realidade imutável e que qualquer tentativa para o definir deve ser historicamente situada. A experiência mostra que propriedade varia em função do momento temporal no qual é analisada e do ordenamento jurídico que a consagra. A propriedade ilimitada do século XIX não é igual à propriedade do início do século XXI. A propriedade alemã, apesar da mesma matriz romana, não surge igual à portuguesa. Elementos históricos variados e uma tradição cultural distinta são suficientes para alterar o conteúdo do direito em cada uma destas ordem jurídicas. Acreditamos, em todo o caso, que existem notas distintivas muito gerais que tornam possível uma definição de propriedade válida para o espaço do Direito continental, sem colocar em causa diferenças de conteúdo que possam advir do particular regime jurídico deste direito em cada uma das ordens jurídicas que o integram. Assim, a propriedade confere ao proprietário o mais extenso aproveitamento da coisa. É um aspeto quantitativo que julgamos incontornável. A posição da propriedade no topo da hierarquia da atribuição real explica-se pela maior extensão do aproveitamento da coisa concedido ao proprietário. Em segundo lugar, o aproveitamento da coisa pelo proprietário pode ser levado a cabo sem a concorrência de outro direito real, o que não sucede relativamente aos outros direitos reais. A propriedade outorga o exclusivo do aproveitamento da coisa. Em terceiro lugar, apenas o proprietário pode decidir sobre o destino da coisa, em

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão última análise, consumindo-a ou destruindo-a, um aspeto que desde, pelo menos, desde os glosadores tem sido evidenciado e que Bartolo destacou na primeira definição conhecida de propriedade. Isto explica-se pelo facto de a propriedade representar a atribuição última ou definitiva da coisa a alguém, o que legitima o proprietário a decidir acerca do tipo de aproveitamento a fazer (destino económico) e o destino final da coisa. Não retrataríamos corretamente a propriedade se não fizéssemos alguma alusão ao facto do aproveitamento da coisa não ser total. Uma propriedade ilimitada não existe. Todos os direitos subjetivos recebem uma delimitação interna (conteúdo negativo) e estão sujeitos a limites externos de exercício. Considerações diversas, de ordem económica, social, ambiental, de saúde, ou outras podem levar o ordenamento a impor ao proprietário vinculações no aproveitamento da coisa ou mesmo proibir algumas formas de aproveitamento. Por essa razão, o aproveitamento da coisa propiciado pela propriedade tem de ocorrer nas zonas libertas de normas que impõem vinculações ou de normas proibitivas que o afastem em certa medida (conteúdo negativo). Não pensamos ser necessário evidenciar a vertente negativa de exclusão que qualquer direito real de gozo comporta em relação a terceiros. Por um lado, porque ao atribuir um conteúdo de aproveitamento de uma coisa a uma pessoa determinada a ordem jurídica exclui simultaneamente que esse aproveitamento se faça por outras pessoas sem a autorização do titular do direito. Por outro lado, a possibilidade de excluir terceiros surge igualmente nos outros direitos reais de gozo, sem distinguir a propriedade relativamente a estes. O mesmo pode ser dito relativamente a outras notas distintivas aduzidas por alguns autores, a elasticidade e o caráter perpétuo da propriedade. A elasticidade, como vimos, não é exclusiva da propriedade, existindo igualmente em outros direitos reais menores (usufruto, uso e habitação, superfície). O caráter perpétuo da propriedade afigura-se meramente tendencial. A lei portuguesa abre a possibilidade de uma propriedade temporária (artigo 1307.º CC) e o sistema normativo permite documentar alguns casos. Se reuníssemos as notas distintivas apontadas, teríamos a seguinte definição: a propriedade é o direito que atribui todo o aproveitamento possível de uma coisa corpórea. Falamos em aproveitamento possível para deixar sublinhado que, apesar de ser o mais extenso dos direitos de aproveitamento sobre coisas corpóreas, também o direito de propriedade sofre uma delimitação negativa e está sujeito aos limites gerais de exercício da ordem jurídica. Maior extensão não equivale a ilimitação.

O caráter unitário do direito de propriedade: o Direito Romano conheceu várias propriedades. No Direito Comum discutia-se se alguns dos ius in re aliena tinham a natureza de uma propriedade, nomeadamente, a partir da contraposição entre o domínio útil e o domínio direto. Ainda hoje é corrente falar-se numa propriedade superficiária e a propriedade horizontal vem mesmo, por vezes, descria como uma propriedade especial. No entanto, os Direitos modernos só conhecem uma propriedade, a qual reveste, assim, um caráter unitário, mesmo que relativamente a algumas coisas possam existir regimes especiais, justificados pelas particularidades do objeto (propriedade horizontal).

O tipo legal do direito de propriedade: o artigo 1305.º CC fixa o conteúdo da propriedade: o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem. Reconhece-se, aqui, o ius utendi, fruendi et abutendi do Direito Romano numa redação moderna inspirada no Código Civil italiano. Apesar da limitação desta fórmula de inspiração romana, o direito de propriedade atribui ao titular todos os poderes ou faculdades

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que à coisa se podem referir. O proprietário pode fazer qualquer aproveitamento da coisa que a lei não proíba, o que leva a considerar para a sua delimitação somente as restrições a esse aproveitamento (conteúdo negativo). Deste modo, a delimitação positiva do tipo de direito real propriedade não tem de ser feita através da enumeração concreta dos poderes de aproveitamento da coisa, uma vez que tudo o que seja aproveitamento não restringido legalmente cabe ao proprietário. Alguns autores duvidam da possibilidade de determinação dos poderes e faculdades contidos na propriedade, outros pura e simplesmente abdicam de o fazer e outros ainda distinguem uma atribuição global e uma atribuição individual de poderes. Em sentido diverso, julgamos não só possível essa determinação como útil do ponto de vista científico, embora despiciendo do ponto de vista da formulação normativa do tipo legal da propriedade, uma vez que todo o aproveitamento da coisa se integra no conteúdo do direito. Tivemos ocasião de expor anteriormente o conteúdo positivo do direito real e este conteúdo, na sua máxima extensão, representa o conteúdo da propriedade, como direito real maior. Em relação à propriedade consideramos:       

O poder de uso; O poder de fruição; O poder de transformação; O poder de reivindicação; O poder de excluir terceiros não autorizados do gozo da coisa; O poder de demarcação (de coisas imóveis); A faculdade de disposição, incluindo o poder para alienar, o poder para onerar e o poder para renunciar.

Estes poderes são conferidos pelo ordenamento ao proprietário. A possibilidade do seu exercício não surge, no entanto, igual em todas as coisas. A transformação da coisa através da construção de edifício, por exemplo, apenas se afigura possível na propriedade de prédios e não de coisas móveis. O objeto da propriedade pode influenciar, deste modo, o aproveitamento da coisa pelo proprietário. Em última análise, o conteúdo máximo da propriedade só poderá ser exercido relativamente a algumas coisas e não a todas. Ao conteúdo típica da propriedade pertencem também situações jurídicas passivas (conteúdo negativo). Estas delimitam a medida do aproveitamento da coisa concedido pelo conteúdo positivo do direito e, nessa medida, conformam a extensão do tipo legal da propriedade. Qualquer limitação convencional ao direito de propriedade encontra-se sujeita ao princípio da tipicidade, que vale naturalmente também para ele. Uma cláusula negocial que limite o uso da coisa pelo proprietário a um certo fim (habitação, por exemplo) ou que lhe coarte a possibilidade de construir (poder de transformação) dá azo a uma propriedade atípica, com um gozo limitado, em violação do disposto no artigo 1306.º, n.º1 CC. O mesmo vale para as cláusulas negociais que impõe deveres ou outras vinculações. Apenas a lei pode criar um conteúdo negativo (situações jurídicas passivas) para a propriedade. As restrições negociais da propriedade que tenham este alcance violam o princípio da tipicidade, como expressamente se dispõe no artigo 1306.º, n.º1 CC (não é permitida a constituição, com caráter real, de restrições ao direito de propriedade), e geram a nulidade do negócio jurídico em causa. Em todo o caso, havendo uma limitação convencional ao aproveitamento da coisa, importa distinguir consoante ela tem natureza real ou obrigacional. O princípio da tipicidade só é colocado em causa quando a convenção negocial respeita ao conteúdo típico (injuntivo) do direito, ou seja, dito, por outras palavras, quando altera este com eficácia real. Na verdade, no artigo 1306.º, n.º1 CC, só se dispõe haver violação da tipicidade legal relativamente às restrições com caráter real. O que deixa de fora as limitações ao

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão aproveitamento da coisa que tenham natureza meramente obrigacional. Assim, as partes estão impedidas de forjar uma propriedade com um poder de fruição ou de transformação limitado, em que, por exemplo, o proprietário não possa dar em locação ou efetuar uma construção, mas nada impede que o proprietário se obrigue a não dar a coisa em locação ou a não construir no imóvel. Tais vinculações do proprietário, constituindo meras obrigações, não redundam em qualquer violação da tipicidade legal e são, por conseguinte, juridicamente válidas. O proprietário continua a poder dar em locação ou a construir, e, por isso, o conteúdo típico (injuntivo) do direito não sofre nenhuma alteração, mas, se o fizer, sujeita-se ao regime do incumprimento obrigacional.

A propriedade temporária: o tipo legal do direito de propriedade, não delimitado temporalmente o direito, aponta para a perpetuidade. Ao longo dos séculos, muitos autores viram na propriedade um direito perpétuo. No entanto, a maior extensão da propriedade relativamente aos demais direitos reais não acarreta forçosamente a perpetuidade, nada impedindo que o direito real mais extenso tenha uma duração limitada. São aspetos distintos, que não contendem entre si. A propriedade continua a ser o direito de maior extensão, ainda que esteja submetida a um horizonte temporal de duração. Nesta ordem de ideias, o artigo 1307.º, n.º2 CC admite a propriedade temporária nos casos especialmente previstos na lei. Quer dizer, a propriedade pode ter uma duração limitada no tempo, a termo certou ou incerto, contando que essa possibilidade esteja legalmente prevista. A propriedade temporária não deve ser confundida com a propriedade resolúvel. A primeira existe a termo, seja certo ou incerto; a segunda respeita aos casos em que o facto translativo da propriedade vem a ser afetado na sua eficácia por uma incidência posterior, que pode ser tão diversa como o exercício do direito de resolução pelo vendedor na compra e venda a retro (artigo 927.º CC), a verificação da condição resolutiva em contrato translativo em que tal condição tenha sido convencionada (artigo 276.º CC), o regresso do ausente após ter sido declarada a morte presumida (artigo 119.º CC), o casamento do cônjuge beneficiário de doação ou testamento sem respeitar o prazo internupcial (artigo 1650.º, n.º1 CC), pelo divórcio, se o cônjuge donatário for considerado o único ou principal culpado (artigo 1760.º CC), etc. Entre os casos de propriedade temporária usualmente citados encontra-se a propriedade do fiduciário. Até à sua morte, o fiduciário teria uma propriedade temporária. A qualificação da situação do fiduciário como propriedade deixa-me, porém, muitas dúvidas. O conteúdo do direito do fiduciário (artigo 2290.º CC), despojado praticamente do poder de disposição (artigo 2291.º CC) e de transformação, assemelha-se mais a um usufruto do que a uma verdadeira propriedade. É como se a propriedade estivesse suspensa até à morte do fiduciário, garantindo-se a este um gozo atípico da coisa.

1. Oliveira Ascensão: argumenta que o artigo 409.º, n.º1 CC, permitindo ao alienante reservar para si a propriedade até ao pagamento do preço ou à verificação de qualquer outro evento, abre as portas à consagração pelas partes de uma propriedade temporária, pois a formulação do preceito abrangeria também o termo. 2. Admitindo que o evento a que se alude o artigo 409.º, n.º1 CC pode consistir num termo, o que não termos por absolutamente seguro, a hipótese de reserva de propriedade sujeita a termo não configura uma verdadeira propriedade temporária. 3. Henrique Mesquita: apresenta outro caso de propriedade temporária, a do proprietário do solo, no direito de superfície, quando este haja sido constituído por certo tempo e no respetivo título se preveja a reversão da propriedade para o superficiário, após o decurso do prazo convencionado. Temos, todavia, as maiores dúvidas sobre este exemplo, pois, tratando-se de uma propriedade temporária, teria de estar prevista

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão legalmente para pode ser pactuada sem violação da proibição direta do artigo 1307.º, n.º2 CC e, realmente, não está. O que se encontra previsto é a hipótese inversa, de reversão para o proprietário do solo (artigo 1538.º, n.º1 CC). 4. Como exemplo verdadeiro de propriedade temporária temos o direito de superfície constituído a termo. O proprietário de obra ou de plantação que esteja sobre solo alheio nos termos de um direito de superfície a termo reverterá para o proprietário do solo no final do prazo (artigo 1538.º, n.º1 CC). A propriedade do superficiário sobre a obra ou plantação é temporária porque tem a sua duração limitada à do direito de superfície. Outro exemplo possível é o do legatário a termo, se ele for admissível no Direito português. No Direito português, a perpetuidade não constitui uma nota distintiva do tipo legal da propriedade. No entanto, a propriedade a termo (temporária) só pode ser convencionada validamente pelos particulares quando a lei o preveja, o que sucede realmente em muito poucos casos. A convecção de uma propriedade temporária fora dos casos admitidos na lei representa uma violação direta de uma norma imperativa, o artigo 1307.º, n.º2 CC, e impõe a nulidade do negócio jurídico (artigo 280.º, n.º1 e 294.º CC). Uma eventual conversão na constituição de outro direito real (usufruto, por exemplo) ou de um direito de crédito depende do regime aplicável (artigo 293.º CC).

Secção II – Os factos constitutivos específicos da propriedade

Os factos aquisitivos específicos da propriedade: para além dos factos aquisitivos genéricos, existem factos jurídicos específicos da propriedade, factos constitutivos que só respeitam a este direito. São três os factos jurídicos específicos da propriedade:  A acessão;  A ocupação;  O achamento. Vamos, de seguida, analisar o regime jurídico e requisitos da figura.

Subsecção I – A acessão

A acessão. Noção legal e requisitos da figura: o Código Civil português prevê a acessão como facto aquisitivo do direito de propriedade (artigo 1317.º, alínea d) CC). A acessão vem depois definida no artigo 1325.º CC: dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que não lhe pertencia. Um conceito genérico de acessão era desconhecido do Direito Romano e apenas foi desenvolvido mais tarde pelos romanistas. As hipóteses que hoje são tratadas como de acessão pelo Direito português eram no Direito Romano a união, a mistura e a especificação.

1. No Direito Comparado encontramos uma flutuação acentuada nas soluções das principais ordens jurídicas. Assim,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. O Direito alemão não conhece a figura da acessão e trata unicamente da união (Verbindung) – da união de uma coisa móvel a um imóvel e da união entre coisas móveis, da mistura (Vermischung) e da especificação (Verarbeitung) – em consonância com a tradição romana. b. O Direito francês, em contraposição, consagrou uma noção muito ampla de acessão: a propriedade de uma coisa, seja móvel seja imóvel, confere direito sobre tudo o que ela produza e sobre o que se lhe haja unido acessoriamente, seja naturalmente seja artificialmente. O critério que está na base desta solução normativa é o de que a propriedade da coisa principal faz adquirir a propriedade da coisa acessória. Deste modo, os juros e os produtos derivados de uma coisa são adquiridos pelo proprietário do dinheiro ou da coisa por acessão. c. O Codice Civile italiano, diferentemente dos Códigos Civis alemão e francês, prevê na secção II do Capítulo III (Dei modi di acquisto della proprietà) quatro modos distintos de aquisição da propriedade: a acessão, a união, a mistura e a especificação. A acessão, diferenciada quer da especificação, quer da união e mistura, engloba apenas hipóteses de incorporação em imóvel. 2. O regime do Código Civil português não coincide com nenhuma destas abordagens. Não menciona a união e a mistura como factos aquisitivos da propriedade, como faz o Direito alemão, englobando-as, no entanto, a par da especificação, no conceito de acessão (artigos 1333.º, 1334.º e 1335.º CC), diferentemente do Direito italiano, que distingue a acessão da união, da mistura e da especificação; por outro lado, reserva para a acessão um campo de aplicação bem menor daquele que surge no Direito francês, pois, apesar de dispor que pertence ao dono da coisa o que a esta acrescer por efeito da natureza (artigo 1327.º CC), não coloca a aquisição de frutos, naturais e civis, e de produtos gerados pela coisa no âmbito da acessão, mas sim do poder de fruição. A acessão pressupõe, em regra, a verificação cumulativa de dois requisitos, um expresso no artigo 1325 CC, o outro apenas implícito: a. A união ou mistura (confusão) de duas (ou mais) coisas: este primeiro requisito constitui o fundamento fático da acessão. Por virtude de uma qualquer causa, que poder ser natural ou provir da ação do homem, intencional ou causal, duas (ou mais) coisas combinam-se ou fundem-se uma na outra. O fenómeno é de ordem material ou física (orgânica, química, etc.). Duas (ou mais) coisas que existiam material ou fisicamente de modo autónomo, sendo valoradas pelo Direito como tal, surgem, por força de um facto, natural ou humano, combinadas ou fundidas uma na outra. Este requisito vem expressamente referido no artigo 1325.º CC, no qual se menciona a união: quando com a coisa que é propriedade de alguém se une … outra coisa … Existe alguma variação terminológica na lei portuguesa. Assim, o termo união vem usado para designar uma parte dos casos de acessão industrial mobiliária (artigos 1333.º, 1334.º e 1335.º, n.º1 CC), mas não todos. Para os outros, fala-se de confusão, distinguindo-o da união, em três preceitos distintos do regime da acessão industrial mobiliária (artigos 1333.º, 1334.º e 1335.º CC). Preferimos falar em mistura (commixtio) em vez de confusão (confusio), para não criar equívocos entre esta forma de aquisição do direito de propriedade e o facto extintivo de direitos reais menores que se designa igualmente por confusão. A mistura ocorre com a combinação de sólidos (as fontes romanas referem os exemplos dos cerais e do dinheiro), de líquidos (incluindo metais fundidos) e também de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão gases, embora apenas envolva coisas móveis. A autonomização da mistura defronte da união reside, ao que parece, no facto de nesta última haver uma combinação entre dias (ou mais) coisas que são ainda reconhecíveis apesar de integrarem um novo conjunto, enquanto na primeira ocorre uma verdadeira fusão, geradora da impossibilidade de divisar qualquer das coisas misturadas. Seja como for, a acessão tem lugar quer com a união quer com a mistura, sem que o Direito português diferencie o regime de ambas, como se pode atentar dos artigos 1333.º, 1334.º e 1335.º CC. A lei portuguesa não utiliza o termo união para indicar o requisito material da acessão nas várias hipóteses de acessão industrial imobiliária (artigos 1339.º a 1343.º CC), sendo certo que também nestes casos a acessão supõe uma combinação – material – de duas (ou mais) coisas, uma delas imóvel. O legislador português preferiu falar em incorporação no tocante aos imóveis (artigos 1325.º, 1340.º, n.º1, 2, 3 e 4, e 1342.º, n.º1 e 2 CC), alargando a terminologia envolvida nas hipóteses de acessão. Pensamos, todavia, que não se justifica falar-se em união e em incorporação consoante estejam em causa coisas móveis (união) e coisas imóveis (incorporação). Em ambos os casos, a acessão supõe que duas (ou mais) coisas fiquem materialmente ligadas entre si e o termo união é perfeitamente adequado para ambas as hipóteses. Usá-la-emos, assim, quer para referir o pressuposto material da acessão industrial mobiliária (com exceção dos casos de mistura), quer o da acessão industrial imobiliária. Por último, esclarecemos que a união não é requerida em todas as hipóteses de acessão. Não o é, nomeadamente, na hipótese de avulsão (artigo 1329.º CC), nas quais a lei portuguesa se parece bastar com um mero contacto material gerado pelo arranque ou deslocação de plantas, de solo ou de qualquer outra coisa de um prédio para outro, por força da ação violenta de um elemento da natureza (água, vento ou outro). Se o proprietário da coisa arrastada para outro prédio não a reclamar ao dono deste no prazo de seis meses, este último adquire o direito de propriedade sobre ela. Também os casos de acessão natural subsumíveis no artigo 1327.º CC, não requerem qualquer união entre duas coisas. Assim, a água da chuva que cai num prédio é propriedade do dono deste, haja caído numa porção de solo ou numa parte construída. b. A inseparabilidade da coisa resultante da união ou mistura de duas (ou mais) cousas autónomas: este segundo requisito de acessão natural é a inseparabilidade da coisa resultante da união ou mistura de duas (ou mais) coisas autónomas. Já no Direito Romano se estabelecia que se a união para formar uma coisa composta permitia que subsistisse a propriedade anterior, cada proprietário podia exigir a separação de quem possuísse a coisa inteira e, a seguir, reivindica-la. Se duas (ou mais) coisas se ligam entre si por um qualquer facto, mantendo-se, no entanto, a possibilidade da sua separação, a acessão não se dá e qualquer dos proprietários pode exigir a separação e reivindicar a sua coisa de quem a tiver em seu poder. Deste modo, se a união ou mistura de duas (ou mais) coisas é precária, não definitiva, e elas podem voltar à sua primitiva forma com um ato de separação, a autonomia jurídica das coisas mantém-se e não há que suscitar a aplicação do regime jurídico da acessão. No Codice Civile italiano dispõe-se que quando várias coisas pertencentes a diversos proprietários foram unidas ou combinadas de modo a formarem um todo, mas são separáveis sem deterioração considerável, cada um conserva a 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propriedade sobre a sua coisa e tem direito a obter a separação. A inseparabilidade não vem mencionada como requisito da acessão na noção legal, constante do artigo 1325.º CC. No entanto, dispõe-se explicitamente no artigo 1333.º, n.º1 CC que a separação deles – o preceito refere-se à união ou confusão de objetos – não seja possível. E nos artigos 1334.º e 1335.º CC supõem-se implicitamente uma inseparabilidade, ou melhor, que a separação não seja possível sem detrimento de alguma das coisas. Apesar de uma menção à inseparabilidade surgir apenas no contexto da acessão industrial mobiliária, nem por isso este requisito deixa de valer para todas as hipóteses de acessão. Com efeito, a incorporação aludida nos artigos 1325.º, 1340.º e 1342.º CC repousa numa ligação material duradoura, definitiva, que não uma mera justaposição de coisas, ou seja, que uma dada coisa se haja combinado com uma coisa imóvel e faça com esta um novo conjunto (inseparabilidade). A inseparabilidade de que falamos como requisito da acessão não deve ser entendida em sentido material. De certo modo, com as tecnologias modernas, quase todas as coisas são separáveis. De inseparabilidade fala-se, porém, num sentido normativo. Este sentido transparece, com clareza, dos artigos 133.º, n.º, 1334.º, n.º1 e 2 e 1335.º, n.º1 CC, que evidenciam que existe inseparabilidade, não apenas se a separação das coisas não for – materialmente – possível, mas também quando qualquer das coisas unidas ou misturadas não puder separarse daquela com que foi unida ou misturada sem sofrer prejuízo, isto é, sem se perder ou deteriorar. O critério normativo assenta, pois, na possibilidade de as coisas, ambas ou uma delas, poderem voltar à sua primitiva forma sem sofrerem dano irreparável. Se houver detrimento de uma das coisas, mesmo havendo possibilidade técnica de separação, há inseparabilidade para efeitos de acessão. Quer dizer, mesmo que materialmente as coisas unidas ou combinadas possam ser separadas, há inseparabilidade quando pelo menos uma das coisas unidas ou misturadas não puder ser separada da outra sem implicar a sua perda (destruição) ou deterioração irremediável. Inseparabilidade significa, pois, que não basta um mero contacto material, uma justaposição de coisas, para que haja lugar à aplicação do regime da acessão. Somente quando as coisas adjuntas ou misturadas perdem a sua autonomia como coisas para se integrarem numa nova coisa (simples) se pode falar de acessão. Não havendo inseparabilidade, qualquer dos proprietários das coisas justapostas pode reclamar a separação e a entrega (reivindicação) a quem a tenha em seu poder. Como decorre do que dissemos, a coisa que resulta da união ou mistura de duas (ou mais) coisas é sempre uma coisa simples, mesmo atendendo a que pode incorporar uma outra anteriormente autónoma do ponto de vista jurídico. No Direito Romano a acessão envolvia apenas coisas que estivessem entre si numa relação de coisa principal e coisa acessória, entendendo-se por acessória aquela que estivesse ao serviço ou ornamentação de uma outra (principal) ou que a completasse. O Direito português não faz depender a acessão da existência de uma relação de acessoriedade de uma das coisas unidas ou misturadas em relação à outra. Assim, se duas coisas se completam, sem se divisar qual delas é a principal ou não havendo mesmo uma coisa principal e outra acessória, a sua união inseparável determina a aplicação do regime da acessão. De resto, o Código Civil prevê mais do que uma hipótese em que as coisas unidas ou misturadas têm igual valor (artigos 1333.º, n.º2, 1335.º, n.º3 e 1340.º, n.º2 CC), o que significa que admite a aplicação do regime da acessão não havendo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão qualquer acessoriedade de uma das coisas relativamente à outra. Assim, a acessoriedade de uma coisa em relação à outra (principal) não constitui requisito da acessão no Direito português.

O âmbito da acessão. Delimitação negativa: nem todas as situações de união ou mistura de coisas pertencentes a proprietários diferentes desencadeiam a aplicação do regime jurídico da acessão. As partes podem, com fundamento no princípio da autonomia privada, regular negocialmente a união ou mistura de coisas que lhes pertencem, de forma que a situação fique sujeita às regras do negócio jurídico em questão e não às regras da acessão. Podemos, assim, afirmar que o regime da acessão não tem aplicação sempre que a disciplina do negócio jurídico celebrado entre as partes regule a união ou mistura de coisas pertencentes a elas. A regulação do negócio jurídico afasta, assim, o regime da acessão. Podemos, assim, afirmar que o regime da acessão não tem aplicação sempre que a disciplina do negócio jurídico celebrado entre as partes regule a união ou mistura de coisas pertencentes a elas. A regulação própria do negócio jurídico afasta, assim, o regime da acessão. Não é só a submissão da situação ao regime do negócio jurídico celebrado que pode determinar a não aplicação das regras da acessão em casos em que ocorre a verificação dos requisitos desta. Também o regime próprio de um direito ou o facto de a lei determinar simplesmente a aplicação de outra disciplina normativa pode arredar o funcionamento da acessão. A constituição de um direito de superfície (artigo 1524.º e seguintes CC) é o exemplo mais elucidativo de uma situação não sujeita a um regime negocial e em que o regime da acessão não recebe aplicação. O direito de superfície permite que o superficiário faça ou mantenha obra ou plantação em terreno alheio, sem que o proprietário do solo possa reclamar a acessão para adquirir a obra ou a plantação enquanto o direito durar. Quando se extingue a superfície pelo decurso do prazo, a lei determina que o implante seja adquirido automaticamente pelo proprietário do solo (artigo 1538.º, n.º1 CC), não havendo aplicação do regime da acessão. Há, por outro lado, um grupo de casos em que titulares de direitos, reais ou de crédito, têm o poder de atuar materialmente sobre uma coisa corpórea alheia, podendo resultar do exercício desse poder a união de coisas pertencentes a proprietários distintos, e que a lei portuguesa não submete às regras da acessão, mas sim ao regime das benfeitorias (artigos 1273.º a 1275.º CC). Dentro deste grupo de casos, encontramos o possuidor (artigos 1273.º a 1275.º CC), o comproprietário (artigo 1411.º CC), o usufrutuário (artigo 1450.º CC), o usuário e morador usuário (artigo 1450.º ex vi do artigo 1490.º CC), o locatário (artigo 1046.º, n.º1 CC) e o comodatário (artigo 1138.º, n.º1 CC). Conforme decorre do exposto, o regime da acessão só se aplica à hipótese de união ou mistura de coisas pertencentes a proprietários diferentes quando não haja um outro regime que regule especificamente a situação. Uma união de coisas realizada por uma das partes de um contrato cujas regras a regulam ou por um possuidor não é regulada pelas regras da acessão. Isto mostra que o regime da acessão tem caráter subsidiário, mesmo se isso não surge explicitado pela lei. Discordamos, assim, daqueles que veem na acessão o regime regra para os casos em que ocorrem uma união ou incorporação de coisas de diferentes proprietários. A amplitude dos casos abrangidos pelo regime jurídico das benfeitorias não confirma este ponto de vista. A acessão só opera quando a união ou mistura de coisas propriedade de diferentes donos não seja regulada por outro regime específico.

Acessão e benfeitorias: o Direito português apresenta uma dificuldade substancial de distinção entre acessão e benfeitoria. Na verdade, e conforme explicámos anteriormente, as benfeitorias podem consistir num melhoramento quê se traduz na união ou mistura de uma ou mais coisas noutra coisa (a coisa beneficiária). Coloca-se, então, o problema de saber que regime jurídico se aplica, o das benfeitorias (artigos 1273.º a 1275.º CC) ou o regime jurídico da acessão,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão mobiliária ou imobiliária? O problema agrava-se pelo facto de o regime das benfeitorias pressupõe uma posse. Ora, dificilmente os caso de acessão têm lugar sem que o autor da união ou mistura seja um possuidor, pois, na grande maioria das vezes, sem o controlo material da coisa a união ou mistura não seria possível. Como consequência disto, assiste-se a um esvaziamento considerável do âmbito de aplicação da acessão, a qual ficaria limitada aos casos em que não existe posse ou o agente da união ou mistura tem uma simples detenção (sem posse nos termos de qualquer direito). Defronte do cenário de dificuldade, a doutrina ensaiou vários critérios de classificação entre benfeitorias e acessão.

1. A tentativa mais antiga é a de Manuel Rodrigues. Este professor distinguia os atos de acessão das benfeitorias fazendo notar que os primeiros, determinando a alteração do objeto da posse, inovam. A esta doutrina aderiria Manuel de Andrade. A doutrina exposta, elaborada no Código Civil de Seabra, não deixaria de ter eco na jurisprudência do Código Civil de 1966, continuando surpreendentemente a influenciar acórdãos relativamente recentes do Supremo Tribunal de Justiça. 2. Em Pires de Lima/Antunes Varela deparamos com outa teoria: a benfeitoria e a acessão, embora objetivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. Como sempre, a doutrina de Pires de Lima/Antunes Varela marcaria o passo da jurisprudência dos tribunais superiores, tornando-se rapidamente na jurisprudência dominante, até hoje. 3. Menezes Cordeiro, com a prevenção de que se trata de harmonizar o inarmonizável, sugere três critérios interpretativos: a. A regra geral é a acessão; b. A regra especial é a aplicação do regime das benfeitorias, quando a lei o determine; c. Havendo mera posse, a solução deve ser ponderada à luz de cada caso concreto que surja. 4. Prescrutando o regime jurídico, verificamos que a lei remete diversas vezes para o regime das benfeitorias quando alguém atua sobre uma coisa no âmbito de uma relação jurídica, real ou obrigacional. Isso sucede no regime da locação (artigo 1046.º, 1074.º, n.º5 CC), no comodato (artigo 1138.º CC), na compropriedade (artigo 1411.º CC), no usufruto (artigo 1450.º CC), no uso e habitação (artigo 1490.º CC), na colação (artigo 2115.º CC), na redução de liberalidades inoficiosas (artigo 2177.º CC) e nos legados (artigo 2269.º CC). Podemos, assim, afirmar com Pires de Lima/Antunes Varela, que sempre que existe uma relação jurídica que legitime alguém a atuar sobre uma coisa e ocorre uma união ou mistura que pode ser qualificada como benfeitoria se aplica sempre o regime jurídico destas (artigos 1273.º a 1275.º CC)? Não vamos tão longe. Em nossa opinião, fora dos casos em que a lei preveja a aplicação do regime das benfeitorias, toda a união ou mistura de coisas pertencentes a proprietários diversos está sujeita ao regime da acessão, mesmo que o agente da incorporação seja possuidor. O que leva realmente a uma restrição do alcance literal dos artigos 1273.º a 1275.º CC, mas que salvaguarda um campo útil de aplicação ao regime da acessão, que de outro modo ficaria confinado aos casos, muito raros, em que a união ou mistura se efetua por alguém que não é possuidor. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Classificações de acessão: a principal classificação legal de acessão, que orienta a exposição do sistemática da matéria, distingue esta em (artigo 1326.º, n.º1 CC):

1. Natural: se a união ou mistura de coisas resulta de um facto da natureza, nomeadamente, do vento ou da água

2. Industrial: se, diversamente, ela surge de uma ação humana. A aceção industrial, por sua vez, é (artigo 1326.º CC). a. Mobiliária: quando a união ou mistura se processa exclusivamente entre coisas móveis; b. Imobiliária: sempre que a união envolva uma coisa imóvel. A classificação da acessão industrial em mobiliária e imobiliária conduz a uma subsequente repartição sistemática da matéria, a primeira na subsecção III e a segunda na subsecção IV do Capítulo II do Título II, embora a lei portuguesa não siga uma linha clara de demarcação. E dizemos isto, porquanto a secção dedicada à acessão industrial mobiliária não contém somente o regime desta, mas inclui ainda a disciplina da especificação (artigos 1336.º a 1338.º CC), a qual, embora historicamente tratada a propósito da acessão, constitui um diferente facto aquisitivo da propriedade. A subsecção II do Capítulo II do Título II do Livro do Direito das Coisas, dedicado à aquisição da propriedade, versa sobre a acessão natural (artigos 1327.º a 1332.º CC), enquanto as secções III e IV regulam a acessão industrial. Outra classificação menos importante, que aflora no artigo 1335.º CC, cuja epígrafe é confusão causal, e vale unicamente para a acessão industrial mobiliária, distingue a acessão:

3. Intencional: quando a união ou mistura de coisas móveis pertencentes a donos diferentes seja o resultado de uma ação humana a ela dirigida; 4. Causal: quando for o resultado fortuito de uma ação humana com outro fim. Outras modalidades de acessão surgem referidas na doutrina. Assim, fala-se em:

5. Acessão vertical: para significar a aquisição de propriedade sobre obras construídas sobre o solo; e 6. Acessão lateral: em hipóteses em que se procede à delimitação de imóveis objeto de factos naturais. 7. Acessão invertida: pretende-se significar a hipótese em que o direito à acessão é atribuído ao construtor de obra em detrimento do proprietário do solo e do princípio superficies solo cedit.

Acessão e boa fé: o regime da acessão diverge consoante o autor da união ou mistura aja de boa ou de má fé. Assim, a união ou mistura de coisas móveis fica sujeita ao regime do artigo 1333.º CC ou ao regime do artigo 1334.º CC, consoante o autor da união ou mistura tenha agido de boa fé ou de má fé. Também o regime da acessão industrial imobiliária depende em larga medida da avaliação deste aspeto da conduta do autor da união ou mistura. Na hipótese mais importante, a da realização de sementeira, plantação ou obra em terreno alheio, a aplicação do artigo 1340.º ou do 1341.º CC decide-se em função da existência de boa fé (artigo 1340.º CC) ou de má fé (artigo 1341.º CC); e também nos artigos 1342.º e 1343.º CC a disciplina normativa consagrada se apoia neste juízo de conduta do agente. A lei portuguesa apenas estabelece o que se deve entender por boa fé no contexto da acessão industrial imobiliária, concretamente, no artigo 1340.º, n.º4 CC:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão «entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno». Aparentemente, estaríamos defronte de uma conceção subjetiva psicológica de boa fé, corporizada na ideia de ignorância que o terreno era alheio ou numa autorização do dono do terreno. Se descontarmos agora a sub-hipótese de uma autorização do dono do terreno, bastaria a mera ignorância do agente quanto à existência de um direito alheio sobre a coisa unida ou misturada para que se devesse considerar estar o mesmo de boa fé. Nesta ordem de ideias, o regime da acessão seria igual ao da posse (artigo 1260.º, n.º1 CC). Os argumentos a favor de uma conceção de boa fé ética no regime da acessão foram por nós expressados aquando do problema paralelo em matéria de posse. A conceção psicológica de boa fé não corresponde hoje às exigências do tráfico jurídico. As pessoas não podem ficar à mercê da inércia e da ignorância dos outros no conhecimento dos seus direitos, sujeitando-se aos desígnios da conduta daqueles que justamente não revelam qualquer iniciativa para os respeitar. A boa fé subjetiva exprime um juízo valorativo da ordem jurídica sobre a conduta do agente e não é compatível com o desleixo e incúria deste no conhecimento das posições jurídicas dos outros. Por isso, o desconhecimento a que se alude no artigo 1340.º, n.º4 CC não é a simples ignorância do direito de alguém sobre uma coisa, é o desconhecimento desculpável desse direito. No artigo 1340.º, n.º4 CC consagra-se uma conceção ética de boa fé no domínio da acessão industrial. Esta conceção subjetiva ética vale tanto para a acessão industrial imobiliária, como para a acessão industrial mobiliária.

Acessão natural. Regime: o artigo 1327.º CC dispõe que pertence ao dono da coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza. Este preceito dificilmente se articula com o restante regime da acessão, que requer uma união ou mistura de coisas, parecendo inspirado na velha orientação romana que englobava debaixo do termo accedere ou accessio tudo aquilo que podia importar um acréscimo, um aumento, de uma coisa. Já vimos, porém, que o Direito português rejeitou a orientação do Code Civil francês de considerar incluído no conceito de acessão os frutos (incluindo as crias dos animais) e produtos gerados por uma coisa. Aquilo que é gerado pelo poder reprodutivo da coisa (ou do animal) ou é gerado por ela (produtos), por força de reações químicas, orgânicas ou outras, não gera nenhuma aquisição de propriedade por acessão. Dentro da orientação seguida em matéria de acessão pelo Código Civil português, e que o artigo 1325.º CC ilustra, o artigo 1327.º CC apenas pode ser entendido como referência aos casos em que, por um facto da natureza, uma coisa se vem juntar a outra. Parece, todavia, que não se requer uma união ou mistura, bastando a mera junção ou contacto das duas (ou mais) coisas. Por outro lado, o artigo 1327.º CC só se aplica a coisas nulius. O confronto com o regime da avulsão (artigo 1329.º CC) evidencia bem que a aquisição da propriedade sobre a coisa acrescida supõe que sobre ela não recaia um direito de propriedade de alguém.

Acessão industrial mobiliária: o regime da acessão industrial mobiliária contém, a par do regime da acessão propriamente dita, a disciplina dos casos de especificação (artigos 1336.º a 1338.º CC). Porquanto esta constitui um facto aquisitivo da propriedade que é distinto da acessão, não o consideraremos nesta sede. O regime português da acessão industrial mobiliária distingue três hipóteses:  A união ou mistura (confusão) feita de boa fé (artigo 1333.º CC);  A união ou mistura (confusão) feita de má fé (artigo 1334.º CC);  A união ou mistura (confusão) casual (artigo 1335.º CC).

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Este regime revela, na verdade, dois critérios distintos:

1. A união ou confusão de coisas móveis pode ser o resultado de uma ação humana dirigida a ela ou não o ser: o primeiro critério leva, assim, a separar o âmbito de aplicação dos artigos 1333.º e 1334.º CC relativamente ao artigo 1335.º CC:. Neste último caso, aplica-se o artigo 1335.º CC. Este preceito é ainda aplicável quando o autor da união ou mistura é um terceiro, o que não acontece em nenhuma das hipóteses de acessão previstas nos artigos 1333.º e 1334.º CC; 2. Sendo a união ou confusão o produto de uma ação humana que a teve como propósito, há que ajuizar se ela foi levada a cabo de boa ou de má fé pelo seu autor: este segundo critério determina a aplicação do artigo 1333.º CC ou do artigo 1334.º CC.

União ou mistura de boa fé: a união ou mistura de coisas móveis feita de boa fé tem o seu tratamento no artigo 1333.º CC. Quando alguém de boa fé une ou mistura de modo inseparável duas (ou mais) coisas móveis o direito intervém, atribuindo a um dos proprietários das coisas unidas ou misturadas a propriedade sobre o novo conjunto. O critério básico para determinar qual dos proprietários fica dono da nova coisa é o do valor. Tem direito à acessão o proprietário da coisa unida ou misturada de maior valor (artigo 1331.º, n.º1 CC). Em todo o caso, a lei portuguesa não impõe ao proprietário da coisa de maior valor que fique com a coisa adjunta se não houver sido ele o autor da união ou mistura. O titular do direito à acessão pode renunciar ao direito, optando por ser indemnizado pelo valor da sua coisa, quando não tenha sido ele a causar a união ou mistura (artigo 1331.º, n.º4 CC). Neste caso, o autor da união ou da mistura adquire a propriedade da nova coisa, ficando obrigado a indemnizar o outro proprietário do valor da coisa que este perdeu. Pode acontecer que as coisas unidas ou misturadas tenham o mesmo valor. Nesse caso, a lei deixa à autonomia dos proprietários a decisão sobre a qual deles ficará a pertencer a coisa adjunta (artigo 1333.º, n.º2, 1.ª parte CC). Na falta de acordo, poderse-á abrir licitação, se os proprietários assim o quiserem. O direito de propriedade sobre a nova coisa caberá ao proprietário que oferecer mais, devendo o adjudicatário pagar ao proprietário preterido o valor da coisa que adquiriu (artigo 1333.º, n.º2 CC). Não havendo acordo entre os proprietários sobre qual deles ficará com a coisa adjunta, e tendo eles recusado a licitação, proceder-se-á à venda da coisa, recebendo cada proprietário metade do valor do preço. De qualquer modo, ressalvado fica sempre o direito do proprietário da coisa unida ou misturada que não causou a união ou mistura exigir o pagamento de indemnização ao autor dela (artigo 1333.º, n.º4 CC). Neste caso, a lei sujeita este último a ficar com a coisa adjunta e obriga-o ao pagamento da indemnização respetiva.

União ou mistura de má fé: o artigo 1334.º, n.º1 CC regula uma hipótese que não é de acessão. Havendo separabilidade das coisas sem detrimento de qualquer delas, o proprietário pode reivindicar a sua coisa, e se não houver sido o autor da junção tem direito a ser indemnizado, nos termos gerais de direito (artigo 1334.º, n.º1 CC). Esta norma vale, de resto, tanto nos casos de junção de má fé, como de boa fé. Quando não há inseparabilidade, as coisas juntas mantêm a sua autonomia jurídica e podem ser objeto de reivindicação pelo proprietário respetivo. Havendo, além do mais, uma violação do direito de propriedade daquele cuja coisa é envolvida em combinação com outra, o agente é responsável pelos danos que causar ao proprietário (artigo 483.º, n.º1 CC). Uma hipótese de acessão verdadeira consta do n.º2 do artigo 1334.º CC. Se alguém de má fé unir ou misturar coisa sua com coisa alheia, o dono desta última tem um direito em alternativa: beneficiar da acessão, pagando ao autor da união ou mistura uma indemnização calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa, ou exigir deste o pagamento do valor da sua coisa, acrescido de indemnização a que eventualmente haja lugar 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pela violação do direito de propriedade (artigo 1334.º, n.º2 CC). Neste caso, será o autor da união ou mistura a beneficiar da acessão, mas terá de pagar a coisa unida ou misturada ao seu proprietário e indemniza-lo do prejuízo causado, nos termos gerais de Direito.

A união ou mistura (confusão) natural: dissemos antes que consideramos haver união ou mistura causal quando esta, resultando embora de uma ação humana, não tem por propósito combinar duas (ou mais) coisas. Seguindo esta ideia, estamos ainda no contexto da acessão industrial. O regime da união ou mistura causal é o mesmo da acessão industrial mobiliária feita de boa fé, com a única exceção de o direito atribuído ao proprietário da coisa adjunta que não causou a união ou mistura de ser indemnizado, previsto no n.º4 do artigo 1333.º CC, não ter sido consagrado nesta sede. Remetemos, pois, para o que dissemos quanto a esse regime. A nosso ver, o artigo 1335.º CC abrange igualmente os casos em que o autor da união ou mistura não é um dos proprietários das coisas unidas ou misturadas, mas um terceiro. A hipótese tem paralelo com a que se encontra subjacente ao artigo 1342.º CC em sede de acessão industrial imobiliária, só que respeita unicamente a coisas móveis. A dispensa do juízo valorativo correspondente à boa fé ou má fé é elucidativa do facto de a lei portuguesa ter principalmente em vista no artigo 1335.º CC a atuação de um terceiro, portanto, de quem não vai beneficiar da acessão e, portanto, relativamente a quem a ponderação deste vetor do comportamento não é necessário. A excluir-se a acessão por terceiro do disposto no artigo 1335.º CC terá de se reconhecer a existência de uma lacuna legal, o que, a nosso ver, conduzirá ao mesmo resultado prático, a analogia com aquele preceito. Chegados a este ponto, estamos em condições de construir o âmbito de aplicação do artigo 1335.º CC. Talhado aparentemente para as hipóteses em que a união ou mistura é feita sem esse propósito por um dos proprietários das coisas em presença, este preceito inclui também os casos em que a união ou mistura deriva de um facto de terceiro, intencional ou não.

A acessão industrial imobiliária: a acessão industrial imobiliária contempla os casos que o Direito Romano abordava nas situações denominadas de inaedificatio, satio e plantatio e que os jusnaturalistas chamaram depois acessão de móveis a imóveis, tendo o Direito português contemplado igualmente o prolongamento do edifício por terreno alheio (artigo 1343.º CC), que é estranho às fontes romanas. A arrumação da matéria no Código Civil português é feita a partir de quatro hipóteses:

1. Obras, sementeiras e plantações em solo próprio com materiais alheios (artigo 1339.º CC): no artigo 1339.º CC a situação versada é a do proprietário de terreno que faz obra, plantação ou sementeira com materiais, plantas ou sementes de terceiro sem o consentimento deste. Havendo inseparabilidade, no sentido que atrás expusemos, o proprietário do terreno beneficia da acessão, estando obrigado a pagar o valor das coisas que utilizou ao seu proprietário, bem como, sendo o caso, a indemnizar os prejuízos que haja causado. O artigo 1339.º CC não contém nenhuma menção à boa fé ou à má fé do autor da união, como sucede em todos os outros preceitos relativos à acessão industrial imobiliária. O princípio superficies solo cedit vale aqui em toda a sua plenitude. O proprietário do solo adquire sempre a propriedade das coisas que incorpora no solo, esteja de boa ou de má fé. Ao proprietário das coisas unidas ao solo não é dado nunca o direito de acessão. A ele cabe unicamente o direito a ser pago do valor das coisas que perdeu, e a ser indemnizado, se for o caso, nos termos gerais de Direito, pela violação do direito de propriedade sobre aquelas. 2. Obras, sementeiras e plantações feitas em terreno alheio, distinguindo-se a boa ou a má fé do autor da união (artigos 1340.º e 1341.º CC): o paradigma da acessão industrial 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão imobiliária é o da construção de obra, plantação ou sementeira, em terreno alheio. O Código Civil distingue, no entanto, consoante o autor da união estava de boa fé ou de má fé. a. Se a união houver sido feita de boa fé, o direito à acessão é feito depender do valor que a obra, sementeira ou plantação tiver trazido à totalidade do prédio. Caso a valorização trazida pelo implante material ou vegetal ao prédio for maior do que o valor que ele tinha antes da união, o direito à acessão pertence ao autor desta, em detrimento do proprietário do prédio (artigo 1340.º, n.º1 CC). Note-se, que não é qualquer aumento de valor que determina a atribuição do direito à acessão do autor do implante. Apenas se o valor trazido ao prédio exceder o valor que este tinha no momento da incorporação a acessão cabe ao autor da união. O artigo 1340.º, n.º1 CC contém uma significativa derrogação ao princípio superficies solo cedit. Este princípio, que significa que tudo aquilo que se constrói, planta ou semeia sobre o solo (ou subsolo) do prédio fica a pertencer ao proprietário deste, era regra absoluta no Direito Romano e ainda hoje rege as soluções legais das principais ordens jurídicas europeias, mas, na sua plenitude, foi abandonado pelo Direito português. Quando o implante não traz ao prédio uma valorização superior ao valor que ele tinha antes da união, o direito de acessão é atribuído ao proprietário do prédio (artigo 1340.º, n.º3 CC). A lei portuguesa volta aqui ao princípio superficies solo cedit. No caso de a obra, sementeira ou plantação acrescentar ao prédio o valor exato que este tinha antes dela ocorrer, o artigo 1340.º, n.º2 CC determina que haja licitação entre os proprietários, remetendo para o disposto no artigo 1333.º, n.º2 CC quanto à forma dessa licitação. O prédio com o implante será adjudicado àquele que oferecer mais pelo conjunto, devendo o proprietário preterido receber a indemnização que no caso lhe couber. Essa indemnização consistirá no valor do prédio ao tempo da obra, sementeira ou plantação, se for o autor do implante a beneficiar da acessão, ou no valor da obra, sementeira ou plantação ao tempo da união, se for o proprietário do prédio o beneficiário, como decorre do n.º1 e do n.º3 do artigo 1340.º CC, respetivamente. b. Se a construção, a sementeira ou a plantação houver sido feita de má fé, o artigo 1341.º CC dá um direito em alternativa ao proprietário do prédio: a reconstituição da situação existente no prédio antes da união ou a acessão. No primeiro caso, o proprietário do prédio pode destruir o implante realizado, recaindo sobre o autor da união o dever de suportar o custo de reposição da situação anterior, assim como a indemnização dos danos eventualmente sofridos pelo proprietário, nos termos gerais de direito. No artigo 1341.º CC, o regime da acessão obedece somente ao princípio superficies solo cedit. Apenas o proprietário do prédio pode adquirir a propriedade do implante, não o autor da união. No confronto com o artigo 1340.º CC, afigura-se claro que a lei portuguesa sanciona o autor da união em razão da sua má fé, impedindo-o de beneficiar de uma atuação que o agente sabia ou devia saber ser contrária ao Direito. Exercendo o direito de acessão, o proprietário do prédio deve indemnizar o autor da união. A indemnização segue, porém, o regime do enriquecimento sem causa (artigo 1341.º, in fine CC). 3. Obras, sementeiras e plantações feitas com materiais alheios em terreno alheio (artigo 1342.º CC): o artigo 1342.º CC trata de uma hipótese de união de obra,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão sementeira ou plantação levada a cabo por terceiro em prédio que não lhe pertence e com materiais, sementes ou plantas de outro proprietário. Não sendo proprietário dos materiais, sementes ou plantas, nem do prédio onde o implante vem realizado, o autor da união não beneficia da acessão. Em contrapartida, esse direito pertence ao dono do prédio ou ao proprietário dos materiais, sementes ou plantas, de acordo com o estabelecido no artigo 1340.º, n.º1 e 3 CC, se este último não tiver culpa na atuação do autor da união (artigo 1342.º, n.º1 e n.º2, 1.ª parte CC). Esta regra aplica-se, independentemente do autor da união estar de boa fé ou de má fé. Havendo culpa do proprietário dos materiais, sementes ou plantas na união destes com o prédio, tem lugar a aplicação do preceituado no artigo 1341.º CC, mesmo que o autor da união esteja de boa fé. Se estiver de má fé, a responsabilidade prevista no artigo 1341.º CC para o autor de incorporação é solidária entre este e o proprietário dos materiais, sementes ou plantas, cabendo-lhes a indemnização por enriquecimento sem causa a que alude a parte final daquele preceito na proporção entre o valor da mão de obra e o valor dos materiais, sementes ou plantas (artigo 1342.º, n.º2, in fine CC). 4. Prolongamento de edifício por terreno alheio (artigo 1343.º CC): O artigo 1343.º CC contempla uma situação de acessão que não deriva historicamente do Direito Romano ou do Direito intermédio, mas que surge modernamente no Direito italiano, por exemplo. É outro caso em que o legislador português deixou para trás o princípio superficies solo cedit, para possibilitar pragmaticamente o aproveitamento de uma construção feita, parcialmente, em prédio alheio. O artigo 1343.º, n.º1 CC permite àquele que construiu parte de edifício em terreno alheio adquirir a parcela de terreno ocupada pela construção. O preceito estabelece três requisitos para o efeito:  A boa fé do autor da construção;  O decurso de três meses sem a oposição do proprietário do terreno ocupado;  O pagamento de indemnização pelo valor do terreno e por outros danos causados ao proprietário e aos outros titulares de direitos reais (artigo 1343.º, n.º2 CC). A construção deve ser feita de boa fé para que o construtor possa beneficiar do direito de acessão. Se este estiver de má fé, o proprietário do terreno por onde se alongou o edifício pode exigir a destruição da parte erguida no seu prédio às custas do construtor, devendo este ainda indemnizar os danos causados, nos termos gerais de Direito, tudo isto sem prejuízo da reivindicação (artigo 1331.º CC). Independentemente de boa fé do construtor, o proprietário da parcela de terreno ocupada pela construção pode sempre reagir, exigindo a destruição do que foi construído caso não hajam decorrido três meses do início da construção. Se o fizer, também não haverá acessão. O prazo de três meses conta-se a partir da construção em terreno alheio e não do apossamento deste, como poderia sugerir a redação do preceito, que menciona a ocupação. Porém, no artigo 1343.º CC, o regime da acessão tem por finalidade o aproveitamento de uma construção erguida, e explica-se pela função económica e social que lhe posse estar subjacente, não legitima um ato ilícito de apossamento de coisa alheia. A oposição do proprietário pode ter lugar de qualquer modo que exprima o propósito de não autorizar a construção no prédio, e não tem de ser feita judicialmente, podendo sê-lo extrajudicialmente. O pagamento de indemnização integra o processo complexo de aquisição da propriedade nesta hipótese de acessão. O construtor adquire o direito de propriedade sobre a parcela do terreno ocupada pelo edifício desde que pague o seu valor e, além disso, indemnize o proprietário e outros titulares de direitos reais sobre o prédio dos danos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão sofridos com a construção. O direito à acessão não permite o construtor a aquisição da propriedade sobre todo o prédio onde prolongou o seu edifício, restringindo-se a acessão à parcela de terreno efetivamente usada na construção.

Direito à acessão e direitos reais menores: em todas as disposições do regime jurídico da acessão, a lei menciona sempre que o beneficiário da acessão é um proprietário. No entanto, pode acontecer que uma das coisas unidas ou misturadas seja objeto de um ou mais direitos reais menores. Nesse caso, devemos perguntar se apenas o proprietário é titular do direito de acessão ou se um titular de outro direito real de gozo pode igualmente beneficiar desse regime.

1. Na doutrina tem sido dada uma resposta afirmativa, Menezes Cordeiro sustentou-o em primeiro lugar, vindo a sua opinião a ser defendido depois por Oliveira Ascensão. A ideia é simples. Sempre que a união ou mistura se dá no âmbito do conteúdo do direito real menor (de gozo), o titular deste direito beneficia da acessão. A é usufrutuário do prédio x, propriedade de B, que está afeto ao cultivo de cereais. C realiza de boa fé sementeira de trigo no prédio x, tendo, porém, trazido usufrutuário de A poderia fazer ele próprio a sementeira, por estar no âmbito do seu direito de usufruto, a ele pertenceria beneficiar da acessão, e não a B. 2. Se bem se atentar, a atribuição do direito de acessão ao titular de um direito real menor (de gozo) é uma decorrência da oneração do direito de propriedade. O proprietário cujo direito está onerado pela incidência do direito real menor pode exercer o seu direito na parte em que está comprimido pelo direito real menor. Se dentro deste conteúdo se encontra a atividade que originou a união ou a mistura, deve o titular do direito real menor beneficiar em causa no exercício do seu direito. Assim, sempre que sobre uma das coisas objeto da união ou mistura incidir um direito real menor, há que indagar se o resultado dessa união poderia ser obtido pelo titular do direito real menor no exercício regular deste direito, o que leva, naturalmente, a perscrutar o conteúdo do direito em questão. Se a resposta for positiva, por o conteúdo do direito real menor incluir o poder de fazer a união ou mistura que estiver em causa, então o direito de acessão será atribuído ao titular desse direito e não ao proprietário. Diversamente, não estando coberto pelo conteúdo do direito real menor, o direito de acessão é do proprietário. O alargamento do direito de acessão aos titulares de direitos reais menores corresponde a uma visão integrada e dinâmica do sistema normativo, que não admite apenas relações entre proprietários, postulando também a regulação de situações em que estão presentes titulares de outros direitos reais. Que a acessão é suscetível de contender com a posição de outros titulares de direitos reais, para além do proprietário, aflora no artigo 1343.º, n.º2 CC. Não custa perceber que o problema pode igualmente existir em todas as outras hipóteses de acessão industrial, quando a união ou mistura se processe entre coisas que são objeto de outros direitos reais e não apenas da propriedade. A ausência de uma parte geral dos Direitos Reais e a inserção da figura da acessão na regulação da propriedade não deve impedir que se retirem, por via da interpretação, os vetores normativos subjacentes ao sistema. Nessa medida, também nós estamos com Menezes Cordeiro e Oliveira Ascensão no considerar que a acessão pode beneficiar igualmente titulares de direitos reais menores (de gozo). Por conseguinte, um usufrutuário, um superficiário, um usuário e até, ao menos teoricamente, o titular de servidão predial podem ser titulares do direito de acessão,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão contando que a união ou mistura que envolva a coisa objeto do seu direito real esteja compreendida no conteúdo desse direito.

O direito adquirido pela acessão é sempre a propriedade: admitindo-se que um titular de direito real menor (de gozo) possa beneficiar da acessão, levanta-se o problema de saber qual o direito que ele adquire por acessão.

1. Menezes Cordeiro sustentou muito veementemente que por via da acessão se podem constituir outros direitos reais, e não apenas a propriedade. Também aqui Oliveira Ascensão acompanhou-o, tal como Carvalho Fernandes. Um primeiro argumento de ordem positiva extrai-se do artigo 691.º CC. Como a alínea b) deste artigo dispõe que a hipoteca abrange as acessões naturais, Oliveira Ascensão considera que a acessão industrial está excluída. Contrariando esta posição, Menezes Cordeiro sustentou diferentemente que o facto de as coisas móveis das alíneas c) a e) do artigo 204.º CC poderem igualmente contemplar coisas adquiridas por acessão demonstra que a hipoteca pode ser constituída por acessão. O artigo 1449.º CC parece dar igualmente um contributo afirmativo a esta posição, pois decerto abarca no seu sentido o acrescento por acessão à coisa usufruída. Nesta ordem de ideias, se, por exemplo, um superficiário beneficia da acessão e exerce o direito respetivo, a aquisição que se dá é a do seu direito, a superfície, e não da propriedade. Se pensarmos que é um usufrutuário a beneficiar da acessão, o direito por ele adquirido sobre a coisa, adjunta é o direito de usufruto. E por aí adiante. 2. Defender que um titular de direito real menor (de gozo) possa beneficiar da acessão não implica logicamente sustentar que o direito adquirido pelo beneficiário seja o mesmo que lhe permitiu a acessão. Pelo contrário, pensamos que o direito real adquirido por via da acessão é sempre o direito de propriedade, mesmo quando o direito que permite a acessão é outro direito real. Trata-se, na verdade, de aspetos diferenciados. Saber quem beneficia da acessão visa determinar quem é o titular do direito de acessão; a resposta a esta questão não implica dizer que o direito real adquirido pelo exercício desse direito seja sempre igual ao que o beneficiário da acessão tinha sobre a coisa unida ou misturada. Se, por exemplo, um superficiário goza da acessão sobre uma obra implantada por terceiro no prédio objeto da superfície, o direito que ele adquire não tem logicamente de ser a superfície. Pensamos mesmo que só pode ser a propriedade. Isto percebe-se facilmente se configurarmos a situação de ser o superficiário a fazer diretamente a obra, plantação ou sementeira que for conteúdo do seu direito. Construindo a obra, semeando ou realizando a plantação, o superficiário é o proprietário do implante. O artigo 1538.º, n.º1 CC confirma integralmente esta afirmação, ao dispor que o proprietário do solo adquire a propriedade da obra ou das árvores quando a superfície se extingue pelo decurso do prazo. Se adquire no final do prazo, é porque não o era até esse momento; proprietário da obra, sementeira ou plantação é o superficiário. Ora, se é o superficiário o proprietário do implante que realiza no prédio objeto do seu direito, por que razão não haveria de sê-lo se exercesse o direito de acessão sobre uma coisa unida ou misturada naquele prédio? Qual é a diferença entre ser o superficiário a construir a obra, a fazer a plantação ou sementeira e beneficiar da acessão? Se é pela circunstância de o conteúdo do seu direito lhe permitir efetuar diretamente o implante que se lhe reconhece o direito de acessão, como recusar que o superficiário adquira a propriedade sobre ele, se justamente esse seria o direito adquirido caso fosse ele a efetuar o implante? O mesmo se diga com o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão usufrutuário. O conteúdo do usufruto pode permitir que o usufrutuário faça transformações na coisa, como decorre implicitamente dos artigos 1439.º CC, (que reconhece ao usufrutuário um poder de transformação que não contenda com a alteração da forma ou substância da coisa), 1446.º CC (salvaguarda o dever de respeito pelo destino económico da coisa, 1450.º CC (benfeitorias) e 1472.º CC. Fazendo transformações na coisa objeto do usufruto, nomeadamente que acarretem uma união ou mistura, o usufrutuário permanece proprietário das coisas que uniu ou misturou co o objeto do usufruto, devendo ser indemnizado pelo proprietário, quando o usufrutuário se extinguir, pelo regime das benfeitorias (artigo 1450.º, n.º2 CC). Sempre que o titular do direito real menor faz ele próprio a união ou mistura no exercício do poder de transformação que é conteúdo do seu direito adquire a propriedade da coisa construída. Por que razão haveria de ser diferente quando o seu direito permite o benefício da acessão? Há, porém, ainda mais argumentos que conferem solidez a esta perspetiva: a. O primeiro decorre do facto de a acessão industrial implicar sempre o que quem suporte a indemnização pela acessão – que é no fundo o preço que o Direito fixa pela perda da coisa a que o proprietário preterido pela acessão fica sujeito – adquira somente um direito real menor? Se o beneficiário da acessão paga a indemnização legal ao proprietário afastado por ela, o direito que adquire deve ser o mesmo que o titular da indemnização tinha sobre a coisa, ou seja, a propriedade. b. Por outro lado, na doutrina que criticamos, se a aquisição se processa ao nível do direito real menor (superfície, usufruto, etc.) alguém tem de adquirir a propriedade da coisa adjunta. Está-se mesmo a ver que só pode ser o proprietário da coisa relativamente à qual se deu o benefício da acessão. c. Para além do desajuste que advém do facto de alguém pagar a perda da propriedade de uma coisa pelo seu proprietário e não adquirir este direito, há outros vetores do sistema normativo que tornam a solução, no mínimo, problemática. d. Na verdade, o Direito português faz depender a aquisição de um direito patrimonial do consentimento daquele em cuja esfera jurídica ocorre. Lembramos que a doação tem a estrutura de um contrato, carecendo de aceitação (artigo 940.º CC) e que a sucessão tem igualmente de ser aceite (artigo 2050.º, n.º1 CC). O que sucede se o proprietário recusa o efeito da acessão, a aquisição da propriedade da coisa adjunta, na sua esfera jurídica? Fica esta sem dono? É o Estado o dono, tratando-se de um imóvel? Na verdade, a aquisição de um direito real menor por acessão importaria que o proprietário da coisa que beneficia da acessão desse igualmente o seu consentimento a ela. Não bastaria, assim, a vontade do titular do direito de acessão, quando fosse um titular de direito real menor, havendo igualmente necessidade de uma manifestação favorável à acessão por parte daquele que adquire a propriedade. Quando o titular de um direito real menor (de gozo) beneficia da acessão, por a união ou mistura se encontrar no âmbito do seu direito, o direito por ele adquirido é o direito de propriedade. Com isto, nada se altera relativamente à situação que decorreria de normal exercício do direito real menor, como vimos no ponto anterior. O objeto da acessão ficará sujeito ao regime jurídico que lhe seria aplicável caso a união ou mistura houvesse sido feita diretamente pelo titular do direito real menor. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Poder-se-á sustentar dizer que a nossa posição é contraditada pelo artigo 691.º CC, no que respeita à hipoteca, e pelo artigo 1449.º CC, relativo ao usufruto. Aparentemente, estes preceitos deporiam a favor de uma aquisição, por acessão, dos direitos em causa (a hipoteca e o usufruto), não da propriedade. Pensamos, no entanto, que não é isso que sucede. Se o proprietário da coisa hipotecada beneficia de acessão, a hipoteca estende-se à nova coisa. A rigor, não há nenhuma nova hipoteca, mas um alargamento da hipoteca já existente à coisa acrescentada. O direito é o mesmo, mas passa a abranger o objeto acrescido à coisa hipotecada. A solução é igual no usufruto. Se o proprietário da coisa hipotecada beneficia da acessão, o usufruto incide igualmente na coisa acrescida. Em qualquer dos casos, os direitos já existentes apenas englobam os acrescentos das coisas que eram deles objeto, sem que se constituíam outros direitos (uma nova hipoteca, um novo usufruto).

A acessão como facto jurídico e como direito: a acessão vem tratada no Direito português como um facto jurídico aquisitivo da propriedade (artigo 1316.º e 1317.º, alínea d) CC). A colocação sistemática é a correta, pois a acessão desencadeia a aquisição da propriedade, mas não exprime a natureza complexa do regime jurídico da acessão. Em rigor, a acessão só é efeito de um facto na acessão natural. Na acessão industrial, mobiliária e imobiliária, o efeito aquisitivo da propriedade não ocorre automaticamente com a verificação da união ou mistura, requerendo uma manifestação de vontade de aquisição. Isto sucede, porquanto na acessão industrial a união ou mistura é apenas o pressuposto fático da atribuição de um direito de acessão a um dos titulares de direitos reais sobre as coisas em presença, o proprietário ou outro titular de direito real menor (de gozo). A aquisição da propriedade resulta depois do exercício desse direito por parte do titular respetivo. Quer dizer, na acessão industrial a união ou mistura de coisas pertencentes a donos diferentes é um facto que apenas provoca a constituição do direito de acessão e não logo a aquisição da propriedade diversamente do que acontece no regime da acessão natural. Só com o exercício do direito de acessão pelo seu titular a propriedade é adquirida. O direito de acessão é um direito potestativo, como na doutrina e na jurisprudência se vai reconhecendo. Contudo, a eficácia associada ao exercício do direito (a aquisição da propriedade) não está unicamente dependente da manifestação de vontade do titular; este tem ainda de pagar uma indemnização ao titular do(s) direito(s) real contra o qual funciona a acessão, como veremos no ponto seguinte. Uma exceção ao esquema geral, encontramos, todavia, no artigo 1333.º, n.º4 CC. Aí a lei portuguesa faculta sempre ao proprietário da coisa móvel que não causou a união ou mistura o direito a exigir a indemnização, mesmo que pudesse beneficiar da acessão. O autor da união ou mistura, neste caso, não tem tecnicamente um direito de acessão, mas fica sujeito a ela pela decisão do proprietário da coisa unida ou misturada. Por conseguinte, verificamos que o regime da acessão possuí uma estrutura dualista que à fonte da aquisição do direito de propriedade. Na acessão natural, a união ou mistura provoca automaticamente a aquisição da propriedade pelo dono do imóvel onde ela ocorre. A acessão é aqui produto de um facto jurídico. Na acessão industrial a união ou mistura de duas (ou mais) coisas causa a constituição de um direito potestativo e o efeito aquisitivo da propriedade é uma vicissitude do seu exercício.

A natureza potestativa da acessão industrial. O dever de indemnizar do beneficiário da acessão: no trabalho referência sobre esta matéria em Portugal, Oliveira Ascensão fez notar que a acessão industrial tem natureza potestativa, ao contrário da acessão natural, que é automática. Receberia depois o apoio de Menezes Cordeiro, de Carvalho Fernandes e de uma crescente e significativa jurisprudência, que tem engrossado nos tempos mais recentes. A

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão posição antagónica surge em Pires de Lima/Antunes Varela, que defendem o caráter automático da aquisição por acessão. A acessão é automática sempre que a mera união ou mistura provoque a aquisição da propriedade pelo beneficiário da acessão. É o que sucede na acessão natural. Na acessão industrial, diversamente, a união ou mistura constitui um pressuposto de facto para a atribuição do direito de acessão a um dos titulares de direitos reais das coisas unidas ou misturadas, não provocando, só por si, a aquisição da propriedade. A lei portuguesa confere ao beneficiário da acessão um direito potestativo a ficar com a coisa adjunta. Se quiser, tem de manifestar a vontade de beneficiar da acessão, exercendo o direito respetivo; se não quiser, renuncia a este direito. O beneficiário da acessão, como titular do direito respetivo, é o juiz do seu interesse. Estando interessado, exerce o direito (potestativo) de acessão, manifestando a vontade de adquirir a coisa adjunta; não estando, renuncia ao direito. A lei portuguesa, em regra, não impõe a acessão ao beneficiário. O regime jurídico da acessão industrial constrói-se na base de um direito potestativo, justamente o direito de acessão. Todavia, esse direito não é exercido sem contrapartida. Pelo contrário, a lei portuguesa prevê sempre uma indemnização ao proprietário preterido pela acessão. E havendo outros titulares de direitos reais, a indemnização deve reparar o prejuízo que também estes sofrem. A solução surge aflorada no artigo 1343.º, n.º2 CC, que existam direitos reais menores constituídos sobre a coisa cujo proprietário ficou preterido na acessão. O dever de indemnizar do beneficiário da acessão vem reiteradamente estabelecido em todas as hipóteses de acessão industrial, mobiliária e imobiliária (artigo 133.º, n.º1, 1334.º, n.º1 e 2, 1335.º, n.º1, 1339.º, 1340.º, n.º1 e 3, 1341.º, 1342.º, n.º1 e 2 e 1343.º, n.º1 e 2 CC): «faz seu o objeto adjunto o dono daquele que for de maior valor, contando que indemnize o dono do outro ou lhe entregue a coisa equivalente», como dispõe o artigo 1333.º, n.º1 CC ou «o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações», Na fórmula do artigo 1340.º, n.º1 CC. Deste modo, exercendo o direito de acessão, o titular fica obrigado ao pagamento da indemnização legal. A indemnização ao proprietário da coisa unida ou misturada que não beneficia da acessão constitui uma verdadeira condição de aquisição da propriedade pelo titular do direito, não chega para que a aquisição da propriedade se dêApenas com o pagamento da indemnização se processa a aquisição a favor do titular do direito de acessão. Assim, o proprietário (ou titular de direito real menor) cujo direito é sacrificado pelo funcionamento da acessão recebe uma contrapartida da perda da coisa na indemnização atribuída. Enquanto essa indemnização não lhe for paga pelo titular do direito de acessão, o direito de propriedade (ou o direito menor) permanece na sua esfera jurídica.

O momento da aquisição da propriedade por acessão: o artigo 1317.º CC, alínea d) CC, estabelece que o momento da aquisição por acessão é o da verificação do facto respetivo. É evidente a ambiguidade que este preceito gera. Se, por um lado, a acessão repousa sempre numa união ou mistura de coisas, por outro lado, a acessão repousa sempre numa união ou mistura de coisas, por outro lado, em vários casos, nomeadamente na acessão industrial, a lei estabelece um direito de acessão, direito esse subordinado na sua eficácia ao cumprimento do dever de indemnizar o proprietário afastado pela acessão. Qual é, então, o momento, a que se refere o artigo 1316.º, alínea b) CC? E resposta não é uniforme. Na acessão natural, o momento da aquisição da propriedade é o momento da união das coisas, sem prejuízo da hipótese particular prevista no artigo 1329.º, n.º1 CC, que só permite a aquisição da propriedade ao fim 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão de seis meses. Quanto à acessão industrial não podemos dizer que exista unanimidade de vistas. Uma corrente jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça entende que o momento da aquisição do direito real por acessão é o momento da incorporação, dando seguimento à posição de Antunes Varela. No entanto, na acessão industrial a união ou mistura é apenas o pressuposto fático da atribuição do direito de acessão e não o próprio facto atributivo do direito. E, como vimos, ao exercício do direito de acessão está associada um dever de indemnizar o titular ou titulares de direitos reais que perdem a coisa objeto do seu direito. Deste modo, pensamos que a melhor interpretação da alínea d) do artigo 1317.º CC consiste em fazer corresponder o pagamento da indemnização com a aquisição do direito real pelo beneficiário da acessão, como ensina Oliveira Ascensão. Não há então qualquer retroatividade da acessão ao momento da união ou misturar; o pagamento determina o momento da aquisição do direito de propriedade pelo beneficiário da acessão que exerce o direito potestativo respetivo. Portanto, o momento do facto respetivo na acessão industrial é o momento do pagamento da indemnização legal ao titular do crédito indemnizatório. Somente com esse pagamento o beneficiário da acessão adquire a propriedade da coisa unida ou misturada.

Acessão e autonomia privada: a lei regula o conflito entre os proprietários (e outros titulares de direitos reais) das coisas unidas ou misturadas, atribuindo a um deles o beneficio da acessão. Na acessão natural, o proprietário do prédio onde a união se dá nada tem de fazer, adquirindo automaticamente a propriedade da coisa incorporada, sem prejuízo do regime particular da avulsão, que só permite a aquisição ao fim de seis meses (artigo 1329.º, n.º1 CC). O regime da acessão industrial consagra uma solução diferente, como vimos, com a atribuição de um direito de acessão a um dos titulares de direitos reais em presença, direito esse que impõe um dever de indemnizar o proprietário e outros titulares de direitos reais menores sacrificados pela acessão. A atribuição de um direito potestativo de acessão a favor de um dos titulares de direito real sobre uma das coisas unidas ou misturadas não obsta, contudo, a que os interessados cheguem a composições próprias do conflito. A autonomia privada pode funcionar em pleno no contexto da acessão, determinando soluções diferentes daquelas que a lei impõe na falta de acordo dos interessados. Assim, a título de exemplo, o proprietário do prédio onde ocorreu uma construção de obra pode acordar com o construtor que seja este a beneficiar da acessão, ainda que por força do disposto no artigo 1340.º, n.º3 CC ou do artigo 1341.º CC, tal direito que lhe cabesse, como o usufrutuário do prédio, titular do direito de acessão, pode convencionar com o proprietário que seja este a exercer o direito de acessão.

Subsecção II – A ocupação

A ocupação. Noção legal e requisitos da figura: o artigo 1318.º CC preceitua que podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes. Não obstante a sistemática legal da secção II do Capítulo II do Livro III, o Código Civil não refere apenas a ocupação no artigo 1318.º CC e seguintes, misturando factos jurídicos, nomeadamente, a ocupação, o achamento e a descoberta de tesouros. Historicamente diferenciados, estes factos aquisitivos da propriedade são hoje tratados debaixo do regime da ocupação, como se só esta estivesse em causa. A ocupação tem, porém, pressupostos distintos do achamento e da descoberta de tesouro e perde-se compreensibilidade se se insistir em

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão uniformizar factos que estão sujeitos a um regime jurídico diverso. Optamos, assim, por manter a identidade de cada figura, separando o tratamento da ocupação relativamente ao achamento e à descoberta de tesouro, que constituem outros factos aquisitivos da propriedade de coisas móveis. A occupatio era no Direito Romano a principal causa de aquisição originária da propriedade. Adquiria a propriedade aquele que se apoderava de uma coisa móvel nullius com a intenção de se tornar proprietário dela. Eram requisitos da occupatio:  Que a res fosse nullius: quod nulliues est, id ratione naturalis occupanti conceditur;  A apreensão material da res;  A intenção de adquirir a propriedade sobre a res. O Direito Romano conhecia vários tipos de coisas nullius, os animais selvagens, os despojos de guerra, os produtos do mar (pérolas, conchas e pedras preciosas descobertas nas margens do mar), a insula in mari nata e as res derelictae. Estas eram coisas abandonadas intencionalmente, com animus dereliquendi, pelo anterior possuidor e proprietário, sem que fossem atribuídas por este a outrem. O Código Civil português limita a ocupação às coisas móveis e aos animais nullius. Os imóveis não são suscetíveis de ocupação. Nessa parte, o regime português é igual ao italiano e ao alemão. As coisas (móveis) e os animais são nullius porque nunca tiveram dono ou porque, tendo tido, o proprietário renunciou ao seu direito. Neste último caso, é ainda necessário que o proprietário deixe de ser possuidor, pelo abandono da coisa, pois, como veremos a seguir, a ocupação processa-se através de uma apreensão material da coisa. São requisitos da ocupação:

1. Que a coisa móvel ou o animal seja nullius: o primeiro requisito da ocupação é o de que a coisa não tenha dono, seja nullius, porque nunca foi atribuída a ninguém pelo ordenamento (que nunca tiveram dono) ou porque a propriedade se extinguir (ou foram abandonados) sem que haja constituído um novo direito a favor de outra pessoa (por exemplo, renúncia do anterior proprietário); 2. A apreensão material da coisa ou animal: na verdade, a ocupação tem subjacente um ato de apossamento, que gera igualmente a constituição de posse pelo ocupante sobre a coisa ou animal (artigo 1263.º, alínea a) CC). Com o apossamento, porém, o agente não se limita a adquirir a posse da coisa ou do animal, adquire igualmente a propriedade sobre ele. É esse o efeito específico da ocupação (artigo 1316.º e 1318.º CC). Historicamente, as fontes referiam um terceiro requisito. Era necessária a intenção do ocupante para adquirir a propriedade da coisa sem dono. Oliveira Ascensão ainda menciona esse requisito, mas dá-lhe apenas a significação relativa à vontade de colocar a coisa debaixo da esfera de ação, o que representa, a nosso ver, um abandono da conceção subjetivista tradicional. O Código Civil português não contém qualquer referência, direta ou indireta, expressa ou implícita, à intenção do ocupante, o que mostra que ela não constitui um requisito autónomo da figura. Que o ocupante deva ter uma vontade de agir na colocação da coisa em seu poder não se confunde com uma intenção de adquirir qualquer direito. Esta não é exigida pela lei portuguesa. Uma vez que a ocupação se processa através de um apossamento, a regra de capacidade a atender é a que consta do artigo 1266.º CC. Qualquer pessoa, capaz de exercício ou não, pode ocupar coisas móveis e animais nullius. Nada impede que a apreensão material seja levada a cabo por várias pessoas e não uma só e, assim, a ocupação beneficiar duas ou mais pessoas, que ficarão comproprietárias da coisa ou animal. Também nada obsta a que o ocupante seja uma pessoa coletiva, contando que a pessoa que realize o apossamento atue por conta daquela. O artigo 1252.º, n.º1 CC fundamenta essa solução.

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Casos especiais: apesar da latitude com que a ocupação vem definida no artigo 1318.º CC, o Código Civil remete a ocupação de animais em estado natural para legislação avulsa e estabelece regimes específicos em três preceitos:

1. Animais selvagens com guarida própria (artigo 1320.º CC): neste artigo 1320.º CC regula-se o regime de ocupação de animais selvagens que habitem em determinado local por ação humana. Havendo uma deslocação espontânea dos animais do local em que viviam para outro, pertencente a dono diverso, este pode tornar-se o seu proprietário desde que não exista possibilidade de reconhecimento individual do animal. Se esta possibilidade existir, o dono do local onde os animais habitava pode reivindica-lo, contando que indemnize o proprietário do novo local para onde o animal se deslocou dos prejuízos que a remoção do animal lhe cause. Se o proprietário do local para aonde os animais foram houver induzido intencionalmente a deslocação dos animais, o dono do anterior local onde os animais habitavam pode reivindica-los. Na impossibilidade de reivindicação, por não ser possível determinar os animais, por exemplo, o proprietário da nova guarida dos animais deve indemnizar o proprietário anterior no montante de três vezes o seu valor. Dificilmente poderemos vislumbrar uma ocupação em sentido técnico nos casos contemplados no artigo 1320.º CC. Não há nenhuma apreensão material dos animais que justifique falar-se em ocupação. Nem eles são, dado o regime consagrado, coisa nullius. No fundo, o artigo 1320.º CC estabelece que os animais selvagens que habitem num determinado local são propriedade do dono deste, podendo, contudo, esta propriedade ser perdida se os animais espontaneamente mudarem o local de guarida e não puderem ser individualmente reconhecidos. Neste caso, o dono do novo local de guarida passa a ser o proprietário desses animais. 2. Animais ferozes fugidos (artigo 1321.º CC): o regime português de animais selvagens ferozes mantidos em cativeiro determina que qualquer pessoa possa matar esses animais («podem ser destruídos») ou ocupá-los, desde que os animais se evadam da clausura em que se encontravam. Se se compreende a primeira solução, qualquer pessoa pode matar os animais selvagens atendendo à perigosidade que apresentam, já dificilmente se compreende a segunda. Não se percebe por que é que qualquer pessoa pode fazer seu um animal com dono só porque ele se evadiu da sua clausura, seja qual for a causa deste facto. De resto, se o animal tem dono, não deveria poder ser ocupado, ou não exige o regime geral que o animal seja nullius? Por que razão é diferente com animais selvagens ferozes mantidos em cativeiro que têm dono? O artigo 1321.º CC só em parte regula um caso de ocupação (não o é certamente a destruição do animal). Na outra parte contém um regime excecional à regra geral do artigo 1318.º CC, pois permite a ocupação de animal com dono. 3. Exames de abelhas (artigo 1322.º CC): no artigo 1322.º, n.º1 CC preceitua-se que o proprietário de enxame de abelhas enxameado pode perseguir as abelhas no prédio para onde elas fugiram. Tem dois dias para o fazer, contados do momento em que tomou conhecimento do enxameamento, estando o dono do prédio para o qual o enxame se deslocou sujeito à perseguição do enxame no seu prédio, sem prejuízo do direito de indemnização dos danos que a recuperação do enxame lhe cause; se não o fizer no prazo de dois dias, o proprietário do prédio onde o enxame se encontra pode ocupá-lo ou consentir que um terceiro as ocupe (artigo 1322.º, n.º2 CC). O n.º2 do artigo 1322.º CC prevê uma hipótese de ocupação de animais com dono. É outra regra

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão excecional em face da regra geral constante do artigo 1318.º CC, que só admite a ocupação de coisas ou animais nullius. Porém, nem todas as previsões constantes destes artigos contêm verdadeiros casos de ocupação.

Eficácia da ocupação: a ocupação constitui um facto aquisitivo do direito de propriedade (artigo 1316.º e 1317.º, alínea d) CC). E só este direito pode ser adquirido através dela. Quem se apossa de uma coisa ou animal sem dono torna-se seu proprietário; não é legalmente possível a constituição de outros direitos reias por ocupação. A aquisição da propriedade por ocupação representa uma aquisição originária deste direito. O direito de propriedade que se constitui com a ocupação é um direito novo, mesmo no caso de coisa ou animal abandonado.

Momento da aquisição da propriedade: o artigo 1317.º, alínea d) CC dispõe que a propriedade se adquire no caso de ocupação no momento da verificação do facto respetivo. Isto pode gerar alguma perplexidade, visto que a ocupação é ela própria um facto com eficácia real (constituição da propriedade). A que facto se estará então a referir o legislador? Julgamos que na ocupação o facto respetivo a que alude a alínea d) do artigo 1317.º CC é o apossamento, isto é, a apreensão material da coisa ou animal nullius. A constituição da propriedade por ocupação ocorre no momento em que o agente conclui o apossamento da coisa ou animal nullius.

Subsecção III – O achamento e aquisição de tesouro

O achamento: o achamento configura-se como um facto real distinto da ocupação. Ao contrário desta, não se reporta a coisas ou animais nullius, nem desencadeia a sua eficácia automaticamente com a apreensão material. Em primeiro legal, o achamento opera relativamente a coisas (móveis) ou animais perdidos, portanto, com dono. Trata-se da nota distintiva principal da figura no confronto com a ocupação. O achamento engloba também as coisas ou animais escondidos, desde que, neste último caso, não constituam tesouros. Com efeito, o artigo 1323.º, n.º1 CC menciona apenas as coisas ou animais perdidos, enquanto o disposto no artigo 1324.º CC abrange os tesouros. O que dizer, então, das coisas escondidas que não constituam tesouros? Não são nullius e, por conseguinte, não podem ser ocupadas; mas como também não são tesouros, a disciplina da aquisição de tesouro não tem aplicação. Por interpretação extensiva do artigo 1323.º, n.º1 CC ou por analogia, a sua regulação, não obstante o teor literal restrito, aplica-se igualmente às coisas ou animais escondidos que sejam encontrados por alguém e não possam ser qualificados como tesouros no sentido do artigo 1324.º CC. Em segundo lugar, e esta é outra nota distintiva face à ocupação, o efeito aquisitivo do achamento, a constituição da propriedade, não ocorre com a apreensão material, mas somente se forem cumpridas pelo achador as formalidades estabelecidas no artigo 1323.º, n.º1 CC e ainda decorrido o prazo fixado no n.º2 deste artigo (um ano). O apossamento da coisa perdida ou escondida não tem um efeito aquisitivo automático da propriedade como sucede na ocupação. Na verdade, do artigo 1323.º, n.º1 CC resulta que o achador deve:  Restituir o achado ao proprietário ou avisá-lo de que a sua coisa ou animal foi encontrado, se souber quem ele é;  Anunciar o achado, tendo em conta o valor da coisa ou animal, ou avisar as autoridades, de acordo com os usos da terra se os houver, se não souber quem é o proprietário. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Avisado o proprietário, feito o anúncio ou comunicado o achado às autoridades, o achador adquire a propriedade da coisa ou do animal perdido ou escondido se o proprietário não reclamar a sua devolução dentro do prazo de um ano (artigo 1323.º, n.º2 CC). O achamento representa um modo de aquisição originária da propriedade. O direito adquirido pelo achador é um direito novo, não havendo qualquer espécie de transmissão do direito do anterior proprietário. Este extingue-se no momento em que o achamento produz a sua eficácia a favor do achador. A propriedade é o único direito real que pode ser adquirido por achamento, daí a integração sistemática no âmbito dos factos aquisitivos da propriedade, embora debaixo da menção à ocupação (artigo 1316.º e 1317.º, alínea d) CC). O achamento é um facto complexo de produção sucessiva, que assenta primariamente numa apreensão material de coisa ou animal perdido ou escondido, supõe o cumprimento pelo achador dos deveres de comunicação, anúncio ou aviso estabelecidos no artigo 1323.º CC, mas só findo um ano sem que a coisa ou animal seja reclamado pelo seu dono permite que o achador adquira a propriedade sobre o achado. Deste modo, e ao contrário do que para a ocupação resulta do artigo 1317.º, alínea d) CC, a aquisição da propriedade por achamento tem lugar somente quando decorrer o prazo de um ano fixado no artigo 1323.º, n.º2 CC, sem retroatividade ao momento da apreensão material. A lei portuguesa atribui ao achador um direito a ser indemnizado dos danos causados e das despesas feitas com o achado e ainda um direito a um prémio, que é calculado mediante a aplicação de uma percentagem sobre o valor da coisa: dez por cento (10%) se a coisa achada tiver o valor de 4,99€; cinco por cento (5%) sobre o excedente deste valor até 24,99€ e dois e meio por cento (2,5€) sobre o restante (artigo 1323.º, n.º3 CC). O achador tem um direito de retenção sobre a coisa achada para garantia do pagamento dos seus créditos (artigo 1323.º, n.º4 CC). Por último, a lei estabelece um regime favorável para o achador em matéria de responsabilidade civil pela perda ou deterioração da coisa, determinando que essa responsabilidade existe apenas em caso de dolo ou culpa grave e não, por conseguinte, quando exista mera negligência sua.

Achamento de coisa valiosa (aquisição de tesouro): a aquisição de tesouro distingue-se da ocupação e do achamento regulado no artigo 1323.º CC pois reporta-se exclusivamente a coisas (móveis) com valor considerável que foram escondidas pelo seu dono. Trata-se ainda a nosso ver de uma hipótese de achamento, mas tem a especificidade de se reportar coisas valiosas, o que justifica um regime normativo especial. O artigo 1324.º CC diferencia duas hipóteses, consoante o achador pode saber ou não quem é o proprietário do tesouro. O achador de tesouro escondido ou enterrado há menos de vinte anos, podendo saber quem é o proprietário da coisa valiosa escondida, deve avisar este último de que a encontrou ou restituí-la. No caso de o dono da coisa valiosa encontrada, devidamente avisado, não a reclamar no espaço de um ano, o achador faz sua metade da coisa achada. A outra metade pertence ao proprietário da coisa móvel ou imóvel onde o tesouro foi encontrado (artigo 1324.º, n.º1, in fine CC). Esta solução não resulta diretamente do artigo 1324.º CC, mas parece-nos que a aplicação do artigo 1323.º, n.º2 CC faz aqui todo o sentido. De outra forma, estar-se-ia a criar uma divergência de regulação para situações semelhantes, que nada parece justificar. O proprietário do tesouro, uma vez avisado pelo achador, tem o ónus de reclamar a sua coisa; se nada fizer, vem a perdê-la para o achador ao fim de um ano (artigo 1323.º, n.º2 CC). Se o achador não puder saber quem é o proprietário do tesouro, deve-se ainda distinguir conforme o tesouro foi escondido ou enterrado há mais de vinte anos ou não. Se foi, o achador deve somente comunicar o achado ao proprietário da coisa móvel ou imóvel onde foi encontrado, para que este último possa exercer o direito atribuído pelo artigo 1321.º, n.º1 CC, de ficar com metade do tesouro. Caso o tesouro tenha sido escondido ou enterrado há mais de vinte anos, o achador deve denunciar o achado nos termos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão do artigo 1323.º, n.º1 CC ou avisar as autoridades. Aparecendo o proprietário, o tesouro develhe ser entregue, sem prejuízo da aplicação do disposto nos n.º3 e 4 do artigo 1323.º CC. O achador tem direito a ser indemnizado dos danos que o tesouro lhe causou e a ser indemnizado das despesas feitas com o achado, assim como ao prémio na percentagem constante do artigo 1323.º, n.º3 CC. A responsabilidade civil pela perda ou deterioração do tesouro apenas existe havendo dolo ou culpa grave do achador (artigo 1323.º, n.º4 CC). O achamento de tesouro não envolve necessariamente a aquisição, da propriedade sobre ele. Nomeadamente, não envolve quando o dono reclama o que é seu. O tesouro permanece, neste caso, com o seu proprietário. Se é proprietário do tesouro, devidamente avisado ou comunicado, não reclamar o tesouro no prazo de um ano, o achado fica a pertencer metade ao achador e metade ao proprietário da coisa onde o tesouro foi encontrado. Na hipótese de o achador omitir o cumprimento dos deveres de aviso e de comunicação previstos no artigo 1324.º, n.º2 CC perde os seus direitos a favor do Estado (artigo 1324.º, n.º3 CC). A aquisição de tesouro por achamento significa que o achador e o proprietário da coisa onde o tesouro se encontrava escondido ou enterrado adquirem metade do achado (artigo 1324.º, n.º1 CC). O direito é adquirido a título originário. Não se trata, pois, do direito do anterior proprietário, mas de um direito constituído ex novo. Se o tesouro é composto de várias coisas, metade do achado significa que achador e dono da coisa onde o tesouro foi encontrado podem dividir as coisas de acordo com o seu valor. Acontecendo tratar-se de uma única coisa, o achamento determina a constituição de uma situação de compropriedade. O momento da aquisição do direito de propriedade não é o momento em todas as hipóteses de achamento. Assim, se o tesouro houver sido escondido ou enterrado há menos de 20 anos e o achador fizer a comunicação ao proprietário, o anúncio ou o aviso do achado, nos termos do n.º2 do artigo 1324.º CC, adquire a propriedade de metade do achado um ano depois da comunicação, do anúncio ou do aviso (artigo 1323.º, n.º2 CC). O dono da coisa onde o tesouro estava escondido ou enterrado adquire a outra metade (artigo 1324.º, n.º1 CC), querendo, no mesmo momento. Ele tem, porém, somente um direito potestativo de aquisição, cujo exercício depende da sua vontade. Tendo o tesouro sido enterrado ou escondido há mais de vinte anos, o achamento, com a apreensão material do achado, determina a aquisição automática de metade do tesouro pelo achador no momento da apreensão material. O dono da coisa onde o tesouro estava escondido ou enterrado adquire, querendo, a outra metade. A sua situação jurídica é igual à hipótese anterior. Pelo achamento de tesouro apenas pode ser adquirido o direito de propriedade.

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Secção I – A propriedade

Generalidades: o primeiro dos direitos reais de gozo é o direito de propriedade. É comum definir a propriedade como o direito real máximo, quer no sentido de ser o direito real com o maior conteúdo possível, quer no sentido de ser o mais importante dos direitos reais. Efetivamente, o direito de propriedade assume-se como o paradigma não apenas dos direitos reais, mas também dos direitos subjetivos em geral.

Conteúdo do direito de propriedade: em termos de conteúdo do direito de propriedade, o artigo 1305.º CC refere-nos que este abrange as faculdades de uso, fruição e disposição do direito, de modo pleno e exclusivo. Esta disposição inspira-se na fórmula romana que qualifica a propriedade como o ius utendi, fruendi et abutendi, abrangendo assim o uso, a fruição, e a disposição. No uso compreendem-se todas as modalidades de aplicação direta da coisa.

1. Através do uso o proprietário pode assim determinar o aproveitamento da coisa para os fins que pretender, sem prejudicar essa mesma coisa. No caso particular das coisas consumíveis, o seu uso regular importa, no entanto, a sua destruição ou alienação (artigo 208.º CC), pelo que o uso destas coisas é indissociável da disposição. 2. Já a fruição compreende a perceção de todos os frutos e produtos de uma coisa, sem prejuízo da sua substância (artigo 212.º, n.º1 CC). A fruição poderá ser a. Natural, quando os frutos provêm diretamente da coisa, ou b. Civil, quando a coisa permite a obtenção de rendas ou interesses em virtude de uma relação jurídica (artigo 212.º, n.º2 CC). Em ambos os casos, a fruição caracteriza-se por permitir ao proprietário obter determinado rendimento da coisa, melhorando assim a sua condição económica. 3. Já a disposição compreende, quer a transformação da coisa, quer a sua alienação ou oneração, quer mesmo a extinção do seu direito sobre ela. Em relação à transformação da coisa, a mesma decorre da alteração da sua forma ou substância, sendo que, no caso dos imóveis, uma importante forma de transformação reside na realização de construções ou edificações (artigos 1360.º e seguintes CC). A alienação consiste na transmissão da coisa para terceiro, enquanto que a oneração implica a constituição de direitos reais limitados sobre a coisa. Finalmente, a extinção do direito de propriedade pode ocorrer através do abandono, no caso das coisas móveis, ou da destruição da coisa, que pode ser decidida pelo proprietário. Sendo genericamente indeterminado, o conteúdo do direito de propriedade não é, porém, ilimitado, dado que o artigo 1305.º CC obriga o proprietário a respeitar os limites da lei e as restrições por ela impostas. Estas limitações e restrições são genéricas aos direitos reais, já tendo sido por nós é, porém, ilimitado, dado que o artigo 1305.º CC obriga o proprietário a respeitar os limites da lei e as restrições por ela impostas. Estas limitações e restrições são genéricas aos direitos reais, já tendo sido por nós acima referidas.

Características do direito de propriedade: enquanto direito real, a propriedade caracteriza-se essencialmente através de três características:

3. O seu cariz indeterminado do direito de propriedade resulta de a propriedade abranger uma série ilimitada de faculdades, permitindo ao proprietário não apenas excluir os outros de qualquer ingerência em relação à coisa, mas também dispor dela como quiser, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão sem outras restrições que não as que resultem da lei ou do respeito de outros direitos subjetivos. Neste sentido se pode dizer que o proprietário tem poderes indeterminados sobre a coisa, ao contrário dos direitos reais limitados, que têm um conteúdo preciso. 4. A sua exclusividade: significa que o direito de propriedade não necessita de concorrer com qualquer outro direito incidente sobre a coisa, sendo assim um direito de gozo sobre a mesma. Efetivamente, enquanto que os outros direitos reais, como, por exemplo, o usufruto e a superfície, se vêm forçados a concorrer com a propriedade, reduzida a uma nua propriedade ou à propriedade do solo, o direito de propriedade é independente de qualquer outro direito real. Por isso diz-se que é um direito exclusivo em relação à coisa. 5. A sua elasticidade: significa que o proprietário pode privar-se ou ser privado de alguma das faculdades integrantes do seu direito, como sucede no usufruto ou na requisição administrativa, em que o seu domínio fica reduzido a quase nada, mas o direito de propriedade mantém-se potencialmente intacto, recuperando a sua integral extensão logo que se extingam os vínculos ou limitações que o tinham contraído. A elasticidade permite, assim, que o direito de propriedade possa ver o seu conteúdo sucessivamente comprimido ou dilatado, à medida que vão sendo constituídos ou extintos ónus e limitações que sobre ele incidam. Tem sido ainda apontada como característica do direito de propriedade a sua perpetuidade. Mas esta característica não é defensável no Direito português, que admite a propriedade temporária nos casos especialmente previstos na lei (artigo 1307.º, n.º2 CC). Efetivamente, como exemplo de uma propriedade a termo, temos a situação do fiduciário, referida no artigo 2290.º CC, em que a propriedade se extingue com a sua morte (artigo 2293.º CC). A lei admite ainda que a propriedade se possa constituir sob condição (artigo 1307.º, n.º1 CC).

As formas de aquisição específicas da propriedade: a propriedade tem formas específicas de aquisição, para além das que são comuns aos direitos reais. Entre essas formas, encontramos:

1. A ocupação: a ocupação aparece-nos referida no artigo 1318.º CC, o qual admite que sejam adquiridas por essa via os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários. A faculdade de ocupação reconduz-se assim apenas às coisas móveis, uma vez que as coisas imóveis sem dono conhecido são consideradas como património do Estado, nos termos do artigo 1345.º CC. Entre as coisas móveis, há que distinguir entre as que nunca tiveram dono (res nullius) e as que foram abandonadas (res delictae), existindo em ambos os casos uma coisa que não pertence a ninguém, quer porque nunca teve titular, quer porque esse direito se extinguiu em virtude do abandono. Já em relação às coisas perdidas ou escondidas pelos seus proprietários, uma vez que estes não perderam o seu direito, a situação não é normalmente de ocupação, mas antes de achamento, regulado autonomamente nos artigos 1323.º e 1324.º CC. Nestes casos, existe apenas a possibilidade de ocupação, no caso de animais selvagens com guarida própria (artigo 1320.º CC) e de animais ferozes fugidos (artigo 1321.º CC). É incontestável a natureza voluntária da ocupação, devendo esta consequentemente ser qualificada como um ato jurídico. Tem sido, porém, discutido se a ocupação pressupõe uma intenção aquisitiva específica, o que levaria a que esta fosse qualificada como negócio jurídico, ou se dispensa essa intenção, sendo assim um ato jurídico simples. A melhor doutrina é a de que não é exigida essa intenção, sendo consequentemente a ocupação um ato jurídico simples (artigo 295.º CC). Efetivamente, a lei não exige a capacidade de exercício, nem sequer o exercício da razão, para atribuir a posse ao ocupante (artigo 1266.º CC), pelo 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que não pode a mesma regra deixar de valer em relação à aquisição da propriedade. A lei estabelece, no entanto, um regime especial em relação à ocupação dos animais. Em primeiro lugar, a caça e a pesca dos animais bravios são reguladas por extensa legislação extravagante (artigo 1319.º CC). No caso, porém, de os animais bravios terem sido domesticados por um dono e passarem para a guarida de outro dano, ficam pertencendo a este, se não puderem ser individualmente reconhecidos. No caso contrário, o antigo dono pode recuperá-los, se o fizer sem prejuízo do outro (artigo 1320.º, n.º1 CC). Provando-se, porém, que os animais foram atraídos por fraude ou artifício do dono da guarida onde se hajam acolhido, é este obrigado a entrega-los ao antigo dono, ou a pagar-lhes em triplo o valor deles, se não lhe for possível restituí-los (artigo 1320.º, n.º2 CC). Já em relação aos animais ferozes e maléficos, que se evadirem da clausura em que o seu dono os tiver colocado, estes poderão ser destruídos ou ocupados livremente por qualquer pessoa que os encontre (artigo 1321.º CC). Finalmente, os enxames de abelhas são sujeitos a um regime particular, que atribui ao proprietário o direito de perseguir e capturar o enxame em prédio alheio, sendo, no entanto, responsável pelos danos que causar (artigo 1322.º, n.º1 CC). No entanto, se o dono da colmeia não perseguir o encame logo que saiba terem as abelhas enxameado, ou se decorrerem dois dias sem que o enxame tenha sido capturado, pode ocupá-lo o proprietário do prédio onde ele se encontre, ou consentir que outrem o ocupe (artigo 1322.º, n.º2 CC). 2. O achamento: o achamento encontra-se regulado nos artigos 1323.º e 1324.º CC, distinguindo-se da ocupação por não dizer respeito a res nullius, mas antes a coisas que o dono perdeu ou escondeu. Nestes casos, uma vez que ainda não se verificou um ato voluntário dirigido à extinção da propriedade, esta ainda não se perdeu, pelo que a sua aquisição pelo achador é sujeita a um regime particular. Os direitos do achador variam consoante se trate de a. Animais ou coisas móveis perdidas: o artigo 1323.º, n.º1 CC estabelece que, se alguém os encontrar e souber a quem pertencem, deve restituí-los ao seu dono, ou avisar deste do achado, se não souber a quem pertencem, deve anunciar o achado pelo modo mais conveniente, atendendo ao valor da coisa e às possibilidades locais, ou avisar as autoridades, observando os usos da terra, sempre que os haja. Após o anúncio, o achador faz sua a coisa perdida, se não for reclamada pelo dono dentro do prazo de um ano, a contar do anúncio ou aviso (artigo 1323.º, n.º2 CC). Caso haja lugar à restituição da coisa, o achador tem direito a um prémio, baseado numa percentagem do valor do achado, que é fixada em 10% até 4,99€, em 5% sobre o excesso desse valor até 24,94€ sobre o valor restante (artigo 1323.º, n.º3 CC). O achador goza do direito de retenção para garantia do seu direito ao prémio e a sua responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa limita-se ao dolo ou culpa grave (artigo 1323.º, n.º4 CC); ou, antes, b. Tesouros: em relação a estes, aos quais correspondem a coisas móveis de algum valor, escondidas ou enterradas, sempre que não se possa determinar o respetivo dono, a lei determina a atribuição ao achador de metade do achado, cabendo a outra metade ao proprietário da coisa móvel ou imóvel onde o tesouro estava escondido ou enterrado (artigo 1324.º, n.º1 CC). Neste caso, o achador deve anunciar o achado nos mesmos termos e avisar as autoridades, exceto quando seja evidente que o tesouro foi escondido ou enterrado há mais de vinte anos (artigo 1324.º, n.º2 CC). Se, no entanto, o achador não cumprir

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão essa obrigação ou fizer seu o achado ou parte dele, sabendo quem é o dono, ou o ocultar do proprietário da coisa onde ele se encontrava, perde em benefício do Estado os direitos conferidos no n.º1 deste artigo, sem exclusão dos que lhe possam caber como proprietário. 3. A aquisição dos imóveis pelo Estado: uma outra forma de aquisição específica, esta relativa aos imóveis, corresponde à sua aquisição pelo Estado, sempre que estes não tenham dono conhecido, nos termos do artigo 1345.º CC. A tese maioritária defende que esta norma consagra a existência de uma reversão automática para o Estado, passando os imóveis, a partir do momento em que se desconhece o seu dono, a fazer parte do seu domínio privado. Esta posição foi defendida por Menezes Cordeiro, Henrique Mesquita e Francisco Brito Pereira Coelho. Para Oliveira Ascensão, no entanto, o artigo 1345.º CC instituiria apenas uma simples presunção da propriedade do Estado, que qualquer pessoa poderia elidir, uma vez que a aquisição pelo Estado verifica-se nos termos gerais com a usucapião. A esta posição veio aderir Carvalho Fernandes. Pensamos, no entanto, ser a primeira posição a correta. Efetivamente, o artigo 1345.º CC dispensa o Estado de preencher os requisitos da usucapião, inserindo no seu domínio privado todos os imóveis cujo dono seja desconhecido. Tal não impede, no entanto, a sua aquisição posterior pelos particulares, quando estes invoquem a usucapião. O regime especial da propriedade sobre as águas: a propriedade das águas é sujeita a um regime especial, constante dos artigos 1385.º e seguintes CC, onde, depois de se determinar quais são as águas pertença de particulares (artigos 1385.º e seguintes CC), se esclarece quais os direitos que competem ao seu titular. Em princípio, o proprietário do prédio onde surgem as águas tem a faculdade de as aproveitar. Efetivamente, em relação ao aproveitamento das águas, a regra constante do artigo 1389.º CC é a de que o dono do prédio onde surja a fonte ou nascente de água, adquire direito ao aproveitamento da mesma, podendo servir-se dela e dispor do seu uso livremente, salva as restrições previstas na lei ou direitos que terceiro haja adquirido ao uso de águas por título justo. Nos termos do artigo 1290.º, n.º1 CC, considera-se titulo justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões. Esta disposição rejeitou assim a doutrina de Guilherme Moreira, segundo a qual o direito à água que nasce num prédio alheio é sempre um direito de propriedade e não um direito de servidão, dado que as utilidades só podem ser consideradas como direitos de servidão, quando sejam tais que só possam separar-se deste prédio, sempre que o seu gozo não pertença ao respetivo proprietário como tal, não haverá servidão. Conforme defendem Pires de Lima e Antunes Varela, a configuração do direito à água que nasce do prédio alheio do título da sua constituição. Esse direito pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de as aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo é o da servidão. A constituição do direito de propriedade sobre as águas de fontes e nascentes depende naturalmente da verificação dos factos aquisitivos previstos no artigo 1316.º CC em relação aos bens imóveis, ou seja, o contrato, sucessão por morte, usucapião e acessão. Já as servidões sobre essas águas podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa (artigo 1547.º CC). Em relação à usucapião, no entanto, esta só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e posse de água nesse prédio; sobre o significado das obras é admitida qualquer espécie de prova (artigo 1390.º, n.º2 CC). Pelo contrário, em caso de divisão ou partilha de prédios sem intervenção de terceiro, a constituição de servidão por

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão destinação do pai de família (artigo 1549.º CC) não depende da existência de sinais reveladores da destinação do antigo proprietário (artigo 1390.º, n.º3 CC). Mesmo em caso de ausência de título justo, o artigo 1391.º CC permite aos donos dos prédios para onde se derivam as águas vertentes de qualquer fonte ou nascente efetuar o seu aproveitamento nestes prédios, estabelecendo, no entanto, que a privação desse uso, em virtude de novo aproveitamento que faça o proprietário da fonte ou nascente não constitui violação do direito. O proprietário da fonte ou nascente sofre, no entanto, algumas restrições em relação ao seu direito de aproveitamento das águas, uma vez que não lhe é permitido mudar o seu curso costumado, se os habitantes de uma povoação ou casal há mais de cinco anos se abastecerem dela ou das suas águas vertentes para gastos domésticos (artigo 1329.º, n.º1 CC). Nesse caso, se os habitantes da povoação ou casal não tiverem adquirido por título justo o uso das águas, o proprietário tem direito a indemnização, que será paga, conforme os casos, pela respetiva junta de freguesia ou pelo dono do casal (artigo 1392.º, n.º2 CC). Nos termos do artigo 1393.º CC, o regime estabelecido para as fontes e nascentes é igualmente aplicável, com as necessárias adaptações, às águas pluviais referidas na alínea a) do n.º1 do artigo 1386.º CC e às águas dos lagos e lagoas compreendidas na alínea c) do mesmo número. Existe, porém, um regime particular para as águas subterrâneas. Efetivamente, refere o artigo 1394.º, n.º1 CC, que é lícito ao proprietário procurar águas subterrâneas no seu prédio, por meio de poços ordinários ou artesianos, minas ou quaisquer escavações, contanto que não prejudique direitos que terceiro haja adquirido por título justo. O proprietário tem assim a faculdade de explorar livremente as águas subterrâneas, só deixando se o poder fazer se existir algum direito sobre essas águas resultantes de título justo. Consideramse títulos justos de aquisição das águas subterrâneas os constantes dos n.º1 e 2 do artigo 1390.º CC (artigo 1395.º, n.º1 CC), ou seja, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, e só sendo a usucapião atendida quando for acompanhada da construção de obras visíveis e permanentes. Uma vez que o artigo 1395.º CC não remete para o disposto no artigo 1390.º, n.º3 CC, a constituição neste caso de servidão por destinação do pai de família só poderá verificar-se nos termos gerais do artigo 1549.º CC. Esclarece ainda o artigo 1395.º, n.º2 CC que a simples atribuição a terceiro do direito de explorar águas subterrâneas não importa, para o proprietário, privação do mesmo direito, se tal abdicação não resultar claramente do título. Face ao poder atribuído ao proprietário de explorar a água subterrânea, a diminuição do caudal de qualquer água pública ou particular em resultado dessa exploração não constitui violação de direitos de terceiro, exceto se a captação se fizer por meio de infiltrações provocadas e não naturais (artigo 1394.º, n.º2 CC). No entanto, o proprietário que, ao explorar águas subterrâneas, altere ou faça diminuir as águas de fonte ou reservatório destinado a uso público é obrigado a repor as coisas no estado anterior; não sendo isso possível, deve fornecer, para o mesmo uso, em local apropriado, água equivalente àquela de que o público ficou privado (artigo 1396.º CC). Natureza do direito de propriedade: a propriedade é tradicionalmente concebida de acordo com duas teorias:

4. A teoria do domínio ou do senhorio; 5. A teoria da pertença ou da sujeição. Os romanos traduziam os dois conceitos através das expressões dominium e proprietas. No âmbito da primeira toma-se em consideração as faculdades que sobre a coisa são atribuídas ao seu titular, enquanto que na segunda teoria se toma antes em consideração a relação que se estabelece entre a pessoa e a coisa. A teoria do senhorio corresponde assim a uma conceção quantitativa da propriedade, identificado como o direito mais amplo que se pode ter sobre as 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão coisas. Já a teoria da pertença corresponde a uma conceção qualitativa, expressando a relação de subordinação da coisa ao seu titular. A teoria da pertença, sendo mais antiga, não tem hoje praticamente defensores, tendo sido defendida na pandectistica por Neuner. Já a teoria do senhorio foi adotada no célebre artigo 544.º Code Civil, tendo sido igualmente sido defendida na pandectística por Windscheid, Dernburg e Von Gierke. A conceção dominante entre nós tem sido a da teoria do senhorio, tendo aderido a esta conceção Guilherme Moreira, Henrique Mesquita, Carlos Mota Pinto, Oliveira Ascensão, Carvalho Fernandes. Pires de Lima adotou uma conceção mista. Menezes Cordeiro, tendo criticado a adoção por Oliveira Ascensão da teoria do senhorio, por considerar que o usufrutuário tem mais poderes sobre a coisa do que o nu proprietário, acabou por definir a propriedade apenas como a permissão normativa plena e exclusiva de aproveitamento de uma coisa corpórea. Já José Alberto Vieira não julga necessário optar por nenhuma das formulações. Consideramos claramente preferível a teoria do senhorio, o que nos leva a definir a propriedade como o direito real, que permite ao seu titular, dentro dos limites da lei, o aproveitamento pleno e exclusivo de todas e quaisquer utilidades proporcionadas por uma coisa corpórea.

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Secção III – A propriedade horizontal

O tipo legal da propriedade horizontal: caso a propriedade horizontal não haja sido constituída validamente, não é possível que o direito de propriedade tenha uma fração de um edifício por objeto. Nesse caso, a propriedade, em regime de propriedade ou de comunhão (compropriedade), terá por objeto todo o edifício e não cada uma das frações em que este seja suscetível de ser decomposto de acordo com um critério económico e social. A sujeição de um edifício ao regime da propriedade horizontal muda este cenário, tornando possível que cada uma das frações em que se decompõem juridicamente o mesmo seja objeto de uma afetação jurídica diferenciada das demais. Deixa de haver uma propriedade sobre todo o edifício e passam a coexistir várias propriedades sobre cada uma das frações em que o edifício foi repartido. Numa primeira aproximação, a propriedade horizontal representa, assim, um tipo especial do direito de propriedade que tem por objeto uma fração autónoma de edifício constituído nesse regime. A constituição da propriedade horizontal não se esgota com a divisão do edifício por frações ou, dito por outras palavras, as frações autónomas não são o único objeto a considerar na propriedade horizontal. Para além das frações autónomas, subsiste o problema da atribuição jurídica das partes do edifício que não fazem parte de nenhuma fração, as denominadas partes comuns. Desde logo, o próprio solo em que o edifício assenta mas também outras partes do mesmo, como telhados, paredes externas de fachada, logradouros, etc. O artigo 1421.º, n.º1 CC estabelece as partes do edifício que se consideram imperativamente comuns, ou seja, cuja natureza comum não pode ser afastada no título constitutivo. O n.º2 do mesmo preceito fixa, diferentemente, as partes do edifício que podem ser incluídas em fração autónoma ou integrar as partes comuns do mesmo (as partes supletivamente comuns). O tipo da propriedade horizontal envolve, assim, uma posição dúplice do condómino: por um lado, proprietário da fração; por outro, comproprietário das partes comuns do edifício que não constituem frações autónomas. Essa duplicidade vem expressa no artigo 1420.º, n.º1 CC: cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício. O n.º2 acrescenta que o conjunto dos dois direitos é incindível. A expressão é infeliz, porquanto não se trata, na realidade, de dois, mas de apenas um direito: o direito de propriedade horizontal. Este direito estende-se simultaneamente à fração autónoma e às partes comuns. O conteúdo típico do direito de propriedade horizontal exprime esta duplicidade. No que toca à fração autónoma, o conteúdo do direito do condómino tem a mesma feição da propriedade: o conteúdo positivo do tipo deste direito (artigo 1305.º CC) aplica-se igualmente à propriedade horizontal. Por conseguinte, o condómino pode usar e fruir a fração e as partes comuns do edifício, assim como dispor do seu direito, constituindo direitos reais de gozo, de garantia ou de aquisição. O conteúdo do direito de condómino sobre as partes comuns não está sujeito à aplicação direta do regime da compropriedade. Isto porque a lei prevê um regime especial para a compropriedade das partes comuns, que aparece disperso por vários preceitos do Capítulo VI, em particular nos artigos 1420.º e seguintes CC, destacando-se a regra contida no artigo 1423.º CC, segundo a qual, nenhum dos condóminos pode pedir a divisão das partes comuns do edifício. Porém, em tudo o que não contrarie o regime da propriedade horizontal, o regime da compropriedade é subsidiariamente aplicável. Em jeito de síntese, podemos dizer que o direito de propriedade horizontal é o direito do condómino sobre o edifício constituído nesse regime. Dizer que se trata apenas de um direito sobre a fração autónoma representa ignorar a extensão do direito às partes comuns do edifício. Por outro lado, rejeitamos a tese da existência de dois direitos (à fração autónoma e às partes comuns); existe um único direito: o direito de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propriedade horizontal. O conteúdo desse direito exprime a duplicidade do seu objeto e o regime jurídico que cada parte do mesmo se encontra sujeito.

A delimitação negativa do tipo propriedade horizontal: a delimitação negativa do direito de propriedade horizontal é a mesma do direito de propriedade. Isso mesmo se dispõe no artigo 1422.º, n.º1 CC. Deste modo, e a título de exemplo, o regime jurídico das relações de vizinhança tem igualmente aplicação direta no âmbito da relação entre condóminos. Ainda assim, existe um conteúdo negativo que introduz uma delimitação específica da propriedade horizontal. Os deveres que conformam esse conteúdo negativo específico da propriedade horizontal constam principalmente do artigo 1422.º, n.º2 CC. O condómino não pode:  Prejudicar a segurança, a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício, com obras novas ou com falta delas (alínea a));  Destinar a fração a usos ofensivos dos bons costumes (alínea b));  Dar à fração um uso diverso do que lhe é destinado (alínea c));  Praticar atos ou levar a cabo atividades vedadas pelo título constitutivo ou proibidas por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição (alínea d)). Outros deveres específicos surgem dispersos pelo regime jurídico da propriedade horizontal. As despesas com a conservação do edifício e as despesas com serviços de interesse comum cabem os condóminos na proporção do valor das suas quotas (artigo 1424.º, n.º1 CC). Sobre cada condómino pesa igualmente o dever de realizar um seguro contra o risco de incêndio, quer na fração autónoma quer nas partes comuns.

A dualidade do objeto da propriedade horizontal : o objeto do direito de propriedade horizontal não reside somente na fração autónoma. Tal afirmação, apesar de frequente, exprime apenas uma parte da realidade, pois, a posição jurídica do proprietário contém poderes e deveres que respeitam igualmente às partes comuns do edifício, o que mostra que estas pertencem igualmente ao objeto do direito. Podemos dizer, por conseguinte, que o objeto do direito de propriedade horizontal se compõe da fração autónoma e das partes comuns do edifício. As partes comuns podem variar consoante o título constitutivo da propriedade horizontal. Essa variação respeita apenas às partes supletivamente comuns, dado que existem partes do edifício que a lei considera sempre comuns, não obstante disposição em contrário do título constitutivo. As partes imperativamente comuns são as que surgem enumerados no artigo 1421.º, n.º1 CC. Se o título constitutivo especifica que alguma delas integra uma fração autónoma, ele é nulo, por violação de norma injuntiva (artigos 280.º, n.º1 e 294.º CC). As partes do edifício indicadas no artigo 1421.º, n.º2 CC presumem-se apenas comuns. Isto quer dizer, que no título constitutivo da propriedade horizontal pode ser determinado que fazem parte de uma dada fração autónoma ou que constituem mesmo uma fração autónoma (o caso da dependência do porteiro ou das garagens e lugares de estacionamento). Algumas partes do edifício que a lei portuguesa considera imperativamente comuns podem ser afetas ao uso exclusivo de um condómino (artigo 1421.º, n.º1 CC). Nesse caso não integrando embora a fração autónoma, essa parte fica subtraída ao uso de todos os condóminos, para permanecer reservado à utilização de um deles. Os exemplos conhecidos dos terraços de cobertura afetos às frações do último piso ou dos jardins exteriores de algumas frações ilustram essa possibilidade.

Requisitos civis de constituição da propriedade horizontal. O título constitutivo: a constituição da propriedade horizontal sobre um edifício obedece simultaneamente a requisitos do Direito Civil e de Direito Público, em particular, Direito do Urbanismo. Quanto a este último,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão indique-se o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 55/99, 16 dezembro, objeto de alterações sucessivas. Apenas nos interessam os requisitos civis da propriedade horizontal; eles são os seguintes (artigo 1414.º CC):

1. A propriedade horizontal só pode recair sobre um edifício, portanto, sobre uma coisa imóvel com determinadas características de construção; 2. O edifício, por sua vez, tem de estar dividido em frações autónomas; 3. As frações autónomas do edifício devem ser independentes entre si. A propriedade horizontal constituo uma propriedade que tem por objeto um edifício dividido em frações autónomas. O que são frações autónomas? São partes do edifício capazes de afetação individual a um fum (habitação, comércio, exercício de profissão liberal, exercício de atividade industrial, etc.). Não basta, todavia, que as frações estejam aptas a permitir a realização de um fim de pessoas, singulares ou coletivas. A lei exige que sejam independentes, todas elas não apenas alguma ou algumas (artigos 1414.º e 1415.º CC). Quando é que se pode dizer que as frações autónomas são independentes? No artigo 1415.º CC dá-se a resposta: se forem distintas e isoladas entre si e com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública. No artigo 1416.º, n.º1 CC dispõe que a falta dos requisitos exigidos importa a nulidade do título constitutivo. O preceito acrescenta, todavia, e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade. Este preceito tem de ser interpretado com cautela. Na verdade, a lei assume o cenário em que alguma ou algumas das frações autónomas foram, entretanto, alienadas a terceiro. Nesse caso, o edifício ficará sujeito ao regime da compropriedade entre os titulares das frações em que o prédio foi dividido para efeitos de constituição de propriedade horizontal. Contudo, esse cenário não é forçoso. O proprietário singular que constituiu o regime da propriedade horizontal sobre o edifício e que não consumou a alienação de alguma fração autónoma não pode ser considerado um comproprietário; com quem? Nesse caso, afigura-se óbvio que o regime aplicável será o da propriedade singular. Portanto, em caso de nulidade do título constitutivo, o edifício ficará sujeito ao regime de propriedade singular ou de compropriedade consoante o número de adquirentes das frações autónomas. Se houver apenas um condómino, o edifício fica em propriedade singular. Como sabemos, o título constitutivo de um direito real é representado pelo facto ou conjunto de factos jurídicos do qual nasce essa situação jurídica. A lei elenca o artigo 1417.º, n.º1 CC quais os factos suscetíveis de constituir o regime de propriedade horizontal sobre edifício com os requisitos acima indicados. Trata-se de matéria já anteriormente abordada, pelo que nos limitamos a remeter para o capítulo dos factos constitutivos de direitos reais. Importa, no entanto, realçar que, para além dos requisitos civis da propriedade horizontal, a lei estabelece ainda requisitos de validade do próprio título constitutivo (artigo 1418.º, n.º1 CC):

1. As frações devem ser individualizadas; 2. O valor atribuído a cada fração deve ser expresso em percentagem ou permilagem do valor total do prédio. A falta de cumprimento destas especificações do título acarreta a nulidade do mesmo (artigo 1418.º, n.º3 CC). Para além das indicações obrigatórias do título constitutivo, o artigo 1418.º, n.º2 CC preceitua ainda a possibilidade do título constitutivo conter:

1. Menção do fim a que se destina cada fração ou parte comum (alínea a)); 2. Regulamento do condomínio;

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3. Previsão de compromisso arbitral para a resolução de litígios emergentes da relação de condomínio. A indicação do fim a que se destina cada fração ou parte comum é meramente supletiva, mas, nesse caso, ela tem de bater certo com o projeto que foi aprovado pela entidade administrativa competente, sob pena de nulidade do título constitutivo (artigo 1418.º, n.º3 CC).

Título constitutivo e posição do condómino: o título constitutivo deve especificar a percentagem ou permilagem de cada fração no valor total do prédio, sob pena de nulidade (artigo 1418.º, n.º3 CC). A determinação da percentagem ou permilagem da fração no valor total do prédio repercute-se diretamente no exercício do direito de propriedade horizontal do condómino. Assim:  A cada condómino cabe a fruição nos rendimentos gerados pelas partes comuns do edifício de acordo com o valor da percentagem ou permilagem da sua fração;  As despesas e encargos gerados pelas partes comuns, assim, como as despesas com inovações devem ser suportados pelos condóminos na proporção do valor das suas frações (artigo 1424.º, n.º1 e 1426.º, n.º1 CC);  O voto do condómino na assembleia de condóminos afere-se pelo valor, em percentagem ou permilagem, da sua fração no conjunto do valor total do edifício. O título constitutivo pode, no entanto, consagrar desvios a estas regras, conforme se admite expressamente no n.º1 do artigo 1424.º CC («salvo disposição em contrário»). Estes desvios tanto podem dizer respeito ao pagamento das despesas e encargos do condomínio, como a própria fruição do condómino. Em todo o caso, e no tocante à fruição, o título constitutivo não pode eliminar de todo o poder de fruir do condómino, sob pena de violação da tipicidade legal e consequente nulidade do título constitutivo (artigo 1306.º, n.º1 CC). Não há propriedade sem fruição (artigo 1305.º CC). Uma vez assente a posição do condómino no título constitutivo, ela só pode ser alterada com a modificação deste. O que não se afigura fácil, porquanto a modificação está sujeita à forma legal de escritura pública e pode ser feita somente havendo unanimidade entre todos os condóminos (artigo 1419.º, n.º1 CC). A lei suaviza um pouco a burocracia do ato permitindo que a outorga da escritura de modificação possa ser feita pelo administrador em representação de condomínio, desde que haja acordo obtido em assembleia e a ata da mesma seja assinada por todos os condóminos.

Efeitos da constituição da propriedade horizontal: apenas o proprietário singular e os comproprietários, voluntariamente ou em ação de dívida da coisa comum, podem submeter o edifício ao regime da propriedade horizontal. Uma vez concluída a constituição válida da propriedade horizontal, o anterior proprietário singular adquire tantos direitos de propriedade horizontal quantas as frações autónomas individualizadas no título constitutivo. Se o edifício estava em compropriedade, os direitos às frações podem resultar do título constitutivo. Se este for omisso, deve entender-se que os comunheiros adquirem a compropriedade sobre todas as frações autónomas na proporção das respetivas quotas na compropriedade do edifício. Em contrapartida da constituição da propriedade horizontal, o direito de propriedade singular ou a compropriedade sobre o imóvel extingue-se. Deixa de haver um direito de propriedade (ou vários no caso da compropriedade) sobre todo o imóvel, para passar a haver tantos direitos de propriedade horizontal quantas as frações autónomas individualizadas no título constitutivo. Adquirido o direito de propriedade horizontal sobre a fração, o proprietário pode exercer qualquer dos poderes conteúdo do seu direito, vender, doar, onerar, devendo, todavia, cumprir os deveres que delimitam a extensão do aproveitamento concedido por ele. 大象城堡

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As fontes normativas da propriedade horizontal. Especial referência ao título constitutivo e ao regulamento do condomínio: a primeira fonte do condomínio está, naturalmente, na lei. Ainda assim, encontramos no regime jurídico da propriedade horizontal o reconhecimento de um largo espaço de autonomia privada. Essa autonomia é exercida, desde logo, por quem constitui a propriedade horizontal, que pode determinar normativamente a vida do condomínio em alguns aspetos fulcrais:  O valor das frações, com as implicações que vimos no ponto anterior (artigo 1418.º, n.º1 CC);  O fim de utilização de cada uma das frações autónomas (artigo 1418.º, n.º2, alínea a) CC);  A elaboração do regulamento do condomínio (artigo 1418.º, n.º2, alínea b) CC). O título constitutivo representa a segunda fonte normativa de regulação do condomínio. Quer o regulamento quer as deliberações da assembleia de condóminos devem estar em conformidade com ele, sob pena de nulidade. Em terceiro lugar, depois de a lei e do título constitutivo, surge o regulamento do condomínio, cuja elaboração é obrigatória em edifícios com mais de quatro frações autónomas (artigo 1429.º-A, n.º1 CC). Por último, temos as deliberações da assembleia dos condóminos. Elas devem incidir somente sobre a administração das partes comuns do edifício, única matéria para a qual têm competência os órgãos do condomínio. Do artigo 1433.º,, n.º1 CC retira-se que as deliberações da assembleia devem estar em conformidade com a lei e o regulamento, e, acrescentamos nós, com o título constitutivo.

Competência dos órgãos do condomínio. A administração das partes comuns: os órgãos do condomínio são a assembleia de condóminos, onde têm assento todos os condóminos, e o administrador, que é eleito e exonerado pela assembleia (artigo 1435.º, n.º1 CC), sem prejuízo dos casos em que a nomeação ou exoneração resulta de decisão judicial (artigo 1435.º, n.º2 e 3 CC). Os órgãos do condomínio existem unicamente para a administração das partes comuns. Nesse sentido se dispõe no artigo 1430.º, n.º1 CC. Isto impõe a demarcação rigorosa daquilo sobre o que os órgãos do condomínio podem deliberar e executar e o que, não estando na sua competência, cai fora do seu âmbito de atuação. Os órgãos do condomínio não têm competência de deliberação ou de execução relativamente ás frações autónomas. Se um condómino coloca a aparelhagem sonora num volume superior ao permitido, perturbando os vizinhos, viola o dever de não emissão, que surge consagrado no artigo 1346.º CC. O condómino ou condóminos afetados podem reagir enquanto proprietários de prédios vizinhos, mas a assembleia de condóminos, não se tratando de um assunto que respeite à administração das partes comuns, não tem competência para deliberar sobre a matéria. Também se uma deliberação da assembleia proíbe os condóminos de receber amigos depois das 24 horas, nenhum deles se encontra vinculado pelo seu teor. Esta deliberação extravasa do âmbito de competência do condomínio, respeitando ao exercício do direito de propriedade sobre a fração, que pertence ao titular respetivo. Esta delimitação da competência dos órgãos do condomínio não se reflete somente nas deliberações da assembleia, podendo repercutir-se igualmente em normas aprovadas no regulamento do condomínio. Assim, por exemplo, uma cláusula do regulamento pode prever a proibição dos condóminos terem animais domésticos nas frações, cães, gatos ou outros, ou de instalarem aparelhos de ar condicionado nas mesmas. Tal norma não vincula os condóminos, dado que atinge o domínio da propriedade sobre as frações. Portanto, o limite da atuação dos órgãos do condomínio encontra-se nas partes comuns do edifício. O aproveitamento das frações autónomas pertence exclusivamente aos proprietários respetivos. Isto não significa obviamente que os condóminos não estejam sujeitos às restrições 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão de vizinhança nas relações entre si, uma vez que a delimitação negativa da propriedade opera igualmente no campo da propriedade horizontal. Porém, em caso de violação de um dever de vizinhança pelo proprietário de uma fração, cabe ao condómino ou condóminos afetados reagir nos termos gerais de Direito, incluindo o pedido judicial de condenação na cessação da atividade ilícita e a indemnização pelos danos sofridos.

Deliberações da assembleia de condóminos: a assembleia de condóminos constitui o órgão colegial do condomínio. Não obstante o condomínio não ser uma pessoa jurídica, o órgão assembleia de condóminos delibera em assuntos de administração das partes comuns do edifício, cabendo-lhe a última palavra, o que implica inclusive revogar os atos do administrador a recurso de qualquer condómino (artigo 1438.º CC). A assembleia reúne quando convocada para o efeito. A convocação pode ser feita pelo administrador, pelos condóminos que representem 25% do capital total do edifício e ainda por qualquer condómino em recurso de ato do administrador (artigo 1438.º CC). A realização de uma assembleia está sujeita a um apertado formalismo de convocação que se prende sobretudo com a necessidade de assegurar o conhecimento prévio dos condóminos sobre os assuntos sujeitos a deliberação. Caso o formalismo legal não seja cumprido, as deliberações tomadas são inválidas e podem ser impugnadas nos termos que veremos adiante. Toda a reunião da assembleia de condóminos deve ser precedida de uma convocatória. Segundo o n.º1 do artigo 1422.º CC, essa convocatória pode ser feita mediante carta registada, enviada com 10 dias de antecedência, ou aviso convocatório assinado pelos condóminos. Da convocatória deve obrigatoriamente constar (artigo 1432.º, n.º2 CC):  Dia, hora, local e ordem de trabalhos, ou seja, os assuntos a discutir e as deliberações a tomar;  Informações sobre os assuntos que devem ser aprovados por unanimidade. Ainda que a convocatória haja sido feita regularmente, a assembleia só pode reunir havendo o quorum legal. Esse quorum corresponde ao número de condóminos cujos votos possam perfazer a maioria legal para as deliberações anunciadas na convocatória. Se a lei impuser a unanimidade, todos os condóminos devem estar presentes ou representados por procurador; se impuser uma maioria qualificada, os votos dos condóminos presentes têm de ser suficientes para fazer a maioria legal de aprovação. A regra é a de que as deliberações são tomadas por maioria do capital investido, salvo disposição especial que imponha uma diferente maioria (artigo 1432.º, n.º3 CC). Por conseguinte, em assembleia reunida em primeira convocatória, quando a lei não disponha diferentemente, as deliberações só podem ser aprovadas quando essa maioria as votar favoravelmente. A situação muda quando a assembleia não pode reunir em primeira convocatória, por falta de condóminos em número suficiente para perfazer o quorum legal. O n.º4 do artigo 1432.º CC permite então que seja convocada uma nova assembleia, que, na falta de aviso em contrário, terá lugar uma semana depois na mesma hora e local. Na assembleia reunida em segunda convocatória o quorum desce para um quarto do valor total do prédio. Se estiverem presentes condóminos em número suficiente para assegurar este valor, a assembleia pode reunir regularmente, dispondo-se no artigo 1432.º, n.º4 CC, que ela pode deliberar por maioria de votos dos condóminos presentes. Este preceito deve ser convenientemente interpretado. Ele não significa que em segunda convocatória a assembleia de condóminos possa deliberar com maioria simples em todas as matérias em que a lei exige unanimidade ou maioria qualificada. O seu sentido reside apenas na derrogação da regra geral constante do n.º3; não havendo disposição legal exigindo a unanimidade ou uma maioria qualificada, a assembleia de condóminos pode deliberar validamente em segunda convocatória com maioria simples. As 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão deliberações devem ser comunicadas a todos os condóminos ausentes por carta registada com aviso de receção, no prazo de 30 dias (artigo 1436.º, n.º6 CC). Na falta de comunicação, a deliberação não perde a sua validade, mas é juridicamente ineficaz relativamente aos condóminos que não a receberam. Mesmo ausentes da assembleia, os condóminos podem aprovar ou rejeitar as deliberações tomadas, com os efeitos jurídicos associados a esse comportamento. Para rejeitar, o condómino ausente tem 90 dias para comunicar por escrito à assembleia a sua discordância com a deliberação. Se nada fizer nesse prazo, a deliberação temse por aprovada (artigo 1432.º, n.º8 CC); este representa um dos casos em que o silêncio tem valor declarativo no Direito português. O valor jurídico das deliberações da assembleia de condóminos: as deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que não as tenha aprovado, dispõe-se no artigo 1433.º, n.º1 CC. Ao elenco da lei e dos regulamentos, acrescentamos o título constitutivo, em segundo lugar na hierarquia das fontes reguladoras do condomínio. De qualquer modo, este preceito é outro daqueles que requer uma atenção particular na sua interpretação. Tomado à letra, ele significaria que uma deliberação contrária à lei seria sempre anulável, qualquer que ela fosse, e, portanto, ainda que incidisse sobre matérias subtraídas à competência da assembleia, nomeadamente, matérias respeitantes às frações autónomas ou mesmo a aspetos exteriores ao condomínio. O problema não é de todo irrelevante do ponto de vista jurídico. Uma deliberação anulável convalida-se se não for requerida a respetiva anulação no prazo legal e, por conseguinte, pode vir a ser perfeitamente eficaz na ordem jurídica. Suponhamos agora, a título exemplificativo, que a assembleia de condóminos delibera proibir um condómino de usar a sua fração ou proíbe o seu arrendamento a terceiro e o condómino visado não reage judicialmente dentro do prazo de impugnação aplicável. A deliberação tornou-se eficaz quanto a ele (convalidação), vinculando-o no seu teor? A resposta é negativa. O artigo 1433.º, n.º1 CC abrange apenas as deliberações tomadas sobre as matérias para as quais a assembleia tenha competência, ou seja, a administração das partes comuns (artigo 1430.º, n.º1 CC). Qualquer deliberação tomada fora do âmbito da competência da assembleia é juridicamente nula e não apenas anulável. O condómino afetado não tem, pois, de lhe dar cumprimento, uma vez que ela não o vincula. A impugnação das deliberações anuláveis segue a tramitação prevista nos n.º2 a 6 do artigo 1433.º CC. Tem legitimidade para obter a anulação da deliberação somente o condómino que não a haja aprovado (artigo 1433.º, n.º1, in fine CC). A lei dá ao condómino com legitimidade para requerer a anulação da deliberação uma tripla alternativa:  Exigir ao administrador no prazo de 10 dias contado da deliberação, ou contado da sua comunicação no caso de condóminos ausentes, a convocação de uma assembleia extraordinária, com a finalidade de deliberar a revogação da deliberação contestada (artigo 1433.º, n.º2 CC);  Sujeitar a deliberação a um centro de arbitragem, no prazo de 30 dias contado da deliberação (artigo 1433.º, n.º3 CC);  Propor ação de anulação da deliberação, o que pode ser feito no prazo de 20 dias contado da deliberação da assembleia extraordinária, se a ela houve lugar, ou de 60 dias, se não foi solicitada (artigo 1433.º, n.º4 CC). O recurso a qualquer destas alternativas não impede o requerimento judicial de suspensão da execução da deliberação, nos termos da lei do processo civil (artigo 1433.º, n.º5 CC).

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A natureza jurídica da propriedade horizontal: o tema da natureza jurídica da propriedade horizontal tem sido debatido pelos especialistas. Há várias teses em presença:

1. A propriedade horizontal como proprietário superficiária: esta tese pertence a Salis.

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Não vislumbramos, todavia, nenhuma verosimilhança nela. Os condóminos não são superficiários do solo do edifício, são comproprietários do mesmo e o seu estatuto de comproprietário integra o direito de propriedade horizontal, não sendo um direito diferenciado do direito de cada condómino à fração autónoma. A propriedade horizontal como organização personificada (pessoa coletiva): conceber a propriedade horizontal como uma situação de personificação equivale a dizer que o imóvel pertence a uma pessoa coletiva que tem os condóminos por associados, cada um deles com uma participação de determinado valor. Cada condómino tem um direito a participar e votar na assembleia de condóminos e goza a coisa na proporção da sua posição na pessoa coletiva. A vantagem desta conceção parece estar na predominância de um interesse coletivo sobre as posições individuais dos condóminos. Esta teoria não tem nenhuma aderência ao regime jurídico. O regime da propriedade horizontal não gera uma pessoa jurídica acima dos condóminos que seja titular de situações jurídicas. A organização existente promove a administração da coisa comum, mas não cria o processo de imputação de uma vontade a uma nova pessoa jurídica. A propriedade horizontal como compropriedade: a tese da compropriedade – sustentada em Portugal por Cunha Gonçalves – defende que todos os condóminos são comproprietários da totalidade do edifício, seja das partes comuns seja das frações autónomas. A lei reserva, no entanto, o gozo de uma parte do imóvel (a fração) para um dos condóminos, promovendo apenas o gozo concorrente relativamente às partes comuns. Não há, assim, direitos sobre as frações, mas uma posição unitária dos condóminos em regime de comunhão (compropriedade). Contra a tese da compropriedade pode dizer-se que ela não explica porque razão os condóminos estão excluídos completamente do gozo das frações que não aquela que lhes pertence, não podendo usar, fruir de grande parte da coisa comum, e não tendo sequer nenhuma palavra na alienação ou oneração da posição individual de cada condómino, nem o direito de preferência. Também não se percebe porque razão a assembleia tem apenas competência para deliberar sobre as partes comuns se a comunhão respeita a todo o edifício. Isto só se explica, porque, como se depreende do artigo 1420.º, n.º1 CC, as frações autónomas dos condóminos não estão em comunhão. A propriedade horizontal como situação dualista com incidência de dois direitos distintos: esta tese dualista defende que no regime de propriedade horizontal o condómino não tem um, mas dois direitos: o direito, de propriedade, sobre a fração autónoma e o direito, de compropriedade, sobre as partes comuns. É, segundo Larroumet, a tese hoje subjacente ao ordenamento jurídico francês. Esta tese tiraria um apoio aparente do artigo 1420.º, n.º1 CC. Todavia, ela surge logo desmentida pelo n.º2, que dispõe ser o conjunto dos dois direitos incindível, um eufemismo afinal para uma posição jurídica unitária: o direito de propriedade horizontal. A propriedade horizontal como direito real autónomo (sui generis): a posição, segundo a qual, o direito de propriedade horizontal constitui um direito novo ganhou um espaço considerável na doutrina portuguesa. Menezes Cordeiro, Pires de Lima/Antunes Varela, Henrique Mesquita, Carvalho Fernandes, Santos Justo, José Alberto González. A estes autores impressiona a combinação singular que surge na propriedade horizontal entre uma propriedade, sobre a fração, e uma compropriedade, sobre as partes comuns. Mas 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a forma de conceber um direito real novo não aparece de modo uniforme entre estes autores. a. Menezes Cordeiro salienta tratar-se de um direito real complexo, sugerindo alguma proximidade à tese dualista, que é, no entanto, rejeitada; b. Carvalho Fernandes afasta a tese do direito real complexo, preferindo salientar os desvios ao regime da propriedade singular e da compropriedade para fundamentar a sua posição de um direito real novo. A ser um direito real novo seria um direito real menor, uma vez que a propriedade ocupa o lugar do direito real de maior extensão. Se assim é, não conseguimos ver que haja uma propriedade por cima dos direitos de propriedade horizontal. E assim teríamos de concluir que o edifício constituído em propriedade horizontal não teria proprietário. O resultado seria um imóvel sem dono. O cenário parece perturbador, mas decorre logicamente da tese defendida de que a propriedade horizontal não constitui uma propriedade. Como não se vê onde a propriedade típica possa ter lugar nesta construção, só podemos afirmar que neste caso existe um edifício sem proprietário(s). 6. A propriedade horizontal como propriedade especial: tudo isto mostra, na verdade, que uma explicação fora dos quadros da propriedade não é possível. A lei confirma isso mesmo, dispondo que o condómino é proprietário da fração autónoma e comproprietário das partes comuns (artigo 1420.º, n.º1 CC). Por isso, o conteúdo típico do direito real de propriedade horizontal é o da propriedade. O facto de existirem especificidades na propriedade horizontal, tanto no que toca ao regime da propriedade singular como ao regime da compropriedade, particularmente, quanto aos deveres dos condóminos entre si e à organização do condomínio, não chega para descaracterizar a propriedade. As restrições de vizinhança existem na relação entre proprietários de prédios vizinhos. Porque não hão-de existir de modo mais intenso na relação entre condóminos, se a proximidade das coisas é maior? Maior proximidade, maior possibilidade de conflitos e, por isso, necessidade acrescida de regulação para os prevenir. Também o aspeto da organização do condomínio não impressiona. Em edifícios de muitas frações as regras incipientes de administração da comunhão não permitiram uma adequada gestão da coisa comum. Mas a organização da administração das partes comuns, desde que não acompanhada de personificação, como é o caso, não um argumento contra a propriedade. De resto, os comproprietários podem adotar um modelo semelhante administração da coisa comum, sem que a natureza da sua comunhão se transforme. No fundo, as especificidades do regime da propriedade horizontal, que existem, são insuficientes para a descaracterização do direito de propriedade horizontal num qualquer direito real sui generis. O que se passa simplesmente é uma adequação legal do conteúdo típico da propriedade a um objeto dual, fração e partes comuns, que a um tempo outorga ao condómino o gozo da propriedade singular (sobre a fração autónoma) e a outro lhe impõe a concorrência com a posição de outros proprietários (partes comuns do edifício). Em todo o caso, a propriedade horizontal não representa uma propriedade comum. As especificidades do regime jurídico não permitem uma recondução à propriedade singular ou à compropriedade. Permitem, porém, a qualificação de propriedade especial, como tem defendido Oliveira Ascensão, com a adesão de Pires de Lima/Antunes Varela. Portanto, o direito de propriedade horizontal é ainda um direito de propriedade, não obstante o seu regime ser o de uma propriedade especial.

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Secção II – A propriedade horizontal

Generalidades: a propriedade horizontal constitui um novo direito real, regulado nos artigos 1414.º e seguintes CC, que faz coexistir sobre o mesmo edifício dois tipos de faculdades distintas dos condóminos: as faculdades correspondentes à propriedade exclusiva sobre uma fração autónoma do prédio e as faculdades correspondentes à compropriedade sobre as partes comuns do edifício.

Evolução histórica da propriedade horizontal: ainda que existam referências históricas na Antiguidade, e no Direito Intermédio, a história da propriedade horizontal é relativamente curta, encontrando-se associada ao êxodo das populações rurais para as cidades a partir do século XIX, que se acentuou fortemente no século CC. A falta de solos disponíveis para a construção, como o consequentemente encarecimento dos terrenos, levou ao crescimento das cidades não apenas em extensão, com a multiplicação de subúrbios, mas também em altura, com a construção de grandes edifícios destinados a instalar várias famílias. Com essa construção em altura evitou-se assim um crescimento descomunal das cidades, que causaria enormes custos com o transporte das pessoas e bens. A construção em altura foi acentuada nos casos em que existiam limites geográficos à expansão das cidades, nomeadamente um rio ou o mar, como em New York ou no Rio de Janeiro, o que levou à construção de enormes arranha-céus. A construção em altura gerou consequentemente a necessidade de atribuir a propriedade separada do seu andar (apartamento) a cada proprietário, que é o que está na base do surgimento do instituto da propriedade bancária. Em França, a propriedade horizontal aparece pela primeira vez regulada no Code Civil de 1804. Em Itália, o Codice Civile de 1942 regula também o instituto. Entre nós, a propriedade horizontal aparece, depois de uma breve menção nas Ordenações Filipinas, prevista pela primeira vez no Código Civil de 1867, que regulou o modo de reparação e o conserto dos diversos andares dos edifícios pertencentes a diversos proprietários, quanto tal não se encontrasse previsto nos respetivos títulos. A Lei 2030, 22 junho 1948, no seu artigo 30.º da Parte III, faz referência ao instituto, denominando-o de propriedade por andares, determinando que o Governo deveria, num prazo de seis meses, proceder à revisão e regulamentação do artigo 2335.º CC, estabelecendo o regime da propriedade por andares ou propriedade horizontal. Tal regulamentação só veio, porém, a surgir com o Decreto-Lei 40333, de 14 de outubro de 1955, elaborado na sequência de um notável parecer da Câmara Corporativa, relatado por Manuel Duarte Gomes da Silva. Depois de uma definição do instituto, o diploma em questão regulava sucessivamente as formas de constituição da propriedade horizontal, o título constitutivo, a inscrição no registo predial e na matriz predial, os direitos dos proprietários, as suas obrigações, a destruição do edifício e a administração dos bens comuns. A propriedade horizontal veio depois a ser regulada no Código Civil de 1966. Posteriormente, o Código Civil viria a ser revisto nesta matéria pelo Decreto-Lei n.º267/94, 25 outubro, surgindo igualmente com a mesma data os Decretos-Lei n.º 268/94 e 269/94.

Requisitos legais da propriedade horizontal: para se poder constituir um edifício em propriedade horizontal, é necessário que o mesmo tenha condições adequadas para esse efeito, designadamente que o mesmo possa ser dividido em frações e que estas sejam suscetíveis de constituir unidades independentes. O artigo 1414.º CC apenas prevê a constituição do condomínio em relação a um edifício, admitindo o artigo 1438.º-A CC, que esse régie seja aplicado, com as necessárias adaptações, a conjuntos de edifícios contíguos funcionalmente ligados entre

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão si pela existência de partes comuns afetadas ao uso de todas ou algumas das unidades ou frações que os compõem. Inversamente, a lei nada refere quanto à possibilidade de num mesmo edifício se constituírem certas partes do edifício (torres, blocos ou conjuntos de frações), apesar de estar constituída apenas uma propriedade horizontal. Igualmente nada se encontra estabelecido em relação à possibilidade de agrupamento de vários condomínios no âmbito de um supercondomínio, ou condomínio complexo, quando existam ligações entre os imóveis que não justifiquem o estabelecimento de um único condomínio. Dispõe ainda o artigo 1415.º CC que só podem ser objeto de propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública. Exige-se assim que as frações autónomas sejam idóneas a constituir objeto do gozo exclusivo por parte dos condóminos.

As partes comuns do prédio: as partes comuns do prédio encontram-se previstas no artigo 1421.º CC, havendo que distinguir entre:

1. As partes do prédio que são obrigatoriamente comuns: referidas no artigo 1421.º, n.º1 CC, uma vez que são fundamentais para o uso comum do prédio, não é possível estipular a sua atribuição em propriedade exclusiva a qualquer condómino. São obrigatoriamente comuns: a. Em primeiro lugar (artigo 1421.º, n.º1, alínea a) CC): i. O solo: em relação ao solo, este compreende a área sobre a qual assenta o edifício, a qual é necessariamente comum a todos os condóminos. Mas já não compreende os pátios e jardins anexos (artigo 1421.º, n.º2, alínea a) CC), os quais, embora se presumam comuns, podem no título constitutivo ser atribuídos a uma só fração. Já o subsolo, dado que seguem a mesma condição do solo, é igualmente considerado parte comum, não podendo, em consequência, o proprietário do piso térreo, escavar profundamente no subsolo. ii. Os alicerces: em relação aos alicerces, eles compreendem todas as construções realizadas no subsolo com o fim de elevar e regular o edifício, designadamente as obras de sustentação e as caves. iii. As colunas e pilares: já as colunas e pilares constituem os esteios de sustentação do edifício, sendo as primeiras de forma cilíndrica e os pilares de forma facetada. iv. As paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio: em relação às paredes mestras, estas constituem as paredes que servem de esqueleto ao edifício, desde as fundações até à cobertura, e que por isso lhe dão o seu suporte. Apesar de a lei apenas se referir às paredes mestras, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que constituem obrigatoriamente partes comuns do edifício todas as paredes exteriores ao mesmo (paredes perimetrais), mesmo que não desempenhem a função de paredes mestras. São ainda comuns todas as partes que pertençam à estrutura do prédio. b. Em segundo lugar (artigo 1421.º, n.º1, alínea b) CC): i. O telhado: que, normalmente, corresponde a um conjunto de traves cobertas por telhas, é necessariamente comum, em virtude de servir de cobertura a toda a construção; ou

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ii. Os terraços de cobertura, anda que destinados ao uso do último pavimento: já em relação a estes, a obrigatoriedade da sua comunhão verifica-se, desde que eles sejam de cobertura, independentemente de assentarem sobre o último piso ou sobre piso intermédio. Em relação aos espaços entre o terraço e o último piso, habitualmente designados sótãos, vãos do telhado, ou águas furtadas, entendemos que não são obrigatoriamente comuns, presumindo-se, no entanto, como tal, salvo se o título constitutivo os afetar ao uso exclusivo de certos condóminos. c. Em terceiro lugar (artigo 1421.º, n.º1, alínea c) CC): i. Entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos. Basta, assim, que alguma zona de comunicação sirva mais de um condómino para se considerar parte comum. d. Por último (artigo 1421.º, n.º1, alínea d) CC): i. As instalações gerais de água, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes. Daqui resulta que, mesmo que afetados ao uso do último morador, que o pode utilizar pare recreio, depósito de coisas ou outros fins, a propriedade dos telhados e terraços é comum a todos os condóminos, pelo que, por exemplo, a decisão de construir sobre eles compete ao conjunto dos condóminos e não a quem beneficia da sua utilização. 2. As partes do prédio que são apenas presuntivamente comuns: referidas no artigo 1421.º, n.º2 CC, vigorando apenas, quando a estas, uma presunção, podendo o título constitutivo dispor de forma diferente. A lei admite, para além disso, que o título constitutivo possa afetar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns (artigo 1421.º, n.º3 CC), caso em que, apesar de essa parte se manter comum, fica afeta à utilização exclusiva por um condómino. Já em relação a estas, compreendem-se, nos termos do artigo 1421.º, n.º1 CC: a. Os pátios e jardins anexos ao edifício; b. Os ascensores; c. As dependência destinadas ao uso e habitação do porteiro; d. As garagens e outros lugares de estacionamento; e. Em geral, as coisa que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos. A presunção de comunhão é, nestes casos, ilidível, podendo a ilisão resultar do título constitutivo ou das próprias características do imóvel. Assim, por exemplo, é hoje em dia extremamente comum o título constitutivo não consagrar a comunhão dos lugares de estacionamento, atribuindo-lhes antes a natureza de frações autónomas. Para além disso, se um pátio ou jardim apenas tiver acesso pela habitação de um dos condóminos, é manifesto que não se lhe pode atribuir natureza de parte comum.

Constituição da propriedade horizontal: nos termos do artigo 1417.º, n.º1 CC, a propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa, ou decisão judicial proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário. O artigo 1526.º CC admite, porém, ainda um outro caso de constituição da propriedade horizontal, que é a realização de uma construção sobre edifício alheio, ao abrigo de um direito de superfície com esse conteúdo. Os factos jurídicos que determinem a constituição a propriedade horizontal estão sujeitos a registo (artigo 2.º, n.º1, alínea b) CRPr). Examinemos sucessivamente as formas de constituição da propriedade horizontal: 大象城堡

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1. Negócio Jurídico: a lei admite a constituição da propriedade horizontal por negócio jurídico. O negócio jurídico pode naturalmente ser celebrado inter vivos ou mortis causa. O negócio mortis causa é o testamento, sujeito à forma dos artigos 2204.º e seguintes CC. Em relação aos negócios inter vivos, eles podem corresponder a um contrato, como no caso da divisão amigável da coisa comum, com a sua constituição em propriedade horizontal (artigo 1413.º, n.º1 CC), ou a um negócio jurídico unilateral, no caso de ser o proprietário único do edifício a promover a sua constituição em propriedade horizontal. Em ambos os casos, o negócio constitutivo da propriedade horizontal deverá ser celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado (artigo 22.º Decreto-Lei n.º 116/2008), podendo ainda ser celebrado por documento particular ao abrigo do procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, constante do Decreto-Lei n.º 263-A/2007, 23 julho e da Portaria n.º 794-B/2007, 23 julho, que foi estendido à constituição da propriedade horizontal pela Portaria n.º 1167/2010, 10 novembro. A forma mais comum de constituição negocial da propriedade horizontal é, no entanto, a que resulta de um negócio jurídico unilateral do proprietário, podendo tal ocorrer até antes da própria constituição do edifício, caso em que o registo respetivo é lavrado como provisório por natureza (artigo 92.º, n.º1, alínea b) CRPr). O negócio jurídico constitutivo da propriedade horizontal pode ser objeto de uma obrigação voluntariamente assumida, designadamente no âmbito de um contrato-promessa incidente sobre fração autónoma a constituir. Neste caso, o artigo 10.º Decreto-Lei n.º268/94, 25 outubro, estabelece ser obrigação do promitente vendedor exercer as diligências necessárias relativas à constituição da propriedade horizontal e à obtenção da correspondente licença de utilização. O negócio jurídico unilateral de constituição da propriedade horizontal é, porém, sujeito a uma condição suspensiva da verificação da alienação de uma das frações a terceiro, uma vez que só haverá constituição da propriedade horizontal a partir do momento em que haja frações pertencentes a proprietários diversos. Até lá, o dono do prédio permanece como seu proprietário pleno, uma vez que, enquanto não existirem condóminos, não faz sentido aplicar as restrições da propriedade horizontal. 2. Usucapião: é complexa a situação da constituição da propriedade horizontal por usucapião, uma vez que neste caso a usucapião verificar-se-á normalmente apenas em relação a uma fração autónoma. Só que a aquisição por usucapião dessa fração autónoma implicará a sujeição de todo o edifício ao regime da propriedade horizontal. A usucapião da fração autónoma levará assim à constituição indireta da propriedade horizontal sobre todo o edifício. A constituição da propriedade horizontal por usucapião pressupõe, no entanto, naturalmente o preenchimento em relação às frações autónomas dos requisitos do artigo 1415.º CC. No caso contrário, a usucapião implicará apenas a constituição de uma situação de compropriedade. 3. Decisão Judicial: a propriedade horizontal pode constituir-se por sentença judicial, designadamente a proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário (artigo 1417.º, n.º2 CC). A propriedade horizontal pode igualmente constituirse por sentença, sempre que haja execução específica de um contrato-promessa de compra e venda de uma fração-autónoma de edifício ainda não sujeito a esse regime (artigo 830.º CC). Em todos estes casos, no entanto, a propriedade horizontal só poderá ser constituída se as frações autónomas satisfizerem os requisitos do artigo 1415.º CC. 4. Construção sobre edifício alheio: como se referiu, consideramos igualmente como constitutiva da propriedade horizontal a construção sobre edifício alheio com base num

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão direito de superfície com esse conteúdo (artigo 1526.º CC). Neste caso, a propriedade horizontal é constituída em resultado de um facto complexo de formação sucessiva: o negócio constitutivo de um direito de superfície relativo à construção sobre edifício alheio e a realização da construção sobre o edifício ao abrigo desse direito.

O título constitutivo: o título constitutivo da propriedade horizontal é um ato modelador do estatuto da propriedade horizontal e as duas determinações têm natureza real. Nos termos do artigo 1418.º, n.º1 CC, no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes a várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio. Além dessas especificações, o título constitutivo pode, porém, ainda conter designadamente:

5. Menção do fim a que se destina cada fração ou parte comum; 6. Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das frações autónomas; 7. Previsão do compromisso arbitral para a valorização dos litígios emergentes da relação do condomínio (artigo 1418.º, n.º2 CC). O artigo 59.º, n.º1 CNot vem estabelecer que os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as frações autónomas satisfazem os requisitos legais, sendo que tratandose de prédio construído para transmissão em frações autónomas, o documento a que se refere o número anterior pode ser substituído pela exibição do respetivo projeto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projetos de alteração aprovados pela câmara municipal (artigo 59.º, n.º2 CNot). Para além disso, o documento autêntico que se destine a completar o título constitutivo da propriedade horizontal, quanto à especificação das partes do edifício correspondentes às frações autónomas ou ao seu valor relativo, expresso em percentagens ou permilagem não pode ser lavrado sem observância do disposto nos número anteriores (artigo 59.º, n.º3 CNot). Por sua vez, o artigo 62.º, n.º1 CNot estabelece que nenhum instrumento pelo qual se transmitam direitos reais ou contraiam encargos sobre frações autónomas de prédios em regime de propriedade horizontal pode ser lavrado sem que se exiba documento comprovativo da inscrição do respetivo título constitutivo no registo predial, só não se aplicando essa exigência quando os atos de transmissão de direitos ou de constituição de encargos sejam lavrados no mesmo dia e com o conhecimento pessoal do notário de que foi lavrada o título constitutivo de propriedade horizontal, circunstância que deve ser expressamente mencionada (artigo 62.º, n.º2 CNot). A inscrição do título constitutivo no registo predial obriga a estabelecer uma descrição genérica do prédio ou prédios em regime da propriedade horizontal, com menção da série de letras correspondentes às frações para efeitos da sua individualização (artigo 82.º, n.º2 CRPr). Realiza-se depois uma descrição subordinada de cada fração autónoma, com menção do número da descrição genérica do prédio, seguido da letra ou letras das frações por ordem alfabética (artigo 83.º, n.º1, alínea a) CRPr), as menções relativas às características do prédio (artigo 83.º, n.º1, alínea b) CRPr) e o fim a que se destina a fração, se constar do título (artigo 83.º, n.º1, alínea c) CRPr). O extrato da inscrição deve ainda conter as menções especiais relativas ao valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, a existência de regulamento, caso este conste do título constitutivo, e os direitos dos condóminos neste título especialmente regulados (artigo 95.º, n.º1, alínea q) CRPr). Caso sejam incumpridos os requisitos legalmente exigidos para a constituição do prédio em propriedade horizontal, a consequência é a nulidade do título constitutivo e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418.º CC ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fração (artigo 1416.º, n.º1 CC). Trata-se neste caso de uma conversão legal automática distinta do instituto geral da conversão previsto no artigo 293.º CC. Alguma doutrina tem, porém, sustentado que, no caso de os requisitos faltarem apenas em relação a algumas frações, essa sanção apenas se aplica em relação às frações irregularmente constituídas, continuando a vigorar o regime da propriedade horizontal em relação às outras. É uma solução com que não podemos concordar, uma vez que o regime da propriedade horizontal tem necessariamente que abranger todo o edifício. O título constitutivo é igualmente nulo no caso de faltar a especificação exigida pelo artigo 1418.º, n.º1 CC ou não for coincidente o fim referido na alínea a) do n.º2 do mesmo artigo, com o que foi fixado no projeto aprovado pela entidade pública competente, considera-se nulo o título constitutivo (artigo 1418.º, n.º3 CC). Como exemplo desta situação temos a hipótese de, contra o disposto no projeto aprovado pela câmara municipal, for aplicado um espaço comum destinado a porteiro para fração autónoma. Têm legitimidade para arguir a nulidade do título constitutivo os condóminos, e também o Ministério Público sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções (artigo 1416.º, n.º2 CC).

O regulamento do condomínio: para além do título constitutivo, a propriedade horizontal é regulada pelo regulamento do condomínio, que disciplina o uso, a fruição e a conservação das partes comuns, e das frações autónomas. Existindo mais de quatro condóminos, é obrigatória a elaboração do referido regulamento, sempre que ele não faça parte do título constitutivo (artigo 1429.º-A, n.º1 CC), como a lei permite (artigo 1418.º, n.º2, alínea b) CC). Nesse caso, a feitura do regulamento compete à assembleia dos condóminos ou ao administrador, se aquela não o houver elaborado (artigo 1429.º-A, n.º2 CC).

Poderes dos condóminos: nos termos do artigo 1420.º CC, cada condómino é considerado proprietário exclusivo da sua fração e comproprietário das partes comuns do prédio, sendo o conjunto dos direitos considerado como incindível, não podendo ocorrer a sua alienação, separada ou a renúncia às partes comuns. É possível assim separar analiticamente os poderes de cada condómino relativos à sua fração, que a lei qualifica como propriedade exclusiva, dos poderes relativos às partes comuns, legalmente qualificados como compropriedade. Deve, no entanto, referir-se que a propriedade horizontal não é um mero somatório destes dois direitos, mas uma figura autónoma, que em certos aspetos até se afasta muito dos direitos com base no qual se molda. Examinemos sucessivamente estes poderes:

1. Poderes relativos à fração: por força da qualificação dos poderes relativos à fração como propriedade exclusiva, deveriam ser atribuídos ao condómino, de modo pleno exclusivo, os poderes de uso, fruição e disposição da fração (artigo 1305.º CC). É manifesto, porém, que tal não sucede, em virtude das limitações aos poderes dos condóminos que infra se referirão. Salienta-se apenas que o direito de uso da fração por parte dos condóminos se encontra extremamente limitado, especialmente em virtude de terem que respeitar o fim a que a fração se destina (artigo 1422.º, n.º2, alínea b) CC). Pelo mesmo motivo, também a fruição não é absoluta, uma vez que o condómino pode obter frutos civis através do arrendamento da fração, mas não o pode fazer para qualquer fim, em virtude dessa limitação. Finalmente, também os poderes transformação dos condóminos se encontram extremamente limitados, uma vez que não podem prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a segurança, a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício (artigo 1422.º, n.º2, alínea a) CC). Assim, os poderes dos condóminos sobre as suas frações são muito inferiores aos poderes que o proprietário possuiria sobre 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão as mesmas partes do edifício, se este não estivesse constituído em propriedade horizontal. 2. Poderes relativos às partes comuns: o artigo 1420.º, n.º1 CC, remete os poderes dos condóminos sobre as partes comuns para o regime da compropriedade. Essa remissão tem, no entanto, um alcance bastante mais restrito do que possa parecer. Efetivamente, embora se admita a renúncia liberatória na compropriedade (artigo 1411.º, n.º2 e 3 CC). Enquanto o comproprietário tem direito de preferência (artigo 1409.º CC) e pode solicitar a divisão da coisa comum (artigo 1411.º CC), o mesmo não sucede com o condómino (artigo 1423.º CC). A administração das partes comuns não obedece às regras dos artigos 1407.º e 985.º CC, havendo um sistema de órgãos administrativos legalmente previstos, a quem compete exercer a gestão do condomínio (artigos 1430.º e seguintes CC). Por força da remissão legal para o regime da compropriedade (artigo 1420.º, n.º1, in fine CC) deve entender-se que é permitido a qualquer dos condóminos servir-se das partes comuns, contanto que não as empregue para fim distinto daquele a que elas se destinam nem prive os outros condóminos do uso a que igualmente têm direito (artigo 1406.º, n.º1 CC). Ouso por um dos condóminos das partes comuns não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à sua, salvo se tiver havido inversão do título (artigo 1406.º, n.º2 CC). Em qualquer caso, a inversão do título nunca poderia constituir à usucapião das partes comuns, uma vez que tal se mostraria contrário ao regime da propriedade horizontal. A lei admite, no entanto, que o título constitutivo afete a um dos condóminos o uso exclusivo de certas zonas das partes comuns (artigo 1421.º, n.º3 CC). Trata-se de uma situação peculiar, em que embora a parte se mantenha comum, o condómino é o único que tem o direito de a utilizar, podendo assim impedir o mesmo uso pelos outros condóminos. Nessa situação já se deve considerar existir posse exclusiva desse condómino sobre aquela parte do prédio.

Limitações aos poderes dos condóminos: por força do artigo 1422.º, n.º1 CC, os condóminos estão naturalmente sujeitos a todas as restrições que incidem sobre os proprietários dos imóveis (artigos 1346.º e seguintes CC), as quais neste caso são especialmente acentuadas em virtude da grande proximidade física das frações. Em relação às partes comuns, vêm a ser aplicadas as restrições resultantes do regime da compropriedade (artigo 1422.º, n.º1, in fine CC). Mas, para além disso, em virtude da natureza especial da propriedade em questão, surgem limitações específicas aos direitos dos condóminos, que não se verificam na propriedade em geral (artigo 1422.º, n.º2 CC). É assim especialmente vedado aos condóminos:

1. Prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a segurança, a linha arquitetónica ou o arranjo estético do prédio: é, em primeiro lugar, proibido aos condóminos prejudicar, por obras novas ou por falta de reparação, a segurança, a linha arquitetónica, ou o arranjo estético do prédio (artigo 1422.º, n.º2, alínea a) CC). A lei admite, no entanto, que as obras que modifiquem a linha arquitetónica ou o arranjo do prédio possam ser autorizadas pela assembleia de condóminos por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio (artigo 1422.º, n.º3 CC); 2. Destinar a sua fração a usos ofensivos dos bons costumes: em segundo lugar, os condóminos não podem destinar a sua fração a usos ofensivos dos bons costumes (artigo 1422.º, n.º2, alínea b) CC); 3. Dar-lhe uso diverso do fim a que é destinada: outra conduta vedada aos condóminos é a de dar à fração uso diverso do fim a que é destinada (artigo 1422.º, n.º2, alínea c) CC). Esse fim é o que se encontra estabelecido no título constitutivo, que delimita a função

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão atribuída a cada fração autónoma, não podendo o condómino utilizá-la para fim distinto. Embora o título constitutivo não tenha que especificar o fim a que se destinam as frações, se o fizer, o seu conteúdo prevalece dada a natureza real – e, portanto, a eficácia erga omnes do estatuto que nele se contém. Nesse caso, esse fim é oponível a terceiros, se estiver registado (artigo 83.º, n.º1, alínea c) CRPr). O título constitutivo não pode, porém, sob pena de nulidade, atribuir à fração um fim distinto do que aquele que foi fixado pela entidade pública competente (artigo 1418.º, n.º3 CC). Em qualquer caso, mesmo que o título constitutivo não disponha sobre o fim de cada fração autónoma, a alteração ao seu uso carece da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio (artigo 1422.º, n.º4 CC). Essa autorização também não poderá, no entanto, desrespeitar o eventual fixado no projeto pela entidade pública competente (artigo 1418.º, n.º3 CC). 4. Praticar quaisquer atos ou atividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos, aprovada sem oposição: por fim, os condóminos não podem praticar quaisquer atos que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição (artigo 1422.º, n.º2, alínea d) CC). Os condóminos dispõem assim de uma certa autonomia nas limitações que podem estabelecer em relação aos seus próprios poderes. Neste âmbito, tem-se entendido que os condóminos poderão proibir o arrendamento para determinados fins, a posse de certos animais domésticos, a emissão de ruídos a partir de determinadas horas, ou o ato de estender roupa nas varandas ou janelas da fachada principal.

Obrigações dos condóminos: a propriedade horizontal impõe ainda várias obrigações aos condóminos. Neste âmbito, podemos distinguir entre:

1. Encargos de conservação, uso e fruição das partes comuns: em relação aos encargos de conservação, uso e fruição das partes comuns, dispõe o artigo 1424.º, n.º1 CC, que estes são pagos pelos condóminos em proporção do valor das suas frações. Esta solução é, no entanto, excetuada em relação às despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos, as quais ficam a cargo dos que dela se servem (artigo 1424.º, n.º3 CC). Também nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas (artigo 1424.º, n.º4 CC). Compete ao administrador cobrar as receitas e efetuar as despesas comuns (artigo 1436.º, n.º1, alínea d) CC). Quando se trate, porém, de reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício, estas podem ser levadas a efeito, na falta ou impedimento do administrador por iniciativa de qualquer condómino (artigo 1427.º CC). Na prática social, tem-se vindo a instituir a regra de os condóminos fazerem provisão para pagamento das despesas relativas ao condomínio, através de uma prestação mensal, habitualmente chamada condomínio. O pagamento dessa prestação funciona, no entanto, apenas como adiantamento, não ficando o administrador inibido de reclamar o pagamento do excesso por parte dos condóminos quando essas prestações não cheguem para cobrir as receitas. A lei obriga ainda os condóminos a constituir, em cada condomínio, um fundo comum de reserva para custear as despesas de conservação (artigo 4.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 268/94), devendo cada condómino contribuir para esse fundo com uma quantia correspondente a, pelo menos, 10% da sua quota-parte nas restantes despesas do condomínio (artigo 4.º, n.º2 DecretoLei n.º 268/94). O fundo comum de reserva deve ser depositado em instituição bancária,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão competindo à assembleia de condóminos a respetiva administração (artigo 4.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 268/94). 2. Pagamento de serviços de interesse comum: também as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações (artigo 1424.º, n.º1, in fine CC). Essas despesas podem, no entanto, mediante disposição do regulamento do condomínio, aprovada sem oposição por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respetiva fruição, desde que devidamente especificadas e justificados os critérios que determinam a sua imputação (artigo 1424.º, n.º2 CC). 3. Seguro de condomínio: outro encargo dos condóminos é o seguro obrigatório contra o risco de incêndio do edifício, quer quanto às frações autónomas, quer relativamente às partes comuns (artigo 1429.º, n.º1 CC). O seguro deve ser celebrado pelos condóminos; o administrador deve, no entanto, efetuá-lo quando os condóminos o não hajam feito dentro do prazo e pelo valor que, para o efeito, tenha sido fixado em assembleia; nesse caso, ficará com o direito de reaver deles o respetivo prémio (artigo 1429.º, n.º2 CC). Uma vez celebrado, o seguro deve ser ainda objeto de atualização anual, nos termos do artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 268/94. Compete à assembleia de condóminos deliberar o montante de cada atualização (artigo 5.º, n.º2 do mesmo diploma), mas se esta não o fizer, deverá administrador atualizar o seguro de acordo com o índice publicado trimestralmente pelo Instituto de Seguros de Portugal (artigo 5.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 268/94). 4. Encargos com inovações: diferente é, porém, o regime relativamente aos encargos com inovações. São consideradas inovações as obras que impliquem alterações na forma ou substância do imóvel. Entre elas encontram-se, por exemplo, a construção de arrecadações apoiadas nas paredes exteriores do prédio, a colocação de escadas exteriores em ferro amovíveis nessas mesmas paredes, e a instalação de um monta autos. As inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio (artigo 1425.º, n.º1 CC), não sendo, porém, as mesmas permitidas nas partes comuns do edifício sempre que sejam suscetíveis de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns (artigo 1425.º, n.º2 CC). No caso de algum condómino as realizar sem autorização da assembleia, poderão os outros condóminos exigir a sua demolição, às custas do autor da inovação, nos termos gerais. As despesas com as inovações ficam a cargo dos condóminos, nos mesmos termos já expostos em relação aos encargos de conservação, uso e fruição (artigos 1426.º, n.º1 e 1424.º CC), nelas participando também os condóminos que não aprovaram a inovação. Admite-se que estes últimos deixem de contribuir para essas despesas se a sua recusa for judicialmente havida como fundada (artigo 1426.º, n.º2 CC). A lei considera sempre fundada a recusa, quando as obras tenham natureza voluptuária ou não sejam proporcionadas à importância do edifício (artigo 1426.º, n.º3 CC). O condómino que efetue essa recusa deixa, porém, de participar nas vantagens da inovação, admitindo-se, no entanto, que volte a todo o tempo a participar, mediante o pagamento da quota correspondente às despesas de conservação e manutenção da obra (artigo 1426.º, n.º4 CC).

A administração das partes comuns do edifício: a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador (artigo 1430.º, n.º1 CC). Temos assim em primeiro lugar um órgão deliberativo, a assembleia de condóminos, e em segundo lugar um 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão órgão executivo, o administrador do condomínio. Através destes, são exercidas todas as competências do condomínio relativas às partes comuns, que deixa assim de competir aos condóminos individualmente. No entanto, a competência dos órgãos do condomínio não se estende às frações autónomas, as quais constituem propriedade exclusiva de cada condómino, cabendo ao proprietário decidir a forma como são administradas. Por isso qualquer deliberação da assembleia ou decisão do administrador relativa às frações autónomas deve considerar-se absolutamente ineficaz. A obrigação que incide sobre o conjunto dos condóminos relativamente a administração das partes comuns, torna-os naturalmente responsáveis se, por deficiente administração, o prédio vier a causar danos a terceiros. A culpa presume-se, nos termos do artigo 493.º, n.º1 CC.

1. A assembleia dos condóminos: a assembleia dos condóminos é o órgão deliberativo composto por todos os condóminos, tendo cada condómino tantos votos quanto for o valor da percentagem ou permilagem referida no artigo 1418.º CC (artigo 1430.º, n.º2 CC). Enquanto órgão deliberativo compete à assembleia tomar posição sobre todas as questões relativas às partes comuns, encarregar o administrador de executar as suas deliberações (artigo 1436.º, alínea h) CC), e fiscalizar a sua atividade, quer através da aprovação das suas contas (artigo 1431.º CC), quer revogando os seus atos por via de recurso (artigo 1438.º CC). A assembleia de condóminos reúne em sessões ordinárias ou extraordinárias. A reunião ordinária ocorre na primeira quinzena de Janeiro, mediante convocação do administrador, para discussão e aprovação das contas respeitantes ao último ano e aprovação do orçamento das despesas a efetuar durante o ano (artigo 1431.º, n.º1 CC). As reuniões extraordinárias ocorrem por convocação do administrador ou por condóminos que representem, pelo menos, 25% do capital investido (artigo 1431.º, n.º2 CC). A convocatória para a assembleia dos condóminos deve constar de carta registada, enviada com 10 dias de antecedência, ou mediante aviso convocatório feito com a mesma antecedência, desde que haja recibo de receção assinado pelos condóminos (artigo 1432.º, n.º1 CC). A convocatória tem que indicar o dia, hora, local e ordem de trabalhos da reunião e informar sobre os assuntos cujas deliberações só podem ser aprovadas por unanimidade dos votos (artigo 1432.º, n.º2 CC). Em primeira convocação, a assembleia pode deliberar se estiverem presentes condóminos que perfaçam a maioria dos votos representativos do capital investido, considerando-se aprovadas as deliberações que obtenham essa maioria (artigo 1432.º, n.º3 CC). Na ausência desse quorum, se na convocatória não tiver sido fixada outra data, considera-se convocada nova reunião para uma semana depois, na mesma hora e local, podendo neste caso a assembleia deliberar por maioria dos votos dos condóminos presentes, desde que estes representem, pelo menos, um quarto do valor total do prédio (artigo 1432.º, n.º4 CC). Já as deliberações que careçam de ser aprovadas por unanimidade dos votos podem ser aprovadas por unanimidade dos condóminos presentes, desde que estes representem, pelo menos, dois terços do capital investido, sob condição de aprovação da deliberação pelos condóminos ausentes (artigo 1432.º, n.º5 CC). As deliberações aprovadas na assembleia têm que ser comunicadas a todos os condóminos ausentes, por carta registada com aviso de receção, no prazo de 30 dias (artigo 1432.º, n.º6 CC). Os condóminos têm 90 dias após a receção dessa carta para comunicar por escrito à assembleia de condóminos o seu assentimento ou a sua discordância (artigo 1432.º, n.º7 CC), sendo o silêncio dos condóminos considerado como aprovação da deliberação que lhes tenha sido comunicada (artigo 1432.º, n.º8 CC). As deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado (artigo 1433.º, nº1 CC), podendo igualmente ser requerida a suspensão das deliberações nos termos gerais (artigos 1433.º, n.º5 CC e 383.º CPC). No prazo de 20 dias, para revogação das deliberações inválidas ou ineficazes (artigo 1433.º, n.º2 CC), podendo ainda qualquer condómino no prazo de 30 dias sujeitar a deliberação a um centro de arbitragem (artigo 1433.º, n.º3 CC). O direito de propor a ação caduca no prazo de vinte dias (20 dias) a contar da deliberação e, quanto aos proprietários ausentes, no mesmo prazo a contar da comunicação da deliberação da assembleia extraordinária ou, caso esta não seja solicitada, no prazo de 60 dias sobre a data da deliberação (artigo 1433.º, n.º4 CC). Parece resultar do artigo 1433.º, n.º6 CC, que é contra os condóminos que votaram favoravelmente as deliberações que devem ser propostas as ações, cabendo a sua representação judiciária ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar. 2. O administrador: o administrador é o órgão executivo de administração das partes comuns do condomínio, cabendo-lhe desempenhar as funções previstas no artigo 1436.º CC, assim como outras constantes de outros preceitos legais, e ainda as funções de que venha a ser encarregado pela assembleia. O cargo de administrador é remunerável, tanto podendo ser desempenhado por um dos condóminos como por terceiro (artigo 1435.º, n.º4 CC). O administrador é eleito pela assembleia de condóminos (artigo 1435.º, n.º1 CC), sendo o período de funções, salvo disposição em contrário, de um ano renovável (artigo 1435.º, n.º4 CC). Se a assembleia de condóminos não eleger administrador, será este nomeado pelo tribunal a requerimento de qualquer dos condóminos (artigo 1435.º, n.º2 C). Caso tal não venha a ocorrer, as funções de administrador são desempenhadas, a título provisório, pelo condómino cuja fração ou frações representem a maior percentagem do capital investido, salvo se outro condómino tiver manifestado vontade de exercer o cargo e houver comunicado tal propósito aos demais condóminos (artigo 1435.º-A, n.º1 CC). Quando, nos termos do número anterior, houver mais de um condómino em igualdade de circunstâncias, as funções recaem sobre aquele a que corresponda a primeira letra na ordem alfabética utilizada na descrição das frações constantes do registo predial (artigo 1435.º-A, n.º2 CC). Nestes casos, logo que seja eleito ou judicialmente nomeado um administrador, o condómino que nos termos do presente artigo se encontre provido na administração cessa funções, devendo entregar àquele todos os documentos respeitantes ao condomínio que estejam confiados à sua guarda (artigo 1435.º-A, n.º3 CC). As funções do administrador, para além da convocação da assembleia (artigo 1436.º, alínea a) CC), reconduzem-se, essencialmente, a quatro categorias: a. Administração corrente das partes comuns do prédio: compete ao administrador verificar a existência de seguro contra o risco de incêndio, propondo à assembleia o respetivo montante (artigo 1436.º, alínea c) CC), realizar os atos conservatórios dos direitos relativos às partes comuns (artigo 1436.º, alínea f) CC), regular o uso das coisas comuns e a prestação dos serviços de interesse comum (artigo 1436.º, alínea g) CC) e guardar e manter todos os documentos que digam respeito ao condomínio (artigo 1436.º, alínea m) CC). Apesar de não estar expressamente prevista na lei, compete igualmente ao administrador do condomínio providenciar pela realização das obras necessárias à conservação do das partes comuns, designadamente as obras de conservação previstas no artigo 89.º RJUE, pelo que o mesmo se constituirá em responsabilidade civil se em

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão consequência do incumprimento desse dever ocorrerem danos para qualquer condómino ou terceiro. b. Gestão financeira do condomínio: compete ao administrador elaborar o orçamento das receitas e despesas relativas a cada ano (artigo 1436.º, alínea b) CC), cobrar as receitas e efetuar as despesas comuns (artigo 1436.º, alínea d) CC), exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas (artigo 1436.º, alínea e) CC) e prestar contas à assembleia. c. Execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio, bem como das deliberações da assembleia: compete-lhe assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio (artigo 1436.º, alínea l) CC), assim como executar as deliberações da assembleia de condóminos (artigo 1436.º, alínea h) CC). d. Representação do conjunto dos condóminos: a representação dos condóminos, quer perante as autoridades administrativas (artigo 1436.º, alínea i) CC), quer em juízo (artigo 1437.º CC), o administrador tem assim legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia (artigo 1437.º, n.º1 CC), podendo ser demandado nas ações relativas às partes comuns do edifício (artigo 1437.º, n.º2 CC), sendo nesse caso atribuída personalidade judiciária ao condomínio (artigo 12.º, alínea e) CPC). Excetuam-se, no entanto, as questões relativas à propriedade e posse dos bens comuns, salvo se a assembleia atribuir poderes especiais ao administrador (artigo 1437.º, n.º3 CC). Não pode, por outro lado, o administrador substituir-se aos condóminos, pelo que não poderá exercer os direitos que a estes competem relativamente às suas frações, designadamente reclamando os danos que lhes tenham sido causados. Efetivamente, a autorização da própria assembleia, ou seja, as relativas às partes comuns, pelo que o administrador nunca tem competência relativamente às questões que respeitem exclusivamente às frações autónomas dos condóminos. O administrador pode ser exonerado pela assembleia (artigo 1435.º, n.º1 CC) ou pelo tribunal, a requerimento de qualquer condómino, quando se mostre que praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções (artigo 1435.º, n.º2 CC). No entanto, as funções do administrador apenas cessam com a eleição ou nomeação do seu sucessor (artigo 1435.º, n.º5 CC).

Modificação da propriedade horizontal: o regime da propriedade horizontal pode ser modificado, através de alterações ao título constitutivo, ainda que, de acordo com o princípio da autonomia privada, se exija o acordo de todos os condóminos. Efetivamente, refere o artigo 1419.º, n.º1 CC, que, sem prejuízo do disposto no n.º3 do artigo 1422.º-A CC e do disposto em lei especial o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos. Nesse caso, o administrador, em representação do condomínio, pode outorgar a escritura ou elaborar e subscrever o referido documento particular, desde que o acordo conste de ata assinada por todos os condóminos (artigo 1419.º, n.º2 CC). O acordo em questão tem, no entanto, que respeitar o disposto no artigo 1415.º CC, sob pena de nulidade (artigo 1419.º, n.º3 CC). Em relação à modificação da propriedade horizontal, dispõe o artigo 60.º, n.º1 CNot que os instrumentos de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal que importem alteração da composição ou do destino das respetivas frações só podem ser lavrados se for junto documento camarário comprovativo de que a alteração está de acordo com os correspondentes requisitos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão legais. Apenas no caso de a modificação exigir obras de adaptação, a exibição do projeto devidamente aprovado dispensa o referido documento (artigo 60.º, n.º2 CNot). A lei estabelece, no entanto, um regime especial para a junção e divisão de frações autónomas. Quanto à junção de frações autónomas, estabelece o artigo 1422.º-A, n.º1 CC que não carece de autorização dos restantes condóminos a junção, numa só, de duas ou mais frações do mesmo edifício, desde que estas sejam contíguas, sendo mesmo a contiguidade das frações dispensada quando se trate de frações correspondente a arrecadações e garagens (artigo 1422.º-A, n.º2 CC). Já em relação à divisão de frações autónomas, esta é em princípio proibida, salvo autorização do título constitutivo ou da assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição (artigo 1422.ºA, n.º3 CC). Quando permitida, a junção ou divisão de frações autónomas permite aos condóminos que a realização ou divisão de frações autónomas permite aos condóminos que a realizaram proceder à competente alteração do título constitutivo por escritura pública ou documento particular autenticado (artigo 1422.º-A, n.º4 CC), devendo a escritura pública ou o documento particular autenticado em questão ser comunicados ao administrador no prazo de 30 dias (artigo 1422.º-A, n.º5 CC). Já a divisão das partes comuns é expressamente proibida (artigo 1423.º, in fine CC). A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal ainda pode ser realizada por simples documento particular ao abrigo do procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, constante do Decreto-Lei n.º 263.A/2007, 23 julho, e da Portaria n.º 794-B/2007, 23 julho, que a Portaria n.º 1167/201, 10 novembro, estendeu à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Os factos jurídicos que importem a modificação da propriedade horizontal estão sujeitos a registo (artigo 2.º, n.º1, alínea b) CRPr). A alteração do título constitutivo constitui uma menção especial ao extrato da inscrição (artigo 95.º, n.1, alínea q) CRPr).

Extinção da propriedade horizontal: a propriedade horizontal pode extinguir-se em razão das seguintes situações:

1. Acordo entre os condóminos: é manifesto que por esta via se pode extinguir a propriedade horizontal, passando a aplicar-se a todo o edifício o regime da compropriedade; 2. Concentração de todas as frações autónomas na propriedade de uma pessoa: dada a circunstância de ser pressuposto essencial do instituto a existência de proprietários diversos. Tal situação pode resultar de negócio jurídico aquisitivo das outras frações ou da usucapião das mesmas. 3. Destruição do edifício: igualmente, a extinção da propriedade horizontal, nos termos do artigo 1428.º CC.

Natureza da propriedade horizontal: a natureza da propriedade horizontal é controvertida. Em abstrato poderemos indicar as seguintes teorias:

1. A teoria do condomínio como pessoa coletiva: tem antecedentes na legislação dos países anglo-saxónicos. Efetivamente, em Inglaterra, desde 1874, com o Building Societies Act, que a propriedade horizontal foi baseada na ideia de sociedade, a building society. Nos Estados Unidos, a propriedade horizontal foi organizada em cooperativas, que ficam titulares do imóvel, sendo os seus utilizadores configurados como arrendatários por longos períodos. Esta teoria não tem, atualmente, defensores entre nós. No entanto, Pinto Duarte sustentou a sua qualificação como pessoa rudimental devido aos poderes representativos do administrador, à sua capacidade judiciária ativa e passiva e à personalidade judiciária que a lei reconhece ao condomínio.

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2. A teoria da compropriedade: foi defendida entre nós por Cunha Gonçalves, para quem a

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propriedade horizontal não passaria de uma hipótese de compropriedade. Para este autor, embora as frações e apartamentos pertençam isoladamente a cada um dos condóminos, que as podem alienar e onerar, tal não prejudica a existência de uma compropriedade sobre o condomínio no seu conjunto, tanto mais que partes importantes do imóvel permanecem em estado de indivisão perpétua e forçada. Por outro lado, o direito dos condóminos sobre as frações não poderia considerar-se como propriedade exclusiva, atenta a retirada do direito de transformação e as limitações ao seu uso que resultam do regime da propriedade horizontal. A teoria da propriedade especial: foi defendida entre nós por a. Pires de Lima e Antunes Varela: estes autores sustentam que na propriedade horizontal existem limitações que vão além do que a lei estabelece para a propriedade singular e comum, e que as limitações que se verificam na propriedade em geral ganham especial aplicação em matéria de condomínio, o que leva a que este seja qualificado como uma propriedade especial. b. Oliveira Ascensão: depois de ter inicialmente qualificado a propriedade horizontal como um direito real complexo e mais precisamente um direito real composto, rejeita atualmente esta qualificação, sustentando estar-se antes perante uma forma de propriedade especial, dado que embora se conjuguem propriedade e compropriedade, a propriedade é que é essencial, sendo a compropriedade meramente instrumental. A teoria dualista: foi defendida entre nós por Carlos Mota Pinto e França Pitão e Borges Pinto. Para estes autores, a propriedade horizontal é resultante de um concurso entre dois direitos, a plena propriedade sobre as frações e uma compropriedade forçada sobre as partes comuns. A teoria do direito real complexo: foi defendida por Oliveira Ascensão numa primeira fase do seu pensamento. Posteriormente defenderam essa posição Armindo Ribeiro Mendes, Menezes Cordeiro, e L. P. Moitinho de Almeida. Esta teoria qualifica a propriedade horizontal como um direito real que combina a propriedade e a compropriedade, fundindo-se tais direitos para constituir uma unidade nova. A teoria do direito real de gozo típico: foi defendida por Manuel Henrique Mesquita, Carvalho Fernandes, José Alberto González e Sandra Passinhas. Para estes autores, a propriedade horizontal constitui um novo modelo de direito real de gozo que, embora mantenha similitudes com a propriedade singular e a compropriedade, traduz uma síntese que se espelha num regime jurídico específico, com particularidades que não encontram justificação em nenhuma daquelas figuras, sendo, portanto, um direito real de gozo típico. Menezes Leitão: a. A teoria do condomínio como pessoa coletiva é criticável em virtude de o condomínio não ter património próprio, integrando-se as frações e as partes comuns do património dos condóminos. O condomínio também não tem, por isso, obrigações nem o fundo comum de reserva, instituído pelo artigo 4.º Decreto-Lei n.º268/94, 25 outubro, constituem receitas próprias do condomínio, sendo antes pagamentos de despesas comuns. b. A teoria da compropriedade deve ser criticada, uma vez que, para além de existir uma propriedade exclusiva sobre as frações autónomas, mesmo o regime das partes comuns se afasta muito do regime da compropriedade, atento o facto de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão não serem reconhecidos aos condóminos o direito de renúncia liberatória (artigo 1420.º, n.º2 CC) e o direito de preferência ou à divisão (artigo 1423.º CC). Para além disso, as partes comuns têm uma função instrumental em relação ao gozo exclusivo de alguns condóminos ou servir apenas algumas frações (artigo 1421.º, n.º3 e 1424.º, n.º3 e 4 CC). c. A teoria da propriedade especial é criticável em virtude de existir uma relação de vizinhança muito mais intensa do que na propriedade comum, a qual gera grandes limitações aos direitos dos condóminos (artigo 1422.º CC). Para além disso, a existência de órgãos do condomínio destinados à administração das partes comuns é dificilmente conciliável com a propriedade especial. d. A teoria dualista é criticável devido à incindibilidade da propriedade e da compropriedade (artigo 1420.º, n.º2 CC), que demonstra não haver um mero somatório dos dois direitos, mas antes um direito completamente novo. e. A teoria de um direito real complexo também não faz sentido ser sustentada na medida em que o regime da propriedade horizontal não é apenas uma conjugação dessas duas realidades para formar uma unidade nova, nem faz grande sentido proceder a essa decomposição analítica, atenta a tipicidade dos direitos reais. A propriedade horizontal tem um regime legalmente estabelecido, só sendo aplicáveis as regras da propriedade e da compropriedade na medida da remissão realizada para esses direitos. f. Aderimos, por isso, à tese do direito real de gozo típico.

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Capítulo XI – O Usufruto A origem histórica do usufruto no Direito Romano: ao que parece, o usufruto nasceu para providenciar alimentos, nomeadamente, à viúva do falecido. Uma vez que a lei sucessória não admitia a transmissão para a mulher do proprietário falecido, o usufruto satisfazia uma finalidade alimentícia daquela. Segundo uma famosa definição de Paulus, o usufruto consiste num ius alienis rebus utendi fruendi salva rerum substantia. Nesta definição destaca-se imediatamente a menção ao usufruto como um direito sobre coias alheia. O objeto deste direito seria uma coisa pertencente a outra pessoa, mormente, ao proprietário. Na sua origem, a tónica central do usufruto está em assegurar ao titular os fructus produzidos pela coisa, entendendose por frutos não apenas os frutos naturais, mas todos os réditos que ela fosse suscetível de gerar e se compreendessem na noção económico-social de frutos. Porque assegurar os frutos representa o escopo central deste direito, o usufrutuário também se chama fructuarius e o usufrutuo fructus. Para poder fruir a coisa o usufrutuário carecia de ter acesso a ela, ou seja, do usus. No entanto, a finalidade da concessão do usus não era permitir qualquer aproveitamento da res, entendido num sentido amplo de gozo, mas tão-somente propiciar a fruição. Não seria possível de outro modo ao usufrutuário beneficiar dos frutos da coisa se não pudesse usá-la. Da necessidade do usus para assegurar a fruição deriva a regra: fructus sine usu esse non possunt. A primazia da fruição sobre o uso, entendida aquela como o escopo do direito e este como simplesmente o modo de a tornar possível (fruendi causa), confere ao uso uma feição \instrumental no contexto do usufruto. A atividade do usufrutuário sobre a coisa (o usus) destina-se basicamente a permitir que ela produza frutos. Na evolução, a união do usus ao fructus gera o usufructus. Este direito pode incidir sobre todas as coisas – não consumíveis – que podem produzir frutos (frutíferas), e somente estas, sejam móveis ou imóveis. No período clássico, o usufructus era um direito intuito personae, no sentido de estar ligado à pessoa do titular. A morte deste ou a capitis deminutio extingue o direito, que também não pode ser transmitido a terceiros, sem prejuízo da possibilidade de cessão, ligada na sua duração à vida do usufrutuário. Somente as pessoas singulares podiam ser usufrutuárias (usufruto sine persona esse non potest), uma restrição que desapareceria posteriormente no Direito justinianeu. No Direito Romano, o usufruto, nascido fundamentalmente para satisfazer um escopo alimentar, atribuía ao titular os frutos de coisa alheia e o uso necessário para que ela os continuasse a produzir. O gozo da coisa pelo usufrutuário estava, no entanto, vinculado a uma regra de atuação, que se exprime na definição de Paulus por salva rerum substantia. Não é inequívoco o sentido associado à expressão salva rerum substantia. Na maior parte das vezes, ela aparece interpretada no sentido de que o usufrutuário estaria obrigado a respeitar a integridade da coisa, não podendo voluntariamente destruí-la ou sequer deteriora-la. Outras vezes, avança-se que ela traduz a impossibilidade de o usufruto recair sobre coisas consumíveis. Seja como for, parece absolutamente seguro que o usufrutuário não podia atuar sobre a coisa de modo a comprometer a sua integridade. O usufrutuário ficava investido no direito aos frutos, mas a substância da coisa estava for ada atribuição operada pelo usufruto. Ao usufrutuário estava, pois, vedado comprometer a essência da coisa. Um outro limite ao usufruto, que alguns autores têm por implícito ao respeito pela substância da coisa, era o da conservação da species rei. Ao usufrutuário cabia respeitar o estado atual da afetação económica da coisa, a sua forma, não podendo alterá-la; devia ainda respeitar na exploração económica da coisa os costumes do pater 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão familias que constituiu o direito. No período clássico, esta proibição era tão severa que o usufrutuário estava proibido de introduzir quaisquer melhoramentos na coisa. Deste modo, e para além da limitação da duração do usufruto, que não podia exceder a vida do usufrutuário, o usufruto tinha ainda como limites o respeito pela substância da coisa e pelo estado económico atual da mesma. Mesmo assim, e apesar de todas estas limitações, o usufruto surge por vezes referido no Direito Clássico como pars dominii. Ainda que se rejeita esta perspetiva de assimilação à propriedade, não restam dúvidas que o usufruto foi, no período clássico, um direito de natureza real, que a doutrina sempre recusou assimilar às servidões. Durante o período clássico, o usufruto surge como um direito sobre coisa incorpórea. Como tal, o usufrutuário não tinha posse, era um detentor, apesar de poder defender o seu direito por interditos especiais, e não podia usucapir. Em caso de destruição da coisa, o usufruto extinguiase, não se admitindo a mutatio rei. No Direito justinianeu o regime do usufruto conheceu alterações profundas, a começar pela sua integração no conceito amplo de servitutes, como servitutes pessoais (servitutes personarum), lado a lado com as servidões prediais (servitutes praediorum). O usufruto passou a poder recair sobre coisas improdutivas, dado que se reconheceu ao usufrutuário o poder de introduzir melhoramentos (não de deteriorar a coisa). Os costumes do pater familias na gestão económica da coisa deixaram de ser vinculativos. E, fundamental, foram conferidas ao usufrutuário as ações de defesa do proprietário, com especial destaque para a vindicatio usufrutus, que era uma actio confessoria. No Direito justinianeu, em caso de destruição da coisa, passou a admitir-se a mutatio rei, o que não acontecia no período clássico.

O tipo legal do usufruto: 1. Delimitação positiva: o artigo 1439.º CC dispõe que o usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente da coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância. Se descontarmos a duração – temporária – do usufruto e os limites negativos da forma e da substância, a delimitação positiva do usufruto oferece semelhança com a propriedade (artigo 1305.º CC). Também no usufruto a lei não recorre a uma enumeração dos poderes do usufrutuário, atribuindo-lhe a universalidade do gozo. O aproveitamento compreendido no tipo legal do usufruto abrange, assim, e desde logo: a. O uso e a fruição da coisa; b. A transformação da coisa, dentro dos limites negativos do usufruto; c. O poder de reivindicar a coisa. No que respeita ao poder de uso, este não se subordina à fruição, como sucedia no Direito Romano. O usufruto pode ser concedido em coisas não frutíferas ou somente para assegurar o uso da coisa ao usufrutuário. O usufruto reserva para o usufrutuário a totalidade da fruição, englobando os frutos naturais e os civis. Porém, os réditos produzidos pela coisa que não sejam de qualificar como frutos pertencem ao proprietário, salvo se outra coisa resultar do título constitutivo do usufruto. A administração ordinária da coisa cabe ao usufrutuário enquanto durar o seu direito. Trata-se de um aspeto implícito do gozo que é conteúdo deste direito, e que aparece individualizado no artigo 1446.º CC. As despesas com a administração da coisa estão a cargo do usufrutuário (artigo 1472.º, n.º1 CC). O usufrutuário tem também um poder de transformação, embora sujeito aos limites do respeito pela forma ou substância da coisa. Com efeito, a lei portuguesa prevê expressamente a realização de benfeitorias úteis e voluptuárias pelo usufrutuário (artigo 1450.º, n.º1 CC). No artigo 1439.º CC não

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão se alude ao poder de disposição. No entanto, que o usufrutuário pode dispor do seu direito resulta inequivocamente do artigo 1444.º CC, que confere ao usufrutuário os poderes de alienar e onerar o seu direito. Em todo o caso, a parte final do n.º1 do 1444.º CC ressalva as restrições impostas pelo título constitutivo ou pela lei, o que mostra que o poder de disposição não pertence ao tipo legal do usufruto. Pode haver usufruto e o usufrutuário não poder dispor do seu direito, porque a lei proíbe ou porque no título constitutivo as partes afastaram a possibilidade de toda e qualquer cedência do gozo pelo usufrutuário, seja a título obrigacional (locação, comodato ou outra) seja a título real (direitos reais de gozo e direitos reais de garantia). Naturalmente, nada impede as partes de excluírem a oneração do usufruto pelo usufrutuário e permitirem a alienação e vice-versa, ou fazerem-no em relação a alguns ónus (constituição de servidões, por exemplo) ou a algumas formas de prestação do gozo (a locação, por exemplo). Quando o título constitutivo seja omisso e a lei não preveja qualquer proibição de disposição, o usufrutuário pode validamente transmitir o usufruto a terceiro, constituir direitos pessoais de gozo (locação, comodato, etc.) e onerar o seu direito com outros direitos reais de gozo ou de garantia (artigo 1444.º, n.º1 CC). A disposição do usufruto fica, no entanto, sujeita à limitação proveniente do prazo de duração do direito. O artigo 1460.º, n.º1 CC estabelece a regra em matéria de constituição de qualquer direito pelo usufrutuário, seja qual for a sua natureza (real, obrigacional ou outra). Nenhum direito constituído pelo usufrutuário a favor de terceiro pode ter uma duração superior à do usufruto. Se tal acontecer, o contrato será nulo, sem prejuízo da possibilidade de redução negocial (artigo 292.º CC), para o prazo de duração do usufruto. Os direitos constituídos pelo usufrutuário a favor de terceiro caducam com a extinção do usufruto. O artigo 1051.º, n.º1 CC é expresso quanto à locação e o artigo 699.º, n.º2 CC é-o quanto à hipoteca. O n.º3 deste último preceito ressalva, porém, a hipótese de renúncia antecipada ou de confusão,, dispondo que a hipoteca continua a onerar o usufruto como se a extinção do direito se não tivesse verificado. O tipo legal do usufruto compreende, assim, o gozo da coisa, todo o uso, toda a fruição e ainda a transformação que não atinja os limites negativos do respeito pela forma e substância da coisa. O usufrutuário tem o gozo pleno da coisa (artigo 1439.º CC). Isto quer dizer, que enquanto o usufruto durar o proprietário fica inibido de a gozar; somente o usufrutuário o pode fazer. Fala-se, então, em nua propriedade ou em nu proprietário para mencionar a propriedade ou o proprietário cujo direito esteja onerado com um usufruto. O nu proprietário está impedido de gozar a coisa enquanto durar o usufruto; resta-lhe o casco ou a raiz da propriedade, que integra decerto o poder de disposição e o aproveitamento residual não atribuído ao usufrutuário, como o relativo aos réditos que não constituam frutos em sentido técnico. Portanto, a concorrência entre a propriedade e o usufruto quanto ao gozo da coisa é, como todos os casos de oneração, resolvida a favor do direito real menor. Na parte do conteúdo dos direitos em que se regista uma sobreposição quanto ao aproveitamento concedido pelos direitos reais de gozo em presença, o direito real maior (a propriedade) fica como que comprimido pelo direito real menor e só retomará a sua plenitude com a extinção do direito onerado. Sem prejuízo da delimitação negativa do tipo legal, o usufrutuário tem todo o gozo que à coisa se pode referir, ou seja, todo o uso e toda a fruição de que a coisa é suscetível e ainda a transformação da coisa que não contende com os limites negativos impostos pela lei. Afigura-se, no entanto, pertinente perguntar sobre a possibilidade legal das partes, no título constitutivo, restringirem o exercício de algum dos poderes relativos ao gozo ou até, no limite, suprimi-lo. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. Oliveira Ascensão admite-o abertamente; b. Carvalho Fernandes também, embora de modo mais moderado, parece favorável a essa posição, sugerindo mesmo a aplicação de um regime de tipos abertos. c. Santos Justo, fala também de tipo aberto que, igualmente, abre a possibilidade de uma ou outra utilidade do gozo ser excluída no título constitutivo. d. Permitimo-nos discordar. O argumento extraído do artigo 1445.º CC, segundo o qual, o usufruto seria regulado pelo título constitutivo tem de ser articulado com a tipicidade legal dos direitos reais. A conformação livre do conteúdo de um direito real contende com o numerus clausus, permitindo a criação de direitos reais com o aproveitamento pretendido pelas partes. Ora, o princípio da tipicidade não se basta com a mera observância do nomen iuris do direito real, mas com o respeito pelo conteúdo típico injuntivo do direito. Se as partes, mantendo embora a designação de usufruto, eliminam a fruição, temos um direito de usufruto com um gozo menos extenso que os direitos de uso e de habitação, o que não pode deixar de ser visto como a criação de um outro direito real, diverso do tipo legal consagrado. E pensamos que isso sucede com qualquer diminuição dos poderes de uso, fricção e transformação que, não os eliminando de todo, lhes introduza restrições. Se o usufrutuário tem toda a fruição, a limitação pelo título aos frutos naturais, por exemplo, contende com o gozo típico concedido ao usufrutuário: há violação da tipicidade (artigo 1306.º, n.º1 CC). O que fica então para a regulação do título constitutivo? – Muita coisa, que não evidentemente o conteúdo injuntivo do tipo legal de usufruto. Por exemplo, as partes podem regular o poder de disposição do usufruto, que, como se viu, não integra o tipo legal deste direito, fixar o prazo de duração do usufruto, regular o exercício de obrigações (prestação de caução, relação de bens, etc.), acordar sobre as obras extraordinárias, etc. Um último aspeto, para concluir, prende-se com a admissibilidade de uma delimitação convencional do conteúdo do usufruto que tenha mera eficácia obrigacional. Se as partes se limitam a prever no título constitutivo que o usufrutuário se obriga a não pescar no lago do imóvel ou a não levar o automóvel objeto do usufruto para fora do país, não está em causa a violação da tipicidade legal. O princípio da tipicidade contende unicamente com o conteúdo típico do direito real e não constitui obstáculo à validade das cláusulas negociais onde se prevejam meras obrigações das partes. 2. Delimitação negativa: o artigo 1439.º CC dispõe que o usufrutuário pode gozar a coisa sem alterar a sua forma ou substância. Alguns interpretes portugueses referem que se trata da definição clássica de usufruto encontrada em Paulus (ius alienis rebus utendi fruendi salva rerum substantia). Apesar da semelhança evidente com essa definição, a formulação do artigo 1439.º CC apresenta, porém, uma diferença subtil. Enquanto a definição de Paulus alude simplesmente à salva rerum substantia, o artigo 1439.º CC menciona o respeito, não apenas da substância da coisa, mas também da sua forma. E isto introduz um sentido complementar que importa esclarecer. Na aceção que acompanha a expressão desde a sua origem no Direito Romano, a preservação da substância quer dizer que o usufruto não pode incidir sobre coisas consumíveis ou, segundo outra doutrina, que acaba por dar no mesmo, que o usufrutuário se encontra obrigado a preservar a integridade da coisa, não a destruindo ou deteriorando de qualquer modo. Para além da preservação da essência da coisa, sempre se entendeu

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que o usufrutuário devia igualmente manter o estado económico da coisa como o proprietário o havia definido, não raro através de fórmulas que vinculavam o usufrutuário a usar a coisa segundo os usos e praxes do dominus. Os artigos 1455.º, nº1 e 1458.º, n.º1 CC representam reminiscências atuais disso mesmo. Assim, o usufrutuário deve não somente preservar a coisa como ela lhe foi entregue para exercer o seu direito, mas também manter a destinação económica pré-definida pelo proprietário. A conservação da species da coisa, isto é, da forma do estado atual dela, do seu destino económico, constitui um dever do usufrutuário, que, na ausência de melhor, se reconduziu ao respeito da substância da definição de Paulus, a qual, contudo, não a fundamenta realmente. O artigo 1430.º CC supriu a deficiência histórica da fórmula romana do usufruto, acrescentando-lhe o entendimento tradicional, segundo o qual, o usufrutuário está obrigado a manter a coisa com a destinação económica existente sem alterar a forma. Este propósito de complementar a noção tradicional romana de usufruto ficou, todavia, consideravelmente obscurecido pela adoção de outra fórmula de teor inteiramente coincidente nos artigos 1446.º e 1450.º, n.º1 CC. Com efeito, dispõe-se nesses preceitos que o usufrutuário está obrigado a respeitar o destino económico da coisa (artigo 1446.º CC) e a não alterar a sua forma e substância, nem o seu destino económico (artigo 1450.º, n.º1 CC). O dever de respeito pelo destino económico da coisa surge no Direito italiano, concretamente no artigo 981.º CC. Tem aí a função de limitar o gozo do usufrutuário em termos perfeitamente idênticos aos que o respeito pela forma e substância têm na economia do artigo 1439.º CC português. Simplesmente, no Direito italiano, o respeito pelo destino económico constitui o único limite negativo do direito de usufruto, o que não sucede no Código Civil português. O que gera uma incongruência global da delimitação negativa operada. Na verdade, no contexto do sistema português – que, ao contrário do italiano, contém uma menção expressa à preservação da substância – respeito pela forma e respeito pelo destino económico significam a mesma coisa. Qualquer destes limites intenta vedar ao usufrutuário a alteração do fim económico de afetação da coisa. Deste modo, a sua previsão redundante (artigo 1450.º, n.º1 CC) ou em contextos distintos (artigo 1439.º e 1446.º CC) cria um problema de interpretação quanto à delimitação negativa típica do usufruto. Para agravar o problema, o artigo 1445.º CC, parecendo admitir a supletividade das disposições constantes do Capítulo II (artigos 1446.º e 1467.º CC), suscita a interrogação sobre se o respeito pelo destino económico tem caráter supletivo ou imperativo e sobre a necessária articulação com o limite do respeito da forma e substância contido no artigo 1439.º CC. Numa polémica tendente a esclarecer o alcance da delimitação negativa legal do tipo do usufruto, a. Menezes Cordeiro defende que o artigo 1439.º CC, na parte que consagra a salva rerum substantia, não tem natureza imperativa. O usufrutuário apenas estaria obrigado a respeitar o destino económico da coisa, podendo alterá-lo durante a constância do usufruto, desde que se pudesse voltar posteriormente ao estado anterior. b. Oliveira Ascensão opina diferentemente, sustentando que a exigência mais genérica é a do artigo 1439.º CC, que compõe o próprio tipo de usufruto. O respeito pelo destino económico integra-se na disciplina supletiva do usufruto e pode, por isso, ser afastado. c. Começamos por salientar que o regime jurídico constante do Capítulo II do Título III do Livro do Direito das Coisas (artigos 1446.º a 1467.º CC) não comporta apenas normas supletivas mas, também, normas imperativas, o que 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão vem sendo reconhecido pacificamente na doutrina. Dentro dessas normas imperativas encontramos justamente as que conformam o tipo legal do direito de usufruto. Não pode deixar de ser assim, sob pena de se considerar que o usufruto, mais do que um tipo de direito real aberto, como alguns autores sugerem, constitui um tipo de direito real de gozo sem limites ou com os limites que as partes não afastam, conclusão inaceitável que a lei portuguesa não permite fundamentar. Nesta ordem de ideias, afirmamos que os artigos 1446.º e 1450.º, n.º1 CC meramente reiteram os limites negativos típicos do usufruto (o respeito pela forma e substância da coisa), coartando a autonomia privada quando esta os põe em causa. Assim, no artigo 1446.º CC, a lei portuguesa sujeita o uso, a fruição e a administração da coisa a um critério de diligência: o do bom pai de família. Este critério é supletivo e as partes podem consagrar um outro que entendam mais adequado para o efeito. Se não o fizerem, é ele que vale. Porém, seja qual for o critério que fixarem para o uso, fruição e administração da coisa pelo usufrutuário, o exercício de qualquer destes poderes não pode conduzir a uma alteração do destino económico da coisa. Teria sido muito mais claro dizer simplesmente sem prejuízo da forma da coisa, pois a fórmula do artigo 1439.º CC chegava para esse efeito, mas pretendeu-se acentuar o dever de salvaguardar a species rei pela formulação do Código Civil italiano, o que criou toda esta confusão. Na economia do artigo 1446.º CC a supletividade respeita unicamente ao critério do uso, fruição e administração da coisa e não à parte final, a qual, como elemento constitutivo do tipo legal do usufruto (o respeito pela forma ou destinação económica da coisa), tem natureza imperativa, estando fora do domínio da autonomia privada das partes. A lógica da é a mesma no artigo 1450.º, nº.1 CC. Poder-se-á, no entanto, perguntar qual a razão pela qual se menciona nesse preceito o respeito pela forma e substância, a par com o respeito pelo destino económico da coisa. A razão prende-se com o tipo de poder envolvido. No artigo 1450.º, n.º1 CC está em causa o poder de transformação e é este que pode justamente pôr em causa a substância da coisa, o que não sucede quando o que está em causa é meramente o uso, a fruição e administração da coisa. A fórmula do artigo 1450.º, n.º1 CC é redundante, pois o respeito pela forma e o respeito pelo destino económico são a mesma coisa, mas há um sentido adicional que tem a ver com a necessidade de assegurar que o usufrutuário não pode, em momento algum, colocar em causa a subsistência da coisa ou a sua preservação: salva rerum substancia (artigo 1439.º CC). Quer dizer, as partes podem no título constitutivo regular o modo do usufrutuário levar a cabo as benfeitorias que lhe são permitidas, mas a transformação não pode nunca comprometer a subsistência da coisa como ela é e destino económico existente à data da constituição do usufruto. A nossa análise não confirma a necessidade de preterir um dos limites negativos constante do regime legal do usufruto (respeito pela substância ou respeito pelo destino económico ou forma da coisa) por força de uma insanável contradição. É verdade que a introdução da fórmula italiana de respeito pelo destino económico trás uma redundância, e nessa parte consubstancia uma manifesta infelicidade do legislador português, mas a ela não se pode associar a natureza supletiva do dispositivo legal respetivo. Os artigos 1446.º e 1450.º CC, apenas reiteram as proibições gerais que encerram os limites negativos do usufruto e que constam do artigo 1439.º 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão CC: o respeito pela substancia da coisa, em primeiro lugar, e o respeito pelo seu fim económico. O destino económico da coisa ou a sua forma no contexto de sentido do artigo 1439.º CC afere-se à data da constituição do usufruto. Existem dois modos de o analisar: ou parte-se do fim económico que o proprietário deu à coisa e que existia no momento da constituição do usufruto (critério subjetivo) ou se atende às possibilidades objetivas de uso (lícito) que a coisa propicia (critério objetivo). Julgamos que a interpretação correta da lei portuguesa reside no primeiro sentido. O usufruto que recebe o usufruto deve conformarse com o estado económico atual da coisa, que o proprietário definiu e que existia no momento da constituição do usufruto. O proprietário pode autorizar posteriormente outro destino económico para a coisa? a. Pugliese entende que sim. Neste caso o usufruto poderia alterar o destino económico da coisa durante a duração do usufruto, contando que o nu proprietário o autorizasse. b. Se bem que admitamos que esta solução gera um aproveitamento mais dinâmico da coisa e mais adaptado à evolução das condições económicas desse aproveitamento, temos dificuldade em conciliá-la com o princípio da tipicidade. Quer-nos parecer que ela implica sempre uma alteração do tipo legal de usufruto e, nessa medida, não é admitida pela lei portuguesa (artigo 1306.º, n.º1 CC).

A duração do usufruto como elemento do tipo legal: o direito de usufruto era no Direito Romano limitado à vida do usufrutuário, destinado conforme estava a providenciar pelos alimentos do titular. Esse legado da história nunca foi rompido e subsiste como tal no Direito português vigente (artigo 1439.º CC). A temporaneidade do usufruto representa, deste modo, um elemento do tipo legal deste direito (conteúdo injuntivo típico), que não pode ser afastado pelas partes, sob pena de violação do princípio da tipicidade (artigo 1306.º, n.º1 CC). No usufruto constituído a favor de pessoa singular as partes têm duas alternativas:  Constituir o usufruto pelo tempo de vida do usufrutuário (usufruto vitalício);  Fixar outro termo. Se o titular originário do direito de usufruto for uma pessoa coletiva, o artigo 1443.º CC estabelece que a duração do usufruto não pode exceder os 30 anos. Se as partes não estabeleceram nenhum prazo, e na falta de indicação em contrário do título constitutivo, deve entender-se que o prazo dos 30 anos funciona como prazo supletivo.

O objeto do usufruto: segundo o artigo 1439.º CC o objeto do usufruto pode ser uma coisa ou um direito alheio. A coisa originariamente afeta ao usufruto pode sofrer modificações objetivas. Um exemplo disso encontra-se na acessão. Se uma coisa se une ou mistura com aquela que é objeto do usufruto e o proprietário da coisa usufruída beneficia da acessão, o usufruto estendese a ela. A regra consta do artigo 1449.º CC. Também de acordo com o artigo 1449.º CC, se o prédio usufruído beneficia de servidões ativas sobre prédios vizinhos, o usufrutuário pode efetuar o aproveitamento das utilidades respetivas dentro do âmbito do seu direito. A doutrina vale para quaisquer outros direitos que permitam o aproveitamento de outras coisas ao proprietário do prédio objeto do usufruto. Do artigo 1439.º CC parece decorrer que o usufruto pode ter por objeto direitos. Trata-se de uma decorrência da doutrina que aceita poderem existir direitos cujo objeto seja outro direito. Como exemplos, temos o usufruto de créditos (artigo 1463.º a 1466.º CC), o usufruto de direitos de participação social (artigo 1467.º CC), o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão penhor de direitos (artigos 679.º e seguintes CC) e o direito de autor (artigo 45.º, n.º1 CDADC). Tivemos oportunidade de nos pronunciar sobre este tema a propósito do objeto dos direitos reais. Rejeitamos que haja direitos sobre direitos e que estes possam ser objeto de usufruto. O usufruto só poderá referir-se à coisa corpórea que seja objeto do direito usufruído, não ao próprio direito.

O quase-usufruto: o usufruto nasceu para assegurar ao titular a fruição da coisa e o uso necessário a ela. Como direito sobre coisa alheia, ao usufrutuário cabia respeitar a substância da coisa. O limite negativo da salva rerum substancia afastava as coisas consumíveis do objeto do usufruto. Quando o usufruto era constituído sobre um património composto por coisas consumíveis entendia-se que ficava limitado na sua eficácia às coisas não consumíveis. Problemas práticos, porém, levaram os romanos a questionarem a possibilidade de o usufruto incidir sobre coisas consumíveis. Um senatusconsultum de data controvertida admitiu a possibilidade de os legados patrimoniais recaírem em usufruto sobre todos os bens que o compunham, incluindo coisas consumíveis, em particular o dinheiro. Ainda assim, para os juristas clássicos, um usufruto com um conteúdo normal sobre coisas consumíveis era inconcebível. O usufrutuário de coisas consumíveis adquiria a propriedade das coisas consumíveis e podia consumi-las, em sentido próprio ou jurídico, devendo restituir outras tantas coisas (tantundem) em género e qualidade. Ao usufrutuário sobre coisas consumíveis foi dada a designação de quasi usufructus. A ligação ao regime do usufruto é, todavia, circunstancial. O regime jurídico do quasi usufructus revela uma proximidade muito maior ao regime jurídico do mútuo que ao do usufruto propriamente dito. O Direito português manteve a ligação tradicional do quase-usufruto ao regime do usufruto, tratando-o inclusivamente como tal. A matéria vem regulada no artigo 1452.º CC. Este preceito apresenta, contudo, algumas diferenças com o regime do Direito Romano, particularmente, no que respeita à transmissão da propriedade das coisas consumíveis, que se dispõe não se transferir para o usufrutuário (artigo 1451.º, n.º2 CC), contrariamente ao Direito alemão e ao entendimento mais comum seguido à luz do Direito italiano, e na possibilidade do quase-usufruto poder incidir diretamente sobre coisas consumíveis e não apenas em patrimónios onde elas existam. Este desenho visa acomodar a figura do usufruto de coisa consumível com o regime geral do usufruto, que não importa naturalmente a transmissão da propriedade para o usufrutuário. Ela afigura-se, porém, ficciosa e levanta dificuldades consideráveis. Na verdade, o aproveitamento normal da coisa consumível implica o seu consumo ou alienação, o que gera, em todo o caso, a perda da coisa ou a sua saída da esfera jurídica do usufrutuário. Na primeira hipótese, a substância da coisa – o limite negativo principal do usufruto – é afetada, sendo a decisão de consumo tomada por alguém que não é o proprietário da coisa; na segunda hipótese, a alienação é válida, apesar do que decorre aparentemente do disposto no n.º2 do artigo 1451.º CC, que importaria sempre a nulidade do negócio por falta de legitimidade do disponente, quer o negócio fosse oneroso (artigo 892.º CC), quer fosse gratuito (artigo 956.º, n.º1 CC). Por outro lado, o n.º1 do preceito não obriga o usufrutuário a fazer a entrega da coisa consumível dada em usufruto, podendo entregar simplesmente o seu valor, se ela foi avaliada, ou, se não foi, entregando outra do mesmo género ou qualidade, ou o valor desta no momento da extinção do usufruto. Este regime mostra que o quase-usufruto não constitui um verdadeiro usufruto, apresentando traços muito mais próximos do regime jurídico do mútuo do que aquele direito real. Razões históricas e económicas explicam ainda a situação atual, sem que isso importe, todavia, a qualificação desta situação como usufruto em sentido técnico.

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Usufruto simultâneo e usufruto sucessivo: a lei portuguesa menciona o que denomina usufruto simultâneo e usufruto sucessivo no artigo 1441.º CC.

1. O usufruto simultâneo: é uma forma de comunhão do usufruto (co-usufruto) e, como tal, encontra-se sujeito ao regime jurídico da comunhão de direitos reais, que é o da compropriedade, com as necessárias adaptações (artigo 1404.º CC); 2. O usufruto sucessivo: ao invés, designa um usufruto constituído a favor de várias pessoas, em que, na ordem disposta no título constitutivo, cada uma delas vai sendo investida no direito de usufruto logo que o usufruto do anterior usufrutuário se extinga. Não há, nestes casos, co-usufruto entre todos os usufrutuários, mas uma sucessão de vários usufrutos entre as pessoas designadas no título constitutivo, dentro da ordem aí estipulada. O usufruto simultâneo (co-usufruto) e o usufruto sucessivo não reverte a favor do proprietário, acrescendo o usufruto do falecido ao co-usufrutuário ou usufrutuários que tiverem sobrevivido. É o que dispõe o artigo 1442.º CC, que ressalva, porém, disposições em contrário.

Subtipos de usufruto: a maioria dos autores fala em modalidades de usufruto neste contexto. Nós julgamos ser mais correto falar em subtipos de direito de usufruto e não em modalidades, pois cremos que em qualquer delas se verifica sempre uma alteração, ainda que modesta, ao conteúdo injuntivo do tipo legal deste direito. A lei portuguesa permite autonomizar alguns subtipos do direito de usufruto. Esses subtipos distinguem-se do tipo principal do usufruto por alguma alteração no conteúdo injuntivo de aproveitamento da coisa. Assim, e a título de exemplo, as árvores e arbustos objeto de usufruto deveriam caber ao proprietário depois de perecerem naturalmente e de já não permitirem o seu gozo com a conservação da forma e substância. Todavia, a lei atribui ao usufrutuário o seu aproveitamento (artigo 1453.º, n.º1 CC). Por sua vez, os subtipos diferenciam-se entre si em função da coisa sobre a qual incidam. Assim, encontramos na lei portuguesa os seguintes:       

Usufruto de árvores e arbustos (artigos 1453.º e 1454.º CC); Usufruto de matas e árvores de corte (artigo 1455.º CC); Usufruto de plantas de viveiro (artigo 1456.º CC); Usufruto de minas (artigo 1457.º CC); Usufruto de pedreiras (artigo 1458.º CC); Usufruto de animais (artigo 1462.º CC); Usufruto de dinheiro (artigos 1463, 1464.º e 1465.º CC).

De fora dos subtipos de usufruto que indicámos fica o usufruto de participações sociais, que não constitui um usufruto, por não ter uma coisa corpórea por objeto. Ao contrário do que sucede com o quase-usufruto, o denominado usufruto de títulos de participação não constitui, sequer, um direito real.

Obrigações do usufrutuário: o Capítulo III do Título II do Código Civil (artigos 1468.º a 1475.º CC) regula as obrigações do usufrutuário. Nesse regime faltam, porém, as duas obrigações principais do usufruto e que resultam da delimitação negativa do tipo legal deste direito. Os limites negativos do usufruto não representam meras fronteiras da extensão do gozo do usufrutuário, implicando também obrigações (de non facere) a cargo do usufrutuário, diferentemente do que defende Pugliese. Essas obrigações são, como se sabe:

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1. A obrigação de respeitar a substância da coisa (artigos 1439.º e 1450.º, nº1 CC): como dissemos, o usufruto tem por objeto coisas não consumíveis, não podendo o usufrutuário destruir ou deteriorar a coisa (salva rerum substantia). 2. A obrigação de respeitar a forma ou destino económico determinado pelo proprietário (artigo 1439.º, 1446.º e 1450.º, n.º1 CC): sobre o usufrutuário impende igualmente a obrigação de conservar a afetação do fim económico da coisa, conforme existia no momento da constituição do direito. Ambas as obrigações formam o conteúdo – negativo – típico do usufruto e não estão na disponibilidade das partes, sob pena de violação do princípio da tipicidade. A violação ilícito e culposa de qualquer destas duas obrigações representa a violação do direito de nua propriedade e confere ao proprietário o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos, nos termos gerais da responsabilidade civil extracontratual. Para além da tutela dirigida ao ressarcimento dos danos causados pelo usufrutuário com a violação da nua propriedade, importa, porém, perguntar pela aplicação dos dispositivos de Direitos Reais, em particular, pela possibilidade de reivindicação da coisa e de extinção do usufruto. Para começar, realçamos que a ameaça ou consumação de deterioração ou perda da coisa, bem como a alteração do destino económico por atuação voluntária do usufrutuário, constituem um extravasar do direito de usufruto para além dos seus limites positivos e têm por consequência a violação do direito do proprietário. Uma vez que está em causa a preservação do direito de propriedade e a posição do proprietário quanto à sua coisa, não vemos como negar que o proprietário possa de imediato reivindicar a coisa, adequados à tutela do seu direito, nos termos regulados no Direito Processual Civil, se as circunstâncias o justificarem. A este propósito, quer-nos parecer que o recurso à ação negatória apresenta pouco interesse. O proprietário quer recuperar a coisa para impedir a prossecução da violação do seu direito e não apenas contestar a existência do direito do usufruto, que em regra não estará em causa. O poder de reivindicar a coisa em caso de violação de qualquer destas obrigações do usufrutuário não significa forçosamente a extinção do usufruto. No caso de mau uso da coisa objeto deste direito, o artigo 1482.º, n.º1 CC prevê o poder do proprietário exigir a entrega da coisa, sem que tal signifique a extinção do usufruto. Também em caso de violação de qualquer das duas obrigações referidas se poderia se sustentar idêntica solução. Estamos em crer, porém, que a extinção do usufruto nas situações mais graves de violação das obrigações de respeito da forma (destino económico) e substância da coisa se impõe pela quebra da confiança que tem de existir entre o usufrutuário e o proprietário quanto ao respeito do direito deste. A responsabilidade civil do usufrutuário não parece ser remédio suficiente defronte de uma conduta que ameace a subsistência ou o valor patrimonial da propriedade. Sustentamos, por isso, que nas situações referidas, de violação grave das obrigações de respeito da forma ou da substância da coisa, o proprietário possa requerer a extinção do usufruto. Não constitui, decerto, argumento contrário à extinção do usufruto por violação da forma ou substância a ausência de previsão legal específica no artigo 1476.º CC, dado que este preceito, como todos os outros atinentes à constituição e extinção de direitos reais espalhados pela disciplina normativa dos vários tipos legais, não consagra uma tipicidade taxativa dos factos com eficácia extintiva do usufruto. Para além das duas obrigações indicadas, o usufrutuário está sujeito ao cumprimento de uma série de outras obrigações, que poderíamos elencar da seguinte forma:    

Obrigação de relacionar as coisas; Obrigação de prestar caução; Obrigação de administrar a coisa; Obrigação de suportar os encargos e despesas com a coisa determinados pela lei;

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão  Obrigação de conservação ordinária da coisa;  Obrigação de informação do nu proprietário;  Obrigação de entrega da coisa. Quando haja uma unidade económica composta de várias coisas autónomas e todas elas hajam sido dadas em usufruto, a lei manda ao usufrutuário fazer a relação delas (artigo 1468.º, alínea a) CC). Se o proprietário assim o exigir, deve o usufrutuário prestar caução para garantir a restituição da coisa ou do seu valor ou ainda de qualquer indemnização pela qual seja responsável (artigo 1468.º, alínea b) CC). A falta de prestação da caução exigida pelo proprietário pode vir a impedir o usufrutuário de exercer o seu direito como lhe aprouver, ficando limitado à perceção dos rendimentos da coisa (artigo 1470.º, n.º1 CC); ao tribunal caberá em última análise decidir (artigo 1470.º, n.º2 CC). O usufrutuário administra a coisa enquanto dura o usufruto. No artigo 1446.º CC estabelece-se uma bitola de diligência na administração da coisa que tem a sua tradução na obrigação respetiva: o usufrutuário encontra-se obrigado a administrar a coisa segundo o critério de um bom pai de família, isto é, a usar o zelo, o empenho e a competência de uma pessoa cuidadosa na gestão dos seus bens. Trata-se, todavia, de um critério supletivo; nada impede as partes de fixarem um diferente critério de administração da coisa, mais ou menos rigoroso. No artigo 1474.º CC dispõe-se que o pagamento dos impostos sobre os rendimentos da coisa incumbe a quem for usufrutuário no momento do vencimento. É uma disposição de pouco alcance, porquanto o sujeito tributário da obrigação fiscal não é definindo pelo Direito Civil, mas pelo Direito Fiscal. Será este objeto do usufruto e aos seus rendimentos. Nada parece impedir, porém, que as partes convencionem que na relação interna valha o critério ou critérios convencionados no título constitutivo do usufruto. Dentro ainda dos encargos da coisa, o artigo 1472.º, n.º1 CC põe sobre o usufrutuário o dever de suportar as despesas de administração e de conservação ordinária da coisa, preceituando-se não serem ordinárias as despesas que excedam dois terços (2/3) do rendimento líquido da coisa (artigo 1472.º, n.º2 CC). O usufrutuário pode exonerar-se a estes encargos mediante renúncia liberatória (artigo 1472.º, n.º3 CC). Em todo o dispositivo legal do usufruto perpassa a ideia que o usufrutuário deve manter a coisa no estado em que a recebeu, salvaguardadas as deteriorações normais decorrentes de um uso prudente e do decurso do tempo. Não são apenas as obrigações de respeito pela forma e pela substância e de administrar a coisa como faria um bom pai de família que sugerem essa ideia. O usufrutuário tem ainda sobre si a obrigação de promover a conservação da coisa (artigo 1472.º, n.º2 CC), prevenindo os efeitos de uma deterioração antecipada e evitável, ficando somente fora dela a conservação extraordinária, que incumbe ao nu proprietário (artigo 1473.º CC). A obrigação de informação consta do artigo 1475.º CC, o qual impõe ao usufrutuário a comunicação ao proprietário de qualquer ato de terceiro que possa ameaçar a lesão da propriedade. Por fim, a restituição da coisa. Com a extinção do seu direito, qualquer que seja a causa da mesma, o usufrutuário deve entregar a coisa ao proprietário (artigo 1483.º CC), que não está inibido de recorrer à reivindicação ou à defesa possessória (ação de restituição) para a recuperar. Liberto desta obrigação está o usufrutuário de coisas consumíveis, mas, como sabemos, a situação (de quase-usufruto) não corresponde a um usufruto em sentido técnico. O estado da coisa a entregar deve ser o que se pode esperar do uso normal. Uma deterioração decorrente da ausência de manutenção apropriada da coisa implica a imputação dos danos ao usufrutuário.

Direitos do nu proprietário: de um modo geral, como sucede relativamente a todos os direitos reais que estejam onerados, o proprietário conserva o exercício dos poderes não afetados pelo conteúdo do usufruto, dos quais se destaca o poder de disposição. A essa parte

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão da propriedade costuma chamar-se o caso ou a raiz da propriedade. Para além do conteúdo residual da propriedade que não é afetado pela oneração com o usufruto, há depois um conjunto de situações jurídicas ativas – em regra, poderes – que decorrem da relação jurídica entre o proprietário e o usufrutuário enquanto o usufruto se mantiver. Se pretendêssemos fazer uma lista exaustiva teríamos que ponderar o lado ativo das obrigações do usufrutuário. Contudo, e por uma questão de facilidade, preferimos expor a matéria do prisma em que ela surge no regime jurídico. Assim, do lado ativo do nu proprietário, começamos por destacar a possibilidade deste introduzir melhoramentos na coisa (artigo 1471.º CC). Estes melhoramentos não se devem confundir com as obras extraordinárias previstas no artigo 1473.º CC; estas são ainda obras de conservação da coisa, embora a cargo do proprietário. As obras ou melhoramentos aludidos no artigo 1471.º CC são inovações que se destinam a aumentar o valor da coisa ou a sua utilidade. Este poder de transformação do proprietário, que se mantém apesar do usufruto, tem um limite: ele não pode induzir uma desvalorização do usufruto (artigo 1471.º, n.º1, in fine CC). Se isso acontecer, o usufrutuário poderá pôr-se ao exercício do poder de transformação do proprietário, inviabilizando as obras ou melhoramentos pretendidos por este. Respeitando ao poder de disposição, mas repercutindo-se no gozo do usufrutuário, está o poder de constituir servidões prediais. O proprietário mantém o poder de constituir servidões passivas sobre a coisa objeto do usufruto, contando que não haja desvalorização do usufruto (artigo 1460.º, n.º2 CC), que também aqui atua como limite à atuação do nu proprietário. No que toca às servidões ativas, e desde que não se repercutam numa desvalorização do usufruto, o que não será normalmente o caso, o proprietário mantém íntegro o seu poder de disposição. Nesse caso, o usufrutuário beneficiará igualmente delas, como se dispõe no artigo 1449.º CC (direitos inerentes à coisa usufruída). A realização de inovações na coisa pelo proprietário (artigo 1471.º CC) ou de obras extraordinárias de conservação (artigo 1473.º CC) pode redundar na retoma de algum poder de fruição pelo nu proprietário. Com efeito, conforme se dispõe no artigo 1271.º, n.º2, in fine CC, se as obras ou melhoramentos aumentarem o rendimento líquido da coisa, o aumento pertence ao proprietário. Esta regra aplica-se igualmente quando o proprietário leva a cabo obras de conservação extraordinárias (artigo 1473.º, n.º3 CC). Isto mostra que a propriedade onerada com um usufruto pode ainda render frutos ao nu proprietário, quando, por força da intervenção do proprietário na realização de inovações ou de obras extraordinárias de conservação, a coisa aumente o seu rendimento líquido. A fruição limita-se nestes casos ao aumento do rendimento líquido da coisa objeto de usufruto.

Obrigações do nu proprietário: do usufruto podem também resultar obrigações para o nu proprietário. Para começar, o proprietário deve, como todos os outros, respeitar o usufruto constituído e a posse do usufrutuário. Não há neste ponto qualquer diferença entre a posição do nu proprietário e a posição de outro qualquer terceiro. Se não respeitar o direito do usufrutuário, o proprietário sujeita-se a responsabilidade civil pelos danos causados, podendo naturalmente ser demandado pelo usufrutuário em ação de reivindicação (artigo 1311.º ex vi 1315.º CC) ou em ação possessória (de prevenção, manutenção ou restituição), se a posse deste último vier a ser molestada. Para além do dever de respeito pelo direito de usufruto, existem outros deveres que impendem sobre o nu proprietário. Assim:  O dever de realizar as obras extraordinárias de conservação da coisa (artigo 1473.º CC);  O dever de indemnizar o usufrutuário pela realização de obras extraordinárias de conservação da coisa que não caibam àquele suportar (artigo 1473.º, n.º2 CC);  O dever de indemnizar o usufrutuário por benfeitorias feitas na coisa (artigo 1450.º, n.º2 CC).

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A extinção do usufruto pela morte do usufrutuário: o usufruto extingue-se com a morte do usufrutuário (artigo 1476.º, n.º1, alínea a) CC). No entanto, deve-se distinguir consoante a morte afeta o usufrutuário original ou o transmissário do usufruto. Se o usufruto foi transmitido a terceiro e o usufrutuário original continua vivo, o usufruto entra na sucessão do usufrutuário falecido, vindo a extinguir-se apenas quando o primeiro usufrutuário falecer.

O mau uso do usufrutuário: a lei portuguesa dispõe que o usufruto não se extingue ainda que o usufrutuário faça mau uso da coisa usufruída. Ao contrário da lei italiana, que tipificou alguns casos de mau uso, o que seja mau uso a lei portuguesa não clarifica, defrontando-nos com mais um conceito jurídico indeterminado. Do âmbito do não uso devem excluir-se os casos de violação dos limites negativos do usufruto. Mais do que um mau uso, trata-se aí de um ataque direito ao direito do proprietário, um comportamento que excede a atribuição da coisa feita mediante o direito do usufruto. Daí que nesse caso o artigo 1482.º CC não receba aplicação, podendo inclusivamente ocorrer a extinção do usufruto, se a gravidade do comportamento do usufrutuário o justificar. Uma definição de não uso não se afigura possível, assim como a indicação de todos os casos suscetíveis de tal qualificação. Um avanço pode conseguir-se, no entanto, com a tipificação de grupos de casos onde se regista um mau uso da coisa por parte do usufrutuário. Parece-nos, desde já, poderem apontar-se dois grandes grupos de casos, consoante:  O exercício do direito, ou a falta dele, por parte do usufrutuário implique uma diminuição do valor da coisa: como exemplo, podemos encontra-lo no fecho de estabelecimento comercial no imóvel objeto de usufruto, sem que lhe seja dada qualquer outra utilização;  Da atuação do usufrutuário resulte a deterioração da coisa, desde que esta não possa ser qualificada como uma alteração da forma ou substância da coisa: exemplificamos este caso na não realização das obras de reparação ordinária a cargo do usufrutuário (artigo 1472.º, n.º1 CC).

A natureza do usufruto: a questão da natureza do usufruto tem sido levantada praticamente desde o Direito Romano. Alguns textos romanos faziam referência ao dominus usufrutctus ao lado do dominus proprietatis; discutia-se se o usufruto poderia considerar-se pars dominii. Paulus diz que o usufruto in multis casibus pars dominii est e Gaio argumenta se é pars rei na proprium quaiddam. A configuração de usufruto como propriedade teria defensores até recentemente. O conteúdo do gozo do usufrutuário, que praticamente despoja o gozo do nu proprietário e confere a propriedade dos frutos ao usufrutuário, funciona como um argumento de força. Em todo o caso, a aproximação do usufruto à propriedade tem sido levada a cabo de diferentes maneiras. No domínio do Código Civil de Seabra todos os direitos reais menores são classificados como propriedades imperfeitas, debaixo da ideia do desmembramento da propriedade (artigo 2187.º CC). Ainda assim, a doutrina não deixaria de salientar que o usufruto constitui um ius in re aliena e não uma propriedade, apesar da formulação do Código Civil. Na verdade, os direitos reais de gozo não são simples partes ou quotas da propriedade, assumindo antes a veste de outros direitos, sobre coisa alheia decerto, mas construídos na base de um aproveitamento próprio da coisa que faz deles direitos diversos. Refutada a teoria do desmembramento, ela não pode mais servir para fundamentar a natureza de qualquer direito real menor. No século XX, Allara avançou com a construção dogmática do usufruto como propriedade temporária: o usufruto não se constrói como uma situação real com um conteúdo especial, mas como um complexo de situações jurídicas constituído por uma situação real (propriedade temporária) e uma pluralidade de obrigações propter rem. Uma dessas obrigações 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão propter rem seria o respeito pela destinação económica da coisa, que não funcionaria assim como um limite do direito real do usufrutuário. A assimilação do usufruto à propriedade, mesmo que temporária, não encontra, porém, arrimo no Direito positivo. Para começar, a nua propriedade, mesmo despojada do seu núcleo fundamental de gozo, continua a ser propriedade e o Direito português não admite duas propriedades conflituantes senão no modelo da compropriedade. A propriedade constitui um direito exclusivo (artigo 1305.º CC). Depois, porque mesmo que o proprietário renuncie ao seu direito o usufrutuário não se torna propriedade pleno, ficando a coisa nullius, se for móvel, ou propriedade do estado, se for imóvel (artigo 1345.º CC). A elasticidade do usufruto não compreende a sua extensão para propriedade plena em caso de extinção da propriedade. E o usufruto não sofre a extinção porque o proprietário renunciou ao seu direito. Outros aspetos do regime jurídico confirmam igualmente esta perspetiva. Um conteúdo de aproveitamento da coisa que não confere todo o uso, transformação ou disposição dificilmente se assemelha à propriedade, pois não atribui o gozo pleno da coisa (artigo 1305.º CC). Por outro lado, a sujeição à intervenção do nu proprietário para obras de inovação que tragam o melhoramento da coisa (artigo 1471.º CC) e a perda da fruição decorrente da intervenção do nu proprietário (artigo 1471.º CC) e a perda da fruição decorrente da intervenção do nu proprietário na coisa (artigos 1471.º, n.º2 e 1473.º, n.º3 CC) dificilmente são compatíveis com a perspetiva de um usufrutuário proprietário, ainda que simplesmente com uma parte ou quota do domínio. Estas críticas já deixam antever o nosso pensamento na matéria. O usufruto constitui um proprium ius de natureza real, para usar uma expressão de Bonfante, que se distingue quer da propriedade quer dos demais direitos reais. Um proprium ius porquanto representa um tipo autónomo de aproveitamento da coisa e, nessa medida, um direito real diverso dos outros. A circunstância histórica do conteúdo básico deste direito haver nascido tendo por base o gozo do proprietário em nada contribui para negar esta doutrina. O usufrutuário é visto no sistema positivo de Direitos Reais como um ius in re aliena e não como um direito sobre coisa própria, que é sempre o direito do nu proprietário; por outro lado, o aproveitamento concedido ao usufrutuário oferece assinaláveis diferenças com a propriedade ou qualquer dos outros direitos reais, seja na delimitação positiva dos poderes, seja na delimitação negativa. Dentro dos direitos reais, nenhuma dúvida se levanta sobre a qualificação do usufruto como direito real de gozo.

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Secção III – O Usufruto

Generalidades: nos termos do artigo 1439.º CC o usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma e substância. Esta definição inspira-se na célebre definição de Paulus, em relação ao usufruto constante de D.7.1.1.: Usus frctus est ius alienis rebus utendi fruendi salva rerum substantia. O usufruto é assim um direito real menor, que embora atribua a plenitude das faculdades de gozo relativas à coisa, só o faz temporariamente, e não permite ao usufrutuário a alteração da sua forma e substância.

Evolução histórica do usufruto: o usufruto tem antecedentes no antigo Direito Grego, mas os seus traços fundamentais foram-lhe conferidos pelo Direito Romano. Neste ordenamento, o usufruto surge entre os séculos III e II a.C., com o fim de atribuir à viúva um rendimento adequado à sua subsistência, sem afetar a quota dos descendentes e outros herdeiros, sendo controvertido entre os romanistas se seria visto inicialmente como um direito real sobre coisa alheia, ou antes como uma propriedade sobre os frutos da coisa. Entre o fim do século II e o princípio do século I o usufruto adquire a natureza de ius in re aliena, distinguindo-se assim da propriedade, de que era vista como componente. O pretor estabeleceu em consequência a cautio frucutuaria, pelo qual o usufrutuário assumia a obrigação de gozar a coisa boni viri arbitratu e de a restituir no fim do usufruto quod inde extabit (D.7.9.1.pr.). A época justinianeia veio a estabelecer algumas modificações no âmbito do usufruto, qualificando-o como uma servidão pessoal (servitus personarum, D.8.1.1.), e equiparando o usufruto de coisas deterioráveis (usu minuuntur) ao usufruto de coisas consumíveis, reconhecido o usufruto a favor de pessoas coletivas e estabelecido limites máximos para a sua duração. O direito justinianeu qualificou ainda como usufruto o direito atribuído na época pós-clássica ao pater familias sobre os bens recebidos em herança pelo filho. O exercício de facto do usufruto passou a ser considerada uma quase-posse (possessio iuris). O usufruto não sofreu grandes modificações no Direito intermédio, não tendo recebido influência dos Direitos germânicos. Nas diversas codificações, o usufruto aparece sucessivamente disciplinado no Código Civil Francês, no Código Civil Austríaco de 1811, no Código Civil Alemão de 1896 e no Código Civil Italiano de 1942.

Características do usufruto: da definição constante do artigo 1439.º CC resultam logo as seguintes características do usufruto:

1. É um direito que atribui o gozo pleno de uma coisa: o usufruto é, em primeiro lugar, um direito que atribui o gozo pleno de uma coisa, ou seja, o usufrutuário tem, assim, a possibilidade de servir-se da coisa e receber os respetivos frutos, sejam eles naturais ou civis, podendo trespassar o usufruto ou onerá-lo (artigo 1444.º CC). O gozo da coisa é pleno, no sentido de que compreende qualquer utilidade a retirar dela, seja usando-a ou apropriando-se dos seus frutos, seja permitindo a terceiro esse gozo. O usufrutuário beneficia, assim, da generalidade dos poderes de gozo a que a coisa seja suscetível de proporcionar, não sendo o seu gozo circunscrito a determinadas faculdades, ao contrário do que acontece noutros direitos reais menores. 2. É um direito não exclusivo: o usufruto é, em segundo lugar, um direito não exclusivo, uma vez que tem limites máximos de duração, que não podem ultrapassar a vida do seu titular ou, no caso de pessoa coletiva, a duração de trinta anos (artigo 1443.º CC). Em consequência, a morte do titular ou o decurso do prazo extinguem o usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea a) CC). Admite-se, todavia, o usufruto simultâneo e o usufruto 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão sucessivo a favor de várias pessoas, podendo consequentemente nesses casos o usufruto passar por morte para os outros usufrutuários, designadamente através do direito de acrescer, no caso de usufruto conjunto (artigo 1442.º CC). Exige-se, no entanto, que essas pessoas existam ao tempo em que o direito do primeiro usufrutuário se torne efetivo (artigo 1441.º CC), em ordem a evitar o prolongamento do usufruto que resultaria da designação de concepturos como novos titulares. 3. É um direito temporário; 4. Encontra-se limitado pela proibição de alteração da forma ou substância da coisa: por último, o usufruto encontra-se limitado pela proibição de alterar a forma ou substância da coisa (artigo 1439.º CC). Esta disposição tem, no entanto, que ser articulada com o disposto no artigo 1446.º CC, que não faz referência à forma e substância, mas antes ao destino económico da coisa. A doutrina tem, por isso, discutido qual a disposição prevalecente. a. Para Oliveira Ascensão, a exigência mais genérica é a do artigo 1439.º CC, que faz parte do próprio tipo de usufruto. Já a disposição do artigo 1446.º CC está integrada entre as disposições supletivas, pelo que poderia por isso ser afastada. b. Em sentido contrário, Menezes Cordeiro, sustenta que, sendo uma definição legal, o artigo 1439.º CC não tem natureza imperativa, pelo que o usufrutuário não está vinculado a respeitar a forma e substância, mas apenas o destino económico da coisa. c. A nosso ver, é preferível a primeira posição, uma vez que a proibição da alteração da forma e substância da coisa é que faz parte do tipo legal do usufruto, sendo o respeito pelo seu destino económico uma disposição supletiva, cuja observância não se afigura essencial. A proibição de alterar a forma ou substância da coisa não existe no caso do usufruto de coisas consumíveis (artigo 1451.º CC). Este constitui, porém, uma modalidade especial de usufruto, a que nos referiremos infra.

Objeto do usufruto: o artigo 1439.º CC refere que o usufruto tanto pode ter objeto uma coisa como um direito. A lei regula especificamente usufrutos sobre diversas coisas, como árvores e arbustos (artigos 1453.º e seguintes CC), matas e árvores de corte (artigos 1455.º e seguintes CC), plantas de viveiro (artigos 1456.º e seguintes CC), e universalidades de animais (artigo 1463.º CC). Em relação aos direitos, a lei prevê usufrutos sobre créditos (artigos 1463.º e seguintes CC), títulos de créditos (artigo 1465.º CC) e participações sociais (artigo 1467.º CC). No entanto, o direito do usufrutuário apenas tem natureza real se incidir sobre coisas corpóreas, uma vez que só neste caso pode ser exercido diretamente sobre a coisa e é oponível a qualquer terceiro, incluindo o proprietário de raiz. Se não incidir sobre coisas corpóreas, o usufruto perde a sua natureza real, podendo corresponder a um direito sobre bens imateriais ou mesmo a um direito de crédito. Enquanto direito real, o usufruto tem assim sempre por objeto uma coisa corpórea, ainda que os poderes do usufrutuário possam vir a ser limitados em consequência do direito real sobre a coisa de que é titular quem constitui o usufruto em virtude do princípio nemo pluris in alium tranferre quam ipse habet. Assim, por exemplo, não apenas o proprietário, como também o usufrutuário, o proprietário do solo ou o superficiário podem constituir usufrutos a favor de terceiro, mas os direitos do usufrutuário sobre a coisa ficam limitados pelo direito com base no qual se constitui o usufruto. Assim, um usufruto constituído sobre um direito de superfície não atribui ao usufrutuário qualquer direito sobre o solo, apenas lhe permitindo exercer temporariamente sobre a coisa as faculdades que competiam ao superficiário. O usufruto pode igualmente ser constituído sobre uma quota em compropriedade, caso em que o usufrutuário participa das 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão vantagens e encargos da coisa paralelamente com os outros comproprietários durante o prazo de duração do usufruto (artigo 1405.º, n.º1 CC). O comproprietário não pode, porém, sem o consentimento dos outros, constituir usufruto sobre a totalidade ou parte especificada da coisa comum, a qual será vista como oneração de coisa alheia, e consequentemente nula (artigo 1408.º e 892.º CC).

Constituição do usufruto: o artigo 1440.º CC refere que o usufruto pode ser constituído por 1. Contrato: em relação à constituição por contrato, o usufruto pode resultar de qualquer contrato de alienação (compra e venda, doação ou permuta), de uma entrada em sociedade, ou de um contrato de renda perpétua ou vitalícia. A constituição do usufruto pode, nesse caso, ocorrer por duas vias: a. A atribuição do usufruto: ou constituição per translationem, ocorre sempre que alguém constitui a favor de outrem um usufruto, reservando para si a nua propriedade; ou b. A reserva do usufruto: ou constituição per dedutionem, ocorre sempre que alguém atribua a nua propriedade a outrem, reservando para si o usufruto. Pode ocorrer, ainda, a atribuição simultânea do usufruto e da nua propriedade a adquirentes distintos, caso em que o alienante deixa de ter qualquer direito sobre a coisa. 2. Testamento: o usufruto pode igualmente resultar de testamento, o qual pode da mesma forma estabelecer uma atribuição ou uma reserva de usufruto. É de notar que o usufrutuário é sempre havido como legatário, mesmo que o seu direito incida sobre a totalidade da herança (artigo 2030.º, n.º4 CC). O artigo 2258.º CC estabelece que a deixa de usufruto, na falta de indicação em contrário, considera-se feita vitaliciamente, ou pelo prazo de trinta anos no caso de o beneficiário ser uma pessoa coletiva. 3. Usucapião: o usufruto pode igualmente ser constituído por usucapião, nos termos gerais (artigos 1287.º e seguintes CC), bastando para tal que a respetiva posse não seja exercida em termos de propriedade, mas apenas em termos de usufruto (artigo 1251.º CC). 4. Disposição da lei: a constituição do usufruto por disposição da lei não se encontra atualmente prevista em nenhuma disposição legal. Na versão original do Código Civil, admitiam-se dois casos de usufruto legal: a. O usufruto dos pais sobre os bens dos filhos menores sujeitos à responsabilidade parental (artigo 1893.º CC); e b. O do cônjuge sobrevivo sobre os bens da herança, quando concorresse à sucessão juntamente com os irmãos do de cuius e seus descendentes (artigo 2146.º CC). Estas duas situações foram, porém, abolidas, dado que os pais passaram a ser meros administradores dos bens dos filhos e o cônjuge viu a sua posição na classe de sucessíveis passar para o primeiro ou segundo lugar, juntamente com os descendentes ou ascendentes. No caso da aquisição do usufruto por contrato ou testamento, a constituição do usufruto corresponde a uma aquisição derivada constitutiva. Já no caso da constituição por usucapião, trata-se de um caso de constituição originária. Poderes do usufrutuário: nos termos do artigo 1446.º CC, o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito. O usufrutuário tem, assim, a faculdade de usar a coisa, administra-la, fazê-la produzir frutos, colher os frutos naturais e exigir os frutos civis. Para além disso, o usufrutuário tem ainda a possibilidade de proceder à alienação ou oneração do seu direito (artigo 1444.º CC).

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1. Poder de uso da coisa: o usufrutuário tem, em primeiro lugar, o poder de usar a coisa. O poder de uso da coisa tem grande amplitude e é indeterminado, sendo praticamente equiparado ao poder de uso do proprietário do qual se distingue apenas pela limitação relativa ao respeito pela forma e substância da coisa (artigo 1439.º CC) e supletivamente pelo seu destino económico (artigo 1446.º CC). Essas limitações não correspondem, porém, a obrigações específicas do usufrutuário, mas antes a limites ao seu poder de uso, pelo que se o usufrutuário os infringir, viola o direito do proprietário, sendo responsável nos termos da responsabilidade delitual (artigo 483.º CC), de acordo com o critério da diligência do bom pai de família (artigos 1446.º e 487.º, n.º2 CC). O limite em relação à forma e substância compreende-se em função do cariz temporário do usufruto, que justifica a imposição desse limite a qualquer uso da coisa que possa alterar essa forma ou substância, prejudicando a futura restituição dessa coisa. Esse limite é, no entanto, excluído no caso do usufruto de coisas consumíveis (artigo 1451.º CC) e atenuado no caso de usufruto de coisas deterioráveis (artigo 1452.º CC), em termos que examinaremos quando tratarmos particularmente dessas figuras. Já o limite em relação ao respeito pelo destino económico da coisa tem cariz supletivo, podendo discutir-se se o mesmo corresponde ao destino económico a que objetivamente a coisa seja idónea ou àquele destino que lhe tinha anteriormente sido atribuído pelo proprietário. A melhor interpretação parece ser a segunda, uma vez que, aquando da constituição do usufruto, a expectativa do proprietário é que a função económica que tinha atribuído à coisa não venha a ser alterada, sendo este o critério legalmente utilizado em vários exemplos de usufruto (artigos 1455.º, n.º1, 1456.º, n.º1, 1457.º, n.º1 e 1458.º, n.º1 CC). Nada impede, porém, o proprietário de raiz, no título constitutivo ou numa sua alteração posterior, consentir em atribuir à coisa um destino económico diferente, passando a ser esse que o usufrutuário fica vinculado a respeitar. O usufrutuário tem ainda que respeitar outros limites ao seu uso que tenham sido estipulados no título constitutivo (artigo 1445.º CC). São naturalmente abrangidos pelo poder de uso da coisa as coisas acrescidas e todos os direitos inerentes à coisa usufruída (artigo 1449.º CC). A extensão do usufruto às acessões compreende-se naturalmente em função de esta ser uma forma geral de aquisição dos direitos reais. Já o exercício dos direitos inerentes explica-se em virtude de competir ao usufrutuário todas as atribuições jurídicas correspondentes à utilização e frutificação da coisa, nelas se compreendendo naturalmente as servidões ativas do prédio, que podem ser assim exercidas pelo usufrutuário. 2. Poder de fruição da coisa: o poder de fruição da coisa compreende a faculdade de perceber os frutos da mesma, nos termos amplos em que o conceito de fruto é reconhecido pelo direito (artigo 212.º CC). Em consequência desse poder, o usufrutuário adquire a propriedade dos frutos a partir do momento em que eles são separados da coisa-mãe, podendo exercer desde esse momento todos os poderes que competem ao proprietário. O poder de fruição da coisa pelo usufrutuário abrange tanto a sua fruição natural como a sua fruição civil. Relativamente à fruição natural da coisa, deve referir-se que, enquanto permanecem ligados à coisa-mãe, os frutos naturais da coisa pertencem ao proprietário, tendo o usufrutuário apenas o seu usufruto. No poder de fruição que compete ao usufrutuário compreendem-se dois elementos: a. A faculdade de perceber os frutos; e b. A aquisição automática da sua propriedade a partir do momento em que ocorre a sua separação da coisa, ocorra esta ação do usufrutuário ou por causas naturais.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Normalmente, no entanto, a aquisição da propriedade dos frutos apenas deve ocorrer no momento da colheita. Essa solução explica o regime estabelecido no artigo 1448.º CC. Se o usufrutuário tiver alienado frutos antes da colheita, e o usufruto se extinguir antes de serem colhidos, a alienação subsiste, mas o respetivo produto pertence ao proprietário, deduzida a indemnização por despesas da colheita. Efetivamente, uma vez que a transmissão da propriedade só se dá no momento da colheita (artigo 408.º, n.º2, in fine CC), a extinção do usufruto antes da mesma leva a que o usufrutuário não adquira a propriedade dos frutos, tendo feito uma disposição eficaz de um bem, que afinal foi atribuído a outrem. A alienação é conservada, mas nos termos gerais do enriquecimento sem causa, o valor da colheita tem que ser atribuído ao proprietário. Apesar de no Direito Romano se atribuir ao usufrutuário o rendimento da caça e da pesca no terreno (D.7.1.9.5), atualmente essa solução é inaceitável, atento o facto de a caça e a pesca serem reguladas por legislação especial (artigo 1319.º CC). O usufrutuário tem igualmente o poder de fruição civil da coisa. Esta corresponde a um rendimento de substituição, na medida em que a fruição civil da coisa pelo usufrutuário implica necessariamente alguma substituição no gozo da coisa, que é dada a outrem em troca de determinada contrapartida, como no cas de constituição sobre ela de uma locação. Ao contrário do que sucede nos frutos naturais, a fruição pelo usufrutuário não depende de atos materiais de separação da coisa, mas antes da atribuição de um direito de crédito à contrapartida pela concessão do seu uso, tenha o respetivo contrato sido celebrado pelo usufrutuário ou previamente pelo proprietário. 3. Poderes de disposição: o usufrutuário tem igualmente poderes de disposição do seu direito. O primeiro poder de disposição do usufrutuário reconduz-se ao trespasse do seu direito (artigo 1444.º, n.º1 CC). O usufrutuário reconduz-se à alienação do seu direito a outrem, seja a título oneroso ou gratuito. Essa transmissão pode ser temporariamente limitada ou estender-se a toda a futura duração do usufruto. Naturalmente que não poderá, no entanto, extravasar dos limites temporais desse direito. No entanto, a lei estabelece uma responsabilidade objetiva do usufrutuário pelos danos que as coisas padecerem por culpa da pessoa que o substituir (artigo 1444.º, n.º2 CC). O usufrutuário tem ainda a possibilidade de onerar o seu direito (artigo 1444.º, n.º1 CC), por exemplo, através da constituição sobre ele de direitos reais de gozo menores como o sub-usufruto, o uso e habitação, ou as servidões prediais (artigo 1460.º, n.º1 CC), ou de direitos reais de garantia, como a consignação de rendimentos, o penhor ou a hipoteca, ou ainda de direitos pessoais de gozo, como a locação ou o comodato. Todos esses encargos ficam, porém, limitados pela duração do próprio usufruto, extinguindo-se em resultado da sua extinção. Por último, o usufrutuário tem a possibilidade de extinguir o seu direito através da renúncia (artigo 1476.º, n.º1, alínea e) CC).

Obrigações do usufrutuário: o usufrutuário tem determinadas obrigações, que se integram no conteúdo do seu direito real, tendo consequentemente natureza propter rem. As obrigações do usufrutuário reconduzem-se às seguintes:

1. Obrigação de inventariar os bens objeto do usufruto: o usufrutuário tem, em primeiro lugar, a obrigação de enumerar e descrever as coisas móveis e imóveis objeto do usufruto (artigo 1468.º, alínea a) CC). Esta obrigação é instrumental em relação à definição do âmbito do seu direito de usufruto, bem como do objeto a restituir após a sua extinção. O seu cumprimento deve ser feito com assistência do proprietário de raiz, ou pelo menos com a citação deste para estar presente, em ordem a evitar divergências entre os dois. A

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão lei não refere quais as consequências da omissão deste dever por parte do usufrutuário. A melhor posição parece ser a de que o usufrutuário não poderá legalmente tomar conta dos bens, ou seja, exercer as faculdades correspondentes ao usufruto e se o fizer, responde perante o proprietário de raiz. 2. Obrigação de prestar de caução: a outra obrigação do usufrutuário, prevista no artigo 1468.º, alínea b) CC, é a de prestar caução, se esta lhe for exigida, tanto para a restituição dos bens ou do respetivo valor, sendo bens consumíveis, como para a reparação das deteriorações que venham a padecer por sua culpa, bem como para o pagamento de qualquer outra indemnização que seja devida. Estamos, assim, perante a chamada cautio usufrutuaria, que pode ser prestada nos termos gerais do artigo 623º CC.A caução não é, em qualquer caso, exigida ao alienante com reserva de usufruto (usufruto per deductionem), podendo, nos outros casos, ser dispensada no título constitutivo do usufruto (artigo 1469.º CC). A não prestação da caução tem as consequências previstas no artigo 1470.º, n.º1 CC, as quais parecem excetuar as consequências gerais da não prestação de caução, estabelecidas no artigo 625.º CC. Assim, incluindo o usufruto sobre bens imóveis, o proprietário pode exigir que os mesmos sejam arrendados ou postos em administração, ficando o usufrutuário sem a faculdade de os usar, e limitando-se a sua fruição a receber as rendas ou quantias pagas pela administração. Tratando-se de bens móveis, o proprietário pode exigir que os mesmos lhe sejam entregues ou vendidos, o que tem como consequência não se permitir ao usufrutuário o uso da coisa, seja ela ou não deteriorável (artigo 1452.º CC) e muito menos o seu consumo, caso se trate de coisa consumível (artigo 1451.º CC). O proprietário deve, no entanto, entregar ao usufrutuário o valor da fruição da coisa ou os rendimentos do produto da venda. Em relação aos capitais ou produtos das vendas, estes deixam de ser livremente administrados pelo usufrutuário, nos termos do n.º do artigo 1465.º CC, podendo o proprietário solicitar que os mesmos se deem a juros ou sejam aplicados em título de crédito nominativos. Os juros e quaisquer outros rendimentos dos títulos serão naturalmente pertença do usufrutuário. Quanto aos títulos ao portador, devido aos riscos que representa a sua fácil circulação, o proprietário pode exigir que os mesmos sejam convertidos em nominativos ou depositados. A não prestação de caução legitima ainda o proprietário a solicitar outras medidas adequadas à tutela dos bens, em conformidade com a sua natureza e características. O usufrutuário tem, no entanto, que dar o seu acordo a essas aplicações dos bens, uma vez que pode considerar que há investimentos mais rendosos do que os propostos pelo proprietário. Cabe ao tribunal decidir na falta de acordo (artigo 1470.º, n.º2 CC). 3. Obrigação de consentir a realização pelo proprietário de obras e melhoramentos da coisa: nos termos do artigo 14671.º, n.º1 CC, o usufrutuário é obrigado a consentir ao proprietário quaisquer obras ou melhoramentos de que seja suscetível a coisa usufruída, e também quais novas plantações, se o usufruto recair em prédios rústicos, contanto que dos atos do proprietário não resulte diminuição do valor do usufruto. Nesse caso, o usufrutuário tem direito ao usufruto das obras e melhoramentos realizados, sem ser obrigado a pagar juros das somas desembolsadas pelo proprietário, nem qualquer outra indemnização. Porém, na hipótese de as obras e melhoramentos aumentarem o rendimento líquido da coisa usufruída, o aumento pertence ao proprietário (artigo 1471.º, n.º1 CC). 4. Obrigação de suportar as despesas de administração e as reparações ordinárias: o usufrutuário é obrigado a suportar as despesas de administração e as reparações

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ordinárias indispensáveis para a conservação da coisa (artigo 1472.º, n.º1 CC), devendo considerar-se como tais as que são previsíveis e normais durante o período de duração do usufruto, sendo extraordinárias aquelas que se possam considerar anormais ou previsíveis. As reparações ordinárias estão, no entanto, sujeitas a um limite máximo legal, uma vez que não se consideram como tais as reparações que, no ano em que foram necessárias, excedam dois terços do rendimento líquido desse ano (artigo 1472.º, n.º2 CC). Em qualquer caso, o usufrutuário pode eximir-se das reparações ou despesas a que é obrigado, renunciado ao usufruto (artigo 1472.º, n.º3 CC). 5. Dever de avisar o proprietário em relação a reparações extraordinárias: o usufrutuário já não é, porém, obrigado a realizar reparações extraordinárias na coisa, devendo considerar-se como tais aquelas que sejam anormais ou imprevisíveis, como as que importem alterações na estrutura essencial da coisa ou que extravasem do normal rendimento da coisa, implicando investimentos de capital, e ainda, nos termos do artigo 1472.º, n.º2 CC, aquelas reparações que, no ano em que foram feitas, excedam dois terços (2/3) do rendimento desse ano. Em relação às reparações extraordinárias, o usufrutuário tem assim apenas o dever de avisar em tempo o proprietário para que ele, querendo, as mande fazer (artigo 1473.º, n.º1, in principio CC). O usufrutuário passa, no entanto, ter que realizar as reparações extraordinárias, se elas se tiverem tornado necessárias devido à sua má administração (artigo 1473.º, n.º1, in fine CC), ou seja, devido ao facto de não ter realizado em tempo as reparações ordinárias. Sendo a obrigação de realização das despesas da conta do proprietário, se este, depois de avisado, não as fizer e estas forem de utilidade real, pode o usufrutuário fazê-las a expensas suas e exigir a importância despendida, ou o pagamento do valor que tiverem no fim do usufruto, se este valor for inferior ao custo (artigo 1473.º, n.º2 CC). Se o proprietário fizer as reparações, o usufrutuário tem direito ao usufruto destas, sem ser obrigado a pagar juros das somas desembolsadas pelo proprietário ou qualquer outra indemnização; no caso, porém, de essas reparações aumentarem o rendimento líquido da coisa usufruída, o aumento pertence ao proprietário (artigo 1473.º, n.º3 e 1471.º, n.º2 CC). 6. Obrigação de pagar os impostos e outros encargos anuais que incidam sobre o rendimento dos bens usufruídos: outra obrigação do usufrutuário em relação ao proprietário de raiz é a obrigação de pagar os impostos e encargos anuais que incidam sobre o rendimento dos bens usufruídos (artigo 1474.º CC). Efetivamente, dado que é o usufrutuário que aufere durante o período de duração do usufruto os rendimentos daquele bem, é justo que assuma os encargos correspondentes, como os impostos, as taxas, os encargos de condomínio, as despesas respeitantes ao bem. O usufrutuário está assim obrigado a entregar ou reembolsar o proprietário de raiz, caso lhe venham a ser exigidos por terceiro esses encargos, sendo que muitas vezes a lei faz surgir essa obrigação diretamente na esfera do usufrutuário. No caso de tal não acontecer, o terceiro que apenas tenha ação contra o proprietário poderá exercer a ação sub-rogatória, nos termos gerais, desde que estejam preenchidos os seus pressupostos (artigos 606.º e seguintes CC). 7. Dever de avisar o proprietário de qualquer facto de terceiro de que tenha notícia, sempre que ele possa lesar os direitos do proprietário: o artigo 1475.º CC atribui ao usufrutuário o dever de avisar o proprietário de qualquer facto de terceiro de que tenha notícia, sempre que ele seja suscetível de lesar os direitos do proprietário, sob pena de responder pelos danos causados. O usufruto institui assim um dever específico de custódia da propriedade de raiz em relação ao usufrutuário, o qual se concretiza num dever de avisar

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão o proprietário em relação a factos de terceiro, que possam ser lesivos para essa propriedade. É, no entanto, de referir que o usufrutuário só está obrigado a comunicar esses factos quando eles cheguem ao seu conhecimento, não tendo que procurar ativamente esse conhecimento. Se omitir o seu dever de aviso, o usufrutuário é sujeito á responsabilidade civil. 8. Dever de restituir a coisa, findo o usufruto: nos termos do artigo 1475.º CC, o último dever do usufrutuário é o de restituir a coisa, findo o usufruto. Esse dever de restituição é, no entanto, excluído no caso de usufruto de coisas consumíveis. O dever de restituição pode ainda ser suspenso, se houver direito de retenção a favor do usufrutuário, designadamente em virtude de benfeitorias realizadas na coisa.

Direitos do proprietário de raiz: o proprietário de raiz permanece titular da propriedade sobre o bem, ainda que esta seja consideravelmente comprimida em consequência do usufruto. Pode, em consequência, praticar todos os atos que não impeçam nem limitem o uso da coisa por parte do usufrutuário. O proprietário pode ainda reagir contra o mau uso da coisa por parte do usufrutuário. Este não acarreta a extinção do usufruto, mas se o abuso se tornar consideravelmente prejudicial ao proprietário, pode este exigir que a coisa lhe seja entregue ou que se tomem as providências previstas no artigo 1470.º CC. Se optar pela entrega da coisa, fica obrigado a pagar anualmente ao usufrutuário o produto líquido dela, depois de deduzidas as despesas e o prémio que lhe for arbitrado pela sua administração (artigo 1482.º CC). O proprietário de raiz pode ainda dispor do seu próprio direito, transmitindo-o a terceiro ou onerando-o nos termos gerais. O proprietário de raiz não pode, no entanto, constituir direitos que afetem o usufruto, a não ser com eficácia diferida ao termo do usufruto. Em relação às servidões prediais, o artigo 1460.º, n.º2 CC, especifica mesmo que o proprietário não pode constituir servidões sem consentimento do usufrutuário, desde que delas resulte diminuição do valor do usufruto.

Extinção do usufruto: nos termos do artigo 1476.º, n.º1 CC, o usufruto pode extinguir-se pelas seguintes causas:

1. Morte do usufrutuário: em relação à morte do usufrutuário, a mesma produz naturalmente a extinção do usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea a) CC), uma vez que não se trata de um direito transmissível mortis causa (artigo 2025.º, n.º1 CC). Pode, porém, a morte do usufrutuário desencadear a constituição de outro usufruto na esfera de terceiro, caso tenha sido estipulado o usufruto sucessivo (artigo 1441.º CC), havendo também habitualmente direito de acrescer entre usufrutuários, no caso ter ocorrido a constituição do usufruto em conjunto (artigo 1442.º CC). A extinção do usufruto ocorre igualmente no caso de morte presumida (artigo 115.º, n.º1 CC), ainda que o direito, ou o preço respetivo ou os bens sub-rogados, em caso de alienação, tenham que ser restituídos na hipótese de regresso do ausente em conjunto (artigo 119.º CC). No caso de o usufrutuário trespassar o seu usufruto vitalício a outrem (artigo 1444.º, n.º1 CC), o usufruto continua a extinguir-se com a morte do alienante, não adquirindo o novo usufrutuário direito a um usufruto que extravase para além da vida do alienante. A doutrina tem, no entanto, discutido uma hipótese complexa, que é o facto de o usufrutuário vitalício ter trespassado o seu direito a outrem, vindo, no entanto, o novo usufrutuário a falecer antes do usufrutuário primitivo. a. Oliveira Ascensão: sustenta que, uma vez que o termo de referência é a morte do usufrutuário primitivo, neste caso, o direito de usufruto transmite-se aos sucessores do adquirente até à morte daquele. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão b. Carvalho Fernandes: considera, pelo contrário, que atento o facto de a lei consagrar o efeito extintivo do usufruto com a morte do usufrutuário, o qual é neste caso o adquirente e não o alienante, o usufruto extingue-se com o falecimento daquele. O autor aponta ainda como argumento nesse sentido o facto de o regime do artigo 1444.º, n.º2 CC, se adequar mal à hipótese de o usufruto se transmitir para os sucessores do adquirente pois o alienante iria responder pelos danos causados por esses sucessores, quando não os tomou em consideração aquando do trespasse do usufruto. c. Parace-nos, porém, que a primeira posição é que é a adequada. A extinção do usufrutuo vitalício toma sempre em consideração a vida da pessoa em relação à qual se constitui o usufruto, o que não é alterado pelo trespasse a outro usufrutuário, seja para prolongar o usufruto, seja para o diminuir. Em relação ao artigo 1444.º, n.º2 CC, este não estabelece uma responsabilidade por culpa in elegendo do alienante, mas antes uma responsabilidade objetiva, baseada no facto de o usufruto ter sido trespassado a terceiro. Naturalmente que o alienante continua a responder se houver um segundo trespasse do usufruto, pelo que não faz sentido que tal deixe de ocorrer em caso de sucessão por morte. Entendemos, por isso, que o usufruto se transmite por morte neste caso aos sucessores do adquirente, só se extinguindo efetivamente com a morte do alienante. 2. Termo do prazo do direito: O usufruto pode, igualmente, extinguir-se pelo termo do prazo para que tenha sido constituído, quando não seja vitalício (artigo 1476.º, n.º1, alínea a) CC). Efetivamente, sendo o usufruto constituído por prazo certo, naturalmente que o decurso desse prazo acarreta a extinção do direito correspondente, sendo que esse prazo em relação às pessoas coletivas não pode exceder trinta anos (artigo 1443.º CC). Em relação às pessoas singulares, pode ser estipulado um prazo certo superior (v.g. 50 anos), mas o usufruto não deixará de se extinguir com a morte do usufrutuário, se esta ocorrer antes desse prazo (artigo 1443.º CC). A lei resolve uma situação de qualificação duvidosa, que é a hipótese de o usufruto ter sido constituído até à idade de uma terceira pessoa. Nesse caso, considera-se que o usufruto durará pelos anos prefixos, mesmo que essa pessoa venha a falecer sem atingir a idade, a menos que o usufruto tenha sido concedido, tomando em atenção a existência dessa pessoa (artigo 1477.º CC). 3. Reunião do usufruto e da propriedade na mesma pessoa: outra causa de extinção é a reunião do usufruto e da propriedade na mesma pessoa (artigo 1476.º, n.º1, alínea b) CC), o que constitui a aplicação ao usufruto da confusão como causa de extinção de direitos reais. 4. Não uso por vinte anos: outra causa de extinção do usufruto é o não uso da coisa usufruída por vinte anos, qualquer que seja o motivo (artigo 1476.º, n.º1, alínea c) CC), o que se encontra em conformidade com a possibilidade legal de extinção de certos direitos reais de gozo pelo não uso (artigo 298.º, n.º3 CC). Para que possa ocorrer a extinção do usufruto pelo não uso, exige-se que ocorra uma abstenção efetiva do exercício de todas as faculdades que competem ao usufrutuário, uma vez que o não uso já não se verifica se o usufrutuário se limita apenas a exercer apenas alguma dessas faculdades. O não uso tem que continuar ininterruptamente durante vinte anos, uma vez qualquer exercício dessa faculdades interrompe o prazo do não uso (artigos 298.º, n.º3 e 331.º, n.º1 CC). Para o não uso é, no entanto, irrelevante o motivo pelo qual o usufrutuário deixa de exercer o seu direito, pelo que ele não deixará de se verificar, mesmo em caso de justo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão impedimento. Diferente do não uso é, no entanto, a hipótese de mau uso por parte do usufrutuário, que não acarreta a extinção do usufruto, mas permite ao proprietário reagir nos termos acima expostos (artigo 1482.º CC). 5. Perda total da coisa usufruída: a perda total da coisa usufruída extingue igualmente o usufruto (artigo 1476.º, n.º1, alínea d) CC), de acordo com o critério geral que o perecimento do objeto de um direito produz naturalmente a extinção desse direito. Tal já não acontece, porém, em caso de perda parcial, em que o usufruto continua na parte restante (artigo 1478.º, n.º1 CC), nem no caso de rei mutatio, em que a coisa se transforma noutra que tenha valor, embora com finalidade económica distinta (artigo 1478.º, n.º2 CC). A lei regula ainda especialmente a hipótese de destruição de edifícios, incida ela sobre prédios urbanos (artigo 1479.º, n.º1 e 2 CC), ou sobre prédios rústicos (artigo 1479.º, n.º3 CC). A destruição do edifício atribui ao usufrutuário direito a desfrutar o solo e os materiais restantes (artigo 1479.º CC). O proprietário da raiz pode, porém, reconstruir o prédio, ocupando o solo e os materiais, desde que pague ao usufrutuário, durante o usufruto, os juros correspondentes ao valor do mesmo solo e dos materiais (artigo 1479.º, n.º2 CC). Para que o perecimento da coisa possa extinguir o usufruto é, no entanto, necessário que o mesmo seja fortuito, uma vez que se for devido à responsabilidade de outrem, o usufruto passa a incidir sobre a indemnização (artigo 1480.º, n.º1 CC). Esse regime é igualmente aplicável à indemnização resultante de expropriação ou requisição da coisa ou direito, à indemnização devida pela extinção do direito de superfície e outros casos análogos (artigo 1481.º, n.º2 CC), bem como à hipótese de existir seguro que cubra esse risco (artigo 1481.º, n.º1 CC). Neste último caso, tratando-se de um edifício, o proprietário pode reconstruí-lo, transferindo-se o usufruto para o novo edifício. Se, porém, a soma despendida na reconstrução for superior à indemnização recebida, o direito do usufrutuário será proporcional à indemnização (artigo 1481.º, n.º2 CC). Se, no entanto, os prémios forem pagos pelo proprietário, a este pertence por inteiro a indemnização que for devida (artigo 1481.º, n.º3 CC). 6. Renúncia do usufrutuário: finalmente, o usufruto pode extinguir-se pela renúncia do usufrutuário (artigo 1476.º, n.º1, alínea e) CC), a qual não requer aceitação do proprietário (artigo 1476.º, n.º2 CC). O usufruto não faz exceção à regra geral de que os direitos privados são em princípio renunciáveis, pelo que admite a sua extinção por renúncia. A renúncia implica neste caso a recuperação da propriedade plena pelo radiciário em virtude da elasticidade que está associada à propriedade. No entanto, a renúncia não se deve considerar uma declaração recetícia, dado que, atenta a natureza real do usufruto, não tem como destinatário determinado o nu proprietário, devendo por isso produzir efeitos logo que é manifestada pela forma adequada (artigo 224.º, n.º1 CC). Nos termos do artigo 22.º, alínea g) do Decreto-Lei n.º116/2008, a renúncia deve ser celebrada por escritura pública ou documento particular autenticado.

Tipos especiais de usufruto: 1. O usufruto de coisas consumíveis: examinemos, agora, o usufruto de coisas consumíveis, também denominado de quase-usufruto. Este usufruto caracteriza-se por incidir sobre coisas cujo uso regular importa a sua destruição ou alienação (artigo 208.º CC), pelo que os poderes do usufrutuário têm que compreender esses atos de disposição da coisa, sem o que a mera atribuição do uso não desempenharia qualquer função útil. Em consequência, o artigo 1451.º, n.º1 CC, estabelece que quando o usufruto tiver por objeto coisas consumíveis, pode o usufrutuário servir-se delas ou aliená-las, mas é

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão obrigado a restituir o seu valor, findo o usufruto, no caso de as coisas terem sido estipuladas; se o não foram,, a restituição será feita pela entrega de outras coisas do mesmo género, qualidade ou quantidade, ou do valor destas na conjuntura em que findar o usufruto. O artigo 1451.º, n.º2 CC, estabelece que o usufruto de coisas consumíveis não importa transferência da propriedade para o usufrutuário. Esta solução é contrária ao que se expressamente se estabelece na legislação alemã e suíça, e também à posição comum da doutrina italiana. a. Pires de Lima e Antunes Varela explicam a sua consagração pelo objetivo de fazer atribuir o risco pelo perecimento da coisa ao proprietário de raiz (artigo 796.º CC), bem como devido à intenção de subtrair a raiz das coisas consumíveis ao concurso de credores, o que não sucede com o crédito à restituição do seu valor. Apesar de esta intenção legislativa ter sido aceite pacificamente na nossa doutrina, não deixou de haver quem tenha chamado a atenção para as dificuldades que suscita. b. Por nossa parte, tendemos a interpretar o artigo 1451.º, n.º2 CC, no sentido de que a constituição do usufruto não importa a transferência da propriedade, mas que esta ocorre com a entrega das coisas consumíveis ao usufrutuário, após este ter cumprido as suas obrigações de relacionamento dos bens e de prestação de caução para a restituição do seu valor, nos termos do artigo 1468.º CC. Efetivamente, a partir do momento em que são cumpridas essas obrigações, o direito do nu proprietário passa a incidir apenas sobre a restituição do valor, passando naturalmente o usufrutuário a ser considerado proprietário das coisas consumíveis, pressuposto essencial para que as possa consumir ou alienar, como é sua função. Naturalmente que, a partir daí, também deve recair sobre ele o risco da sua perda ou deterioração. Como consequência dessa situação,, o usufruto de coisas consumíveis não está sujeito às causas gerais de extinção do usufruto referidas no artigo 1476.º CC, apenas se podendo extinguir pela morte do usufrutuário, pelo decurso do prazo (artigo 1476.º, n.º1, alínea a) CC), ou pela renúncia (artigo 1476.º, n.º1, alínea e) CC), na medida em que estas provocam o vencimento da obrigação de restituição do valor das coisas entregues, em caso de elas terem sido estimadas, ou do tantundem eiusdem generis, ou do valor deste, na hipótese contrária. Extinto o usufruto, há então lugar à restituição do valor das coisas entregues, no caso de elas terem sido estimadas, ou, na hipótese contrária, de outras coisas do mesmo género, qualidade ou quantidade ou do seu valor, na conjuntura em que findar o usufruto (artigo 1451.º, n.º1, in fine CC). No primeiro caso, está-se perante uma obrigação pecuniária, nos termos gerais (artigos 550.º e seguintes CC). No segundo caso, trata-se de uma obrigação alternativa pelo que, nos termos gerais, compete a sua escolha ao devedor (artigo 543.º, n.º2 CC). A opção realiza-se entre a entrega de outras coisas do mesmo género ou do valor destas, na conjuntura em que findar o usufruto. Em relação à restituição do valor, esta não constitui uma obrigação pecuniária, mas uma dívida de valor. 2. O usufruto de coisas deterioráveis: o usufruto de coisas deterioráveis encontra-se regulado no artigo 1452.º CC, abrangendo todas as coisas suscetíveis de se deteriorar pelo uso como as roupas, os animais, os veículos e os instrumentos de trabalho. O usufruto de coisas deterioráveis distingue-se do usufruto de coisas consumíveis pelo facto de o seu uso regular não implicar a sua destruição ou alienação, pelo que não é necessário atribuir ao usufrutuário a propriedade dessas coisas, sendo o usufruto de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão coisas deterioráveis compatível com a proibição de alterar a forma ou substância da coisa. No entanto, o proprietário sabe que ao constituir um usufruto sobre uma coisa dessa natureza, ela será habitualmente restituída com as deteriorações inerentes ao uso. Em consequência, no usufruto de coisas deterioráveis o usufrutuário apenas é obrigado a restituir as coisas no fim do usufruto no estado em que se encontrarem, a não ser que tenham sido deterioradas por uso diverso daquele que lhes era próprio ou por culpa do usufrutuário (artigo 1452.º, n.º1 CC). Só em caso de não apresentação das coisas que lhe foram entregues é que o usufrutuário responderá pelo valor que elas tinham na conjuntura em que começou o usufruto, salvo se provar que perderam o seu valor em uso legítimo (artigo 1452.º, n.º2 CC). 3. O usufruto de árvores e arbustos: outro tipo especial de usufruto é o usufruto de árvores e arbustos (artigos 1453.º-1454.º CC). Neste caso, não se tratando de árvores de corte, não é permitido ao usufrutuário o seu corte intencional, uma vez que as mesmas não correspondem a frutos, mas antes à própria coisa-mãe, afetando o corte a forma e a substância da coisa. O usufrutuário apenas pode assim aproveitar-se das árvores e arbustos que perecerem. A lei distingue, no entanto, consoante o perecimento seja natural ou acidental. Em caso de perecimento natural, o usufrutuário pode aproveitar-se das árvores e arbustos extintos (artigo 1453.º, n.º1 CC), mas, no caso de eles serem frutíferos, é obrigado a plantar tantos pés como os que parecerem naturalmente, ou a substituir essa cultura por outra igualmente útil para o proprietário, se for impossível ou prejudicial a renovação de plantas do mesmo género (artigo 1453.º, n.º2 CC). Já no caso de perecimento acidental, entende-se que o mesmo não é abrangido pelo direito de fruição do usufrutuário, pelo que nesse caso as árvores e arbustos caídas, arrancadas ou quebradas, pertencem ao proprietário (artigo 1454.º, n.º1 CC), podendo todavia o usufrutuário aplicar essas árvores e arbustos às reparações que seja obrigado a fazer ou exigir que o proprietário as retire, desocupando o terreno (artigo 1454.º, n.º2 CC). 4. O usufruto de matas e árvores de corte: outro tipo especial de usufruto é o usufruto de matas e árvores de corte, o qual se distingue do caso anterior por ser permitido ao usufrutuário o corte das árvores e das matas. Efetivamente, o usufrutuário pode naturalmente cortá-las para a extração de madeira ou lenha, uma vez que neste caso estamos perante frutos da coisa, periodicamente renováveis. O usufrutuário deve, porém, observar, nos cortes, a ordem e as praxes usadas pelo proprietário ou, na sua falta, o uso da terra (artigo 1455.º, n.º1 CC), o que é explicável pelo facto de a inobservância dessas regras poder implicar que o corte abranja uma parte de capital, prejudicando a sua futura capacidade reprodutiva. A lei estabelece, no entanto, que se, em consequência de ciclone, incêndio, requisição do Estado ou outras causas análogas, vier a ser prejudicada consideravelmente a fruição normal do usufrutuário, deve o proprietário compensá-lo até ao limite dos juros da quantia correspondente ao valor das árvores mortas, ou até ao limite dos juros da importância recebida (artigo 1455.º, n.º2 CC). 5. O usufruto de plantas de viveiro: a lei regula de forma especial o usufruto de plantas de viveiro (artigo 1456.º CC). Neste caso, trata-se de plantas destinadas a ser arrancadas e plantadas noutro lugar, podendo mesmo a falta de arranque prejudicar ou destruir as plantas, pelo que é naturalmente permitido esse ato ao usufrutuário. Este é, porém, obrigado a conformar-se, no arranque das plantas com a ordem e praxes do proprietário ou, na sua falta, com o uso da terra, tanto pelo que toca ao tempo e modo do arranque como pelo que respeita ao tempo e modo de retanchar o viveiro (artigo 1456.º CC).

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6. O usufruto de minas: outro tipo especial de usufruto é o usufruto de minas (artigo 1457.º CC). A lei admite duas hipóteses de usufruto de minas: a. O usufruto de concessão mineira: cabe, naturalmente ao usufrutuário, a exploração do minério. Efetivamente, conforme acima se referiu, o minério pode ser considerado fruto da coisa, na medida em que apesar de ocorrer alteração da sua substância, esta ocorre de forma impercetível e prolongada no tempo. A recolha do minério é assim compreendida nos poderes de fruição do usufrutuário, exigindo a lei, no entanto, que o usufrutuário se conforme na exploração das minas, com as praxes seguidas pelo respetivo titular (artigo 1457.º, n.º1 CC). b. O usufruto de terreno onde existam explorações mineiras de terceiro: neste caso, é o terceiro que explora as minas com base num título próprio, como o arrendamento ou outro, adquirindo o usufrutuário o direito a receber as quantias devidas ao proprietário do solo, designadamente a título de rendas, em proporção do tempo que durar o usufruto (artigo 1457.º, n.º2 CC). Esta solução compreende-se em virtude de as rendas serem frutos civis da coisa, pelo que o usufrutuário adquire direito a elas enquanto durar o usufruto. 7. O usufruto de pedreiras: constitui igualmente um caso particular de usufruto o usufruto de pedreiras (artigo 1458.º CC). A lei distingue consoante a pedreira já esteja ou não em exploração, aquando do começo do usufruto. No caso de a pedreira já estar em exploração, o usufrutuário tem a faculdade de a continuar, conformando-se com as praxes observadas pelo proprietário (artigo 1458.º, n.º1, in fine CC), o que se compreende devido aos poderes de fruição que lhe são atribuídos. Efetivamente, as pedras de uma pedreira são consideradas frutos da coisa, nos mesmos termos em que o é o minério. Já no caso de a pedreira não estar em exploração, o proprietário não pode abri-la (artigo 1548.º, n.º1, in principio CC), uma vez que tal violaria a sua obrigação de não afetar a forma ou a substância da coisa. No entanto, essa proibição não inibe o usufrutuário de extrair pedra do solo para reparar as obras a que seja obrigado (artigo 1458.º, n.º2 CC). 8. O usufruto sobre universalidade de animais: outro caso particular de usufruto é o usufruto sobre universalidades de animais, referido no artigo 1462.º CC. Efetivamente, o regime do usufruto sofre algumas modificações quanto está em causa uma universalidade de animais. Uma vez que os animais são coisas deterioráveis, vão perdendo o seu valor em consequência da sua utilização e da velhice, até ao momento em que morram. Assim, se o usufruto fosse visto apenas como incidindo sobre uma soma de animais, o usufrutuário poderia haver os frutos de cada animal, como as crias, o leite, e a lã, tendo apenas que restituir no fim os animais supérstites e os respetivos despojos. Considerando que o usufruto incide sobre a universalidade, a lei pressupõe a substituição em contínuo dos animais que perecem pelos que nascem em idêntico número. O usufruto deixa de ser assim tratado como coisa deteriorável, mas os frutos limitam-se aos animais que excedam o número necessário à substituição dos que pereceram. Em consequência, a lei obriga o usufrutuário a substituir com as crias novas as cabeças que, por qualquer motivo, vierem a faltar (artigo 1462.º, n.º1 CC). É, no entanto, controverso relativamente às crias novas, cujo número não exceda as perecidas, se é atribuída automaticamente a sua nua propriedade ao proprietário, ou se essa atribuição depende de um ato do usufrutuário. No Direito Romano, a regra estabelecida em D.7.2.70.I. é a de que a atribuição da nua propriedade dependia de uma summissio por parte do usufrutuário. Já as outras são

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão consideradas frutos, sendo a sua propriedade adquirida pelo usufrutuário com a separação da coisa-mãe, sem prejuízo de o usufrutuário poder ter que as restituir no caso de outras virem a perecer. Pensamos ser esta última a melhor posição, que se harmoniza com o conceito de frutos da universalidade de animais, estabelecido no artigo 212.º, n.º3 CC. Nos termos do artigo 1462.º, n.º2 CC, se os animais se perderem na totalidade ou em parte, por caso fortuito, sem produzirem outros que os substituam, o usufrutuário é apenas obrigado a entregar as cabeças restantes. Efetivamente, o usufrutuário não suporta o risco do perecimento dos animais, uma vez que a sua nua propriedade se mantém no proprietário. Mas já se for culpa do usufrutuário que se verificou a perda, total ou parcial, dos animais, este torna-se responsável perante o proprietário os termos gerais. A lei estabelece que o usufrutuário é responsável pelos despojos dos animais, quando de tais despojos se tenha aproveitado (artigo 1462.º, n.º3 CC). É, no entanto, de salientar que os despojos dos animais são considerados frutos da universalidade (artigo 212.º, n.º3 CC), pelo que esta disposição só se pode aplicar no caso de ocorrer o perecimento casual de animais que não possam ser substituídos, cujos despojos pertenceriam assim ao radicário. Neste caso, se o usufrutuário vier a aproveitar-se deles, a situação é tratada como usufruto de coisas consumíveis, obrigando à restituição do seu valor. 9. O usufruto de créditos: em relação ao usufruto de créditos, a doutrina tem contestado a sua natureza real, uma vez que, por definição, os direitos reais têm por objeto coisas corpóreas e não prestações, e não há direitos sobre direitos. O usufruto de créditos tem sido assim qualificado como uma forma de usufruto irregular. Apesar disso, a lei portuguesa incluiu no título do usufruto certas modalidades de usufruto de créditos, como o usufruto de rendas vitalícias (artigo 1463.º CC), o usufruto de capitais postos a juro (artigo 1464.º. CC), o usufruto sobre dinheiro e capital levantados (artigo 1465.º CC) e o usufruto de títulos de crédito (artigo 1466.º CC). Nenhuma destas modalidades representa qualquer direito real, mas apenas uma forma de oneração do crédito, com a atribuição temporária de certas prestações periódicas, ou da obrigação de pagamento dos juros ou outros ganhos produzidos pelo crédito a outro credor.

Natureza do usufruto: em relação à natureza do usufruto, apresentam-se as seguintes teorias: 1. Teoria do desmembramento: para essa tese, no usufruto ocorre uma fragmentação do direito de propriedade em dois direitos distintos, o direito de usar e fruir a coisa (usufruto) e o direito de dispor ou transmitir a coisa a outrem (propriedade de raiz ou nua propriedade). Esta é a tese clássica sobre a natureza do usufruto, tendo sido defendida entre nós por José Tavares e por Pires de Lima e Antunes Varela. 2. Teoria da propriedade temporária: formulada em Itália por Allara, considera que, embora a propriedade seja tendencialmente perpétua, pode em certos casos ser objeto de um limite temporal, o que corresponderia precisamente à situação do usufruto, uma vez que os pdoeres do usufrutuário coincidem com os do proprietário, sendo idênticos os deveres de não ingerência por parte de terceiros, que são, no entender do autor, o elemento característico do direito real. O facto de o usufrutuário ter que respeitar a forma e substância e o destino económico da coisa, suportar a execução de reparações extraordinário e ter outros deveres de conteúdo positivo e negativo corresponderiam a obrigações propter rem, que não afastariam a qualificação do seu direito como de propriedade.

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3. Teoria do direito real de gozo típico: defendida entre nós por Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro, Carvalho Fernandes, Santos Justo e José Alberto Vieira, esta teoria considera o usufruto como um direito real de gozo distinto da propriedade, não constituindo por isso nem um seu desmantelamento nem uma propriedade especial. A autonomia do usufruto em relação à propriedade seria demonstrada pelo facto de, embora sendo um direito de gozo pleno, não atribuir a plenitude das faculdades relativa à coisa, atento os poderes de disposição do usufrutuário serem limitados. Por outro lado, enquanto a propriedade é um direito exclusivo, o direito do usufrutuário coincide sempre com outro direito, habitualmente a propriedade de raiz. 4. A nosso ver: a. A teoria do desmembramento é inaceitável pois parte da conceção e que todos os direitos reais menores são figuras parcelares da propriedade, o que já tivermos ocasião de rejeitar. A propriedade não é desmembrada, antes se comprime, em virtude da elasticidade que a caracteriza, se sobre a mesma coisa vem a ser constituído um usufruto. b. A teoria da propriedade temporária é igualmente incorreta, uma vez que a posição do usufrutuário é manifestamente inferior à do proprietário, não sendo os dois direitos distinguíveis apenas pela limitação temporal. O usufrutuário está sujeito a limitações ao exercício do seu direito e a deveres específicos, cuja qualificação como obrigações propter rem não é suficiente para legitimar a sua integração no âmbito da propriedade, sabendo-se que as obrigações propter rem integram o conteúdo do direito real, não tendo existência separada do mesmo. c. Aderimos, pois, à teoria do direito real de gozo típico.

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Capítulo XII – Os direitos de uso e habitação A origem histórica dos direitos de uso e de habitação: o direito de uso teve origem no Direito Romano. Ao que parece, num momento inicial do surgimento da figura este direito tinha uma distinção clara do usufruto. O direito de uso atribuía ao usuário o uti ou o usus, por contraposição ao usufruto, que compreendia também o frui. Por conseguinte, para o usuário tudo se limitava à utilização da coisa; qualquer perceção dos frutos estava à partida eliminada do conteúdo do direito. Com esta configuração, o direito de uso ter-se-á inicialmente restringido às coisas infrutíferas, em contraste com o usufruto. Deste modo, estando o uso confinado às coisas não frutíferas, o gozo cabia ao usuário enquanto o direito durava, estando o proprietário excluído do mesmo. A evolução subsequente mostra uma clara extensão do direito de uso às coisas frutíferas, o que provocou uma cisão no gozo entre o uso do usuário e a fruição do proprietário, que podia promover a produção dos frutos. O direito de uso sobre coisas frutíferas gerou problemas práticos sobre a questão de saber se o usuário poderia fazer seus alguns frutos – ou seja, se podia ainda beneficiar de uma fruição, ainda que limitada – e problemas teóricos, pois em termos concetuais estritos o uso não comporta a fruição. Vários trechos conhecidos mostram que a extensão do direito de uso às coisas frutíferas redundou igualmente num alargamento do direito de usuário a alguma fruição. Abandonou-se, assim, a linha de uso, na medida rígida entre o uso e fruição como conteúdo do direito de uso, na medida em que este direito passou a atribuir igualmente alguma fruição ao titular. Em todo o caso, a fruição admitida devia ter uma particular ligação com o uso da coisa, consistir numa projeção desse uso sobre a coisa. Esse nexo foi evidenciado já no período justinianeu debaixo da ideia de satisfação das necessidades próprias ou familiares do usuário. O usuário podia colher os frutos necessários para fazer face às suas necessidades e da sua família. O direito de habitação também nasceu no Direito Romano. Contrariamente ao direito de uso, porém, a habitatio só se tornou um direito real autónomo com Justiniano. Até esse momento, a habitatio de uma coisa, de que se conheciam três tipos, gerou controvérsia, nomeadamente, quanto à qualificação como direito de uso ou como usufruto. Justiniano, porém, unificou todos os tipos de habitatio num único direito, que distinguiu do uso e do usufruto: sed ius proprium et specialem naturam sortita est habitatio. Como tipo autónomo de direito real, após Justinano, o direito de habitação conferia ao titular uma forma mais restrita de uso, com um escopo determinado, a habitação da coisa, mas ao mesmo tempo facultava-lhe o poder de arrendar (fruição) igualmente para esse fim. Os direitos de uso e de habitação mantiveram-se no período intermédio e foram acolhidos nas codificações civis das principais ordens jurídicas europeias. Assim, o direito de uso e o direito de habitação encontram-se previstos no Código Civil italiano, no Code Civil francês e no BGB, embora neste último caso positivados como servidões pessoais limitadas, na tradição justinianeia. Em Portugal, o Código Civil de Seabra previa os direitos de uso e de habitação, definindo os primeiros deste modo: «o direito de uso consiste na faculdade concedida a alguma ou a algumas pessoas de servir-se de certa coisa alheia, tão-somente enquanto o exigirem as suas necessidades pessoais quotidianas». Este direito denominava-se habitação quando se referisse a cada de morada. Como se vê, a tradição romanista dos direitos de uso e de habitação permaneceu incólume na Europa continental mesmo com o passar dos séculos, influenciando todas as codificações civis modernas, incluindo as portuguesas. 大象城堡

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A autonomia dos direitos de uso e de habitação face ao usufruto : as ordens jurídicas modernas de Direito continental conferem uma identidade de regime jurídico aos direitos de uso e de habitação e amiúde vão mais longe, dispensando o seu tratamento normativo no contexto do regime jurídico do usufruto. Esta sistematização pode gerar dúvidas sobre se os direitos de uso e de habitação constituem direitos reais autónomos, isto é, tipos diversos dos demais, ou se representam meramente subtipos de direito de usufruto. Naturalmente, uma conclusão num ou noutro sentido pressupõe a análise do regime jurídico positivo. Permitimonos, no entanto, antecipar a nossa perspetiva, que é a de que os direitos de uso e de habitação são tipos de direitos reais (de gozo) diversos dos restantes, não se reconduzindo, por conseguinte, ao usufruto na veste de um subtipo de direito. Essa autonomia justifica um capítulo próprio na parte especial de Direitos Reais.

O tipo legal do direito de uso e do direito de habitação: 10. Delimitação positiva: o direito de uso tem evidentemente um conteúdo de aproveitamento que integra poderes de gozo da coisa. O núcleo fundamental desse gozo é constituído por dois: a. O poder de uso da coisa; b. O poder de fruição da coisa, na medida das necessidades do titular e da sua família. A estes dois poderes (uso e fruição) acrescem um limitado (mas existente) poder de transformação, um poder de renúncia e um poder de reivindicação. O poder de usar a coisa não está confinado a um fim específico, como sucede no direito de habitação. No respeito pela substância da coisa e pelo seu destino económico, o usuário pode usar a coisa para qualquer fim, nomeadamente, no contexto de uma atividade económica. O uso da coisa é um uso exclusivo. Durante a oneração da propriedade pelo direito de uso, o proprietário está inibido de a usar, cabendo exclusivamente ao usuário servir-se dela. Em sentido diferente, porém, Pires de Lima/Antunes Varela sustentam que o limite negativo das necessidades do titular e da sua família (artigo 14834.º, nº.1, in fine CC) respeita igualmente ao uso. A ser verdadeira esta interpretação, o direito de uso consagrado na lei portuguesa ter-se-ía afastado não apenas da tradição romana, mas também da orientação de todos os países (França, Alemanha, Itália, Espanha) que verteram este tipo de direito real nas respetivas ordens jurídicas. A diferença estaria no facto de também o uso – e não apenas a fruição – ficar limitado às necessidades do usuário e da sua família. Levada até ao fim esta interpretação, teríamos que o usuário partilharia o uso da coisa com o proprietário sempre que as suas necessidades não conduzissem ao uso integral da mesma. Afinal, o uso do proprietário só ficaria limitado pela oneração do direito de uso relativamente ao uso que não constituísse necessidade do usuário ou da sua família. Se imaginarmos um usuário que só necessita do imóvel objeto do direito de uso à segunda-feira de manhã, teríamos que o proprietário poderia usar a coisa todo o tempo não aproveitado pelo usuário. Se a hipótese for agora a de um automóvel que o usuário só se serve ao fim de semana, porque anda de transportes públicos durante a semana, o proprietário poderia usar o automóvel durante este período. Precavidos contra a impossibilidade de dividir o uso de uma coisa, as fontes romanas proclamavam: usus pars legari non potest: nam frui quidem pro parte possumus, uti proparte non possumus (Paulus D.7,8,9,19). Os frutos podem dividir-se, o uso é indivisível. Seguindo este postulado, o direito de uso arredava o proprietário do uso da coisa, deixando exclusivamente o usuário investido nessa parte do gozo. E todas

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão as ordens jurídicas modernas, da francesa à espanhola, passando pela a alemã e italiana, mantiveram o legado romano nessa parte. Tanto quanto sabemos, a interpretação de Pires de Lima/Antunes Varela sobre este trecho do regime do direito de uso não influenciou mais ninguém. Ela comporta, na verdade, uma inovação do conteúdo típico tradicional deste direito, que reserva para o usuário o uso pleno da coisa, em detrimento do proprietário. O limite negativo constante da parte final do n.º1 do artigo 1484.º CC refere-se somente à fruição e não ao uso. O tipo legal do direito de uso inclui também a fruição da coisa. Vê-se assim que a evolução justinianeia foi acolhida em Portugal, tal como havia sucedido no Direito Romano posterior ao período clássico, dando ao usuário um poder de fazer seus frutos produzidos pela coisa. Em todo o caso, e diferentemente do usufrutuário, o usuário não tem uma fruição plena, mas apenas limitada às necessidades do titular e da sua família, o que permite considerar uma fruição do proprietário para os frutos restantes. Quanto ao poder de transformação, julgamos que não pode considerar-se completamente afastado. O artigo 1490.º CC determina a aplicação das regras do usufruto que sejam conformes ao direito de uso. Deste modo, supomos que o artigo 1450.º CC, com os limites negativos aí previstos, se pode igualmente considerar aplicável ao direito de uso, levando a incluir o poder de transformação no conteúdo do gozo do usufrutuário, a par do núcleo fundamental constituído pelos poderes de uso e de fruição. O direito real de habitação molda-se em atenção ao objeto – casas de morada – e ao fim de gozo: a habitação do morador usuário. O seu conteúdo típico é, no entanto, o mesmo do direito de uso, incluindo os poderes de uso e de fruição. Em sentido diferente, porém, Pugliese entende que o poder de fruição não integra o conteúdo do tipo de direito de habitação, estando excluído do mesmo. Poderia realmente pensar-se que a afetação de uma casa em termos de direito de habitação envolveria somente o uso para este fim. Se isto será verdade para uma fração autónoma de um edifício constituído em propriedade horizontal, numa vivenda com jardim, por exemplo, não se vê por que razão se haverá de entender que o morador usuário está proibido de fazer seus os frutos (naturais) produzidos pela coisa, na medida das necessidades do titular ou da sua família. Se houver um limoeiro no jardim da casa e necessidades de limões para temperar a comida, o morador usuário pode colher os limões em número necessário para o efeito, sem estar a violar o direito do proprietário aos frutos remanescentes. Quanto ao uso, e tendo em conta o sentido de que demos conta anteriormente, estamos convictos que ele se reveste de exclusividade, mesmo que as necessidades do morador usuário ou da sua família se limitem a uma parte dela. Não vemos como fundamentar que o morador usuário deva tolerar na sua casa a presença do proprietário ou de um estranho ao qual o último cedeu o gozo da parte não usada pelo morador usuário só porque as necessidades da sua família não esgotam as possibilidades de uso do objeto. A limitação pelas necessidades do titular ou da família liga-se unicamente ao poder de fruição, não ao uso da coisa. E só não será assim, se o objeto do direito de morada seja somente parte do imóvel e não todo ele. Neste caso, a limitação do objeto a uma parte da coisa limita naturalmente o uso do morador usuário. É de supor, no entanto, que, tendo em conta o escopo do uso consentido (habitação), a limitação do objeto (casa de morada) e a proibição da cessão do gozo a terceiros (artigo 1488.º CC), tanto o uso como a fruição tenham uma extensão bem mais modesta do que aquela que oferece o direito de uso. O poder de disposição não integra o conteúdo típico dos direitos de uso e de habitação. A transmissão e a oneração do direito encontram-se expressamente proibidas (artigo 1488.º CC). Resta a destruição da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão coisa consumível, nos casos de quase uso, e o poder de renúncia ao direito, que surge salvaguardada pela aplicação da alínea e) do artigo 1476.º, n.º1 CC (artigo 1490.º CC). 11. Delimitação negativa: os direitos de uso e de habitação têm dois limites negativos implícitos e um explícito. Este último consta da parte final do n.º1 do artigo 1484.º CC e respeita, como dissemos, ao poder de fruição do titular. A ele voltaremos no ponto seguinte. Os limites negativos implícitos são os mesmos do usufruto: o respeito pela forma (destino económico) e pela substância da coisa. Já no Direito Romano era nítido que o usuário estava vinculado à salva rerum substantia. Nem se poderia admitir o contrário relativamente a um direito cuja extensão era reconhecidamente menor do que a do usufruto. O desenvolvimento paralelo do usufruto e dos direitos de uso e de habitação permite justificar esta extrapolação dos limites negativos do usufruto para os tipos do direito de uso e do direito de habitação. A sua lógica é a mesma do usufruto e o seu fundamento positivo (artigo 1490.º CC). O regime jurídico do usufruto tem, deste modo, igualmente a função de fornecer a base normativa para a delimitação, neste caso negativa, dos direitos de uso e de habitação. Por conseguinte, o significado da remissão do artigo 1490.º CC para o regime jurídico do usufruto tem um alcance à primeira vista insuspeitado: a construção do tipo legal do uso e da habitação. O limite negativo explicito previsto no artigo 1484.º, n.º1 CC exprime a origem histórica do direito de uso. Depois do desenvolvimento do Direito justinianeu, ao usuário reconheceu-se uma medida restrita dos frutos produzidos pela coisa. A fruição consentida ao usuário medese pelas necessidades dele e da sua família. Os Direitos modernos não deixaram de refletir este limite à fruição do usuário (e do morador usuário) e assim fez também o Código Civil português no artigo 1484.º, n.º1 CC. Para além da medida das necessidades do titular e da sua família, os frutos da coisa em uso ou em habitação pertencem ao proprietário. Delimitar negativamente o direito de uso e o direito de habitação implica fixar primeiramente o âmbito das necessidades a que a lei alude. Esse âmbito deve ser subjetiva e objetivamente recortado. Do ponto de vista subjetivo, para além do titular do direito de uso ou de habitação, consideram-se igualmente as necessidades da sua família, o que alarga potencialmente a medida de frutos cujo aproveitamento se propicia por via daquele direito. O artigo 1487.º CC fixa imperativamente os membros da família incluídos na determinação da medida concreta da fruição permitida. Do ponto de vista objetivo, no poder de fruição do usuário ou morador usuário apenas se abrangem as denominadas necessidades diretas, isto é, aquelas que podem ser satisfeitas através dos frutos. De outro modo, não restariam nunca frutos para o proprietário e o usuário e o morador usuário teriam na prática uma fruição igual à do usufrutuário. Excluído fica, assim, o aproveitamento indireto dos frutos. A alienação dos frutos para obter dinheiro ou a permuta daqueles com outras coisas está vedada ao usufrutuário, mesmo se só com estes bens o usuário ou morador usuário obteria a satisfação das suas necessidades (satisfação indireta). A limitação do poder de fruir a coisa objeto de uso às necessidades diretas do titular ou dos seus familiares não conclui todo o recorte objetivo dessas necessidades; outra das questões que se pode pôr reside na natureza pessoal ou profissional (atividade económica) das necessidades a atender. Quer dizer, os frutos podem ser aproveitados apenas para satisfação de necessidades pessoais ou as profissionais estão igualmente incluídas? – O usuário que tem uma fábrica de sumos pode colher as maçãs produzidas no prédio para alimentar a sua produção industrial? Cremos que a resposta correta é a negativa. Não se trata aqui apenas de considerar a raiz histórica deste direito, mas sobretudo de ponderar os limites

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão naturais da fruição do usuário e a necessidade de respeitar o recorte do tipo legal deste direito em comparação com o usufruto. Os direitos de uso e de habitação constituem direitos de menor extensão do que o usufruto. A ampliação desmedida dos poderes de fruição do usuário e do morador usuário torna muito ténue (ou mesmo inexistente) a diferença entre os direitos respetivos e o usufruto, mais do que aquilo que nos parece permitir a função de cada um desses direitos. Por outro lado, não importa esquecer, que se as partes pretenderem que o titular do direito menor tenha uma fruição sem limites, o usufruto oferece a alternativa para o efeito. O disposto no artigo 1486.º CC, referindo as necessidades pessoais do usuário e do morador usuário parece dar um argumento mais nesse sentido, embora não o julguemos decisivo. O importante parece ser a litação destes direitos à satisfação das necessidades diretas do titular, numa ótica que tem mais a ver com uma lógica de apoio à sua subsistência do que com o desenvolvimento de uma atividade económica. Por último, resta-nos ainda analisar a projeção de sentido do artigo 1486.º CC. No seu sentido literal, associando o poder de fruir à condição social do titular do direito, este preceito parece admitir que mesmo sendo iguais as necessidades – pessoais – dos titulares, o poder de fruir pode ser reconhecido em medida diversa a cada um deles, em atenção à diferente condição social do titular do direito. O artigo 1486.º CC foi inspirado no Codice Civile Italiano, mas, tal como se encontra redigido, coloca sérios problemas de constitucionalidade. Nós defendemos a sua inconstitucionalidade, por violação direta do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º1 CRP). Este princípio não tolera que um titular de direito de uso ou de habitação que tenha necessidades iguais a outro titular receba, contudo, uma medida diferente do poder de fruição só por causa de uma diversa condição social. Uma tal solução poderia muito bem ser justificada na sociedade romana ou nas sociedades europeias até ao século XIX, mas está hoje descontextualizada e contraria grosseiramente a igualdade de todas as pessoas defronte da lei. De Martino propõe que o limite das necessidades do titular e da família seja entendido de modo objetivo e só podemos estar de acordo. A fruição será a mesma para pessoas com necessidades iguais, seja qual for o seu estatuto social e económico. Se este pode influir na fixação das necessidades a atender, não serve decerto para diferenciar os titulares quanto à medida dos frutos a que têm direito.

O objeto dos direitos de uso e de habitação: tanto as coisas imóveis como as móveis podem ser objeto de um direito de uso. Ao invés, o direito de habitação apenas pode ter como objeto coisas imóveis, e dentro do círculo destas coisas, casas (de habitação). No momento inicial do surgimento do direito de uso em Roma, este direito apenas se podia referir a coisas não frutíferas, dado que outorgava simplesmente o uso, com exclusão da fruição. Esta limitação desapareceria posteriormente e o direito de uso viu alargado o seu âmbito de incidência às coisas frutíferas. Com o conteúdo que envolve – para além do uso, também a fruição – pode o direito de uso recair sobre coisas não frutíferas? Sem dúvida, a resposta é afirmativa? A coisa deve ser apta a permitir alguma forma de gozo que o conteúdo típico do direito de uso autoriza ao titular, mas nada impõe que seja apta a esgotá-lo. Se pode haver uso, sem fruição, ou esta sem aquele, a constituição do direito de uso é válida. A validade do ato constitutivo do direito fica, no entanto, em causa se a coisa se afigura imprestável para qualquer aproveitamento (uso e fruição) suscitado pelo direito de uso. Um problema que se tem colocado quanto ao direito de uso é o de saber se ele pode ter por objeto coisas consumíveis. A ser afirmativa a resposta, teríamos um quase uso, de modo semelhante ao quase usufruto. Em todo o caso, há diferenças assinaláveis entre o uso e o usufruto de coisas consumíveis. No regime do uso, a alienação da coisa encontra-se proibida (artigo 1488.º CC). Por conseguinte, o denominado consumo jurídico

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão está vedado ao usuário, restando-lhe o consumo material da coisa. Isso deixa de fora um uso sobre dinheiro. O consumo do dinheiro implica a respetiva alienação; mesmo o depósito bancário (depósito irregular) determina a transmissão da propriedade para o depositante, por força da aplicação das regras do mútuo (artigo 1206.º CC), o que, em atenção à proibição legal de transmissão da coisa objeto do uso (artigo 1488.º CC), redunda num negócio legalmente impossível, e, por conseguinte, nulo (artigos 280.º e 294.º CC). E no tocante às outras coisas consumíveis? – Não vemos nenhum obstáculo legal para admitirmos essa hipótese. Pugliese, porém, sustenta tratar-se de um usufruto. Que dizer? Não partilhamos esta ideia. O regime do uso diferencia a posição do usuário por contraposição ao usufrutuário de coisas consumíveis, pois aquele não pode alienar a coisa a ninguém enquanto o usufrutuário pode. A privação da alienação ajusta-se à lógica de satisfação direta das necessidades do usuário e da sua família, que é o escopo no confronto com o quase usufruto, o qual, permitindo a alienação a terceiros das coisas consumíveis, se enquadra numa lógica de fruição integral. Portanto, com o quase uso o titular obtém a propriedade das coisas objeto do direito, ficando com o dever de restituir o seu valor, se houverem sido estimadas, ou a entregar outras do mesmo género, qualidade e quantidade (artigo 1451.º, n.º1 ex vi 1490.º CC). Nada impede que o direito de uso tenha por objeto uma parte de coisas ou uma coisa em comunhão (comprpopriedade, co-usufruto). Não se trata aqui, como parece evidente, de dividir o uso, mas sim simplesmente de acomodar o gozo ao próprio objeto do direito. Assim, se o proprietário de um prédio estabelece um direito de uso ou de habitação sobre a metade do mesmo, o gozo do usuário ou do morador usuário ficará limitado à (parte) de coisa objeto do seu direito. O artigo 1489.º, n.º2 CC tem em vista esta hipótese, estabelecendo que se o usuário perceber apenas uma parte dos frutos ou ocupar parte do edifício, a sua obrigação de participar nas despesas de conservação da coisa existirá na medida proporcional da sua fruição.

A titularidade dos direitos de uso e de habitação: no tocante ao direito de habitação, dada a finalidade do mesmo, a habitação do titular, não restam dúvidas de que apenas pessoas singulares podem ser titulares deles. Quanto ao direito de uso, discute-se em geral se as pessoas jurídicas podem ser titulares deste direito. Em Itália, essa possibilidade surge defendida por alguns autores. Pugliese vai, todavia, mais longe, afirmando que quando assim suceda o usuário (pessoa jurídica) não tem direito aos frutos, uma construção que, atento o princípio da tipicidade, não deixa de causar estranheza, dado que assim o direito de uso teria diferentes conteúdos (com ou sem fruição) consoante a sua titularidade estive numa pessoa singular ou numa pessoa jurídica. Na doutrina portuguesa, Pires de Lima/Antunes Varela opinam perentoriamente que a lei portuguesa não confere a possibilidade de o direito de uso ser constituído a favor de pessoas jurídicas, argumentando que com a medida das necessidades – pessoais e familiares – atendidas para a fixação da extensão deste direito somente as pessoas singulares podem ser titulares do mesmo. Percorrendo o regime do direito de uso, deparamos com sucessivos argumentos que impossibilitam em termos de sentido a titularidade de um direito de uso por pessoas jurídicas, não tanto porque estas não possam ter necessidades, mas porque o enquadramento das necessidades do titular com as da sua família (artigo 1484.º, n.º1 e 1487.º CC), a que acresce o critério de fixação da medida dos frutos (as necessidades pessoais do usuário – artigo 1486.º CC), pertinente apenas para pessoas singulares, não deixa campo de sentido senão para estas. A explicação para isto reside na origem deste tipo de direito real, virado para necessidades alimentares do titular e da sua família. Bem moldado para sociedades pré-capitalistas, de base rural, ele tende a perder pertinência na feição capitalista das sociedades modernas do mundo ocidental, onde o uso tem de se integrar na dinâmica económica da exploração dos bens em processos produtivos complexos, os quais ocorrem no âmbito empresarial e não numa lógica de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão economia de subsistência de cariz familiar. Não espanta, pois, que, circunscrito a um círculo pessoal limitado, este tipo de direito real se revele pouco atrativo e tenha um impacto prático muito modesto.

As vicissitudes dos direitos de uso e de habitação. A aplicação do usufruto: na disciplina dos factos com eficácia real para os direitos de uso e de habitação, a lei portuguesa remete para a disciplina geral do usufruto. Existem, porém, especialidades a atender no regime jurídico dos direitos de uso e de habitação, o que veremos seguidamente.

Constituição. A proibição da usucapião: uma especialidade dos direitos de uso e de habitação reside na impossibilidade legal da sua constituição por via da usucapião (artigo 1293.º, alínea b) CC), uma solução que, a nosso ver, não tem justificação plausível.

Proibição de transmissão e oneração: nem o direito de uso nem o direito de habitação outorgam ao titular o poder de transmissão e de oneração (artigo 1488.º CC). Do mesmo modo, tanto o usuário como o morador usuário estão proibidos de ceder o gozo da coisa, seja a título oneroso (locação) seja a título gratuito (comodato). Caso o usuário ou o morador violem a proibição legal, o negócio jurídico em causa será nulo. O vício é duplo: falta de legitimidade do disponente (artigo 892.º CC para a compra e venda, aplicável ex vi do artigo 939.º CC para todos os outros negócios onerosos, e artigo 956.º, n.º1 CC para a doação) e violação de norma legal imperativa (artigo 294.º CC).

A aplicação das normas do usufruto aos direitos de uso e de habitação: o artigo 1490.º CC dispõe que são aplicáveis aos direitos de uso e de habitação as disposições que regulam o usufruto, quando conformes à natureza daqueles direitos. Explicámos já que esta remissão genérica para o regime do usufruto tem o alcance à primeira vista insuspeitado de importar para os direitos de uso de habitação os limites negativos do usufruto, delimitando, assim, a extensão dos poderes de uso, fruição e transformação dos titulares. Em todo o caso, a ressalva final do artigo 1490.º CC impõe a necessária ponderação da natureza dos direitos de uso e de habitação. As disposições do regime do usufruto que suponham a fruição plena não podem ser aplicadas em sede destes direitos.

A natureza dos direitos de uso e de habitação: os direitos reais de uso e de habitação pertencem à categoria dos direitos reais de gozo. São, como todos os direitos reais menores, direitos sobre coisa alheia. Isto faz deles direitos reais autónomos, tipos legais específicos de aproveitamento de coisas corpóreas, e não meras derivações ou desmembramentos da propriedade, que é um direito distinto. Os direitos de uso e de habitação não constituem meros subtipos do direito de usufruto, como a colocação sistemática da matéria – no capítulo dedicado ao usufruto – pode sugerir à primeira vista. O conteúdo típico do aproveitamento atribuído ao usuário e ao morador usuário mostra uma conformação diversa, nomeadamente, na limitação do poder de fruição, no confinar da titularidade a pessoas singulares, na proibição de transmissão e de oneração, e mesmo na funcionalização do uso admitido (direito de habitação), tudo aspetos que sublinham uma natureza típica diversa do usufruto e a autonomia própria de um tipo singular de direito real.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

Secção IV – O uso e a habitação

Generalidades: o uso e a habitação constituem tipos de direitos reais próximos do usufruto, embora com algumas especificidades particulares. A principal é o facto de não atribuírem um gozo pleno da coisa, mas antes um gozo limitado pelas necessidades do titular ou da sua família (artigo 1484.º, n.º1 CC). O uso e a habitação distinguem-se entre si pelo seu objeto. Enquanto que o direito de uso pode abranger qualquer coisa alheia, já o direito de habitação refere-se a casas de morada (artigo 1484.º, n.º2 CC).

Evolução histórica do uso e da habitação: a origem histórica dos direitos de uso e habitação filia-se no Direito Romano. O direito de uso desenvolveu-se a propósito do usufruto de coisas não frutíferas, em que a fruição era impossível, falando-se assim apenas em usus e não em usus fructus. Posteriormente, o uso foi sendo ampliado por forma a abranger a perceção de alguns frutos, passando a ser configurado como um usufruto de fruição limitada. Já a habitação apenas veio a ser reconhecida como direito autónomo no Direito justinianeu, tendo Justinianus, em 530 publicado uma constituição para regular especificamente a habitatio. Em consequência da sua regulação no Corpus Iuris Ciuilis, os direitos de uso e habitação mantiveram-se durante todo o período intermédio, acabando por vir a ser regulados nas diversas codificações. Assim, o uso e habitação foram em primeiro lugar previstos no Code Civil Francês de 1804. Da mesma forma, o BGB, em 1896 consagrou-os. Também o Codice Civile italiano de 1942, viria a prever os direitos de uso e habitação. Em Portugal, os direitos de uso e habitação encontravam-se previstos no Código Civil de 1867, tendo sido esta a fonte principal dos artigos 1484.º e seguintes do CC atual.

Conteúdo dos direitos de uso e habitação: o uso e habitação são direitos moldados sobre o regime do usufruto, mas em que os poderes de uso e fruição são mais limitados. Nos termos do artigo 1484.º, n.º1 CC, o uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da família, chamando-se esse direito de habitação quando se refere a casas de morada (artigo 1484.º, n.º2 CC). Neste aspeto se encontra a distinção fundamental em relação ao usufruto, já que, enquanto este constitui um direito de gozo pleno da coisa, o direito do usuário e do morador usuário encontram-se limitados pelas necessidades do titular. Essas necessidades são fixadas de acordo com a condição social do titular (artigo 1486.º CC) abrangendo a sua família apenas o cônjuge, não separado judicialmente de pessoas e bens, os filhos solteiros, outros parentes a quem sejam devidos alimentos e as pessoas que, convivendo com o respetivo titular, se encontrem no seu serviço ou ao serviço das pessoas designadas (artigo 1487.º CC).

Regime dos direitos de uso e habitação: o regime do uso e habitação é essencialmente o regime do usufruto, designadamente quanto às causas da sua constituição e extinção (artigos 1485.º e 1490.º CC). Há, no entanto, algumas especificidades a salientar. Assim, em primeiro lugar, o uso e a habitação não se podem constituir por usucapião (artigo 1293.º, alínea b) CC). Em segundo lugar, os direitos de uso e habitação são absolutamente intransmissíveis, pelo que o usuário e o morador usuário não podem transmitir esses direitos, nem onerá-los de qualquer modo (artigo 1488.º CC). No caso de o usuário ou o morador usuário consumirem todos os frutos do prédio ou ocuparem todo o edifício, compete-lhes o pagamento das reparações ordinárias, despesas de administração e impostos e encargos anuais, como se fossem usufrutuários (artigo 1489.º, n.º1 CC). Se, no entanto, a ocupação do prédio ou do edifício for apenas parcial, o usuário

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão e o morador usuário apenas são obrigados a contribuir na proporção da sua fruição (artigo 1489.º, n.º2 CC).

Tipos especiais de uso e habitação: 1. Os direitos de uso e habitação atribuídos ao cônjuge sobrevivo de habitação da casa de morada de família e de uso do respetivo recheio: um caso especial de uso e habitação é aquele que é atribuído ao cônjuge sobrevivo sobre a casa de morada de família e respetivo recheio. Efetivamente, o artigo 2103.º-A, n.º1 CC, estabelece que o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respetivo recheio, devendo tornas ao co-herdeiro se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver. Se a casa de morada de família não fizer parte da herança aplica-se esse regime apenas em relação ao recheio (artigo 2103.º-B CC). É considerado como recheio o mobiliário e demais objetos ou utensílios utilizados ao cómodo, serviço e ornamentação da casa (artigo 2103.º-C CC). A pedido dos proprietários, pode o tribunal, quando o considere justificado, impor ao cônjuge a obrigação de prestar caução (artigo 2013.º-A, n.º3 CC). Os direitos de habitação da casa de morada de família e de uso do recheio são, no entanto, sujeitos a uma causa de extinção especial, já que, nos termos do artigo 2013.º-A, n.º2 CC, estes direitos caducam se o cônjuge não habitar a casa por período superior a um ano. Excetuam-se apenas as situações anteriormente previstas no artigo 1093.º, n.º2 CC, hoje reguladas no n.º2 do artigo 1072.º CC, em que a lei considera lícito ao arrendatário o não uso do p´redio arrendado por mais de um ano. 2. Os direitos de habitação atribuídos ao membro sobrevivo da união de facto e em caso de morte de pessoa que viva em economia comum: outro direito real de habitação, que se encontra especialmente regulado, respeita aos casos de dissolução da união de facto por morte de um dos seus membros, e de falecimento de pessoa que vivesse com outra em situação de economia comum. Em caso de dissolução de uma união de facto por morte do membro que fosse proprietário da casa de morada de família, o membro sobrevivo adquire um direito real de habitação da casa pelo prazo de cinco anos, assim como um direito de uso do respetivo recheio (artigo 5.º, n.º1 Lei n.º7/2001, 11 maio, na redação da Lei n.º23/2010, 30 agosto), o qual é igualmente à situação de compropriedade (artigo 5.º, n.º3 do mesmo diploma). No caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, o prazo do direito de habitação estende-se por todo o tempo que tenha durado a união (artigo 5.º, n.º2 do mesmo diploma), podendo ainda esses prazos serem prorrogados pelo tribunal excecionalmente, e por motivos de equidade (artigo 5.º, n.º4 do mesmo diploma). O direito real de habitação já não é, porém, conferido ao membro sobrevivo da união de facto se este tiver casa própria na área do respetivo concelho da casa de morada de família; no caso das áreas dos concelhos de Lisboa ou do Porto incluem-se os concelhos limítrofes (artigo 5.º, n.º6 do mesmo diploma). Da mesma forma, esses direitos caducam se o interessado não habitar a casa por mais de um ano, salve se a falta de habitação for devida a motivo de força maior (artigo 5.º, n.º5 do mesmo diploma). Também no caso de extinção de uma situação de economia comum por morte do proprietário da cada de morada comum, as pessoas que com o falecido vivessem em economia comum há mais de dois anos têm direito real de habitação pelo prazo de cinco anos sobre a mesma casa (artigo 5.º, n.º1 Lei n.º6/2001, 11 maio). Essa atribuição do direito real de habitação já não se verifica, no entanto, caso ao falecido sobrevivam descendentes com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivessem há mais de um

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ano e pretendam habitar a casa, ou no caso de disposição testamentária em contrário (artigo 5.º, n.º2 Lei n.º6/2001, 11 maio). O direito também não é atribuído no caso de sobrevivência de descendentes menores que, não coabitando com o falecido, demonstrem ter absoluta carência de casa para habitação própria (artigo 5.º, n.º3 Lei n.º6/2001, 11 maio).

Natureza dos direitos de uso e habitação: em relação aos direitos de uso e habitação tem sido discutido na doutrina se eles constituem apenas modalidades especiais de usufruto, ou direitos reais de gozo distintos deste. A tese da integração no usufruto é sustentada por Mota Pinto, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro. A tese da autonomia é defendida por Carvalho Fernandes, Santos Justo e José Alberto Vieira. O Código Civil segue claramente a primeira orientação, como se comprova pela inserção do uso e da habitação no título relativo ao usufruto. Parece-nos, no entanto, ser preferível a segunda. Efetivamente, a autonomia dos direitos de uso e habitação em relação ao usufruto é confirmada pelo facto de eles não atribuírem um direito de gozo pleno sobre a coisa, atentas as limitações estabelecidas ao uso e fruição, sendo o uso funcionalizado às necessidades do titular e da sua família. Os poderes de disposição sobre a coisa são, por outro lado, absolutamente excluídos, ao contrário do que sucede no usufruto, em que é possível a alienação ou a oneração do direito. Não há, assim, qualquer justificação para considerar estas figuras como modalidades de usufruto, devendo as mesmas ser qualificadas como direitos reais de gozo distintos. Neste sentido, até se pode dizer que eles se situam a meio termo entre o usufruto e a servidão, recolhendo do primeiro a sua atribuição a uma pessoa determinada, e do segundo a sua limitação a certas faculdades da coisa.

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Capítulo XIII – O direito de superfície A origem histórica do direito de superfície: o termo superfície vinha usado no Direito Romano para designar simplesmente que tudo o que se junta ou incorpora sobre o solo passa a integrar o prédio. Nada havia ainda de jurídico no sentido do termo, não passando de um modo materialístico de aludir ao acréscimo do prédio pelo que se vai unindo ou juntando a ele. A este sentido se liga o conhecido princípio superficies solo cedit, segundo o qual, ao proprietário do prédio pertence tudo o que a ele se venha a unir ou incorporar por ação da natureza ou do homem. Por conseguinte, em caso de acessão, por construção ou plantação em terreno alheio, a obra ou plantação reverteria para o proprietário do solo. No momento inicial do Direito Romano clássico, uma propriedade do solo separada da propriedade da construção ou da plantação não era concebível. O regime da acessão, baseado no princípio dominante superfícies solo cedit, encarregava-se de resolver as situações a favor do dono do prédio objeto da união ou incorporação. Portanto, o solo e o edifício podiam apenas constituir uma única res, sendo o edifício parte inseparável dela. Tudo indica que a origem do direito de superfície, ainda não autonomizado e reconhecido como direito real, se encontra na prática de concessões perpétuas (in perpetuum) ou temporárias (ad tempus) sobre o ager publicus, o domínio publico do Estado, para fins de construção de edifícios. O concessionário (superficiário) ficava com o direito a construir pagando uma contrapartida pecuniária (solarium). Tal prática terá sido estendida, primeiro, a outras concessões do solo de municipia ou civitates e só depois a solo privado. As concessões públicas do Estado eram estruturadas numa relação locatícia de Direito Público. As concessões de prédios municipais e privados para construir e gozar edifício eram dadas recorrendo ao esquema da locação (locatio conductio), portanto, no âmbito de relações jurídicas de natureza pessoal, que tinham a sua tutela numa actio in personam. Em concessões de tempo indeterminado surgem referenciados nas fontes casos de constituição de superfície por compra e venda, discutindo-se se já na época clássica a mesma se poderia constituir por legado. Nos primeiros momentos de existência da superfície, é líquido que a mesma não vem reconhecida como direito real (ius in re), nem o superficiário é visto como possuidor, sendo um mero detentor, um representante do dominus na posse. A qualidade de possuidor do superficiário só surge admitida com clareza na época justinianeia. Do mesmo modo, uma propriedade separada entre o solo e a superfície (no sentido material) não era admitida no Direito Romano clássico. A isso se opunha o princípio superficies solo cedit, que fazia sempre funcionar a acessão em favor do proprietário do solo. O direito de superfície foi na sua origem fortemente modelado pela intervenção do pretor. Apesar de nascida numa relação pessoal, à superfície foi reconhecida uma tutela contra o locador (actio conducti) e contra terceiros. Quanto a esta, o primeiro meio de tutela foi um interdito, o interdictum de superficiebus, um interdito proibitório, com fortes analogias ao uti possidetis, tendente a fazer cessar as turbações do gozo do superficiário. Simplesmente, o interdictum de superficiebus não estava moldado para os casos em que o superficiário não tinha o gozo da coisa ou havia sido privado dele. Para estes casos, a cláusula edital referida por Ulpiano (D, 43, 10, 1, pr.) menciona uma actio, que alguns autores não hesitam em qualificar como actio in rem e que valia, sem dúvida, para a superfície perpétua. No que toca ao proprietário do solo, o superficiário podia defender-se mediante uma exceptio. O desenvolvimento da superfície durante a época clássica do Direito Romano mostra uma aparente contradição entre o que dispõe o ius ciuile, que trata a superfície no âmbito de uma relação de natureza pessoal, debaixo do paradigma da locação, não admitindo uma propriedade separada do solo (superficies solo cedit), e o Direito pretoriano, que confere tutela erga omnes 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ao superficiário mediante formas de defesa que são típicas de um ius in re, nomeadamente, através de uma actio in rem. A continuidade daria um direito real novo no período justinianeu, o direito de superfície, o qual emerge como um direito transmissível, inter vivos e mortis causa, de gozar um edifício em terreno alheio contra o pagamento de um correspetivo. Este novo direito constitui um ius in re aliena, um direito que se constitui sobre solo do dominus, ao qual se concedem todas as formas de defesa respeitantes ao proprietário e que tem um conteúdo assimilável à enfiteuse. No Direito intermédio, e em traços muito gerais, assiste-se a um evoluir de uma contraposição entre o direito de superfície como um ius in re aliena e a conceção da superfície como um domínio, concretamente como um domínio útil oposto ao domínio direto, numa aproximação clara ao direito de enfiteuse. O Code Civil francês e as codificações civis que seguiram o seu paradigma, nomeadamente, o Código Civil italiano de 1865 e o Código Civil de Seabra, ignoraram a superfície. A ideia de uma limitação à propriedade de cariz feudal poderá ter levado os codificações franceses a afastarem a superfície, tendo a Itália e Portugal seguido a mesma orientação. Em todo o caso, o Código Civil de Seabra dedicava um artigo à hipótese em que existiam árvores em terreno alheio, visando, porém, pôr um fim a essa possibilidade. Na Europa, o BGB alemão e o Código Civil suíço manifestaram orientação diversa. A regulação do BGB, porém, viria a ser substituída em 1919, modificada em 1994, que descodificou o direito de superfície, agora objeto de lei extravagante no Direito alemão. Em Portugal, ainda no domínio de vigência do primeiro Código Civil, a Lei 2030, 22 junho 1948 introduziu formalmente o direito de superfície. Limitado, no entanto, às pessoas coletivas de Direito Público (Estado, autarquias locais e pessoas coletivas de utilidade pública administrativa) e aos terrenos do seu domínio privado, este diploma teve um escasso impacto. Seria realmente com o Código Civil de 1966 que o direito de superfície viria a ganhar o seu lugar no sistema normativo português de Direito privado. Este direito ganharia ainda um novo fôlego com um passo sem antecedentes no Direito Romano e intermédio, a possibilidade de constituição de uma superfície sob o solo (artigo 1525.º, n.º2 CC, a redação dada pelo Decreto-Lei n.º257/91, 18 julho), que dinamizou uma série de novas construções (como parques de estacionamento ou centros comerciais nos perímetros urbanos afetados por falta de espaço para construção em altura.

O tipo legal do direito de superfície: 1. Delimitação positiva: o direito de superfície outorga, como qualquer direito real, um conteúdo típico de aproveitamento de uma coisa, que neste caso é sempre um imóvel. Porém, ao contrário do que sucede com os direitos de propriedade e de usufruto, em que o gozo é atribuído universalmente aos titulares, ainda que com limites (no caso do usufruto), no direito de superfície muda a técnica legal de conformação do tipo de direito real, que abrange somente poderes individualizados e dirigidos funcionalmente a construir ou manter obra ou a fazer ou manter plantações. O superficiário não tem o conteúdo normal do gozo, nomeadamente, o uso e a fruição do imóvel. O uso e a fruição do imóvel pertencem ao proprietário do solo; sobre todo o prédio enquanto a obra ou plantação não está construída ou feita (artigo 1532.º CC) e sobre a parte não ocupada pela obra ou plantação, quando esta existe já (artigo 1533.º CC). Em contrapartida, os poderes típicos deste direito são: a. O poder de construir ou de fazer plantação no prédio (poder de transformação); b. O poder de manter a obra ou plantação sobre ou sob solo alheio durante o tempo de duração do direito; c. O poder de disposição.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Uma vez que a obra ou plantação pode estar já feita ou, pelo contrário, não estar, poderia parecer que este tipo de direito real teria um conteúdo variável, nuns casos incluindo o poder de transformação, noutros não. A verdade, porém, é que mesmo quando a obra ou a plantação existe, e depois vem a ficar destruída, por qualquer facto, o superficiário pode sempre proceder à construção de uma nova obra ou fazer nova plantação. Isso mesmo retira-se da alínea b) do artigo 1536.º, n.º1 CC. O que quer dizer, afinal, que o poder de transformação integra sempre o conteúdo típico do direito de superfície. O poder de disposição inclui-se no tipo legal do direito de superfície. Contrariamente ao que sucede com o regime jurídico do usufruto, no qual se prevê a possibilidade de o título constitutivo afastar a transmissão ou oneração do direito, o artigo 1534.º CC proclama a transmissibilidade do direito de superfície. Essa transmissão pode ocorrer por meio de qualquer dos factos jurídicos com eficácia real translativa, a favor de terceiros ou do proprietário do solo. Conquanto no artigo 1534.º CC nada se diga a propósito da oneração, o artigo 688.º, n.º1, alínea c) CC prevê a constituição da hipoteca sobre o direito de superfície, o que confirma a ideia de que, tratando-se de direito real menor, também o direito de superfície pode ser onerado. Importa, em todo o caso, não confundir a oneração da superfície com a oneração da propriedade do superficiário sobre a obra ou plantação. Essa decorre do regime jurídico da propriedade e não do direito de superfície. O direito de superfície tem hoje um significado muito diverso do que tinha no Direito Romano. Neste, por força do princípio superficies solo cedit, não se admitia que no mesmo prédio pudessem coexistir propriedades separadas. O edifício, obra ou plantação incorporado no solo, mesmo por ação do superficiário, pertencia ao proprietário do prédio, que adquiria por acessão tudo o que acrescesse à sua coisa. Na conformação típica atual, o direito de superfície visa justamente impedir a aplicação do regime da acessão, independentemente das regras de atribuição que resultariam deste. Assim, as árvores, plantas ou construções existentes num prédio podem pertencer a pessoa diversa do proprietário do solo durante o período de tempo de duração do direito de superfície, sem que a qualquer dos proprietário seja lítico recorrer à acessão. O poder de manter obra ou plantação em terreno alheio preclude a acessão, afastando a aplicação do regime respetivo. Deste modo, quer a obra ou plantação fizesse já parte do imóvel quer venha a resultar da ação do superficiário, o proprietário do solo não adquire qualquer direito sobre ela, mormente a propriedade, enquanto a superfície não se extinguir. Até lá, a propriedade do solo, por um lado, e a propriedade da obra ou da plantação, por outro, mantêm-se separadas e em esferas jurídicas distintas. O direito de superfície, nesta colocação moderna, não se limita a autorizar o superficiário a construir obra, a mantê-la no terreno do proprietário e a defendê-la. Ele impede igualmente a superficies solo cedit e o funcionamento da acessão, cujo regime derroga. O direito de superfície, enquanto direito real, não requer que a obra ou a plantação tenha existência atual. Uma vez constituído, ele onera imediatamente a propriedade do prédio e confere ao superficiário a possibilidade de tutela geral, contra o proprietário e contra terceiros, nomeadamente, através da ação de reivindicação. Desenhado o tipo legal da superfície, podemos afirmar que se trata do direito a construir ou manter obra ou a fazer ou manter plantação em prédio alheio. No seu alcance, para além do poder de transformar o prédio sobre o qual se constitui, ele confere ao superficiário o poder de manter uma obra ou plantação sua em coisa alheia (do proprietário do solo). Do direito de superfície deve manter-se separado o direito de propriedade sobre a obra ou plantação. No regime jurídico do Código Civil estas duas situações jurídicas são distintas. Se se trata de uma superfície de construção ou 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão plantação e esta ainda não foi construída ou existe, não há possibilidade de confusão. O direito de superfície incide sobre o solo. Há então dois direitos a considerar, ambos tendo a mesma coisa por objeto: a propriedade do solo (proprietário) e o direito de superfície (superficiário). Contudo, quando a obra ou plantação existe, a situação jurídica é mais complexa. Aos direitos de propriedade e de superfície sobre o prédio acresce agora um direito de propriedade sobre a coisa ou plantação, que vem conhecida com a designação usual, mas equívoca, de propriedade superficiária, e que está na titularidade do superficiário. O tipo de direito real superfície tem o conteúdo sobre a coisa na qual recai. Trata-se sempre de um prédio, e se esquecermos agora o subtipo da superfície de sobreelevação, de um terreno. Sobre ou sob esse terreno, o superficiário pode construir ou plantar obra ou construção e manter a propriedade desta coisa separada da propriedade do solo, sem que o regime da acessão determine a necessidade de aquisição do conjunto (solo mais implante) ou a sua perda para o proprietário do solo. Diferentemente do Direito Romano, que não reconhecia uma propriedade de outrem separada da propriedade do solo e que determinava sempre a aquisição pelo proprietário do solo de qualquer construção ou plantação que fosse incorporada no solo (superficies solo cedit), o Direito Civil português abre a possibilidade de, através do direito de superfície, haver num prédio duas propriedades separadas, pertencentes a titulares distintos, uma sobre o solo, outra sobre a construção ou plantação, sem que a acessão atue a favor de um dos proprietários. Não obstante a superfície não envolver o conteúdo principal do gozo, nomeadamente, o uso e a fruição, ela implica um fortíssimo gravame para o proprietário cujo direito fica onerado. Schwab/Prütting não hesitam em afirmar que o direito de superfície representa a mais forte oneração do direito de propriedade. 2. Desnecessidade de uma delimitação negativa: a lei não leva a cabo a delimitação negativa do tipo legal da superfície, o que se compreende atenta a técnica legal usada. Uma vez que o aproveitamento típico propiciado por este direito assenta num feixe de poderes individualizados – o poder que está fora do âmbito desses poderes não pode o usufrutuário fazer no exercício do seu direito. Em todo o caso, ao conteúdo típico do direito de superfície, de natureza real, pode acrescer um conteúdo de aproveitamento de natureza obrigacional (direitos de crédito), com base nas convenções contratuais ajustadas entre o proprietário do solo e o superficiário, no título constitutivo da superfície ou em momento posterior.

O subtipo da superfície de sobreelevação: no artigo 1526.º CC consagra-se um subtipo de superfície: a superfície de sobreelevação. A diferença que permite autonomizar a superfície de sobreelevação do tipo geral do direito de superfície reside no seu objeto. Enquanto no tipo geral o objeto é um terreno, no subtipo de sobreelevação a coisa é um edifício, já construído ou em construção. A previsão legal faz apenas referência à constituição de superfície em edifício constituído em propriedade horizontal. O alcance da norma é, todavia, mais amplo. A superfície de sobreelevação pode ser constituída sobre qualquer edifício que tenha as características para o efeito, independentemente de estar ou não em propriedade horizontal. Se o proprietário singular ou os comproprietários quiserem uma superfície de sobreelevação a favor de terceiro, podem-no fazer validamente. Tem sido levantada a hipótese de o superficiário de edifício poder, por sua vez, constituir novos direitos de superfície sobre a obra existente ou a constituir.

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1. Em nossa opinião, tudo depende do título constitutivo da superfície, pois não parece admissível que o proprietário do solo não tenha uma palavra a dizer sobre uma construção no seu prédio. 2. E também Menezes Cordeiro opina neste sentido, defendendo a nulidade do contrato em que o direito de superfície haja sido constituído. Assim, se o superficiário está autorizado pelo título constitutivo da superfície a construir um edifício de 10 andares, nada obsta a que o superficiário constitua uma superfície de sobreelevação para a constituição dos dois últimos andares; porém, se a superfície permite a construção de um parque de estacionamento subterrâneo, não é lícito ao superficiário, sem o consentimento do proprietário do solo, constituir uma superfície a favor de terceiro para construir um centro comercial por debaixo do parque. Quando seja lícita a construção sobre a obra do superficiário e não haja lugar à aplicação das regras da propriedade horizontal, constituise um novo direito de superfície a favor do construtor. Pergunta-se, no entanto, se o novo superficiário adquire a comunhão no direito de superfície do superficiário do solo ou se não participa deste direito. Inclinamo-nos para esta última solução. No artigo 1526.º CC dispõe-se que após o edifício ser levantado se aplicam as regras da propriedade horizontal. Uma vez mais, este preceito tem de ser adaptado às hipóteses de o edifício não estar no regime de propriedade horizontal. Se isso acontecer, julgamos que o edifício, se estava em propriedade singular, passa a estar em compropriedade; se já estava em compropriedade, o superficiário torna-se comproprietário juntamente com os outros comproprietários. Uma outra hipótese, que não pode ser excluída, é a da obra erguida em superfície de sobreelevação poder ser objeto de uma propriedade separada do edifício sobre ou sob o qual foi construída. Nesta hipótese, o direito de superfície mantém-se após a conclusão da construção e a propriedade da obra construída sobre ou sob o edifício mantém.se distinta da propriedade do edifício. Na hipótese prevista no artigo 1526.º CC, a superfície extingue-se e as frações construídas ficam sujeitas ao regime de propriedade horizontal, passando o superficiário a condómino.

A constituição de propriedade horizontal em edifício assente em solo alheio : tem sido discutida a questão de saber se o superficiário pode constituir a propriedade horizontal sobre o edifício construído ou mantido em terreno alheio. A hipótese não pode levantar dúvidas. Os poderes do proprietário do edifício construído ou mantido sobre solo alheio nos termos de um direito de superfície são exatamente os mesmos do proprietário que é simultaneamente dono do solo. A constituição da propriedade horizontal insere-se no exercício do poder de disposição. Uma vez constituída a propriedade horizontal, os condóminos serão proprietários da sua fração, comproprietários das partes comuns, com exceção do solo, em que serão comunheiros do direito de superfície. Diversamente do regime jurídico da propriedade do solo, se a superfície for temporária a propriedade das frações será transferida para o proprietário do solo com a extinção da superfície (artigo 1538.º, n.º1 CC).

O objeto do direito de superfície: o direito de superfície tem sempre por objeto uma coisa imóvel, sendo essa coisa, com exceção da superfície de sobrelevação, um terreno. Deste modo, o objeto do direito de superfície não pode ser confundido com a obra ou plantação eventualmente existente no solo. Isso afigura-se particularmente evidente na superfície de construção ou plantação quando o implante ainda não está construído ou plantado. Nesse momento, existe apenas o solo e ele representa a res sobre a qual a superfície incide. Nada disto muda, todavia, quando a obra ou plantação vem à existência. Esta é objeto de um direito distinto e separado, um direito de propriedade (do superficiário), porquanto é juridicamente autónoma e individualizada face ao prédio dado em superfície. O direito de superfície tem somente o solo 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão por objeto. O superficiário detém, assim, dois direitos, cada um deles tendo por objeto uma coisa diferente:

1. O direito de superfície, que tem por objeto o solo; e 2. O direito de propriedade, que versa sobre um objeto distinto, o implante, material (obra) ou vegetal (plantação). Com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º257/91, 18 julho, o direito de superfície permite a construção ou manutenção de obra sob solo alheio (artigo 1525.º, n.º2 CC). Resolveu-se assim um problema teórico e aumentou-se a extensão potencial de aplicação deste tipo de direito real a novas construções urbanas, como parques de estacionamento, centros comerciais subterrâneos, etc. Em todo o caso, isto não muda o objeto do direito de superfície, que continua a ser um terreno. Simplesmente, a obra a construir no âmbito da superfície já não tem que ser sobre o solo, podendo ser sob o mesmo. O n.º1 do artigo 1525.º CC resolveu um problema levantado tradicionalmente pela doutrina. O direito de superfície só abarca a porção do solo ou subsolo necessário para a construção ou manutenção da obra ou da plantação. As partes podem, no entanto, alargar o objeto da superfície à área adjacente à parte do prédio ocupada ou a ocupar pela obra, contando que haja proveito para o uso da mesma. Os exemplos dos jardins, logradouros, parques de estacionamento são elucidativos a este propósito. Como vimos anteriormente, o direito de superfície não tem por objeto a construção ou plantação existente ou a construir/plantar sobre ou sob o solo, mas apenas este. Convém, no entanto, sublinhar, que a superfície não pode ser validamente constituída relativamente a qualquer obra ou plantação. A doutrina dominante costuma evidenciar que a coisa a construir sobre o terreno deve ser suscetível de causar o funcionamento da acessão. Os requisitos desta devem, pois, estar verificados. Excluídos da superfície ficam, assim, as casas pré-fabricadas, que se limitam a assentar no solo, as construções como bancos de jardim, postes telegráficos ou telefónicos, tendas e outras instalações provisórias, etc. A propósito das superfícies vegetais, Oliveira Ascensão chama a atenção para o facto de as plantações deverem ser duradouras. Isto não significa que apenas as árvores possam ser consideradas. Outras culturas vegetais duradouras, como as vinhas, estão certamente incluídas no âmbito do regime da superfície.

Obrigações do superficiário: as obrigações do superficiário resultam em regra do título constitutivo e não podem ser antecipadas com generalidade. As partes podem convencionar que tipo de construção ou plantação fica autorizada, tratando-se de edifício, a altura do mesmo, o número de andares, a área, os materiais a utilizar, etc. A lei portuguesa ocupa-se em particular do cânon superficiário (artigo 1530.º CC). O cânon superficiário designa a prestação anual em dinheiro que o superficiário fica obrigado a pagar, por certo tempo (cânon temporário) ou para sempre (cânon perpétuo). Como outras obrigações do superficiário, salientam-se:

1. A obrigação de dar preferência ao proprietário do solo, em caso de venda ou de dação em cumprimento do direito de superfície (artigo 1535.º, n.º1 CC);

2. A obrigação de conservar a obra ou plantação após a extinção da superfície, sob pena de responsabilidade civil perante o proprietário (artigo 1538.º, n.º3 CC); 3. A obrigação de comunicar ao proprietário do solo os atos de terceiro capazes de lesar o seu direito (artigo 1475.º CC, por analogia); 4. A obrigação de restituir o terreno objeto da superfície, bem como a obra ou plantação, quando o seu direito se extinguir.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Nada impede que o superficiário fique vinculado a obra ou a realização a plantação. Uma tal convenção, porém, só pode valer com eficácia obrigacional. Do ponto de vista do regime real, a construção da obra ou a feitura da plantação provém da decisão livre do titular do direito. Oliveira Ascensão menciona a existência de um dever que recai sobre o superficiário de implantar a obra. Porém, este dever surge contraditado pela essência da superfície, que constitui um direito subjetivo, outorgando, por conseguinte, um espaço de liberdade e não uma imposição em termos de situação jurídica passiva (dever). Decerto, o superficiário, não construindo ou fazendo a plantação, pode violar o contrato celebrado com o proprietário do solo e isso acarretar-lhe as consequências do regime jurídico obrigacional, eventualmente mesmo a resolução do contrato, para além da responsabilidade civil pelo incumprimento obrigacional. No regime jurídico-real, todavia, o decurso do prazo sem que a construção se faça, 10 anos se outro prazo não houver sido estipulado, conduz simplesmente à possibilidade de extinção da superfície por não uso (artigo 1536.º, n.º1, alínea a) CC). Nada disso autoriza, porém, a que se fale num dever de construir ou plantar de fonte real; quanto muito, trata-se de um ónus.

A posição jurídica ativa do proprietário do solo: o proprietário do solo tem todo o conteúdo residual de aproveitamento da coisa que não é afetado pela constituição do direito de superfície (artigo 1305.º CC). No entanto, alguns esclarecimentos adicionais devem ser feitos. O uso e a fruição do prédio pertencem em exclusivo ao proprietário do solo (artigo 1532.º CC). Por isso, enquanto não se iniciar a construção da obra ou a realização da plantação, o proprietário pode continuar a gozar a coisa. O artigo 1532.º, n.º1 CC apenas prevê a sanção da responsabilidade civil para o caso do proprietário do solo vir a tornar mais onerosa a construção ou a plantação, a impossibilitá-la por força do gozo que haja feito ou a causar qualquer outro dano. Porquanto mantém o gozo da coisa enquanto o superficiário não inicia a construção da obra ou a feitura da plantação, o proprietário do solo pode não só usá-la e fruí-la diretamente, como pode constituir outros direitos a favor de terceiros concedendo esse gozo. Dentro desses direitos poderão estar direitos pessoais de gozo (locação, comodato) e também outros direitos reais (usufruto, uso, habitação, servidões prediais). Todavia, tais direitos não poderão ser constituídos com uma duração superior ao gozo do proprietário do solo, sob pena de nulidade. O gozo do subsolo (ou do solo na hipótese de obra sob solo) manter-se-á durante todo o tempo pelo qual o direito de superfície estiver constituído, uma vez que a superfície não o afeta. A licitude desse gozo cessa, no entanto, quando causa danos ao superficiário (artigo 1533.º CC). Nesse caso, o proprietário do solo terá de indemnizar o superficiário. O início da construção ou da plantação traz o fim do gozo do proprietário relativamente à porção de terreno objeto da superfície. Essa limitação é, afinal, o resultado da oneração do seu direito. Em todo o caso, pode dizer-se que a porção do imóvel não afeta ao direito de superfície pode continuar a ser gozada integralmente pelo proprietário. O proprietário do solo está, naturalmente, investido nas situações jurídicas ativas que são contrapartidas dos deveres e outras situações passivas do superficiário, nomeadamente, e a título exemplificativo, o crédito ao cânon superficiário (artigo 1530.º, n.º1 CC), quando haja sido convencionado e o direito de preferência em caso de venda ou dação em cumprimento do direito de superfície (artigo 1535.º, n.º1 CC).

Obrigações e outras situações jurídicas passivas do proprietário do solo : a relação jurídica entre o proprietário do solo e o superficiário postula igualmente situações jurídicas passivas para o primeiro. O proprietário do solo está, desde logo, obrigado a facultar a posse da coisa ao superficiário, sem prejuízo do que possa haver sido convencionado no título constitutivo quanto à entrega da coisa. O superficiário deve estar a todo o tempo pronto para

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão desencadear a construção da obra ou a realização da plantação de acordo com o seu direito. Ora, uma vez que a oneração da propriedade redunda imediatamente da eficácia do facto jurídico real (contrato, usucapião, etc.), a situação possessória deve estar em conformidade com a situação jurídica da coisa. Uma vez que, mesmo havendo posse do superficiário, o proprietário do solo mantém o gozo do prédio até ao início da construção ou da plantação, ele encontra-se obrigado a não impedir ou a tornar mais dispendiosa a construção ou plantação do superficiário, sob pena de responsabilidade civil. Guarneri fala de uma obrigação de pati, de suportar todas as iniciativas e atividades consentidas ao superficiário no exercício do seu direito. Na doutrina italiana defende-se que o proprietário não pode modificar o estado do solo impedindo o início da construção ou da plantação a qualquer momento. Concordamos com esta doutrina, pois ela corresponde inteiramente ao sentido da parte final do artigo 1532.º CC. Salvo convenção em contrário no título constitutivo, o proprietário do solo não está obrigado a preparar o solo para a construção ou plantação, levando a cabo os trabalhos destinados a remover os obstáculos existentes na coisa. Esses trabalhos, bem como as despesas com eles, cabem ao superficiário. A oneração resultante da constituição do direito de superfície pode não ser a única que sofre o direito de propriedade. Com efeito, a lei portuguesa prevê a possibilidade de constituição de servidões a favor do superficiário, de modo a que este possa gozar a obra ou plantação (artigo 1529.º, n.º1 CC). Estas servidões podem ser coercivamente impostas, caso o proprietário do solo não as constitua voluntariamente. Existe, pois, um estado de sujeição do proprietário do solo à constituição de servidões que se afigurem necessárias ao gozo da obra ou da plantação do superficiário. As servidões em causa serão, em regra, servidões de passagem, nada obstando, contudo, à constituição de qualquer outra modalidade de servidão, desde que seja necessária no sentido subjacente ao n.º1 do artigo 1529.º CC. O proprietário do solo poderá ter de pagar ao superficiário uma indemnização pela aquisição da propriedade da obra ou plantação quando a superfície se extinguir (artigo 1538.º, n.º2 CC). A solução legal é, todavia, supletiva, nada impedindo as partes de arredar este direito do superficiário, conforme se dispõe no preceito. E, atenta a natureza supletiva do mesmo, também nada parece proibir que, mantendo-se o direito de indemnização do superficiário, as partes estipulem um critério diverso, que não o enriquecimento sem causa, para determinar a indemnização devida àquele.

A constituição do direito de superfície pela alienação do solo separada da obra ou da plantação: a constituição do direito de superfície pode ser feita pelos factos com eficácia real que demos conta. Não há nesta matéria nenhuma especialidade a referir. O proprietário é a única pessoa legitimada a constituir o direito de superfície sobre o prédio. Se neste existe já obra ou plantação, a lei confere-lhe o poder de alienar a propriedade da obra ou da plantação separadamente da propriedade do solo (artigo 1528.º, n.º1 CC), quebrando a unidade da coisa, até aí una do ponto de vista jurídico. Assim, o proprietário do imóvel pode transmitir a terceiros a propriedade do solo ficando proprietário da obra ou plantação e vice-versa; e, do mesmo modo, pode transmitir a terceiros, separadamente, a propriedade do solo e da obra ou plantação. A separação da obra ou da plantação da propriedade do solo desencadeia automaticamente a constituição de um direito de superfície a favor do adquirente do implante (artigo 1528.º, n.º1 CC). Não se torna necessária qualquer declaração negocial específica nesse sentido, dado que a lei associa a constituição da superfície à separação das coisas. O título da transmissão separada da propriedade da obra ou plantação é, assim, suficiente para o registo da aquisição da propriedade. A constituição do direito de superfície na hipótese de alienação de obra ou plantação separada da propriedade do solo tem por objetivo a neutralização do regime jurídico da acessão, que assim fica afastado.

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A aquisição do direito de propriedade sobre a obra ou plantação : quando o direito de superfície se constitui para a construção de obra ou a realização de plantação, a única coisa a considerar é o terreno, simultaneamente objeto da propriedade e da superfície. Se, posteriormente, a obra vier a ser construída ou a plantação realizada, e à medida que isso for feito, nasce uma nova coisa (imóvel), autónoma e individualizada relativamente ao terreno objeto da superfície e da propriedade do solo. Sobre a nova coisa incide um direito de propriedade, que muitas vezes vem mencionado como propriedade superficiária. Escusado será dizer que se trata de um direito novo, adquirido originariamente pelo titular do direito de superfície. A circunstância do direito de superfície, ao abrigo do qual a construção ou plantação surge, derivar da propriedade sobre o solo não transforma a aquisição da propriedade do implante numa aquisição derivada ou derivada-constitutiva. A diferente conclusão se chega na hipótese de separação da propriedade da obra ou da plantação face à propriedade do solo. Aí, uma vez que a obra ou plantação tinha existência anterior, embora no contexto de uma coisa diferente, que incluía o solo, a aquisição da propriedade pelo terceiro ocorre de modo derivado.

Duração do direito de superfície: o direito de superfície pode ser perpétuo ou temporário. Sendo perpétuo, ele representa uma oneração constante para a propriedade, que pode, no entanto, acabar, se ocorrer algum facto extintivo. A perpetuidade da superfície não a torna imune aos factos extintivos gerais dos direitos reais (não, uso, confusão, usucapião de terceiro, etc.), como decorre, de resto, do disposto no artigo 1536.º, n.º1 CC, que se aplica indistintamente às hipóteses de superfície temporária e perpétua. A lei preceitua expressamente que a superfície pode ser constituída a termo (artigo 1524.º CC), não estabelecendo, contudo, o tempo mínimo de duração do direito, que fica, assim, na inteira disponibilidade das partes. O decurso do mesmo provoca a extinção do direito (artigo 1536.º, n.º1, alínea c) CC) e levante o problema do destino jurídico da obra ou plantação superficiária.

Extinção do direito de superfície. O destino da obra ou da plantação: a incidência de um facto extintivo faz cessar o direito de superfície. Extinto este, poderia suscitar-se a aplicação da acessão. Porém, isso não sucede. Ao invés, o artigo 1538.º, n.º1 CC determina simplesmente a aplicação da regra superficies solo cedit. Caso haja obra ou plantação superficiária, com a extinção da superfície, ela passa a integrar o prédio e o dominus soli adquire a propriedade respetiva. No seu teor literal, o n.º1 do artigo 1538.º CC parece abranger unicamente as hipóteses de extinção de superfície temporária pelo decurso do prazo. Não obstante, o alcance do preceito estende-se a todas as hipóteses de extinção da superfície, contando que o solo, por um lado, e a obra ou plantação, por conseguinte, tenham existência no momento em que opera o facto extintivo. Por conseguinte, as regras da acessão continuam sem receber aplicação, mesmo se a superfície cessa por facto diverso do decurso do prazo. A aquisição da propriedade da obra ou da plantação pelo proprietário do solo constitui um efeito automático da extinção do direito de superfície e não carece de nenhuma declaração dos interessados (ou do proprietário do solo) nesse sentido. Na doutrina, especialmente italiana, levantou-se a questão de saber se as partes podem convencionar solução diferente quanto aos efeitos da extinção da superfície, nomeadamente, se o superficiário pode levantar a obra ou os materiais sobrantes, ou se tem mesmo o dever de o fazer. Não se vê nenhum argumento que possa fundamentar a imperatividade do artigo 1538.º, n.º1 CC. Não se vislumbra um interesse de natureza pública que seja atingido ou alguma necessidade atendível de salvaguarda de terceiros. Tudo se passa no domínio da relação entre proprietário do solo e superficiário, dos seus interesses e conveniências. E assim como ambos podem renovar o prazo de duração da superfície ou constituir um novo direito de superfície, devem poder acordar livremente o destino a dar à obra

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ou plantação quando o direito do superficiário se extinguir por qualquer razão. Um argumento impressiona-nos consideravelmente: o do proprietário do solo poder destruir livremente o implante após ter adquirido a propriedade respetiva. Ora, se como proprietário o pode fazer, que razão haverá para impedir que, antes de o ser, acorde com o superficiário um destino diferente para a coisa. Finalmente, há que atender que a aquisição da obra ou da plantação determina para o proprietário do solo o dever de indemnizar o superficiário, se as partes não acordarem em afastar o direito de indemnização (artigo 1538.º, n.º2 CC). Ora, o proprietário pode não querer ou sequer estar em condições de indemnizar o superficiário; não poderá, então, antes que a propriedade seja transferida para ele e o dever de indemnizar se constitua, acordar com o superficiário uma solução diversa? Ainda assim, a eventual destruição da obra ou plantação acordada não deixa de estar sujeita às restrições, condicionantes ou proibições do Direito em vigor. Do que se trata agora é de saber se as partes podem derrogar validamente a solução prevista no n.1º do artigo 1538.º CC. Tudo ponderado, inclinamo-nos decididamente para a resposta afirmativa. A norma constante do artigo 1538.º, n.º1 CC tem natureza supletiva. Caso as partes não hajam afastado o dever de indemnizar previsto no n.º2 do artigo 1538.º CC, o proprietário do solo fica obrigado a indemnizar o ex-superficiário nos termos do regime do enriquecimento sem causa. Conforme explicámos anteriormente, assim como podem afastar o dever de indemnização do proprietário do solo, as partes podem convencionar um outro critério para a determinação da indemnização devida por aquele pela aquisição da obra ou plantação. Isso resulta da natureza supletiva do preceito.

Extinção do direito de superfície. Outros efeitos: a extinção da superfície coloca também a questão do destino dos direitos reais menores que oneravam a propriedade do superficiário sobre a obra ou plantação. O regime jurídico dos artigos 1539.º a 1541.º CC distingue duas hipóteses:

1. O direito de superfície, temporário, extingue-se no final do prazo: aplica-se o regime jurídico dos artigos 1539.º e 1540.º CC. Com a extinção da superfície no final do prazo, todos os direitos reais menores que oneravam a propriedade do superficiário sobre a obra ou a plantação, sejam direitos reais de gozo (usufruto, uso e habitação, servidões prediais) sejam direitos reais de garantia (hipoteca, privilégios creditórios), extinguemse igualmente (artigo 1539.º, n.º1 CC). A transmissão do domínio da obra ou da plantação para o proprietário do solo faz-se, assim, de modo pleno e exclusivo, ou seja, sem qualquer oneração da propriedade. A junção da propriedade da obra ou da plantação com a propriedade do solo, atuada por força do princípio superficies solo credit, deixa subsistir apenas um direito de propriedade. E esse é o direito de propriedade sobre o solo. A explicação para a extinção dos direitos reais menores que oneravam a propriedade da obra ou da plantação encontra-se justamente na extinção do direito de propriedade desta. A união das duas coisas, solo e implante, faz desaparecer uma delas, a favor do solo (superficies solo cedit), o que justifica que subsista somente um direito de propriedade, o do prédio agora incorporado da obra ou plantação. Deste modo, todos os direitos reais que oneravam a propriedade do implante extinguem-se com a extinção dela. Com a expansão da propriedade do solo, os direitos reais que a oneravam abrangem agora toda a coisa e, portanto, também a obra ou plantação incorporada no solo (artigo 1540.º CC). O n.º2 do artigo 1539.º CC coloca o cenário do superficiário ter direito a receber alguma indemnização nos termos do artigo 1538.º, n.º2 CC, dispondo que, nesse caso, os titulares dos direitos reais extintos possam

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão valer dos mecanismos de sub-rogação real, o que pode suceder com a hipoteca (artigo 692.º, n.º3 CC) e o usufruto (artigo 1480.º, n.º2 CC). 2. O direito de superfície, temporário, extingue-se antes do final do prazo ou extingue-se o direito de superfície perpétuo: nesta segunda hipótese, as coisas passam-se de maneira diferente. A lei portuguesa atende aos direitos daqueles que não contavam com a extinção do direito de superfície antes do final do prazo, no caso da superfície temporária, ou de todo, no caso da superfície perpétua, e determina a manutenção desses direitos, como se a superfície não se houvesse extinguido e o proprietário do solo adquirido a propriedade da obra ou plantação. Em todo o caso, há uma diferença a assinalar. Sendo a superfície temporária, os direitos reais dos terceiros que oneravam a propriedade superficiária extinguir-se-ão na mesma no final do prazo previsto para a duração do direito de superfície (artigo 1541.º, in fine CC), uma solução que se justifica pelo facto de eles não poderem contar com outra coisa senão com o termo final da superfície. Esta solução arrasta alguns problemas dogmáticos. Poderá dizer-se que a superfície não se extinguir, afinal, dado que os direitos de terceiros continuam a incidir sobre o seu primitivo objeto? a. Respondemos negativamente. A superfície extinguiu-se, mas os direitos de terceiros que permanecem, nos termos do artigo 1542.º CC, têm agora por objeto não uma coisa autónoma e individualizada (a obra ou plantação), mas uma parte de coisa, a parte que passou a integrar o imóvel do proprietário do solo. Dentro desta ordem de ideias, o direito onerado não é mais a propriedade superficiária, é o direito de propriedade do dono do solo, que em consequência da extinção da superfície e da incorporação do implante no seu prédio vê o seu direito ser onerado com os direitos de terceiros que tinham por objeto a obra ou plantação. b. Pires de Lima/Antunes Varela adiantam que a superfície pode vir a renascer, dando o exemplo da execução de hipoteca com venda judicial. Será, no entanto, um direito novo, constituído nos termos do artigo 1528.º CC pela alienação da obra ou plantação separada da propriedade do solo.

A natureza do direito de superfície: muito se tem escrito sobre a natureza do direito de superfície. Poder-se-á estranhar, no entanto, que o tema seja discutido atualmente, pois, num sistema normativo regido pelo princípio da tipicidade, um direito real que surge expressamente tipificado pela lei tem com certeza individualmente no confronto com os demais direitos reais. Supomos que a razão principal para a subsistência da controvérsia sobre a natureza do direito de superfície se prende com uma interpretação menos correta dos dados legais. Como ponto de partida, o direito de superfície tem como objeto o terreno ou a construção (no caso da superfície de sobreelevação) sobre ou sob a qual a obra ou a plantação se mantém. Sobre esta coisa recai um direito de propriedade do dominus soli, que é onerado pela superfície. Assim, o direito de propriedade sobre o imóvel e o direito de superfície partilham a mesma coisa, o que surge particularmente nítido quando a obra ou plantação ainda não tem existência. Incidindo sobre coisa propriedade de alguém (o proprietário do solo), o direito de superfície representa outro ius in re aliena, um direito sobre coisa alheia, que onera a propriedade. E nenhuma dúvida se afigura legítima quanto a este ponto, tal a clareza com que a lei diferencia os dois direitos. A obra ou a plantação não altera a relação existente entre a propriedade do dono do solo e o direito de superfície. E isto sucede porquanto o direito de superfície não tem o implante por objeto nem atribui qualquer poder de aproveitamento do mesmo ao superficiário. Basta ver o conteúdo típico desse direito. Na realidade, e como deixámos explicado no ponto atinente ao 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão objeto do direito de superfície, a obra ou plantação constitui uma coisa juridicamente diversa do solo ou da construção (no caso da superfície de sobreelevação) sobre que assenta. Sobre essa coisa – diversa, repete-se, do solo ou da construção – há um outro direito de propriedade, que por conveniência de linguagem, porque pertence ao superficiário, se denomina propriedade superficiária. O direito de superfície evita justamente que a acessão funcione entre os dois proprietários – do solo e da obra ou plantação – permitindo que duas coisas que, em circunstâncias normais de aplicação do regime regra (o da acessão) se tornariam numa só (uma coisa imóvel), permaneçam separadas e com direitos de propriedade distintos. Na situação de máxima complexidade, quando existe a obra ou plantação, temos de distinguir duas coisas e três direitos reais. As coisas são:

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1. O solo; e 2. A obra ou plantação; Os direitos reais são:

1. O direito de propriedade do proprietário do solo sobre o qual a superfície foi constituída;

2. O direito de superfície propriamente dito; 3. O direito de propriedade do superficiário sobre a obra ou plantação. O problema da natureza jurídica do direito de superfície ganha assim contornos mais claros. Se atendermos ao conteúdo típico desse direito, que engloba os poderes de construir e ou manter obra ou plantação em terreno alheio, constataremos facilmente, pelo mero confronto do conteúdo típico de cada um dos direitos, que não pode ser uma propriedade. Não atribui o gozo da coisa como universalidade, não admite o uso e a fruição do solo, e apenas permite construir e ou manter obra ou plantação, um feixe de poderes individualizados que exclui o aproveitamento que não se possa reconduzir a qualquer um deles. Por outro lado, o desenho típico deste direito não se coaduna com nenhum dos outros tipos. Não se trata de um usufruto, de um direito de uso, de um direito de habitação ou de uma servidão predial. Ora, um direito real de gozo que não se identifica com nenhum outro e ademais surge individualizado no catálogo legal de direitos reais de gozo só pode ser um direito novo, autónomo: um direito real sui generis. Como tipo autónomo de direito real de gozo, a superfície atribui ao superficiário o poder de construir e manter, ou só de manter, obra ou plantação sua em terreno alheio, afastando, por conseguinte, o regime da acessão, e dando azo a que uma coisa incorporada no solo com caráter de permanência (a obra ou plantação) mantenha a sua individualidade de coisa e possa pertencer ao superficiário em propriedade. Como proprietário do implante, o superficiário poderá depois dispor do direito de propriedade no espaço de autonomia que o Direito lhe reconhecer, transmitindo o seu direito ou onerando-o com outros direitos reais, de gozo ou de garantia. É esta última hipótese, aliás, que está subjacente ao regime dos artigos 1539.º e 1541.º CC. Na doutrina portuguesa que se pronunciou sobre o tema, deparamos com posições muito diversas.

1. No sentido, segundo o qual, a superfície tem a natureza de uma propriedade superficiária, dentro de uma construção em que a obra ou plantação é objeto do direito de superfície, encontra-se Oliveira Ascensão e Pires de Lima/Antunes Varela. A crítica a este modo de ver já foi feita no ponto anterior.

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2. Menezes Cordeiro defende a natureza sui generis do direito de superfície, numa posição sem dúvida próxima da que defendemos. No entanto, a inclusão do implante no objeto da superfície tira clareza a esta posição. 3. Carvalho Fernandes também se exprime a favor da superfície como direito real a se, mas logo a seguir clarifica próximo da propriedade, o que de todo pode merecer a nossa concordância. Os poderes do superficiário sobre o implante não justificam esta construção, porquanto sobre esse objeto recai um direito de propriedade distinto do direito de superfície. 4. Seria, todavia, Mota Pinto a surpreender de perto a diferente natureza do direito real que incide sobre o solo e sobre a obra ou plantação. O primeiro, que permite construir e manter obra ou plantação sobre ou sob o solo alheio, é o direito de superfície; o segundo é uma propriedade; são, pois, dois direitos de natureza diferente. O direito de superfície constitui um direito real autónomo in re aliena.

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Secção V – O direito de superfície

Generalidades: nos termos do artigo 1524.º CC, a superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações. Esta definição não cobre, no entanto, toda a realidade abrangida pelo direito de superfície. Efetivamente, a superfície pode abranger quer obras no subsolo (artigo 1525.º, n.º2 CC), quer o direito de construir sobre edifício alheio (artigo 1526.º CC), e pode igualmente resultar da alienação separada das árvores em relação à propriedade do solo (artigo 1528.º CC), sendo que estes casos dificilmente se adequam à definição legal de superfície. A definição legal expressa, no entanto, uma configuração específica da superfície que é o facto de ela se poder subdividir em duas fases distintas:

1. O poder de realizar a obra ou a plantação; e 2. O poder de as manter no terreno ou no edifício alheio, sem sujeição às regras da acessão. Evolução histórica do direito de superfície: de acordo com a visão romana da propriedade, todo o elemento imobilizado que se encontrasse dentro dos limites verticais de um prédio deveria pertencer a um só proprietário. Não se admitia, assim, que uma coisa implantada no chão pertencesse a pessoa diversa do proprietário, pelo que ocorrendo qualquer implante, a regra da acessão determinava que esse implante deveria passar a pertencer ao proprietário (superficies solo cedit). Já o princípio germânico era de sentido oposto (solum cedit superficiei). Ocorreram, no entanto, razões de ordem prática social que levaram a que, ainda no Direito Romano, se viesse a admitir que terrenos públicos em cidades viessem a ser concedidos a particulares para neles procederem à edificação de lojas ou albergues. O ente público não abdicava, no entanto, neste caso da sua propriedade, recebendo, como contrapartida da concessão, uma renda periódica, normalmente anual, a pensio ou solarium, sendo essa figura que estaria na origem da superfície, sendo concedidos ao superficiário o interdictum de superficiebus e o interdictum uti possidetis, por forma a tutelar a afetação material de que ele gozava. É apenas no Direito justinianeu que a superfície vem a ganhar autonomia como direito real, uma vez que, a par do desaparecimento da obrigação de pagar o solarium periódico, admitiu-se a possibilidade de constituir o direito de superfície a título perpétuo, com o simples pagamento de uma prestação inicial. Esta conceção mantém-se durante a Idade Média, mas vem a ser ferozmente combatida no Código de Napoleão, que considerou a existência de direitos reais vigente na época. Por esse motivo, o Código de Seabra apenas admitia a existência de árvores em terreno próprio, situação que, aliás, procurava eliminar. A superfície viria a ser, no entanto, prevista em Códigos posteriores, como o Código Civil italiano. É por esse motivo que a superfície seria apenas regulada entre nós pela Lei n.º2030 de 22 junho 1948. Essa lei instituía uma figura especial de direito de superfície, a qual definia como o direito real que consiste na faculdade de implantar e manter edifício em chão alheio, sem aplicação das regras da acessão imobiliária, considerando-o uma forma de propriedade imperfeita, sujeita a registo. No entanto, o mesmo diploma reservava esse direito aos prédios do domínio privado do Estado, autarquias locais ou pessoas coletivas de utilidade pública administrativa. Posteriormente, o Código Civil de 1966 generalizou o direito de superfície a quaisquer prédios (artigos 1524.º e seguintes CC), passando, após o Decreto-Lei n.º257/91, 18 julho,, o direito de superfície a poder também abranger a construção de uma obra sobre solo alheio. Mas como o artigo 1527.º CC submeteu a legislação especial o direito de superfície constituído por Estado e por outras pessoas coletivas públicas em terrenos do seu domínio privado, tal significa que se manteve em vigor nesta sede a Lei 2030, 22 junho 2948. O direito de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão superfície nela previsto constitui, assim, hoje um tipo autónomo de superfície, sujeito apenas subsidiariamente às disposições do Código Civil. Este tipo contém ainda um sub-tipo: o direito de superfície previsto no artigo 30.º Lei dos Solos (Lei n.º31/3014, 30 maio). Dispõe esta norma que o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais podem constituir o direito de superfície sobre bens imóveis integrantes do seu domínio privado para a prossecução de finalidades de política pública de solos, nos termos da lei, sendo o direito de superfície constituído a título oneroso. Constitui este instrumento da política pública de solos (artigo 26.º Lei dos Solos), a que a administração pode recorrer para satisfação dos fins previstos no artigo 2.º Lei dos Solos.

Objeto do direito de superfície: o direito de superfície, enquanto se limita às faculdades de construção e plantação, incide essencialmente sobre o solo alheio, permitindo a sua transformação, em ordem a torna-lo idóneo a receber a construção e a plantação. O direito de superfície pode ainda abranger uma parte do solo não necessária à sua implantação, desde que ela tenha utilidade para o uso da obra (artigo 1525.º, n.º1 CC). A mesma situação ocorre caso o direito incida sobre a transformação do solo necessária à construção da obra no subsolo (artigo 1525.º, n.º2 CC). Da mesma forma, no caso do direito de sobreelevação, o direito de superfície incide sobre a parte do edifício necessária à sua elevação (artigo 1526.º CC). Após a realização da obra e plantação, estando a mesma incorporada no solo, o direito de superfície passa a incidir autonomamente sobre o implante, que não é adquirido pelo proprietário por acessão, sendo antes as faculdades de gozo exclusivo do implante atribuídas ao superficiário. Neste caso, uma vez que a superfície funciona como derrogação às regras da acessão, apenas os implantes que pudessem desencadear a acessão industrial imobiliária (artigos 1339.º e seguintes CC) poderão ser objeto do direito do superficiário. Haverá que distinguir a superfície que incide sobre obras (superfície edificada) da superfície que incide sobre plantações (superfície vegetal). Em relação às obras, a superfície não tem que implicar necessariamente a constituição de um prédio urbano, podendo ser uma construção de outra natureza, desde que tenha a autonomia suficiente para poder ser objeto das servidões ativas previstas no artigo 1529.º CC. Já em relação às plantações, o confronto com o regime da acessão, mostra que o objeto da superfície não podem ser sementeiras, mas apenas a introdução de árvores, arbustos, ou plantas em solo alheio, podendo a superfície abranger mesmo uma única árvore. Tem-se entendido, no entanto, que, para se poder constituir a superfície, se exige uma certa perenidade das plantas, não podendo as mesmas terem duração efémera, sazonal ou anual. Para além disso, a superfície só terá conteúdo económico se alterar a capacidade produtiva do prédio, pois se estiver em causa uma exploração nos mesmos termos em que vinha sendo realizada, o mais adequado será a celebração e contratos de arrendamento rural ou florestal.

Duração do direito de superfície: a lei admite a possibilidade de a superfície ser temporária ou perpétua. A opção por qualquer das modalidades resulta naturalmente do título constitutivo. Sendo temporária, a superfície extingue-se por decurso do prazo (artigo 1536.º, alínea c) CC), dando-se a reversão para o proprietário do solo (artigo 1538.º, n.º1 CC). A Lei n.º2030 admite, no seu artigo 28.º, n.º2, a possibilidade de prorrogação, uma ou mais vezes, e por tempo não inferior a vinte anos.

Constituição do direito de superfície: nos termos do artigo 1528.º CC, o direito de superfície pode ser constituído por:

1. Contrato: o direito de superfície pode ser constituído por contrato, nos termos gerais, sempre que o proprietário do solo atribua a outrem o direito de construir ou realizar plantações no seu terreno. O contrato constitutivo do direito de superfície deve revestir

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a forma de escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos do artigo 22.º, alínea a) Decreto-Lei n.º116/2008, estando sujeito a registo, nos termos do artigo 2.º, n.º1, alínea a) CRPr. 2. Testamento: o direito de superfície pode igualmente ser constituído por testamento, sempre que o testador decida instituir um legado, atribuindo a outrem o direito de realizar construções ou plantações em terreno constante do acervo hereditário. Nesse caso, terá que ser naturalmente observada a forma dos testamentos (artigos 2204.º e seguintes CC). 3. Usucapião: a lei refere igualmente a possibilidade de a superfície se constituir por usucapião, ainda que esse ponto seja objeto de controvérsia. a. Para Carvalho Fernandes o direito de realizar a construção ou as plantações não se pode adquirir por usucapião, uma vez que não é fácil configurar uma situação de posse que revista a forma correspondente à faculdade de fazer uma construção ou uma plantação em solo alheio. A usucapião seria, assim, apenas possível em caso de exercício de uma posse sobre a obra ou plantações já existentes, bastando para isso que o possuidor não estenda a sua posse em relação ao solo. b. Pensamos ser uma posição excessiva. É teoricamente possível o exercício de poderes sobre o solo correspondentes às faculdades de construção ou plantação, ainda antes de as mesmas estarem realizadas. Logo que essas faculdades comecem a ser exercidas, iniciar-se-á o prazo para a usucapião do direito de superfície, muito antes da realização da obra ou das plantações. 4. Alienação da obra ou da plantação separadamente da propriedade do solo: há ainda um caso particular de constituição do direito de superfície, que consiste na alienação da obra ou plantação separadamente da propriedade do solo. Efetivamente, o proprietário tem a possibilidade de alienar autonomamente o solo e os implantes que nele existam. Pode assim alienar a terceiro a obra ou plantação, ficando com a propriedade do solo, ou alienar o solo, conservando a propriedade da obra ou plantação, e também pode alienálos separadamente a pessoas distintas. Neste caso, em virtude dessa alienação, dá-se automaticamente a constituição de um direito de superfície a favor do adquirente do implante, independentemente de qualquer declaração negocial nesse sentido. A alienação da obra ou árvores separadamente da propriedade do solo é sujeita a escritura pública ou documento particular autenticado (artigo 22.º, alínea a) Decreto-Lei n.º116/2008), atenta a sua natureza imobiliária, uma vez que, mesmo em relação às árvores, embora sejam objeto de alienação separada, permanecem ligadas ao solo (artigo 204.º, n.º1, alínea c) CC). A constituição do direito de superfície daí resultante está naturalmente sujeita a registo, o qual pode ser realizado apenas em virtude desse negócio transmissivo do implante (artigo 2.º, n.º1, alínea a) CRPr).

Poderes e direitos do superficiário: ao superficiário, são atribuídos os seguintes poderes e direitos:

1. Poder de construir ou plantar em terreno alheio: o primeiro poder atribuído ao superficiário é o poder de construir ou de plantar em terreno alheio, o qual corresponde a um poder de transformação do solo ou do subsolo alheios. Esse poder sofre, no entanto, uma limitação temporal pois se a construção ou a plantação não forem realizadas nos prazos estipulados ou, na falta de estipulação, no prazo de dez anos, ocorre a extinção do direito de superfície (artigo 1536.º, n.º1, alínea a) CC). Não é

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essencial à superfície que seja inicialmente exercido o poder de construção ou plantar em solo alheio, uma vez que a constituição da superfície pode resultar da alienação da obra ou árvores já existentes separadamente da propriedade do solo (artigo 1528.º, in fine CC). Neste caso, a superfície limitar-se-á à manutenção da obra ou árvores existentes. No entanto, o poder de construção ou plantação não deixa de subsistir, podendo vir a ser novamente exercido em caos de destruição da obra ou das plantações existentes (artigo 1536.º, n.º1, alínea b) CC). Tal só será excluído se vier a ser estipulada no título constitutivo a extinção da superfície em resultado da verificação desses factos (artigo 1536.º, n.º2 CC). Poder de manterá construção ou plantação em terreno alheio: uma vez realizada a construção ou a plantação, o superficiário adquire o direito de as manter, sendo considerado como seu titular, sem sujeição às regras da acessão, não podendo assim o proprietário adquirir ou reivindicar o implante, apesar de ele se encontrar incorporado no seu terreno. Pelo contrário, o superficiário pode reivindicar o implante, caso este venha a ser objeto de esbulho pelo fundeiro. O poder de manutenção da obra ou plantação em terreno alheio é assim essencial à superfície, impedindo a aquisição do implante por parte do proprietário do solo. Constituição das servidões necessárias ao exercício do direito de superfície: naturalmente que o direito de superfície, quer esteja em causa inicialmente a transformação do solo, quer posteriormente o aproveitamento do implante, não pode ser exercido sem que sejam obtidas utilidades através do solo do fundeiro, como a passagem ou a condução de água. Em consequência, nos termos do artigo 1529.º, n.º1 CC, a constituição do direito de superfície importa a constituição das servidões necessárias ao uso e fruição da obra ou das árvores. Se no título não forem designadas o local e as demais condições de exercício das servidões, estas serão fixadas, na falta de acordo, pelo tribunal. A constituição das servidões ocorre, em princípio, apenas sobre o terreno pertença do fundeiro. Em relação a prédio de terceiro, o artigo 1529.º, n.º2 CC, estabelece que só é admitida a constituição coerciva da servidão de passagem se, à data da constituição do direito de superfície, já era encravado o prédio sobre que este direito recaía. Uso e fruição dos bens implantados: o uso e fruição dos bens implantados pertencem naturalmente ao superficiário (artigo 1529.º CC). O superficiário pode assim exercer neste âmbito sobre o implante os mesmos poderes de gozo que competem ao proprietário. No entanto, para além das restrições que resultam das relações de vizinhança (artigos 1346.º e seguintes CC), não pode prejudicar o uso e fruição do subsolo pelo proprietário (artigo 1533.º CC), ou inversamente do solo quando a superfície incida antes sobre o subsolo. Disposição do direito de superfície: nos termos do artigo 1534.º CC, o direito de superfície é livremente transmissível por vida ou por morte, tendo assim o superficiário poderes de alienação do seu direito. Naturalmente que pode também onerar o seu direito, através da constituição de direitos reais de gozo ou de garantia sobre o mesmo (artigo 1539.º CC), prevendo expressamente o artigo 688.º, n.º1, alínea e) CC a hipoteca do direito de superfície. Indemnização em caso de aquisição do implante por outrem: outro importante direito do superficiário é a indemnização em caso de aquisição do implante por outrem. Esta situação encontra-se prevista, salvo estipulação em contrário, para a hipótese de o proprietário adquirir a obra ou as árvores no fim do prazo da superfície, sendo a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão indemnização correspondente ao enriquecimento sem causa (artigo 1538.º, n.º2 CC). Essa indemnização é igualmente atribuída em caso de expropriação (artigo 1542.º CC).

Poderes e direitos do proprietário do solo: por sua vez, o proprietário do solo tem os seguintes poderes ou direitos:

1. Uso e fruição da superfície, antes de o superficiário proceder ao implante: o fundeiro tem, em primeiro lugar, os poderes de uso e fruição da superfície, antes de o superficiário proceder ao implante. Efetivamente, resulta do artigo 1532.º CC que enquanto não se iniciar a construção da obra, ou não se fizer a plantação das árvores, o uso e a fruição da superfície pertencem ao proprietário do solo, que conserva assim os poderes de uso e fruição correspondentes à propriedade. A lei veda, no entanto, que o fundeiro possa impedir ou tornar mais onerosa a construção ou plantação (artigo 1532.º, in fine CC), estabelecendo assim um limite ao seu uso e fruição imposto pela necessidade de tutela do direito do superficiário. Tal demonstra que a constituição do direito de superfície onera imediatamente a propriedade do solo, mesmo antes de ter sido realizada qualquer construção ou plantação. 2. Uso e fruição do subsolo, ou do solo no caso de a superfície incidir sobre aquele: mesmo após a construção do implante, o artigo 1533.º CC estabelece que o uso e a fruição do subsolo continuam a pertencer ao fundeiro, o que se compreende uma vez que o direito do superficiário apenas incide sobre a superfície. Há que salientar, no entanto, que desde a alteração do artigo 1525.º, n.º2 CC pelo Decreto-Lei n.º 257/91, 18 julho, o direito de superfície passou a poder ter igualmente uma obra no subsolo. Nesta hipótese, é manifesto que o fundeiro perde os poderes de uso e fruição do subsolo, mantendo, no entanto, os poderes de uso e fruição do solo. Embora o fundeiro conserve esses poderes, os mesmos não podem ser exercidos por forma a causar prejuízos ao superficiário, respondendo o fundeiro objetivamente pelos danos que causar ao superficiário em consequência da exploração que fizer do subsolo, ou do solo quando a superfície incide antes sobre aquele (artigo 1533.º, in fine CC). 3. Disposição do direito: o fundeiro tem, igualmente, poderes de disposição do seu direito sobre o solo, podendo livremente transmiti-lo por ato entre vivos ou por morte (artigo 1534.º CC),, bem como proceder à sua oneração. 4. Direito ao cânon superficiário: outro direito do fundeiro é aquele que respeita ao cânon superficiário. Efetivamente, o artigo 1530.º, n.º1 CC admite que no ato da constituição do direito de superfície possa convencionar-se que o superficiário pague ao proprietário uma única prestação ou pague certa prestação anual, perpétua ou temporária. O pagamento dessa prestação anual pode ser temporário, ainda que o direito de superfície seja perpétuo (artigo 1530.º, n.º2 CC). Essa prestação tem a natureza de obrigação propter rem, pelo que se transmite para quem adquira o direito de superfície. O seu objeto é sempre em dinheiro (artigo 1530.º, n.º3 CC), correspondendo, portanto, a uma obrigação pecuniária. O artigo 1531.º CC remete o regime desta obrigação para o disposto nos artigos 1505.º e 1506.º CC, disposições que se referem à enfiteuse, hoje abolida, mas cujo conteúdo se mantém em vigor no quadro específico da superfície. Assim, em relação ao lugar do pagamento do cânon superficiário, ele corresponde ao que tiver sido convencionado pelas partes (artigo 1505.º, n.º1 CC). Na falta de convenção, o cânon é pago na residência do fundeiro, se este morar no concelho da situação do prédio ou no da residência do superficiário, ou no domicílio do seu representante, se o fundeiro tiver em algum desses concelhos quem o represente para esse efeito. Em qualquer outro

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão caso, o cânon é pago na residência do superficiário (artigo 1505.º, n.º2 CC). Em relação ao tempo do cumprimento, vigora igualmente o que for convencionado pelas partes (artigo 1505.º, n.º1 CC). Na falta de convenção, o pagamento deve ser realizado no fim de cada ano, contado desde a data da constituição da superfície (artigo 1505.º, n.º3 CC). Havendo mora no cumprimento, o proprietário do solo tem o direito de exigir o triplo das prestações em dívida (artigo 1531.º, n.º2 CC). Sendo dois ou mais os fundeiros ou os superficiários, é aplicável ao pagamento do cânon superficiário o regime das obrigações solidárias, enquanto durar a comunhão (artigo 1506.º CC). No caso de falta de pagamento das prestações anuais durante vinte anos, verifica-se a extinção da obrigação de os pagar, mas o superficiário não adquire a propriedade do solo, salvo se tiver havido usucapião em seu beneficio (artigo 1537.º, n.º1 CC). A falta de pagamento dessas prestações é sujeita às regras da prescrição (artigo 1537.º, n.º2 CC). 5. Direito de aquisição do implante, caso a superfície tenha sido constituída temporariamente: outro direito atribuído ao fundeiro, nos termos do artigo 1538.º, n.º1 CC, é o direito de aquisição do implante sempre que a superfície tenha sido constituída por certo tempo. Efetivamente, neste caso o decurso do prazo extingue o direito de superfície (artigo 1536.º, n.º1, alínea c) CC), pelo que o proprietário do solo adquire a propriedade da obra ou das árvores. A lei determina que, salvo estipulação em contrário, o superficiário adquire nesse caso direito a uma indemnização, calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1538.º, n.º2 CC). Não havendo lugar a indemnização, o superficiário responde pelas deteriorações da obra ou das plantações, quando haja culpa da sua parte (artigo 1538.º, n.º3 CC). 6. Direito de preferência na venda ou dação em cumprimento do direito de superfície: outro direito reconhecido ao fundeiro é o direito de preferência, em último lugar, na venda ou dação em cumprimento do direito de superfície (artigo 1535.º, n.º1 CC). Visando este direito de preferência permitir a reunião da superfície com a propriedade do solo, é manifesto que o mesmo é atribuído em qualquer alienação do direito de superfície, estejam ou não a plantação já realizadas. O direito de preferência do fundeiro é, como todas as preferências legais, dotado de eficácia real, legitimando assim o recurso à ação de preferência (artigos 1535.º, n.º2 e 1410.º CC).

Extinção da propriedade: 1. Causas de extinção da superfície: nos termos do artigo 1536.º, n.º1 CC, o direito de superfície pode extinguir-se pelas seguintes causas: a. Não realização da obra ou plantação no prazo fixado ou, na falta de fixação, no prazo de dez anos: o artigo 1536.º, n.º1, alínea a) CC estabelece a extinção do direito de superfície em caso de não realização da obra ou da plantação no prazo convencionado, ou na falta de fixação, no prazo de dez anos. Uma vez que o poder de realização da obra ou plantação se integra no conteúdo do direito de superfície, este constitui um caso particular de extinção do direito em resultado do não exercício de uma das faculdades que o constituem. Podemos configurar assim esta situação como um caso de não uso do direito de superfície (artigo 298.º, n.º3 CC). No entanto, ao contrário do que a lei habitualmente prevê para o não uso, em que a extinção do direito real se rege pelas regras da caducidade (artigo 298.º, n.º3 CC), a extinção da superfície pela falta de conclusão da obra ou da plantação no prazo fixado é regulada pelas regras da prescrição (artigo 1537.º, n.º1 CC), o que implica a necessidade da sua inovação (artigo 303.º CC),

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bem como a possibilidade de suspensão do respetivo prazo (artigos 318.º e seguintes CC) ou da sua interrupção (artigos 323.º e seguintes CC). Não reconstrução da obra ou não renovação da plantação dentro dos mesmos prazos, após a sua destruição: o artigo 1536.º, n.º1, alínea b) CC prevê ainda a extinção do direito de superfície se, destruída a obra ou as árvores, o superficiário não reconstruir a obra, ou não renovar a plantação dentro dos mesmos prazos a contar da destruição. Esta causa de extinção verifica-se após a destruição da obra ou das plantações realizadas, mas tal não constitui um facto extintivo do direito de superfície, a menos que tal seja expressamente convencionado (artigo 1536.º, n.º2 CC). O que extingue o direito de superfície é a não reconstrução da obra ou a não renovação da plantação dentro dos prazos inicialmente concedidos para a sua realização. Está-se assim aqui igualmente perante uma extinção por não uso do direito de superfície (artigo 298.º, n.º3 C), neste caso, em virtude do não exercício por um certo lapso de tempo da faculdade de manter obra ou plantação em solo alheio. A extinção da superfície pela não reconstrução da obra ou não renovação da plantação dentro desse prazo é igualmente regulada pelas regras da prescrição (artigo 1537.º, n.º1 CC), o que, conforme se referiu, implica a necessidade de invocação (artigo 303.º CC), bem como as possibilidades de suspensão (artigos 318.º e seguintes CC) ou interrupção do respetivo prazo (artigos 323.º e seguintes CC). Decurso do prazo, sendo constituída por certo prazo: o direito de superfície pode igualmente extinguir-se no termo do prazo, caso ela seja constituída por certo tempo (artigo 1536.º, n.º1, alínea c) CC). Ao contrário do que vimos suceder nas hipóteses anteriores, o decurso do prazo é regulado pelas regras da caducidade e não pelas da prescrição (artigo 298.º, n.º2 CC). Reunião na mesma pessoa do direito de superfície e do direito de propriedade: outra forma de extinção do direito de superfície é a reunião na mesma pessoa do direito de superfície e do direito de propriedade (artigo 1536.º, n.º1, alínea d) CC), o que corresponde à aplicação do regime geral da confusão como causa de extinção dos direitos reais. Desaparecimento ou inutilização do solo: o desaparecimento ou inutilização do solo constitui igualmente uma causa de extinção do direito de superfície (artigo 1536.º, n.º1, alínea e) CC) a qual se enquadra na causa genérica de extinção dos direitos reais em virtude da impossibilidade de exercício do direito. Salienta-se, neste caso, que, embora o direito de superfície não incida sobre o solo, a subsistência e a aptidão do terreno para a construção ou plantação são essenciais para o exercício do direito de superfície. Assim, se o solo desaparecer ou se inutilizar, por exemplo por ação das águas, naturalmente que o direito de superfície se extingue por impossibilidade de ser exercido. Expropriação por utilidade pública: a expropriação por utilidade pública constitui igualmente uma causa de extinção do direito de superfície (artigo 1536.º, n.º1, alínea f) CC), como é regra nos direitos reais. A lei esclarece que nesse caso cabe a cada um dos titulares a parte da indemnização que corresponder ao valor do respetivo direito (artigo 1542.º CC). Destruição da obra ou das árvores ou verificação de qualquer outra condição resolutiva, caso a mesma tenha sido estipulada no título constitutivo: a lei admite, ainda, no artigo 1536.º, n.º2 CC, a possibilidade de o título constitutivo estabelecer a extinção da superfície em caso de destruição da obra ou das 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão árvores, ou da verificação de qualquer outra condição resolutiva que tenha sido estipulada. No primeiro caso, a destruição da obra ou da árvores extingue o direito de superfície, sem que o superficiário adquira a faculdade de realizar nova construção ou renovar a plantação, ao contrário do que se prevê no artigo 1536.º, n.º1, alínea b) CC. No segundo caso, a verificação da condição resolutiva que tenha sido estipulada extingue igualmente o direito de superfície. 2. Regime da extinção da superfície: em relação ao regime da extinção da superfície, há que distinguir consoante o direito de superfície tenha sido constituído como perpétuo ou como temporário e, neste último caso, se a extinção ocorre no fim do respetivo prazo ou antes da verificação deste. Em caso de extinção do direito de superfície perpétuo os direitos reais constituídos sobre a superfície ou sobre o solo continuam a onerar separadamente as duas parcelas, como se não tivesse havido extinção. O mesmo regime é aplicável no caso de extinção do direito de superfície temporário antes do respetivo prazo, sem prejuízo dos efeitos normais associados ao termo do prazo (artigo 1541.º CC). Esta solução é explicável em virtude das legítimas expectativas dos titulares desses direitos, que contavam com a perpetuidade da superfície ou, pelo menos, com a duração do seu prazo normal. Extinguindo-se o direito de superfície temporário pelo decurso do prazo, o proprietário do solo adquire o direito de propriedade sobre a obra e as árvores (artigo 1538.º, n.º1 CC). O superficiário tem, porém, nesse caso, o direito a uma indemnização pelo incremento de valor recebido pelo proprietário, nos termos do enriquecimento sem causa, a menos que tenha sido estipulado o contrário (artigo 1538.º, n.º2 CC). Não havendo lugar a indemnização, o superficiário responde pelas deteriorações da obra ou das plantações, quando haja culpa da sua parte (artigo 1538.º, n.º3 CC). Em virtude da extinção da superfície pelo decurso do prazo, e por força da elasticidade dos direitos reais, os direitos constituídos pelo proprietário sobre o solo estendem-se à obra e às árvores adquiridas (artigo 1540.º CC). Em consequência, extinguem-se os direitos reais de gozo e de garantia constituídos pelo superficiário em benefício de terceiro (artigo 1539.º, n.º1 CC). Se, no entanto, o superficiário receber alguma indemnização pela extinção do seu direito, esses direitos transferem-se para a indemnização (artigos 1539.º, n.º2, 1480.º, n.º2 e 692.º, n.º3 CC).

Um tipo especial de direito de superfície: o direito de sobreelevação: constitui um tipo especial de direito de superfície o direito de sobreelevação, que, na prática, é, por vezes designado como venda do prédio, com reserva do espaço aéreo. Este direito vem referido no artigo 1526.º CC e afasta-se do regime geral da superfície, quer quanto ao objeto (edifício alheio), quer quanto ao seu conteúdo (limitado ao poder de construir sobre ele). O afastamento do regime comum da superfície é muito acentuado, uma vez que o direito de sobreelevação não incide sobre um terreno, mas antes sobre um edifício, não sendo assim atribuídos ao superficiário quaisquer poderes de transformação do solo. Por outro lado, o conteúdo do direito limita-se à faculdade de construir, não abrangendo a faculdade de manter a construção sobre o edifício alheio, uma vez que, levantando o edifício, a construção passa a ser considerada como fração ou frações autónomas do mesmo, adquirindo assim o construtor um direito de propriedade horizontal, sendo considerado um condómino dessa ou dessas frações. A superfície extingue-se consequentemente com a nova construção, surgindo a partir daí um direito de propriedade horizontal, atribuindo-se igualmente ao construtor um direito sobre as partes comuns do prédio (artigo 1421.º CC) para evitar que fossem defraudadas as regras desse instituto. O construtor acaba assim por adquirir uma comunhão no solo, devido a este ser considerado comum (artigo 1421.º, n.º1, alínea a) CC), ao contrário do que sucede no direito de superfície. 大象城堡

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Natureza do direito de superfície: também em relação à superfície existe o debate entre várias teorias, podendo-se apontar as seguintes:

1. A teoria do desmembramento: na superfície passam a existir dois direitos de propriedade, um sobre o solo e outro sob o implante. Essa posição foi defendida entre nós por Pires de Lima/Antunes Varela e por Oliveira Ascensão. Para estes autores, o direito de superfície não seria assim um direito sobre coisa alheia, incidindo antes sobre coisa própria, o implante, que permanece em terreno ou prédio alheio, sem sujeição às regras da acessão. Deveria falar-se assim em propriedade superficiária, o que explicaria a possibilidade de a superfície ser perpétua. O facto de ela também ser temporária, não seria obstáculo à qualificação, uma vez que esta pode ocorrer nos casos previstos na lei (artigo 1307.º, n.º2 CC), como acontece também na substituição fideicomissária (artigos 2286.º e seguintes CC). 2. A teoria do direito real de gozo autónomo: a superfície seria um direito real menor que comprimia a propriedade do solo. Esta tese é defendida entre nós por Menezes Cordeiro, para quem o direito de superfície não se pode considerar como um direito de propriedade, uma vez que não é um direito exclusivo, dado que coexiste com o direito do proprietário do solo, nem um direito pleno, uma vez que não atribui uma permissão normativa geral relativa à coisa, mas apenas as faculdades de construir, plantar, e de manter as construções e plantações realizadas. Tratar-se-ia assim de um direito real complexo, onde se incluem faculdades que noutros tipos legais a lei autonomiza como direitos reais. 3. A teoria dualista: distingue entre as faculdades de construção e plantação, e o direito incidente sobre as construções e plantações uma vez realizadas, que considera corresponderem a dois direitos distintos, de natureza diferente. Esta conceção foi defendida, em primeiro lugar, por Mota Pinto, que sustenta que a existência na superfície tanto de um direito real autónomo, abrangendo a faculdade de construção ou plantação sobre solo alheio (concessão ad plantandum ou ad aedificandum), como de uma verdadeira propriedade, que incidiria sobre a construção e as plantações após a sua realização. O legislador integraria ambas as situações no direito de superfície, embora este só devesse abranger o direito de construir (ou plantar), uma vez que a construção (ou plantação), constitui antes uma propriedade que não abrange o solo. Também Carvalho Fernandes atribui ao direito de superfície uma configuração dualista, mas em termos distintos, considerando as faculdades de construção e plantação como um direito real de aquisição, enquanto que o direito sobre a obra ou plantações realizadas corresponderia a um direito real de gozo autónomo, que não seria de propriedade por não ser exclusivo, pois não poderia ser concedido sem a propriedade do fundeiro, que possui mesmo direito de preferência na alienação do implante. A teoria dualista não nos parece correta, uma vez que quebra a unidade do direito de superfície. Ora, o direito é sempre o mesmo, quer quando abrange as faculdades de construção e plantação, quer quando incide sobre as construções e plantações já realizadas. Na verdade, o objeto do direito reconduz-se à incorporação de um implante em solo alheio, sem sujeição às regras da acessão, abrangendo assim quer a faculdade de transformação do solo, quer as faculdades relativas ao gozo do implante. Só que, uma vez realizado o implante, a faculdade de transformação do solo não desaparece, podendo voltar a ser exercida, em caso de destruição do implante (artigo 1536.º, n.º1, alínea b) CC). Não faz, por isso, sentido qualificar o poder de construir ou plantar como um direito real autónomo, designadamente um direito real de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão aquisição. Trata-se antes de uma faculdade que se integra tanto na superfície como as faculdades relativas ao gozo do implante. Também não nos parece que a superfície possa ser qualificada como um direito de propriedade, já que, embora o superficiário adquira uma faculdade de gozo exclusiva de gozo do implante, a sua relação com a propriedade do solo não é uma mera relação de vizinhança, mas antes corresponde às relações de um direito real menor com o direito real maior. Efetivamente, a superfície atribui apenas o direito a uma parte do imóvel, mantendo o proprietário do solo direitos sobre o implante, para além da obrigação propter rem relativa ao cânone superficiário (artigos 1511.º e seguintes CC), como o direito de preferência (artigo 1535.º CC) e a expectativa de aquisição do implante no fim do prazo (artigo 1538.º CC). Por estas razões, damos a nossa adesão à tese do direito real de gozo autónomo.

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Capítulo XIV – O direito de servidão A origem histórica das servidões prediais: tal como os outros direitos reais, as servidões prediais tiveram os seus antecedentes históricos no Direito Romano e são decerto os mais antigos direitos reais sobre coisa alheia. No Direito Romano antigo, pré-clássico e clássico, as servidões eram direitos prediais (iura prediorum). Por ato voluntário dos proprietários, um prédio ficava como que ao serviço de um outro (servitus, de servire), sujeito a ele no aproveitamento de uma dada utilidade. Ela não visava satisfazer uma necessidade do proprietário circunstancial do prédio, mas devia beneficiar objetivamente o prédio. Por outro lado, não se admitiam utilidades temporárias ou provisórias. A servidão satisfazia uma necessidade permanente. O prédio que beneficiava da servidão dizia-se dominante; para o prédio sujeito à servidão, prédio serviente na linguagem moderna, parece que não havia uma designação específica. A servidão impunha um gravame ao prédio serviente a favor do prédio dominante, fosse quem fosse o proprietário de cada um deles. A mudança da posição subjetiva de um dos proprietários não afetava a servitus, que permanecia apesar das mudanças na propriedade no prédio dominante ou serviente. Com Justiniano, porém, dá-se o alargamento originário destes direitos de modo a abarcar as denominadas servidões pessoais, incluindo o usufruto, o uso e a habitação. O conceito clássico de servitus sofre uma modificação. Passam a distinguir-se, assim, as servidões pessoais (servitutes personarum) e as servidões prediais (servidutes prediorum). Estas últimas, por sua vez, podiam ser rústicas (servitutes praediorum rusticorum) ou urbanas (servitutes praediorum urbanorum). O Direito Romano bizantino trouxe, por conseguinte, uma profunda remodelação do instituto das servidões, tal como era conformado no Direito clássico, retirando-o dos limites estreitos da relação de vizinhança entre proprietários de prédios vizinhos para abranger praticamente todos os direitos reais de gozo, com exceção naturalmente da propriedade. Bonfante explica que a servidão típica originária, a servidão predial, implicava uma faculdade limitada do uso da coisa, sem tolher ao proprietário o uso da coisa, sequer na parte afetada pela servidão. A servidão pessoal, contrariamente, com um escopo assistencial, em regra vitalício, arrastava a privação do aproveitamento da coisa pelo proprietário na parte afetada pelo conteúdo do direito de servidão. Nenhuma dúvida se coloca que no Direito Romano a servidão constituía uma modalidade de ius in re aliena. Ela apresentava-se como m encargo sobre um prédio alheio. A servidão podia ser positiva (afirmativa) ou negativa. A primeira impunha uma obrigação de pati ao proprietário do prédio serviente, que tinha de tolerar a atuação do proprietário do prédio dominante sobre a sua coisa, por exemplo, a passagem ou a derivação de água. A servidão negativa, diferentemente, impunha um non facere; o proprietário do prédio serviente ficava obrigado a não fazer algo que o conteúdo do seu direito lhe permitiria fazer não fosse a servidão, por exemplo, construir. Contrariamente ao que sucede no Direito atual, no Direito Romano, as servidões eram típicas. Não havia um tipo geral de servidão, que servisse de base à constituição de qualquer servidão, mas tipos de servidão. Ou seja, o sistema romano era um sistema de tipicidade de servidões. Isso não impedia que a atividade das instâncias romanas, particularmente, do Pretor, abrisse as portas a novas servitutes de acordo com as necessidades sociais; o que manteve na prática um sistema aberto e não fechado sobre si mesmo. A prática romana permitiu aos intérpretes identificar princípios fundamentais do Direito Romano em matéria de servidões, embora na quase totalidade venham afirmados para algum tipo de servidão em concreto. Alguns desses princípios transcendem o campo específico das servidões e constituem verdadeiros princípios gerais de Direitos Reais, com validade ainda para o sistema normativo atual. 大象城堡

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1. Nemimi res sua servit: esta regra enuncia a impossibilidade do proprietário constituir

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uma servidão sobre coisa sua ou, o que vai dar ao mesmo, a servidão requer que sejam diferentes os proprietários dos prédios servientes e dominante: nulli res sua servit. Servitus in faciendo consistere nequit: este princípio já foi analisado a propósito da temática das obrigações propter rem e dos ónus reais. Para o Direito Romano era claro que a obrigação do proprietário do prédio serviente só podia ser negativa, consistindo num pati ou num non facere. Obrigações positivas não podem ser objeto de direitos reais, pois são direitos in personam e não in rem. Não são, assim, admissíveis direitos reais in faciendo. Vizinhança dos dois prédios: outro princípio do regime das servitutes é o de que estas só podem ser constituídas entre prédios vizinhos. A relação de vizinhança não é, no entanto, entendida como contiguidade, bastando uma proximidade espacial, o que torna particularmente difícil a fixação de um limite. Há quem ultrapasse esta dificuldade pretendendo que a utilidade ao prédio dominante sobrelevava a distância física entre os prédios. Deste modo, podia haver um ou mais prédios de permeio entre o prédio serviente e dominante. Em algumas servidões, como as servidões de aqueduto, a constituição não era possível se houvesse entre os dois prédios uma via pública; já na servidão de passagem este facto não era impeditivo. Servitus fundo utilis esse debet: no Direito Romano a servidão só podia ser validamente constituída enquanto representasse uma utilidade para o prédio dominante. A utilidade era apreciada objetivamente, portanto, com independência da conveniência pessoal do proprietário de momento. A servidão cessava quando a coisa deixasse de ser útil ao prédio para o ser somente à pessoa do proprietário. Se a utilidade se liga a uma pessoa e não ao prédio a relação não tem a natureza de uma servidão, mas sim de uma obrigação, valendo, por conseguinte, no estrito âmbito das partes, sem se transmitir aos terceiros adquirentes da propriedade dos prédios em causa. Permanência da utilidade: este princípio encontra-se de algum modo ligado ao anterior. Porquanto a utilidade da servidão se reporta ao prédio e não à pessoa do proprietário, a servidão deve ser apta a satisfazer o prédio dominante de modo continuado (perpetua causa). Assim, a duração da servidão é tendencialmente perpétua. Biondi fala mesmo num princípio da perpetuidade das servidões, no sentido de que a sua duração é indefinida. Dado este princípio, as servidões temporárias não eram admitidas no Direito Romano. Elas revelavam uma conveniência meramente pessoal e não do prédio dominante e isso contrariava o princípio servitus fundo utilis esse debet. Inalienabilidade: a servidão mantém-se como encargo do prédio serviente mesmo que a propriedade seja transmitida e, do mesmo modo, o adquirente da propriedade sobre prédio dominante beneficia da servidão, como beneficiava o anterior proprietário. Utilizando uma linguagem moderna, a servidão tem inerência ao prédio e segue o destino deste. Individibilidade: embora possa ser exercida sobre uma parte do prédio serviente, se tal resultar do título constitutivo, a servitus afeta todo o prédio serviente e beneficia todo o prédio dominante e não somente uma porção demarcada dele. Atendendo à natureza indivisível da servidão, em caso de compropriedade, todos os comproprietários tinham de dar o seu consentimento à sua constituição, não sendo válida a servidão constituída somente por um dos comunheiros. O princípio da indivisibilidade das servidões postulava igualmente que, em caso de divisão do prédio dominante, cada nova parte continuava a beneficiar da servidão por inteiro, não obstante não poder tornar mais

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão gravosa a situação do prédio serviente. Na hipótese inversa de divisão do prédio serviente, cada uma das partes continuava a suportar a servidão por inteiro. 8. Servitus servitutis esse non potest: este princípio, no seu teor literal, explica-se facilmente. O titular da servitus não podia constituir outras servidões. Em todo o caso, o real alcance do princípio permanece rodeado de forte obscuridade. Como dissemos, os romanos não conheciam uma categoria geral de servidão, mas sim tipos de servitutes. Os tipos mais antigos de servidão no Direito Romano são todos relativos a servidões rústicas, o que se compreende numa economia rural, e abrangiam apenas as res mancipi. As duas espécies de servidões mais comuns, sobre as quais se desenvolveram os princípios já assinalados, são as servidões de passagem e as servidões de água. Dentro das primeiras, apontam-se três: via, iter e actus. A primeira é a mais simples, permitia a passagem a pé, a cavalo, por lita ou meio de transporte semelhante. A servidão iter autorizava a guiar jumentos, carros e carga pelo prédio serviente. A servidão de actus reunia o conteúdo das outras duas, sendo a mais extensa. As servidões de água consistiam fundamentalmente em servidões de aqueduto, ou seja, o direito a derivar e conduzir a água do prédio serviente para beber ou irrigar o campo do prédio dominante. Outras servidões rústicas são: ius cretae eximendae, calcis conquendae, lapidis exemendi, haranae fodiendae, ius in silva vicini pedamenta sumendi, item ius fructus in vizini villa cogendi coactosque havendi, ius terram rudus saxa iacere posita habere, etc. As servidões urbanas surgiram posteriormente. Elas podem agrupar-se em três grupos: servitutes stillicidiorum, servitutes parietum e servitutes luminum. As primeiras autorizam o titular a descarregar as águas pluviais no prédio ou canalização do vizinho; as segundas a colocar uma trave no muro do vizinho (servitus tigni imittendi) ou a apoiar o edifício próprio num muro ou pilar do vizinho (servitus oneris ferendi); as terceiras visam garantir ar, luz ou vista. Entre estas últimas contam-se as servitus altius non tollendi e as servitus ne luminibus e ne prospecti offciatur.

A supressão das servidões pessoais pelo Code Civil francês e o Código Civil de Seabra: a construção dogmática das servidões no Direito justinianeu permeneceu largamente no Direito Comum e subsiste ainda hoje no Direito alemão e no Direito suíço. Com efeito, o BGB manteve a distinção bizantina, colhida no Direito comum, entre servidões prediais e servidões pessoais. O usufruto, os direitos de uso e de habitação mantêm-se no contexto sistemático das servidões, lado a lado com as servidões prediais. O mesmo sucede no Direito suíço, com uma extensão, aliás, maior do que no Direito alemão, pois, para além dos direitos de usufruto, uso e habitação, também engloba o direito de superfície no quadro das servidões. Outra foi a orientação seguida nos países latinos. O Code Civil francês suprimiu as referências às servidões pessoais, vistas como atidas à economia feudal do Antigo Regime, e voltou à tradição clássica do Direito Romano, prevendo apenas servidões prediais. O Code Civil francês define servidão como a carga imposta sobre um prédio para uso e utilidade de um prédio pertencente a outro proprietário. O atual Código Civil italiano, como o anterior de 1865, considera apenas as servidões prediais, sendo essa igualmente a solução do Código Civil espanhol. O Código Civil de Seabra enfileirou na corrente do Code Civil francês. O artigo 2189.º distinguia os direitos de usufruto, uso e habitação das servidões, e estas vêm definidas inequivocamente como servidões prediais no artigo 2267.º: servidão é um encargo imposto em qualquer prédio, em proveito ou serviço de outro prédio pertencente a dono diferente: o prédio sujeito à servidão diz-se serviente e o que dela se utiliza dominante. Em comentário ao regime das servidões, José Tavares explica que no conceito moderno a servidão é uma relação jurídica de caráter essencial e exclusivamente real: é apenas a relação de dependência ou de sujeição dum prédio a outro, e não a uma pessoa. Foi 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão inteiramente posta de parte a antiga distinção romanista das servidões em reais ou prediais e pessoais. Portanto, o século XIX operou a fratura entre dois posicionamentos diferentes, o germânico, por um lado, fiel ao Direito Romano justinianeu, conservado em grande parte no Direito comum, e o latino, inaugurado com o Código Civil francês, que regressou ao padrão clássico do Direito Romano, eliminando as servidões pessoais do âmbito do direito de servidão.

Precisão terminológica: como alguns autores têm salientado, a supressão das servidões pessoais do âmbito da categoria das servidões, apaga o outro termo da classificação entre servidões prediais e servidões pessoais. Se não há mais servidões pessoais, sendo todas prediais, afigura-se mais correto falar simplesmente em servidões e não em servidões prediais, como faz o nosso Código Civil na epígrafe do Título VI do Livro III, assim como em vários preceitos do regime jurídico. Os Direitos modernos não estabelecem um princípio de taxatividade para as servidões prediais, conforme sucedia no Direito Romano. O que existe é um tipo de direito real, direito de servidão, que pode ter um conteúdo diverso consoante a utilidade concreta que o integra. Deste modo, em vez de se falar genericamente em servidões ou em servidões prediais, deve-se aludir simplesmente a direito de servidão. Este é o tipo de direito real que está em causa, embora, pela variabilidade do seu conteúdo ou modo de exercício, se possa depois proceder a várias classificações.

O tipo legal do direito de servidão. A servidão como tipo aberto : o artigo 1543.º CC contém uma assinalável semelhança com o artigo 2267.º do Código Civil de Seabra, definindo servidão predial como o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente. Esta definição pode explicar-se pela força da tradição histórica; no Direito Romano a servitus vem descrita como uma relação de serviço entre dois prédios, na qual um beneficia (o prédio dominante) e o outro (prédio serviente) fica gravado ao peso do serviço. É claro, no entanto, que a relação não se dá entre dois prédios, processando-se naturalmente entre os titulares de direitos reais sobre eles. De outro modo, tal definição seria manifestamente errónea; não há relações jurídicas entre coisas. A fórmula do artigo 1543.º CC parece acolher o princípio romano nemini res sua servit, uma vez que se acentua que o prédio a favor do qual o encargo surge imposto pertence a dono diferente.

4. Grosso/Dejana justificam a solução paralela do Direito italiano, sustentando que o princípio mencionado pode fundar-se no conceito de que o conteúdo unitário da propriedade absorve o conteúdo de outro direito real, que se apresenta como explicação da propriedade, e não pode ter, no mesmo titular, uma configuração autónoma como direito a se. 5. Parece-nos, no entanto, discutível que não possa haver uma servidão entre dois prédios pertencentes ao mesmo proprietário. Se a solução não merece controvérsia no caso de duas propriedades plenas na mesma titularidade, afinal, o paradigma do qual o legislador partiu, pode acontecer que num dos prédios esteja constituído um direito real menor, um direito de usufruto, por exemplo. Neste caso, admitindo que o usufrutuário pode constituir servidões passivas que não excedam a duração do seu direito (artigo 1460.º, n.º1 CC) e que pode beneficiar igualmente de servidões ativas, por que razão não pode constituir uma servidão a favor de outro prédio do nu proprietário, que está privado do gozo da sua coisa enquanto o usufruto subsiste, ou, inversamente, vir a beneficiar de servidão desse prédio? Não vemos qualquer razão que impeça a validade da constituição da servidão numa hipótese destas. Quando o direito real menor se extinguir, e se a servidão se mantiver, operará a confusão entre a propriedade do prédio dominante e o direito de servidão, mantendo eficácia o brocardo nemini res sua servit. 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão O direito de servidão, sendo embora um tipo de direito real, encontra-se numa relação de dependência, como uns dizem, ou de acessoriedade em relação a outro direito real. Esta acessoriedade vem muitas vezes explicada por referência ao princípio da inseparabilidade das servidões (artigo 1545.º CC). A mudança de titularidade do direito real no prédio dominante ou serviente não se reflete na existência da servidão e, por conseguinte, tanto o novo proprietário (ou titular do direito real de gozo) do prédio serviente continuará com o seu direito onerado pela servidão como o proprietário do prédio serviente (ou titular do direito real de gozo) beneficiará dela. Pensamos, no entanto, que a acessoriedade do direito de servidão não está na inerência ao prédio que possui enquanto direito real. A titularidade da servidão advém da titularidade de um direito real de gozo sobre o prédio dominante. Ninguém pode ser titular de um direito de servidão se não for titular de um direito real de gozo sobre um prédio e a extensão legal do seu direito permita beneficiar da servidão. Por isso, o direito de servidão é acessório desse direito real sobre o prédio dominante. O direito de servidão só pode constituir-se sobre prédio vizinho. Sendo embora verdade que o artigo 1543.º CC não faz qualquer menção à vizinhança como elemento do tipo legal, ela surge de forma indireta noutros preceitos. Com efeito, a lei fala em prédios rústicos vizinhos (artigo 1550.º, n.º1 CC), em proprietários vizinhos (artigo 1557.º, n.º1 CC), em prédios vizinhos (artigo 1558.º, n.º1 CC), o que parece contribuir para uma limitação espacial das servidões às relações de vizinhança. Todavia, e conforme decorria do Direito Romano, vizinhança não equivale a contiguidade. O direito de servidão pode ser constituído entre prédios não contíguos ou atravessados por via pública, neste último caso, contando que a lei não exclua essa possibilidade. A lei portuguesa começa por definir a servidão como um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio (artigo 1543.º CC). As redações das principais leis estrangeiras são semelhantes. No Código Civil italiano diz-se que a servidão consiste no peso imposto sobre um prédio; o Code Civil francês define servidão como uma carga imposta sobre um prédio. Também a redação alemã do BGB, que usa o verbo belasten (=sobrecarregar) , sugere o peso ou a carga que a servidão predial representa sobre o prédio serviente. Estas definições continuam a exprimir o entendimento romano da servidão como um serviço prestado por um prédio a outro e o gravante que decorre para o prédio serviente da perda de liberdade correspondente. A tónica do direito real reside, todavia, no aproveitamento de uma coisa corpórea e não numa relação entre sujeitos, como é próprio das obrigações, e menos ainda numa relação entre prédios. E nada se ganha em insistir em fórmulas que eram adequadas no contexto civilizacional romano, mas que já nada dizem atualmente e que apresentam, além do mais, o inconveniente de ignorarem os avanços dogmáticos da ciência jurídica sobre o conceito de direito subjetivo, em geral, e de direito real, em particular. Por outro lado, e atendendo agora à formulação portuguesa da servidão como um encargo, ela mostra-se triplamente inconveniente. Primeiro, porque o termo encargo tem uma aceção técnica no campo das situações jurídicas que a aproxima ou confunde com a cláusula modal. Ora, não se vê qualquer vantagem no uso de um termo comprometido na dogmática jurídica para descrever a servidão. Segundo, e mais importante, porque a servidão representa um direito real e não outra coisa qualquer. Dizer que a servidão constitui o encargo pode ter valo ilustrativo para realçar o peso económico da servidão sobre o prédio serviente, mas não é adequado do ponto de vista técnico-jurídico para definir um direito real. Terceiro, porque recorrendo a um tempo que não exprime mais do que o alcance económico da oneração da propriedade do prédio serviente, deixa de fora, afinal, o conteúdo típico do direito, em contraste com o que sucede nas definições legais dos outros direitos reais de gozo, onde se intenta dar a imagem típica do direito real com a inclusão do conteúdo de aproveitamento da coisa que o direito concede. Deste modo, a fim de encontrar o conteúdo típico que molda o tipo legal do direito de servidão, o intérprete tem de baixar ao artigo seguinte (artigo 1554.º CC). De útil para a construção do tipo legal que 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão molda o tipo legal do direito de servidão, o intérprete tem de baixar ao artigo seguinte (artigo 1544.º CC). De útil para a construção do tipo legal de direito de servidão, a noção legal do artigo 1543.º CC contém três notas distintivas:

1. Confina o direito de servidão às servidões prediais; 2. Limita as servidões prediais ás relações de vizinhança; 3. Admite a constituição do direito de servidão somente entre titulares não coincidentes de direitos reais sobre os prédios (nemini res sua servit, com a interpretação restritiva que propomos). Falta, no entanto, o conteúdo de aproveitamento que o tipo de direito real propicia ao seu titular, que se encontra, como dissemos, no artigo 1544.º CC. Segundo este preceito, podem pertencer ao conteúdo das servidões quaisquer utilidades, ainda que futuras e eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio doo prédio dominante. Como no Direito Romano, o conteúdo típico do direito de servidão reside no aproveitamento de uma utilidade que o prédio serviente seja suscetível de fazer beneficiar o prédio dominante. Diferentemente do Direito Romano, porém, em que as servidões eram típicas, no Direito português atual existe um único tipo de direito de servidão, que pode ter como conteúdo qualquer utilidade. Este conteúdo sugere um tipo aberto (não confundir com servidões atípicas8), com múltiplas possibilidades de concretização, tantas quantas as utilidades que um imóvel possa fazer beneficiar outro e sem que seja necessário que aquelas estejam todas definidas à partida pela lei. Por exemplo, a lei portuguesa prevê servidões de água e de passagem; contudo, mesmo não estando contempladas na lei, outras utilidades (pasto, lenha, vista, distância para construção, etc.) podem constituir o conteúdo do direito de servidão. Neste contexto, o problema passa a ser o de saber em que consiste a utilidade que é conteúdo do direito de servidão. Ela assume tanto mais relevância quanto é certo que a utilidade tem a função de delimitar o tipo legal do direito de servidão. Sem utilidade, na aceção lega do termo, não há direito de servidão. A utilidade para o prédio dominante afere-se objetivamente, sem consideração pelas necessidades puramente subjetivas do titular circunstancial do direito real sobre o prédio dominante. Dito por outras palavras, a utilidade afere-se em função do seu impacto no prédio dominante, nomeadamente, se aí é apta a satisfazer alguma necessidade. Não é outro o significado do trecho em proveito exclusivo de outro prédio constante do artigo 1543.º CC. Com ele manteve-se o princípio servitus fundo utilis esse debet: a servidão tem de ser útil ao prédio serviente. Nada disto se prende com o aumento do valor do prédio dominante. Esse aumento pode não se verificar, sem que com isto se afaste a possibilidade legal de constituição do direito de servidão (artigo 1544.º, in fine CC). A utilidade não pode, assim, ser aferida em função do facto de trazer ou não mais valor para o prédio dominante. A utilidade para o prédio dominante pode ser comprovada pelo prisma de qualquer das utilizações que o titular do direito real de gozo lhe pode dar. Nada impõe que a utilidade seja vista somente em 8

Não confundir com tipo aberto com servidões prediais atípicas, como referem Pires de Lima/Antunes Varela. O direito de servidão, enquanto direito real, constitui um tipo legal ao lado dos outros direitos reais que compõem o numerus clausus de direitos reais. O que acontece é que o conteúdo típico vem descrito por um conceito jurídico indeterminado (quaisquer utilidades) e não por poderes ou faculdades concretas de gozo da coisa ou de outro aproveitamento. Tudo o que seja utilidade suscetível de ser extraída de um prédio para beneficiar outro pode dar origem a um direito de servidão, mas a servidão em causa só pode ser um direito real se corresponder ao tipo legal. Mota Pinto, Carvalho Fernandes e Santos Justo falam antes em conteúdo atípico. Receamos que esta terminologia seja equívoca, por sugerir também um direito atípico, o que não é o caso do direito de servidão. Preferimos recorrer à figura do tipo aberto para ilustrar a circunstância do direito de servidão poder conceder o aproveitamento de utilidades não concretizadas pela lei.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão função do destino natural do prédio, seja ele qual for; a utilidade pode destinar-se ao fim escolhido pelo titular do direito real (industrial, comercial, agrícola ou outro). A servidão pode ter por conteúdo a supressão da vinculação (dever, estado de sujeitção, etc.) que delimita negativamente a extensão do gozo do titular do direito real em função das relações de vizinhança, contando que não seja modificado o tipo legal do direito (servidões desvinculativas). Toda a série de deveres de vizinhança que limitam a extensão do gozo da coisa podem deixar de ser observados se a atividade proibida for objeto do direito de servidão a favor do obrigado. Assim, a utilidade pode estar na possibilidade de abrir janelas ou varandas a menos de um metro e meio de distância do prédio do vizinho, de emitir ruído para além do limite legal, etc. A utilidade pode ser concedida em função de um destino económico do prédio ao qual este ainda não se encontre afeto e que pode até nem vir a estar. O artigo 1544.º CC estipula expressamente a admissibilidade das servidões relativas a utilidades futuras ou meramente eventuais. A utilidade pode consistir numa parcela do uso do prédio serviente. As servidões de água e as servidões de passagem envolvem (algum) uso do prédio serviente. O mesmo se diga no tocante à fruição. Não obstante uma posição antiga de Guilherme Moreira, a servidão pode consistir no aproveitamento de frutos ou produtos do prédio serviente. As tradicionais servidões de pasto ou de lenha envolvem frutos e produtos da coisa serviente. A utilidade conteúdo da servidão tem de ser concretamente determinada. O tipo legal da servidão consagra um conceito indeterminado que abrange todas as utilidades em abstrato. Porém, uma servidão só será validamente constituída se individualizar a utilidade do prédio serviente a aproveitar pelo prédio dominante (a vista, o pasto, a passagem, a lenha, etc.). O conteúdo típico da servidão traduz-se, assim, no poder ou poderes jurídicos que permitem ao titular da servidão fazer o aproveitamento da utilidade a que se refere o direito. Nas servidões negativas, o conteúdo da servidão limita-se ao poder de exigir ao titular do direito real onerado com a servidão ou a qualquer pessoa o non facere em causa (não construir, não abrir portas ou janelas, não murar o prédio, etc.). Nas servidões positivas o conteúdo típico da servidão envolve um pati dos titulares de direitos reais sobre o prédio serviente, o que tem como contrapartida a possibilidade de atuação sobre o prédio serviente. Deste modo, na servidão de passagem podemos divisar um poder de passagem no prédio serviente, na servidão de aqueduto o poder de instalar canalização de transporte de água no prédio serviente, etc. Os poderes que permitem o aproveitamento direto da utilidade da servidão compõem o conteúdo típico do direito, mas não o esgotam. Ao lado desses, existem ainda os poderes acessórios, aqueles que se destinam a tornar possível o exercício da servidão ao longo do tempo de duração do direito. A doutrina fala aqui nos adminicula servitutis. Os poderes acessórios pertencem ao conteúdo supletivo do direito de servidão, estando a sua existência dependente do que dispuser a propósito o título constitutivo. É isso que decorre do artigo 1564.º CC na parte que dispõe que as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão pelo respetivo título. Uma tipificação dos poderes acessórios não se afigura possível em abstrato. No entanto, podemos dizer que naqueles se englobam os que sejam indispensáveis ao exercício do direito de servidão. Se, por exemplo, a servidão de presa requer uma manutenção constante do depósito de água ou da barragem o poder respetivo integra o conteúdo da servidão, onerando os direitos reais de gozo sobre o prédio serviente. O n.º2 do artigo 1565.º CC ajuda na delimitação do conteúdo positivo do direito de servidão ao dispor que em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante. Quando o título não disponha diferentemente, os poderes acessórios que integram o conteúdo da servidão são os que permitem a satisfação corrente da utilidade em causa. Mais do que definir o que integra o conteúdo do direito de servidão, todavia, a formulação legal aponta para uma fixação do quantum da utilidade que possa ser aproveitada 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pelo prédio dominante, estipulando como critério as necessidades normais e previsíveis desse prédio. O poder de fazer obras no prédio serviente (artigos 1566.º e 1567.º CC) é um dos poderes acessórios que integram o conteúdo da servidão, caso não seja afastado no título constitutivo da servidão. Com os dados do tipo legal, podemos, assim, definir o direito de servidão como o direito de um titular de direito real sobre um prédio a aproveitar uma dada utilidade de outro prédio.

O objeto do direito de servidão: o direito de servidão tem por objeto o prédio serviente. Não obstante beneficiar o prédio dominante, o direito de servidão não recai sobre esta coisa, mas sim sobre a coisa cuja utilidade beneficia aquele prédio. Assim, apesar do titular do direito real sobre o prédio dominante adquirir o direito de servidão por força da sua posição sobre aquele prédio (acessoriedade), a coisa sobre a qual recai a servidão é o prédio serviente. O exercício do direito de servidão refere-se unicamente ao prédio serviente.

Modalidades de servidão: tradicionalmente, a doutrina apresenta algumas classificações do direito de servidão. A mais antiga classificação das servidões é possivelmente aquela que distingue as servidões rústicas e urbanas, consoante a natureza do prédio sobre que recaem. Válida para o Direito Romano, ela perdeu grande parte do seu alcance na atualidade. Nenhuma diferença de regimes jurídicos decorre desta classificação. Outras classificações distinguem: 1. Servidões legais (coativas) e servidões voluntárias: todas as servidões têm a sua fonte na lei. Nessa medida, a servidão voluntária constitui igualmente uma servidão legal. Todavia, enquanto a servidão voluntária resulta do funcionamento da autonomia privada, sendo, portanto, o produto de uma decisão livre das partes concretizada por via negocial (contrato ou testamento), a servidão legal propriamente dita atribui ao beneficiário um direito potestativo à sua constituição. Assim, se o titular do direito real do prédio adstrito à constituição da servidão não colaborar na sua constituição, outorgando o negócio jurídico respetivo, o beneficiário do direito à servidão pode impôla coativamente, com recurso à via judicial ou administrativa (artigo 1547.º, n.º2 CC). Daí que alguns autores prefiram falar em servidão coativa em vez de servidão legal (que a servidão voluntária também é), terminologia que também nós achamos preferível. Vemos, deste modo, que a servidão coativa não se constitui diretamente como efeito automático da norma legal que a prevê. Esta limita-se a atribuir um direito potestativo à constituição do direito de servidão. Esse direito deve ser exercido por via negocial (usualmente contrato) juntamento com o proprietário do prédio adstrito legalmente à constituição da servidão. Se este não colaborar na constituição negocial da servidão, o titular do direito potestativo pode exercê-lo por via judicial ou administrativa, solicitando ao tribunal ou à entidade administrativa (se for o caso) que declare constituída a servidão a ser favor. A servidão coativa constitui-se da mesma forma que a servidão voluntária. Tem, no entanto, subjacente o exercício de um direito potestativo, que paira como ameaça sobre o proprietário do prédio serviente, no caso deste não prestar a sua colaboração à constituição da servidão. Para além da possibilidade de impor a constituição da servidão (artigo 1547.º, n.º2 CC), há uma outra diferença de regime jurídico na extinção da servidão. As servidões coativas extinguemse em caso de desnecessidade, enquanto as servidões voluntárias não (artigo 1569.º, n.º3 CC). Isto permite deduzir que a servidão coativa se liga a uma necessidade objetiva do prédio dominante, provocando a extinção do direito de servidão quando aquele

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão prédio deixa de ter essa necessidade. A lei dedica todo o capítulo III do Título IV às servidões coletivas, distinguindo duas modalidades: servidões de passagem e servidões de águas. 2. Servidões aparentes e não aparentes: a lei portuguesa define servidões não aparentes como as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (artigo 1548.º, n.º2 CC). As servidões não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião (artigos 1548.º, n.º1 e 1293.º, alínea a) CC). É a principal consequência jurídica associada a esta classificação. Outra decorrência legal da mesma encontra-se na alínea b) do n.º2 do artigo 5.º CRPr. O registo do facto aquisitivo das servidões aparentes é meramente enunciativo, pelo que o titular do direito de servidão aparente, mesmo que não haja registado a aquisição do seu direito, não pode ver o seu direito arredado por força da tutela registal dada ao terceiro de boa fé nos termos do n.º1 desse preceito. 3. Servidões positivas e negativas: a servidão diz-se positiva quando o titular pode atuar no prédio serviente para aproveitar a utilidade conteúdo do direito. Neste caso, o titular do direito real onerado com a servidão deixa de poder opor-se a uma atividade que se não fosse este direito não poderia levar a cabo no prédio serviente; tem de tolerar essa atividade (obrigação de pati). Como exemplo, o proprietário pode impedir a circulação de qualquer pessoa no seu prédio; a servidão de passagem, porém, vincula-lo a respeitar a atividade titular da servidão dentro dos limites deste direito. A servidão negativa impõe uma obrigação de non facere ao titular do direito real sobre o prédio serviente. Quer dizer, o titular do direito real sobre o prédio serviente deixa de poder fazer um dado tipo de aproveitamento da coisa que o conteúdo do seu direito lhe permitiria realizar. Se, por exemplo, a servidão obriga o proprietário do prédio serviente a não construir (altius non tollendi) ou a não abrir janelas a uma determinada distância do limite do prédio (servidão de vistas), ele fica obrigado a não realizar um aproveitamento que de outro modo – sem a servidão – poderia fazer. A doutrina aproveita normalmente o contexto da classificação entre servidões positivas e negativas para apontar outra modalidade de servidão, denominada servidão desvinculativa. O titular do direito real cujo conteúdo se encontra negativamente delimitado por um dever de vizinhança (não fazer emissões, não abrir portas ou janelas sem respeito de uma distância mínima do prédio vizinho, etc.) pode desonerar-se desse dever se mantiver uma posse da coisa em violação da lei pelo tempo necessário à servidão. A lei refere mesmo a constituição de uma servidão por usucapião a propósito das servidões de vistas (artigo 1362.º, n.º1 CC). Pois bem, a servidão de vistas adquirida por usucapião constitui uma servidão desvinculativa no sentido usual. O titular do direito real de gozo adstrito ao dever consegue a extinção deste se exercer o seu direito em violação do mesmo pelo tempo necessário à usucapião. 4. Servidões ativas e servidões passivas: a servidão diz-se ativa quando beneficia o prédio. Assim, do ponto de vista do prédio dominante, a servidão é sempre ativa. Inversamente, a servidão é passiva quando onera um direito real de gozo. A servidão passiva recai sempre sobre um direito real de gozo do prédio serviente. Esta classificação encontra arrimo legal no artigo 1460.º, n.º1 CC, que menciona expressamente as servidões ativas, conferindo ao usufrutuário legitimidade para as constituir a favor do prédio usufruído, bem como no artigo 1575.º CC.

As servidões coativas. Tipos legais: a lei portuguesa prevê dois tipos genéricos de servidões:

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1. As servidões de passagem: as servidões de passagem podem ser constituídas em dois casos: a. A servidão de passagem em caso de prédio encravado (artigo 1550.º CC): o encrave existe em função da ausência de comunicação do prédio com a via pública. A via pública que aqui se tem em vista é a via pública terrestre, o caminho (seja estrada, rua, travessa, avenida, etc.) que permita a circulação de pessoas e bens por terra do e para o prédio encravado. Há encrave quando o titular de direito real de gozo sobre um prédio não tem acesso ou não suficiente acesso à via pública. Ao encrave absoluto, ou seja, aquele em que o prédio não tem qualquer acesso à via pública, por haver outros prédios de permeio, é de equiparar o encrave relativo, desde que se verifique uma comunicação insuficiente com a via pública (artigo 1550.º, n.º2 CC). Em caso de encrave, a lei portuguesa confere ao proprietário ou outro titular de direito real de gozo sobre o prédio encravado o direito potestativo de constituir a servidão sobre um dos prédios vizinhos, contando que estes possibilitem a comunicação que falta ao prédio para chegar à via pública. O prédio vizinho que ficará objeto da servidão é o que sofre menor prejuízo com ela (artigo 1553.º CC). Tratando-se de quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos, o proprietário respetivo tem o direito a adquirir o prédio encravado pelo seu valor (artigo 1551.º, n.º1 CC). Na falta de acordo entre os interessados a lei prevê a fixação judicial do preço (artigo 1551.º, n.º1, 1.ª parte CC). b. A servidão prevista no artigo 1556.º CC: a segunda servidão coativa de passagem trata de assegurar que os titulares de direitos reais de gozo sobre prédio com abastecimento insuficiente de água se possam deslocar aos locais onde existam águas públicas para se abastecerem. 2. As servidões de águas: existem três tipos de servidão coativa de águas: a. Servidão de presa; b. Servidão de aqueduto; c. Servidão de escoamento. Todas estas servidões podem ser constituías para assegurar ao prédio dominante o abastecimento de água para fins domésticos ou agrícolas, ou ainda para escoamento de águas provenientes de outro prédio.

Indivisibilidade e inseparabilidade das servidões: as servidões, possuindo a inerência decorrente de terem uma coisa corpórea por objeto, são indissociáveis do prédio a que respeitam. Isso mesmo foi reconhecido no Direito Romano através dos principais da inalienabilidade e indivisibilidade das servidões prediais. Esses princípios encontram-se acolhidos igualmente no Direito português vigente. Segundo o disposto no artigo 1545.º, n.º1 CC, as servidões não podem ser separadas dos prédios a que pertencem (inseparabilidade). Se a utilidade da servidão for reportada a outro prédio tal desencadeia a constituição de uma nova servidão, com extinção da anterior. O princípio da indivisibilidade implica a permanência da servidão perante uma hipótese de divisão do prédio dominante ou serviente (artigo 1546.º CC). Se for dividido o prédio dominante, os novos prédios resultantes da divisão continuam a beneficiar ativamente da servidão anterior que beneficiava o prédio. Se a divisão incidir sobre o prédio serviente, os prédios que emergirem dela ficam sujeitos à servidão.

Legitimidade ativa e legitimidade passiva para a constituição do direito de servidão : o regime legal do direito de servidão encontra-se constituído na base da relação entre o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão proprietário do prédio dominante e o proprietário do prédio serviente. Isto pode inculcar a falsa impressão que a servidão pode apenas ser constituída por um proprietário (do prédio serviente) a favor de outro proprietário (do prédio dominante). Na realidade, do lado do prédio serviente, a servidão pode ser constituída pelo titular de um direito real de gozo cujo conteúdo típico tenha extensão suficiente para a constituição de um direito real menor e não apenas pelo proprietário. O artigo 1460.º, n.º1 CC torna isto claro para o usufrutuário, para o qual a lei portuguesa confere expressamente legitimidade para a constituição de servidões. E julgamos que o superficiário se encontra nas mesmas condições, justificando-se a analogia com o disposto no artigo 1460.º, n.º1 CC. Já os titulares dos direitos de uso e habitação estão legalmente impedidos de constituir direitos de servidão (artigo 1488.º C). Deste modo, a legitimidade ativa para a constituição de direitos de servidão não surge confinada ao proprietário do prédio serviente, podendo outros titulares de direitos reais de gozo fazê-lo, contando que não haja proibição legal (como sucede para o usuário e morador usuário) e o direito real em causa tenha extensão suficiente para o efeito. Quanto a este último aspeto, parece claro que o titular de direito de servidão não pode constituir outra servidão. Em todo o caso, há um limite a considerar; e esse prende-se com a duração do direito real menor. Constituída validamente a servidão, qualquer um tem o dever genérico de a respeitar. E isto engloba o proprietário do prédio serviente que não haja constituído a servidão. Como direito real, o direito de servidão pode ser oposto a quem quer que seja, incluindo naturalmente outros titulares de direitos reais sobre o prédio serviente. O artigo 1575.º CC, no seu sentido útil, dispõe que as servidões ativas adquiridas pelo usufrutuário não se extinguem pela cessação do usufruto. Isto quer dizer, que os outros titulares de direitos reais de gozo sobre o prédio dominante, nomeadamente, o proprietário, poderão continuar a exercer o direito de servidão ainda que este não haja sido constituído a seu favor. De qualquer modo, deve ser ressalvada a hipótese de constituição da servidão a prazo. Se a servidão constituída pelo usufrutuário tiver prazo de duração, por exemplo, o mesmo prazo do usufruto, ela extinguir-se-á no final desse prazo.

Titularidade da servidão e aproveitamento das utilidades desta: discute-se se a servidão beneficia todo o prédio, o mesmo é dizer, todos os titulares de direitos reais de gozo, ou se apenas o titular do direito de servidão pode realizar o aproveitamento da utilidade conteúdo da servidão.

1. Biondi afirma, contra a opinião contrária de Branca, que a servidão se compenetra com o prédio para utilidade deste, sustentando que todos os titulares de direitos reais de gozo sobre o prédio podem fazer o aproveitamento da servidão. Como argumento, aduz a regra que corresponde ao nosso artigo 1575.º CC: as servidões ativas constituídas pelo usufrutuário e o enfiteuta permanecem para lá da extinção do usufruto e da enfiteuse. 2. Parece, efetivamente, que devemos manter dissociada a questão da titularidade da servidão e do aproveitamento da utilidade conteúdo do direito respetivo. O facto de a titularidade do direito de servidão pertencer a um titular de direito real de gozo do prédio dominante não impede que outros titulares de direitos que facultem o aproveitamento da coisa não possam beneficiar da utilidade da servidão. Assim, se a servidão foi constituída a favor do proprietário e este constitui posteriormente um usufruto ou uma superfície, quer o usufrutuário quer o superficiário podem fazer o aproveitamento da servidão. Esta beneficia o prédio e não apenas o titular dela quando existam outros direitos reais sobre o prédio dominante. Este raciocínio permanece válido quando o direito na base do qual se constituiu o direito de servidão é um direito real menor. O proprietário pode aproveitar a servidão de presa constituída a favor do

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão usufrutuário (usuário, morador usuário, superficiário). A solução não pode ser outra atento o disposto no artigo 1575.º CC. Isto não quer dizer que o titular do direito real que faz o aproveitamento da servidão se torne contitular do direito de servidão. No exemplo dado, o usufrutuário ou o superficiário não fica titular da servidão em comunhão com o proprietário. A opinião contrária é corrente em Itália, mas julgamos que não é tecnicamente correta. A titularidade – integral – da servidão permanece naquele que beneficiou da sua constituição.

Constituição do direito de servidão por destinação de pai de família: este facto aquisitivo do direito de servidão não teve origem no Direito Romano, não obstante toda a discussão sobre os antecedentes que naquele podem ter servido para o aparecimento deste facto. No Direito Romano, a servidão não podia ser o resultado de uma vontade tácita. Segundo Barassi, o desenho deste facto constitutivo das servidões terá começado a ser esboçado com a escola dos Comentadores, concretamente por Bartolo. Sem denominar embora a situação de destinação de pai da família, Bartolo admitia que a relação de utilidade criada entre dois prédios pertencentes ao mesmo proprietário perdurasse com base na patientia do novo proprietário quando a unidade da titularidade se quebrasse e o novo proprietário do prédio sujeito ao serviço continuasse a tolerá-lo a favor do outro prédio. Daqui nasce a ideia de um consentimento presumido à constituição da servidão, que se baseava na permanência do serviço prestado por um dos prédios ao outro sem oposição do nu proprietário do prédio serviente, desde que houvesse sinais visíveis daquele. Ao que parece, a denominação destinação de pai de família repousa numa dada interpretação de um fragmento de Ulpiano, que terá passado, primeiro, para o costume escrito de Paris, e por essa via, para o Code Civil francês, onde recebeu consagração. Do Código Civil francês, a terminologia transitou para o Direito italiano, primeiramente para o Código Civil de 1865 e posteriormente para o atual, de 1942, o qual, por sua vez, influenciou os Códigos Civis portugueses: o de Seabra, e o vigente (artigos 1547.º e 1549.º CC). A constituição de servidão por destinação de pai de família requer:

1. Uma relação de serviço (a lei chama-lhe serventia) entre dois prédios pertencentes ao mesmo dono ou entre duas partes do mesmo prédio: os sinais da relação de serviço não têm de haver sido postos pelo dono atual, podendo ter sido por um dos proprietários antecedentes. É a orientação que remonta ao Code Civil francês. 2. A existência de sinais visíveis e permanentes da relação de serviço em, pelo menos, um dos prédios ou numa parte do mesmo: a lei portuguesa tem um sentido mais vasto, compreendendo a possibilidade de constituição da servidão quando a serventia se revela num mesmo prédio e este vem posteriormente a ser fracionado. 3. A falta de declaração negocial em contrário: a constituição do direito de servidão por destinação de pai de família pode ser afastada se as partes no negócio jurídico o declararem, expressa ou tacitamente.

Usucapio libertatis. Remissão: tratámos este facto como facto genérico de extinção de direitos reais de gozo. Remetemos, assim, para o capítulo dos factos extintivos de Direitos Reais.

Exercício da servidão. O título constitutivo: quanto ao exercício do direito de servidão, o artigo 1564º CC proclama a regra geral: as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respetivo título; na insuficiência do título, observar-se-á o disposto nos artigos seguintes. Esta formulação ampla deve ser entendida convenientemente. A incidência do princípio da tipicidade em Direitos Reais tira espaço à autonomia privada. A

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão regulação do exercício que contenda com o conteúdo típico injuntivo do direito real não é admitida, sob pena de nulidade (artigo 1306.º, n.º1 CC). Também como dissemos anteriormente, a possibilidade legal de criação pelo título de obrigações propter rem encontra-se limitada aos casos que a própria lei as prevê em regime supletivo, não podendo ser convencionadas, com eficácia real, noutros casos. Havendo título da servidão – contrato, testamento, decisão judicial ou outro – o direito de servidão deve ser exercido de acordo com o estipulado naquele. Contrariamente, porém, ao que parece decorrer do disposto no artigo 1564.º CC, as disposições normativas constantes dos artigos seguintes não têm todas natureza supletiva. Basta atentar no preceituado no artigo 1568.º, n.º4 CC para se perceber imediatamente isto. Assim, o modo e o tempo de exercício da servidão podem ser alterados por qualquer dos proprietários, contando que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 1568.º, n.º1 e 2 CC (artigo 1568.º, n.º3 CC), e isto ainda que o título constitutivo disponha diferentemente. A regra fundamental em matéria de exercício de servidão consta da parte final do artigo 1565.º, n.º2 CC: Qualquer que seja a modalidade de servidão e o conteúdo desta, ela deve ser exercida de modo a trazer o menor prejuízo para o prédio serviente. Assim, se a passagem pode satisfazer a necessidade do prédio dominante tanto se se efetuar na parte norte como na parte sul do prédio serviente, mas nesta última causa maior prejuízo ao proprietário do prédio, então o exercício da servidão só é lícito se a passagem ocorrer na parte em que causar um inconveniente menor. Esta regra corresponde ao uso da servidão civiliter. O direito de servidão só pode ser exercido nos termos em que traga um menor gravame para o prédio serviente.

Extinção da servidão por desnecessidade: a servidão está sujeita a um facto extintivo especifico: a desnecessidade. Este facto extintivo não opera, contudo, para as servidões voluntárias, mas apenas para as servidões constituídas por usucapião (artigo 1569.º, n.º2 CC) e para as servidões legais, qualquer que seja o seu título constitutivo (artigo 1569.º, n.º3, 1.ª parte CC). A desnecessidade representa a perda total da utilidade para o prédio dominante. Essa perda de utilidade não se afere em função da conveniência ou vontade do titular da servidão, mas objetivamente em função das necessidades do prédio dominante. A desnecessidade liga-se, assim, diretamente ao tipo legal do direito de servidão. Justamente porque o tipo legal do direito de servidão supõe a necessidade para a válida constituição do mesmo, sob pena de violação da tipicidade, a desnecessidade é sempre superveniente.

A natureza do direito de servidão: alguma controvérsia tem rodeado a apreciação da natureza da servidão. O primeiro ponto de análise discute a própria inserção das servidões no âmbito da categoria dos direitos reais de gozo.

1. Biondi questiona que nas servidões o titular do direito goze verdadeiramente o prédio serviente. Para este autor, isto não seria verdadeiro para as servidões negativas e mesmo para algumas modalidades de servidões positivas, aquelas em que o titular obtém uma utilidade que seja diferente do gozo (do prédio serviente). 2. Messineo, por sua vez, exclui que a servidão negativa seja um direito real de gozo. 3. Giorgianni e Pugliese vão mais longe e afastam as servidões negativas do elenco dos Direitos Reais. Para Giorgianno, o direito de servidão teria a natureza de um direito obrigacional. 4. Comporti, numa orientação diversa, argumenta com a inerência do direito de servidão ao prédio, expresso pela subsistência da servidão não obstante as vicissitudes que entretanto ocorram na titularidade dos direitos sobre os prédios dominante e serviente.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão A servidão permanece ligada à coisa quando se dá a mudança de titularidade nos direitos sobre os prédios. 5. Quer-nos parecer que a natureza real da servidão não pode ser posta em causa. Como o definimos, o direito real retira essa natureza da circunstância de ter uma coisa (corpórea) por objeto e permitir um dado aproveitamento ao seu titular. Ora, também nas servidões negativas a coisa é o objeto do direito de servidão. A isto pode aparentemente objetar-se que tudo o que se encontra na servidão negativa é um dever de non facere do proprietário do prédio serviente, justamente o conteúdo de uma relação obrigacional. É essa a argumentação de Giorgianni. Nós pensamos diferentemente. A servidão negativa ao titular uma determinada utilidade (não construir, não abrir portas, etc.), que encerra, assim, o aproveitamento da coisa por parte daquele. O aproveitamento da utilidade conteúdo do direito de servidão, para se consumar, pressupõe o respeito do titular do direito real de gozo gravado com a servidão. Mas, se fosse só o respeito deste, Giorgianni teria razão. A verdade, porém, é que o direito de servidão (negativa) requer que qualquer outro titular de direito real de gozo sobre a coisa, e não apenas o que tem o seu direito onerado com a servidão, o respeite. E, do mesmo modo, qualquer terceiro que adquira uma posse formal e ilícita sobre o prédio serviente se encontra abrangido pela eficácia do dever de respeitar a servidão. Ora, esta eficácia não pode advir de nenhum direito de crédito. Ela só pode resultar do caráter real do direito de servidão. A natureza real da servidão provém do facto da coisa, o prédio serviente, ser implicada na estrutura do direito como seu objeto, o que explica haver inerência e oponibilidade erga omnes. A servidão negativa tem o non facere do proprietário do prédio serviente como conteúdo do direito. O conteúdo da servidão é a utilidade concreta afetada ao titular. E essa respeita a uma coisa (ao prédio serviente) e não a uma prestação. O dever de non facere, que se impõe a qualquer pessoa e não apenas ao titular do direito real de gozo onerado com a servidão, representa a consequência da atribuição, pela servidão, do aproveitamento de uma dada utilidade da coisa (corpórea) e, nessa medida, constitui um dever genérico e não um dever integrado numa relação obrigacional e muito menos dirigido especificamente ao titular do direito real de gozo onerado. Concluímos, desta forma, que o direito de servidão ostenta todas as notas distintivas da realidade; ele faz, assim, parte do elenco dos direitos reais. Em todo o caso, falta ainda apurar se se trata de um direito real de gozo. Não obstante proliferarem as opiniões que caracterizam o direito de servidão como um direito real de gozo, temos muita dificuldade em acompanhar esta doutrina. Não vislumbramos nas servidões negativas nenhuma das manifestações correntes do gozo, o uso, a fruição ou a transformação da coisa. Na servidão negativa, o aproveitamento da utilidade da coisa faz-se pela restrição dos direitos de gozo existentes sobre o prédio serviente e não supõe nenhuma atuação do titular da servidão sobre a coisa objeto do seu direito. Este facto não compromete a unidade do regime jurídico das servidões nem justifica qualquer reposicionamento do mesmo no sistema científico e normativo de Direitos Reais. E aí está a história de vários séculos para comprovar o acerto desta posição.

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Secção VI – As servidões prediais

Generalidades: outro direito real de gozo constitui a servidão predial, que o artigo 1543.º CC define como o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, referindo que diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia. A lei, ao definir a servidão como um encargo, atenta essencialmente no seu lado passivo, em relação ao prédio serviente. No entanto, a servidão deve ser definida tomando em consideração o seu lado ativo, como um direito incidente sobre coisa alheia (ius in re aliena). O direito de servidão pode, assim, ser definido como a atribuição ao titular de um prédio, dito dominante, de utilidades provenientes de outro prédio, dito serviente. Resulta ainda da definição legal que os dois prédios, dominante e serviente, devem pertencer a proprietários distintos, não podendo constituir-se uma servidão entre dois prédios pertencentes ao mesmo proprietário, em virtude da regra nemini res sua servit. O proprietário tem naturalmente o direito de afetar utilidades de um dos seus prédios em benefício do outro, mas essa afetação resultará do exercício da propriedade e não da servidão. Basta, no entanto, que a propriedade de um dos prédios não seja exclusiva para que se constitua a servidão, como sucede se o proprietário de um dos prédios for comproprietário do outro. Características das servidões prediais: as servidões prediais possuem, como direito real de gozo, as seguintes características:

1. Ligação necessária a um prédio: a primeira característica da servidão predial é a ligação a um prédio, por intermédio do qual esta se exerce. Efetivamente, a atribuição da servidão faz-se sempre em função da titularidade de um prédio dominante, não sendo admitidas no nosso Direito as servidões pessoais, em que a atribuição das utilidades do prédio se fizesse, independentemente de o seu beneficiário ser ou não titular de outro prédio. Não obstante, ao contrário do que poderia resultar do artigo 1543.º CC o titular do direito de servidão não é o prédio dominante, dado que este não pode ser sujeito de relações jurídicas, mas antes a pessoa que seja seu titular. O titular da servidão não tem que ser sequer necessariamente o proprietário do prédio, podendo as servidões ser constituídas igualmente em benefício do usufrutuário (artigo 1575.º CC) ou do superficiário (artigo 1529.º CC). A ligação da servidão ao prédio dominante é, no entanto, imprescindível, dado que apenas as utilidades que possam ser suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante podem ser objeto da servidão (artigo 1544.º CC). 2. Atipicidade do conteúdo: a segunda característica da servidão é a atipicidade do seu conteúdo. Efetivamente, o objeto da servidão pode ser variado, dado que o artigo 1544.º CC refere que o mesmo pode consistir em quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor. As servidões constituem assim hoje um direito atípico. Defendeu-se, no entanto, no Direito Romano que a servidão não poderia consistir numa prestação pessoal do proprietário do prédio serviente, não podendo consequentemente a mesma ter por objeto um dare ou um facere (servitus in faciendo consistire nequit). O encargo do prédio serviente apenas poderia consistir, assim, num pati, quando ao titular do direito de servidão fossem concedidas faculdades de uso e fruição do prédio serviente, ou num non facere, quando ao proprietário fosse vedada a prática de certos atos. No Direito Romano admitia-se como única exceção a servidão de apoio de edifícios (servitus oneri ferendi), em que o proprietário do prédio serviente tinha não apenas o dever de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão permitir o apoio de construção alheia sobre a sua, mas também o dever de reparar a coluna ou muro sempre que o apoio estivesse e causa. No Direito atual, embora não seja essa a regra que vigora a título supletivo, é admitido que o proprietário do prédio serviente se obrigue a custear as obras, podendo, no entanto, eximir-se desse encargo, renunciando à propriedade em benefício do titular do prédio dominante (artigo 1567.º, n.º4 CC). Parece, porém, que, devido ao facto de servidão ter que consistir num encargo do prédio serviente e não numa obrigação pessoal assumida pelo proprietário, não podem ser objeto de servidão prestações de dare ou de facere. Uma obrigação de reparar ou custear as obras, eventualmente assumida pelo proprietário do prédio serviente, não afasta esta exigência, dado que nesse caso se estará perante uma obrigação propter rem, assumida a título acessório, e que não se confunde com o conteúdo da servidão. Apesar da atipicidade das servidões, pode, no entanto, aproveitarse a classificação romana que apresentou as categorias mais importantes de servidões como correspondendo às necessidades de trânsito, água, luz, vistas, apoio e suporte entre os prédios e outras. Temos, assim, a servidão de passagem (servitus itineri), que permite transitar por prédio alheio; a servidão de escoamento, que permite lançar as águas supérfluas sobre prédio alheio; a servidão de aproveitamento de águas (servitus aquae haustus), que permite recolher a água de fonte alheia; a servidão de estilicídio (servitus stillicidium), que permite fazer gotejar as águas pluviais sobre prédio alheio; a servidão doe apoio do edifício (servitus oneris ferendi), que permite apoiar o próprio edifício sobre edifício alheio; a servidão de introdução de traves (servitus tigni immitendi), que permite introduzir traves ou barrotes na parede do edifício vizinho; a servidão de varandas (servitus projiciendi), que permite construir varanda, balcão ou sacada sobre o prédio vizinho; a servidão de não perturbação da luz (servitus ne luminibus officiatur), para impedir que as obras do vizinho diminuam a luz de uma casa; a servidão de não afetação da vista (servitus ne prospectus officiatur), para não permitir que se retire a vista a partir de um prédio; a servidão de vistas sobre um prédio (servitus luminum), que permite abrir janelas em parede própria, comum ou alheia, sem respeitar as distancias legais; a servidão de não edificação (servitus non aedificandi), em ordem a retirar ao vizinho a faculdade de construir no seu prédio; a servidão de limitação em altura (servitus altius non tollendi), que se destina a evitar que o vizinho levante o seu prédio acima de certa altura; a servidão de apascentamento (servitus pascendi), que permite levar o gado a pastar em prédio vizinho; e as servidões que permitem retirar bens do prédio vizinho, como minerais (servitus calcis conquendae), areias (servitus arenae fodiendi), argila (servitus cretae eximendae), ou lenha e mato (servitus silvae caedandae), etc. 3. Inseparabilidade: a terceira característica da servidão é a sua inseparabilidade em relação ao prédio sobre que incide. Efetivamente, o artigo 1545.º, n.º1 CC refere que, salvas as exceções previstas na lei, as servidões não podem ser separadas dos prédios sobre que incidem, ativa ou passivamente, acrescentando o n.º2 que a afetação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa sempre a constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga. A inseparabilidade acaba por constituir um corolário da regra de que as utilidades do prédio serviente devem ser gozadas através do prédio dominante. Questionou-se, porém, se a inseparabilidade vedaria a constituição de qualquer servidão que abrangesse utilidades separáveis dos prédios. a. Guilherme Moreira pronunciou-se nesse sentido, entendendo que utilidades que abrangessem a fruição de um prédio não poderia ser objeto de servidão, uma vez que o seu exercício pressupunha por definição a separação dos frutos. Assim,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão no caso de extração de madeira, barro, ou aproveitamento de água de nascente ou fonte situada em prédio alheio, não existiria possibilidade de constituição de servidão devido à separação dos proveitos em relação à coisa. b. Pires de Lima/Antunes Varela vieram a rejeitar esta conceção de Guilherme Moreira. Para estes autores, a inseparabilidade exige apenas que, em concreto, o direito a essas utilidades esteja ligado a um prédio dominante, sendo a inseparabilidade uma consequência dessa ligação. A inseparabilidade é, assim, uma característica meramente legal da servidão, uma vez que estas podem abranger utilidades separáveis dos prédios, existindo servidão sempre que as mesmas estejam afetas a um prédio dominante. A esta posição vieram, posteriormente, a aderir Mota Pinto, Oliveira Ascensão e Carvalho Fernandes. Em resultado da inseparabilidade da servidão, a mesma é intransmissível não podendo de per si ser objeto de alienação ou oneração. Efetivamente, o proprietário do prédio dominante não pode alienar a servidão a proprietário de prédio diverso, separadamente do prédio dominante, nem pode destaca-la do seu prédio e anexá-la a outro prédio seu. Se o fizer, extinguir-se-á a servidão anterior, embora possa constituir-se uma nova (artigo 1545.º, n.º2 CC). Da mesma forma, não pode a servidão ser objeto autónomo de hipoteca ou penhora, atenta a sua inalienabilidade como tal (artigo 736.º, proémio, CPC). A servidão acompanha, no entanto, o prédio dominante ou serviente, caso algum deles seja alienado (ambulante cum dominio) ou onerado, podendo, por exemplo, em caso de constituição de usufruto ou arrendamento, o usufrutuário ou o arrendatário exercerem a servidão (artigo 1449.º CC). 4. Indivisibilidade: como última característica das servidões, temos a sua indivisibilidade. Esta característica aparece referida no artigo 1546.º CC, que refere que as servidões são indivisíveis; se o prédio serviente for dividido entre vários donos, cada porção fica sujeita à parte da servidão que lhe cabia; se for dividido o prédio dominante, tem cada consorte o direito de usar da servidão sem alteração nem mudança. A indivisibilidade das servidões implica que as mesmas não sejam suscetíveis de ser repartidas por partes, incidindo sobre a totalidade do prédio serviente e não sobre uma parte deste, e sendo sempre exercidas por intermédio de todo o prédio dominante e não apenas sobre uma parte. O uso da servidão pode ser limitado, como sucede se se delimitar a área do terreno sobre que se faz a passagem e os dias e horas a que esta pode ocorrer, mas ocorre sempre o exercício in totu da servidão e não apenas de uma sua parte. Daqui resulta que a divisão dos prédios não importa a multiplicação das servidões. Assim, se, por exemplo, um prédio sobre o qual recaía uma servidão de passagem for dividido, apenas a fração sobre o qual a passagem se exercia permanece onerada com a servidão, não surgindo duas servidões em resultado dessa divisão. Se for o prédio dominante a ser dividido, também não passa a haver duas servidões de passagem, ocorrendo antes uma contitularidade na servidão, podendo qualquer dos consortes passar nos mesmos termos em que o fazia.

Modalidades de servidões: 1. Servidões legais e voluntárias: a servidão legal (ou coativa), é a que pode ser constituída sem o consentimento do proprietário do prédio sujeito à servidão. A servidão voluntária é aquela que exige o consentimento do proprietário do prédio serviente para se constituir. A classificação não se baseia, assim, no facto de as servidões resultarem da lei ou de negócio jurídico, mas no facto de poderem ser ou não coercivamente constituídas. Entre as servidões legais, encontram-se a servidão legal de passagem (artigos 1550.º e

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão seguintes CC) e a servidão legal de águas (artigos 1557.º e seguintes CC). Nos termos do artigo 1547.º, n.º2 CC, as servidões legais podem ser objeto de constituição voluntária por negócio jurídico ou, em caso de recusa do proprietário do prédio serviente, através de sentença judicial ou decisão administrativa, conforme os casos. As servidões legais têm ainda causas de extinção particulares como a desnecessidade (artigo 1569.º, n.º2 e 3 CC) ou a remição (artigo 1569.º, n.º4 CC). 2. Servidões positivas, negativas e desvinculativas: uma servidão positiva é aquela que atribui ao titular do prédio dominante o poder de realizar certos atos sobre o prédio serviente, como ocorre. Como exemplo de servidões positivas, temos a servidão de passagem ou a servidão de apascentamento. Pelo contrário, na servidão negativa, o titular do prédio serviente fica obrigado a se abster da prática de certos atos, em ordem a incrementar as utilidades do prédio dominante. São exemplos de servidões negativas a servidão de não edificação, a servidão de limitação em altura ou a servidão de não afetação da vista. Por último, as servidões desvinculativas são aquelas em que ocorre a libertação do prédio de uma restrição legal imposta em benefício do prédio serviente, como a proibição de certas emissões. Exemplos de servidões desvinculativas são a servidão de escoamento (artigo 1563.º CC) ou a servidão de estilicídio (artigo 1365.º, n.º2 CC). 3. Servidões aparentes e não aparentes: são servidões aparentes aquelas que se revelam por sinais visíveis e permanentes. Pelo contrário, são servidões não aparentes aquelas que não se revelam por esses sinais (artigo 1548.º, n.º2 CC). É de salientar que a distinção entre servidões aparentes e não aparentes não se confunde com a questão relativa ao caráter público ou oculto da sua posse. Pode haver posse pública em servidões não aparentes, como na servidão de aproveitamento de água. Pelo contrário, pode haver posse oculta em servidões aparentes, como na servidão de passagem. O que é decisivo para a qualificação de uma servidão como aparente é a verificação de sinais relativos à existência dessa servidão, tendo esses sinais que ser visíveis e permanentes. A visibilidade dos sinais significa que os mesmos devem manifestar a servidão erga omnes, podendo não apenas o dono do prédio serviente mas também qualquer outra pessoa observar esses sinais. A permanência dos sinais significa que os mesmos existem sempre, mesmo que se possa verificar a sua substituição ou transformação. Um exemplo de sinal visível e permanente será, na servidão de passagem, a existência de uma abertura ou carreiro, pelo qual a passagem se exerce. Qualquer pessoa pode ver esse sinal e o mesmo permanece, ainda que a abertura ou carreiro possam ser modificados. As servidões não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião (artigos 1548.º, n.º1 e 1293.º, n.º1, alínea a) CC) e também não permitem a constituição por destinação dopai de família (artigo 1549.º CC). Por outro lado, nos termos do artigo 5.º, n.º2, alínea b) CRPr, o registo das servidões aparentes é meramente enunciativo, pelo que o titular do direito de servidão aparente, mesmo que não haja registada a aquisição do seu direito, não pode ver o seu direito arredado por força da tutela registal dada ao terceiro de boa fé. 4. Servidões contínuas e descontínuas: esta distinção deve-se a Bartolo, distingue, assim, que servidões contínuas são aquelas que se exercem permanentemente, independentemente de qualquer ação do homem. Pelo contrário, servidões descontínuas são aquelas cujo exercício é intermitente, dependendo de ação humana. Como exemplos de servidões contínuas temos a servidão de aqueduto, de estilicídio ou de vistas, uma vez que nelas o prédio dominante recebe permanentemente o benefício do prédio serviente sem necessidade de ação humana, respetivamente através do encanamento de água, do gotejar da mesma pelo beiral ou em virtude da localização da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão janela. Constituem, pelo contrário, servidões descontínuas as servidões de passagem, de aproveitamento de águas, ou de apascentamento, uma vez que para as exercer é necessário o ato de atravessar o terreno, de ir à fonte, ou de conduzir o gado. A classificação das servidões em contínuas e descontínuas não se confunde com a classificação das servidões em aparentes e não aparentes. Na verdade, as servidões contínuas podem ser aparentes, como as servidões de aqueduto e vistas, ou não aparentes, como as servidões de limitação em altura ou de não edificação. E também as servidões descontínuas podem ser aparentes ou não aparentes, como será o caso de a servidão de passagem ter ou não porta de acesso. A classificação das servidões em contínuas e descontínuas teve grande utilidade prática até à reforma de 1930 do Código Civil de 1867, dado que, na sua redação originária, o seu artigo 2272.º não permitia que as servidões descontínuas se pudessem adquirir por usucapião. Como hoje apenas são excluídas da usucapião as servidões não aparentes (artigos 1293.º, alínea a) e 1548.º, n,º.1 CC), a classificação perdeu algum interesse. Tem, no entanto, ainda relevo para efeitos do início do prazo para a extinção pelo não uso (artigo 1570.º CC).

A constituição das servidões: nos termos do artigo 1547.º, n.º1 CC as servidões prediais podem ser constituídas por:

1. Contrato: as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, nos termos gerais, como sucede se os proprietários acordarem em atribuir, por intermédio de um dos prédios determinados utilidades ao outro prédio. O contrato constitutivo da servidão deve ser celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos do artigo 22.º, alínea Decreto-Lei n.º116/2008, estando sujeito a registo nos termos do artigo 2.º, n.º1, alínea a) CRPr. 2. Testamento: as servidões prediais podem ser constituídas por testamento, como sucede se alguém efetuar um legado de um prédio a favor de outrem, constituindo simultaneamente uma servidão a favor dos testamentos (artigos 2204.º e seguintes CC). 3. Usucapião: as servidões prediais podem igualmente ser constituídas por usucapião, mas apenas no caso das servidões aparentes, atenta a proibição de se constituírem por usucapião as servidões não aparentes (artigos 1293.º, alínea a) e 1548.º, n.º1 CC). É um regime que se compreende, atento a circunstância de as servidões não aparentes, dado o facto de não se revelarem por sinais visíveis e permanentes, poderem estar a ser exercidas na ignorância do proprietário do prédio serviente, ou serem confundidas com atos de mera tolerância deste. A usucapião fica assim reservada às servidões aparentes, que se revelam por sinais visíveis e permanentes. Não prejudica a aquisição de uma servidão de passagem por usucapião o facto de ocorrer, durante o respetivo prazo, a alteração do traçado da servidão. 4. Destinação do pai de família: uma hipótese particular de constituição das servidões é a destinação do pai de família. A constituição da servidão por destinação do pai de família ocorre sempre que em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro. Esses sinais serão havidos como prova de servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento (artigo 1549.º CC). Exigem-se, assim, quatro requisitos para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão a. Que os dois prédios ou as duas frações de um prédio tenham pertencido ao mesmo dono: este primeiro pressuposto da constituição da servidão por destinação do pai de família é o de que os prédios ou frações tenham pertencido ao mesmo dono. Efetivamente, a destinação do pai de família tem que resultar do uso anterior dos prédios por um antigo proprietário comum, pelo que, a partir do momento em que os prédios ou frações pertencem a pessoas diversas, a servidão poderá ser constituída por usucapião, mas já não por destinação do pai de família. b. Que existam sinais visíveis e permanentes reveladores de uma situação estável de serventia de um dos prédios em relação ao outro: este segundo pressuposto é a existência de sinais visíveis permanentes, postos em um ou ambos os prédios, que revelem a intenção ou a consciência do antigo proprietário de criar uma situação de serventia estável de um dos prédios em relação ao outro, semelhante à de uma servidão aparente, no caso de os prédios pertencerem a donos diferentes. Tem-se ainda entendido que esses sinais têm que ser inequívocos em relação à vontade ou consciência do proprietário de criar uma situação estável e duradoura de afetação das utilidades de um prédio em benefício de outro, uma vez que havendo equivocidade dos sinais não se pode considerar constituída a servidão por destinação do pai de família. Não interessa, no entanto, a forma como o proprietário primitivo tinha utilizado o prédio, resultando a serventia apenas dos sinais visíveis e permanentes que demonstrem inequivocamente a concessão de uma utilidade de um prédio em benefício de outro. c. Que os dois prédios ou as frações de um prédio tenham vindo a ser separados do mesmo domínio: o terceiro pressuposto é o de que os dois prédios ou frações de um tenham vindo a ser separados do mesmo domínio. Essa separação pode ocorrer por alienação de um dos prédios ou fração a outra pessoa, por alienação deles a pessoas diferentes ou por ato de divisão ou partilha. d. Que não haja no documento relativo a essa separação nenhuma declaração contrária à existência desse encargo: este último quarto pressuposto é o de que no documento de separação nada se preveja em sentido contrário à existência desse encargo. Efetivamente, a constituição da servidão por destinação do pai de família tem caráter supletivo, pelo que as partes poderão dispor em sentido contrário no respetivo documento. No caso, porém, de divisão ou partilha de prédios sem intervenção de terceiro, a constituição por destinação de pai de família relativamente às servidões de águas não depende da existência de sinais reveladores da destinação do antigo proprietário (artigo 1390.º, n.º3 CC). Trata-se de um caso particular de constituição por destinação do pai de família, que dispensa esse requisito. 5. Sentença judicial ou decisão administrativa: as servidões legais têm ainda duas hipóteses particulares de constituição, na falta de constituição voluntária: a sentença judicial e a decisão administrativa, consoante os casos. A constituição da servidão por sentença judicial verifica-se sempre que o proprietário do prédio sujeito à servidão legal não decida voluntariamente realizar a sua constituição. Assim, por exemplo, em caso de oposição à constituição de servidão legal de passagem sobre prédio encravado, poderá o proprietário desse prédio exigir judicialmente a constituição da respetiva servidão.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Finalmente, podem ocorrer casos de constituição da servidão por decisão administrativa, como sucede com as servidões legais de águas, ligadas a concessões de águas públicas.

Conteúdo das servidões: nos termos do artigo 1564.º CC, as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respetivo título, sendo as disposições dos artigos 1565.º e seguintes CC apenas aplicáveis supletivamente. É assim o título constitutivo o elemento modelador determinante em relação ao exercício da servidão. Nos termos do artigo 1565.º, n.º1 CC, o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação, havendo assim uma extensão da servidão a todos os poderes necessários para o uso e conservação da mesma. O artigo 1565.º, n.º2 CC especifica que em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-ia constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo do prédio serviente, no que tem sido designado como a lei do mínimo meio. Entre os poderes que são conferidos ao proprietário do prédio dominante, nos termos do artigo 1566.º, n.º1 CC, encontrase o de realizar obras no prédio serviente, desde que não torne mais onerosa a servidão. As obras devem ser feitas no tempo e pela forma que sejam mais convenientes para o proprietário do prédio serviente (artigo 1566.º, n.º2 CC). Relativamente ao encargo dessas obras, estabelece o artigo 1567.º, n.º1 CC que as mesmas são feitas à custa do proprietário do prédio dominante, salvo se outro regime tiver sido convencionado (artigo 1567.º, n.º1 CC). Sendo diversos os prédios dominantes, todos os proprietários são obrigados a contribuir, na proporção da parte que tiverem nas vantagens da servidão, para as despesas das obras, sendo, no entanto, possível a qualquer deles renunciar à servidão para se eximir desse encargo (artigo 1567.º, n.º2 CC). Se o proprietário do prédio serviente também auferir utilidades da servidão é obrigado a contribuir pela mesma forma (artigo 1567.º, n.º3 CC). No entanto, se ele se tiver obrigado a custear as obras só lhe será possível eximir-se desse encargo pela renúncia ao seu direito de propriedade em benefício do proprietário do prédio dominante. No caso de a servidão onerar apenas uma parte do prédio, pode a renúncia limitar-se a essa parte. Recusando-se, no entanto, o proprietário do prédio dominante a aceitar a renúncia, não fica por isso o proprietário do prédio serviente, dispensado de custear as obras (artigo 1569.º, n.º4 CC).

Mudança das servidões: a lei admite no artigo 1568.º CC a possibilidade de mudança da servidão para sítio diferente do primitivamente assinado ou para outro prédio, o qual pode inclusivamente pertencer a terceiro, se existir acordo deste. A mudança pode ocorrer a requerimento do titular do prédio serviente ou do titular do prédio dominante. Em ambos os casos, basta que a mudança seja conveniente, seja feita à custa do proprietário que a requer e não prejudique os interesses do proprietário do outro prédio dominante (artigo 1568.º, n.º1 e 2 CC). Para além da mudança da servidão, pode igualmente ser alterado o seu modo de exercício, desde que se verifiquem os pressupostos acima referidos (artigo 1568.º, n.º3 CC). A faculdade de mudança da servidão ou do seu modo e tempo de exercício justifica-se em função da denominada lei do mínimo meio, nos termos da qual se entende que a servidão, como encargo sobre o prédio, deve implicar as maiores vantagens para o prédio dominante com o menor prejuízo possível para o proprietário do prédio serviente. Assim, se o proprietário do prédio serviente tiver menores prejuízos ou o proprietário do prédio dominante maiores vantagens com a alteração da servidão, sem que tal afete o outro proprietário, justifica-se a alteração da servidão. Esta faculdade aparece como essencial ao direito de servidão, tanto assim que a lei não admite que a mesma possa ser renunciada ou limitada por negócio jurídico (artigo 1568.º, n.º4 CC).

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As servidões legais: 1. As servidões legais de passagem: uma hipótese de servidão legal é a denominada servidão legal de passagem. O nosso legislador prevê para esta servidão duas hipóteses a. Servidão de passagem em benefício de prédio encravado: a servidão de passagem em benefício de prédio encravado encontra-se prevista no artigo 1550.º CC. É concedida aos proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, ou possuam comunicação insuficiente através de terreno próprio ou alheio. Estes proprietários podem constituir a servidão de passagem através dos terrenos vizinhos. Nesse caso, e mais uma vez por força da lei do mínimo meio, a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados (artigo 1553.º CC). A lei prevê, no entanto, que os proprietários de quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos podem subtrair-se ao encargo, de ceder passagem, adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor (artigo 1551.º, n.º1 CC), solução que se compreende em função dos maiores prejuízos que neste caso provoca a constituição da servidão. Na falta de acordo sobre o preço de aquisição do prédio encravado, o mesmo é fixado judicialmente. Se forem dois ou mais os proprietários interessados, abrir-se-á licitação entre eles, revertendo o excesso para o alienante (artigo 1551.º, n.º2 CC). O artigo 1554.º CC estabelece que pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido. Esta formulação, já constante do Código anterior, provocou divergências na doutrina. i. Manuel Rodrigues entendeu que se abrangia aqui não apenas a desvalorização siportada pelo prédio vizinho, mas também o valor de uso da passagem, em termos de benefício adquirido pelo prédio dominante. ii. Pires de Lima e Antunes Varela e Gonçalves Rodrigues sustentam, pelo contrário, que no conceito de prejuízo apenas se insere a desvalorização do prédio vizinho e os lucros cessantes perdidos pelo seu titular, mas não os benefícios recebidos pelo prédio dominante. iii. Pensamos ser esta última a melhor posição, face à consagração legal da subsidariedade da ação de enriquecimento (artigo 474.º CC). No caso, porém, de ser o proprietário que, sem justo motivo, tenha provocado o encrave absoluto ou relativo do prédio, ele só poderá constituir a servidão mediante o pagamento de indemnização agravada (artigo 1552.º, n.º1 CC), a qual é fixada, de harmonia com a culpa do proprietário, até ao dobro da que normalmente seria devida (artigo 1552.º, n.º2 CC). Em casos mais graves, deve até considerar-se que a constituição da servidão pode envolver abuso de direito (artigo 334.º CC), por venire contra factum proprium. O artigo 1555.º CC atribui ao proprietário do prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o seu título constitutivo, direito de preferÊncia na alienação do prédio encravado. É de salientar, no entanto, que o direito de preferência só é atribuído no caso de a servidão legal de passagem já estar constituída, não bastando a mera possibilidade de a constituir em resultado da situaçaõ de encrave.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão b. Servidão de passagem para o aproveitamento de águas: outra hipótese legalmente prevista de servidão legal de passagem, corresponde à servidão de passagem para o aproveitamento de águas. Efetivamente, o artigo 1556.º, n.º1 CC, estabelece a possibilidade de constituir uma servidão de passagem sobre terreno alheio sempre que, para os seus gastos domésticos, os proprietários não tenham acesso às fontes, poços e reservatórios públicos destinados a esse uso, nem às correntes do domínio público. No entanto, a servidão legal de passagem só pode neste caso ser constituída depois de se verificar que os proprietários que as reclamam não podem haver água suficiente de outra proveniência sem excessivo incómodo ou dispêndio (artigo 1556.º, n.º2 CC). x. Atravessadouros e caminhos públicos: encontramos alguma conexão com a servidão legal de passagem na situação dos atravessadouros ou atalhos, os quais, no entanto, não constituem servidões. Os atravessadouros são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante desses prédios. Distinguem-se dos caminhos públicos porque estes se destinam a estabelecer ligações de maior importância entre povoações e os seus leitos fazem parte integrante do domínio público. Os atravessadouros constituem uma espécie de servidões irregulares, dado que não se estabelecem em benefício de prédios determinados, mas antes em benefício de qualquer pessoa. Precisamente por esse motivo, a lei tem vindo a procurar reprimir os atravessadouros. Estes foram, genericamente, abolidos pela Lei de 9 julho 1773, cujo §12.º, confirmado pelo Decreto 17 de julho 1778, só os permitia quando possibilitassem o acesso através de prédios particulares a fontes, pontes ou fazendas, que não pudessem ter outra serventia. Esta disposição foi mantida em vigor pelo Código de Seabra, o qual apenas regulava atravessadouros em proveito direto de certos prédios, os quais constituíam verdadeiras servidões, como a servidão em benefício de prédio encravado. Atualmente, o regime dos atravessadouros consta dos artigos 1383.º e 1384.º CC, considerando a primeira disposição abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões. A disposição seguinte reconhece, porém, os atravessadouros com posse imemorial, que dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial. Diferente dos atravessadouros são os chamados caminhos públicos, os quais fazem parte do domínio público. Estes correspondem àqueles caminhos que, embora atravessando prédios particulares, se encontram no uso direto e imediato do público desde tempos imemoriais e se encontram afetos a fins de utilidade pública, visando a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância. Os caminhos públicos permanecem no domínio público enquanto não se verificar a sua desafetação desse mesmo domínio. Essa desafetação pode ocorrer expressa ou tacitamente exigindo-se, porém, no caso de desafetação tácita, que se verifique a modificação das circunstâncias que determinam a afetação, não bastando, para tal, que o caminho deixe de ser utilizado pelo público.

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2. Servidões legais de águas: outra modalidade específica de servidões legais corresponde à das servidões legais de águas. Neste caso, encontram-se: a. Servidão de aproveitamento de águas: a servidão legal de aproveitamento de águas é atribuída ao titular de um prédio que não tenha água suficiente para as suas necessidades, e não a possa obter sem excessivo incómodo ou dispêndio, sendo-lhe por isso reconhecido o direito de constituir uma servidão para aproveitar as águas existentes no prédio vizinho. A lei estabelece um regime diferenciado consoante o aproveitamento das águas se destine a gastos domésticos (artigo 1557.º CC) ou para fins agrícolas (artigo 1558.º CC). Estando em causa i. O aproveitamento de água para gastos domésticos: a servidão legal de águas só é atribuída quando não seja possível ao proprietário, sem excessivo incómodo ou dispêndio, obter água através da servidão legal de passagem prevista no artigo 1556.º CC, funcionando assim como subsidiária em relação a esta. Apenas nesse caso os proprietários dos prédios vizinhos podem ser compelidos a permitir, mediante indemnização, o aproveitamento das águas sobrantes das suas nascentes ou reservatórios, na medida do indispensável para aqueles gastos (artigo 1557.º, n.º1 CC). Estão, no entanto, isentos da servidão os prédios urbanos e as quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos (artigos 1557.º, n.º2 e 1551.º, n.º1 CC). ii. O aproveitamento de águas para fins agrícolas: a lei atribui ao proprietário que não tiver nem puder obter, sem excessivo incómodo ou dispêndio, água suficiente para a irrigação do seu prédio, a faculdade de aproveitar as águas dos prédios vizinhos, que estejam sem utilização, pagando o seu justo valor (artigo 1558.º, n.º1 CC). A servidão não se estende, porém, às águas provenientes de concessão, nem faculta a exploração de águas subterrâneas em prédio alheio (artigo 1558.º, n.º2 CC). b. Servidão de presa: a servidão de presa distingue-se da servidão de aproveitamento de águas pelo facto de não se limitar à recolha de águas em prédio alheio, atribuindo antes a faculdade de represar a água e a fazer derivar desse prédio. A lei distingue consoante estejam em causa: i. Águas particulares (artigo 1559.º CC): a atribuição da servidão de presa surge como consequência da existência de um direito ao uso das águas particulares existentes em prédio alheio, de que sejam titulares os proprietários ou os donos de estabelecimentos industriais. Poderá esse direito ao uso das águas particulares corresponder a uma servidão de aproveitamento de águas, se a utilização destas se relacionar com as necessidades de um determinado prédio, ou mesmo à propriedade das águas, se o titular puder utilizá-las livremente. Em qualquer caso, resulta desse direito a possibilidade de o titular constituir coercivamente uma servidão de presa, que lhe permita fazer no prédio alheio as obras necessárias ao represamento e derivação da respetiva água, mediante o pagamento da indemnização correspondente ao prejuízo causado (artigo 1559.º CC).

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ii. Águas públicas (artigo 1560.º CC): nos termos do artigo 1560.º, n.º1 CC, a servidão de presa só pode ser imposta coercivamente nos casos seguintes: 1. Quando os proprietários, ou os donos de estabelecimentos industriais, sitos na margem de uma corrente não navegável nem flutuável, só possam aproveitar a água a que tenham direito, fazendo presa, açude ou obra semelhante que vá travar no prédio fronteiro; 2. Quando a água tenha sido objeto de concessão, considerando neste caso a servidão constituída em virtude desta, sem prejuízo de a indemnização, na falta de acordo, ser fixada pelo tribunal (artigo 1560.º, n.º3 CC). Quer na primeira situação, quer no caso de concessão de interesse privado, não estão sujeitas à servidão as casas de habitação, nem os quintais, jardins ou terreiros que lhes sejam contíguos. No caso de concessão de utilidade pública, estes prédios só estão sujeitos ao encargo se no respetivo processo administrativo se tiver provado a impossibilidade material ou económica de executar as obras sem a sua utilização (artigo 1560.º, n.º2 CC). Se o proprietário do prédio fronteiro sujeito à servidão de travamento quiser utilizar a obra realizada, pode torna-la comum, provando que tem direito a aproveitar-se da água e pagando uma parte da despesa proporcional ao benefício que receber (artigo 1560.º, n.º4 CC). c. Servidão de aqueduto: uma outra categoria de servidão legal de águas é a servidão de aqueduto, a qual se reconduz à faculdade de conduzir sobre prédio alheio as águas a que o titular da servidão tenha direito. A servidão de aqueduto tem igualmente um regime distinto, consoante estejam em causa i. Águas particulares (artigo 1561.º CC): o artigo 1561.º, n.º1 CC admite a constituição dessa servidão, permitindo, em proveito da agricultura ou da indústria ou para gastos domésticos, aos proprietários encanar, subterraneamente ou a descoberto, as águas particulares a que tenham direito, através de prédios rústicos alheios, não sendo quintais, jardins ou terreiros contíguos a casas de habitação. No entanto, as quintas muradas só estão sujeitas ao encanamento quando o aqueduto seja constituído subterraneamente. Mais uma vez, de acordo com a lei do mínimo meio, a natureza, a direção e forma do aqueduto serão as mais convenientes para o prédio dominante e as menos onerosas para o prédio serviente (artigo 1561.º, n.º3 CC). A constituição da servidão obriga a indemnizar o proprietário do prédio serviente pelo prejuízo que das obras resulte para o seu prédio (artigo 1561.º, n.º1 CC). Para além disso, o proprietário tem, a todo o tempo, o direito de ser também indemnizado do prejuízo que venha a resultar da infiltração ou erupção das águas ou da deterioração das obras feitas para a sua condução (artigo 1561.º, n.º2 CC). Se a água do aqueduto não for toda necessária ao seu proprietário, e o proprietário do prédio serviente quiser ter parte no excedente, ser-lhe-á concedida essa parte a todo o tempo, mediante prévia indemnização e, pagando ele, além disso, a quota proporcional à

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão despesa feita com a sua condução até ao ponto em que pretende derivála (artigo 1561.º, n.º4 CC). ii. Águas públicas (artigo 1562.º CC): a constituição forçada da servidão de aqueduto só é admitida no caso de haver concessão de água (artigo 1562.º, n.º1 CC). A servidão de aqueduto considera-se constituída em resultado da concessão, sem prejuízo de a indemnização, na falta de acordo, ser fixada pelo tribunal (artigos 1562.º, nº2 e 1560.º, n.º3 CC). No entanto, no caso de concessão de interesse privado, não estão sujeitas à servidão as casas de habitação, nem os quintais, jardins ou terreiros que lhes sejam contíguos. No caso de concessão de utilidade pública, estes prédios só estão sujeitos ao encargo se no respetivo processo administrativo se tiver provado a impossibilidade material ou económica de executar as obras sem a sua utilização (artigos 1562.º, n.º2 e 1560.º, n.º2 CC). d. Servidão de escoamento: uma outra servidão legal é a denominada servidão de escoamento, a qual consiste na faculdade de fazer escoar sobre prédio vizinho as águas que existem em excesso em determinado prédio. A servidão de escoamento não se confunde com a obrigação resultante das relações de vizinhança de permitir o escoamento natural das águas (artigo 1351.º, n.º1 CC), uma vez que implica a realização de atos ou obras que extravasem desse escoamento natural (artigo 1351.º, n.º2 CC). Nos termos do artigo 1563.º, n.º1 CC, a servidão de escoamento pode ser constituída forçadamente nos seguintes casos: i. Quando, por obra do homem, e para fins agrícolas ou industriais, nasçam águas em algum prédio ou para ele sejam conduzidas de outro prédio; ii. Quando se pretenda dar direção definida às águas que seguiam o seu curso natural; iii. Em relação a águas provenientes de gaivagem, canos falsos, guardamatos, alcorcas ou qualquer outro modo de enxugo de prédios; iv. Quando haja concessão de águas públicas, relativamente às sobejas. A servidão de escoamento só pode ser constituída sobre os prédios que possam ser onerados com a servidão legal de aqueduto (artigo 1563.º, n.º4 CC). Assim, e por força do artigo 1561.º, n.º1 CC, não será possível constituir uma servidão de escoamento sobre quintais, jardins ou terreiros contíguos a casas de habitação. Uma vez constituída a servidão de escoamento, os proprietários onerados adquirem direito ao uso das águas escoadas nos seus prévios, mas a privação desse uso, em virtude de novo aproveitamento da água efetuado pelo titular do prédio dominante não constitui violação do seu direito (artigos 1563.º, n.º2 e 1391.º CC). A constituição da servidão de escoamento pressupõe, no entanto, o pagamento prévio da indemnização (artigo 1563.º, n.º1, in principio CC). Na liquidação da indemnização será levada em conta o valor dos benefícios que para o prédio serviente advenham do uso da água e, no caso da alínea b), será atendido o prejuízo que já resultava do decurso natural das águas (artigo 1563.º, n.º4 CC).

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A extinção das servidões: o artigo 1569.º CC admite as seguintes causas específicas de extinção da servidão:

1. Confusão de propriedades: a primeira causa de extinção das servidões, referida no artigo 1569.º, n.º1, alínea a) CC é a confusão de propriedades, ou seja, a reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa. Essa situação pode ocorrer tanto na hipótese de o titular de um dos prédios adquirir o outro, como na hipótese de um terceiro adquirir os dois prédios, podendo, em ambos os casos, a aquisição resultar, quer de sucessão, quer de contrato, quer de usucapião. A lei prevê um caso particular de aquisição do prédio serviente pelo titular do prédio dominante, em caso de renúncia liberatória à propriedade por parte do titular do prédio serviente, para se eximir do encargo das obras, sendo essa renúncia aceite pelo titular do prédio dominante (artigo 1567.º, n.º4 CC). A razão para a extinção da servidão nestes casos resulta do brocardo neminem res sua servit. Naturalmente que a relação de serventia se pode manter entre os dois prédios, mas se tal passa a resultar do exercício da propriedade, e não do direito de servidão. Ao se referir ao domínio, a lei exige que a reunião se verifique em virtude da aquisição da propriedade plena sobre os dois prédios. Assim, se o titular de um dos prédios adquirir o usufruto ou o direito de superfície sobre o outro prédio, manter-se-á a servidão. Também a servidão se manterá se apenas for adquirida a compropriedade ou parte especificada de outro prédio, atento o princípio da indivisibilidade da servidão. 2. Não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo: nos termos do artigo 1569.º, n.º1, alínea b) CC, importa igualmente a extinção da servidão o não uso durante vinte anos, qualquer que seja motivo. O não uso extingue todas as servidões, sejam elas contínuas ou descontínuas, aparentes ou não aparentes, positiva ou negativas, ainda que naturalmente o mesmo revista natureza diferente, consoante o tipo de servidão em causa. Assim, nas servidões positivas, o não uso consiste em o proprietário do prédio dominante deixar de gozar o direito adquirido. Nas servidões negativas, o não uso resulta do facto de o titular não se ter oposto à violação do dever de non facere por parte do titular do prédio serviente. Finalmente, nas servidões desvinculativas, o não uso consiste em voltar a observar as restrições habituais nos prédios. A impossibilidade de exercício da servidão não importa a sua extinção, enquanto não decorrer o prazo de vinte anos, exigindo legalmente para o não uso (artigo 1571.º CC). A lei nega assim relevo autónomo à impossibilidade de exercício como causa de extinção da servidão, considerando-a apenas como um motivo para o não uso. O artigo 1570.º CC esclarece-nos quando se inicia o prazo para a extinção pelo não uso, estabelecendo uma distinção entre: a. Servidões contínuas: o prazo corre desde a verificação de algum facto que impeça o exercício (artigo 1570.º, n.º1, in fine CC), como na hipótese de uma servidão de vistas, em que o não uso se inicia logo que seja colocado algum impedimento à vista sobre o prédio serviente. Não há, porém, não uso se não houver impedimento, mesmo que a servidão não esteja a ser aproveitada. Assim, numa servidão de aqueduto, o facto de a água deixar de passar não implicará o não uso da servidão, sendo necessário que surja um obstáculo que impeça essa passagem como a obstrução do aqueduto ou a destruição do rego. b. Servidões descontínuas: o prazo inicia-se a partir do momento em que a servidão deixa de ser usada (artigo 1570.º, n.º1, in principio CC). Assim, se alguém tem uma servidão de passagem, verificar-se-á o não uso da servidão a partir do momento em que o titular do prédio dominante deixar de atravessar o prédio 大象城堡

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serviente. No caso, porém, de se tratar de servidões descontínuas exercidas a intervalos de tempo, o prazo apenas corre desde o dia em que poderiam exercerse e não foi retomado o seu exercício (artigo 1570.º, n.º2 CC). Assim, por exemplo, se alguém tiver uma servidão de passagem para, de dez em dez anos, vir recolher madeiras de um pinhal, o prazo iniciar-se-á, não no momento do último ato de uso, mas no momento em que poderia ter sido retomado o exercício da servidão e tal não ocorreu. Uma vez iniciado o prazo para o não uso, seguem-se regras de caducidade para calcular o seu decurso (artigo 298.º, n.º3 CC) pelo que não se aplicam neste caso as regras relativas à suspensão (artigos 318.º e seguintes CC) ou interrupção da prescrição (artigo 323.º e seguintes CC). É manifesto, no entanto, que qualquer ato de uso da servidão interrompe o decurso do prazo do não uso. Se houver vários titulares do prédio dominante, o uso que um deles fizer da servidão aproveita aos demais (artigo 1570.º, n.º3 CC). A servidão não deixa de se considerar exercida por inteiro, quando o proprietário do prédio dominante aproveite apenas uma parte das utilidades que lhe são inerentes (artigo 1572.º CC), não se verificando assim neste caso o não uso da servidão. Tal explica-se porque o exercício parcial da servidão é sempre uma reafirmação do direito que assiste ao seu titular. Assim, se, por exemplo, alguém tiver uma servidão de passagem, que lhe permita atravessar esse terreno a pé ou de carro, e durante vinte anos apenas o atravessar a pé, a servidão não é por isso afetada, podendo o titular a qualquer momento voltar a atravessá-la de carro. Da mesma forma, se alguém tiver uma servidão de presa de águas, a mesma não se extingue se for reduzido o acesso à água, desde que seja possível continuar a aproveitar dela em menor medida. Diferente, no entanto, é a solução para a hipótese de exercício da servidão em época diversa da fixada no título. Nos termos do artigo 1573.º CC, tal não impede a sua extinção pelo não uso, sem prejuízo da possibilidade de aquisição de uma nova servidão por usucapião. Assim, por exemplo, se alguém deveria exercer uma servidão no Verão e passa a fazê-lo no Inverno, a servidão pode ser extinta por não uso, sem garantia de que ocorra a aquisição de uma nova servidão por usucapião, o que só se verificará se estiverem preenchidos os pressupostos da mesma. Usucapio libertatis: outra causa específica de extinção das servidões é a usucapio libertatis, nos termos dos artigos 1569.º, n.º1, alínea c) e 1574.º CC. Analisámos já detalhadamente esta causa de extinção no âmbito da extinção em geral dos direitos reais. Renúncia: outra forma de extinção das servidões, referida no artigo 1569.º, n.º1, alínea d) CC, é a renúncia do proprietário do prédio dominante, a qual não requer aceitação do proprietário do prédio serviente (artigo 1569.º, n.º5 CC). Uma hipótese de renúncia à servidão legalmente prevista é a renúncia liberatória à servidão para o proprietário de um dos prédios dominantes se eximir do encargo de custear as obras (artigo 1567.º, n.º2 CC). Decurso do prazo: as servidões podem ainda extinguir-se pelo decurso do prazo, de tiverem sido constituídas temporariamente, nos termos gerais (artigo 1569.º, n.º1, alínea e) CC). Desnecessidade, no caso das servidões constituídas por usucapião e das servidões legais: uma das causas específicas da extinção das servidões constituídas por usucapião, bem como das servidões legais, é a desnecessidade. Efetivamente, estabelece o artigo 1569.º, n.º2 CC, que as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante. Acrescenta a este propósito o artigo 1569.º, n.º3 CC que o disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição; tendo havido indemnização, será esta restituída, no todo ou em parte, conforme as circunstâncias. Pelo contrário, nem as servidões constituídas por contrato ou testamento, nem as servidões constituídas por destinação do pai de família se podem extinguir por desnecessidade. A razão para a extinção por desnecessidade destas servidões resulta do facto de a sua manutenção desvalorizar os prédios servientes, sem beneficiar os prédios dominantes. A lei vem assim extinguir estas servidões atenta a sua inutilidade para o prédio dominante. A desnecessidade tem necessariamente que ser superveniente, uma vez que se for originária, a constituição da servidão não atribuiria qualquer utilidade ao prédio dominante, pelo que a sua constituição por negócio jurídico violaria a tipicidade dos direitos reais (artigo 1306.º CC), com a consequência da sua nulidade (artigo 294.º CC). A desnecessidade, para produzir a extinção da servidão, tem que resultar de uma alteração das circunstâncias verificada em relação ao prédio dominante após a constituição da servidão. A desnecessidade implica que a servidão perca toda e qualquer utilidade que até aí vinha tendo para o prédio dominante, uma vez que se verificar a manutenção de utilidades, ainda que por forma mais reduzida, não se justifica a extinção da servidão. No entanto, para que se verifique essa extinção, basta que desapareçam as utilidades que a servidão vinha proporcionando e que justificaram a sua constituição, não sendo obstáculo à extinção por desnecessidade a possibilidade de virem a surgir posteriormente utilidades futuras ou eventuais. A desnecessidade não implica, no entanto, a extinção automática da servidão, uma vez que apenas atribui ao proprietário o direito de a requerer judicialmente. 7. Remição, no caso das servidões legais de aproveitamento de águas: uma outra forma de extinção das servidões consiste na remição, prevista no artigo 1569.º, nº.4 CC. Esta forma de extinção tem, no entanto, um âmbito muito restrito, uma vez que é apenas aplicável às servidões legais de aproveitamento de águas para gastos domésticos (artigo 1557.º CC) ou para fins agrícolas (artigo 1558.º CC). Nem as servidões voluntárias, nem as servidões constituídas por usucapião ou por destinação do pai de família, nem as outras servidões legais estão sujeitas a esta causa de extinção. A remição judicial destas servidões pode ser solicitada passados dez anos sobre a sua constituição, desde que o proprietário do prédio serviente demonstre que pretende fazer da água um aproveitamento justificado. Caberá, então, ao tribunal avaliar se, perante o motivo invocado pelo proprietário do prédio serviente, se justifica ou não pôr fim ao aproveitamento da água que vinha fazendo o proprietário do prédio dominante. Se o tribunal decretar a remição, cabe-lhe ainda ordenar a restituição pelo proprietário do prédio serviente da indemnização que recebeu do proprietário do prédio dominante, no todo ou em parte, consoante as circunstâncias (artigo 1569.º, n.º3 e 4 CC).

A natureza do direito de servidão: em relação à natureza do direito de servidão, surgem-nos as seguintes teorias:

1. Teoria do desmembramento da propriedade: corresponde à explicação clássica da servidão. Entre nós, manifestam-lhe a sua adesão Teixeira de Abreu e José Tavares. Esta teoria defende que na servidão se verifica um desmembramento da propriedade, pelo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão que a servidão é um direito real que incide, não sobre coisa alheia, mas antes sobre coisa própria. Sobre a mesma coisa passam a incidir dois direitos: a. O direito de propriedade sobre o prédio; b. O direito de servidão. As servidões seriam assim frações da propriedade, mesmo no caso das servidões negativas, já que, quando o proprietário do prédio serviente se obriga a não fazer alguma coisa, transfere para o prédio dominante aquela parte do direito de propriedade de que se despojou. É o que sucede, por exemplo, com a servidão altius non tollendi, dado que o proprietário pode, em princípio, construir no seu prédio como lhe aprouver, deixando de o poder fazer apenas se se obrigar com a servidão, para conservar as vistas do outro prédio. Nesse caso, a faculdade de edificação passou, como omissão, a ser transferida para o outro prédio. Naturalmente que tal não implica que o proprietário do prédio dominante possa construir no prédio servente, pois isso resultaria num prejuízo seu e a servidão destinava-se ao seu benefício. 2. Teoria da propriedade especial: esta teoria qualifica a servidão como um direito de propriedade especial, abrangendo apenas uma faculdade integrante da propriedade. Esta teoria foi defendida na pandectística por Büchel, Elvers e Neuner. Para Büchel a servidão seria uma parte retirada da extensão do direito de propriedade, que seria atribuída como propriedade e em exclusividade a outrem. O titular da servidão teria, assim, igualmente um direito próprio e exclusivo àquelas competências que teriam sido retiradas da propriedade, que subsistiria de forma independente desse direito. Sendo um ius in corpore, na medida em que atribuiria ao seu titular faculdades relacionadas com uma coisa corpórea, não recairia imediatamente como a propriedade sobre a própria coisa, não sendo assim um corpus nem uma pars corpore, mas antes um ius in re. A servidão seria, assim, uma faculdade retirada da extensão intelectual da propriedade para constituir um direito independente, ou seja, um quasi dominium iuris. Já para Elvers, a servidão seria um direito de propriedade sobre uma coisa incorpórea, considerada de per si ou como independente da coisa corpórea que é objeto do direito de propriedade. A servidão seria, assim, um direito sobre uma coisa fictícia, uma res, quae in iure consistit, que atribuiria enquanto qual um poder de domínio semelhante ao da propriedade. Finalmente, para Neuner a servidão seria um direito de propriedade sobre determinada possibilidade de uso da coisa, separada da mesma coisa como um bem autónomo ou um bem especial, que teria também o caráter da coisa. 3. Teoria da limitação ao exercício do direito: esta outra tese concebe a servidão como uma limitação ao exercício do direito de propriedade. Esta teoria foi defendida na pandectística por Windscheid e Thibaut, tendo a ela aderido entre nós Guilherme Moreira e Pires de Lima e Antunes Varela. Para estes autores, a servidão não pode corresponder a um desmembramento do direito de propriedade, já que nesse caso teria que haver uma correspondência entre o conteúdo daquilo que o proprietário do prédio serviente perdeu e aquilo que o proprietário do prédio dominante adquiriu, o que não sucede. O que ocorre na servidão é antes uma limitação ao exercício do direito do proprietário do prédio serviente, que não afeta o seu conteúdo, mas que permite ao titular do prédio dominante aproveitar de certas utilidades proporcionadas por coisa alheia. 4. Teoria dualista: defende a existência de um desmembramento nas servidões positivas e uma limitação nas servidões negativas. Esta teoria deve-se a Bianchi. Para este autor, nas servidões positivas verifica-se um efetivo fracionamento do direito de propriedade, mas

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão tal já não ocorre nas servidões negativas, em que existe apenas uma limitação ao exercício desse direito. Isto porque nas servidões positivas ocorre a atribuição, através do prédio dominante, de um especial direito de uso do prédio serviente, como as servidões de passagem ou de aqueduto ou a sua fruição, como no caso da servidão de presa de água ou de extração de minério, o que implica uma substituição do titular do prédio serviente pelo titular do prédio dominante em relação ao uso da coisa. Já pelo contrário, as servidões negativas, exteriorizando-se numa mera abstenção imposta ao proprietário do prédio gravado, exteriorizando-se numa mera abstenção imposta ao proprietário do prédio gravado, não podem produzir o efeito de atribuir ao titular da servidão aquele particular elemento da propriedade que foi diminuído ao prédio gravado. Próximo desta posição parece estar, entre nós, José Alberto Vieira. 5. Teoria do direito real menor: qualifica a servidão como um direito real de gozo incidente sobre coisa alheia, ainda que o gozo que a servidão proporciona incida sobre a coisa diferente daquela que constitui o seu objeto. Esta é a posição dominante entre nós, tendo sido defendida por Oliveira Ascensão, Carvalho Fernandes e Santos Justo. 6. A teoria do desmembramento encontra-se hoje ultrapassada, em virtude de se reconhecer que os direitos reais menores não correspondem a um desmembramento da propriedade, mas apenas a uma sua compressão. No âmbito das servidões, essa teoria nunca foi explicativa, atento o facto de a atribuição de determinadas faculdades sobre a coisa ao titular do prédio dominante não impedir que as mesmas continuem a ser exercidas pelo titular do prédio serviente. A teoria da propriedade especial falha igualmente por a servidão não ser, ao contrário da propriedade, de um direito exclusivo, na medida em que concorre com a propriedade, e muito menos um direito pleno, dado que são muito limitadas as faculdades que atribui. Quanto à teoria da limitação ao exercício da propriedade, de alguma forma presente no artigo 1543.º CC, quando este qualifica a servidão como encargo, esta caracteriza a servidão apenas pelo lado passivo, quando a mesma constitui manifestamente um direito sobre um prédio, atribuído ao titular de outro prédio. Quanto à teoria dualista, para além das críticas apontadas às teorias em que se baseia, a mesma padece de pôr em causa o conceito unitário de servidão. Damos consequentemente a nossa adesão à tese do direito real de gozo sobre coisa alheia.

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Capítulo XV – Direito de habitação periódica Nota histórica: o direito real de habitação periódica foi criado pelo Decreto-Lei n.º355/81, 31 dezembro, na génese do qual terá estado um Projeto de Henrique Mesquita. A estabilidade legislativa não tem sido, porém, apanágio da figura, que já vai no terceiro regime jurídico, sem contar com as sucessivas alterações que o diploma em vigor, o Decreto-Lei n.º275/93, 5 agosto, foi sujeito pelo Decreto-Lei n.º180/99, 22 maio, pelo Decreto-Lei n.º22/2002, 31 janeiro e pelo Decreto-Lei n.º76-A/2006, 29 março. Como se vê, a multiplicação das intervenções legislativas, com três mudanças de fundo, contando com a introdução da figura em 1981, e várias alterações menores, mas sempre de grande extensão, permitem duvidar do sucesso da introdução deste novo direito real de gozo no ordenamento jurídico português. Seja como for, este novo direito real tem uma ligação íntima com a atividade turística e a exploração de empreendimentos turísticos, nomeadamente, hóteis-apartamentos, aldeamentos turísticos e apartamentos turísticos (artigo 1.º Decreto-Lei n.º275/93). Esta ligação particular, para além da instabilidade legislativa, justifica amplamente a colocação legal da disciplina do direito de habitação periódica fora do Código Civil, em legislação avulsa, e justifica igualmente que este direito, embora de conteúdo mais extenso que as servidões prediais, figure no sistema científico de Direitos Reais depois de todos os outros direitos reais de gozo.

O tipo legal do direito de habitação periódica: o direito de habitação periódica tem por objeto uma particular modalidade de coisa imóvel: unidades de alojamento integradas em hóteis-apartamentos, aldeamentos turísticos e apartamentos turísticos (artigo 1.º Decreto-Lei n.º275/93). O aproveitamento da coisa propiciado pelo direito de habitação periódica encontrase, assim, moldado a este objeto específico. O artigo 21.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93 molda o conteúdo típico injuntivo do direito de habitação periódica; esse conteúdo consiste:

1. No poder de usar a coisa para habitação no período a que respeita o direito; 2. No poder de fruir a coisa durante o período a que respeita o direito; 3. No poder de usar as instalações e equipamentos de uso comum do edifício onde se 4. 5. 6. 7.

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situa a unidade de alojamento; No poder de disposição do direito; No poder de votar deliberações em assembleia-geral de titulares de direitos de habitação periódica; No poder de reivindicar a coisa; No poder de exigir ao proprietário coisa de categoria idêntica ou superior num local próximo da unidade de alojamento, caso se verifique uma impossibilidade de utilização desta por força de facto fortuito ou de força maior; No dever de pagar a prestação periódica.

Este conteúdo ajusta-se a uma duração pré-determinada entre 7 dias seguidos e 30 dias seguidos num ano (artigo 3.º, n.º2 Decreto-Lei n.º275/93). Por sua vez, a duração do direito é tendencialmente perpétua, mas o título constitutivo do direito de habitação periódica pode limitá-la a um prazo, que tem de ser, no mínimo, de quinze anos (artigo 3.º, n.º2 Decreto-Lei n.º275/93). O direito de habitação periódica tem como parte nuclear do tipo legal o poder de usar a unidade de alojamento para habitação. Este poder está duplamente limitado. Em primeiro lugar, o uso só pode dar-se pelo período de tempo determinado no ano, 7 dias seguidos a 30 dias seguidos. Em segundo lugar, tem de respeitar o fim (de habitação) da unidade de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão alojamento. O uso da unidade de alojamento não é, assim, livre, se por isso se entender que o titular do direito pode usar a coisa como entender. Pelo contrário, o uso está vinculado ao fim de habitação, que constitui, deste modo, um elemento do tipo deste direito real. O titular do direito de habitação periódica tem um poder de fruição. O artigo 21.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93 não menciona expressamente este poder, mas ele resulta indiretamente da alínea d) do preceito. Segundo esta, para além de alojamento em comodato, arrendá-la a terceiro ou prestar de alguma outra forma o respetivo uso. Tudo isto se inclui no significado da expressão ceder o exercício das faculdades referidas nas alíneas anteriores. Na medida em que o titular do direito real de habitação periódica pode locar a unidade de alojamento pelo período de duração desse direito, a retribuição da prestação do uso constitui uma modalidade de fruição – civil – da coisa. O poder de disposição, envolvendo a oneração e alienação, decorre expressamente do artigo 12.º Decreto-Lei n.º275/93. O titular do direito real de habitação periódica pode constituir direitos reais menores, em particular, direitos reais de garantia ou de aquisição, eventualmente, e em hipóteses muito raras, um direito de servidão, assim como pode ceder uma parte da titularidade do direito, dando azo à criação de um direito real de habitação periódica em comunhão. A transmissão do direito real de habitação periódica surge desimpedida de quaisquer obstáculos legais, havendo um patente propósito de assegurar a circulabilidade do direito, evidenciado pela desformalização do ato de transação. Com efeito, a transmissão em vida, seja qual for o ato translativo, não se encontra sujeita a escritura pública, como seria de esperar tratando-se de um negócio jurídico relativo a coisa imóvel, satisfazendo-se a lei com a declaração das partes no certificado predial (artigo 12.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93), contando que a assinatura do transmitente seja reconhecida notarialmente. A sucessão por morte do titular, por sua vez, está apenas sujeita a inscrição no certificado predial, havendo um controlo notarial da qualidade do sucessor através do reconhecimento presencial da assinatura deste, o que é feito com a apresentação da prova documental que demonstre essa qualidade (artigo 12.º, n.º3 Decreto-Lei n.º275/93). O n.º4 do artigo 12.º Decreto-Lei n.º275/93 preceitua que a transmissão de direitos reais de habitação periódica implica a cessão dos direitos e obrigações do respetivo titular em face do proprietário do empreendimento ou do cessionário da exploração, sem necessidade da concordância deste. O preceito só se explica pela necessidade deixar incontroverso que a transmissão do direito real de habitação periódica não altera a posição jurídica decorrente da titularidade deste direito. Em si, porém, é desnecessário. As situações jurídicas aludidas, que incluem as obrigações propter rem, pertencem ao conteúdo do direito real de habitação periódica e acompanham naturalmente o seu destino jurídico.

O objeto: o objeto do direito real de habitação periódica é uma unidade de alojamento integrada num edifício sujeito ao regime de direito real de habitação periódica, nos termos do v Decreto-Lei n.º275/93. Essa unidade de alojamento pode ser parte de um edifício constituído em propriedade horizontal, referindo-se, por conseguinte, a uma fração autónoma do mesmo. Isto pode, no entanto, não suceder, porque a unidade de alojamento não se integra num edifício ou porque este não se encontra constituído em propriedade horizontal.

Constituição do direito real de habitação periódica: completado o processo administrativo e dada autorização pela Direção-Geral do Turismo (artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93), o empreendimento pode ser afeto à exploração em regime de direito real de habitação periódica. A lei fala em constituição do direito real de habitação periódica (artigo 6.º Decreto-Lei n.º275/93), mas trata-se mais concretamente da sujeição da coisa que consubstancia o empreendimento turístico ao regime do direito real de habitação periódica. O artigo 8.º, n.º2 Decreto-Lei n.º275/93 faz luz sobre este ponto. A constituição do regime de direito real de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão habitação periódica deve ser feita por escritura pública (artigo 6.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93) e está sujeita a registo (artigo 8.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93). Por cada direito de habitação periódica constituído pelo proprietário das unidades de alojamento a favor de terceiro é emitido um certificado predial pela conservatória do registo predial competente (artigo 10.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93), o qual, contudo, deve ser precedido do registo definitivo do título de constituição do regime de direito real de habitação periódica (artigo 10.º, n.º2 Decreto-Lei n.º275/93). O certificado predial é entregue ao titular do direito de habitação periódica que o houver adquirido ao proprietário da unidade de alojamento. Com o certificado predial deve ser entregue pelo vendedor do direito de habitação periódica ao comprador o documento complementar indicado nos artigos 11.º, n.º2 e 13.º Decreto-Lei n.º275/93. A constituição do direito real de habitação periódica pelo proprietário da unidade de alojamento é feita mediante declaração no certificado predial, assim como os factos de oneração e transmissão sucessivos.

Duração e exercício do direito: o direito de habitação periódica tem uma duração temporária em cada ano, um mínimo de 7 e um máximo de 30 dias seguidos (artigo 3.º, n.º2 Decreto-Lei n.º275/93). Nada impede, porém, que o mesmo titular tenha mais do que direito de habitação periódica sobre a mesma unidade de alojamento, que abranja outra ou outras semanas no ano. Em matéria de exercício do direito real de habitação periódica, a regra fundamental consta do n.º2 do artigo 21.º Decreto-Lei n.º275/93: o exercício do direito de habitação periódica está confinado ao fim típico deste direito, que é a habitação. Do mesmo modo, a utilização das instalações e dos equipamentos deve respeitar a destinação respetiva, não lhes podendo ser dado outro uso. A lei estabelece um critério de diligência no exercício do direito de habitação periódica: o titular deve agir como faria um bom pai de família. Temos, pois, uma bitola valorativa a concretizar no caso concreto.

Obrigações do titular do direito real de habitação periódica: no conteúdo típico do direito de habitação periódica encontramos a obrigação de pagamento da prestação periódica estabelecida no título constitutivo do direito (artigo 22.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93). O incumprimento desta prestação legitima o proprietário a opor-se ao exercício do direito de habitação periódica, podendo mesmo ceder o uso da unidade de alojamento a terceiro durante o período de duração do direito se a mora se mantiver (artigo 23.º, n.º4 Decreto-Lei n.º275/93). Para além da obrigação de pagamento da prestação periódica, integram-se ainda no conteúdo do direito de habitação periódica as denominadas restrições e limitações de vizinhança (artigos 1346.º e seguintes CC) e ainda todos os deveres relativos a direitos reais sobre imóveis que não sejam específicos da propriedade e o regime do direito de habitação periódica não afaste.

Obrigações do proprietário para com o titular de direito real de habitação periódica : o regime jurídico do direito real de habitação periódica surge muito marcado pela envolvente de exploração turística que rodeia os empreendimentos onde ele se constitui. O que justifica a restrição acentuada do poder de disposição que o proprietário sofre quando constitui esse regime. Desde esse momento, ele não poderá constituir outros direitos reais sobre as unidades de alojamento (artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93). De qualquer modo, se isolarmos as obrigações que a lei impõe para aprovação do regime de direito de habitação periódica e para a comercialização destes direitos, que são por assim dizer prévias, vemos que o Decreto-Lei n.º275/93 estabelece para o proprietário das unidades de alojamento uma série de obrigações. Dentro delas, destacamos:

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1. A obrigação de manter as unidades de alojamento, assim como as instalações e equipamentos de uso comum, e de administrar o empreendimento turístico (artigos 25.º e 26 Decreto-Lei n.º275/93); 2. A obrigação de constituir um fundo de reserva para realização de obras de reparação e conservação das unidades de alojamento, instalações e equipamentos de uso comum (artigo 30.º Decreto-Lei n.º275/93); 3. A obrigação de prestar caução de boa administração do empreendimento (artigo 31.º, n.º1 Decreto-Lei n.º275/93); 4. A obrigação de pagar as contribuições, taxas ou impostos que incidam sobre a propriedade.

Extinção do direito real de habitação periódica: o direito de habitação periódica está, de um modo geral, sujeito aos mesmos factos extintivos dos demais direitos reais de gozo. O facto de o Decreto-Lei n.º275/93 fazer uma menção expressa à renúncia a este direito (artigo 42.º) não afasta a aplicação da disciplina dos factos extintivos de direitos reais de gozo, como o não uso, a usucapio libertaits, etc. A renúncia do direito de habitação periódica regulada no artigo 42.º Decreto-Lei n.º275/93 faz-se mediante declaração no certificado predial, com reconhecimento notarial de assinatura do declarante. A eficácia da renúncia depende, no entanto, da comunicação ao proprietário e à Direção-Geral do Turismo e só ocorre seis meses após a data em que aquela comunicação tiver lugar (artigo 42.º, n.º2 e 3 Decreto-Lei n.º275/93).

Natureza do direito real de habitação periódica: o direito de habitação periódica tem uma coisa corpórea por objeto, a unidade de alojamento, e integra, deste modo, o elenco de direitos reais da ordem jurídica portuguesa. Não obstante não constar da lista de direitos reais do Livro III do Código Civil, o direito de habitação periódica constitui um direito real de gozo. A existência de poderes de uso e fruição no conteúdo típico do direito não deixa qualquer dúvida sobre isso. O direito de habitação periódica engrossa, assim, a lista dos direitos reais de gozo no ordenamento jurídico português.

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Secção VII – O direito real de habitação periódica

Generalidades: outro direito real de gozo é o direito real de habitação periódica, habitualmente designado por time-sharing. O direito real de habitação periódica foi instituído entre nós pelo Decreto-Lei n.º355/81, 31 dezembro, sendo atualmente regulado pelo Decreto-Lei n.º 275/93, 5 agosto, sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei n.º180/99, 22 maio, Decreto-Lei n.º 22/2002, 31 janeiro, Decreto-Lei n.º 76-A/2006, 29 março, Decreto-Lei n.º 116/2008, 4 julho, e DecretoLei n.º37/2001, 10 março, que o republicou integralmente. O direito real de habitação periódica foi instituído em ordem a potenciar um aproveitamento mais intensivo dos empreendimentos com fins turísticos. Sabendo-se que habitualmente os proprietários das respetivas frações apenas as utilizam em certos períodos do ano, pretendeu-se estabelecer direitos sobre os prédios que apenas permitissem a sua utilização periódica durante certo período de tempo (v.g. uma semana no mês de agosto).

Objeto do direito real de habitação periódica: o direito real de habitação periódica tem por objeto uma coisa imóvel específica: as unidades de alojamento integradas em hóteisapartamentos, aldeamentos turísticos e apartamentos turísticos (artigo 1.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O direito real de habitação periódica poderia, por isso, aproximar-se da propriedade horizontal, em virtude dos requisitos legais das unidades de alojamento serem idênticos aos das frações autónomas (artigo 4.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011) e de atribuir igualmente a faculdade de utilização de partes comuns do empreendimento (artigo 21.º, n.º1, alínea b) Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011) Dela se distingue, no entanto, uma vez que subsiste um direito do proprietário sobre o empreendimento, sendo que sobre uma parte das unidades que o compõem não podem sequer ser constituídos direitos reais de habitação periódica (artigo 4.º, n.º1, alínea b) Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Assim, ao contrário do que sucede na propriedade horizontal, o conjunto de direitos dos titulares de habitação periódica não esgota a totalidade de direitos sobre o edifício, não sendo por isso a administração do empreendimento atribuída ao conjunto desses titulares, mas antes ao proprietário (artigo 25.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011).

Extensão temporal do direito real de habitação periódica: o direito real de habitação periódica apenas permite uma utilização temporária e periódica (anual) dos referidos apartamentos, que é limitada a um período de tempo determinado ou determinável em cada ano (artigo 3.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O direito real incidente sobre as unidades de alojamento tem assim uma extensão limitada, ainda que a mesma se renove anualmente.

Duração do direito real de habitação periódica: a duração do direito é tendencialmente perpétua, mas o título constitutivo pode limitá-la a um prazo, que tem que ser no mínimo de um ano. Esse prazo é contado a partir da data da celebração do ato de constituição do direito, exceto se o empreendimento estiver ainda em construção, caso em que o prazo começa a contar desde a data da sua abertura ao público (artigo 3.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011).

Constituição do direito real de habitação periódica: o direito real de habitação periódica constitui-se após a afetação do empreendimento à exploração em regime de direito real de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão habitação periódica, a qual está sujeita a comunicação prévia com prazo, conforme definida pela alínea g) do n.º2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 92/2010, 26 julho, ao Instituto do Turismo de Portugal, I.P. (artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A comunicação prévia deve ser acompanhada dos elementos previstos no artigo 5.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011, podendo o Turismo de Portugal, I.P., em caso de falta ou desconformidade de alguns dos elementos , solicitar, no prazo de 10 dias, o envio daqueles que estejam em falta (artigo 5.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011), sem que o processo não se considerará devidamente instruído (artigo 5.º, n.º4 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Caso o Turismo de Portugal, I.P., não se pronuncie no prazo de 30 dias a contar da data de apresentação da comunicação prévia, o proprietário das unidades pode promover a constituição de direitos reais de habitação periódica nos termos e condições constantes da comunicação prévia (artigo 5.º, n.º5 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Salvo o disposto em lei especial, o direito real de habitação periódica é constituído por escritura pública ou por documento particular autenticado (artigo 6.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O ato constitutivo do direito real de habitação periódica sobre o prédio é sujeito a registo (artigo 2.º, n.º1, alínea b) CRPr), fazendo-se descrições subordinadas para todas as unidades de alojamento (artigo 83.º, n.º2 CRPr), bem como para as frações temporais (artigo 83.º, n.º3 CRPr). Após a constituição do direito real é emitido certificado predial pela conservatória do registo predial competente, que titula o direito e legitima a transmissão ou oneração deste, que é entregue ao titular o direito real registado juntamente com o código de acesso à certidão permanente do registo predial (artigo 10.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O certificado predial só pode ser emitido a favor do proprietário de unidades de alojamento sujeitas ao regime de direitos reais de habitação periódica, devendo ser precedido do registo definitivo do título de constituição do regime do direito real de habitação periódica (artigo 10.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O certificado predial constitui um título do direito real, uma vez que o respetivo direito vem a ser incorporado nele, à semelhança do que se verifica com os títulos de crédito, podendo entrar em circulação livremente, sem ficar sujeitos aos condicionalismos habituais relativos á transmissão de direitos reais. O certificado predial deve conter todas as menções previstas no artigo 11.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011, em ordem a fornecer toda a informação relativa ao direito e remeter para documento complementar outras menções (artigo 11.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011).

Poderes do titular do direito real de habitação periódica: o conteúdo do direito real de habitação periódica consiste nas seguintes faculdades:

1. Utilizar para habitação, a unidade de alojamento pelo período a que respeita o seu direito (artigo 21.º, n.º1, alínea a) Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011); 2. Usar as instalações e equipamentos de uso comum do empreendimento e beneficiar dos serviços prestados pelo titular do empreendimento (artigo 21.º, n.º1, alínea b) Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011); 3. Exigir ao proprietário alojamento alternativo de categoria idêntica ou superior num local próximo da unidade de alojamento, caso se verifique uma impossibilidade de utilização desta por força de caso fortuito ou de força maior (artigo 21.º, n.º1, alínea c) Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011);

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4. Fruição da coisa durante o período a que respeita o direito, uma vez que a lei lhe concede a possibilidade de a arrendar a terceiro ou prestar de outra forma o seu uso; 5. Disposição do direito, uma vez que pode onerar e alienar o seu direito, nos termos do artigo 12.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011; 6. Votar deliberações em assembleia geral de titulares de direitos de habitação periódica (artigo 35.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Limitações impostas aos titulares de direito real de habitação periódica: o titular do direito real de habitação periódica está sujeito a certas limitações ao exercício do seu direito. Assim, em primeiro lugar, o artigo 21.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011, estabelece que o titular deve agir nesse exercício como o faria um bom pai de família, estando-lhe especialmente vedadas a utilização da unidade de alojamento e das partes do empreendimento de uso comum para fins diversos daqueles a que se destinam e a prática de atos proibidos pelo título constitutivo ou pelas normas reguladoras do funcionamento do empreendimento.

Obrigações do titular do direito real de habitação periódica: o titular do direito real de habitação periódica tem como obrigação principal o dever de pagar a prestação periódica prevista no título constitutivo (artigo 22.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo DecretoLei n.º37/2011), a qual constitui uma obrigação propter rem. O seu valor pode variar consoante a época do ano a que respeita, mas deve ser proporcional à fruição do empreendimento pelo titular do direito (artigo 22.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Nos termos do artigo 22.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo DecretoLei n.º37/2011, essa prestação destina-se exclusivamente a compensar o proprietário das despesas com os serviços de utilização e exploração turística das unidades de alojamento, contribuições e impostos e quaisquer outras previstas no título de constituição, bem como a remunera-lo da sua gestão, não lhe podendo ser dada qualquer outra aplicação. A parte destinada a remunerar a gestão não pode exceder 20% do valor total da prestação (artigo 22.º, n.º4 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A falta de pagamento da prestação periódica até dois meses antes de iniciado o período de utilização legitima o proprietário a opor-se ao exercício do direito (artigo 23.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011) e a afetar a unidade de alojamento à exploração turística, caso em que a prestação se considera liquidada (artigo 23.º, n.º4 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Para além disso, o proprietário do empreendimento goza de privilégio creditório imobiliário sobre o direito (artigo 23.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011).

Obrigações do proprietário do empreendimento: a constituição do direito real de habitação periódica representa uma importante oneração para o proprietário das unidades de alojamento, a quem passa a ser vedado constituir quaisquer outros direitos reais sobre as mesmas (artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011), com exceção da sujeição prévia do edifício ao regime da propriedade horizontal (artigo 2.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Para além disso, após a constituição do direito real de habitação periódica, o proprietário do empreendimento fica onerado com uma série de deveres, que são instrumentais ao gozo da unidade de alojamento pelo titular do direito real de habitação periódica. Assim, em primeiro lugar, o proprietário é obrigado a administrar e conservar as respetivas unidades de alojamento (artigo 25.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Para esse efeito, compete-lhes especificamente proceder à

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão conservação e limpeza das unidades de alojamento em termos compatíveis com a classificação do empreendimento (artigo 26.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011) e efetuar as reparações indispensáveis ao exercício normal do direito (artigo 27.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O proprietário só pode, no entanto, realizar inovações nas unidades de alojamento, ainda que por sua conta, com o consentimento dos titulares, a prestar em assembleia geral (artigo 28.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O proprietário é ainda obrigado a pagar as contribuições, taxas, impostos e quaisquer outros encargos anuais que incidam sobre a propriedade e respetivas obrigações acessórias, não podendo os titulares de direitos reais de habitação periódica ser responsabilizados por esse pagamento (artigo 29.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O proprietário deve igualmente afetar uma percentagem não inferior a 4% do valor da prestação periódica paga pelos titulares de direitos reais de habitação periódica à constituição de um fundo de reserva destinado exclusivamente à realização de obras de reparação e conservação das instalações e equipamentos de uso comum e das respetivas unidades de alojamento, seu mobiliário e equipamento (artigo 30.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O proprietário tem ainda o dever de prestar caução de boa administração e conservação do empreendimento (artigo 31.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011) e efetuar a prestação de contas (DecretoLei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Finalmente, o proprietário do empreendimento tem ainda o dever de elaborar anualmente um programa de administração e conservação da parte sujeita ao direito real de habitação periódica, a enviar anualmente aos titulares juntamente com a convocatória para a assembleia geral (artigo 33.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A lei admite que o proprietário possa ceder a exploração do empreendimento, caso em que se transferem para cessionário os poderes e deveres a ela ligados. Neste caso, o proprietário mantém, no entanto, subsidiariamente, a sua responsabilidade perante os titulares de direitos reais de habitação periódica, pela boa administração e conservação do empreendimento (artigo 25.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A cessão de exploração deve ser, no entanto, notificada ao Instituto do Turismo de Portugal, I.P, e aos titulares de direitos reais de habitação periódica sob pena de ineficácia (artigo 25.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Se o proprietário do empreendimento ou o cessionário da exploração deixarem de cumprir a obrigação de administrar ou a cumprirem de forma negligente podem os titulares dos direitos reais de habitação periódica deliberar a sua destituição da administração do empreendimento, sem prejuízo da responsabilidade daqueles (artigo 36.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A destituição é realizada por tribunal arbitral, após aprovação da assembleia geral dos titulares de direitos, por 2/3 dos votos, o qual designa um administrador substituto, podendo, quando tal se justifique, fixar previamente um prazo para o cumprimento das obrigações por parte da administração visada (artigo 37.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Caso o tribunal arbitral não venha a ser constituído no prazo de 60 dias após a deliberação dos titulares, poderá ser solicitada ao tribunal a nomeação de um administrador judicial (artigo 40.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011).

Transmissão do direito real de habitação periódica: o direito real de habitação periódica é livremente transmissível por

1. Ato entre vivos: a oneração ou transmissão por ato entre vivos do direito real de habitação periódica faz-se mediante declaração das partes no certificado predial, com

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão reconhecimento presencial das assinaturas do constituinte do ónus ou do alienante (artigo 12.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011), devendo ser indicado o valor, no caso de a transmissão ser a título oneroso (artigo 12.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O vendedor deve ainda entregar aos adquirentes o documento complementar relativo ao direito bem como o formulário de resolução do contrato (artigo 13.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A transmissão está sujeita, nos termos gerais (artigo 12.º, n.º1, in fine Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011), o que implica a aplicação dos efeitos normais do registo, designadamente a oponibilidade a terceiros. Por razões de tutela do consumidor, a lei impõe quer o fornecimento de informação pré-contratual prévia, quer o reconhecimento de um direito de libre resolução do contrato. Em relação à informação contratual prévia, a mesma encontra-se prevista no artigo 9.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011, o qual obriga o proprietário ou o vendedor de direitos reais de habitação periódica a entregar ao consumidor, antes de este ficar vinculado por contrato ou por contrato-promessa, a entregar-lhe de forma gratuita, em papel ou noutro suporte duradouro facilmente acessível, informações exatas que, de forma clara, precisa e compreensível, descrevam o empreendimento turístico, bem como os direitos e as obrigações decorrentes do contrato. Essas informações constam de um formulário normalizado de informação pré-contratual, que inclui designada e obrigatoriamente os elementos referidos no artigo 9.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo DecretoLei n.º37/2011. A lei reconhece ainda ao adquirente do imóvel um direito de livre resolução do contrato de aquisição, sem indicar motivo e sem quaisquer encargos, no prazo de 14 dias seguidos da data da celebração do contrato ou data em que este ou o formulário de resolução lhe foram entregues, consoante o que for posterior (artigo 16.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A declaração de resolução deve ser comunicada ao vendedor em papel ou noutro suporte duradouro, enviada até ao termo desse prazo (artigo 16.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Esse prazo passa, no entanto, a ser fixado em um ano e 14 dias seguidos a contar da data da celebração do contrato, se não for entregue ao adquirente o formulário de resolução ou em 94 dias seguidos, se o contrato não tiver as menções exigidas pelo n.º2 do artigo 11.º (artigo 16.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). O prazo é, no entanto, novamente reduzido a catorze dias seguidos a partir do momento em que esses elementos sejam fornecidos (artigo 16.º, n.º4 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Se, associado ao contrato de aquisição, for celebrado um contrato de adesão a sistemas de troca, o prazo para a resolução é para ambos os contratos, contado nos mesmos termos (artigo 16.º, nº5. Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Se o preço estiver total ou parcialmente coberto por um crédito concedido pelo vendedor ou por terceiro com base num acordo com este, o contrato de crédito fica igualmente resolvido, sem direito a indemnização ou pagamento de quaisquer encargos (artigo 16.º, n.º6 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Uma vez resolvido o contrato, o vendedor fica obrigado a restituir todas as importâncias recebidas. A lei disciplina ainda, particularmente, os contratos-promessa relativos à transmissão de direitos reais de habitação periódica (artigo 17.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011), garantido a possibilidade de livre resolução do contrato e a prestação de caução para esse efeito (artigo 19.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011), e obrigando a menção destinadas a fornecer 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão informações ao promitente-adquirente (artigo 18.º Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). 2. Morte: da mesma forma, a transmissão por morte está sujeita a inscrição no certificado predial, devendo a assinatura do sucessor ser reconhecida presencialmente, após exibição ao notário de documento comprovativo daquela qualidade (artigo 12.º DecretoLei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A transmissão do direito real de habitação periódica implica a cessão dos direitos e obrigações do respetivo titular em face do proprietário do empreendimento ou do cessionário da exploração, considerandose como não escritas quaisquer cláusulas em contrário (artigo 12.º, n.º4 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011).

Extinção do direito real de habitação periódica: o direito real de habitação periódica está sujeito às causas de extinção gerais dos direitos reais que lhe sejam especificamente aplicável. A lei regula especificamente, no entanto, a renúncia ao direito. A renúncia ao direito real de habitação periódica pode ser efetuada através de declaração de renúncia no certificado predial, com reconhecimento presencial de assinatura (artigo 42.º n.º1 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). Esta carece de ser notificada ao proprietário e ao Instituto de Turismo de Portugal, I.P., devendo ainda ser registada nos termos gerais (artigo 42.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011). A renúncia apenas produz efeitos seis meses após essas notificações (artigo 42.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 275/93, republicado pelo Decreto-Lei n.º37/2011).

Natureza do direito real de habitação periódica: em relação à natureza do direito real de habitação periódica, tem sido pacífica na doutrina a sua qualificação como um direito real de gozo menor, não sendo uma forma de propriedade, na medida em que não se trata de um direito exclusivo, já que coincide necessariamente com a propriedade do titular do empreendimento.

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Secção II – As Limitações aos Direitos Reais Generalidades: os direitos nunca são ilimitados, o mesmo sucedendo com os direitos reais. Neste âmbito, para além da limitação geral em virtude da função social atribuída à propriedade, traduzida no abuso de direito, existem diversas restrições aos direitos reais. Essas restrições têm sido consideradas de Direito Público, caso sejam motivadas pela intervenção de uma entidade dotada de ius imperii, ou de Direito Privado, quando haja que compatibilizar direitos privados de outros titulares.

A limitação da propriedade pela sua função social: o abuso do direito: a ideia da existência de limites ao direito de propriedade é relativamente nova na evolução do Direito. Efetivamente, a conceção romanística proclamava o caráter ilimitado da propriedade. Esta ilimitação da propriedade verificava-se quer devido à inexistência de limites em relação à extensão vertical do direito (qui dominus est soli, dominus est usque ad coelum usque ad inferos), quer devido à inexistência de limitações ao exercício desse mesmo direito (qui sui iure utitur neminem laedit). Haveria, no entanto, uma exceção, uma vez que o Direito Romano já proibia os atos emulativos. Esta conceção vem a ter influência no Code Civill francês, de 1804, que concebe a propriedade como le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourbu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les réglements. O proprietário tinha assim um poder absoluto sobre a coisa em tudo o que não infringisse as leis ou regulamentos. Esta doutrina vem a ser, no entanto, atenuada em virtude do surgimento no espaço jurídico francês da doutrina do abuso de direito, a qual representou, ainda no liberalismo, o primeiro reconhecimento da existência de limites ao exercício dos direitos do proprietário. Posteriormente, foi-se ainda mais longe, passando a ser defendida a função social da propriedade, no sentido de que os poderes do proprietário se encontram limitados pela utilidade social proporcionada pelo bem. Essa posição tem sido defendida pela doutrina social da Igreja desde a Encíclica De Rerum Novarum, de Leão XIII, com raízes em São Tomás de Aquino, e foi expressamente consagrada no artigo 14.º, n.º2 da Lei Fundamental Alemã, e no artigo 42.º da Constituição Italiana. Em Portugal, e apesar de profundamente influenciado pelo Código Civil francês de 1804, o Código Civil português de 1867 não consagrou, ao contrário deste, uma definição tão enfática da propriedade como direito absoluto. O Código de Seabra limitava-se a defini-la de forma elegante no artigo 2167.º como a faculdade, que o homem tem, de aplicar à conservação da sua existência, e ao melhoramento da sua condição, tudo quanto para esse fim legitimamente adquiriu, e de que, portanto, pode dispor livremente. No entanto, o artigo 2170.º não deixava de referir que o direito de propriedade, e cada um dos direitos especiais que esse direito abrange, não têm outros limites senão aqueles que lhes forem assinados pela natureza das coisas, por vontade do proprietário, ou por disposição expressa da lei. A Constituição de 1933 já consagrou, porém, expressamente a doutrina da função social da propriedade, ao estabelecer que a mesma, tal como o capital e o trabalho, desempenhava uma função social podendo a lei determinar as condições do seu emprego ou exploração conformes com a finalidade coletiva. Em consequência, o Estatuto do Trabalho Nacional, estabelecia no artigo 13.º que o exercício dos poderes do proprietário é garantido quando em harmonia com a natureza das coisas, o interesse individual e a utilidade social expressa nas leis, podendo estas sujeitá-lo às restrições que sejam exigidas pelo interesse público e pelo equilíbrio e conservação da coletividade. Ficou, assim, consagrada a limitação da propriedade pela sua função social, em detrimento da conceção liberal do caráter ilimitado deste direito. Ainda durante o período corporativo, o Código Civil português de 1966, veio representar

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão um certo retrocesso em relação à consagração da função social da propriedade, passando o artigo 1305.º a proclamar que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei, e com observância das restrições por ela impostas. Em relação aos limites verticais dos prédios, conforme se referiu, o artigo 1344.º, n.º2 CC, apenas faz referência ao interesse do proprietário, sendo apenas a ausência de interesse deste em proibir atos a certa altura ou profundidade que legitima a sua realização por terceiros. A Constituição de 1976, ao contrário do que sucedia com a Constituição de 1933, também não faz qualquer referência à função social da propriedade, como limite aos poderes do proprietário. A doutrina tem, no entanto, considerado implícito esse limite na referência ao interesse geral da iniciativa económica privada no artigo 61.º, n.º1 CRP, bem como nas consequências gravosas da colocação de bens de produção em abandono, previstas no artigo 88.º, n.º2 CRP. É manifesto que a propriedade possui uma função social, como se compreende pelas limitações legais que são estabelecidas aos poderes do proprietário. A função social da propriedade não pode, porém, ser argumento para estabelecer uma funcionalização absoluta dos poderes do proprietário, apenas o admitindo a exercer os poderes cuja utilidade social a lei reconheça. Efetivamente, como qualquer direito subjetivo, a propriedade é um espaço de liberdade, que permite ao proprietário antes de tudo a sua própria realização pessoal, a qual é por ele decidida. É natural que esse espaço de liberdade seja compatibilizado com as exigências da vida social, e daí o reconhecimento da função social da propriedade. Mas essa função social da propriedade não permite ao Estado estabelecer medidas legislativas que atinjam o núcleo essencial desse direito. Efetivamente, sempre que esse núcleo seja atingido por qualquer medida legislativa, deve ser reconhecida a esta natureza exproprietária, suscetível de envolver a atribuição de justa indemnização. Pensamos, por isso, que a função social da propriedade pode e deve ser explicada através da proibição do abuso do direito. Efetivamente, o artigo 334.º CC considera ilegítimo o abuso do direito em contrariedade com o seu fim sócio-económico, pelo que não será permitido o exercício do direito de propriedade em termos manifestamente disfuncionais ao sistema jurídico.

As limitações de Direito Público: 1. A expropriação: a mais importante limitação ao direito de propriedade é representada pelo instituto da expropriação, prevista no artigo 62.º, n.º2 CRP. Tradicionalmente, distingue-se entre expropriação por utilidade pública ou particular, consoante o interesse que esta visa servir (artigo 1310.º CC), mas a Constituição, no seu artigo 62.º, n.º2 CRP, apenas prevê a expropriação por utilidade pública, o que torna controversa a admissibilidade constitucional da expropriação por utilidade particular. A lei atual prevê, no entanto, alguns casos de expropriação por utilidade particular, como sucede com a possibilidade de estabelecer comunhão forçada sobre as paredes e muros de meação, nos termos do artigo 1370.º CC. A expropriação por utilidade pública é especialmente regulada pelo Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º168/99, 18 setembro. Nos termos do artigo 1.º CExpr, os bens imóveis e os direitos a ele inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objeto da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização. Nas palavras de Marcello Caetano, ela consiste na relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados bens imóveis em um fim específico de utilidade pública, extingue os direitos subjetivos constituídos sobre eles e determina a sua transferência definitiva para o património da pessoa a cujo cargo esteja a prossecução desse fim, cabendo a este pagar ao titular dos direitos extintos uma

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão indemnização compensatória. A expropriação consiste, assim, na subtração de um bem imóvel ao seu proprietário, em virtude da utilidade pública que esse bem representa, o qual é atribuído a uma entidade que prossegue esses fins, mediante o pagamento ao anterior proprietário de uma justa indemnização. Em virtude da gravosa lesão que representa para o direito de propriedade, a lei estabelece que a expropriação deve limitar-se ao necessário para a realização do seu fim (artigo 3.º, n.º1 CExpr), sendo inclusivamente estabelecido um direito de reversão a favor do proprietário se, no prazo de dois anos, os bens não forem afetos a esse fim (artigo 5.º, n.º1, alínea b) CExpr). Para além disso, estabelece-se que a entidade interessada, antes de requerer a declaração de utilidade pública, deve diligenciar no sentido de adquirir os bens por via de Direito Privado (artigo 11.º, n.º1 CExpr). A expropriação implica sempre, nos termos constitucionais (artigo 62.º, nº.2 CRP) e legais (artigos 1310.º CC e 23.º e seguintes CExpr) o pagamento de uma justa indemnização ao proprietário e aos titulares de outros direitos reais afetados. Nos termos do artigo 23.º, n.º1 CExpr, a justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efetivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data. 2. A requisição: a requisição era definida por Marcello Caetano como o ato administrativo pelo qual um órgão competente impõe a um particular, verificando-se as circunstâncias previstas na lei e mediante indemnização, a obrigação de prestar serviços, de ceder coisas móveis ou semoventes ou consentir na utilização temporária de quaisquer bens que sejam necessários à realização do interesse público e que não convenha procurar no mercado. A requisição é constitucionalmente sujeita ao mesmo regime da expropriação, só se podendo igualmente fazer com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62.º, n.º2 CRP). Esta disposição é confirmada no artigo 1309.º CC, que nos refere que só nos casos previstos na lei pode ter lugar a requisição temporária de coisas do domínio privado. Ao contrário do que sucede com a expropriação, que apenas abrange imóveis, a requisição tanto pode abranger móveis como imóveis. Em relação aos móveis, a requisição pode funcionar como um instituto sucedâneo da expropriação, permitindo a aquisição de bens móveis de que as entidades públicas necessitam, ou limitar-se a legitimar a sua utilização por certo período de tempo. Em relação aos imóveis, a requisição caracteriza-se por ter necessariamente caráter temporário, apenas legitimando a sua afetação aos fins da entidade requisitante por certo período de tempo. Atualmente, a requisição de imóveis encontra-se prevista nos artigos 80.º e seguintes CExpr, dispondo o artigo 80.º, n.º1 CExpr que, em caso de urgente necessidade e sempre que o justifique o interesse público e nacional, podem ser requisitados bens imóveis e direitos a eles inerentes, incluindo os estabelecimentos comerciais ou industriais, objeto de propriedade de entidades privadas, para realização de atividades de manifesto interesse público, adequadas à natureza daqueles, sendo observadas as garantias dos particulares e assegurado o pagamento de justa indemnização. No entanto, salvo o disposto em lei especial, a requisição, interpolada ou sucessiva, de um mesmo imóvel não pode exceder o período de um ano, contado nos termos do artigo 279.º CC (artigo 80.º, n.º2 CExpr). A requisição de imóveis determina sempre o pagamento de justa indemnização, nos termos do artigo 84.º CExpr. O Código Civil prevê, por outro lado, no seu artigo 1388.º CC, a figura da requisição das águas,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão dispondo o seu n.º1 que, em casos urgentes de incêndio ou de calamidade pública, as autoridades administrativas podem, sem forma de processo nem indemnização prévia, ordenar a utilização imediata de quaisquer águas particulares necessárias para conter ou evitar danos. O n.º2 acrescenta, porém, que se da utilização da água resultarem danos apreciáveis, têm os lesados direito a indemnização, paga por aqueles em benefício de quem a água foi utilizada. 3. Nacionalização e coletivização: a nacionalização e a coletivização constituem formas de apropriação pública dos bens, as quais se distinguem da expropriação por serem realizadas diretamente com base na lei e não num ato administrativo. No caso da nacionalização os bens ficam pertencentes ao Estado, enquanto que na coletivização se verifica uma apropriação coletiva de bens, cujo beneficiário não é o Estado mas, de algum modo, a comunidade. Nos termos do artigo 83.º CRP, compete à lei determinar os meios e as formas de intervenção e de apropriação pública dos meios de produção, bem como os critérios de fixação da correspondente indemnização. As nacionalizações tiveram grande importância em Portugal na altura do período revolucionário de 1974-1975, em que inúmeras empresas foram nacionalizadas, tendo a Constituição chegado a consagrar na sua versão primitiva o princípio da irreversibilidade dessas nacionalizações. Hoje, o artigo 293.º CRP limita-se a fixar o regime da reprivatização dessas empresas. Recentemente, no entanto, a crise financeira internacional iniciada em 2007 voltou a colocar na ordem do dia a necessidade de nacionalizações, como em Portugal ocorreu com o Banco Português de Negócios (BPN), tendo a Lei n.º 62-A/2008, 11 novembro, decretado a nacionalização do BPN, ao mesmo tempo que aprovava em anexo um regime jurídico de apropriação pública de participações sociais em pessoas coletivas privadas por via da nacionalização. 4. Confisco: o confisco consiste na apropriação pelo Estado de bens privados, sem pagamento de qualquer indemnização. Tradicionalmente, o confisco tem revestido duas modalidades: a. O confisco-nacionalização: verifica-se quando uma nacionalização é decretada, sendo, no entanto, excluída a atribuição de indemnização ao titular dos bens nacionalizados. b. O confisco-sanção: consiste na sanção aplicável a certos factos ilícitos, que consiste na apropriação pelo Estado, sem qualquer indemnização, da totalidade (confisco geral) ou de parte (confisco especial) dos bens do responsável. O confisco geral não é admitido constitucionalmente, mas as leis preveem certos casos de confisco especial como a perda dos instrumentos do crime a favor do Estado. 5. As servidões administrativas: outra limitação de Direito Pública aos direitos reais resulta das servidões administrativas. Marcello Caetano definia a servidão administrativa como o encargo imposto, por disposição da lei, sobre certo prédio, em proveito da utilidade pública de uma coisa. Podemos, assim, definir a servidão administrativa como o aproveitamento de utilidades de determinado prédio em benefício de outra entidade, pública ou privada, por razões de interesse público. As servidões administrativas são sempre legais, dado que resultam da lei e não de negócio jurídico de Direito Privado. Em certos casos, a lei constitui título bastante para a constituição da servidão, na medida em que determina a submissão genérica e automática de todos os prédios que se encontrem em determinadas condições a um regime pré-determinado. Noutros casos, a constituição das servidões administrativas pressupõe a realização de um ato da Administração, quer

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão através do reconhecimento da utilidade pública que justifica a sua constituição, quer através da definição de certos aspetos do seu regime, como a área sujeito ao encargo. As servidões administrativas encontram-se igualmente previstas no Código das Expropriações, referindo o artigo 8.º, nº1, alínea c) CExpr, que podem constituir-se sobre imóveis as servidões necessárias à realização de fins de interesse público. Nos termos do artigo 8.º, n.º2, alínea c) CExpr, as servidões, resultantes ou não de expropriações, dão lugar a indemnização quando: a. Inviabilizem a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado globalmente; b. Inviabilizem qualquer utilização do bem, nos casos em que estes não estejam a ser utilizados; ou c. Anulem completamente o seu valor económico. O artigo 8.º, n.º3 CExpr acrescenta que à constituição das servidões e à determinação da indemnização aplica-se o disposto no presente Código com as necessárias adaptações, salvo o disposto em legislação especial. 6. O ius aedificandi: uma última restrição de Direito Público aos direitos reais consiste nos condicionalismos administrativos estabelecidos em relação à construção e edificação, o que tem vindo a ser qualificado como o ius aedificandi. O ius aedificandi compreende, assim, a faculdade de construir e a de realizar os atos jurídicos e materiais indispensáveis à construção, como os loteamentos urbanos e a realização das infraestruturas urbanísticas necessárias. A doutrina tem vindo a discutir intensamente a relação do ius aedificandi com os direitos reais incidentes sobre o imóvel, podendo distinguir-se entre três teorias: a. O ius aedificandi seria uma faculdade resultante do direito de propriedade ou do direito de superfície sobre o imóvel, sendo consequentemente regulado pelo Direito Civil e abrangido pela proteção constitucional da propriedade: foi defendida, entre nós, por Oliveira Ascensão, Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e João Caupers. A qualificação do ius aedificandi como atributo natural da propriedade do imóvel e do direito de superfície baseia-se no facto de o poder de transformação aparecer incluído nas faculdades atribuídas ao proprietário (artigo 1305.º CC), sendo que a propriedade dos imóveis abrange o seu espaço aéreo (artigo 1344.º CC), enquanto que o direito de superfície é expressamente definido no artigo 1524.º CC como a faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio. Esta posição baseia-se, ainda, no facto de os artigos 25.º, n.º1, alínea a) e 26.º CExpr determinar para efeitos da indemnização por expropriação um cálculo específico do solo apto para construção. Em consequência, esta tese defende que o ius aedificandi faz parte da liberdade de utilização da propriedade garantida constitucionalmente (artigo 62.º, n.º1 CRP), não sendo conferido ou atribuído pelo plano urbanístico, na medida em que este teria apenas como função conformar ou modelar o exercício daquele direito. Existindo plano, o mesmo não afetaria a liberdade de edificação, que é anterior ao plano mas apenas a tornaria potencial, fazendo-a entrar em estado de latência até aparecer um novo ato de plano, que a tornasse efetiva. b. O ius aedificandi seria uma conceção jurídico-pública decorrente do sistema de atribuição do plano urbanístico, não sendo consequentemente a faculdade de construção incluída no conceito jurídico-constitucional da propriedade privada, uma vez que seria regulada exclusivamente pelo Direito do Urbanismo: foi defendida entre nós por Alves Correia, Jorge Miranda, Rui Machete, António

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Cordeiro, João Miranda e Fernanda Paula Oliveira. Para esta tese, o ius aedificandi constituiria antes um direito autónomo, que não resultaria da propriedade privada mas de um ato jurídico concedido pela autoridade pública e certos proprietários, sendo por isso regulado pelo Direito Público. Em consequência, esta tese nega a inclusão da faculdade de construção no conceito jurídico-constitucional da propriedade privada, vendo nela antes uma concessão jurídico-pública decorrente do estabelecido pelo plano urbanístico. Assim, a faculdade de construção não deve ser entendida como um direito subjetivo imanente à propriedade do solo, mas antes como um direito subjetivo público, concedido pelo ato de plano. Sem uma concessão do plano não existiria faculdade de construir, já que a reserva do plano implicaria uma proibição de construção preventiva, com reserva de licença. A nossa jurisprudência tem claramente aderido a esta posição, recusando, assim, a sua integração no direito de propriedade. O Tribunal Constitucional expressou esse ponto de vista em sucessivos acórdãos, defendendo que no direito de propriedade constitucionalmente consagrado no artigo 62.º CRP contém-se apenas o poder de gozo do bem objeto do direito, não se tutelando ali expressamente um ius aedificandi, um direito à edificação, como elemento necessário e natural do direito fundiário, o qual só poderá ser atribuído pelo plano. Na sequência dessa posição, o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo também em sucessivos acórdãos a sustentar que o ius aedificandi urbano não é uma faculdade integrante da propriedade privada, tutelada pelo artigo 62.º CRP, sendo antes uma determinação pública realizada pelo plano urbanístico, dado que o proprietário não tem outras possibilidades edificatórias sobre o seu solo a não ser as que o plano lhe outorga e na medida precisa em que o faz, com todas as determinações relevantes. c. O ius aedificandi seria um direito fundamental, a enquadrar no âmbito do Direito Constitucional, podendo enquanto tal ser objeto das restrições inerentes ao interesse coletivo. d. A melhor posição parece ser, porém, a que considera o ius aedificandi como fazendo parte do direito de propriedade e do direito de superfície, conforme resulta claramente da definição legal destes direitos (artigos 1305.º e 1527.º CC). Na verdade, se excluirmos o ius aedificandi, os direitos do proprietário ou do superficiário do imóvel ficariam extremamente limitados. Por outro lado, o facto de o Código das Expropriações admitir indemnização de solo apto para construção nos casos previstos no artigo 25.º, n.º2, alíneas a), b) e c) CExpr, ou seja, sem que tal resulte de instrumento de gestão territorial (artigo 25.º, n.º2, alínea c) CExpr) ou exista alvará de loteamento ou licença de construção (artigo 25.º, n.º2 CExpr) demonstra claramente que o ius aedificandi é um atributo natural desses direitos. Esta posição veio, aliás, a ser confirmada na nova Lei dos Solos (Lei n.º31/2014, 31 maio), cujo artigo 4.º, n.º1 LS garante a propriedade privada do solo nos termos da Constituição e da Lei, admitindo apenas que o direito de propriedade privada e os demais direitos relativos ao solo sejam ponderados e conformados no quadro das relações jurídicas de ordenamento do território e de urbanismo, com princípios e valores constitucionais protegidos, nomeadamente nos domínios da defesa nacional, do ambiente, da cultura e do património cultural, da paisagem, da saúde pública, da educação, da habitação, da qualidade de vida e do desenvolvimento económico e social (artigo 4.º, n.º2 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão LS). Em qualquer caso, estabelece-se por isso que a imposição de restrições ao direito de propriedade privada e aos demais direitos relativos ao solo está sujeita ao pagamento da justa indemnização, nos termos e de acordo com o previsto na lei (artigo 4.º, n.º3 LS). Reconhece-se, consequentemente, aos proprietários do solo urbano os direitos de realizar as obras de urbanização e de edificar, nos termos do artigo 13.º, n.º2, alínea b) e c) LS, tendo os planos territoriais de âmbito intermunicipal ou municipal apenas uma função de conformação desse direito, através da definição de áreas de construção ou, na impossibilidade dessa definição, pela aplicação de parâmetros e índices quantitativos e qualitativos, de aproveitamento ou de edificabilidade (artigo 20.º LS). É manifesto, no entanto, que a atividade de construção civil está atualmente sujeita a um controlo preventivo por parte da administração, controlo esse que foi instituído logo com o Código Administrativo de 1842 e que atualmente consta do RJUE, sendo as operações de construção sujeitas a uma licença de construção (artigo 4.º, n.º2, alíneas c) e d) RJUE), ou a uma comunicação prévia (artigo 4.º, n.º4, alíneas c), d) e e) RJUE), de que apenas estão isentas as obras referidas nos artigos 6.º e seguintes RJUE. Assim, fora desses casos, não é legalmente possível a construção sem intervenção prévia da administração. A discussão em torno do ius aedificandi tem, no entanto, importância para averiguar se a designada licença de construção é uma verdadeira licença, ato pelo qual a administração atribui ao sujeito privado um poder que ele legalmente não possui ou antes uma autorização, ato pelo qual a administração permite ao sujeito privado o exercício de um direito, que este efetivamente possui, mas cujo exercício se encontra condicionado por lei. No primeiro caso, a administração tem um poder discricionário de concessão da licença, enquanto no segundo caso esse poder é vinculado, apenas podendo ser rejeitado se estiverem preenchidos fundamentos legais de recusa. Ora, as licenças apenas podem ser indeferidas quando se verifiquem os pressupostos do artigo 24.º RJUE havendo assim uma taxatividade dos fundamentos de indeferimento da licença de construção. Nesse sentido, parece de concluir que a atribuição da licença de construção é, em princípio, vinculada. Efetivamente, a discricionariedade na concessão ou recusa das licenças é extremamente reduzida, limitando-se à que resulta da utilização de alguns conceitos indeterminados (artigo 24.º, n.º4 RJUE), e de a lei admitir que certos fundamentos apenas consistam em possibilidades de indeferimento e não na sua obrigação (artigo 24.º, n.º2 e 4 RJUE). Noutros casos, o indeferimento é imposto (artigo 24.º, n.º1 e 5 RJUE). Parece, assim, que a licença de construção é, no fundo, uma autorização, resultando o ius aedificandi da titularidade dos direitos reais sobre o imóvel. Aderimos, por isso, à posição que considera o ius aedificandi como parte integrante do direito de propriedade ou do direito de superfície.

As limitações de Direito Privado: 1. As relações de vizinhança: examinadas as limitações de Direito Público, cabe agora examinar as limitações de interesse privado ao exercício dos direitos reais. Neste âmbito a categorias mais importante de limitações ao exercício dos direitos reais é resultante das relações de vizinhança, que estabelecem limitações ao exercício dos direitos reais sobre os prédios, em benefício do titular do direito real sobre prédio vizinho. As

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão limitações vizinhança podem corresponder à imposição de deveres de conteúdo negativo ou de conteúdo positivo. Os deveres de conteúdo negativo podem corresponder a deveres de abstenção de certas condutas (non facere) ou deveres de tolerar o exercício de certos poderes do vizinho sobre o seu prédio (pati). Por sua vez, os deveres de conteúdo positivo podem subdividir-se em deveres específicos de prevenção de perigos para o prédio vizinho ou em deveres de participar com o vizinho em atividades de interesse comum. 2. Deveres de abstenção de certas condutas: a. O dever de abstenção de emissões: o primeiro dever resultante das relações de vizinhança é o dever de abstenção de emissões prejudiciais. Efetivamente, o artigo 1346.º CC vem permitir ao proprietário de um imóvel opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, em como à produção de trepidação ou outros atos semelhantes provenientes do prédio vizinho, desde que tais atos provoquem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam. Deve salientar-se, em primeiro lugar, que esta disposição prevê que os requisitos relativamente ao prejuízo substancial do uso do imóvel e não resultar do uso normal do prédio, funcionam não em termos cumulativos mas antes alternativos, o que permite ao proprietário do prédio vizinho, ao contrário do que tem vindo a ser defendido por certa doutrina, reagir contra emissões que prejudiquem o uso do seu prédio mesmo que correspondam à utilização normal do prédio vizinho, ou contra emissões consideradas estranhas à utilização normal do prédio, mesmo que não provoquem um prejuízo substancial. Por outro lado, e conforme tem vindo a ser entendimento da maioria da doutrina, a expressão prédio vizinho não tem necessariamente que ser interpretada no sentido de prédio contíguo, podendo significar prédio próximo, não num sentido geográfico, mas sim num sentido de possibilidade de afetação ou proximidade social, o que permite alargar bastante o âmbito da proteção assegurada por esta importantíssima disposição. Finalmente, a expressão prejuízo substancial tem sido interpretada pela jurisprudência, seguindo uma proposta de Vaz Serra, como podendo envolver apenas a violação de direitos da personalidade, o que permite extravasar consideravelmente o seu âmbito de aplicação. O dever de abstenção das emissões resulta das relações de vizinhança, pelo que o mesmo não é afetado pela existência de autorização administrativa para o exercício da atividade, quando esta dependa de licenciamento. Efetivamente, a autorização administrativa legitima apenas o exercício da atividade nos termos das regras de Direito Público, não pondo em causa eventuais direitos privados que venham a ser afetados por essa atividade. Os privados conservam, por isso, o direito de reagir com base no dever de abstenção das emissões consagrado no artigo 1346.º CC, independentemente de a atividade prejudicial ter sido ou não objeto de autorização administrativa. O dever de abstenção das emissões também não se considera respeitado em virtude do cumprimento das normas gerais sobre poluição, uma vez que o que está em causa é o prejuízo específico causado à utilização do imóvel vizinho, o qual pode igualmente ocorrer em caso de emissões poluentes que se enquadrem dentro dos limites legais. b. A proibição de perturbar o escoamento natural das águas: refere o artigo 1351.º CC que os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e arrastem na sua corrente, acrescentando o n.º2 que nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição de servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida. O proprietário do prédio inferior fica assim sujeito a receber as águas que para ele correm naturalmente a partir de um prédio superior, de acordo com o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural (aliter aquam mitere quam natura solet). Estas águas correspondem às águas pluviais que caem diretamente no prédio superior ou que para ele decorrem de outros prédios superiores a ele, as águas provenientes da liquefação das neves e gelos, as que se infiltrem no terreno e a das nascentes que brotam naturalmente dum prédio. Ao lado da obrigação de receber as águas existe ainda a obrigação de receber a terra e entulhos que elas arrastam na corrente. O prédio inferior já não está, porém, obrigado a receber quaisquer substâncias que se juntem às águas e as tornem nocivas (aqua nocens), valendo aqui igualmente a doutrina legal da proibição das emissões. Efetivamente, o princípio da proibição da perturbação do escoamento apenas se aplica a águas naturais e não a águas inquinadas. Em consequência desta regra, não pode o dono do prédio inferior fazer obras capazes de perturbar o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sendo vedadas todas as obras que perturbem o curso natural da água (opere facto nihibere aquam, quae naturae fluat, per suum decurrere). Esta situação constitui uma limitação interna ao direito de propriedade resultante da lei, a qual configura uma situação normal de relação propter rem de vizinhança, que se distingue da limitação anormal da propriedade representada pela servidão. É possível, no entanto, constituir uma servidão legal de escoamento, nos termos previstos no artigo 1563.º CC, a qual envolve o pagamento de uma indemnização. c. Limitações impostas às construções e edificações: conforme acima se salientou, inclui-se no conteúdo da propriedade dos imóveis a faculdade de proceder à sua transformação, através da realização de construções ou edificações. Há, no entanto, limitações a observar nessa atividade, em ordem à tutela do direito do titular do prédio vizinho, que poderia ser lesado com essas obras. A lei preocupase essencialmente com dois efeitos nocivos sobre o prédio vizinho: i. A devassa do prédio vizinho: em ordem a evitar a devassa do prédio vizinho, estabelece o artigo 1360.º, n.º1 CC a proibição da abertura de janelas ou portas que deitem diretamente sobre esse prédio, sem se deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio. Idêntica proibição vigora em relação às varandas, terraços, eirados e obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela (artigo 1360.º, n.º2 CC). Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente levantado. Se, porém, os prédios forem oblíquos em mais de 45o graus, já não se aplica esta restrição (artigo 1360.º, n.º3 CC). O artigo 1361.º CC estabelece, porém, uma exceção a esta limitação ao determinar que a mesma não é aplicável a prédios separados entre si por estrada, caminho, rua, travessa 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ou outra passagem por terreno do domínio público. É, no entanto, uma exceção dificilmente aplicável, uma vez que muito raramente estas passagens terão menos de metro e meio de largura. Nos termos do artigo 1326.º, n.º1 CC, a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes em contravenção com o disposto na lei pode implicar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião. Nesse caso, o n.º2, estabelece que ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio, desde que deixe entre o novo edifício ou outra construção e as referidas obras o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão dessas obras. O que é tutelado por esta servidão não é a vista em si, mas antes o facto de ter a varanda, janela ou porta em condições de poder ver ou devassar o prédio vizinho. Em consequência da constituição da servidão, é o proprietário do prédio vizinho que, a partir desse momento, passa a ficar sujeito à proibição de construir sem respeitar o interstício legal de metro e meio. Dado que o objeto da servidão é apenas a existência de varanda, janela ou porta que deite para o prédio nas condições vedadas pelo artigo 1360.º CC, a posse necessário à usucapião revela-se pela simples existência dessa obra. Não se consideram abrangidas pelas restrições da lei as frestas, seteiras, ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas (artigo 1363.º, n.º1 CC). As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro em que essas aberturas se encontram (artigo 1363.º, n.º2 CC). Tem sido, porém, questionado o que sucede se as frestas não respeitarem os requisitos do artigo 1363.º, n.º2 CC. 1. Segundo Luiz da Cunha Gonçalves, nesse caso, o proprietário vizinho poderia exigir a sua eliminação, modificação e colocação nos termos regulamentares, ou levantar construções que as tape. 2. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, a colocação nestas condições poderia levar à constituição por usucapião de uma servidão predial, diferente da servidão de vistas, dado que constituem um encargo em benefício de prédio diferente (artigo 1543.º CC). 3. Parece ser a segunda a melhor opção. O proprietário que levante frestas irregulares pode assim adquirir por usucapião uma servidão atípica. É, no entanto, ainda discutido na doutrina se a constituição dessa servidão por usucapião apenas permite ao proprietário manter essas frestas ou se lhe permite ainda reagir contra qualquer ato do proprietário do prédio serviente que estorve o uso dessa servidão, designadamente a realização de construção que desrespeite os limites do artigo 1362.º, n.º2 CC. A nosso ver e esta última posição a correta, uma vez que não faria sentido considerar constituída uma servidão e depois 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão recusar ao proprietário do prédio serviente a possibilidade de reagir contra atos que estorvem o seu uso. O mesmo regime é aplicável, nos termos do artigo 1364.º CC, em relação às janelas gradadas, permitindo a lei a realização de aberturas, quaisquer que sejam as suas dimensões, igualmente situadas a mais de um metro e oitenta centímetros do solo ou do sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros. A exigência de grade fixa explica-se em ordem a evitar a devassa do prédio vizinho, mediante a abertura da janela. ii. O gotejamento sobre o prédio vizinho: estabelece-se no artigo 1365.º, n.º1 CC a proibição do estilicídio, a qual conjuga a regra proibitiva das emissões (artigo 1346.º CC) com o princípio do escoamento natural das águas. O proprietário deve assim realizar a edificação por forma a que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, tendo, se não puder evitar esse gotejamento de outro modo, pelo menos a obrigação de deixar um intervalo de meio metro entre o prédio e a beira. As modernas técnicas de construção permitem, no entanto, evitar o gotejamento através da instalação de algerozes, que evitam que a água venha a cair sobre o prédio vizinho. O artigo 1365.º, n.º2 CC, admite, no entanto, a possibilidade de se constituir por qualquer título uma servidão de estilicídio a qual atribui ao proprietário dominante precisamente o direito de gotejar as águas sobre o prédio serviente. A partir do momento em que é constituída uma servidão de estilicídio o proprietário do prédio serviente deixa de poder colocar entraves ao escoamento das águas, não podendo levantar edifício ou construção que impeça esse escoamento e devendo realizar as obras necessárias para que o mesmo se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante. d. Limitações impostas às plantações de árvores e arbustos: nos termos do artigo 1366.º, n.º1 CC, é lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios, mas ao dono do prédio vizinho não é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias. O proprietário tem assim o direito de plantar árvores e arbustos até à linha do seu prédio, mas o proprietário do prédio vizinho não é obrigado a tolerar a invasão do seu próprio prédio por ramos ou raízes em resultado do crescimento dessas árvores ou arbustos, podendo solicitar o seu corte ao dono da plantação ou realizá-lo ele mesmo, se tal não for feito no prazo de três dias. i. Pires de Lima e Antunes Varela: entendem que esta disposição não atribui ao vizinho, prejudicado com as árvores, o direito de pedir uma indemnização ao dono delas (até porque o direito de core ou arranque não está dependente da existência do dano em concreto e pode, por conseguinte, ser exercido em princípio, antes de tal dano se verificar). ii. Não nos parece, porém, que esta interpretação possa ser aceite. O direito de corte e arranque constitui uma forma de autotutela do direito do proprietário, que não está efetivamente dependente da existência de 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão prejuízo, mas tal não exonera o dono das árvores do dever de evitar a ocorrência de danos para os prédios alheios causados pelas coisas que tem em seu poder (artigo 493.º, nº1 CC). Assim, se os troncos ou as raízes causarem danos no prédio vizinho, é naturalmente o dono das árvores obrigado a indemniza-los, não sendo argumento para elidir essa responsabilidade o facto de o vizinho não ter exercido o seu direito de corte e arranque. O artigo 1366.º, n.º2 CC estabelece, porém, que tal não prejudica as restrições constante de leis especiais relativas à plantação ou sementeira de eucaliptos, acácias ou outras árvores igualmente nocivas nas proximidades de terrenos cultivados, terras de regadio, nascentes de água ou prédios urbanos, nem quaisquer outras restrições impostas por motivos de interesse público. Nessas situações, a plantação e sementeiras dessas árvores fica assim vedada. As árvores e arbustos nascidos na linha divisória de prédios pertencentes a donos diferentes presumem-se comuns, tendo qualquer dos consortes a faculdade de os arrancar, mas o outro tem direito a haver metade do valor das árvores ou arbustos, ou metade da lenha ou madeira que produzirem, como mais lhe convier (artigo 1368.º CC). No entanto, se a árvore ou arbusto servir de marco divisório, não pode ser cortado ou arrancado senão de comum acordo (artigo 1369.º CC). e. Limitações impostas à tapagem do prédio: a lei reconhece ao proprietário o direito de tapagem do seu prédio, o qual não se perde pelo decurso do tempo. Dispõe, consequentemente, o artigo 1356.º CC que a todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio ou tapá-lo de qualquer modo. O direito de tapagem não é afetado pela existência de uma servidão de passagem, desde que não haja por parte do proprietário oposição ao exercício da referida servidão. O direito de tapagem pode, no entanto, ser afetado em caso de abuso de direito (artigo 334.º CC), ou de colisão de direitos (artigo 335.º CC), como na hipótese de a tapagem ser realizada por forma a prejudicar por forma excessiva o uso do prédio vizinho. A lei estabelece, no entanto, algumas limitações à forma de tapagem. Assim, o artigo 1367.º CC estabelece que o proprietário que pretenda abrir vala ou regueira ao redor do prédio é obrigado a deixar mota externa de largura igual à profundidade da vala e a conformar-se com o disposto no artigo 1348.º CC; se fizer valado, deve deixar externamente regueira ou alcorca, salvo havendo, em qualquer dos casos, uso da terra em contrário. Caso sejam colocadas valas, regueiras e valados, entre prédios de diversos donos a que faltem essas condições, as mesmas presumemse comuns, não havendo sinal em contrário (artigo 1358.º, n.º1 CC). É considerado, no entanto, como sinal de que a vala ou regueira sem mota externa não é comum o achar-se a terra da escavação ou limpeza lançada só de um lado durante mais de um ano; neste caso, presume-se que a vala é do proprietário de cujo lado a terra estiver (artigo 1358.º, n.º2 CC). Já em relação às sebes vivas, as mesmas não podem ser plantadas nas extremas dos prédios, sem previamente se colocarem marcos divisórios (artigo 1359.º, n.º1 CC). As sebes vivas consideram-se, em caso de dúvida, pertencentes ao proprietário que mais precisa delas; se ambos estiverem no mesmo caso, presumem-se comuns, salvo se existir uso da terra pelo qual se determine de outro modo a sua propriedade (artigo 1359.º, n.º2 CC). 大象城堡

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3. Deveres de tolerar o exercício de poderes sobre o prédio: as relações de vizinhança podem determinar deveres de tolerar o exercício de poderes do vizinho sobre o próprio prédio. O exemplo mais comum é o dever de permitir a passagem momentânea, quando esta se torne necessária por algum motivo. Assim se referem os artigos 1349.º e 1322.º CC à passagem forçada momentânea, que a lei admite em quatro situações: a. Em caso de necessidade de reparação de algum edifício ou construção (artigo 1349.º, n.º1 CC): verifica-se em caso de necessidade de reparação de algum edifício ou construção uma obrigação do prédio vizinho em tolerar o necessário para a construção ou reparação de edifício, como a colocação de objetos, andaime, transporte de materiais ou atos análogos (artigo 1349.º, n.º1 CC). A constituição dessa obrigação depende, assim, de dois requisitos: i. A finalidade: construção ou reparação de edifício; ii. A necessidade: indispensabilidade para o efeito. A doutrina tem entendido que esta faculdade cabe a todo aquele que tenha o direito de fazer obras num prédio, seja em virtude de um direito real (proprietário, usufrutuário, superficiário), seja em virtude de um direito de crédito (arrendatário). Tem-se igualmente entendido que esta faculdade pode ser exercida mediante ação direta (artigo 336.º CC). b. Para fins de recuperação das próprias coisas, que acidentalmente se encontrem em prédio alheio (artigo 1349.º, n.º2 CC): a lei permite, igualmente, o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem; neste caso, no entanto, o proprietário pode impedir o acesso entregando a coisa a seu dono (artigo 1349.º, n.º2 CC). Verifica-se, assim, que neste caso a obrigação de permitir a passagem admite uma faculdade alternativa, podendo o proprietário substitui-la por uma obrigação de entrega das coisas que se encontrem no seu prédio. c. Para fim de perseguir e capturar enxame de abelhas que tenha fugido sobre prédio vizinho (artigo 1322.º CC): estabelece o artigo 1322.º, n.º1 CC que o proprietário de enxame de abelhas tem o direito de o perseguir e capturar em prédio alheio. No entanto, se o dono da colmeia não perseguir o enxame logo que saiba terem as abelhas enxameado, ou se decorrerem dois dias sem que o enxame tenha sido capturado, pode ocupá-lo o proprietário do prédio onde ele se encontre ou consentir que outrem o ocupe (artigo 1322.º, n.º2 CC) d. Para fim de permitir a apanha de frutos caídos sobre o prédio alheio (artigo 1367.º CC): determina o artigo 1367.º CC que o proprietário de árvore ou arbusto contíguo a prédio de outrem ou com ele confinante pode exigir que o dono do prédio lhe permita fazer a apanha de frutos, que não seja possível fazer do seu lado. A necessidade de apanha dos frutos gera, assim, a obrigação de o titular do prédio vizinho permitir a passagem para esse efeito. Em todas estas situações, no caso de o exercício da faculdade de passagem vier a causar danos ao prédio vizinho, quem exercer esta faculdade fica constituído em responsabilidade objetiva (artigo 1349.º, n.º3, 1322.º, n.º1, in fine e 1367.º, in fine CC). A obrigação de permitir a passagem não corresponde a uma servidão, mas a uma restrição ao direito de propriedade, ainda que possa ser equiparada a uma servidão momentânea, regular ou irregular, desencadeada pela necessidade de passagem em virtude de construção ou reparação, da colocação acidental de objetos no terreno alheio, de fuga do enxame de abelhas ou da necessidade de apanha dos frutos. No entanto, em certos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão casos, a lei prevê efetivamente servidões legais para regular a situação da passagem, as quais se encontram previstas nos artigos 1550.º a 1556.º CC. 4. Deveres de prevenção do perigo para o prédio vizinho: a. Dever de evitar efeitos nocivos resultantes de obras, instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas: um dever específico de prevenção do perigo para o prédio vizinho encontra-se previsto no artigo 1347.º CC. Determina esta norma que o proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou depósitos se for de recear que possam ter sobre o prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei. Esta norma tem por fonte o artigo 2338.º do Código de Seabra, que se referia especificamente às cloacas, fossas, canos de despejo, chaminés, fogões, fornos, depósitos de sal e outras matérias corrosivas. A lei atual generaliza a situação a todas as obras, instalações ou depósitos que possam ter sobre o prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei. O critério é, assim, o da suscetibilidade de ter efeitos nocivos e de esses efeitos nocivos não serem legalmente permitidos. Efetivamente, há casos em que a lei admite o exercício do direito, independentemente dos efeitos nocivos, como sucede com o direito de tapagem (artigo 1356.º CC). Numa solução criticável, o n.º2 do artigo 1347.º CC vem, porém, consignar que, a partir do momento em que as obras, instalações ou depósitos são autorizadas por autoridade competente ou cumpridas as condições especiais previstas na lei para a sua conservação ou manutenção, a sua inutilização só é admitida a partir do momento em que o prejuízo se torne efetivo. Trata-se de uma solução que parte do pressuposto de que os organismos administrativos, ao concederem a autorização, analisaram adequadamente os riscos para os prédios vizinhos, pelo que se exige neste caso a comprovação da existência de prejuízos. É, no entanto, uma regra pouco compatível com o princípio da prevenção, bem como com o facto de a autorização administrativa não poder afetar os direitos privados de terceiros. O artigo 1347.º, n.º3 CC estabelece, porém, que independentemente da existência ou não de autorização, é sempre devida indemnização pelo prejuízo sofrido. Verifica-se, assim, que além de um dever de prevenção do perigo delitual, o legislador estabelece simultaneamente, em caso de violação deste dever uma imputação pelo risco, abrindo assim as portas a um concurso de regimes onde, mesmo que haja cumprimento do dever de prevenção do perigo, desde que se verifiquem danos, ocorre responsabilidade do titular do prédio. b. Dever de prevenir perigos para o prédio vizinho resultantes de escavações: atendendo ao facto de a propriedade do imóvel se estender ao subsolo (artigo 1344.º, n.º1 CC), é direito do proprietário abrir no seu prédio minas e poços e fazer escavações (artigo 1348.º, n.º1, 1.ª parte CC), desde que não ultrapasse a linha divisória do imóvel. A lei pretende, no entanto, evitar que dessa atividade possam resultar riscos para o prédio vizinho, razão pela qual se estabelece um dever de o proprietário não retirar o apoio de terras aos prédios vizinhos (artigo 1348.º, n.º1, 2.ª parte CC). Trata-se, neste caso, de um dever de prevenção do perigo, cuja inobservância é fonte de responsabilidade. A lei reforça, no entanto, esta imputação delitual com uma previsão de responsabilidade objetiva, em caso de ocorrência de danos (artigo 1348.º, n.º2 CC). O responsável é, no entanto, sempre o autor das escavações, não tendo essa responsabilidade o cariz de obrigação propter rem, pelo que não se transfere para o adquirente do imóvel.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão c. Dever de evitar a ruína de edifícios ou outras construções: o proprietário está naturalmente obrigado a evitar a ruína dos seus edifícios ou outras construções. O artigo 492.º, n.º1 CC estabelece consequentemente a responsabilidade pelos danos causados pela ruína de edifícios ou outras obras, devida a vício de construção ou defeito de conservação, estabelecendo nesse caso uma presunção de culpa que recai sobre o proprietário ou possuidor do edifício, presunção essa que, no caso de danos devidos exclusivamente a defeitos de conservação, se transfere para a pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra (n.º2). Trata-se de uma responsabilidade subjetiva fundada na violação de deveres a observar na construção e na conservação de edifícios ou outras obras (deveres de segurança no tráfego), a qual é agravada através de uma presunção de culpa. Como normalmente sucede nos casos de responsabilidade por culpa presumida, admite-se, porém, a possibilidade de demonstração de que os danos continuariam a verificar-se, mesmo que se tivesse adotado a diligência devida (relevância negativa da causa virtual). O artigo 1350.º CC confere, porém, ao proprietário do prédio vizinho a faculdade de exigir imediatamente do proprietário ou possuidor do prédio em risco de ruína, que seria responsável pelos danos nos termos do artigo 492.º CC, as providências necessárias para evitar o perigo. O perigo de ruina dos edifícios permite assim uma reação no âmbito das relações de vizinhança, uma vez que a possibilidade de exigir providências destinadas a evitar a ruína insere-se entre as proteção que a lei reserva ao proprietário, em substituição da figura da cautio damni infectio romanista. Para aplicação dessas providências exige-se a demonstração de três requisitos: i. Perigo de ruína: este perigo de ruina de construção é ainda regulado no Direito do Urbanismo. Efetivamente, o artigo 89.º, n.º1 RJUE estabelece que as edificações devem ser obejto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético. Em consequência, nos termos do artigo 82.º, n.º2 RJUE tem a câmara municipal a faculdade de oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado ordenar a realização de obras de conservação necessárias à correção de más condições de segurança ou de salubridade ou à melhoria do arranjo estético. O artigo 89.º, n.º3 RJUE atribui ainda à câmara municipal a competência para, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, ordenar a demolição total ou parcial das construções que ameaçam ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública ou segurança das pessoas, podendo inclusivamente tomar posse administrativa do imóvel para determinar a sua execução coerciva (artigo 91.º RJUE) ou executar um despejo administrativo sumário (artigo 92.º RJUE). ii. Risco de que essa ruína venha a causar dano ao prédio vizinho; iii. Necessidade e adequação das providências para evitar o dano. d. Dever de manter ou realizar obras defensivas das águas: outro dever específico de prevenção do perigo em relação ao prédio vizinho é o de manter ou realizar obras defensivas das águas. Efetivamente, estabelece o artigo 1352.º, n.º1 CC que o dono do prédio onde existam obras defensivas para conter as águas ou, 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão onde, pela variação do curso das águas, seja necessário construir novas obras, é obrigado a fazer os reparos precisos, ou a tolerar que os façam, sem prejuízo dele, os donos dos prédios que padeçam danos ou estejam expostos a danos iminentes. O artigo 1352.º, n.º2 CC acrescenta que o mesmo regime é aplicável sempre que seja necessário despojar algum prédio de materiais cuja acumulação ou queda estorve o curso das águas com prejuízo ou risco de terceiro. Finalmente, o artigo 1352.º, n.º3 CC estabelece ainda a obrigação dos proprietários que participam do benefício de contribuir para as despesas na medida do seu interesse. Esta disposição tem por fonte o Código Civil italiano, tendo suscitado várias interpretações possíveis: i. O proprietário não teria qualquer obrigação de fazer as obras (facere), mas antes a obrigação de tolerar (pati) que as mesmas sejam realizadas por outrem; ii. Existe uma verdaderia obrigação de realizas as obras, só podendo os interessados fazê-las subsidiariamente, em caso de incumprimento dessa obrigação pelo proprietário: Menezes Cordeiro defendeu esta segunda posição, tendo igualmente a ela aderido Carvalho Fernandes. iii. O proprietário teria um direito, e não um dever, de fazer as obras, e só não querendo usar desse direito, é que poderiam intervir os terceiros. Pires de Lima e Antunes Varela pronunciaram-se no sentido da última interpretação. A segunda posição parece-nos efetivamente a melhor posição. Na verdade, a primeira obrigação do proprietário é a de realizar ou manter as obras defensivas das águas, podendo ser responsabilizado se não as fizer. Apenas no caso de o proprietário incumprir essa obrigação, poderão os vizinhos intervir. Existe consequentemente a obrigação de o proprietário manter a situação de defesa das águas, fazendo para o efeito novas obras ou reparações, devendo, em caso de incumprimento, tolerar que essas obras sejam feitas pelos donos dos prédios que padeçam danos que estejam sujeitos danos iminentes. 5. Deveres de participar em atividades de interesse comum: a. Dever de concorrer para a demarcação dos prédios: nos termos do artigo 1353.º CC, o proprietário de um prédio pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles. O artigo 1355.º CC esclarece que o direito de demarcação é imprescritível, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião. Verifica-se, assim, que é reconhecido a qualquer proprietário o direito a proceder em qualquer momento à demarcação do seu prédio. No caso de o proprietário pretender exercer esse direito, os seus vizinhos, por força dos deveres resultantes das relações de vizinhança, são obrigados a concorrer para essa demarcação. A forma como se procede à demarcação é regulada pelo artigo 1354.º CC. A demarcação é feita normalmente em conformidade com os títulos de cada um (artigo 1354.º, n.º1, in principio CC). Apenas na falta de títulos suficientes se atende à posse em que estejam os confinantes ou ao que resultar de outros meios de prova em (artigo 1354.º, n.º1, in fine CC). Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais (artigo 1354.º, n.º2 CC). Se os títulos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribuir-se-á a falta ou o acréscimo proporcionalmente à parte de cada um (artigo 1354º, n.º3 CC). b. Deveres relativos às paredes e muros de meação: resulta do artigo 1370.º, nº.1 CC que o proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio pode adquirir nele comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu valor metade do valor do solo sobre que estiver construído, atribuindo o artigo 1370.º, n.º2 CC, ainda esse direito ao superficiário. Esta disposição estabelece, assim, uma espécie de expropriação forçada por utilidade particular, destinada a permitir obter comunhão do outro proprietário em relação a parede ou muro confinante, considerando-se como tais aqueles que se encontrarem precisamente encostados à linha divisória do prédio. A lei refere-se exclusivamente a paredes ou muros, exigindo consequentemente uma construção, o que exclui as vedações de madeira, arame ou sebes vivas ou mortas. De notar que a expropriação pode ter lugar quer quanto à totalidade, quer quanto a parte da parede ou muro e respeite esta parte à extensão ou à altura, não deixando, porém, de se exigir o pagamento de metade do valor do solo sobre que incidir a parede ou o muro. Uma vez que se funda na necessidade de utilização do muro como divisão dos prédios, esta faculdade é naturalmente excluída se o vizinho já tiver por sua vez construído um outro muro paralelo no seu terreno. A lei estabelece ainda no artigo 1371.º CC uma presunção da compropriedade de paredes ou muros divisórios entre dois edifícios. A presunção de compropriedade aplica-se os edifícios forem iguais em toda a sua altura, apenas vigorando até à altura do edifício inferior no caso contrário (artigo 1371.º, n.º1 CC). Se, no entanto, o edifício tiver caído em ruínas ou sido demolido a presunção que existia não é alterada, passando a vigorar para a hipótese da sua reconstrução. Os muros entre prédios rústicos ou entre pátios ou quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário (artigo 1371.º, n.º2 CC). A presunção não vigora, no entanto, entre prédios de diferentes natureza, pelo que se estiver em causa um muro entre um prédio rústico e um prédio urbano, já não se aplicará esta presunção, uma vez que o normal é que o muro seja pertença do dono do prédio urbano. Como normalmente sucede com as presunções legais, esta pode ser ilidida por prova em contrário (artigo 350.º, n.º2 CC). Os n.º3, 4 e 5 do artigo 1371.º CC referem-se, porém, a situações que excluem a presunção de existência da comunhão. Nos termos do artigo 1371.º, n.º3 CC, são sinais que excluem a presunção de existência de comunhão: i. A existência de espigão em ladeira só para um lado; ii. Haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele; iii. Não estar o prédio contíguo igualmente murado pelos outros lados.  Nos casos previstos em i., presume-se que o muro pertence ao prédio para que se inclina a ladeira.  Nos outros casos, presume-se que o muro pertence àquele de cujo lado se encontrem as construções ou sinais mencionados (artigo 1371.º, n.º4 CC). Também se o muro sustentar em toda a sua largura qualquer construção que esteja só de um dos lados, presume-se do mesmo modo que ele pertence exclusivamente ao dono da construção (artigo 1371.º, n.º5 CC). 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão As razões para a exclusão da presunção de comunhão em virtude destes sinais são claras. Em primeiro lugar, quando os espigões deitam só para um lado, se o muro fosse comum, não seria de esperar que o titular do outro prédio aceitasse receber as águas. Também se extinguem cachorros de pedra salientes apenas de um dos lados, tal significa que só o proprietário ponderou a realização de futuras construções, além de que se o muro fosse comum, não poderia edificar para além da extensão de metade (artigo 1373.º CC). Se todo o prédio está murado, sem que o outro o esteja (mesmo que tenha redes de arame ou sebes), também se presume que não há comunhão, uma vez que se verifica que o muro foi construído apenas por um dos proprietários. Finalmente, se o muro sustenta a sua construção apenas de um dos lados, supõe-se que o outro proprietário não teve interesse em concorrer para a sua construção. Se existirem sinais contraditórios (espigões de pedra para um lado e cachorros para o outro), entendem: i. Pires de Lima/Antunes Varela, que não existirá nem presunção de comunhão nem de propriedade individual, pelo que a questão terá de ser resolvida de acordo com as regras gerais do ónus da prova. ii. Henrique Mesquita, pelo contrário, sustenta que nesse caso renasce a presunção de comunhão. iii. Parece-nos preferível esta última posição. Em caso de existência de comunhão, é vedado ao proprietário abrir janelas ou frestas, ou fazer outra alteração na parede ou muro, sem o consentimento do seu consorte (artigo 1372.º CC). Em relação às janelas a proibição resulta já do artigo 1360.º CC, a menos que através delas se constitua por usucapião uma servidão de vistas. As frestas são, no entanto, permitidas pelo artigo 1363.º CC, sendo apenas vedadas em consequência da existência de comunhão sobre os muros ou paredes. A lei permite, no entanto, a qualquer um dos consortes edificar sobre a parede ou muro comum e introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou do muro (artigo 1373.º, n.º1 CC). Essa restrição deixa, no entanto, de se aplicar se a parede ou muro tiver espessura inferior a meio metro (artigo 1373.º, n.º2 CC). O artigo 1374.º, n.º1 CC, permite ainda a qualquer dos consortes alterar a parede ou muro comum, contanto que o faça à sua custa, ficando a seu cargo todas as despesas de conservação da parte alterada. Naturalmente que esta faculdade não existe, no caso de se ter constituído uma servidão altius non tollendi. Se a parede ou muro não estiver em estado de aguentar o alçamento, o consorte que pretender levantá-lo tem que reconstruí-lo por inteiro à sua custa e, se quiser aumentarlhe a espessura, é o espaço para isso necessário tomado do seu lado (artigo 1374.º, n.º2 CC). O consorte que não tiver contribuído para o alçamento pode adquirir comunhão na parte aumentada, pagando metade do valor dessa parte e, no caso de aumento de espessura, também metade do valor do solo correspondente a esse aumento (artigo 1374.º, n.º3 CC). Caso seja necessário proceder à reconstrução ou reparação do muro comum, a lei estabelece que a mesma deve ser feita pelos consortes, em proporção das suas partes (artigo 1375.º, n.º1 CC). Se, no entanto, o muro for apenas de vedação, a despesa deve ser feita por ambos em partes iguais (artigo 1375.º, n.º2 CC), salvo se, além da vedação, um dos consortes tirar do muro proveito que não seja comum ao outro, caso em que a despesa é rateada entre eles em proporção do proveito que cada 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão um tirar (artigo 1375.º, n.º3 CC). Se a ruína do muro provier de facto do qual só um dos condóminos tire proveito, só o beneficiário é obrigado a reconstruí-lo ou repará-lo (artigo 1375.º, n.º4 CC). Qualquer dos consortes tem, porém, a faculdade de se eximir dos encargos de reparação ou reconstrução da parede ou muro, renunciando ao seu direito nos termos do n.º1 e 2 do artigo 1411.º CC (artigo 1375.º, nº.5 CC). O regime relativo à reconstrução ou reparação do muro não é, no entanto, aplicável caso o muro seja destruído por atuação culposa de um dos consortes. Nesse caso, aplicam-se as regras da responsabilidade civil (artigo 483.º CC).

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Parte IV – Dos Direitos Reais de Garantia Secção I – A consignação de rendimentos

Generalidades: entre os direitos reais de garantia encontra-se a consignação de rendimentos. A consignação de rendimentos pode ser definida como a afetação dos rendimentos de determinados bens imóveis ou móveis sujeitos a registo à garantia do cumprimento de obrigações, sejam estas principais, de juros ou ambas, e podendo ser quer presentes quer futuras ou condicionais (artigo 656.º CC). Assim, ao contrário do penhor e da hipoteca, que permitem ao credor pagar-se pelo valor dos bens objeto da garantia, a consignação de rendimentos apenas permite ao credor pagar-se através dos rendimentos de uma coisa ou pelo uso dela, e já não pelo valor da mesma.

Legitimidade para a constituição da consignação de rendimentos: consistindo numa oneração dos rendimentos dos bens, a consignação pressupõe a legitimidade para dispor desses rendimentos (artigo 657.º, n.º1 CC), ainda que não necessariamente do próprio bem. A consignação pode naturalmente ser constituída por terceiro (artigo 658.º, n.º2 CC), caso em que se extingue sempre que por facto positivo ou negativo do credor, não possa dar-se a sub-rogação daquele nos direitos deste (artigo 717.º, n.º1, aplicável por força do artigo 657.º, n.º2 CC).

Modalidades da consignação de rendimentos: a consignação pode ser voluntária ou judicial, sendo voluntária a consignação constituída pelo devedor ou por terceiro que resulte de negócio entre vivos ou de testamento, e judicial a que resulta de decisão do tribunal (artigo 658.º CC). A consignação judicial encontra-se regulada nos artigos 803.º e seguintes CPC, sendo uma forma de satisfação do crédito, que é admitida por requerimento do exequente, enquanto os bens não tiverem sido vendidos ou adjudicados. Já a consignação voluntária depende de escritura pública, de documento particular autenticado, ou de testamento, se abranger imóveis, ou de simples escrito particular, se abranger móveis, devendo em qualquer caso ser sujeita a registo, salvo se tiver por objeto títulos de crédito nominativos, caso em que basta a simples menção nos títulos e averbamentos (artigo 660.º CC).

Prazo da consignação de rendimentos: dispõe o artigo 659.º CC que a consignação de rendimentos pode fazer-se por um certo número de anos ou até ao pagamento da dívida garantida, mas que, quando incida sobre os rendimentos de bens imóveis, nunca poderá exceder o prazo de 15 anos. A existência do limite máximo compreende-se, dado que a oneração que representa a consignação de rendimentos de um imóvel prejudica a livre alienação do bem.

Forma e publicidade da consignação de rendimentos: dispõe o artigo 660.º, n.º1 CC que, salvo o disposto em lei especial, o ato constitutivo da consignação voluntária deve constar de escritura pública, de documento particular autenticado ou de testamento, se respeitar a coisas imóveis, e de escrito particular autenticado ou de testamento, se respeitar a coisas imóveis, e de escrito particular, quando recaia sobre móveis, estabelecendo o n.º2 que a consignação está sujeita a registo, salvo se tiver por objeto os rendimentos de títulos de crédito nominativos, devendo neste caso ser mencionada nos títulos e averbada, nos termos da respetiva legislação. A sujeição a registo encontra-se igualmente referida no artigo 2.º, n.º1, alínea h) CRPr. No caso de se tratar da consignação judicial de rendimentos de bens imóveis objeto de inscrição de penhora, o registo 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão da consignação de rendimentos é efetuado por averbamento à inscrição da penhora sobre o imóvel (artigo 101.º, n.º1, alínea i) CRPr). No caso de se tratar de consignação voluntária de rendimentos, o registo é efetuado por inscrição, a qual mencionará o prazo de duração ou, se for por tempo indeterminado, a quantia para cujo pagamento se fez a consignação e a importância a descontar em cada ano, se tiver sido estipulada uma quantia fixa (artigo 95.º, n.º1, alínea o) CRPr).

Objeto da consignação de rendimentos: conforme resulta do artigo 656.º, n.º1 CC, a consignação de rendimentos apenas pode incidir sobre os rendimentos de certos bens imóveis, ou de móveis sujeitos a registo, incluindo-se nestes últimos os títulos de crédito nominativos, conforme se dispõe no artigo 660.º, n.º2 CC. Salienta-se, no entanto, que relativamente a bens móveis não registáveis, é possível constituir um penhor e afetar os respetivos frutos ao pagamento do capital em dívida (artigo 672.º CC), o que permite por essa via que seja obtida uma função idêntica à da consignação de rendimentos.

Regime da consignação de rendimentos: em termos de efeitos, a consignação de rendimentos atribui ao credor na execução a preferência sobre os demais credores pelos rendimentos do bem sobre que incide e permite exigir esses rendimentos mesmo que o bem seja alienado a terceiro. A consignação é, no entanto, uma figura maleável, uma vez que nela é possível estipular, tanto que continuem em poder do concedente os bens cujos rendimentos são consignados, como que esses bens passem para o poder do credor, o qual fica, na parte aplicável, equiparado ao locatário, sem prejuízo da faculdade de por seu turno os locar; que os bens passem para o poder de terceiro, por título de locação ou outro, ficando o credor com o direito de receber os respetivos frutos (artigo 661.º, n.º1, alínea a) e b) CC). Os deveres a que as partes estão sujeitas variarão consoante a situação em causa. Assim:

1. Se os bens continuarem em poder do concedente: o credor fica com direito de exigir dele a prestação anual de contas, se não for estipulado o recebimento de uma importância fixa (artigo 662.º, n.º1 CC). O concedente mantém assim os bens em seu poder, sendo ele que entrega os respetivos rendimentos ao credor. 2. Se os bens passarem para poder do credor: este fica equiparado ao locatário, sem prejuízo da faculdade que possui de efetuar nova locação desses bens. Temos assim que os bens são entregues ao credor, sendo este que os administra para obter os rendimentos que são objeto da garantia, sendo o seu estatuto equiparado ao do locatário, com exclusão de pagamento da renda. Nesta situação, passa a ser o credor que incide o dever de efetuar ao concedente a prestação de contas (artigo 662.º, n.º2 CC). No caso de os bens passarem para o poder do credor este fica vinculado a administra-los como um proprietário diligente e a pagar as contribuições e demais encargos das coisas (artigo 663.º, n.º1 CC), dever que só pode elidir renunciando à garantia (artigo 663.º, n.º2 CC). 3. Se os bens passarem para o poder de terceiro: por título de locação ou outro, o credor fica com o direito de haver os respetivos frutos. Nesta hipótese, os bens não ficam nem em poder do devedor, nem em poder do credor. São colocados na posse de terceiro, através de um título específico, como a locação, cabendo ao terceiro a faculdade de gozo desses bens mediante a contrapartida de uma prestação que é entregue ao credor, a título de garantia. A consignação pode garantir tanto dívidas já existentes, como dívidas condicionais ou futuras (artigo 656.º, n.º1 CC). Nos termos do artigo 656.º, n.º2 CC, a consignação de rendimentos pode garantir o cumprimento da obrigação e o pagamento dos juros, ou apenas o cumprimento da

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão obrigação ou só o pagamento dos juros. No caso de garantir tanto o cumprimento da obrigação como o pagamento dos juros, os frutos da coisa são imputados primeiro nos juros e só depois no capital (artigo 661.º, n.º2 CC). A extinção da obrigação garantida vai assim ocorrendo através da entrega desses rendimentos ao credor, a qual não implica a novação e como que se reconduz a uma dação em cumprimento. Face a este regime, é manifesto que o titular da consignação não tem a faculdade de executar a coisa, podendo apenas pagar-se através dos seus rendimentos, o que obtém gradualmente sem necessidade de aguardar que o devedor incumpra a obrigação garantida. O seu direito é naturalmente oponível a terceiros, em caso de alienação da coisa, continuando o credor a ter direito aos rendimentos desta, mas não parece poder sobreviver à venda executiva (artigo 824.º, n.º2 CC). Por força do artigo 665.º CC, à consignação aplica-se o regime da hipoteca, quanto à transferência do direito para indemnizações em caso de perda ou deterioração (artigo 692.º CC) pacto comissório (artigo 694.º CC), cláusulas de inalienabilidade (artigo 695.º CC), indivisibilidade (artigo 696.º CC), substituição ou reforço (artigo 701.º CC) e seguro (artigo 702.º CC).

Extinção da consignação de rendimentos: a constituição de rendimentos extingue-se por(artigos 664.º e 730.º CC):

1. Decurso do prazo: resulta do decurso do prazo. Efetivamente, se as partes estipularem um prazo de vigência da consignação de rendimentos, o decurso desse prazo de vigência da consignação de rendimentos, o decurso desse prazo faz extinguir a consignação, mesmo que a dívida não esteja paga. O crédito substituirá, nessa parte, como crédito comum. 2. Extinção da obrigação a que serve de garantia: efetivamente, sendo a consignação de rendimentos uma garantia acessória, a extinção da obrigação a que serve de garantia determina naturalmente a extinção da consignação. 3. Perecimento da coisa consignada: dado que o desaparecimento do objeto de um direito extingue esse direito. 4. Renúncia do credor: uma vez que sendo a garantia estabelecida em seu benefício, naturalmente que não se justifica mantê-la contra a sua vontade.

Natureza da consignação de rendimentos: é controvertida a natureza jurídica da consignação de rendimentos. A posição dominante é a de que esta constitui uma garantia real das obrigações, por força da qual o credor se paga pelos rendimentos de certos bens imóveis ou móveis sujeitos a registo. Há quem, no entanto, considere que a figura não tem uma natureza real verdadeira ou completa, na medida em que ao credor é retirada a possibilidade de executar o bem, e a garantia não sobrevive à venda executiva. Finalmente, há quem lhe negue mesmo o cariz de garantia, considerando que representa antes um meio de realização atual do crédito, reconduzível à datio pro solvendo. A consignação não se apresenta como um meio de satisfação do crédito, uma vez que através dela não ocorre a extinção da obrigação, mas antes uma garantia suplementar que consiste na afetação dos rendimentos de uma coisa ou do seu uso à satisfação do crédito. Essa garantia, apesar de incidir sobre os rendimentos da coisa, não deixa de representar uma oneração real da mesma, na medida em que é oponível a terceiros. Não vemos, por isso, razão para afastar a consignação de rendimentos das garantias reais das obrigações. Há, no entanto, que reconhecer que, para além de ser uma garantia, a consignação pode funcionar como um meio de permitir a satisfação do crédito. Tal depende, no entanto, da vontade do devedor que pode em qualquer altura optar por cumprir a obrigação garantida, extinguindo a consignação (artigos 664.º e 730.º, alínea a) CC).

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Secção II – O penhor

Generalidades: constitui outro direito real de garantia o penhor. Este é objeto de regulação não apenas pelos artigos 666.º e seguintes CC, relativos ao penhor civil, mas também pelos artigos 387.º e seguintes CCom, relativos ao penhor mercantil. Para além disso, ocupam-se ainda do penhor o Decreto-Lei n.º 29833, de 17 agosto 1939 e o Decreto-Lei n.º 32032, de 22 maio 1942, relativos ao penhor bancário, e ainda o Decreto-Lei n.º 365/99, 17 setembro, que, em relação à atividade de prestamista, regula o mútuo garantido por penhor (artigos 10.º e seguintes). Em bom rigor, deverá reconhecer-se que o regime do Código Civil surge apenas como referência geral do penhor, uma vez que a grande maioria dos penhores encontra-se sujeita a regimes especiais (artigo 668.º CC).

Evolução histórica do penhor: o atual regime do penhor tem por base uma evolução histórica a partir do Direito Romano. Inicialmente, a forma usada para constituir as garantias residia na fiducia cum creditore (Gaio Inst. 2.59-60 e 3.201), mediante a qual o devedor efetuava ao credor, por via da mancipatio, a transmissão de uma coisa sua, obrigando-se simultaneamente o credor a restituir-lha quando a obrigação fosse cumprida. Esta via era, no entanto, demasiado onerosa para o devedor, que perdia logo a propriedade da coisa, pelo que veio a ser substituída pela datio pignoris, a qual não transferia a propriedade, mas apenas a posse da coisa que lhe era entregue. O credor adquiria consequentemente o ius possidendi e para além disso, o ius distrahendi, mediante o qual poderia vender a coisa em caso de não cumprimento da obrigação garantida, podendo também fazer sua essa mesma coisa em caso de não cumprimento (lex comissória). Essa última faculdade viria, no entanto, a ser abolida por uma constituição do Imperador Constantino, por se ter considerado demasiado gravosa para o devedor, uma vez que o objeto dado em penhor vale normalmente mais do que a dívida garantida (C.8.34.3). O ius possidendi do credor pignoratício veio posteriormente a ser reforçado através de uma actio serviana utilis mediante o qual se admitiu a possibilidade de ele reclamar a restituição da coisa, caso ele se encontre ilegitimamente na detenção de terceiro. Essas características manter-se-iam no Direito intermédio, vindo consequentemente o mesmo a ser consagrado nas diversas codificações. Assim, o Code Civil francês de 1804 consagra o penhor (gage). O BGB regula o penhor (Pfandrecht), também o Código Civil italiano regula o penhor.

Características do penhor: nos termos do artigo 666.º, n.º1 CC, o penhor confere ao credor o direito à satisfação do crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro. O penhor constitui assim uma garantia real, dado que atribui uma preferência sobre bens determinados, cuja especificidade consiste em ter por objeto os bens não suscetíveis de hipoteca. No caso do penhor de créditos, dado que estes não podem ser objeto de direitos reais, o penhor perde a sua natureza real, sendo uma garantia de outro tipo. Apesar da sua natureza real, o penhor é considerado uma garantia acessória do crédito, pelo que a sua constituição, manutenção e extinção ficam dependentes da constituição, manutenção e extinção do crédito garantido. O penhor pode, porém, ser constituído em relação a uma obrigação futura ou condicional (artigo 666.º, n.º3 CC), caos em que o autor do penhor transmite a posse da coisa a outrem na expectativa de que este venha a ser constituído como seu credor. Ao contrário da hipoteca, o penhor resulta sempre de um contrato (contrato de penhor), o qual pode ser celebrado, quer pelo devedor, quer por terceiro (artigo 666.º, n.º1, in fine CC). No caso de alguém ser obrigado ou autorizado por lei a prestar caução e o fizer por 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão meio de depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, esse depósito é havido como penhor (artigos 666.º, n.º2 e 623.º, n.º1 CC).

Modalidades de penhor: o penhor com ou sem desapossamento: o penhor pode ser constituído com ou sem desapossamento. No seu enquadramento tradicional, o penhor é realizado com desapossamento, exigindo-se a entrega da coisa ou documento que atribua a exclusiva disponibilidade dela ao credor ou a terceiro (artigo 669.º, n.º 1 CC), podendo essa entrega consistir na simples atribuição da composse ao credor, se essa atribuição privar o devedor da possibilidade de dispor materialmente da coisa (artigo 669.º, n.º2 CC). Essencial é assim que o credor seja privado da disponibilidade material da coisa, o que desempenha uma função de publicidade, visando-se com ela assegurar que os terceiros possam ter conhecimento da existência do penhor, e que terão que suportar o exercício do direito do credor pignoratício, caos a coisa seja objeto de alienação. Essa especialidade de o penhor implicar a subtração da posse da coisa ao seu titular leva a que este desempenhe uma função económica específica como garantia, sendo especialmente utilizado em bens de que o devedor não carece para fins comerciais ou industriais e que pode dispensar por um certo período, como bens de luxo, joias e metais preciosos. Estão, porém, contempladas legalmente situações em que se verifica um penhor sem desapossamento, como sucede no penhor mercantil, onde se prevê uma tradição meramente simbólica (artigos 398.º e seguintes CCom), e no penhor constituído em garantia de créditos de estabelecimentos bancários autorizados, em que se dispensa mesmo a tradição (artigo 1.º Decreto-Lei n.º 29833, 17 agosto 1939 e artigo único do Decreto-Lei n.º 32032, 22 maio 1942). Para além deste caso especial, encontram-se, ainda, previstas em lei especial certas modalidades particulares de penhor de direitos que dispensam o desapossamento, admitindo outras formas de publicidade, como, por exemplo, o registo. Estão nestas condições, designadamente, o penhor de participações sociais (artigo 23.º, n.º3 CSC), o penhor de valores mobiliários (artigos 81.º e 103.º CVM) e o penhor do conteúdo patrimonial dos direitos de autor (artigo 46.º, n.º1 CDADC e 215.º, n.º1, alínea a) da Lei n.º 45/87, 7 setembro).

Legitimidade para a constituição do penhor: refere o artigo 667.º CC que só tem legitimidade para constituir o penhor quem puder alienar os bens, podendo naturalmente ser terceiro em relação à obrigação respetiva. O penhor constituído por terceiro encontra-se sujeito, nos termos do artigo 717.º CC, aplicável por força do artigo 667.º, n.º2 CC, à extinção sempre que um facto positivo ou negativo do credor tenha impossibilitado a sub-rogação do devedor, nos termos do artigo 592.º CC.

Forma do contrato de penhor: a lei não exige forma especial para o penhor de coisas, apenas referindo em relação ao penhor de direitos que ele deve revestir a forma necessária à transmissão dos direitos empenhados (artigo 681º, n.º1 CC). Há, porém, exigências de forma nos regimes especiais de penhor (artigos 400.º CCom e 11.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 365/99).

Âmbito do crédito garantido: o penhor pode ser constituído para garantia de quaisquer obrigações, incluindo futuras e condicionais (artigo 666.º, n.º2 CC). Não há, por outro lado, limites legais à obrigação garantida, podendo esta abranger tanto o capital como os juros da obrigação, independentemente do seu montante, dado que não é aplicável ao penhor o limite estabelecido no artigo 693.º, n.º2 CC, relativo à hipoteca.

Objeto do penhor: podem ser objeto de penhor quaisquer coisas móveis, desde que não suscetíveis de hipoteca. Já os bens imóveis, assim, como certos bens móveis, como os automóveis, navios e aeronaves, não poderão ser objeto de penhor, uma vez que se encontram abrangidos

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão pela hipoteca. O entendimento tradicional é o de que não é admissível penhor sobre universalidades de facto, como uma coleção de selos, nem sobre coisas fungíveis, como o dinheiro, já que apenas se admite o penhor sobre coisas determinadas. A prática entre nós tem vindo, porém, a admitir certas universalidades como objeto de penhor, tal como o estabelecimento comercial, bem como de penhor irregular, considerando expressamente o artigo 666.º, n.º2 CC, que é havido como penhor o depósito a que se refere o artigo 623.º, n.º1 CC, onde se inclui o dinheiro. A lei admite ainda a possibilidade de o penhor ter por objeto direitos (artigos 679.º e seguintes CC), sempre que estes tenham por objeto coisas móveis e sejam suscetíveis de transmissão (artigo 680.º CC). O penhor de direitos, designadamente o penhor de créditos, não constitui, porém, um direito real de garantia, uma vez que não incide sobre coisas corpóreas, sendo antes uma garantia especial sobre direitos.

Constituição do penhor: o penhor com desapossamento tem vinda a perder a importância no universo das garantias reais, apenas tendo lugar no âmbito do pequeno crédito, como o que resulta de empréstimos privados ou do negócio das causas de penhores. Essencial para a constituição do penhor é neste caso a tradição da coisa, uma vez que o artigo 669.º, n.º1 CC, refere que o penhor só produz os seus efeitos pela entrega da coisa empenhada, ou de documento que confira a exclusiva disponibilidade dela, ao credor ou a terceiro, acrescentando o n.º2 que a entrega pode consistir na simples atribuição da composse ao credor, se essa atribuição privar o autor do penhor da possibilidade de dispor materialmente da coisa. Essencial ao penhor com desapossamento é assim a atribuição da posse sobre a coisa ao credor pignoratício, a qual deve resultar da tradição da coisa, a qual normalmente será material, podendo ainda ser simbólica, quando consista na tradição do documento que confira a exclusiva disponibilidade da coisa, devendo ainda admitir-se a possibilidade de ocorrer uma traditio brevi manu, nos casos em que o credor pignoratício já esteja na detenção da coisa, antes da sua contribuição em penhor. A posse do credor pignoratício é uma posse em nome próprio, nos termos do seu direito de penhor. Em lugar da atribuição da posse integral sobre a coisa, pode ainda ser atribuída meramente a composse, desde que ela prive o proprietário da possibilidade de dispor materialmente da coisa (artigo 669.º, n.º2 CC). Conforme refere o BGB, essa situação pode ocorrer quando a coisa seja encerrada em local onde não possa ser aberta sem intervenção do credor, ou quando esteja na detenção de terceiro, que apenas a poderá restituir conjuntamente aos dois.

Direitos do credor pignoratício: o principal direito do credor pignoratício aparece-nos referido no artigo 666.º, n.º1 CC, e consiste em poder obter a satisfação do seu crédito e eventuais juros, com preferência sobre os demais credores do devedor, pelo valor da coisa objeto do penhor. Esse direito compreende duas faculdades típicas:

1. A possibilidade de dar à execução a coisa empenhada, cumpridas as normas processuais estabelecidas para a execução do penhor; e 2. A obtenção de uma preferência especial, já que em caso de concurso de credores o credor pignoratício obtém prioridade no pagamento sobre o valor da coisa empenhada, só podendo os credores comuns obter pagamentos após a integral satisfação do seu direito. Assim, a lei prevê que, vencida a obrigação a que serve de garantia, o credor adquire o direito de se pagar pelo produto da venda judicial da coisa empenhada, podendo a venda ser efetuada extraprocessualmente se as partes assim o tiverem convencionado (artigo 657.º, n.º1 CC), tendo ainda os interessados a possibilidade de convencionar que a coisa empenhada seja adjudicada ao credor pelo valor que o tribunal fixar (artigo 675.º, n.º2 CC). No âmbito do penhor mercantil o

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão artigo 401.º CCom prevê que a venda poderá efetuar-se no meio de corretor, notificado o devedor, sendo que no caso de penhor efetuado a prestamista, os artigos 19.º e seguintes Decreto-Lei n.º 365/99 admitem igualmente uma venda extrajudicial. A regra é, assim, a venda processual do penhor, sendo mesmo proibido o pacto comissório (artigo 694.º, aplicável ex vi artigo 678.º CC), o que se encontra em conformidade com a proibição da livre apropriação do objeto das garantias reais. No caso do penhor, esta regra é, no entanto, atenuada pelo facto de se permitir por convenção a venda extraprocessual ou mesmo a adjudicação, mediante prévia avaliação judicial. Sendo realizada a venda processualmente, ela efetua-se nos termos gerais do processo executivo, tendo sido eliminado o anterior processo judicial de venda e adjudicação do penhor, já que o aumento do elenco dos títulos executivos tornou inútil a correspondente fase declarativa, destinada à obtenção de título executivo. Quando houver fundado receio de que a coisa empenhada se perca ou deteriore, o credor, ou o autor do penhor, pode mesmo proceder à sua venda antecipada, mediante autorização judicial (artigo 674.º, n.º1 CC), podendo o autor do penhor impedir essa venda, desde que ofereça outra garantia idónea (artigo 674.º, n.º3 CC). Os direitos do credor pignoratício passam, então, a incidir sobre o produto da venda, podendo o tribunal, no entanto, ordenar que o preço seja depositado (artigo 674.º, n.º2 CC). Para além desse direito principal, o artigo 670.º CC vem atribuir ooutros direitos em relação ao credor pignoratício. O primeiro, referido na alínea a), é o de usar, em relação à coisa empenhada, das ações destinadas à defesa da posse, ainda que seja contra o próprio dono. Efetivamente, implicando o penhor o desapossamento ao menos parcial do dono da coisa, e a concomitante atribuição de posse ao credor pignoratício, são-lhe conferidos os meios de conservação da referida possee, podendo este exercê-los, quer contra o próprio dono, quer contra terceiros. Para além desse direito, o artigo 670.º, alínea b) CC confere ainda ao credor pignoratício o direito de ser indemnizado das benfeitorias necessárias e úteis e de levantar estas últimas, nos termos do artigo 1373.º CC. Tratase de uma solução que se compreende, em função da atribuição da posse ao credor pignoratício. É, no entanto, de referir que a garantia do penhor não se estende ao crédito por benfeitorias, cabendo, no entanto, em relação a estas o direito de retenção. O artigo 670.º, alínea c) CC, confere também ao credor pignoratício o direito de exigir a substituição ou o reforço do penhor ou o cumprimento imediato da obrigação, se a coisa empenhada perecer ou se tornar insuficiente para segurança da dívida, nos termos fixados para a garantia hipotecária. Aplica-se, assim, também no penhor o regime estabelecido no artigo 701.º CC para a hipoteca, admitindo-se a possibilidade de se exigir a substituição do reforço da garantia, ou o cumprimento imediato da obrigação, em caso de perecimento ou insuficiência da coisa prestada para o cumprimento da obrigação. Essa solução está genericamente prevista no artigo 780.º CC, em relação a todas as garantias, para o caso de a diminuição ou insuficiência da garantia resultar de causa imputável ao devedor, estendendo esta disposição o regime também a causas não imputáveis ao devedor. Para além destes direitos, há que acrescentar-se uma faculdade restrita de uso da coisa empenhada, sempre que o uso for indispensável à conservação da coisa ou o autor do penhor nele tenha consentido (artigo 671.º, alínea b) a contrario CC). Para além disso, resulta do artigo 672.º, n.º1 CC que a lei atribui também na prática um poder de fruição ao credor pignoratício ao permitirlhe haver os frutos da coisa, que serão encontrados nas despesas feitas com ela, e nos juros vencidos, devendo o excesso, na falta de convenção em contrário, ser abatido no capital que for devido. Tal permite ao credor pignoratício em termos práticos a recolha dos frutos, uma vez que pode compensar a obrigação da sua restituição com o crédito que tenha sobre despesas, juros vencidos e capital. Se tiver que restituir os frutos, eles não se considerarão abrangidos pelo penhor (artigo 672.º, n.º2 CC).

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Deveres do credor pignoratício: a relação de penhor implica ainda a atribuição de certos deveres ao credor pignoratício, referidos no artigo 671.º CC. O primeiro dever que recai sobre o credor pignoratício é o de custódia e administração da coisa empenhada. Efetivamente, o artigo 671.º, alínea a) CC refere que o credor pignoratício é obrigado a guardar e administrar como um proprietário diligente a coisa emprenhada, respondendo pela sua existência e conservação. Daqui resulta que se a coisa empenhada perecer ou se deteriorar o credor pignoratício será responsável nos termos gerais da responsabilidade obrigacional (artigo 798.º CC), pelo que a sua culpa naturalmente se presume (artigo 799.º n.º1 CC). Para além disso, e uma vez que lhe cabem poderes de administração, o credor pignoratício deve fazer frutificar a coisa, respondendo pelos frutos que um proprietário diligente teria obtido. O segundo dever que recai sobre o credor pignoratício, é o de não usar a coisa empenhada sem consentimento do autor do penhor, exceto se o uso for indispensável à conservação da coisa (artigo 671.º, alínea b) CC). Efetivamente, tendo o credor pignoratício uma faculdade de uso que é apenas instrumental em relação ao seu dever de conservação da coisa, cabe-lhe o dever de não exceder os limites dessa faculdade, até porque o uso poderia implicar a desvalorização da coisa. Finalmente, recai sobre o credor pignoratício o dever de restituir a coisa empenhada, extinta a obrigação a que serve de garantia (artigo 671.º, alínea c) CC). A extinção da obrigação garantida determina, até por força do princípio da acessoriedade, a imediata extinção do penhor. Por força do artigo 670.º, alínea b) CC, o credor pignoratício poderá ainda reclamar o direito à restituição de benfeitorias necessárias e úteis, mas elas já não serão abrangidas pelo penhor, cabendo ao credor antes o direito de retenção (artigo 754.º CC).

Direitos do autor do penhor: o penhor constitui um direito real de garantia, que onera a coisa empenhada, ficando em consequência o autor do penhor com todas as faculdades que lhe competem, enquanto proprietário da coisa empenhada, que não sejam incompatíveis com o direito atribuído ao credor pignoratício. Entre essas faculdades inclui-se a de alienar ou onerar a coisa empenhada, dado que nesse caso o credor pignoratício pode opor eficazmente o seu direito ao novo proprietário. A lei veda, aliás, que se convencione qualquer proibição de o dono da coisa alienar ou onerar os bens empenhados, apenas permitindo a convenção de que a dívida se vencerá logo que esses bens sejam alienados ou empenhados (artigo 695.º, aplicável por força do artigo 678.º CC). No caso de o autor do penhor ser o próprio devedor, o artigo 697.º CC, aplicável por força do artigo 678.º CC, estabelece que este tem o direito de se opor, não só a que outros bens sejam penhorados na execução enquanto não se reconhecer a insuficiência da garantia, mas ainda a que, relativamente aos bens onerados, a execução se estenda além do necessário à satisfação do penhor. No caso de o penhor ser pessoa diferente do devedor, ele tem a faculdade, por força do artigo 698.º CC, aplicável por força do artigo 678.º CC, de opor ao credor, ainda que o devedor a eles tenha renunciado, os meios de defesa que o devedor tiver contra o crédito, com exclusão das exceções que são recusadas ao fiador. Para além disso, o autor do penhor tem ainda a faculdade de se opor à execução enquanto o devedor puder impugnar a faculdade de se opor à execução enquanto o devedor puder impugnar o negócio donde provém a sua obrigação, ou o credor puder ser satisfeito por compensação com um crédito do devedor, ou este tiver a possibilidade de se valer da compensação com uma dívida do credor.

Extinção do penhor: a extinção do penhor aparece-nos regulada no artigo 677.º CC, o qual determina que o penhor extingue-se pela restituição da coisa empenhada, ou do documento a que se refere o n.º1 do artigo 669.º CC, e ainda pelas mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca, com exceção da indicada na alínea b) do artigo 730.º CC. Temos, assim, que a primeira causa de extinção do penhor é a restituição da coisa empenhada ou do documento que confira a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão exclusiva disponibilidade dela, a credor ou a terceiro. A lei autonomiza atualmente esta causa de extinção do penhor em relação à renúncia, estabelecida na alínea d) do artigo 730.º CC. Efetivamente, desempenhando a tradição no penhor de coisas um requisito específico de publicidade dessa garantia, compreende-se que a restituição da coisa empenhada ou do respetivo documento, na medida em que faz cessar essa publicidade, importe igualmente a extinção da garantia. Esta situação ocorre, quer a restituição seja voluntária quer involuntária por parte do credor (como seria o caso de a restituição ser determinada por fraude ou violência). Efetivamente, caso o autor do penhor subtraia a coisa ao credor, poderá dispor dela a favor de terceiros, não sendo aceitável que a estes fosse oponível o penhor, uma vez que não teriam qualquer publicidade relativa ao mesmo. Da mesma forma, se o credor restituir a coisa ao devedor, mesmo que a título temporária e sem intenção de extinguir o penhor, este não deixa de se extinguir. A restituição da coisa empenhada não é considerada um negócio jurídico, sendo antes um ato jurídico simples, pelo que não poderá ser resolvida pelo administrador da insolvência. Para além disso, e por força do artigo 677.º CC para a alínea a) do artigo 730.º CC, o penhor extingue-se em resultado da extinção da obrigação a que serve de garantia. Esta solução aparece como consequência do princípio da acessoriedade, uma vez que sendo o penhor uma garantia acessória de um crédito, extingue-se naturalmente com o próprio crédito que assegura. Igualmente por força da remissão do artigo 677.º CC para alínea c) do artigo 730.º CC, o penhor extingue-se pelo perecimento da coisa empenhada, sem prejuízo do disposto nos artigos 692.º e 701.º CC, preceitos esses igualmente aplicáveis ao penhor por força da remissão do artigo 678.º CC. Assim, se o perecimento da coisa empenhada implicar para o respetivo dono o direito a uma indemnização – o que pode ocorrer em resultado de responsabilidade civil, ou em virtude de seguro – o titular da garantia conserva sobre o crédito respetivo ou sobre as quantias pagas a título de indemnização, a preferência que lhe competia em relação à coisa empenhada. Para além disso, o credor pode exigir a substituição da garantia, e não o fazendo o devedor, exigir o imediato cumprimento da obrigação, ou tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor. Nos termos do artigo 730.º, alínea d) CC, aplicável por força do artigo 677.º CC importa igualmente extinção do penhor a renúncia do credor pignoratício à garantia. Essa renúncia que, nos termos do artigo 867.º CC, não faz presumir a remissão da dívida, resulta sempre de um negócio unilateral abdicativo do credor, mesmo que seja estabelecida no âmbito de um acordo com o garante ou com o devedor, eventualmente mediante a contrapartida de outras garantias. Finalmente, pode ainda importar a extinção do penhor, a reunião na mesma pessoa das qualidade de credor e de proprietário da coisa empenhada, se não existir interesse justificado do credor na subsistência a garantia (artigo 87.º, n.º4 CC).

Natureza do penhor: a doutrina tem discutido a natureza jurídica do penhor. Em relação a esta têm sido apontadas as seguintes teorias:

1. O penhor como figura processual: esta doutrina deve-se a Carbelutti e Liebman. Para estes autores, em virtude da distinção entre o débito e a responsabilidade, o penhor nada acrescentaria à dívida, fazendo, no entanto, incrementar a responsabilidade. Ora, como esta só poderia ser exercida por via processual, através da ação executiva, o penhor não passaria de uma figura de cariz processual. 2. O penhor como direito de crédito: esta doutrina foi defendida na pandectística por Sintenis e Vangerow, que sustentaram, com base nas fontes romanas, que o penhor não consistia num ius in re aliena, mas antes numa obligatio rei, um dirieto de crédito incidente sobre quem fosse proprietário da coisa. Esta tese é igualmente defendida entre nós por José Tavares, para quem não faz sentido a qualificação do penhor como direito real de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão garantia, uma vez que não passa de um mero acessório do direito de crédito, absolutamente dependente deste, partilhando assim da mesma natureza creditícia. 3. O penhor como direito misto: esta doutrina deve-se a Cosentino. Para este autor, o penhor situar-se-ia a um nível intermédio entre os direitos reais e os direitos de crédito, uma vez que, embora tendo caráter absoluto, ao contrário do que sucede nos créditos, não beneficiaria de um poder imediato sobre a coisa, ao contrário do que ocorre nos direitos reais, já que o credor necessita de recorrer à ação executiva para exercer as faculdades que detém em relação à coisa. 4. O penhor como direito real de garantia: esta teoria é a posição mais comum, tendo sido defendida pela maioria da doutrina estrangeira desde a pandectística e entre nós por Menezes Cordeiro e Santos Justo. Para estes autores, as faculdades de execução e venda da coisa e de preferência no pagamento sobre o produto desta à frente dos credores comuns correspondem claramente a um direito real que, por ter por função garantir a satisfação de um crédito, representa um direito real de garantia. 5. Naturalmente que o penhor não pode ser concebido como uma figura processual, na medida em que atribui uma série de faculdades meramente substantivas. O facto de ser acessório de um crédito não lhe retira a sua natureza real, na medida em que possui as características dos direitos reais, como o caráter absoluto, a inerência, a sequela e a prevalência. Não se justifica, por esse motivo, sequer a sua qualificação como direito misto, sendo antes manifestamente um direito real de garantia.

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Secção IV – A hipoteca

Generalidades: o artigo 686.º, n.º1 CC não define a hipoteca, limitando-se a prever que ela confere ao credor o direito a ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozam de privilégio especial ou de prioridade de registo. O traço distintivo é, assim, o seu objeto, na medida em que se restringe às coisas imóveis ou equiparadas (automóveis, navios e aeronaves), mais precisamente certos bens registáveis, bem como o facto de ter que ser registada, sendo o registo que confere a prioridade, salvo perante certos privilégios.

Evolução histórica da hipoteca: a hipoteca teve uma evolução histórica semelhante ao penhor, tendo igualmente origem na fiducia cum creditore do Direito Romano, embora tenha sofrido igualmente influência de um instituto de origem grega, aplicável nas províncias orientais, a hypothéké, de onde retiraria o nome, instituto esse que consistia numa venda em garantia, subordinada à condição suspensiva do incumprimento do devedor. Efetivamente, após a evolução da fiducia cum creditore para a datio pignoris, que representou a passagem da transferência da propriedade para a mera transmissão da posse, admitiu-se a possibilidade de nem sequer ocorrer essa transmissão da posse, havendo apenas uma convenção a estabelecer a garantia. Essa convenção obteve o nome de conventio pignoris, distinguindo-se da datio pignoris, por não envolver a transmissão da posse, não adquirindo consequentemente o credor o ius possidendi, mas apenas o ius distrahendi, ou seja, a faculdade de vender a coisa em caso de incumprimento. A hipoteca no Direito Romano não era restrita aos imóveis, podendo abranger quaisquer bens, tendo essa restrição posteriormente, em virtude da necessidade de conferir publicidade à garantia, que levou a que esta se limitasse aos bens sujeitos a registo. A expressão hypothéque apenas aparece no século XVI em França, tendo-se, no entanto, a partir do século XIII admitido com a designação de obligatio bonorum, a convenção pela qual o devedor afetava os seus bens à garantia de uma dívida, permitindo ao credor vendê-los e pagar com o seu preço. A partir do século XVI esta convenção deixou de ser aplicável aos móveis, como consequência da sua exclusão da reivindicação, apenas se admitindo a obligatio bonorum sobre imóveis, ainda que com o defeito de não se prever qualquer publicidade. Exigia-se, no entanto, a forma de um ato notarial para a hipoteca, entendendo-se que quer os atos notariais, quer as condenações judiciais implicavam hipoteca geral sobre todos os imóveis presentes e futuros do devedor. É apenas a Revolução Francesa, com as leis de Messidor do Ano III (27 junho 1795), e 11 de Brumário do ano VIII (1 novembro 1798), que vem a instituir o registo das hipotecas, permitindo a sua plena consagração no Code Civil. Em consequência, a hipoteca veio a ser igualmente consagrada nas restantes codificações europeias, como o BGB e o Código Civil italiano.

Características da hipoteca: a hipoteca constitui um direito real de garantia que se caracteriza por, ao contrário do privilégio, não estabelecer a preferência em atenção à causa do crédito, vigorando antes o princípio da prioridade na constituição. Para além disso, a hipoteca constitui uma garantia acessória do crédito, ficando dependente da sua constituição e acompanhando as suas vicissitudes. No entanto, e conforme se prevê no artigo 686.º, n.º2 CC, a obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional.

A constituição da hipoteca: em relação às formas de constituição da hipoteca, o artigo 703.º CC estabelece uma distinção entre hipotecas legais, judiciais e voluntárias, consoante resultem:

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1. Da lei: o artigo 704.º CC define a hipoteca legal como a que resulta imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes, e pode constituir-se desde que exista a obrigação a que serve de garantia. De acordo com o disposto no artigo 687.º, n.º4 e 2 CRPr, também a hipoteca legal só se constitui mediante o registo, o qual é efetuado com base em certidão do título de que resulte a garantia e em declaração que identifique os bens, se necessário. A hipoteca legal distingue-se do privilégio creditório por não atender à causa do crédito, sendo antes uma garantia conferida tendo em específica atenção a especial qualidade dos credores. Nos termos do artigo 705.º CC, os credores que beneficiam da hipoteca legal são: a. O Estado e as autarquias locais, sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos à contribuição predial, para garantia do pagamento desta contribuição; b. O Estado e as demais pessoas coletivas públicas, sobre os bens dos encargos de gestão de fundos públicos, para garantia do cumprimento das obrigações por que se tornem responsáveis; c. O menor, o interdito e o inabilitado, sobre os bens do tutor, curador e administrador legal, para assegurar a responsabilidade que nestas qualidades vieram a assumir; d. O credor por alimentos; e. O co-herdeiro, sobre os bens adjudicados ao devedor de tornas, para garantir o pagamento destas; f. O legatário de dinheiro ou outra coisa fungível sobre os bens sujeitos ao encargo do legado ou, na sua falta, sobre os bens que os herdeiros responsáveis houverem do testador. Relativamente à hipoteca legal de menor, interdito e inabilitado, face à dificuldade que estes teriam em determinar o valor e designar os bens objeto da hipoteca, vem o artigo 706.º CC estabelecer que essa determinação e designação cabe ao conselho de família, podendo o registo ser requerido pelo tutor, curador, administrador legal de bens, vogais do conselho de família, e qualquer dos parentes do incapaz. Nos termos do artigo 708.º CC, sem prejuízo do direito de redução, as hipotecas legais podem ser registadas em relação a quaisquer bens do devedor, quando não forem especificados na lei ou no título respetivo os bens sujeitos à garantia. Sendo insuficientes os bens registados para efeitos da garantia, esta poderá ser objeto de reforço, nos termos gerais (artigo 701.º CC). No entanto, relativamente às hipotecas destinadas a garantir o pagamento das tornas ou do legado de dinheiro ou outra coisa fungível, o artigo 709.º CC vem estabelecer que o credor só goza do direito de as reforçar, se a garantia puder continuar a incidir sobre os bens aí especificados. O artigo 707.º CC estabelece que o tribunal pode autorizar, a requerimento do devedor, a substituição da hipoteca legal por outra caução, podendo igualmente essa substituição ser exigida pelo credor, no caso de o devedor não ter bens suscetíveis de hipoteca suficientes para garantir o crédito, salvo nos casos das hipotecas destinadas a garantir o pagamento das tornas ou do legado de dinheiro ou outra coisa fungível. 2. Da sentença judicial: a hipoteca judicial encontra-se estabelecida no artigo 710.º CC, o qual estabelece que a sentença que condenar o devedor à realização de uma prestação em dinheiro ou outra coisa fungível é título bastante para registar hipoteca sobre quaisquer bens do obrigado, mesmo que não haja transitado em julgado (n.º1). Se a prestação for ilíquida, pode a hipoteca ser registada pelo quantitativo provável do crédito (n.º2). Se o devedor for condenado a entregar uma coisa ou a prestar um facto, só pode

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ser registada a hipoteca havendo conversão da prestação numa indemnização pecuniária (n.º3). O registo da hipoteca judicial pode ser igualmente obtido com base em sentenças estrangeiras, depois de revistas e confirmadas, desde que a lei do país em que foram proferidas lhes reconheça igual valor (artigo 711.º CC). A revisão e confirmação é dispensada relativamente a sentenças oriundas de países comunitários, com base no 33.º Regulamento (CE) 44/2001, do Conselho de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária e ao reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial (Bruxelas I). A hipoteca judicial funciona como uma penhora antecipada, podendo recair sobre quaisquer bens do devedor suscetíveis de penhora, e é admissível independentemente do trânsito em julgado da decisão condenatória, bastando que ela tenha sido proferida. Por esse motivo, e à semelhança do que sucede com a penhora, a preferência respetiva deixa de ser atendida no caso de ser declarada a insolvência do devedor, mas as custas pagas pelo credor constituem dívidas da massa insolvente (artigo 140.º, n.º3 CIRE). 3. De negócio jurídico: nos termos do artigo 712.º CC, a hipoteca voluntária é a que resulta de contrato ou declaração unilateral. Esta pode ser constituída, quer pelo devedor, quer por terceiro (artigo 717.º CC). Estando em causa um negócio jurídico de oneração de bens, naturalmente que a legitimidade para a constituição da hipoteca é restrita a quem possa alienar os respetivos bens (artigo 715.º CC). No entanto, a legitimidade do proprietário não é prejudicada pelo facto de já existir uma hipoteca anterior sobre os bens, já que o artigo 713.º CC vem-nos referir que a hipoteca não impede o dono dos bens de os hipotecar de novo; neste caso, extinta uma das hipotecas, ficam os bens a garantir na totalidade, as restantes dívidas hipotecárias. Em termos de forma, estabelece o artigo 714.º CC que, sem prejuízo do disposto em lei especial, o ato de constituição ou modificação da hipoteca voluntária, quando recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública, de testamento ou de documento particular autenticado. Este regime sofre, porém, uma exceção relativamente às hipotecas constituídas para garantia de contratos de compra e venda com mútuo, referente a prédio urbano destinado a habitação, ou fração autónoma para o mesmo fim, desde que o mutuante seja uma instituição de crédito autorizada a conceder crédito à habitação (artigo 1.º Decreto-Lei n.º 255/93, 15 julho), bem como em relação a contratos pelos quais se titulem novos empréstimos relativos ao mesmo prédio ou fração celebrados pelo respetivo proprietário com instituição de crédito autorizada a conceder crédito à habitação (artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 255/93, 15 julho). Efetivamente, o artigo 2.º, n.º1 deste diploma estabelece que os referidos contratos podem ser celebrados por documento particular com reconhecimento de assinaturas, segundo modelo oficialmente aprovado, o qual consta da Portaria n.º 669-A/93, 16 julho, alterada pela Portaria n.º 882/94, 1 outubro. Já relativamente à hipoteca sobre bens móveis, os vários diplomas sobre registo exigem a forma escrita. O registo da hipoteca: o artigo 687.º CC determina que a hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes. Resulta assim desta disposição, reiterada no artigo 4.º, n.º2 CRPr, que, ao contrário da regra geral, de que o registo é mera condição de eficácia em relação a terceiros dos atos a quele sujeitos (artigo 5.º CRPr), a eficácia da hipoteca entre as próprias partes depende da sua sujeição a registo. O registo da hipoteca aparece, portanto, como condicionante da sua eficácia absoluta em relação às hipotecas voluntárias, as quais têm um outro título como constitutivo do direito. Precisamente por isso, estas hipotecas podem ser registadas provisoriamente antes de titulado o negócio (artigos 47.º e 91.º, n.º1, alínea

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão i) CRPr), sendo que o dirieto de hipoteca só se adquire com a sua celebração. Já em relação às hipotecas legais e judiciais, o registo corresponde ao próprio facto constitutivo da garantia (artigo 50.º CRPr), podendo, no entanto, o registo de hipoteca judicial ser lavrado provisoriamente antes de passada em julgado a sentença (artigo 92.º, n.º1, alínea l) CRPr).

Âmbito do crédito garantido: como todos os direitos reais de garantia, a hipoteca é constituída para garantia de um crédito, podendo esse crédito ser futuro ou condicional (artigo 686.º, n.º2 CC). No entanto, o artigo 693.º, n.º1 CC, vem ainda estabelecer a extensão da garantia hipotecária aos acessórios do crédito que constem do registo, admitindo-se assim que, além do crédito principal, a hipoteca possa garantir outros acessórios do crédito, como sejam, os juros moratórios e remuneratórios, as cláusulas penais, e as despesas de constituição e registo, bastando que a menção a esses acessórios conste do registo (artigo 96.º, n.º1, alínea a) CRPr). No entanto, em relação aos juros, estabelece o artigo 693.º, n.º2 CC, que a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos, podendo, no entanto, ser sucessivamente registada nova hipoteca em relação a juros em dívida (artigo 693.º, n.º3 CC). Esta limitação, que abrange tanto juros remuneratórios como moratórios, destina-se a proteger terceiros, que poderiam ser surpreendidos com uma extraordinária extensão da hipoteca, ao mesmo tempo que estimula o credor hipotecário a não dilatar excessivamente a execução, em virtude da existência de garantia hipotecária. Consequentemente, a limitação ocorre, mesmo que a execução se prolongue anormalmente para além desse prazo.

Objeto da hipoteca: como direito real de garantia que é, a hipoteca só pode incidir sobre bens determinados, pertencentes ao devedor ou a terceiro. Em consequência, o artigo 716.º CC vem estabelecer a regra da especialidade, exigindo que no título constitutivo das hipotecas voluntárias conste quais são os bens hipotecados, estabelecendo a nulidade das hipotecas voluntárias que incidam sobre todos os bens do devedor ou de terceiro sem os especificar. No caso das hipotecas legais estabelece o artigo 708.º CC que, sem prejuízo do direito de redução, podem ser registadas em relação a todos os bens do devedor, enquanto não forem especificados por lei ou no título respetivo os bens sujeitos à garantia. Também em relação às hipotecas judiciais, estabelece o artigo 710.º CC a possibilidade de o registo da hipoteca sobre quaisquer bens do obrigado. Tal não significa, porém que nestes casos existam hipotecas gerais, respeitantes a bens indeterminados, uma vez que sendo o registo requisito de constituição da hipoteca, este terá sempre que ser realizado em relação a bens determinados. O elenco dos bens suscetíveis de hipoteca consta do artigo 688.º CC, abrangendo os seguintes:

6. Os prédios rústicos e urbanos (artigo 688.º, n.º1, alínea a) CC), abrangendo nesta sede as respetivas partes suscetíveis de propriedade autónoma sem prejuízo da sua natureza imobiliária (artigo 688.º, n.º2 CC); 7. O direito de superfície (artigo 688.º, n.º1, alínea c) CC); 8. O direito resultante de concessões do domínio público, observadas as disposições legais relativas à transmissão dos direitos concedidos (artigo 688.º, n.º1, alínea d) CC); 9. O usufruto das coisas e direitos acima referidos (artigo 688.º, n.º1, alínea e) CC); 10. As coisas móveis que, para este efeito sejam por lei equiparáveis às imóveis (artigo 688.º. n.º1, alínea f) CC). Por aqui se pode verificar que elenco de bens suscetíveis de hipoteca não coincide com o elenco de coisas imóveis, referido no artigo 204.º CC, só fazendo a lei referência às árvores, arbustos e frutos naturais ligados ao solo, direitos inerentes aos imóveis, e partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos relativamente à extensão da hipoteca (artigo 691.º, n.º1, alínea a) CC), não 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão parecendo assim considera-los como bens suscetíveis de ser autonomamente hipotecados. Relativamente às águas, em face da sua inseparabilidade do prédio estabelecida no artigo 1397.º CC, as águas a que se referem as alíneas d), e) e f) do n.º1 do artigo 1386.º CC nunca poderiam ser autonomamente hipotecadas, parecendo que esta proibição se estende igualmente às outras categorias de águas. Quanto às árvores, arbustos e frutos naturais ligados ao solo, parece que apenas poderá ser hipotecado o direito de superfície, já que outros direitos, como as servidões, não podem ser separados do prédio (artigo 1545.º CC), pelo que, sendo abrangidos na hipoteca do prédio, não são suscetíveis de ser autonomamente hipotecados. Apesar de a lei não o referir expressamente, parece que quer a nua propriedade, quer o direito do proprietário do solo podem ser objeto de hipoteca. Já relativamente ao direito real de habitação periódica não parece ser ele suscetível de hipoteca. Já as partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos são abrangidas pela hipoteca, mas não podem ser autonomamente hipotecadas, uma vez que perderiam a sua natureza imobiliária (artigo 688.º, n.º2 CC). A hipoteca pode incidir sobre frações dos prédios constituídos em propriedade horizontal (artigos 1414.º, e seguintes CC), uma vez que estas são suscetíveis de propriedade autónoma sem perda da sua natureza imobiliária (artigo 688.º, nº2 CC). O artigo 689.º CC admite ainda a possibilidade de ser objeto de hipoteca a quota de coisa ou direito comum, sendo que, se a coisa for dividida, a hipoteca ficará limitada à parte que for atribuída ao devedor. Face à exigência de determinação que caracteriza a hipoteca, enquanto direito real, não é suscetível de hipoteca a meação de bens comuns do casal, nem a quota em herança indivisa (artigo 690.º CC). No caso de ser constituída uma hipoteca sobre bens insuscetíveis da mesma, o respetivo negócio será nulo por impossibilidade do objeto (artigo 280.º, n.º 1CC).

Extensão da hipoteca: o artigo 691.º CC opera uma extensão da hipoteca para além do seu objeto inicialmente referido, na medida em que faz inserir no objeto da garantia outras situações como as coisas imóveis referidas nas alíneas c) a e) do artigo 204.º CC, as acessões naturais e as benfeitorias, salvo o direito de terceiros. A hipoteca sobre o prédio é assim extensiva às árvores, arbustos e frutos naturais, que nele se encontrem, enquanto estiverem ligadas ao prédio, direitos inerentes e partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos. Relativamente a estas situações, o artigo 700.º CC vem estabelecer que o corte de árvores ou arbustos, a colheita de frutos naturais e a alienação das partes integrantes ou coisas acessórias abrangidas pela hipoteca só são eficazes em relação ao credor hipotecário se forem anteriores ao registo da penhora e couberem nos poderes de administração ordinária. A hipoteca estende-se igualmente às benfeitorias que sejam efetuadas na coisa hipotecada, havendo, no entanto, que respeitar os direitos de terceiro. Esses direitos correspondem aos direitos do possuidor ao reembolso de benfeitorias necessárias e levantamento ou restituição de benfeitorias úteis, referidos nos artigos 1273.º e seguintes CC, sendo-lhe inclusivamente atribuído direito de retenção (artigo 754.º CC), se tiver efetuado as benfeitorias de boa fé (artigo 756.º, alínea b), a contrario CC), o qual prevalece sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente constituída (artigo 759.º, n.º2 CC). No caso específico da hipoteca de fábricas refere-se que se consideram abrangidos pela garantia os maquinismos e demais móveis inventariados no título constitutivo, mesmo que não sejam parte integrante dos respetivos imóveis (n.º2), o que constitui uma grande aproximação com o penhor de estabelecimento comercial, dele se distinguindo, no entanto, em face da necessidade de inventário dos bens que a integram, o que o penhor de estabelecimento não prevê (artigo 96.º, n.º1, alínea b) CRPr). Nesse caso, os donos e possuidores dos maquinismos, móveis e utensílios destinados à exploração de fábricas, abrangidos no registo de hipoteca dos respetivos imóveis, não os podem alienar ou retirar sem consentimento escrito do credor e incorrem na responsabilidade própria dos fiéis depositários (n.º3). Parece, no entanto, que em caso de alienação ou retirada dos bens

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão móveis, o credor não perderá a possibilidade de executar a hipoteca, caso venha a encontrar esses bens.

A individualidade da hipoteca: estabelece o artigo 696.º CC que, salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível daqui resultando duas características especificas de regime:

1. A hipoteca é una, mesmo que abranja uma pluralidade de coisas, pelo que subsiste indiferenciadamente sobre cada uma das coisas que abrange, mesmo que estas venham a ser objeto de divisão, ficando as coisas resultantes da divisão integralmente oneradas (est tota in toto, et tota in qualibet parte). 2. Não há qualquer limitação do direito hipotecário, em virtude da amortização parcial da obrigação a que serve de garantia. Em consequência da indivisibilidade, se por exemplo, for constituída hipoteca sobre um prédio em ordem a permitir o funcionamento da construção e depois o referido prédio vier a ser constituído em propriedade horizontal, cada fração autónoma responde por toda a dívida em causa, pelo que, mesmo que seja satisfeita a parte da dívida correspondente, só a renúncia do credor hipotecário permite que a fração fique desonerada. O princípio da indivisibilidade da hipoteca sofre, no entanto, alguma atenuação no caso de a hipoteca de coisa ou direito comum, uma vez que, sendo efetuada a respetiva divisão com o consentimento do credor, fica a hipoteca limitada à parte que for atribuída ao devedor (artigo 689.º, n.º 2CC).

Vicissitudes da hipoteca: 1. Modificações na garantia hipotecária: a. Alteração do objeto da hipoteca: o artigo 692.º, n,1º CC vem admitir a possibilidade de alteração do objeto da hipoteca, ao estabelecer que se a coisa ou direito hipotecado se perder, deteriorar ou diminuir de valor, e o dono tiver direito a ser indemnizado, os titulares da garantia conservam, sobre o crédito respetivo ou as quantas pagas a título de indemnização, as preferências que lhes competiam em relação à coisa onerada. Neste caso, o artigo 692.º, n.º2 CC estabelece que depois de notificado da existência da hipoteca, o devedor da indemnização não se libera pelo cumprimento da sua obrigação com prejuízo dos direitos conferidos no número anterior, sendo o mesmo regime extensivo a outras categorias de indemnização como as devidas por expropriação ou requisição, extinção do direito de superfície e outros casos análogos (artigo 692.º, n.º3 CC). Apesar de estar em causa essencialmente uma ideia de subrogação real, consistente na substituição do objeto da hipoteca pelo crédito à indemnização, ou pelas quantias pagas para a sua satisfação, a verdade é que neste caso a lei vai permitir que a hipoteca tenha um objeto que não pode habitualmente ter, e que inclusivamente se molda sobre o regime do penhor de créditos, exigindo-se da mesma forma a notificação ao devedor (artigo 681.º, n.º2 CC). b. Reforço da hipoteca: uma vez constituída, a hipoteca pode ser objeto de reforço, no caso de os bens sobre que incide se tornarem insuficientes para a garantia. Assim, o artigo 701.º, n.º1 CC, vem estabelecer que, quando, por causa não imputável ao credor, a coisa hipotecada perecer ou se tornar insuficiente para segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce; e, não o fazendo este nos termos declarados na lei de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão processo, pode aquele exigir o imediato cumprimento da obrigação ou, tratandose de obrigação futura, registas hipoteca sobre outros bens do devedor. O n.º2 acrescenta que não obsta ao direito do credor o facto de a hipoteca ser constituída por terceiro, salvo se o devedor for estranho á sua constituição; porém, mesmo neste caso, se a diminuição da garantia for devida a culpa do terceiro, o credor tem o direito de exigir deste a substituição ou o reforço, ficando o mesmo sujeito à cominação do número anterior em lugar do devedor. Esta faculdade sofre, no entanto, uma restrição relativamente às hipotecas legais referidas no artigo 705.º, alíneas e) e f) CC, em que o reforço só é permitido se a garantia puder continuar a incidir sobre os bens aí especificados. c. Redução da hipoteca: da mesma forma que pode ser reforçada, o artigo 718.º CC prevê que a hipoteca pode ser igualmente reduzida voluntária ou judicialmente. Relativamente à redução voluntária, prevê o artigo 719.º CC que esta só pode ser consentida por quem puder dispor da hipoteca, sendo aplicável à redução o regime estabelecido para a renúncia à garantia. Já relativamente à redução judicial, esta tem lugar, nas hipotecas legais e judiciais, a requerimento de qualquer interessado, quer no que concerne aos bens, quer no que respeita à quanta designada como montante do crédito, exceto se, por convenção ou sentença, a coisa onerada ou a quantia assegurada tiver sido especialmente indicada (artigo 720.º, n.º1 CC). O artigo 720.º, n.º2 CC acrescenta que neste último caso, bem como no hipoteca voluntária, a redução judicial só é admitida: i. Se, em consequência do cumprimento parcial ou de outra causa de extinção, a dívida se encontrar reduzida a menos de dois terços do seu montante inicial; ii. Se, por virtude de acessões naturais ou benfeitorias, a coisa ou o direito hipotecado se tiver valorizado em mais de um terço do seu valor à data da constituição da hipoteca. Daqui resulta que não são normalmente redutíveis as hipotecas voluntárias, solução que se apresenta coerente com o princípio da indivisibilidade da hipoteca (artigo 696.º CC). Nos termos do artigo 720.º, n.º3 CC, a redução é realizável, quanto aos bens, ainda que a hipoteca tenha por objeto uma só coisa ou direito, desde que a coisa ou direito seja suscetível de cómoda divisão. 2. Transmissão dos bens hipotecados: a. Efeitos da alienação sobre o crédito hipotecário: a hipoteca não subtrai os bens ao comércio jurídico, pelo que estes podem livremente ser transmitidos para terceiro. A lei proíbe mesmo a cláusula de inalienabilidade dos bens hipotecados no artigo 695.º CC ao estabelecer que é igualmente nula a convenção que proíba o respetivo dono de alienar ou onerar os bens hipotecados, embora seja lícito convencionar que o crédito hipotecário se vencerá logo que os respetivos bens sejam alienados ou onerados. Mesmo sem esta última convenção, o artigo 725.º CC permite ao credor hipotecário, antes do vencimento do prazo, exercer o seu direito contra o adquirente da coisa ou direito hipotecado se, por culpa deste, diminuir a segurança do crédito. b. Possibilidade de expurgação da hipoteca: um efeito importante da transmissão dos bens hipotecados é a atribuição ao adquirente dos bens da possibilidade de expurgar a hipoteca. Efetivamente, nos termos do artigo 721.º CC é permitida a expurgação da hipoteca a quem adquiriu bens hipotecados, registou o título de

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão aquisição e não é pessoal. A cessão da hipoteca sem o crédito assegurado é admissível, desde que esta não seja inseparável da pessoa do devedor, podendo ser efetuada para garantia de crédito pertencente a outro credor do mesmo devedor, observadas as regras próprias da cessão de créditos. No caso de se tratar de hipoteca sobre coisa ou direito de terceiro, é necessário o consentimento deste (artigo 727.º, n.º1 CC). A cessão é, no entanto, apenas permitida se for efetuada na sua totalidade à mesma pessoa, sendo vedada a cessão parcial, mesmo que a hipoteca incida sobre mais do que uma coisa ou direito (artigo 727.º, n.º2 CC). Verificada a cessão, o novo crédito fica a ser garantido pelo hipoteca, mas apenas nos limites em que era garantido o crédito originário, sendo que, após o registo da cessão, a extinção do crédito originário não afeta a subsistência da hipoteca (artigo 728.º CC). Uma vez que é sujeita ás regras da cessão de créditos, a cessão da hipoteca tem por base um determinado tipo negocial, no qual se integra (artigo 578.º, n.º1 CC), sendo sujeito à respetiva forma. No caso de a hipoteca incidir sobre bens imóveis, a cessão deverá constar de escritura pública ou documento particular autenticado (artigo 578.º, n.º2 CC). A sua eficácia em relação ao devedor depende da notificação ou aceitação (artigo 583.º, n.º1 CC). Da mesma forma que se permite a cessão da hipoteca, é também permitida a cessão do grau hipotecário a favor de qualquer outro credor hipotecário posteriormente inscrito sobre os mesmos bens, observadas igualmente as regras respeitante à cessão do mesmo crédito (artigo 729.º CC). Não será necessário o consentimento do devedor, mas se a hipoteca incidir sobre bem de terceiro parece ser necessário o consentimento deste (artigo 727.º, n.º1, in fine CC por analogia). Em qualquer caso, são também aplicáveis as regras da cessão de créditos (artigos 577.º e seguintes CC), o que implica que a cessão de grau hipotecário seja um efeito de um negócio no qual se integra (artigo 578.º, n.º1 CC), obedecendo à forma desse negócio, embora, no caso de bens imóveis, tenha que constar de escritura pública ou documento particular autenticado (artigo 22.º Decreto-Lei n.º226/2008).

Execução da hipoteca: a hipoteca pode ser naturalmente executada, em caso de incumprimento da obrigação a que serve de garantia. A execução não pode ser dispensada, já que a lei proíbe o pacto comissório no artigo 694.º CC, ao estabelecer que é nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir. Se o bem hipotecado pertencer ao devedor, o artigo 752.º, n.º1 CPC estabelece que a penhora recai, independentemente de nomeação sobre a coisa hipotecada e só pode recair noutros bens quando se reconheça a insuficiência daquela para conseguir o fim da execução. A defesa do proprietário da coisa hipotecada na execução varia consoante ele seja o próprio devedor ou um terceiro em relação à obrigação garantida. No caso de ser o próprio devedor, o artigo 697.º CC estabelece que ele tem o direito de se opor não só a que outros bens estejam penhorados na execução enquanto não se reconhecer a insuficiência da garantia, mas ainda a que, relativamente aos bens onerados, a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor. No caso de ser um terceiro, é-lhe lícito opor ao credor, ainda que o devedor a eles tenha renunciado, os meios de defesa que o devedor tiver contra o crédito, com exceção das exceções que são recusadas ao fiador (artigo 698.º, n.º1 CC). Para além disso, tem a faculdade de se opor à execução enquanto o devedor puder impugnar o crédito donde provém a sua obrigação, ou o credor puder ser satisfeito por compensação com um crédito do devedor,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão ou este tiver a possibilidade de se valer da compensação com uma dívida do credor (artigo 698.º, n.º2 CC).

Extinção da hipoteca: o artigo 730.º CC indica-nos as causas de extinção da hipoteca sendo a primeira a extinção da obrigação a que serve de garantia. Efetivamente, constituindo a hipoteca uma garantia acessória, naturalmente que se extinguirá com a extinção da obrigação a que serve de garantia. É, no entanto, de referir que a causa extintiva da obrigação pode ser declarada nula ou anulada, caso em que se verificará o renascimento da hipoteca, a menos que esta tenha sido constituída por terceiro, e a causa da invalidade seja imputável ao credor, caso em que o renascimento só ocorrerá se este conhecer o vício na data em que teve conhecimento da extinção da obrigação (artigos 766.º, 839.º, 856.º, 860.º, n.º2, 866.º, n.º3 e 873.º, n.º2 CC). Se, no entanto, a inscrição hipotecária no registo tiver sido cancelado, o renascimento apenas ocorre desde a data da nova inscrição (artigo 732.º CC). A segunda causa de extinção da hipoteca, referida no artigo 730.º, alínea b) CC, é a prescrição, a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação. Trata-se de prescrição relativa à própria garantia, a qual não se confunde com a prescrição relativa ao crédito assegurado. Tem sido, por isso, questionado se a figura não seria mais adequadamente qualificável como caducidade. A terceira causa de extinção da hipoteca, referida no artigo 730.º, alínea c) CC, é o perecimento da coisa hipotecada, se prejuízo da eventual transferência do direito, ou para o crédito da indemnização, ou para a importância paga a esse título, ou para a coisa que veio substituir a que perecera, nos termos dos artigos 692.º, e 701.º CC. Efetivamente, é sabido que o perecimento da coisa que era objeto de determinado direito acarreta logicamente a extinção desse mesmo direito. Outra forma de extinção da hipoteca, referida no artigo 730.º, alínea d) CC, é a renúncia do credor. Apesar de a expressão renúncia do credor tanto poder considerar-se como referida ao crédito, provocando a sua extinção, como à própria hipoteca, tornando o credor mero comum, a melhor interpretação é a que a considera como referida apenas à hipoteca, a qual não determina a remissão do crédito (artigo 867.º CC). Efetivamente, independentemente da controvérsia sobre se a renúncia se poderia considerar como verdadeira causa extintiva dos direitos de crédito, ou se apenas se pode aplicar a remissão, com caráter contratual (artigo 863.º, n.º1 CC), a verdade é que a extinção da obrigação garantida aparece genericamente referida no artigo 730.º, alínea a) CC, pelo que o artigo 730.º, alínea d) CC deve-se considerar restrito à renúncia hipoteca. Em relação a esta o artigo 731.º, n.º1 CC, vem referir que ela deve ser expressa e exarada em documento autenticado, não carecendo de aceitação do devedor ou do autor da hipoteca para produzir os seus efeitos, acrescentando o n.º2 que as administradores de patrimónios alheios não podem renunciar às hipotecas constituídas em benefício de pessoas cujos patrimónios administram. No caso de a renúncia ser considerada inválida, opera-se o renascimento da hipoteca, mas se a inscrição tiver sido entretanto cancelada, o renascimento apenas se verifica após a nova inscrição (artigo 732.º CC). Apesar de não prevista no artigo 730.º CC, deve ainda ser considerada como causa de extinção, a expurgação da hipoteca no caos de transmissão dos bens hipotecados. Conforme resulta do artigo 721.º CC, a expurgação pode ser efetuada por dois meios:

1. Pagamento integral da dívida hipotecária aos credores respetivos: a hipoteca extingue-se em resultado da extinção da obrigação principal, integrando-se, assim, esta situação na referida no artigo 730.º, alínea a) CC. 2. Pagamento do preço ou do valor dos bens hipotecados: parece haver um caso autónomo de extinção da hipoteca em consequência da expurgação.

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão Existe igualmente uma causa autónoma de extinção da hipoteca constituída por terceiro, já que o artigo 717.º, n.º1 CC vem prever que a hipoteca constituída por terceiro extingue-se na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não possa dar-se a sub-rogação daquele que nos direitos deste. Outra causa de extinção da hipoteca não prevista no artigo 730.º CC é a caducidade, o que pode ocorrer, por exemplo, em caso de verificação da condição resolutiva ou de não verificação da condição suspensiva que tenha sido aposta ao negócio relativo à sua constituição. Finalmente, é igualmente causa de extinção da hipoteca a extinção do direito sobre que a hipoteca incide, como acontece se o usufruto ou a superfície que foram objeto de hipoteca se vierem a extinguir (artigo 699.º, n.º2 e 1539.º, n.º1 CC). No caso do usufruto, no entanto, o artigo 699.º, n.º3 CC vem estabelecer que se a sua extinção resultar de renúncia ou da transferência dos direitos do usufrutuário para o proprietário, ou da aquisição da propriedade por parte daquele, a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse verificado.

Natureza da hipoteca: a doutrina tem discutido a natureza da hipoteca em termos muito semelhantes aos do penhor, tendo sido igualmente sustentado o seu enquadramento como figura processual, como direito de crédito, como direito misto, ou como direito real de garantia. A contestação da natureza real da hipoteca é, no entanto, reforçada em relação ao penhor pelo facto de o credor hipotecário não possuir qualquer poder material sobre a coisa, de que não chega a adquirir posse. A hipoteca limita-se às faculdades de executar a coisa e de obter pagamento sobre o seu valor, com preferência em relação aos demais credores do devedor. Apesar disso, pensamos, no entanto, que estas faculdades bastam para caracterizar como direito real e garantia. Efetivamente, a hipoteca possui, como todos os direitos reais o caráter absoluto, a inerência, a sequela e a prevalência.

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Secção V – Os privilégios creditórios

Generalidades: de acordo com a definição do artigo 733.º CC, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros.

Evolução histórica: os privilégios creditórios já existiam no Direito Romano, sob a designação de privilegium exigendi, representando uma preferência no pagamento, conferida a certos credores, em atenção à natureza do crédito em si (privilegium causae, como no caso do pupilo em relação ao tutor). Os privilégios podiam ser gerais ou especiais. Entre os privilégios gerais encontravamse os do fisco ou mais genericamente do Estado (D.49.14 e C.7.73), das cidades (D.42.5.38.1), para o reembolso de despesas funerárias (Paul. Sent. 1.21.15 e D.42.5.17.pr.), da mulher casada para a recuperação do seu dote pela actio rei uxoriae (C.7.74 e C.8.17.(18),12.pr), dos incapazes contra o tutor ou curador, e dos depositantes em banca (D.45.2.24.2). Entre os privilégios especiais encontravam-se os privilégios de quem financiou a reconstrução de um edifício (D.42.5.24.1) e eventualmente o do locador do imóvel sobre os bens para ele trazidos pelo locatário (Gai. Inst. 4.147). Os privilégios gerais não incidiam sobre bens determinados, nem afetavam terceiros proprietários dos bens, sendo a especificidade do privilégio entre as garantias das obrigações o facto de estar totalmente dependente de qualidade do crédito, o que justifica que prevalecesse sobre garantias constituídas anteriormente (privilegia non ex tempore aestimantur sed ex causa). O antigo Direito francês veio atribuir ao privilégio uma natureza diversa, considerando-o como uma garantia real preferível à hipoteca em função da sua causa. É essencialmente o Código francês que vai moldar o atual regime dos privilégios, distinguindo entre privilégios sobre móveis e sobre imóveis, bem como entre privilégios gerais e especiais, consoante incidiam sobre a generalidade dos bens móveis ou imóveis do devedor ou sobre bens móveis e imóveis determinados. Os privilégios caracterizam-se por prevalecerem sobre a hipoteca, e por se graduarem com base na qualidade dos créditos. Já o BGB preferiu abolir os privilégios, por os considerar contrários a uma boa organização da propriedade e do crédito, processo esse que foi seguido pelo Código Suíço. O Código Civil português de 1867 optou por manter os privilégios creditórios nos seus artigos 878.º e seguintes, o que levou a que os mesmos tivessem sido conservados nos artigos 733.º e seguintes do atual CC.

Características dos privilégios creditórios: os privilégios creditórios representam uma atribuição legal de preferência no pagamento, tendo em atenção a valoração que o legislador faz da fonte do crédito, considerando que esse crédito deve ser pago à frente dos outros. Assim, os privilégios só podem ser atribuídos por lei, sendo vedadas às partes a sua criação através de negócios jurídicos e dispensam qualquer publicidade, designadamente a resultante do registo. A sua criação legal não deixa, porém, de suscitar críticas na doutrina, designadamente pela insegurança que causam no comércio jurídico, prejudicando a concessão de créditos, na medida em que o credor beneficiário de outra garantia real pode vê-la preterida pelo privilégio. A lei procura atenuar essas consequências decretando a extinção de alguns privilégios em caso de insolvência do devedor (artigo 97.º, n.º1, alíneas a) e b) CIRE).

Modalidades de privilégios creditórios:

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão

1. Privilégios gerias e privilégios especiais: nos termos do artigo 735.º CC os privilégios creditórios podem ser gerais ou especiais, consoante incidem sobre uma categoria geral de bens do devedor ou sobre bens determinados. 2. Privilégios mobiliários e imobiliários: nos termos do artigo 735.º, n.º1 CC, os privilégios podem ser mobiliários ou imobiliários, consoante a natureza das coisas sobre que incidem. São mobiliários os privilégios que incidam sobre bens móveis, podendo ser gerais ou especiais, consoante abranjam o valor de todos os bens móveis do devedor à data da penhora ou ato equivalente, ou apenas o valor de certos bens móveis (artigo 735.º, n.º2 CC). São imobiliários aqueles que incidam sobre o valor de bens imóveis, sendo que neste caso todos os previstos no Código Civil são especiais (artigo 735.º, n.º3 CC), encontrando-se, porém, privilégios creditórios imobiliários gerais em legislação especial.

Exemplos de privilégios: 1. Privilégios mobiliários especiais: os privilégios mobiliários especiais encontram-se nos artigos 738.º e seguintes CC e compreendem os seguintes: a. O privilégio por despesas de justiça feitas diretamente no interesse dos credores para a conservação, execução, ou liquidação dos bens móveis, sobre esses bens (artigo 738.º, n.º1 CC), e para créditos do Estado resultantes do imposto sobre sucessões e doações (artigo 738.º, n.º2 CC) atualmente referente ao imposto de selo (artigo 47.º CIS); b. O privilégio sobre frutos de prédios rústicos pelos fornecimentos de sementes, plantas e adubos, e de água ou energia para irrigação ou outros fins agrícolas (artigo 739.º CC); c. O privilégio do crédito à indemnização por parte da vítima sobre a indemnização paga pelo segurador de responsabilidade (artigo 741.º CC); d. O privilégio do crédito do autor de obra intelectual, fundado em contrato de edição, sobre os exemplares da obra existentes em poder do editor (artigo 742.º CC). Existem também privilégios sobre navios, constantes dos artigos 574.º e seguintes CCom, havendo também que tomar em consideração a Convenção Internacional para a Unificação das Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimos de 1926, conhecida como Convenção de Bruxelas de 1926. Em diplomas avulsos encontram-se ainda outros privilégios mobiliários especiais, como o dos titulares das obrigações hipotecárias, sobre os créditos hipotecários afetos à respetiva emissão (artigo 6.º Decreto-Lei n.º 125/90, 16 abril), e o do transportador sobre as mercadorias transportadas (artigo 15.º Decreto-Lei n.º 239/2003, 4 outubro). 2. Privilégios imobiliários especiais: os privilégios imobiliários especiais encontram-se previstos nos artigos 743.º e 744.º CC. O artigo 743.º CC atribui um privilégio imobiliário especial aos créditos por despesas de justiça feitas diretamente no interesse comum dos credores, para a conservação, execução dos referidos bens imóveis, assim se aplicando igualmente em sede de imóveis o que se estabelece no artigo 738.º CC quanto aos móveis. O artigo 744.º, n.º1 CC atribui também um privilégio imobiliário especial aos créditos sobre contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou ato equivalente e nos dois anos anteriores sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela tributação. Atualmente, a contribuição predial, que era um imposto sobre os rendimentos dos prédios, encontra-se substituída pelo imposto municipal sobre imóveis, que é um

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão imposto sobre o valor patrimonial dos mesmos (artigo 1.º CIMI). No entanto, o artigo 122.º, n.º1 CIMI determina que o imposto municipal sobre imóveis goza das mesmas garantias estabelecidas pelo Código Civil para a contribuição predial, pelo que o privilégio conferido pelo artigo 744.º, n.º1 CC se mantém em vigor, sendo aplicável a esse imposto. O artigo 744.º, n.º2 CC atribui ainda um privilégio sobre os bens transmitidos aos créditos do Estado pela sisa e pelo imposto sobre sucessões e doações, o qual é igualmente mantido pelo artigo 39.º CIMT e pelo artigo 47.º, n.º1 CIS. Para além destes privilégios, encontram-se ainda previstos em legislação especial alguns privilégios imobiliários especiais, como por exemplo o do Estado, resultante de garantia no quadro dos seguros de crédito (artigo 17.º, n.º6 Decreto-Lei n.º 138/88, 24 maio). 3. Privilégios mobiliários gerais: no Código Civil atribui-se privilégio mobiliário geral nas seguintes situações: a. Para garantia dos créditos fiscais do Estado e das autarquias locais (artigo 736.º CC); b. Ao credor por despesas do funeral (artigo 737.º, alínea a) CC); c. Por despesas com doenças do devedor ou dos seus alimentos, relativas aos últimos seis meses (artigo 737.º, alínea b) CC); d. Por despesas indispensáveis ao sustento do devedor e dos seus alimentandos, relativas aos últimos seus meses (artigo 737.º, alínea c) CC); e. Aos créditos emergentes do contrato de trabalho ou da violação ou cessação deste, pertencentes ao trabalhador (artigo 737.º, alínea d) CC), substituído pelo artigo 333.º, n.º1, alínea a) CT). Na legislação especial encontram-se, ainda, outros privilégios mobiliários gerais, como o do Estado relativamente ao imposto do rendimento das pessoas singulares (artigo 111.º CIRS) ou relativamente ao rendimento sobre o imposto das pessoas coletivas (artigo 108.º CIRC), o do Estado resultante de aval (artigo 22.º Lei n.º112/97, 13 setembro), o conferido à segurança social (artigo 1.º Decreto-Lei n.º512/76, 3 julho, e artigo 10.º Decreto-Lei n.º103/80, 9 maio), aos trabalhadores por créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação (artigo 333.º, n.º1, alínea a) CT) e ainda por indemnização devidas por acidentes de trabalho (artigo 78.º Lei n.º98/2009, 4 setembro) e ao credor requerente da insolvência do devedor (artigo 98.º CIRE). Salvo no caso do privilégio dos créditos por impostos, do Estado e das autarquias locais, e ainda o do Estado resultante de aval, que prevalecem sobre qualquer outro privilégio mobiliário, os privilégios mobiliários gerais são graduados depois dos privilégios mobiliários especiais (artigo 747.º CC e artigo 22.º, n.º2 Lei n.º112/97) e não valem contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente (artigo 749.º, n.º1 CC). 4. Privilégios imobiliários gerais: uma nova figura instituída por legislação especial foi a dos privilégios imobiliários gerais, como o das instituições de segurança social sobre os imóveis do devedor (artigo 2.º Decreto-Lei n.º 512/76, 3 julho, e artigo 11.º Decreto-Lei n.º103/80, 9 maio) e o do Estado, relativo aos impostos sobre o rendimento (artigo 111.º CIRS e artigo 108.º CIRC). Ocorria ainda um privilégio imobiliário geral por salários em atraso no artigo 12.º Lei n.º17/86, 14 junho, mas essa disposição foi revogada pelo Código do Trabalho, sendo que o seu artigo 333.º, alínea b) CT apenas contempla agora um privilégio imobiliário especial. A instituição de privilégios imobiliários gerais foi altamente controversa, na medida em que os privilégios imobiliários, por força do artigo 751.º CC prevalecem sobre a hipoteca, embora fosse controverso que se pudesse sustentar a

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão mesma solução em relação aos privilégios imobiliários gerais. A questão veio a ser de certa forma resolvida pela alteração ao Código Civil efetuada pelo Decreto-Lei n.º38/2003, 8 março. Efetivamente, essa alteração, além de reconhecer a existência de privilégios imobiliários gerais não previstos no Código (artigo 735.º, n.º3 CC), veio determinar a aplicação aos privilégios imobiliários gerais do regime do artigo 749.º CC, em lugar do artigo 751.º CC, que agora é expressamente restringido aos privilégios imobiliários especiais, ficando assim estabelecido que qualquer privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos sobre a coisa, que sejam oponíveis ao exequente.

Regime dos privilégios creditórios: 1. Regime geral: os privilégios constituem-se exclusivamente em virtude da lei, que estabelece os termos da sua atribuição. O privilégio garante naturalmente o crédito que dele beneficia, podendo, nos termos do artigo 734.º CC, garantir igualmente os juros relativos aos últimos dois anos, se forem devidos. Os privilégios extinguem-se pelas mesmas causas de extinção da hipoteca (artigos 752.º e 730.º CC). São ainda aplicáveis aos privilégios as disposições dos artigos 692.º, e 694.º a 699.º CC, relativos à hipoteca (artigo 753.º CC). É conveniente distinguir em virtude da sua diferente natureza, os regimes particulares dos: a. Regime dos privilégios especiais: o privilégio especial goza de sequela, pelo que vale contra terceiros. No caso de existir conflito entre o privilégio mobiliário especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais cedo se houver adquirido (artigo 750.ºCC), salvo no caso do privilégio relativo a despesas de justiça, o qual prevalece não só sobre os demais privilégios, mas também sobre outras garantias, mesmo anteriores, que onerem os mesmos bens e vale contra terceiros adquirentes (artigo 746.º CC). Tratando-se, no entanto, de privilégio mobiliário geral, este é graduado depois dos privilégios imobiliários especiais (artigo 747.º, n.º1, alínea f) CC), salvo se se tratar do privilégio mobiliário geral relativo a dívidas fiscais conferido pelo artigo 736.º CC ao Estado e às autarquias locais (artigo 747.º, n.º1, alínea a) CC), o qual prevalece sobre os outros privilégios mobiliários especiais, salvo os relativos a despesas de justiça. Já em se tratando de privilégio imobiliário especial, determina o artigo 751.º CC que eles são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou algum direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores. Se houver concurso entre privilégios, este é resolvido, não com base na ordem da sua constituição, mas antes com base na natureza do privilégio (artigos 745.º e seguintes CC), efetuando-se o rateio dos bens no caso de ocorrência de créditos igualmente privilegiados (artigo 745.º, n.º2 CC). Assim, o privilégio sobre despesas de justiça, seja mobiliário ou imobiliário, tem preferência não só sobre os demais privilégios, como sobre as outras garantias, mesmo anteriores, que onerem os mesmos bens, e vale contra os terceiros adquirentes (artigo 746.º CC). Relativamente aos privilégios mobiliários, graduam-se sucessivamente os créditos por impostos, primeiro em relação ao Estado e depois às autarquias locais, os créditos por fornecimentos destinados à produção agrícola, os créditos da vítima de um facto que dê lugar à responsabilidade civil, e os créditos de autor de obra intelectual (artigo 747.º CC). Quanto aos privilégios sobre o navio, eles preferem a qualquer privilégio geral ou especial sobre móveis estabelecido no Código Civil (artigo

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão 574.º CCom). Relativamente aos privilégios imobiliários especiais são graduados em primeiro lugar os créditos fiscais do Estado e depois os das autarquias (artigo 748.º CC). A eficácia dos privilégios especiais como garantias é no entanto mais reduzida pelo facto de que aqueles de que sejam titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social, vencidos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência, se extinguirem com a declaração de insolvência (artigo 97.º, n.º1, alínea b) CIRE). b. Regime dos privilégios gerais: o regime dos privilégios gerais não varia muito do dos privilégios especiais. O concurso entre eles é regulado nos artigos 745.º e seguintes CC, sabendo-se que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelos privilégios, sejam oponíveis ao exequente (artigo 749.º, n.º1 CC), estabelecendo ainda o artigo 749.º, nº.2 CC que as leis de processo estabelecem os limites ao objeto e à oponibilidade do privilégio geral ao exequente e à massa falida, bem como os casos em que ele não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração de falência. Efetivamente, após a reforma da ação executiva, o artigo 788.º, n.º4 CPC veio determinar que não é admitida a reclamação do credor com privilégio geral, mobiliário ou imobiliário, quando: i. A penhora tenha incidido sobre bem só parcialmente penhorável, renda, outro rendimento periódico ou veículo automóvel ou bens móveis de valor inferior a 25 UC; ii. Sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, a penhora tenha incidido sobre moeda corrente ou depósito bancário em dinheiro; iii. Sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC este requeira procedentemente a consignação de rendimentos, ou a adjudicação, em dação em cumprimento do direito de crédito no qual a penhora tenha incidido, antes de convocados os credores. Em caso de insolvência determina o artigo 97.º, n.º1, alínea a) CIRE que se extinguem com a declaração de insolvência os privilégios creditórios gerais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social, constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência. Há que salientar, relativamente aos privilégios gerais, que o facto de não possuírem cariz de garantia real impede que lhes seja aplicado o artigo 752.º, n.º1CPC, não estando, assim, o seu titular dispensado de nomear bens à penhora, o que pode fazer independentemente de ocorrer ou não a insuficiência dos bens sobre que incide o privilégio.

Natureza dos privilégios: a natureza dos privilégios não pode ser examinada de forma unitária, havendo que distinguir entre:

1. Os privilégios gerais: não podem ser considerados como direito reais de garantia, uma vez que não incidem sobre coisas determinadas, nem gozam de sequela, só podendo ser exercidos em relação aos bens que se encontrem à data da penhora no património do devedor. Temos vindo por isso a qualifica-los por isso como garantias especiais sobre universalidades. 2. Os privilégios especiais: são direitos reais, uma vez que incidem sobre coisas determinadas, e gozam de sequela, sendo oponíveis a terceiros e concedem preferência no pagamento ao credor que deles beneficia, assemelhando-se nestes termos ao penhor

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão e à hipoteca. Devem ser, por isso, qualificados como direitos reais de garantia, cuja única especialidade resulta de serem atribuídos por lei, em atenção à causa do crédito.

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Secção VI – O direito de retenção

Generalidades: constitui igualmente um direito real de garantia o direito de retenção. O direito de retenção encontra-se previsto no artigo 754.º CC, prevendo-se ainda casos especiais deste direito no artigo 755.º CC, em ordem a abranger o transportador, o albergueiro, o mandatário, o gestor de negócios, o depositário, o comodatário, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa. O artigo 1323.º, n.º3 CC atribui ainda direito de retenção ao achador da coisa. Apesar de não se encontrar expressamente contemplado no artigo 754.º CC, tem sido ainda reconhecido pela doutrina o direito de retenção ao empreiteiro, sendo minoritária a posição contrária. Atualmente, ainda, há uma justificação suplementar que é o facto de o artigo 25.º Decreto-Lei n.º201/98, 10 julho, conferir direito de retenção ao construtor do navio, o que constitui manifestamente um caso de empreitada. Fora do Código Civil encontram-se ainda casos especiais de direito de retenção, como o direito de retenção do transportador (artigo 21.º Decreto-Lei n.º352/86, 21 outubro e artigo 14.º Decreto-Lei n.º239/2003, 4 outubro), o direito de retenção atribuído a advogado, nos termos do artigo 96.º, n.º3 Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º15/2005, 26 janeiro) e o direito de retenção do agente comercial (artigo 35.º Decreto-Lei n.º178/86, 3 julho). O direito de retenção nunca está sujeito a registo, mesmo quando incida sobre bens a ele sujeitos. Apesar dessa não sujeição a registo, goza de uma publicidade específica resultante da posse da coisa pelo retentor, que permite que os outros se apercebam da garantia. É, por outro lado, uma garantia acessória, na medida em que pressupõe um crédito garantido, cujas vicissitudes acompanha, sendo igualmente indivisível nos mesmos termos da hipoteca (artigo 696.º CC) e do penhor (artigo 678.º CC), por cujo regime se rege (artigos 758.º e 759.º CC). Pressupostos do direito de retenção: conjugando os artigos 754.º, 755.º, e 756.º CC, verificamos que o direito de retenção apresenta genericamente como pressupostos:

1. Que o devedor esteja obrigado a entregar uma coisa suscetível de penhora: o primeiro pressuposto é que o devedor esteja obrigado a entregar certa coisa (artigo 754.º CC), devendo essa coisa ser suscetível de penhora (artigo 756.º, alínea c) CC). Efetivamente, sendo o direito de retenção uma garantia real, naturalmente que só podem ser objeto do mesmo as coisas suscetíveis de penhora, pelo que se alguém estiver obrigado a entregar algum dos bens referidos nos artigos 736.º e 737.º CPC, naturalmente, que não pode exercer o direito de retenção, dado que nos casos em que a coisa retida seja impenhorável será impossível constituir sobre ela qualquer garantia. 2. Que seja simultaneamente titular de um crédito sobre a pessoa a quem esteja obrigado a entregar essa coisa, crédito exigível, ainda que com base na perda do benefício do prazo, mas não necessariamente líquido: em regra, o direito de retenção só pode ser exercido em caso de vencimento do crédito, podendo o vencimento ser desencadeado pelo credor, no caso das obrigações puras (artigo 805.º, n.º1 CC) ou resultar do prazo estipulado pelas partes (artigo 805.º, n.º2, alínea a) CC). Pode, porém, neste último caso, ocorrer a perda do benefício do prazo, caso ocorra a insolvência ou diminuição das garantias prestadas (artigo 780.º CC), ou a não realização de uma prestação nas dívidas a prestações (artigo 781.º CC), o que torna o crédito imediatamente exigível e consequentemente permite ao credor exercer o direito de retenção (artigo 7575.º, n.º1 CC). Não obsta ao exercício do direito de retenção a iliquidez do crédito garantido (artigo 757.º, n.º2 CC), dado que a eficácia do direito de retenção como garantia não depende 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão da determinação exata do montante do crédito, sendo essa iliquidez uma circunstância comum na hipótese de danos causados pela coisa. 3. Que exista uma conexão causal entre a coisa e o crédito sobre a pessoa que a deva receber, podendo essa conexão resultar de despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados (artigo 754.º CC) ou de uma relação legal ou contratual que tenha implicado a detenção da coisa, a cuja garantia que a lei atribua esse efeito (artigo 755.º CC): outro pressuposto do direito de retenção é a existência de uma conexão causal entre o crédito e a coisa, a qual nos termos do artigo 754.º CC se exprime genericamente pelo facto de o crédito resultar de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados. Assim, por exemplo, quem efetua benfeitorias numa coisa (artigo 1273.º CC), tem o direito de a reter até ser reembolsado pelas mesmas. Quem sofre danos em resultado da ação de um animal pertencente a outrem pode retê-lo até ser indemnizado desses danos. Essa conexão causal pode ainda ser estabelecida pelo facto de a detenção da coisa resultar de uma relação legal ou contratual à qual a lei atribua como garantia esse direito. É o que sucede nas situações previstas no artigo 755.º CC, que confere esse direito ao transportador, albergueiro, mandatário, gestor de negócios, depositário, comodatário, e beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa. É também o que sucede na hipótese de achado da coisa (artigo 1323.º, n.º4 CC). Essa mesma situação ocorre ainda nos casos de transporte, referidos no artigo 21.º Decreto-Lei n.º352/86, 21 outubro e o artigo 14.º Decreto-Lei n.º239/2003, 4 outubro), advocacia (artigo 96.º, n.º3 EOA) e agência comercial (artigo 35.º Decreto-Lei n.º178/86, 3 julho). 4. Que nem a aquisição da detenção da coisa tenha resultado de meios ilícitos, com o conhecimento do adquirente, nem a constituição do crédito tenha resultado de despesas efetuadas de má fé: nos termos do artigo 756.º, alíneas a) e b) CC, o direito de retenção é excluído quando a detenção da coisa tenha sido adquirida por meios ilícitos, com o conhecimento do retentor, ou quando tenham sido realizadas de má fé as despesas que determinaram a aquisição do crédito. Temos, assim, um pressuposto geral do direito de retenção que é a não atuação de má fé por parte do retentor, podendo essa má fé resultar, quer da aquisição ilícita da coisa, com o conhecimento do retentor, quer da própria constituição do crédito fazendo despesas em coisa que se saiba não lhe pertencer. A má fé é aqui entendida em sentido subjetivo, como a consciência da ilicitude da aquisição da coisa ou da lesão do credor em face da realização da despesa. 5. Que a outra parte não preste caução suficiente: o direito de retenção surge como uma garantia provisória, pelo que cessa se a outra parte prestar caução suficiente (artigo 756.º, alínea d) CC). A caução poderá ser prestada por qualquer das formas referidas no artigo 623.º CC, incluindo por fiança, caso em que ocorrerá a substituição de uma garantia real por uma garantia pessoal.

Direitos do retentor: a posição jurídica do retentor é equiparada à do credor pignoratício, quando recai sobre coisa móvel (artigo 758.º CC), e à do credor hipotecário, quando recai sobre coisa imóvel (artigo 759.º CC), sendo aplicável consequente o regime já exposto sobre estas garantias. Consequentemente, o retentor não pode, em caso algum, apropriar-se da coisa retida, apenas podendo proceder à sua alienação no âmbito da execução da garantia.

Transmissão do direito de retenção: nos termos do artigo 760.º CC, o direito de retenção não é transmissível sem que seja transmitido o crédito que ele garante. A não admissibilidade de uma transmissão autónoma do direito de retenção, justifica-se pelo facto de ele ser conferido por lei,

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão tendo em atenção a particular conexão existente entre o crédito garantido e a coisa retida, conexão que deixaria de existir se fosse transmitido sem esse crédito.

Extinção do direito de retenção: nos termos do artigo 761.º CC, o direito de retenção extinguese pelas mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca, e ainda pela entrega da coisa. Assim, para além dos casos já referidos no artigo 730.º CC, a extinção do direito de retenção pode ocorrer em resultado da entrega da coisa. À semelhança do que se referiu para o penhor, parece que essa extinção ocorre, quer a entrega seja voluntária, quer involuntária, como na hipótese de resultar de fraude ou violência. Efetivamente, os terceiros que contratam com o dono da coisa terão que ver a sua situação protegida, a qual prevalece por isso sobre a do retentor que tenha entregue a coisa. No entanto, em caso de esbulho da coisa, o retentor pode utilizar das ações possessórias para a recuperar, nos termos dos artigos 758.º, 759.º, n.º3 e 670.º, alínea a) CC, o que lhe permite retomar o exercício do direito de retenção, após a recuperação da coisa. Uma outra causa de extinção do direito de retenção é a sua substituição por caução, face ao que se dispõe no artigo 756.º, alínea d) CC. Efetivamente, uma vez caucionado o crédito, o retentor passa a possuir uma garantia de cumprimento pelo que a retenção da coisa deixa de ser legítima. Apesar de não expressamente prevista na lei, tem-se entendido que o direito de retenção se pode extinguir por confusão, quando a propriedade da coisa a reter é adquirida pelo retentor. No entanto, caso a aquisição seja realizada pelo retentor em ação executiva instaurada contra o devedor, parece que se deverá aplicar analogicamente o artigo 724.º, n.º1 CC, estabelecendo-se o renascimento do direito e o seu atendimento no quadro do artigo 824.º, n.º2 CC. É controversa a questão sobre se o direito de retenção sobrevive à venda executiva:

1. Em sentido negativo: pronunciaram-se Pires de Lima e Antunes Varela, sustentando que todos os direitos reais de garantia caducam com a venda executiva, uma vez que a exceção prevista na parte final do artigo 824.º CC relativamente aos direitos que produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo não se refere a direitos reais de garantia, sendo esta posição igualmente seguida por grande parte da jurisprudência. 2. Em sentido afirmativo: pronuncia-se Menezes Cordeiro, considerando que a exceção da parte final do artigo 824.º CC abrange os direitos reais de garantia que produzam efeitos em relação a terceiros independentemente do registo.

Natureza do direito de retenção: conforme acima se salientou, o direito de retenção é moldado sobre o regime do penhor ou da hipoteca, consoante incida respetivamente sobre coisas móveis (artigo 758.º CC) ou sobre imóveis (artigo 759.º CC). O direito de retenção constitui assim um verdadeiro direito real de garantia, na medida em que, tal como aqueles direitos, possui as características do caráter absoluto, da inerência, da sequela e da prevalência. Sendo uma garantia muito forte, na medida em que até pode prevalecer sobre a hipoteca constituída anteriormente (artigo 759.º, n.º2 CC), o direito de retenção assume, no entanto, cariz provisório, na medida em que pode ser excluído pela prestação de caução suficiente (artigo 756.º, alínea d) CC). O direito de retenção assume, por outro lado, essencialmente uma função compulsória, visando compelir o devedor a realizar a prestação em dívida, em ordem a recuperar o objeto retido.

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Secção VII – A penhora

Generalidades: a penhora consiste numa apreensão dos bens do executado (seja ele o devedor ou terceiro) afetos à garantia da obrigação exequenda, em ordem a que eles possam ser sujeitos aos fins da ação executiva, a saber, a satisfação do direito do credor exequente e, eventualmente, do dos outros credores com garantia real sobre esses bens. Apesar de resultar de um ato judicial, não deixa de constituir em termos substantivos uma garantia das obrigações, na medida em que, além de impedir o executado de continuar a dispor dos bens penhorados, atribui ao exequente preferência na satisfação dos seus créditos sobre esses bens, preferência essa que apenas cessa no caso de insolvência do executado. A penhora integra-se assim entre as garantias reais das obrigações.

Objeto da penhora: relativamente ao objeto da penhora, a regra constante dos artigos 601.º, 817.º e 818.º CC e 735.º CPC é a de poderem ser penhorados todos os bens do devedor que respondem pela dívida exequenda, bem como bens de terceiro vinculados à garantia do crédito, ou objeto de ato praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente impugnado. Exige-se, no entanto, que quer o devedor quer o terceiro, sejam executados no processo, uma vez que a penhora só pode incidir sobre bens do executado (artigo 735.º CPC). Há, no entanto, certos bens do executado que não podem ser penhorados. Entre eles encontram-se os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis (artigo 736.º CPC), os bens relativamente impenhoráveis (artigo 737.º CPC) e os bens parcialmente impenhoráveis (artigo 738.º CPC). Nestes casos, a lei considera que estes bens desempenham no património do executado funções superiores àquela de satisfação do direito do exequente, pelo que não admite a sua nomeação à penhora. Também não podem ser executados bens do executado que pertençam a um património autónomo em relação à dívida exequenda (artigo 601.º, n in fine CC conforme artigo 744.º CPC), sendo ainda admitida a limitação da responsabilidade por convenção das partes (artigo 602.º CC) ou por determinação de terceiro (artigo 603.º CC).

Regime processual da penhora: em relação ao regime processual da penhora, convém começar por referir que a penhora ocorre em sede de ação executiva, e esta não pode ser instaurada sem que exista um título executivo (artigo 10.º, n.º5 CPC). Se, em face do título a obrigação não for certa, líquida e exigível, haverá que proceder como preliminar da execução à liquidação da obrigação exequenda (artigos 713.º e seguintes CPC). Apenas após essa fase, deve o credor ou o seu mandatário apresentar o requerimento executivo (artigo 724.º CPC), o qual é concluso ao juiz para despacho liminar (artigo 726.º CPC). Nessa fase, é possível ao devedor opor-se à execução mediante embargos de executado (artigos 728.º e seguintes CPC), a qual pode ser igualmente cumulada com a oposição à penhora caso o executado a pretenda deduzir (artigo 856.º, n.º3 CPC). Os embargos, porém, não suspendem a execução, a menos que (artigo 733.º, n.º1, alíneas a), b) e c) CPC):

1. O embargante preste caução; 2. Tratando-se de execução fundada em documento particular, o embargante tiver impugnado a genuinidade da respetiva assinatura, apresentando documento que constitua princípio de prova e o juiz o entender, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução;

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3. Tiver sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da quantia exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação da caução. A apreensão de bens existente na penhora vai determinar a sua posterior entrega a um depositário judicial. Para este efeito, haverá que distinguir entre:

1. A penhora de bens imóveis (artigos 755.º e seguintes CPC): faz-se mediante comunicação eletrónica à conservatória do registo predial competente, a qual vale como apresentação ao registo (artigo 755.º CPC), sendo os bens entregues a um depositário, que normalmente é o agente de execução (artigos 755.º e 756.º CPC). 2. A penhora de bens móveis (artigos 764.º e seguintes CPC): a penhora de bens móveis não sujeitos a registo faz-se com a efetiva apreensão dos bens (artigo 764.º, n.º1 CPC). 3. A penhora de direitos (artigos 773.º e seguintes CPC): as formas de executar os bens variam, consoante se trate de: a. Direitos de crédito; b. Direitos ou expectativas de aquisição; c. Depósitos bancários; d. Direitos a bens indivisos; e. Quotas em sociedade. A penhora realiza-se com a notificação, respetivamente (artigos 773.º, 778.º, 770.º e 781.º CPC): a. Ao devedor; b. Ao atual titular dos bens; c. À instituição de crédito; d. Ao administrador ou contitulares; e. À sociedade de que o direito em causa fica à ordem do agente de execução. Se se tratar de títulos de crédito, a penhora realiza-se por efetiva apreensão do título (artigo 774.º CPC). Se se tratar de um estabelecimento comercial, a penhora é feita por auto (artigo 782.º CPC).

Efeitos da penhora: em relação aos efeitos da penhora, podem apontar-se os seguintes: 1. Função individualizadora dos bens: bens esses que irão ser submetidos ao poder de execução do credor. Efetivamente, enquanto que antes da penhora o credor dispõe apenas da garantia geral incidente sobre o património do devedor, após a penhora adquire uma garantia especial incidente sobre bens determinados. 2. Função conservatória: na medida em que o proprietário perde os poderes de gozo sobre os bens penhorados, sendo esses bens entregues a um depositário judicial, bem como os poderes de disposição sobre esses bens, ficando estes numa situação de indisponibilidade, sendo considerados ineficazes em relação ao exequente os atos que envolvam alienação ou oneração dos bens penhorados (artigo 819.º CC). Na penhora de créditos, é também considerada ineficaz em relação ao exequente a extinção do crédito por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora (artigo 820.º CC). A indisponibilidade jurídica pode inclusivamente afetar negócios celebrados pelo executado antes da penhora, mas que venham pôr em causa rendimentos obtidos após a mesma, sendo assim também considerada ineficaz em relação ao exequente a liberação ou cessão de rendas ou alugueres respeitantes a períodos de tempo posteriores à penhora (artigo 821.º CC).

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3. Função de garantia: na medida em que confere ao exequente o direito de ser pago, com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior sobre os bens penhorados (artigo 822.º, n.º1 CC). A anterioridade da garantia é determinada pela data do registo, no caso de bens imóveis e móveis sujeitos a registo (artigos 2.º, n.º1, alínea n) e 6.º, n.º1 CRPr), pela data da hora da diligência, no caso de a penhora incidir sobre bens móveis não registáveis e pela data da notificação ao obrigado em relação a direitos. Caso, porém, a penhora seja precedida de arresto, a sua anterioridade é reportada à data do arresto (artigo 822.º, n.º2 CC). Precisamente para admitir a graduação das outras garantias reais em confronto com a penhora vem o artigo 786.º, n.º1, alínea b) CPC prever a citação dos credores com garantia real sobre os bens executados, os quais são admitidos a reclamar o seu crédito na ação executiva, caso disponham de título executivo (artigo 788.º CPC). A preferência resultante da penhora deixa, porém, de ser atendida, caso venha a ser decretada a insolvência do executado (artigo 140.º, n.º3 CIRE).

Extinção da penhora: apesar de a lei nada prever sobre a extinção da penhora, parece poder aplicar-se-lhe analogicamente as disposições do artigo 730.º CC, relativa à hipoteca, quando incida sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo, e do artigo 677.º CC, relativa ao penhor, quando incida sobre móveis. Assim, a penhora extinguir-se-á naturalmente em resultado da extinção da obrigação a que serve de garantia (artigo 730.º, alínea a) e 677.º CC). Uma das formas de tal ocorrer é pelo pagamento da dívida referida no âmbito da execução (artigos 795.º e seguintes CPC). Também parece dever ser considerada causa de extinção da penhora, no caso em que esta recaia sobre bens imóveis, a prescrição, a favor de terceiro adquirente do prédio penhorado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação (artigo 730.º, alínea b) CC). Já a penhora de bens móveis não estará sujeita a esta específica causa de extinção (artigo 677.º CC). Será naturalmente também causa de extinção da penhora o perecimento da coisa penhorada (artigos 730.º, alínea c) e 677.º CC). O artigo 823.º CC dispõe, no entanto, que se a coisa penhorada se perder, for expropriada ou sofrer diminuição de valor, e, em qualquer dos casos, houver lugar a indemnização de terceiro, o exequente conserva sobre os créditos respetivos, ou sobre as quantias pagas a título de indemnização, o direito que tinha sobre a coisa. Finalmente, parece também dever-se considerar causa de extinção da penhora a renúncia do credor (artigo 730.º, alínea d) e 677.º CC).

Natureza da penhora: a natureza da penhora é controvertida. Para uma parte da doutrina, a penhora constitui um direito real de garantia, uma vez que atribui uma preferência no pagamento sobre os credores que não disponham de melhor garantia anterior, bem como a sequela, uma vez que o excedente continua a poder executar os bens penhorados, mesmo que estes tenham sido transmitidos para terceiro. Tratar-se-ia, porém, de um direito real de garantia imperfeito, dado que se extingue em caso de insolvência do devedor. A inserção da penhora entre os direitos reais de garantia foi, no entanto, rejeitada por vários autores:

1. Miguel Teixeira de Sousa: as garantias reais permitem, por força da sequela, executar o bem no património daquele que for o seu proprietário ou possuidor. Ora, a penhora resolve o mesmo problema – a afetação do bem onerado à realização dos fins da execução e, em especial, à satisfação do crédito do exequente – de modo totalmente oposto. Em vez de acompanhar o bem transmitido e de sujeitar o seu adquirente à execução, a penhora ignora a transmissão do bem (artigo 819.º CC) e rejeita qualquer substituição do executado. Enquanto o direito real se adapta à dinâmica, a penhora ficciona a estática. Assim, o autor defende que a penhora não é um direito real de garantia, porque, embora seja inerente a uma coisa e afete a execução desta à satisfação 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão do crédito do exequente, a sua função é conservatória, sendo apenas uma situação em que são colocados certos bens ou direitos. 2. Almeida Costa: também considera que, em rigor, não se trata de uma garantia real, mas de um ato processual que visa criar a indisponibilidade dos bens adstritos à execução, mediante a produção dos mesmos efeitos substantivos das garantias reais: a preferência e a sequela. 3. A melhor posição parece ser, no entanto, a que defende a inserção da penhora no âmbito dos direitos reais de garantia. Efetivamente, independentemente da forma como se estabelece a garantia, não há dúvida que a penhora atribui ao exequente um direito sobre uma coisa corpórea, oponível erga omnes, que lhe atribui preferência no pagamento sobre a venda desse mesmo bem. Não há assim qualquer obstáculo à inserção da penhora entre as garantias reais.

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Parte V – Dos direitos reais de aquisição Secção I – A promessa real

Generalidades: o primeiro dos direitos reais de aquisição corresponde à promessa real. Esta consiste num contrato-promessa (artigo 410.º CC) a que não é atribuída eficácia meramente obrigacional, a qual se traduz apenas na possibilidade de execução específica (artigo 830.º CC) e na responsabilidade obrigacional por cumprimento (artigos 798.º e seguintes CC), mas antes eficácia real (artigo 413.º CC), o que permite opor eficazmente a promessa perante terceiros, sendo adquirido por essa via um direito real de aquisição. Pressupostos da promessa real: a lei permite a atribuição de eficácia real ao contrato-promessa, no caso de a promessa respeitar a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, e as partes declarem expressamente a atribuição de eficácia real e procedam ao seu registo (artigo 413.º, n.º1 CC). A atribuição de eficácia real tem que constar de declaração expressa, não se admitindo assim que a mesma seja declarada tacitamente, em exceção à relevância geral da declaração tácita prevista no artigo 217.º CC, e tem que ser registada. O registo não parece, porém, ter neste caso eficácia constitutiva do direito real de aquisição, sendo apenas consolidativo, nos termos gerais. O contrato-promessa com eficácia real está sujeito a uma forma mais solene, uma vez que é exigida escritura pública ou documento particular autenticado, a menos que não seja exigida essa forma para o contrato prometido, caso em que basta um simples documento particular, que a lei estranhamente continua a exigir que tenha reconhecimento de assinatura (artigo 413.º, n.º2 CC), mas que, após a abolição dos reconhecimentos por semelhança sem menções especiais relativas aos signatários, deve nesse caso considerar-se substituída pela indicação, feita pelo signatário, do número, data e entidade emitente do seu bilhete de identidade ou documento equivalente emitido pela autoridade competente de um dos países da União Europeia ou do passaporte (artigo 2.º Decreto-Lei n.º250/96, 24 dezembro). Cumpridos estes requisitos, o contratopromessa adquire eficácia real, o que significa que o direito à celebração do contrato definitivo prevalecerá sobre todos os direitos reais que não tenham registo anterior ao registo da promessa com eficácia real. Neste caso, parece que o direito à celebração do contrato definitivo pode ser sempre exercido, mesmo que as partes decidam constituir sinal ou estabelecer penalizações para o incumprimento ou inclusivamente celebrar convenção contrária à execução específica.

Regime da promessa real: a lei não esclarece qual a forma de obter o cumprimento da promessa com eficácia real, em caso de ocorrer efetivamente a venda do prédio a terceiros.

1. Antunes Varela, Almeida Costa e Ribeiro de Faria defendem que deverá estabelecer-se da mesma forma a execução específica contra o obrigado, aplicando-se em relação ao terceiro o regime da venda de bens alheios, o que permitiria exigir imediatamente dele a restituição com base na nulidade da venda. 2. Dias Marques defende que deverá interpor-se uma ação de execução específica contra o terceiro; 3. Oliveira Ascensão e Carvalho Fernandes concebem que a ação de execução específica deve ser instaurada simultaneamente contra o obrigado e o terceiro adquirente;

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4. Menezes Cordeiro entende que a forma adequada seria uma ação de reivindicação adaptada contra o terceiro (artigo 1315.º CC). 5. Qualquer das posições nos parece criticável. Em primeiro lugar, a execução específica contra o obrigado faz pouco sentido quando ele já não é o novo dono do bem, sendo também de rejeitar a qualificação da alienação por ele efetuada como venda de bens alheios, já que ele era proprietário no momento da venda, a qual é plenamente válida, e só é posta em causa se a eficácia real for exercida, a qual não pode por isso consistir numa ação de nulidade. Mas a execução específica contra o terceiro coloca o problema de ele não se ter obrigado a celebrar qualquer contrato com o beneficiário da promessa, faltando por isso o pressuposto essencial da sua aplicação. A tese da execução específica contra os dois suscita estas duas objeções cumulativamente. Finalmente, a reivindicação (adaptada) contra o terceiro suscita a dificuldade de a reivindicação ser uma ação destinada a reconhecer um direito real e reclamar a restituição da coisa que é seu objeto (artigo 1311.º, n.º1 CC), não tendo assim natureza constitutiva, enquanto o exercício da eficácia real teria que revestir essa natureza, uma vez que através dela se procede a uma aquisição potestativa do direito real. Parece-nos, por isso, que o exercício da eficácia real não corresponde a uma ação judicial típica, devendo considerar-se como uma ação declarativa constitutiva, eventualmente cumulável com um pedido de restituição, a instaurar em litisconsórcio necessário contra o promitente e o terceiro adquirente, destinada a fazer prevalecer o direito de aquisição do promitente comprador sobre a aquisição desse terceiro.

Natureza da promessa real: é controvertida a natureza jurídica do direito do beneficiário da promessa com eficácia real:

1. Galvão Telles, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro: trata-se de um verdadeiro direito real de aquisição; 2. Antunes Varela, Almeida Costa, Pessoa Jorge, Henrique Mesquita e Santos Justo: sustentam tratar-se ainda de um direito de crédito, embora sujeito a um regime especial de oponibilidade a terceiros, em certa medida semelhante ao regime previsto no BGB, que admite a anotação prévia no registo (Vormerkung), de certos direitos de crédito sobre imóveis, por forma a permitir que não sejam afetados, em caso de posteriormente serem praticados atos de disposição sobre esses bens; 3. A nosso ver, é manifesto que a promessa real, embora pressuponha um direito de caráter relativo, o direito à celebração do contrato prometido, acaba por extravasar desse direito, na medida em que atribui uma faculdade absoluta de aquisição da coisa, que a ela inere, beneficiando da sequela e prevalência que caracteriza os direitos reais. Defendemos, consequentemente, que se trata de um direito real de aquisição.

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Secção II – A preferência real

Generalidades: outro direito real de aquisição consiste na preferência real. Esta consiste na faculdade de adquirir um bem, suportando as mesmas condições de outro adquirente, que celebrou um contrato relativamente àquele bem. Não devem, por isso, confundir-se com as preferências legais as situações em que se atribui a alguém a faculdade de adquirir determinado bem por quantia diferente daquela que se encontra estipulada no contrato preferível, como ocorre no âmbito dos artigos 27.º e 28.º LS, em que a administração pode exercer a preferência com a declaração de não aceitação do preço convencionado, caso em que a transmissão para o preferente é feita nos termos da expropriação por utilidade pública. Efetivamente, é essencial à preferência a igualdade de condições com o contratante em relação ao qual se pretende preferir, pelo que, sendo estabelecidas condições diferentes, já se não poderá falar em direito de preferência. A preferência real pode resultar da atribuição de eficácia real ao pacto de preferência, nos termos do artigo 421.º CC, assim como da concessão legal de direitos de preferência.

O pacto de preferência com eficácia real: nos termos do artigo 421.º, n.º1 CC, o pacto de preferência pode, por convenção das partes, gozar de eficácia real se, respeitando a bens imóveis ou a móveis sujeitos a registo forem observados os requisitos de forma e de publicidade exigidos no artigo 413.º CC. O pacto de preferência com eficácia real está sujeito aos mesmos requisitos de forma e publicidade da promessa com eficácia real, os quais examinámos supra. Sendo atribuída eficácia real ao pacto de preferência, e por força do artigo 421.º, n.º2 CC, o titular do direito de preferência não tem apenas a possibilidade de exercer os seus direitos como credor, em caso de incumprimento da obrigação de preferência (artigos 798.º e seguintes CC), mas também pode lançar mão da ação de preferência prevista no artigo 1410.º CC, a qual lhe permite adquirir o bem com prevalência sobre qualquer adquirente posterior.

As preferências legais: encontram-se diversos casos de preferências legais, quer no Código Civil, quer em legislação especial. Limitaremos apenas a nossa análise às constantes do Código Civil. No âmbito deste, constituem preferências legais a preferência do arrendatário na venda em dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos, prevista no artigo 1091.º, n.º1, alínea a) CC, a preferência recíproca dos proprietários de terrenos confinantes, estabelecidas nos artigos 1380.º e 1381.º CC, a preferência recíproca dos comproprietários, prevista no artigo 1409.º CC, a preferência do proprietário do solo, constante do artigo 1535.º CC, a preferência do proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, prevista no artigo 1555.º CC, e finalmente a preferência recíproca dos co-herdeiros, estabelecida no artigo 2130.º CC. Examinamos já, quando estudámos esses direitos, a preferência dos comproprietários, do proprietário do solo, e do proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem. Quanto à preferência dos co-herdeiros, esta deve ser tratada em Direito das Sucessões. Restringiremos, por isso, neste momento a nossa análise ao:

1. O direito de preferência do arrendatário urbano: no âmbito do arrendamento urbano, é atribuído ao arrendatário um direito real de preferência, no caso de compra e venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, no caso de compra e venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado há mais de três anos (artigo 1091.º, n.º1, alínea a) CC). O arrendatário tem assim a faculdade de obter a propriedade do prédio ou da fração autónoma arrendadas, caso o senhorio proceda à sua alienação por qualquer destes negócios. O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º CC (artigo 1091.º, n.º3 CC) e é sujeito ao regime geral dos artigos 416.º a 418.º CC (artigo 1091.º, nº4 CC). 2. O direito de preferência dos proprietários de terrenos confinantes: o primeiro caso de preferência legal é o direito de preferência dos titulares de terrenos confinantes, estabelecido nos artigos 1380.º e seguintes e no artigo 18.º Decreto-Lei n.º384/88, 25 outubro. Este direito foi instituído entre nós pela primeira vez a 14 agosto 1962. A razão de ser da atribuição deste direito assenta na intenção de facilitar o emparcelamento de terrenos com área inferior à da unidade de cultura, em ordem a tornar tecnicamente rentável a sua exploração agrícola, dados que os minifúndios não proporcionam normalmente um eficiente aproveitamento dos terrenos. Face ao artigo 1380.º, n.º1 CC, a atribuição deste direito de preferência depende dos seguintes pressupostos: a. Ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à da unidade de cultura; b. Que quem se apresenta a preferir seja dono de um terreno confinante com o alienado; c. Que esse prédio tenha área inferior à unidade de cultura; d. Que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante. Todos estes pressupostos devem ser considerados como factos constitutivos do direito de preferência, cabendo por isso a sua alegação e prova ao autor. A Portaria n.º202/70, 21 abril define as áreas de cultura para as diversas regiões do país, sendo que o artigo 27.º Decreto-Lei n.º73/2009, 31 março estabelece que nas áreas da Reserva Agrícola Nacional a unidade de cultura corresponde ao triplo da fixada na lei geral para os respetivos terrenos e região. O artigo 1318.º CC exclui, porém, o direito de preferência dos proprietários de terrenos confinantes nas seguintes situações: c. Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura; d. Quando alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar. O Assento STJ nº.13/3/1986 fixou a interpretação de que não constituía impedimento ao direito de preferência o facto de o terreno confinante ter uma cultura diversa do prédio que foi alienado. Já é, no entanto, impedimento à preferência o facto de o terreno ser destinado a outro fim que não seja a cultura, designadamente o fim de construção. O regime do Código Civil veio a ser ampliado pelo artigo 18.º, n.º1 Decreto-Lei n.º384/88, 25 outubro, estabelece que os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no artigo 1380.º CC, ainda que a área daqueles seja superior à da unidade de cultura. O n.º2 desta disposição determina, porém, que os preferentes referidos no número anterior não gozam do direito de preferência em relação aos terrenos que, integrados numa área a emparcelar, sejam adquiridos pela Direção Geral da Hidráulica e Engenharia Agrícola para fins de emparcelamento após a aprovação ou a autorização para elaboração do respetivo projeto. É, no entanto, questionável qual o sentido desta legislação. Parece claro que o seu objetivo foi apenas afastar a exigência constante do artigo 1380.º, n.º1 CC, de que tanto o terreno do preferente como o terreno objeto da preferência tivessem área inferior à da unidade de cultura. Assim, o proprietário de um terreno com área superior à da unidade de cultura passou a ter direito de preferência, caso seja alienado um prédio com área inferior a essa unidade de cultura. É manifesto, no entanto, que esse direito de preferência já não existirá se ambos os

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão prédios possuírem área superior à dessa unidade de cultura, uma vez que nesse caso não existe a razão justificativa da atribuição do direito de preferência, que é o objetivo de terminar com os minifúndios. Controverso é, no entanto, saber se, face ao artigo 18.º, n.º1 Decreto-Lei n.º348/88, o proprietário de um terreno confinante com área inferior à da unidade de cultura tem direito de preferência em caso de alienação de prédios com área superior à da unidade de cultura. Apesar da discussão doutrinária e jurisprudencial suscitada em torno desta questão, entendemos que a resposta deve ser afirmativa, uma vez que o objetivo de eliminar o minifúndio é igualmente assegurado por essa via.

O regime da preferência real: existindo uma preferência real, o titular da preferência não possui apenas um direito de crédito à preferência, mas também um direito real de aquisição, que pode opor erga omnes, mesmo a posteriores adquirentes da propriedade. A lei esclarece neste caso que o processo adequado para o exercício do direito de preferência é denominada ação de preferência. Esta vem prevista no artigo 1410.º CC, a propósito da preferência do comproprietário, mas é extensível a qualquer titular de direitos reais da preferência (artigos 421.º, n.º2, 1091.º, n.º4, 1380.º, n.º4, 1535.º, n.º2 e 2130.º, n.º1, in fine CC). Esta ação deve ser intentada no prazo de seis meses a contar da data em que o titular da preferência teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, tendo como condição de procedência que ocorra o depósito do preço devido nos quinze dias posteriores à propositura da ação. Uma dúvida que se colocou na doutrina diz respeito à legitimidade passiva para a ação de preferência.

1. A posição maioritária, seguida por Galvão Telles, Almeida Costa e Menezes Cordeiro, era a de que o obrigado à preferência não seria, enquanto tal, parte legítima para a ação de preferência, só o sendo caso o titular da preferência decida simultaneamente exigir uma indemnização. A fundamentação apresentada para esta solução é a de que na ação de preferência se discute unicamente se o bem é atribuído ao titular da preferência ou permanece na propriedade do terceiro, não podendo a ação afetar o obrigado, que normalmente já recebeu o preço que lhe era devido, nada mais tendo a ganhar ou a perder. 2. Pelo contrário, Antunes Varela pronunciou-se no sentido de que o obrigado à preferência tinha necessariamente que ser demandado para a ação de preferência, existindo assim um litisconsórcio necessário passivo entre ele e o terceiro adquirente. 3. Pensamos que a razão está com Antunes Varela. Efetivamente, o que dá causa à ação de preferência é o incumprimento da obrigação de preferência por parte do obrigado, não fazendo sentido que essa questão fosse apreciada sem que ele seja chamado à ação (artigo 3.º CPC). Parece-nos haver, assim, uma situação de litisconsórcio necessário passivo entre o obrigado à preferência e o terceiro adquirente (artigo 33.º CPC). Uma questão que suscitou igualmente dúvida residiu em determinar se o depósito do preço devido exigido no artigo 1410.º CC abrange apenas o preço propriamente dito, ou também as outras despesas que, por lei, devem ficar a cargo do comprador como a sai ou os emolumentos notariais. A solução correta deve ser a de que apenas é exigido o depósito do preço devido, ainda que o preferente deva, no caso de ficar também sujeito às mesmas despesas com a sisa e a escritura e na medida em que o ficar, reembolsar ao terceiro as despesas por ele suportadas, sem o que haveria enriquecimento sem causa. Uma vez que o direito de preferência tem eficácia erga omnes, e não está sujeito a registo, o titular do direito de preferência pode sempre opor o seu direito não apenas ao adquirente, mas também a eventuais sub-adquirentes do bem. Tal situação não é prejudicada pelo facto de a ação de preferência, enquanto ação constitutiva de direitos reais estar sujeita a registo (artigo 3.º, n.º1, alínea a) CRPr). Efetivamente, se a ação for registada 大象城堡

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| José Alberto Vieira – Luís Menezes Leitão o preferente adquire a possibilidade de opor a sentença a qualquer terceiro que adquira direitos sobre os bens, mas se a ação não for registada não perde o direito de continuar a opor o seu direito de preferência em relação ao terceiro, tendo, no entanto, que instaurar uma nova ação contra este.

Natureza da preferência real: em relação à natureza jurídica da preferência real, tem-se colocado da mesma forma que em relação à promessa real, a discussão sobre se a mesma constitui um direito de crédito oponível a terceiros, ou um direito real de aquisição. Pelas razões acima expostas, preferimos esta última posição.

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