Direito Penal I - Maria Fernanda Palma e Figueiredo Dias

August 16, 2017 | Author: 大象城堡 | Category: Criminal Law, Crime & Justice, Crimes, Sociology, Legitimacy (Political)
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Contém Figueiredo Dias e Maria Fernanda Palma (atualizados no que toca ao regime do CP: atualização minha, portanto aten...

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DIREITO PENAL I Maria Fernanda Palma | 葡京的法律大学 | 大象城堡

Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016

A Sebenta está feita com base, no pensamento da Professora Regente, nos fascículos que tinha publicados na AAFDL e que tive o trabalho de atualizar. A professora, entretanto, publicou um livro atualizando-o.

1 Se usarem a sebenta atentem criticamente às atualizações.

E LEIAM O PROFESSOR TAIPA DE CARVALHO SE NÃO CONSEGUIREM ACOMPANHAR A PROFESSORA E O PROF. FIGUEIREDO DIAS nos seus livros (sendo excelentes, acabam por ser muito densos).

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 I – Definição do Direito Penal1

Definição do Direito penal: o problema nas suas vertentes: o Direito Penal é um conjunto de normas que se autonomizam no Ordenamento Jurídico por atribuírem a certos factos descritos pormenorizadamente – os crimes – consequências jurídicas profundamente graves – as penas e as medidas de segurança. Os elementos identificadores das normas penais são, consequentemente, o crime, a pena e a medida de segurança. Os crimes constituem o conteúdo da previsão da norma penal, as penas ou as medidas de segurança correspondem à sua estatuição. Não poderemos reconhecer uma norma como penal apenas porque o legislador designou os factos que previu como crimes e as sanções que estatuiu como penas. O crime e a pena têm um conteúdo pré-legislativo indisponível. Essa indisponibilidade revela já uma relação entre a definição material de Direito Penal e a temática da legitimidade constitucional. E essa relação postula que o Direito Penal português não poderá ter qualquer conteúdo. O crime e a pena são entidades produzidas por instâncias socias antes de serem moldadas pelo legislador como tais. Há uma vinculação (embora não rígida) entre a noção de crime dos diversos grupos sociais e a definição legislativa. Assim, as representações sociais comuns sobre o que é uma atividade criminosa são normalmente reproduzidas pelo legislador. E a aceitação das decisões legislativas depende da receção das representações sociais dominantes por aquelas decisões. Por estas razões, não é correto afirmar que uma conduta é criminosa porque é punida, nem no âmbito da ciência jurídica, nem num plano científico geral. Tal afirmação só seria correta à custa da convicção errónea de que o Direito cria, absolutamente, o seu objeto – a realidade a regular. A afirmação de que um comportamento constitui um crime porque é punido deve ser substituída pelo reconhecimento de que só é criminoso o comportamento que mereça uma pena. Este reconhecimento apela à legitimação constitucional do Direito Penal e remete para o estudo da realidade sócio-psicológica do crime. Pretende-se apenas que as representações sociais sobre o crime, pré-juridicamente conformadas, constituem (como factos sóciopsicológicos) pontos de referência do legislador penal na definição jurídica do crime. A teoria do Direito Penal não poderá, por consequência, definir o crime só em função da atribuição de uma pena – e por isso como um nada, intrinsecamente – mas terá de encontrar o sentido jurídico último do crime e da pena, que perita não os confundir, enquanto manifestações de ilícito e de sanção, com outras realidades. É uma expressão normal deste desiderato a consideração do Direito Penal como ramo do Direito Público em que à lesão dos bens jurídicos essenciais para a vida em sociedade são atribuídas as sanções mais graves do Ordenamento Jurídico (esta é uma noção dominante desde o advento do pensamento liberal sobre a necessidade da pena, representado por Beccaria). Na noção de essencialidade dos bens está compreendida aquela imagem social da pré-compreensão do crime que nos permite identificar materialmente o Direito Penal. Uma outra forma de determinar o sentido último do Direito Penal consiste em investigar as funções das penas, de modo a poder identificar as condutas e os agentes que merecem sofrer a consequência jurídica da sua aplicação.

O problema da definição pré-jurídica de crime: sua importância para o Direito Penal: os estudos científicos não jurídicos sobre o crime como fenómeno social podem ser genericamente definidos como Criminologia. Quando se procura uma definição operatória de crime, recusa-se, naturalmente, uma formulação jurídico-formal e apela-se às forças não 1

Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 jurídicas do controlo social do comportamento humano, definindo-se, por exemplo, o crime como comportamento antissocial (Mannheim). A característica da antissocialidade ou da irregularidade social, porém, é sempre referida às valorações sociais dominantes, de modo que uma das teorias criminológicas menos antigas, o label-approach, veio retirar ao conceito estático de crime qualquer função de objeto científico para em seu lugar colocar os processos sociais de criminalização de condutas. O crime e a criminalidade como factos sociológicos seriam assim o resultado de um processo de seleção social, segundo a qual o legislador, a policia, os tribunais, e todas as chamadas instâncias formais de controlo elegeriam umas e não outras condutas como criminosas ou pessoas como delinquentes, e, finalmente, os grupos sociais, como instâncias não formais de controlo, etiquetariam certas pessoas como potenciais ou efetivas autoras de crimes. Encetando esta via, a sociologia criminal admitiria, contudo, o total relativismo quanto ao que é designado socialmente como crime e renunciaria definitivamente à explicação do sentido e função social da conduta delinquente e da sua génese, para se preocupar fundamentalmente com os processos de seleção social. Através desta última perspetiva, a tese de Durheim segundo a qual os crimes são «parte integrante da sociedade sã», determinados pela própria estrutura social (e variáveis segundo ela) tornar-se-ia inoperante para as ciências do crime. A aceitação de uma função social do crime está, todavia, associada a desenvolvimentos importantes da Criminologia. Assim Merton, desenvolvendo o conceito de Durheim, pelo qual exprimia a indiferença relativamente às regras vigentes numa certa sociedade, explicá-lo-ia, enquanto fenómeno central da criminalidade, pelo desfasamento entre as metas sociais gerais e os caminhos para as alcançar. Sellin, com a teoria dos conflitos de cultura, ou Cohen, com o conceito de subcultura delinquente, radicariam o crime na eticidade produzida, igualmente, pela estrutura social. E, numa outra perceção das coisas, Sutherland, com a teoria da associação diferencial, tinha á, no princípio do século, definido a criminalidade como aprendizagem de modelos de conduta, compreendendo tanto as técnicas como a orientação dos móbeis, racionalizações e conceções que enformam a conduta delinquente. Pese embora a excessiva abstração dos modelos propostos por estes estudos, eles permitem simultaneamente explicar as causas do crime e elaborar ações para o seu controlo pela sociedade. A Criminologia, ao investigar os problemas do crime, terá, assim, de utilizar uma noção pré-legal de crime, eventualmente crítica das soluções legais e capaz de debater as questões de descriminalização e neo-criminalização. E as tentativas que tem empreendido para atingir tal conceito material revelam que uma noção operatória de crime engloba: o comportamento humano irregular por violar regras éticas ou jurídicas – o comportamento desviado de Sutherland; o comportamento humano danoso socialmente por atingir bens necessários à conservação ou ao desenvolvimento da sociedade – perspetiva de Mannheim.

O conceito material de crime no pensamento jurídico: o pensamento jurídico tem partilhado com a Criminologia a preocupação de definir materialmente o crime. A divergência teórica que mais se repercute, hoje, no conceito material de crime é a que se configurou, a partir do século XIX, relativamente ao objeto da infração criminal. As grandes alternativa que se perfilharam foram, então, a definição do objeto da infração criminal como violação de certos direitos subjetivos (Feuerbach) e como violação de determinados bens jurídicos (Birnbaum). O confronto com estas duas perspetivas revela-nos uma diferença quanto ao elemento a que se refere a legitimidade do Direito Penal. No primeiro caso, trata-se da estrutura liberalcontratualista que somente justifica a intervenção penal onde os direitos humanos básicos que o contrato social visa assegurar, e que o legitimam, foram violados. No segundo caso, a referência legitimadora é já uma estrutura estatal, não liberal, a comunidade e os seus valores..

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 A perspetiva de Feuerbach dissolve a infração criminal na proteção da liberdade individual; a perspetiva que se iniciou com o conceito de bem jurídico de Birnbaum define a infração pela lesão objetiva de valores da comunidade. Segundo Birnbaum, o Direito vincula-se a elementos objetivos, mas simultaneamente pré-positivos ou de direito natural. Apesar de acentuar a objetividade, Birnbaum não deixa de procurar uma fundamentação da proteção jurídica que merecem certos bens nos fins do Estado. Posteriormente, Binding viria a reduzir o bem jurídico aos valores ou condições de vida da comunidade jurídica, tal como são definidos pelo legislador, numa perspetiva de puro positivismo legalista. Estas duas visões objetivistas viveriam em permanente tensão no seio do debate sobre o conceito material de crime, mas foi, sem dúvida, a postura inicial que tornou mais profícuo o conceito de bem jurídico na ciência do Direito Penal. Von Liszt desenvolveu esta última postura definindo o bem jurídico como interesse humano vital, expressão das condições básicas da vida em comunidade. No seu entendimento, o bem jurídico é um conceito legitimador do Direito Penal (e do Direito em geral), descomprometido com a norma legal. Em Von Liszt, o conceito de bem jurídico ainda tem, no entanto, um conteúdo individualista liberal. Na realidade, a consideração do bem jurídico pode permanecer no quadro de referência do modelo de Estado liberal ou ser transportada para uma conceção de Estado e de Direito supra individualista ou mesmo transpersonalista. Esta última conceção, representada pelo Estado hegeliano e mais recentemente pelas ideologias totalitárias, considera que os valores da personalidade e do indivíduo estão necessariamente ao serviço dos valores coletivos. Os bens jurídicos (mesmo como substrato individual) são protegidos pelo interesse que representam para a comunidade. O bem jurídico em geral torna-se uma abstração desontologizada e sem substância, designando fins do Estado e não as coisas de que os indivíduos ou a sociedade carecem. Esta controvérsia entre diferentes conceções de bem jurídico não é solucionável segundo critérios científicos, pois o pomo da discórdia é uma determinada conceção do Estado e dos seus fins. Somente num plano ideológico é, por isso, possível encarar uma decisão sobre se o bem jurídico deve assumir uma ou outra natureza. Tem sido, no entanto, constante no pensamento penal a preocupação de apoiar numa perspetiva científica o conceito de bem jurídico. Procura-se, geralmente, situar na estrutura social, independentemente da instância política ou da decisão política, os critérios que tornam necessária a incriminação de determinadas condutas e a proteção de certos bens. A procura dos fatores sociológicos constantes que erigem certas realidades em bens jurídicos – a delimitação dos bens necessários à preservação das sociedades – não conduz à validade universal das condições de existência. Por essa razão, o conceito de bem jurídico, enquanto elemento natural, pré-jurídico, de validade absoluta, tende a ser absorvido pelos fins concretos que cada sociedade deverá realizar, segundo a sua própria escolha. Os sistemas sociais são autoreferentes, constroem a sua legitimidade através dos traços da sua identidade. E, por esta via, a teoria da sociedade chega ao ponto de partida recusado, o de uma subordinação do conteúdo da norma penal à pura escolha normativa. É esse, na realidade, o desfecho a que a metodologia sociológica, incapaz de definir com universalidade condições de existência humanas e necessidades sociais, conduz o pensamento penal. Expressão daquele desenlace é, como se verá, o funcionalismo. O funcionalismo parte das conceções de Luhmann sobre a análise das sociedades humanas como sistemas sociais. Em breves linhas, a teoria sistemática diz o seguinte: A sociedade não é um fenómeno pura e simplesmente politico, a koinonia politique, como a entendia a tradição aristotélica e a filosofia política europeia, cuja expressão máxima se traduziu na teoria do contrato social. A sociedade é antes um sistema social. Isto é, a sociedade desempenha determinadas funções, cuja análise permite caracterizá-la como um sistema. Essas funções consistem na institucionalização da redução da complexidade. Redução da complexidade 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 significa, aplicada às relações sociais, que o conjunto destas relações se organiza em diversos níveis autónomos, de acordo com as respetivas funções, progressivamente diferenciadas. Todos os níveis (subsistemas) se interrelacionam, gerando grande complexidade nas relações sociais. Finalmente, a sociedade seria a ultima função social concebível, da qual resultaria que a enorme complexidade da inter relação dos agentes sociais – proveniente de as condutas humanas se processarem em diversos níeis – fosse reduzida, assegurando-se assim a própria interação social. Torna-se claro o que seja esse fenómeno de redução de complexidade se se confrontar uma sociedade arcaica, comportando formas tradicionais de interajuda dos seus membros para a satisfação das respetivas necessidades, com uma sociedade moderna. Nas sociedades modernas, aquelas formas são substituídas pelo crédito financeiro, assegurado juridicamente, através do qual novas espécies de combinações com riscos e vantagens mais elevados são possíveis. A função de auxílio social desvincula-se da interajuda familiar ou da vizinhança, passando a existir um sistema diferenciado para cumprir essa função. Com uma tal diferenciação de funções, tornam-se mais complexas as relações sociais e mais difícil a previsão pelos agentes dos comportamentos dos outros agentes. É então necessário reduzir esta complexidade, institucionalizando condutas que podem ser geralmente aceitas e assegurando juridicamente a sua prática. Com isto garante-se, afinal, a interação social. Se se considerar que a multiplicação destes fenómenos de diferenciação de funções produz outros tantos sistemas diferenciados, conclui-se que a inter relação social tem de tomar em conta, de um modo geral, todos os dados provenientes dos diversos sistemas, pelo que se torna necessário um nível superior de redução de complexidade: a sociedade através do seu Direito (Luhmann). O Direito é a estrutura da sociedade que regula e assegura a institucionalização de relações de sentido constantes entre ações. A sua função é, precisamente, selecionar entre as expectativas de ação aceitas com um certo grau de generalidade aquelas cuja generalização deve ser institucionalizada. Assim, a partir de uma nova conceção de sociedade chega-se a uma nova definição de Direito. O Direito não é um dever moral ou um imperativo político mas apenas a institucionalização de expectativas de ação – o que o liga, certamente, à necessidade de estabilização dos possíveis conflitos interiores ao sistema social e reduz o problema da legitimação do Direito à dimensão da funcionalidade. Em face disto, toda a conduta desviada em relação à norma surge como uma frustração das expectativas de comportamento asseguradas juridicamente. Mas esta frustração não é, em si, disfuncional ou exterior ao sistema de interação social. Como conduta associal, ela é antes uma consequência das decisões básicas variáveis do sistema social. Ela é produzida através dos mesmos processos sociais que indicam a conduta conforme ao Direito – é, portanto, uma reação normal. Além disso, a conduta desviada busca o seu sentido na ordem dominante, pois é simplesmente impossível uma subcultura criminosa, como um contradireito, sem qualquer referência à ordem dominante. E, finalmente, o que é mais significativo é que a conduta divergente desempenha funções positivas e é útil como fator de afirmação da ordem vigente. Esta conceção da função do Direito conduz à função simbólica da pena e do Direito Penal de Jakobs. O ponto de vista de que o Direito Penal visa proteger bens jurídicos é substituído, absolutamente, pela função de estabilização contrafática das expectativas geradas pela violação de uma norma incriminadora. O crime esvai-se como problema real, dano social objetivo, para se tornar pretexto da afirmação de modelos de ação. A aplicação da pena é vista como oportunidade de controlar a interação social. Assim, o funcionalismo, na versão de Jakobs, destrói a legitimação do Direito Penal num conceito material de crime. Mas será o conceito material de crime uma ideia ancorada, metodologicamente, num direito natural universalista que a teoria da sociedade ultrapassou definitivamente? A visão funcionalista baseia-se em dados objetivos irrecusáveis, quando reconhece que não há definição puramente naturalística 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 das necessidades sociais ou individuais e que os sistemas são auto referentes. Mas esse reconhecimento permite ainda discutir criticamente as decisões legislativas de incriminação de condutas na ótica dos fins do sistema. E, por isso, viabiliza um controlo de legitimidade do Direito Penal. Permanecem, por essa via, válidos o significado e a função classicamente conferidos ao bem jurídico. A incriminação de condutas lesivas da moralidade social, como a pornografia não reflete uma necessidade do núcleo de condições essenciais de existência na nossa sociedade, pois a coesão social não se define a partir da moral sexual, mas sim a partir da liberdade individual. Quando a pornografia, porém, contribuir para diminuir a capacidade de decisão no domínio sexual ameaça a auto determinação da pessoa e o seu pleno desenvolvimento. Nestas hipóteses, já o Direito Penal poderá intervir. Em resumo: a visão funcionalista não anula a função crítica do conceito material de crime, pela referência de toda a legitimidade da proteção jurídico-penal aos fins sociais. E, na medida em que a definição destes fins não é produto de uma arbitrária decisão normativa, mas surge apenas como efeito objetivo da ação dos indivíduos – enquanto subsistemas, eles próprios, vocacionados para a auto realização –, o funcionalismo, como teoria, não exclui a discussão crítica do objeto da infração criminal.

O conceito material de crime e a doutrina do bem jurídico: qualquer limitação ou diretriz, para o legislador, quanto aos factos que ele deve, ou não deve, sancionar penalmente só pode resultar de um conceito material de crime anterior ao Direito Penal positivo e do conceito de bem jurídico que lhe serve de base, os quais estão indissociavelmente ligados à função do Direito Penal (assegurar a proteção subsidiária de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência da sociedade). Essa função do Direito Penal retira-se da própria função do Estado de Direito democrático (das tarefas que a Constituição lhe assinala) que, nos termos do artigo 2.º CRP, se funda no respeito pelos direitos individuais – os quais, segundo o artigo 18.º, n.º2 CRP, a lei só pode restringir nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo essas restrições limitar-se ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. É a partir do conceito material de crime que podemos encontrar resposta para a questão de saber se o legislador está, ou não, vinculado a respeitar determinadas limitações ou exigências, no que respeita ao âmbito dos factos puníveis. Por um lado importa saber se o legislador está proibido de estabelecer a punibilidade de determinados factos e, por outro, há que averiguar se ele está obrigado a declarar puníveis alguns outros. Apoiado no conceito material de crime, o movimento de descriminalização tem conhecido um intenso desenvolvimento. No que respeita ao movimento de descriminalização que teve como contrapartida a criação ou alargamento do âmbito as contraordenações, podem referir-se, como reflexo ou expressão desse movimento no nosso país, nomeadamente, a criação do Direito de mera ordenação social. A fundamentação normalmente invocada para as exigências de descriminalização

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 baseia-se num conceito material de crime, ou seja, um conceito de infração que congregue a indicação das características que deve apresentar um comportamento humano para que o Estado esteja legitimado a declará-lo punível. Como é evidente, um tal conceito material de crime não pode extrair-se da lei ordinária, tem que ser transcendente ao ordenamento jurídico-penal. Terá que ser encontrado na ordenação axiológico-constitucional, pois só a Constituição limita o legislador penal ordinário.

O

conceito

material

de

crime

subjacente

ao

movimento

de

descriminalização assente em determinado entendimento da doutrina do bem jurídico, conjugado com a exigência de que o Estado só sujeite a sanções penais condutas socialmente danosas, para tutelar bens jurídicos indispensáveis ao livre desenvolvimento da personalidade de cada homem e ao funcionamento do sistemasocial global. O conceito de bem jurídico, postulado pela primeira vez, em 1834, por Birnbaum, tem sido uma evolução histórico-dogmática acidentada. Importa apenas referir, para o afastar como base possível de um conceito material de crime, o conceito metódico de bem jurídico, propugnado por Honig, que considerava o bem jurídico apenas uma forma abreviada de exprimir o sentido e a finalidade de um conceito legal, ou seja: uma expressão sintética do espírito da lei, da ratio legis. Como é evidente, o conceito metódico de bem jurídico não pode, em caso algum, servir de base à censura, dirigida ao legislador, por ter cominado sanções penais para comportamentos que não ofendem bens jurídicos. É que, entendendo-se o bem jurídico como expressão sintética da ratio legis, nunca poderá haver preceitos incriminadores que não protejam bens jurídicos, pois todo o preceito prossegue sempre um determinado objetivo, tem sempre uma ratio legis. O conceito metódico de bem jurídico é, em suma, imanente ao Direito Penal positivo e apenas útil como instrumento da sua interpretação. Mas só um conceito de bem jurídico transcendente ao Direito Penal positivo pode servir de base a uma apreciação crítica das soluções estabelecidas pelo legislador penal. Pois, como nota Roxin, se o conceito material de crime visa fornecer ao legislador um critério político-criminal limitativo do poder de punir, isto é, que limite o poder punitivo do Estado e o vincule quanto às condutas a punir, então o conceito material de crime terá que partir de um conceito de bem jurídico-penal (ou bem jurídico com dignidade penal), dedutível da Constituição, que é a única limitação imposta ao legislador num Estado de Direito, assente nos princípios Constitucionais. Esta ideia é hoje absolutamente dominante. Como já referimos, o movimento de descriminalização das últimas décadas, apoiado

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 num conceito material de crime donde resulta que o Estado só pode incriminar condutas humanas para tutelar bens jurídicos fundamentais à convivência pacífica entre os cidadãos, tem-se feito sentir, nomeadamente, na exigência de redução do âmbito dos crimes sexuais. A este respeito, há a assinalar o aparecimento na literatura penalista, há quase quatro décadas, uma corrente de opinião, que hoje conta numerosíssimos defensores no estrangeiro e em Portugal (Figueiredo Dias e Taipa de Carvalho), segundo a qual não é legítimo ao Estado declarar puníveis atos com significado sexual que, por muito imorais que sejam, não violam a liberdade sexual de ninguém nem são praticados em público ou noutras circunstâncias de que possa resultar qualquer ofensa de interesses atendíveis de terceiros, numa sociedade pluralista. A outra exigência consiste na criação e ampliação do âmbito de aplicação das contraordenações. Os primeiros desta exigência foram Goldschimdt e Erick Wolf – assentavam na ideia de que o Direito Penal só deve punir condutas ético-socialmente relevantes e tutelar bens jurídicos cuja existência seja anterior aos comandos estaduais que visam a sua proteção – como acontece com a vida ou a integridade física e a generalidade dos bens que são objeto dos direitos individuaisJá não deveriam, porém, ser abrangidas pelo Direito Penal condutas cuja relevância ético-social é consequência das próprias injunções que as proíbem e não atingem quaisquer bens que já existam anteriormente a essas injunções. Nesta linha de orientação, surgiram na Alemanha – já em 1949 – diplomas legais que criaram e regularam a figura da contraordenação, que veio a ser introduzida em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 232/79, 24 agosto. Está, porém, longe de ser pacífica, na literatura penalista atual, a resposta a dar à questão de saber se os crimes se distinguem das contraordenações de acordo com um critério qualitativo – como o de Goldschmidt e Erick Wolf, que, no essencial, é o que vem sendo sustentado entre nós, desde 1969, por Figueiredo Dias – ou com base num critério puramente quantitativo, estabelecido em função da gravidade do ilícito e/ou da sanção, ou, por último, de um critério misto, propugnado, em termos divergentes entre si, por Jakobs, Jescheck e Roxin. Estamos inteiramente de acordo quanto à necessidade de se excluírem do âmbito do Direito Penal atos como, por exemplo, a homossexualidade praticada entre adultos, de livre vontade e sem ofensa dos interesses atendíveis de terceiro, ou qualquer conduta imoral não lesiva de bens jurídicos. A resposta terá de procurar-se na Constituição, à qual o legislador penal, como legislador ordinário, está sujeito. É a Constituição que fornece o quadro de valores fundamentais da ordem jurídica, nomeadamente

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 através da definição dos direitos, liberdades e garantias, no respeito dos quais se funda o Estado e que só podem ser limitados na medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Esses valores fundamentais são a base dos princípios de política criminal que hãode inspirar a atividade do legislador penal e, ao mesmo tempo, servir de critério delimitador do Direito Penal. As opções axiológicas expressas na Constituição terão de ser respeitadas pelo legislador quando decide incriminar um conceito de bem jurídico em que se apoie um conceito material de crime vinculativo para o legislador. O conceito material de crime terá de resultar, pois, de um conceito de bem jurídico prévio ao Direito Penal positivo, mas não prévio à Constituição. Ora, dos princípios acolhidos na nossa Constituição e das valorações a ela subjacentes, pode retirar-se um conceito de bem jurídico capaz de servir de suporte a um conceito material de crime vinculativo para o legislador ordinário. Esse conceito de bem jurídico pode ser definido nos seguintes termos: bens jurídicos são entes (individualizáveis no plano

ôntico e/ou no plano axiológico) ou objetivos (finalidades), úteis à livre expansão da personalidade dos indivíduos, no âmbito de um sistema social global orientado para essa livre expansão, ou ao funcionamento do próprio sistema. De tal definição retirase que é vedado ao legislador incriminar um comportamento, quando a incriminação, à partida, não possa ser útil à livre expansão da personalidade dos indivíduos nem ao funcionamento de um sistema social em que a livre expansão da personalidade de cada um deva co-existir com a da personalidade dos outros. Isto exclui, desde logo, incriminações arbitrárias ou incriminações que prossigam objetivos meramente ideológicos, ou incriminações de atos que, apesar de imorais não afetam a liberdade de ninguém.

A subsidiariedade da tutela de bens jurídicos: a exigência de que a incriminação de um comportamento se destine a tutelar bens jurídicos, no sentido apontado, é apenas uma das consequências do conceito material de crime que podem extrair-se da Constituição. A outra consequência, que se infere, sobretudo do artigo 18.º, n.º2 CRP, corresponde ao princípio da subsidiariedade do Direito Penal, também denominado princípio da mínima intervenção do Estado em matéria penal ou da máxima restrição das penas. Binding falava a este respeito no caráter fragmentário do Direito Penal. Todas estas expressões têm como conteúdo a asserção de que a cominação de sanções penais há-de constituir sempre a ultima

ratio da política social. Só é lícito ao legislador incriminar um comportamento quando 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 a tutela do bem ou bens jurídicos que ele tem em vista proteger com a incriminação não puder ser conseguida através do recurso a outros meios menos gravosos, nomeadamente a meios próprios do Direito Privado, ou de Direito Administrativo, ou do Direito das Contraordenações. Como diz Figueiredo Dias, «o direito penal só pode

intervir onde se verifique lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem». É que as sanções penais constituem a mais grave intromissão do Estado na esfera de liberdade dos indivíduos e são também aquelas que têm efeitos estigmatizantes mais intensos (atingindo, portanto, em regra, mais marcadamente do que quaisquer outras formas de intromissão estadual, o bom nome e a reputação das pessoas a que são aplicadas). O artigo 18.º, n.º2 CRP, ao estabelecer que as restrições aos direitos, liberdades e garantias, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, consagra, implícita, mas claramente, o caráter subsidiário da tutela jurídico-penal. Este princípio da subsidiariedade do Direito Penal implica ainda que mesmo aqueles bens jurídicos que devem ser protegidos pelo Direito Penal, não o devem ser contra quaisquer agressões, mas apenas contra as formas mais graves de agressão. Manifestação disso, no nosso ordenamento jurídico-penal, é, por exemplo, a não punição do dano negligente (artigos 212.º e seguintes CP), ou a não punição do furto do uso de quaisquer objetos, mas apenas veículos motorizados, barcos, aeronaves e bicicletas (artigo 208.º CP). Além disso, o princípio da subsidiariedade determina que a gravidade da pena seja proporcional à gravidade da ofensa e aos valores protegidos pela incriminação. Implica, portanto, um princípio de proporcionalidade. Afloramento deste princípio encontramo-lo em várias disposições do nosso Código Penal. É neste requisito do conceito material de crime, refletido no princípio da subsidiariedade do Direito Penal – e não a ideia de que as contraordenações não ofendem qualquer bem jurídico – que se funda, a nosso ver, a legítima reivindicação de que sejam excluídos do âmbito do Direito Penal os comportamentos ilícitos que puderem ser eficazmente combatidos como contraordenações (cujas sanções nunca podem ser privativas da liberdade, e não têm efeito estigmatizante). Claro que a margem de atuação livre do legislador, quanto a este segundo requisito do conceito material de crime, é forçosamente maior do que em relação ao primeiro requisito, que impõe a existência de um bem jurídico a tutelar. Isso deve-se a que, em regra, é bem mais fácil e seguro detetar, por exemplo, uma incriminação arbitrária, ou uma incriminação de atos

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 imorais que não ofendem qualquer bem jurídico, do que afirmar com segurança que determinados comportamentos ilícitos, lesivos de bens jurídicos, poderiam ser eficazmente combatidos por meios menos severos do que os do Direito Penal. Estará o legislador vinculado a punir determinados comportamentos? O tema ultrapassa o Direito Penal e, como nota Roxin, só pode ser cabalmente tratado em conexão com a problemática dos deveres de proteção constitucionalmente impostos ao Estado (artigo 9.º CRP). A questão de saber se o legislador está constitucionalmente obrigado a incriminar determinados comportamentos tem sido discutida, sobretudo, a propósito do aborto, mas pode, evidentemente, colocar-se relativamente a outros comportamentos gravemente lesivos de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência da sociedade. Em nosso entender – e tendo presente que o Direito Penal deve limitar-se à proteção subsidiária de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência da sociedade – pode dizer-se que, de um modo geral, o legislador deverá incriminar aqueles comportamentos tão gravemente lesivos de bens jurídicos fundamentais que impedem as condições mínimas essenciais da vida em sociedade, desde que não possam ser combatidas eficazmente através do recurso a meios menos gravosos do que os que são próprios do Direito Penal. Se o não fizer, estará a violar (por omissão) o dever de assegurar a coexistência pacífica dos indivíduos na comunidade estadual. Poderá afirmar-se então, com Batista Machado, «que a ideia de estado de

direito se demite da sua função quando se abstém de recorrer aos meios preventivos e repressivos que se mostrem indispensáveis à tutela da segurança, os direitos e liberdades dos cidadãos».

Fins das penas2: outra das grandes questões através das quais se indaga o sentido último do Direito Penal e do merecimento criminal (dignidade punitiva) das condutas humanas é a vexata quaestio dos fins das penas. A pena tem uma conotação mágica ou sagrada que lhe foi conferida pelo processo histórico e que ainda hoje persiste, revelando-se sempre como imposição de um mal para a pessoa do criminoso e para a sua honra (e não apenas para o seu património). Três grandes conceções se digladiaram: a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial. As teorias retributivas foram, nas suas primeiras formulações, teorias absolutas, por justificarem a pena pela compensação do mal do crime, independentemente de qualquer fim pragmático. Já na antiguidade grega é relatada uma conversa entre Anaxágoras e Péricles em que se manifesta a conceção retributiva. Durante a idade média, o pensamento retributivo desenvolveu-se com a conceção cristã de responsabilidade ética individual e assume o auge da sua elaboração em Kant ou Hegel. Kant assume o pensamento retributivo, justificando a pena independentemente de quaisquer fins, no magnífico exemplo da punição do último condenado à morte numa ilha em que o Estado se dissolveu. Hegel, por seu turno, considera a pena como um modo de honrar 2

Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 o criminoso e não como um instrumento o serviço da sociedade, através do qual a dignidade do criminoso como pessoa possa ser prejudicada. Por outro lado, a pena é em Hegel uma consequência lógica do crime, pois sendo a negação deste constitui a reafirmação dialética do Direito. A ideia retributiva não abandonou o pensamento contemporâneo mas tende a justificarse hoje pela eficácia preventiva-geral do Direito Penal. Assim, a defesa da ideia retributiva fazse, presentemente, sobretudo na perspetiva de que a retribuição é o único modo de demonstrar a eficácia das penas e garantir as expectativas dos cidadãos relativamente à punição dos criminosos. A teoria retributiva parte de uma ideia de responsabilidade individual baseada no liberum arbitrium indiferentiae, que o conhecimento científico não permite comprovar. Somente é aceitável presumir que as pessoas são livres na medida em que a sociedade e o Direito reconhecem a responsabilidade individual (aceita-se a causa na medida em que se assume a consequência). E mesmo que se reconhecesse, em abstrato, a liberdade da vontade, ter-se-ia de nega-la na maior parte dos criminosos que chegam ao crime por um processo social conhecido da criminologia. De qualquer modo, um pressuposto tão frágil não será suficiente para legitimar uma teoria retributiva radical. Por outro lado, há uma segunda crítica decisiva, que provém do terreno jurídico-constitucional: a retribuição tem um pressuposto – a culpa ética –, surgindo como sua consequência necessária. Ora a intervenção do Estado investido do seu poder punitivo não pode servir para sancionar esta culpa. Na verdade, nem os meios do processo penal podem atingir este nível profundo, nem a própria pena é adequada a uma intervenção na personalidade de cada criminoso. Aliás, não cabe ao Estado promover a Ética ou a Moral em si mesmas, mas apenas na medida indispensável à preservação das condições sociais de existência. O chamado princípio da necessidade da pena, consagrado no artigo 18.º, n.º2 CRP, postula que a pena só seja aplicada quando for necessária para a preservação da sociedade. Uma outra perspetiva sobre os fins das penas é a da prevenção geral. A prevenção geral justifica a pena pela intimidação dos cidadãos relativamente à violação da lei penal. É esta a linha de pensamento que já se encontra em Platão (Protágoras) e que foi desenvolvida por Anselm Von Feuerbach. Segundo este autor, a pena serviria para impedir (psicologicamente) quem tivesse tendências contrárias ao Direito de se determinar por elas. A prevenção geral contém, apenas, na sua lógica interna, um pensamento de intimidação, mas justifica-se, mais profundamente, pelo fortalecimento dos juízos de valor social dos cidadãos, que depende da cominação e da aplicação de penas. À prevenção geral negativa associa-se, assim, uma prevenção geral positiva, que consiste no fortalecimento das expectativas sobre a eficácia da justiça penal. Também é inegável que a pena preenche necessidades de retribuição, explicáveis num plano psicanalítico, cuja não observação pode pôr em perigo a paz pública. A satisfação destas necessidades produz um efeito apaziguador, constatável empiricamente, embora seja discutível se é a severidade ou sobretudo a prontidão da aplicação das penas que gera o efeito inibidor e o fortalecimento da crença na validade do Direito. As principais críticas contra a prevenção geral dirigem-se à sua legitimidade, enquanto fundamento e medida exclusiva das sanções criminais. A primeira crítica observa que o interesse público não pode justificar que se inflija ao indivíduo qualquer pena. A pessoa humana não é, em caso algum, um meio ao serviço de fins sociais. O artigo 1.º CRP, ao consagrar a essencial dignidade da pessoa humana, inibir-nos-ia de adotar esta posição sobre os fins das penas. Uma outra crítica salienta que este pensamento não consegue justificar a atribuição da pena ao criminoso por algo que ele tenha feito e com base na medida da gravidade do facto – a pena deixaria de poder ser vista como consequência do crime. Finalmente, a prevenção especial ou individual considera que o fim das penas é a intervenção sobre o cidadão delinquente, através da coação psicológica, inibindo-o da prática de crimes ou eliminando nele a disposição para delinquir. O pensamento preventivo-especial sedia-se no entendimento 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 filosófico de que a virtude se aprende e se ensina (Protágoras). Mas o desenvolvimento global e coerente desta conceção só foi possível a partir do século XVII, com uma nova visão da pena privativa de liberdade e com a fundamentação do Direito no contrato social, que levou a procurar como sentido da pena a sua necessidade estrita (só a pena necessária é legítima – V. Liszt). Von Liszt distingue, conforme a personalidade do agente, três funções preventivasespeciais da pena: a intimidação, o melhoramento e a eliminação do criminoso. Mas também a prevenção especial é inaceitável como fim exclusivo das penas, por várias razões: ela conduz a consequências difíceis de aceitar, tanto no plano ético como ao nível jurídico-constitucional. Crimes muito graves poderiam ficar impunes se não existisse perigo de reincidência e crimes menos graves poderiam justificar a prisão perpétua ou a morte. A investigação empírica não permite apoiar em dados seguros a prognose sobre a delinquência futura. Por outro lado, a pena é criminógena, de modo que as próprias condenações aumentam as probabilidades de reincidência. A prevenção especial entra em conflito com o princípio da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º2 CRP), na medida em que é discutível que justifique a criminalização de condutas. Se a recuperação ou a intimidação do delinquente são falíveis, será legítimo utiliza meios tão graves para a realização incerta desses fins?.

Fins das penas e princípios constitucionais do Direito Penal: nenhuma das teorias dos fins das penas logra, pelas suas forças exclusivas, dar uma resposta satisfatória ao problema da legitimidade da pena. As teorias sobre os fins das penas pretendem resolver um problema mal colocado – o dos fins ideais das penas. A esses fins ideiais contrapõem-se a amarga necessidade de punir, devendo toda a discussão sobre os fins das penas estar condicionada pelo seu conteúdo histórico e pela sua função social. O ponto de partida da discussão é, deste modo, a realidade da pena e não aquilo que ela idealmente deveria ser. Não terá cabimento, consequentemente, proclamar que a pena não deve ser retributiva onde a primeira necessidade humana que a pena pública satisfaz é a da substituição psicológica da vingança privada. O problema fundamental será, então, saber se a pena poderá cumprir aquele destino racionalmente (e de forma eticamente aceitável) e ser instrumento de efeitos sociais uteis, para além das razões ancestrais da sua instituição. Esta última análise não implica o apelo a uma pura racionalidade de fins, mas a uma racionalidade ditada pelas razoes de organização social. Há, assim, uma ligação visceral da reflexão sobre os fins das penas às teorias sobre o fundamento e a legitimidade do Estado. Essa ligação tem sido estabelecida através da doutrina contratualista. Tanto Beccaria como Von Liszt proclamaram como premissa de todo o pensamento sobre a pena a ideia de que só a pena necessária é legítima. A legitimidade era, para estes autores, referida à necessidade, na perspetiva da proteção da liberdade de cada cidadão – base racional do contrato social. A existência da comunidade social tem, todavia, uma sedimentação mais profunda do que a lógica contratualista supõe. As necessidades que justificam a comunidade estatal não se reduzem à liberdade de cada um e não são livre e renovadamente discutíveis por cada indivíduo, sempre e a todo o tempo, dependendo antes de consensos temporários ou de maiorias contingentes. O contratualismo apela ao mito de um estado original anterior à formação do Estado (mito e argumento racional apenas e não histórico), sonegando a integração dos indivíduos na comunidade como facto histórico e o reconhecimento de que a máxima realização individual pode ser realização de fins coletivos pelo indivíduo. Mesmo a eleição da máxima realização individual como fim social não está vinculada a uma lógica contratualista. Ela é, tão só, o produto da história que gerou comunidades igualitárias e democráticas que prezam a sua identidade e os seus valores. As razões da organização social são, deste modo, ideias culturais em que se baseia a comunidade social. Estas ideias são o cimento da validade do

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 sistema jurídico e adquirem a sua expressão formal na Constituição. A substituição psicológica da vingança privada que a pena assegura enquanto retribuição racionaliza-se através de dois princípios constitucionais: o princípio da culpa, derivado da essencial dignidade da pessoa humana (artigo 1.º CRP), e o princípio da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º2 CRP). A retribuição justifica-se racionalmente, na verdade, por basear a pena na dimensão ética do facto praticado. Mas a retribuição excederá a legitimidade do ius puniendi do Estado, quando prosseguir como um fim em si a expiação moral do delinquente. Assim, a retribuição ancora-se na necessidade social em dois planos: ao nível do controlo das emoções geradas pelo crime – da pacificação social – e ao nível da proteção perante o delinquente. A pena retributiva só é, deste modo, legítima se for necessária preventivamente. Por outro lado, quer a prevenção geral, quer a prevenção especial apenas se legitimam, como fins das penas, através da pena da culpa. A culpa funciona como limite da pena preventiva. Em suma, tanto a retribuição como a prevenção se articulam, obrigatoriamente, com os princípios constitucionais (da culpa e da necessidade da pena, nomeadamente), acabando por conduzir a soluções coincidentes quanto aos limites das penas. As antinomias entre os fins das penas e os modelos de política criminal: à controvérsia clássica entre as teorias dos fins das penas sucedeu, contemporaneamente, o confronto entre os modelos de política criminal. A política criminal é o conjunto das soluções normativas ou puramente estratégicas tendentes a uma otimização do controlo do crime, na definição compreensiva de Kaiser. A pena desapareceu como premissa do controlo do crime e a discussão sobre os seus fins legítimos foi relativizada, por se reconhecer que a sua aplicação é absolutamente necessária. A política criminal não é, no entanto, uma descoberta contemporânea. A um modelo fundamentalmente retributivo, que Figueiredo Dias designa de azul, em que a política criminal se ocultava sob a linguagem ética, sucedeu um modelo preventivo-especial, o modelo vermelho, e a estes dois a própria crise, a descrença e a desorganização dos modelos de política criminal. Na realidade, contestada a conceção penal retributiva, assente numa conceção metafísica da pena, por ser inadequada aos fins legítimos da intervenção penal, e frustrada a via preventiva-especial, por ter sido simultaneamente inoperante e atentatória da dignidade da pessoa humana, assoma na crise da política criminal o que Figueiredo Dias designa como paradigma emergente, o modelo verde, que organiza o controlo do crime a partir de uma teia de princípios constitucionais (legalidade, culpa, necessidade da pena) e de uma estratégia de descriminalização, desjudiciarização, socialização e diversificação (substituição da pena de prisão por sanções alternativas). Os modelos de política criminal têm relações antinómicas entre si, pois as soluções que propugnam são, em certos casos, necessariamente contraditórias. A ideia central a partir da qual se constroem permite, no entanto, que os diversos fins das penas sirvam a lógica uns dos outros. Mas, em todo o caso, não haverá uma harmonia absoluta entre as soluções dos modelos, pois nem sempre a pena retributiva é justificada pela prevenção e nem sempre a pena preventiva é justificada pela retribuição. As antinomias entre os fins das penas permanecem, pois, nos modelos politicocriminais. Ao modelo verde, fortemente apoiado na prevenção geral positiva, contrapõe-se a própria renúncia à política criminal. O estado atual da discussão caracteriza-se por uma contraposição fundamental entre o sem e o não á política criminal. Contra a política criminal como conjunto de estratégias de controlo do crime funcionalizadoras do próprio Direito Penal, pronunciam-se aqueles que rejeitam quaisquer soluções distintas da resposta ao crime pela pena da culpa, quer em nome da ética e da dignidade da pessoa humana, quer em nome de um modelo realista e operativo da própria prevenção geral. Consequentemente, a ideia de que só

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 o modelo verde conseguirá realizar os princípios constitucionais da culpa e da necessidade da pena e assegurar a racionalidade do poder punitivo do Estado democrático e social de direito torna-se também discutível. Aliás, a um único paradigma emergente deve contrapor-se a desconstrução dos velhos modelos à luz do estado atual da discussão. E, por outro lado, a própria emergência de um novo paradigma só se verifica no confronto com a descrença global na política criminal, como já se referiu. O modelo verde baseia-se, por outro lado, em premissas que exigem discussão. Desde logo, a prevenção geral de integração utiliza, ao que parece, a função psicanalítica da pena – a representação de estabilidade e segurança que ela gera –, função meramente simbólica, como fundamento da pena, na perspetiva agora objetivista da necessidade. Porém, a própria função psicanalítica da pena poderia justificar, através de uma abordagem científica da mesma natureza (psicanalítica), a rejeição pura e simples do plano tradicional da necessidade da pena. Onde a necessidade resultar apenas da procura de uma terapia simbólica contra a insegurança gerada pelo crime, a pena surgirá como resposta a carências várias que eticamente não devem ser satisfeitas por esse meio. E mesmo que se rejeite, como Figueiredo Dias, uma fundamentação psicológica da prevenção geral de integração, contrapondo-se-lhe a ideia de que as expectativas geradas pelo crime não devem ser praticamente conexionadas com o clamor social da pena mas normativamente implicadas com a incolumidade da crença social na validade e na vigência da norma violada, nada nos diz que a representação dessa mesma incolumidade exige apenas o funcionamento célere e eficaz da justiça penal e já não a dureza do castigo exemplar. Ora, o que é essencialmente criticável é que a privação de liberdade, embora confinada aos limites da culpa, se justifique pela manutenção de uma crença. A prevenção geral só será critério racional de definição dos fins das penas se se basear um efeito objetivo constatável, de alguma forma mensurável – a tradicional intimidação –, mesmo que ele seja alcançado pelos mecanismos psicanalíticos da crença na validade da norma violada. Na realidade, a prevenção geral positiva ou de integração, quando parece trilhar os caminhos da renúncia à investigação empírica e à análise do efeito dissuasor das espécies particulares de penas, é um discurso evasivo. A prevenção geral positiva só pode corresponder a um meio de intimidação. E a possibilidade de esta se operar nos diversos grupos de cidadãos é o único parâmetro objetivo e científico da necessidade de punir. Igualmente discutíveis são a desjuridicização e a diversificação propostas pelo modelo verde. As dúvidas que tais soluções suscitam são geradas pela duvidosa legitimidade de um modelo anti-processual e pela substituição do poder dos juízes pelo poder dos grupos sociais. Se o fracasso dos modelos de política criminal reintegradora, a cargo de instituições estatais, desembocou na anulação organizada da pessoa do delinquente, a institucionalização do poder dos grupos não promoverá, ainda em maior grau, tal anulação?

Conclusão sobre o sentido e a função do Direito Penal: argumentação sobre a legitimidade da incriminação e da punição de condutas; os princípios no Direito Penal : a abertura da ciência jurídico penal a uma perspetiva específica de legitimação, historicamente veiculada pelo conceito de bem jurídico, tem persistido, nos dias de hoje, através da aceitação de uma pluralidade de pontos de vista. A seleção das condutas incriminadoras no Estado de Direito democrático e social pressupõe não só a tradicional fundamentação na necessidade, de raiz liberal, mas também uma fundamentação de oportunidade ou de estratégia políticacriminal. E a par destes dois topoi surge ainda uma relação do Direito Penal com a ética geral e com a ética da democracia, através da ideia de um consenso amplo que impede a opressão das minorias. Estes pontos de referência da discussão legitimadora apenas indicam uma perspetiva sobre a seleção de condutas criminosas. Não são, na verdade, critérios, mas meros pontos de

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 vista relevantes na lógica do Estado de Direito democrático e social. Alguns exemplos permitem ilustrar legitimador que se orienta por esta via. A discussão sobre a necessidade de proteção do bem jurídico surge a propósito da incriminação de condutas meramente contrárias à Moral, segundo as representações sociais dominante. Como sustenta Roxin, a proteção de normas éticas só se justificaria, no Estado de Direito, para evitar efeitos danosos para a sociedade. O problema da necessidade de proteção devido a importância para a sociedade do efeito visado antecede, ou substitui mesmo, uma discussão ociosa sobre se as próprias normas éticas são bens jurídicos. Há outras condutas que, embora possam afetar bens necessários à preservação da sociedade, não carecem de cominação penal porque tais bens são protegidos eficazmente (ou mais eficazmente) de outra forma. A exigência de relevo ético prévio das condutas impedirá que condutas tidas como eticamente neutras e normalmente aceites, como fumar, sejam incriminadas. A necessidade de amplo consenso deverá obstar a que o Direito Penal se torne arma política da maioria e ignore as perspetivas de parte da população. A contradição axiológica entre a incriminação de certas condutas e outras soluções do sistema jurídico revelar-se-á, por exemplo, na incriminação de condutas contra a preservação das espécies animais, associada à irrelevância penal das condutas manipuladoras ou destrutivas da vida humana em formação numa fase pré ou extra uterina (artigo 139.º CP). Estes exemplos não são, porém, expressão de um programa de política criminal, mas simples modos de abordagem da legitimidade das incriminações: o processo de legitimação do Direito Penal no Estado de Direito democrático e social não exige um Código Penal com uma única espécie de tipos criminais, mas sim uma forma de justificar racionalmente os tipos criminais consagrados pelo legislador. No entanto, não se deve confundir a legitimação com a mera formulação de princípios. A legitimação tem de ser, pela própria natureza das coisas, extra-sistemática, isto é, constituída por razões que explicam a instituição histórica do sistema, a sua continuidade e a sua vigência no momento presente, enquanto os princípios são mera expressão de uma racionalidade inerente a um conjunto de normas ou objetivos gerais do sistema. Deste modo, também em certo sentido os princípios terão de ser legitimados, como é claramente visível, hoje em dia, quanto ao princípio da culpa. Há, no entanto, uma vocação de cruzamento entre as temáticas da legitimação e dos princípios que consiste na moldagem do conteúdo dos princípios do sistema, e portanto da racionalidade interna do mesmo, por aquilo que torna compreensível que o princípio da culpa tenha adquirido sentidos e funções não decorrentes direta e necessariamente do seu conteúdo original, ou que o princípio da necessidade da pena tenha aumentado a sua importância orientadora nos sistemas jurídico-penais de hoje. Deveremos então definir algumas perspetivas sobre os princípios que presidem à realização prática das normas do Direito Penal, à sua interpretação e à sua aplicação.

Colocação da questão tratada sob a rubrica fins das penas e das medidas de segurança: identifica-se, por vezes, no manuais, a questão de saber qual a função que o Direito Penal desempenha, ou deve desempenhar, em determinada ordem jurídico-social, com a questão de saber como se justifica que fim ou fins são de atribuir à pena cominada a cada crime em particular. Isto explica-se porque existe uma íntima conexão entre as duas questões, uma vez que, a legitimação e finalidades da pena, num Direito Penal moderno, não pode abstrair da função que desempenha o Direito Penal num Estado de Direito democrático. Trata-se, no entanto, de duas

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 questões distintas que convém tratar autonomamente, embora tendo sempre presente a sua interligação. A função do Direito Penal, que se retira dos fins que a Constituição assinala ao Estado de Direito democrático é, como vimos, a proteção subsidiária de bens jurídicos e, desse modo, da livre expansão da personalidade do indivíduo e da manutenção do sistema social global orientado para essa livre expansão. Daqui infere-se a resposta à questão de saber que comportamentos está o Estado legitimado a considerar crime e ameaçar com pena. É, portanto, uma questão que diz respeito à criação dos crimes em abstrato. No âmbito da teoria do fins das penas o que se trata de averiguar não é a função do Direito Penal, nem é a questão de saber que comportamentos devem ou não ser criminalizados atendendo àquela função; trata-se, sim, de determinar de que modo deve atuar a pena para realizar a função do Direito Penal. É a resposta a esta questão que se procura encontrar com a teoria dos fins das penas.

As teorias tradicionais sobre os fins das penas: são, fundamentalmente, três as conceções sobre os fins das penas que desde a antiguidade clássica se opõem e que ainda hoje, em diversas combinações, determinam a discussão nesta matéria e procuram apresentar uma explicação convincente para a imposição ao homem desse mal que é a pena: a teoria da retribuição, a teoria da prevenção especial e a teoria da prevenção geral. a. A teoria da retribuição ou da expiação: segundo a qual a pena visa retribuir ou reparar o mal do crime e é medida por esse mal, pelo mal passado. A ideia de retribuição significa que se impõe um mal a alguém que praticou outro mal. O seu sentido está ligado à ideia de castigo, expiação, o que tem a ver com a ideia religiosa de punição por um certo pecado. b. Teoria da prevenção geral: nos termos do qual a pena visa evitar a prática de futuros crimes da generalidade das pessoas. c. A teoria da prevenção especial: segundo a qual a pena tem por fim evitar a prática de futuros crimes pelo próprio delinquente que a sofre.

Teorias da retribuição: segundo as teorias retributivas, o sentido ou fim da pena funda-se em que o mal da pena se causa ao criminoso surge como consequência, estabelecida pelo Direito, de uma falta culposamente realizada. A justificação para a imposição desse mal não depende de quaisquer fins a alcançar com a pena, mas,

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 tão só, da realização de uma ideia de justiça. A pena contém, portanto, o fim em si mesma, justifica-se por si própria. É «um imperativo categórico de justiça» (Kant), ou «a negação da negação do Direito» (Hegel). A ideia de que a pena contém o fim em si mesmo, de que ela é exigida para alcançar a realização da justiça, está bem patente na formulação de Kant. Para este autor a pena é algo que se impõe ao homem, que é indiscutível e não necessita de fundamentação. Não visa realizar quaisquer fins utilitários exteriores a ela; contém «o fim em si mesma» que é o castigo do indivíduo por ter praticado um facto ilícito culposamente. O sentido da pena não está, portanto, na prossecução de qualquer fim socialmente útil mas sim em que ela, através da imposição de um mal ao delinquente, expia, compensa, retribui de modo justo, a culpa que o autor carrega sobre si pelo seu facto. A culpa do agente pelo facto praticado tem, portanto, que ser compensada pela imposição de uma pena justa que corresponda na sua duração e severidade à gravidade do crime. É o velho princípio taliónico «olho por olho, dente por dente», que na prática é inexequível. A formulação de Hegel, tal como é apresentada historicamente, significa o mesmo que a de Kant. Para Hegel a pena justifica-se pela necessidade de restabelecer a concordância da vontade geral, representada pela Ordem Jurídica, com a vontade especial do delinquente, concordância essa que foi quebrada pelo delito. Isso consegue-se negando (com a pena) a negação da vontade geral pela vontade especial do delinquente, de acordo com o método dialético de Hegel. A pena é, portanto, a afirmação do Direito negado pelo delinquente ao praticar o crime; é a negação da negação do Direito. O crime é negado, expiando, destruído, pelo sofrimento da pena imposta ao delinquente, restabelecendo-se assim o Direito violado. Hegel levava a sua construção ao extremo, a ponto de defender a pena como direito do delinquente, porque foi através de um ato livre da sua vontade que ele praticou o crime, que ele negou o Direito, e que, portanto, exigiu que lhe fosse aplicada uma pena, para repor o Direito. Hegel distingue-se de Kant, na medida em que substitui o princípio de Talião pelo princípio da igualdade do valor do crime e da pena. Mas, em plena concordância, também não reconhece à pena quaisquer fins preventivos, quer gerais, quer especiais.  Crítica à teoria da retribuição: A teoria da retribuição é hoje insustentável do ponto de vista científico. Pois, se é verdade que a função do Direito Penal consiste na proteção subsidiária de bens jurídicos, então o Direito Penal não pode servir-se, para realizar a sua função, de uma pena que

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 abstrai expressamente de todos os fins sociais. Além disso, a ideia de retribuição também exige a pena quando ela é desnecessária para a proteção de bens jurídicos. Ora, dado que a teoria da retribuição assenta na compensação da culpa do agente através da imposição do mal da pena, esta seria de exigir sempre que houvesse culpa para compensar ou retribuir. Nesta perspetiva, a pena deixa de servir a função do Direito Penal e perde a sua legitimação social. Acresce que, a ideia de que se pode compensar ou anular um mal com outro mal é "um puro ato de fé irracional", como diz Roxin. Diga-se ainda que, a suposição de uma culpa que deve ser retribuída não pode, só por si, levar à aplicação de uma pena; a culpa individual está ligada à existência da liberdade da vontade (o livre arbítrio), que é indemonstrável, como, de resto, admitem os próprios partidários

da

teoria

da

retribuição.

Essa

impossibilidade

de

demonstração da liberdade da vontade impede que ela possa funcionar como único fundamento da intervenção do Estado. Contra a teoria da retribuição falam, por último, as suas indesejáveis consequências políticocriminais. Uma execução da pena que parta do princípio da imposição de um mal não pode ser terapêutica adequada para a falta de integração social, que muitas vezes é a causa do crime, e, por isso, não é meio apropriado para a luta contra o crime. Também não é aceitável a "teoria da expiação", como reformulação da "teoria da retribuição”. É evidente que o conceito da expiação é apenas uma palavra diferente para definir a retribuição. No entanto, muitas vezes, com a palavra expiação quer-se significar que o autor aceita interiormente a pena como justa compensação da culpa, assimila espiritualmente o seu comportamento delituoso, purifica-se e recupera a sua integridade humana e social através da expiação, através do castigo. Tudo isto é, naturalmente desejável, mas não pode servir para justificar a pena retributiva, porque emoções desse tipo, além de raramente acontecerem, constituem atos da personalidade moral de cada um que não se impõem à força e que, de resto, também podem verificar-se quando a pena, em vez de retributiva, vise fins utilitários. Há, no entanto, que reconhecer às teorias retributivas ou absolutas o mérito de terem erigido o princípio da culpa – o princípio de que toda a pena tem como pressuposto a culpa e a medida da pena

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 tem como limite a medida da culpa - em pedra basilar e inultrapassável da aplicação da pena. Mas não podemos esquecer que, se toda a culpa pressupõe a pena, nem toda a culpa exige a aplicação de uma pena.

Prevenção especial: No extremo oposto da teoria da retribuição está a teoria da prevenção especial, segundo a qual o fim da pena é prevenir que o autor cometa novos delitos no futuro. Ao contrário da conceção absoluta da teoria da retribuição, a prevenção especial é uma teoria relativa, porque está ligada aos fins de prevenção de crime. Na sua moderna formulação a teoria da prevenção especial remonta à época do iluminismo. Expandiu-se entre os finais do Séc. XVI e o Séc. XIX. Mas no Séc. XIX retrocedeu por influência do idealismo alemão, face à teoria da retribuição. Nos finais do Séc. XIX Von Liszt e a sua escola fazem-na ressurgir. A prevenção especial pode ser realizada, segundo os seus defensores, por três formas: a) Corrigindo o que é corrigível (ou seja, ressocializando); b) Intimidando o que é intimidável; c) Inocuizando (tornando inofensivo) mediante a privação da liberdade, os que nem são corrigíveis nem intimidáveis. Esta conceção depara com dificuldades de diversa ordem. A sua maior falha está no facto de não fornecer qualquer princípio para a medida da pena, podendo levar a que o delinquente seja condenado numa pena de duração indeterminada, que dure até ele ser ressocializado. Isso levaria a que, a delitos de pouca gravidade, quando constituíssem sintoma de uma perturbação profunda da personalidade, pudesse ser imposta uma pena de prisão por muitos anos. Além disso, nos termos desta teoria nada obstaria a que fosse aplicada uma pena ressocializadora quando alguém mostrasse uma forte perigosidade criminal, sem que se provasse que a pessoa tinha cometido um facto punível concreto. Ela permitiria limitar a liberdade individual muito para além do que é admissível e desejável num Estado de Direito democrático. Outra objeção que tem sido colocada à teoria da prevenção especial é que, não se vê com que direito pode o Estado educar e corrigir homens adultos. Kant e Hegel viam nisto uma ofensa à dignidade humana. E, de facto, esta teoria deixa o cidadão mais ao arbítrio do poder Estatal do que a própria teoria da retribuição. Acresce que esta teoria não dá explicação para a aplicação da pena a delinquentes que não necessitam de ressocialização

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 Teoria da prevenção geral: É também uma teoria relativa que visa fins preventivos mas, ao contrário da anterior, não vê o fim da pena na sua influência sobre o delinquente que cometeu o crime, mas sim nos seus efeitos intimidatórios sobre a generalidade das pessoas. A pena tem por fim intimidar as pessoas para que elas não cometam crimes. Modernamente a teoria da prevenção geral encontrou o seu grande precursor em Feuerbach, para o qual o fim da pena "na lei é a intimidação de todos …. O fim da aplicação da mesma é fundamentar a eficácia da ameaça penal. Na Doutrina actual distinguem-se duas vertentes da prevenção geral - a prevenção geral negativa ou de intimidação e a prevenção geral positiva ou de integração . 3.5.1 A prevenção geral negativa ou de intimidação vê o fim da pena na intimidação dos cidadãos que estão em perigo de cometer crimes idênticos. A pena funciona para evitar a repetição de crimes, protegendo-se, desse modo, os bens jurídicos. A prevenção geral positiva ou de integração entende que o fim da pena é manter e reforçar a confiança dos indivíduos no Direito, evitando-se, desse modo, a prática de crimes e, portanto, a lesão de bens jurídicos. A pena tem, assim, a função de mostrar a solidez da Ordem Jurídica face à comunidade e, desse modo, de fortalecer a confiança jurídica da população, ou, como diz Figueiredo Dias, a pena é a forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. A este ponto de vista positivo é atribuído hoje muito maior importância do que ao dos puros efeitos intimidatórios. Na prevenção geral positiva compreendem-se três fins e efeitos principais:  um efeito pedagógico-social, o exercício de fidelidade ao Direito que é provocado na população pelo funcionamento da justiça penal;  um efeito de confiança, que se verifica quando o cidadão vê que o Direito se impõe;  um efeito de satisfação, que se produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza com base na sanção pela violação do Direito e vê resolvido o conflito com o autor. A doutrina defende hoje, maioritariamente, a prevenção geral positiva.  Crítica: Kant e Hegel diziam contra esta teoria que, se o fim da prevenção geral é intimidar os outros, então utiliza-se o delinquente como exemplo

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 para os outros; transforma-se a pessoa em objeto para se alcançar um fim, o que é incompatível com a dignidade humana. Esta é a crítica tradicional à teoria da prevenção geral. Outra crítica de que tem sido alvo a prevenção geral é a de que ela, tal como a prevenção especial, não apresenta qualquer critério de limitação da duração da pena, podendo, no caso concreto, ser ultrapassada a medida da pena desejável e permitida num Estado de Direito democrático. Portanto, haveria sempre o perigo de a prevenção geral se transformar em terror estatal, pois as penas mais graves são mais intimidativas. Por outro lado, não se conseguiu provar até agora os resultados práticos da prevenção geral. O homem médio, em situações normais poderá deixar-se influenciar pela ameaça da pena, mas os delinquentes profissionais, ou os delinquentes impulsivos ocasionais, não são motiváveis pela ameaça da pena. Acresce que a prevenção geral partilha o defeito da teoria da retribuição de não poder atribuir à execução da pena qualquer significado no sentido da recuperação do delinquente. Isto vale para as duas formas de prevenção geral na medida em que ela se dirige à generalidade das pessoas e não ao autor. Mas atinge particularmente a prevenção geral negativa, porque uma execução da pena que vise a simples intimidação dos cidadãos mais promove a reincidência do que a impede e, portanto, mais prejudica do que beneficia o combate contra a criminalidade. É certo que a prevenção geral positiva apresenta evidentes vantagens em relação à prevenção geral negativa. Mas ela só é sustentável num Estado de Direito democrático se se recorrer, como faz, entre nós, por exemplo, Figueiredo Dias, a princípios de garantia do Estado de Direito para lhe restringir os efeitos funestos. Pois, senão, a sua lógica pura leva a considerar o sistema social como bem supremo e os cidadãos como objeto de prevenção, como destinatários de uma ação do Estado que serve para exercitar a segurança e a confiança no Direito. Para o Prof. Figueiredo Dias, «a pena só pode ter finalidades relativas de

prevenção geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação" e a "prevenção geral positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida», assume o primeiro lugar como finalidade da pena. A culpa funciona como limite da pena, é um

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 pressuposto da aplicação da pena e um limite inultrapassável desta. É pressuposto indispensável «por razões de limitação ao poder punitivo do

Estado ligadas à necessidade de garantia dos direitos individuais e liberdades», imposta pelo Estado de Direito democrático.

As teorias ecléticas ou unificadoras retributivas: Estas teorias consistem numa combinação das conceções até agora expostas. Veem a retribuição, a prevenção geral e especial como fins que a pena deve prosseguir simultaneamente. Ainda hoje se acentua, frequentemente, que só se pode falar de uma verdadeira teoria unificadora, no sentido tradicional, quando os fins preventivos não atinjam o carácter retributivo da pena e sejam prosseguidos conjuntamente, apenas no âmbito traçado pela retribuição.  Crítica: Esta teoria é de rejeitar porque, como simples modificação da teoria da retribuição, está exposta a todas as objeções contra ela aduzidas e, por isso, tal como ela, também não pode hoje ser seguida.

A teoria dialética unificadora da prevenção: Esta teoria recusa a retribuição como fim da pena. Segundo ela, a pena só tem fins preventivos gerais e especiais. O seu precursor foi Roxin, segundo o qual a teoria procura afastar a posição absoluta de qualquer dos critérios preventivos, através de um sistema de mútua complementaridade e limitação de modo a obter uma conceção preventiva abrangente que inclua os aspetos positivos das teorias preventivas e a eliminar os aspetos negativos das mesmas. Roxin sustenta que «o ponto de partida de todas as

teorias da pena tem que estar no reconhecimento de que o fim da pena só pode ser um fim de prevenção». Pois, como as normas penais só são justificadas se visarem a proteção da liberdade individual ou de uma ordem social que a sirva, a pena concreta só pode servir para realizar essa função se prosseguir fins preventivos. Daí resulta que a prevenção geral e especial têm de permanecer uma ao lado da outra como fins da pena. Pois, como os factos puníveis tanto podem ser impedidos pela atuação sobre o delinquente como sobre a generalidade das pessoas, ambos os meios de atuação são igualmente legítimos e devem ser ordenados num fim abrangente. A prossecução simultânea dos fins de prevenção geral e especial não é problemática quando a pena aplicada na condenação em concreto é adequada a atingir ambos os fins. A conceção também não depara com dificuldades, quando, no caso concreto, apenas a componente de prevenção geral fundamenta a sanção, dado

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 que, o fim preventivo da pena se mantém mesmo que não seja necessária a prevenção simultaneamente em todos os seus aspetos. Mas este pensamento é importante, antes de mais, quando o delinquente se recusa a aceitar uma colaboração na execução de uma pena ressocializadora. Uma pena que pretenda eliminar a associalização do autor só pode ter êxito pedagógico quando é estabelecida uma relação de cooperação com o delinquente. Uma "socialização forçada" não é admissível face aos artigos. 1º, 2º, 18º, nº 1 e 2, 25º, nº. 2, entre outros, da CRP. s. Se o delinquente recusa a sua colaboração na ressocialização, deve, é certo, ser despertada a sua disposição para isso, na medida do possível, mas não lhe pode ser imposta à força. A pena tem que ser, naturalmente, também executada nesses casos, mas então bastarão as necessidades de prevenção geral para a justificar. Quando ambos os objetivos (de prevenção geral e especial) exigem medidas da pena diferentes pode surgir um conflito entre os dois tipos de prevenção. m tais casos é necessário ponderar os fins de prevenção geral e especial e estabelecer uma ordem de prioridades. Por outro lado, deve dar-se primazia às necessidades de prevenção especial apenas na medida em que ainda sejam satisfeitas as necessidades mínimas de prevenção geral. A pena não deve, portanto, por causa dos efeitos de prevenção especial, ser tão reduzida que já não seja levada a sério pela população, uma vez que isso abalaria a confiança na ordem jurídica e impeliria à imitação. Em muitos casos, (embora nem sempre), o limite mínimo da medida legal da pena cuida já da observância do mínimo de prevenção geral. O significado da prevenção geral e da prevenção especial é também diferentemente acentuado durante o processo de imposição do Direito Penal. O fim da ameaça penal é, num primeiro momento de pura prevenção geral (incriminação). No momento da imposição da pena na sentença, pelo contrário, são de considerar do mesmo modo as necessidades de prevenção geral e especial. Finalmente, no momento da execução da pena, a prevenção especial toma lugar proeminente. Isto não deve, contudo, ser entendido no sentido de que os fins da pena se repartem, numa separação rigorosa, pelos diversos estádios de realização do Direito Penal. Não se trata de uma estratificação, mas sim de uma diferente importância relativa desses fins ao longo do processo de imposição do Direito Penal. A "teoria dialética unificadora da prevenção" chama, portanto, para primeiro plano, ora um, ora outro dos pontos de vista. É certo que avança para primeiro lugar o fim preventivo especial de ressocialização quando ambos os fins estão em conflito; mas, em compensação,

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 a prevenção geral domina as cominações penais e justifica, só por si, a pena quando faltem ou falhem os fins de prevenção especial, enquanto que, não pode haver uma pena preventiva especial sem qualquer objetivo de prevenção geral, apesar da dominância absoluta dos fins ressocializadores durante a fase da execução da pena. A teoria unificadora da prevenção, tal como é defendida por Roxin, enquadra ambos os fins num sistema cuidadosamente ponderado que só no entrelaçar dos seus elementos dá fundamento teórico à punição estatal. Mas recusa, em absoluto, o fim de retribuição. Mas a recusa da retribuição como fim da pena não implica que a culpa não tenha qualquer papel a desempenhar na teoria unificadora da prevenção. Ao contrário, o princípio da culpa desempenha um papel decisivo na limitação da pena. A pena não pode ultrapassar, na sua duração, a medida da culpa, mesmo que tal seja desejável para satisfação dos interesses de prevenção geral ou especial. O princípio da culpa tem uma função liberal, totalmente independente de qualquer ideia de retribuição e essa função tem de se manter intacta num Direito Penal moderno. Tal princípio constitui um limite ao poder de punir do Estado, na medida em que, seja qual for a pena exigida por necessidades de prevenção, a sua medida não poderá ser superior à medida da culpa. Esta constitui o limite máximo até ao qual pode ir a privação da liberdade do delinquente, sem violação da dignidade humana. Esta exigência de que a pena em caso algum poderá ser superior à culpa do autor é hoje geralmente aceite, tal como é, em geral, reconhecido que este princípio tem consagração Constitucional, nomeadamente nos artigos. 1º e 25º, nº 1. Mas se nenhuma pena pode ir para além da culpa do agente, nada impede que a pena possa ficar aquém dos limites da culpa, na medida em que os fins preventivos o admitam. Esta teoria permite ainda eliminar as objeções que, em geral, são levantadas à utilização do conceito de culpa em Direito Penal, com base em que ela pressupõe o livre arbítrio que é indemonstrável. Na verdade a culpa pressupõe a liberdade do homem para se poder comportar de outro modo. Mas se a culpa não é vista como fundamento do poder de punir do Estado, mas apenas como um meio de o limitar na utilização da pena com fins preventivos, a legitimidade do seu reconhecimento como meio de preservar a liberdade dos cidadãos, não depende da sua comprovabilidade empírica. A sua suposição é um pressuposto normativo, uma "regra de jogo social", que se não pronuncia sobre a questão de saber como é configurada a liberdade humana. Simplesmente prescreve que o homem deve ser tratado pelo Estado, em princípio, como livre e capaz de responsabilidade. A questão da existência real de

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 uma liberdade da vontade pode e deve ser mantida entre parenteses porque é objetivamente indemonstrável. E como o princípio da culpa só serve como instrumento de limitação da prevenção, isso não ofende o indivíduo, antes o protege.

O problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, nomeadamente à luz da sua evolução em Portugal3: se o problema das finalidades das penas se conexiona diretamente com a questão da legitimação do direito de punir estatal, então é seguro toda esta questão se encontra co-naturalmente ligada à própria doutrina do Estado e à sua evolução. O caso português é, a este propósito, exemplar a vários títulos. Presente embora desde sempre na discussão teórica, bem se compreende que o problema dos fins das penas só se tenha ganho um explícito relacionamento com a doutrina do Estado desde que se iniciou a história da codificação em sentido moderno; quando precisamente começou também a questionar-se, em termos racionais secularizados, a própria fundamentação e legitimação do poder punitivo estatal. Bem podendo afirmar-se que até aí se procurava compreender teoricamente a pena como instrumento de justiça divida delegada, enquanto praticamente ela se assumia como instrumento destinado a cumprir – quantas vezes pelo terror – a vontade e os propósitos políticos do soberano. Assim aconteceu também em Portugal, sem prejuízo de dever assinalar-se que uma certa tradição de compilação das leis penais – no sentido permitido pelas conceções jurídicas medievais – se instaurou praticamente desde os primeiros tempos da nacionalidade. Já na Espanha visigótica o chamado Codex Legum Visigothorum, que chegou a exercer influência direta nos primeiros tempos também do reino de Portugal, continha inúmeras disposições jurídico-penais, tendentes sobretudo a combater as formas privadas de reação criminal. É verdade que cedo este conjunto de disposições foi subvertido, na sai aplicação prática, pelo Direito consuetudinário, com o recrudescimento inevitável dos instituto da vingança privada e da perda de paz. Com o fortalecimento do poder público e o renascimento do Direito Canónico e Romano, no entanto, desde 1221 que se restaurou a tendência para a publicização do ius puniendi, à qual correspondeu um esforço de elaboração legal, embora casuística, de todo o Direito Penal. As Ordenações Afonsinas (1446) compilaram, reformaram e complementaram esta legislação extravagante, contendo no seu Livro V (o chamado Liber Terribilis) aquilo que bem pode considerar-se o primeiro Código Penal e Processual Civil Português. A estas Ordenações se seguiram as Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603), que vigoraram, no que ao Direito Penal respeita, até ao Código Penal Português de 1852. A legislação penal das Ordenações era caracterizada pela ausência de parte geral, por uma parte especial de natureza eminentemente casuística e por penalidades em regra não previamente fixadas, desproporcionadas, desiguais e cruéis. Na evolução da sempre renovada discussão entre doutrinas retributivas e preventivas podem divisar-se certos períodos fundamentais. O primeiro determinado pela receção, a nível jurídico-penal, da ideologia própria do Estado liberal e individualista, corresponde à vigência do CP 1852. O seguinte, iniciado com a publicação da Reforma Penal de 1884, encontra expressão no CO 1886 e, se bem que com múltiplos aditamentos e modificações, estende-se até 1982. O último período tem início com a entrada em vigor deste CP, reformado a 1 outubro 1995; e pretende traduzir a Constituição político-criminal própria de um Estado de Direito contemporâneo, de cariz social e democrático.

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Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral, tomo I; Coimbra Editora, 2.ª Edição; Outubro 2012, Coimbra.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 As finalidades e a justificação da pena na época das Luzes e no CP 1852: foi a Constituição Portuguesa de 1822 que, também no domínio do Direito Penal, veio pôr fim à ideologia própria do ancien régime e propiciar a introdução dos princípios humanísticos e racionais do Iluminismo. Declarando solenemente, no artigo 10.º, que «nenhuma lei, muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade»; e no artigo seguinte que «toda a pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente. Ficam abolidas a tortura, a confiscação dos bens, a infâmia, o baraço e o pregão, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis e infamantes», a Lei Fundamental portuguesa dissociava definitivamente a Direito Penal das suas origens místicas, que clara e fortemente o haviam domando durante toda a Idade Média e mesmo durante a inteira vigência das Ordenações; para o tomar na sua correta veste de instituição humana estatal, subordinada a uma política criminal imanente e a uma teleologia racional. Assim o colocava, numa palavra, mesmo no centro histórico-espiritual daquilo que havia constituído o poderoso movimento – tão poderoso que ainda hoje se deve considerar longe de esgotado – do Iluminismo Penal. O seu propósito politico principal era dirigido à eliminação das penas arbitrárias e à limitação do poder do Estado absoluto no que respeita à medida da pena. A legitimação do direito de punir só podia provir agora dos termos do contrato social e conduzia a assinalar à pena uma finalidade primária de prevenção geral de intimidação; limitada, em todo o caso, por uma ideia de proporcionalidade com a gravidade do crime e a culpa do agente. Nesta medida se podia dizer que a finalidade da pena residira em alcançar a prevenção geral indispensável através daquilo que se considerava uma justa retribuição. Em 1883 José Manuel da Veiga apresentou um Projeto de Código Criminal que – atenuando decididamente o rigor punitivo das Ordenações e mesmo do Projeto de Mello Freire, eliminando as penas bárbaras e fazendo da pena de prisão o nódulo de todo o sistema sancionatório – representava a primeira manifestação legislativa coerente e concertada do Liberalismo Penal. Este projeto, porém, se bem aprovado em 1837, não chegou a ser posto em execução. A primeira codificação penal portuguesa só teve lugar por intermédio do CP de dezembro 1852, que veio finalmente pôr termo à vigência foral do Direito Penal medieval das Ordenações. Aquele Código foi considerado pelos seus principais comentadores como uma cópia – pouco mais que mera tradução, que de resto nem sempre teria sido cuidada e fiel – do CP napoleónico de 1810. Um tal juízo representa uma exageração, cientificamente inadmissível, e uma ideia exata: a de que o CP 1852 mergulhava bem as suas raízes no mesmo património ideológico que presidira ao CP napoleónico e, nomeadamente, no património ideológico do Iluminismo Penal. Mas apresentava em todo o caso notáveis diferenças logo no ponto que aqui muito particularmente se encontra em consideração: o do sentido e das finalidades da pena. Tal como o Código Napoleónico, o CP português 1852 concebia a pena como instrumento visando primariamente finalidades de prevenção geral e, na verdade, de prevenção geral de intimidação. Dele se não pode porém dizer – como se pode do seu modelo gaulês – que fosse um Código de penas fixas, de intimidação geral tarifada e, por conseguinte, de todo estranho a ideias de limitação, no que toca à pena e à sua medida, do intervencionismo estatal. Bem pelo contrário – em virtude da influência que sobre a sua feitura exerceram o CP brasileiro 1830 e o espanhol de 1848 – se algumas penas fixas consagrava, a generalidade delas eram todavia penas temporárias ou variáveis, cuja medida abstrata oscilava entre um máximo e um mínimo legalmente estatuídos e onde o encontro da medida concreta das penas variáveis, ele continha já extensas listas de circunstâncias, agravantes e atenuantes, que serviam para graduar a pena consoante a influência que exercessem na culpa do criminoso. O que isto significa para o nosso problema é agora óbvio. A conceção das finalidades da pena que presidia ao diploma português de 1852 não pode de modo algum dizer-se o de um prevenção geral de intimidação sem limites , mas era – como afinal correspondia rigorosamente ao pensamento de Montesquieu 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 e de Beccaria – uma prevenção geral limitada por um princípio estrito de proporcionalidade e, na verdade, segundo a sua forma mais perfeita, pela ideia de culpa; se bem que certamente uma culpa que nada ficava a dever a considerações absolutas de retribuição ou expiação. O que talvez possa justificar a conclusão de que aquele Código, vilipendiado como tradução medíocre do Código Francês, era afinal muito mais do que isso, a saber, a expressão mais pura do património ideológico-cultural do Iluminismo Penal.

As finalidades e a justificação da pena na época liberal e no CP 1886: as críticas de que o CP 1852 foi objeto, provenientes de setores importantes da doutrina portuguesa, foram de tal ordem que ainda em 1852 foi nomeada uma comissão com o encargo de proceder à sua revisão! Foi assim que em 1861 se elaborou um Projeto que, depois de corrigido, haveria de ser oficialmente proposto aos poderes públicos em 1864. Sob influência das doutrinas correcionalistas de Roeder . que terão sido carreadas sobretudo por Levy Maria Jordão –, o projeto revelava claramentge uma orientação de prevenção especial, privilegiando a inclinação do Direito Penal para a correção e o melhoramento do delinquente. Donde se propusesse um adoçamento substancial das penas e a eleição da pena de prisão como núcleo de todo o sistema punitivo, para além de pela primeira vez se erigir um sistema penitenciário coerente, baseado no chamado sistema de Filadélfia (isolamento quanto possível total do detido, com trabalho celular, como forma ótima de alcançar a sua indispensável metanoia ou reforma espiritual e interior); e também se propusesse já a criação de estabelecimentos correcionais e de refúgio de menores e institutos como os da liberdade condicional, da deteção suplementar, do patronato e do registo criminal. Nenhum dos mencionados projetos de reforma entrou em vigor. Mas nem por isso as principais inovações neles sugeridas deixaram de ser consagradas em leis especiais: a lei de 1863 relativa ao registo criminal e a de 1 julho 1867 que, para além de abolir (até hoje!) as penas de morte e de trabalhos forçados, adotou o modelo penitenciário de Filadélfia. Todo este regime se manteve em vigor até 1913. Apesar das reformas assinaladas, o CP 1852 persistia como lei vigente, revelando uma cada vez mais funda dessintonia entre os postulados em que repousava, nomeadamente na questão dos fins das penas, e uma nova compreensão dos supostos filosóficos e jurídico-políticos em que assentava a doutrina do Estado. Toda a doutrina do Estado Liberal da segunda metade do século XIX não pôde, efetivamente, manter-se estranha à formidável influência da filosofia idealista alemã da Kant e Hegel, tanto mais quando ela, ao menos na interpretação então dominante, servia os interesses e os propósitos da burguesia em ascensão e já, em alguns lados, triunfante. O que não podia deixar se de repercutir na compreensão básica da ciência penal. Sem abandono dos princípios fundamentais que haviam sido introduzidos pelo constitucionalismo na esteira do iluminismo penal e haviam conduzido a um primeiro estádio da que mais tarde ficaria conhecida como a Escola Clássica da ciência penal, esta assume agora uma nova caracterização essência, que lhe é emprestada pela elevação da conceção ético-retributiva a elemento essencial das finalidades das penas. Isto ocorreu no pensamento jurídico-penal português, no entanto, com duas notas características. Por um lado a resultante da circunstância de aquela elevação se fazer em nome de uma certa influencia hegeliana, antes que kantiana. Por outro lado, e sobretudo, a que derivava do acolhimento que em Portugal haviam merecido, desde o primeiro momento, as teses correcionalistas da prevenção especial. Teses que antecipavam de algumas décadas a Escola Moderna ou Escola Positiva que, pelo dobrar do século, havia de se impor em Itália – sobretudo pela mão de criminólogos como Lombroso – e na Alemanha – sobretudo por obra de Franz Von Liszt; que haveriam de conduzir à substituição do referente ético-retributivo pelo especial-preventivo em matéria de justificação e de finalidades da pena. O que, seja relembrado, assinalou o momento inicial de uma acerada luta de escolas que haveria

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 de marcar toda a evolução da ciência penal até aos anos 60 do século XX. Assim se compreende que a referida evolução tivesse determinado a morte do CP português de 1852. Mas que esta não tivesse conduzido à substituição da sua conceção de pena por uma conceção ético-retributiva, antes tivesse dado origem a um ponto de vista eclético quanto aos fundamentos do direito de punir, onde a ideia ético-retributiva se procurava casar com as novas orientações da prevenção, sobretudo da prevenção especial correcioniista. Foi isto o que no essencial se passou com a Nova Reforma Penal de 1884 que, aplicada ao CP português de 1852, havia de conduzir a uma nova codificação penal, o chamado CP 1886. Assim se aproximou a reforma, em matéria de finalidades da pena, da teoria da reparação moral de Welcker, através da qual se procurava harmonizar, como finalidades da sanção criminal, a retribuição, a prevenção especial e a própria prevenção geral: nos limites de uma pena retributiva visava-se satisfazer tanto as necessidades de reinserção social do delinquente, como as exigências de intimidação individual e coletiva. A ideia que, deste modo, se imputa ao CP 1886 de erigir a retribuição em fundamento e finalidade da pena não pode aceitar-se. Pelo contrário, não é difícil censurar-lhe, ao fim e ao cabo, uma regressão, relativamente ao CP 1852, do pensamento da culpa, sobretudo na medida em que o catálogo de penas constante do seu artigo 55.º e seguintes e continha uma generalidade de penas fixas, como tais insuscetíveis de tomarem em consideração a culpa do agente. Com o que, de resto, não deixavam de eliminar-se praticamente as vantagens que se poderiam esperar da circunstância de se consagrar pela primeira vez um critério de medida (de determinação concreta ou judicial) da pena em função da gravidade do crime. Por isso deve concluir-se que a confissão, constante do relatório da reforma, a favor das doutrinas retributivas não passava da afirmação de um princípio – que todavia nem sequer conduziu, da parte da lei e da própria jurisprudência, à eliminação da responsabilidade penal objetiva ou sem culpa – de fundamentação ou justificação filosófica da pena; enquanto na questão concreta das suas finalidades persistia e mesmo se acentuava uma orientação preventiva, nomeadamente de prevenção especial de correção. A conclusão a retirar de quanto em síntese ficou exposto relativamente à longa época do Estado liberal português (1820-1926) é a de que a doutrina da pena e das suas finalidades – correspondente embora, no essencial, aos pressupostos subjacentes à chamada Escola Clássica – não assumiu nunca o carater rígido, absoluto e intolerante que constituiu, na ciência jurídico-penal de outros países, como que a imagem de marca desta orientação. Tal ficou sobretudo a dever-se à particular permeabilidade da ciência e da legislação jurídico-penais portuguesas, desde estádios particularmente precoces da evolução, ao pensamento da prevenção especial positiva, sob a égide do pensamento correcionista. Pensamento este – e não será ocioso sublinhá-lo, desde já – que todavia se não autonomizou, no sentido de transformar todo o Direito Penal português em um Direito de pura prevenção especial, de tratamento do delinquente, livre das barreiras ético-jurídicas da culpa, como haveria de ser pretensão da Escola Positiva; mas antes se manteve sempre, em geral, dentro dos limites garantísticos e de respeito pelos direitos individuais que constituíram património inalienável do Iluminismo e do Liberalismo penais e da chamada Escola Clássica.

As finalidades e a justificação da pena na Época do Estado corporativo: não parece cientificamente legítimo afirmar que os pressupostos antidemocráticos e antiliberais que caracterizaram o chamado Estado Corporativo ou Estado Novo influenciaram em geral e diretamente a doutrina ou mesmo a legislação jurídico-penais portuguesas, no sentido de as aproximar das que, com diferentes características, foram esboçadas ou se consolidaram em Estados totalitários. Em todo este longo período (1926-1974) os pressupostos garantísticos essenciais – como os do princípio da legalidade, da culpa e da humanização do sistema punitivo – foram mantidos tanto na legislação, como na doutrina, e em certos casos e em certas épocas

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 mesmo acentuados. Para isso terá contribuído em larga medida a pretensão de se assumir aquilo que se considerava o caráter e a missão éticos do Estado e que levaram a que a conceção retributiva da pena não tivesse sido nunca posta radicalmente em causa; como levaram a que nunca fossem abandonados os limites que todo o pensamento preventivo a si mesmo tem de se impor em nome da defesa da dignidade da pessoa. O que caracterizou todo este período de evolução da conceção da pena no ordenamento jurídico português não foi nunca, por isso, uma conversão às teses puramente especial-preventivas da escola moderna ou positiva; mas o desejo de levar tão longe quanto fosse possível a compatibilização entre uma fundamentação éticoretributiva da pena, que se desejava manter a todo o custo, e uma sua finalidade de prevenção especial positiva ou de socialização à qual o direito penal português nunca se mostrou disposto a renunciar. A questão fulcral era assim a de saber como poderiam articular-se, sem contradição, as exigência de que a culpa (que se pensava estar co-naturalemente ligada a uma conceção éticoretributiva da pena) continuasse a ser considerada fundamento da punição; e de que à prevenção, sobretudo na forma de prevenção especial de sociabilização, fosse concedido o espaço necessário para que todo o sistema punitivo desse resposta mínima às necessidades políticocriminais correta e razoavelmente entendidas. Uma tal articulação foi tentada, na ciência jurídicopenal portuguesa – com claros reflexos na legislação – através da referência da culpa, antes que (ou não só) ao facto, à (ou também à) personalidade do agente. E esta tentativa foi em Portugal levada à exaustão dogmática por doutrinas como a do monismo prático as penas e medidas de segurança de Beleza dos Santos. De tal modo e a tal ponto que este conjunto de conceções, qualquer que seja a concordância ou discordância que hoje elas devam merecer, passou a constituir um dos traços mais característicos e mesmo, em larga medida, mais originais da doutrina portuguesa do Direito Penal. Mais originais e, no fim, mais dignos de apreço quando se repare como, por esta via, se cortava o passo a eventuais tentativas de (des)consideração dos delinquentes especialmente perigosos, imputáveis ou inimputáveis, como objetos da intervenção penal: tentativas hoje de novo na ordem do dia. Se quisermos, em jeito de conclusivo, reduzir a uma fórmula o sentido e as finalidades que presidiram à compreensão da pena durante todo este período, ela não poderá andar longe da seguinte: pena retributiva com finalidades de prevenção especial. Prevenção especial que todavia, relativamente a casos particulares (os casos de especial perigosidade, nos quais lamentavelmente se incluía por presunção – é preciso não o esquecer – toda a criminalidade política e onde a prevenção especial se exprimia, praticamente de forma exclusiva, com um cariz puramente negativo, como prevenção especial de segurança), assumia valor autónomo; sem prejuízo de ser limitada, em toda a medida possível, por uma ideia de culpa referida à personalidade do agente.

A evolução posterior à institucionalização do Estado de Direito: por ser assim, não seria exato pensar que a democratização da vida pública portuguesa após o 25 de abril de 1974 teria introduzido uma modificação sensível nestas matérias da fundamentação e das finalidades da pena. O Projeto da Parte Geral de um novo CP, elaborado por Eduardo Correia em 1963, era, neste tema como em outros, o espelho fiel e expressivo do pensamento político-criminal e dogmático do seu Autor. O artigo 2.º daquele Projeto continha, numa fórmula lapidar, a conclusão acima exposta: «quem age sem culpa não é punível. A medida da pena não pode exceder essencialmente a culpa do agente pelo seu facto ou pela sua personalidade criminalmente perigosa». Esta conceção era compatível, em boa parte, com os princípios do Estado de Direito, tomado este tanto na sua vertente liberal, como na social. Embora não o fosse completamente, porque aqueles princípios impõem que em caso algum a medida da pena exceda, essencialmente ou não, a medida da culpa. As razões da entorse continham-se, todavia, em limites ainda

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 suportáveis à época: quando, na maioria do Direito Penal legislado das mais consolidadas democracias, o princípio da culpa não tinha ainda ganho ilimitada validade. E era tanto mais suportável quanto, como se disse, a entorse era motivada não por razões de prevenção geral negativa, muito menos e utilidade ou de pragmatismo políticos, mas pelo vasto campo que se pretendia conceder à prevenção especial de socialização e a uma política criminal nela assente. Residindo aqui porventura a mais funda razão porque os Projetos de Eduardo Correia não conseguiram consagração legislativa os tempos da ditadura corporativa. Quando por isso, depois do Movimento de 25 abril de 1974, em 1976, os trabalhos de revisão do CP foram retomados, os fundamentos em que assentava a conceção da pena no Projeto de 1963 não foram essencialmente questionados. Já porém quando, em 1982, o novo CP foi finalmente publicado, uma circunstância importante perturbou a clareza com que as opções político-criminais fundamentadoras da pena se encontravam vertidas no Projeto. Essa circunstância é compreensível. Dado o caráter então ainda não definitivamente institucionalizado da democracia portuguesa e as ainda estreitas margens dos consensos comunitários alcançados, o CP 1982 procurou – atento o particular condicionalismo sócio-cultural e político em que foi aprovado e entrou em vigor – apresentar-se como um diploma descomprometido até ao limite possível de supostos subjacentes tanto em matéria político-criminal, como dogmática; o que – entre outras alterações – fez com que desaparecesse o citado artigo 2.º ProjPG, sem que ele fosse substituído por qualquer outro preceito à luz do qual se pudesse ganhar clareza sobre o problema que nos ocupa. Se um tal propósito, todavia, terá facilitado o processo político da aprovação, a breve trecho teve de reconhecer-se que ele dificultava em elevadíssimo grau a interiorização das opções político-criminais e dogmáticas que ao novo código continuavam a presidir. Até um grau tão elevado que conduziu a erros de aplicação diretamente relacionados com a pena, a sua fundamentação, o seu sentido e as suas finalidades; e que conduziu, nos pontos mais fundamentais, mesmo a um – quase sempre latente, mas sempre patente – processo ilegal de desaplicação da lei. Matérias como as da medida da pena e da sua fundamentação, da subsidiariedade da pena de prisão, da aplicação de penas de substituição ou mesmo (se bem em menor grau) de medidas de segurança são exemplos frisantes do que acaba de afirmar-se. A Comissão Revisora de 1991 – de cujas propostas resultou a Reforma do CP 1995 – trabalhou num quadro sócio-cultural e político inteiramente diverso daquele em que havia decorrido a parte final da elaboração e aprovação do diploma de 1982: num quadro típico já de uma democracia e de um Estado de Direito estabilizados e consolidados. Ela pôde, por outro lado, servir-se da inestimável experiência do que foram as dificuldades, os êxitos e os fracassos de aplicação do Código durante o primeiro decénio da sua vigência. Estava, por isso, em condições de apresentar com clareza o seu programa político-criminal e dogmático, bem como a sua leitura do programa político-criminal e dogmático subjacente à codificação de 1982, nomeadamente em tema de fundamentação, de sentido e de finalidades da penas.

Finalidades e limite das penas criminais: 1. A natureza exclusivamente preventiva das finalidades da pena: a base da solução aqui defendida para o problema dos fins das penas reside em que estes só podem ter natureza preventiva – seja de prevenção geral, positiva ou negativa, seja de prevenção especial,, positiva ou negativa –, não natureza retributiva. O Direito Penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se na necessidade estatal (hoc sensu, contratualista social) de subtrair à disponibilidade (e à autonomia) de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensável ao funcionamento, tanto quanto possível sem entraves, da sociedade, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais; e a permitir por 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 aqui, em último termo, a realização mais livre possível da personalidade de cada um enquanto indivíduo e enquanto membro da comunidade. Se assim é, então também a pena criminal – na sua ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução efetiva – só pode perseguir a realização daquela finalidade, prevenindo a prática de futuros crimes. Desta conceção básica resulta que se não justifica, nem é conveniente, nem eficaz, assinalar à pena ou só finalidades de prevenção geral, ou só de prevenção especial. Umas e outras devem combinar-se e coexistir da melhor forma e até ao limite possíveis, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.

2. Ponto de partida: as exigências da prevenção geral positiva ou de integração: primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não obviamente num sentido retrospetivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospetivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança (de que já falava Beleza dos Santos) e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. Uma finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou prevenção de integração; e que dá por sua vez conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o artigo 18.º, n.º2 CRP consagra de forma paradigmática. A ponto de se poder defender que onde a aplicação de uma pena – e a determinação da sua medida – não fosse essencialmente comandada por esta finalidade, aí se divisaria uma infração ao espírito (se não à própria letra) da referida norma constitucional. A Günter Jakobs se fica devendo a fórmula – emitida na esteira de Luhmann – segundo a qual a finalidade da pena reside na estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade da norma violada. Afirmar que a prevenção geral positiva ou de integração constitui a finalidade primordial da pena e o ponto de partida para a resolução de eventuais conflitos entre as diferentes finalidades preventivas traduz exatamente a convicção de que existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar; medida esta que não pode ser exercida (princípio da necessidade) por considerações de qualquer tipo, nomeadamente por exigências (acrescidas) de prevenção especial, derivadas de uma particular perigosidade do delinquente. É verdade, porém, que esta medida ótima de prevenção geral positiva não fornece ao juiz um quantum exato de pena. Abaixo do ponto ótimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efetiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem que perca a sua função primordial de tutela dos bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado defesa do ordenamento jurídico –, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos. Bem podendo assim dizer-se a concluir, que é a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial; e não a culpa, como tradicional e ainda hoje maioritariamente se pensa, que fornece uma moldura de culpa. Fica por esta via esvaziada de conteúdo uma das questões mais vivamente discutidas a propósito do papel da prevenção geral na doutrina dos fins das penas: a de saber se seria lícita uma qualquer elevação da pena em nome de exigências de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação da generalidade. A

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 intimidação da generalidade, sendo sem dúvida um efeito a considerar – e seria hipocrisia desconhece-lo ou ocultá-lo – dentro da moldura de prevenção geral positiva, não constitui todavia por si mesma uma finalidade autónoma da pena, somente podendo surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da necessidade da tutela dos bens jurídicos.

3. Ponto de chegada: as exigências da prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização: dentro da moldura ou dos limites pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico) – devem atuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção geral, sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. A medida da necessidade de socialização do agente é no entanto, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar a constituir no futuro – o vetor mais importante daquele pensamento. Ele só entra em jogo porém se o agente se revelar carente de socialização. Se uma tal carência se não verificar tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da moldura de prevenção ou meso oque com ele coincida (defesa do ordenamento jurídico).

4. A culpa como pressuposto e limite da pena: se a retribuição não tem qualquer palavra a dizer em matéria de finalidades da pena, a ela pertence, segundo a sua história e segundo o seu conteúdo, o mérito indeclinável de ter posto em evidência a essencialidade do princípio da culpa e do significado deste para o problema das finalidades da pena. Segundo aquele princípio «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa». A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição do excesso; a culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável por quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito Democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar. Na realidade das coisas, conflitos frequentes podem surgir entre a culpa e a prevenção especial, seja negativa ou mesmo positiva, bem como entre a culpa e a prevenção geral de intimidação. Mas já não será fácil excogitar hipóteses em que o ponto ótimo ou ainda aceitável de tutela dos bens jurídicos venha a situar-se acima daquilo que a adequação à culpa permite. Com efeito, como insistentemente tem acentuado Roxin, as razões de diminuição da culpa são, em princípio, também comunitariamente compreensíveis e aceitáveis e determinam que, no caso concreto, as exigências de tutela 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 dos bens jurídicos e de estabilização das normas sejam menores. Em princípio pois não se anteveem conflitos insanáveis entre culpa e prevenção geral de integração. O que não significa todavia que a prevenção de integração seja apenas um outro nome, ou uma outra perspetiva, da mesma realidade que seria a culpa. De toda a exposição anterior resulta que se trata ali de realidades diferentes, que possuem diferentes fundamentos e exercem funções diferenciadas dentro do sistema e dentro do problema das finalidades da pena. Assim entendidas as coisas, parece dispensável – se não for mesmo equívoca – a ideia de que (não as finalidades, mas) a legitimação da pena repousa substancialmente num duplo fundamento: o da prevenção e o da culpa; e isto porque a pena só seria legítima «quando é necessária de um ponto de vista preventivo e, para além disso, é justa», não se tratando deste modo de uma «união eclética de elementos heterogéneos», mas de uma «justificação cumulativa». Esta acumulação, na parte em que é exata, já encontra plena tradução na ideia de que a culpa é pressuposto indispensável e limite inultrapassável da pena, não se tornando necessário turvar a limpidez da natureza exclusivamente preventiva das finalidades da pena com exigências (se bem que justificadas) de justiça e de merecimento da sua aplicação. Toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa.

5. Conclusão: a teoria penal aqui defendida pode resumir-se do modo seguinte: a. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; b. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; c. Dentro deste limite ela é determinada no interior da uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite superior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; d. Dentro dessa moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais. O programa político-criminal que, na sua extensão enorme, se consubstancia nas proposições conclusivas acabadas de enunciar decorre diretamente, repete-se ainda uma vez, do artigo 18.º, n.º2 CRP e foi coerentemente assumido pelo legislador penal português de 1995, que o precipitou nos n.º1 e 2 do artigo 40.º CP. O n.º1 declara paradigmaticamente que «a aplicação das penas (…) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade»; e o n.º2 estatui, em termos absolutos, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». É a confirmação plena, por parte de um texto legislativo, do percurso doutrinário que acaba de percorrer-se e das conclusões a que conduziu. A acusação de que uma disposição deste teor inscrita num CP excederia a competência de qualquer legislador, porque teria a singular pretensão de decidir da milenar controvérsia filosófico-doutrinal dos fins da pena, tem de ser repudiada como infundamentada. É ao legislador democraticamente legitimado – e, entre nós, exclusivamente à AR (artigo 165.º, n.º1, alínea c) CRP) – que compete vazar proposições de política criminal do modus da validade jurídica.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 Os princípios constitucionais de Direito Penal4: 1. Princípio da legalidade: a racionalidade das normas que constituem o Direito Penal e o modo da sua aplicação estão de tal forma condicionados por este princípio que bem se poderá dizer que ele é a proposição jurídica fundamental do sistema penal, impregnadora até do conteúdo de outros princípios. Segundo o princípio da legalidade, os tribunais estão vinculados a não aplicar sanções penais sem lei anterior que as reveja (nulla poena sine lege) e a não aplicar as sanções penais previstas sem que se realizem determinados pressupostos, igualmente descritos na lei: a perpetração de uma determinada conduta considerada crime ou, no caso das medidas de segurança, reveladora de perigosidade criminal – trata-se neste caso da máxima nullum crimen sine lege (artigos 29.º, n.º1 e 3 CRP e artigo 1.º CP). Esta subordinação do tribunal á lei significa, além disso, que a solução do caso concreto está totalmente vinculada a um modelo legal, isto é, a uma articulação já feita pelo legislador entre um determinado caso, semelhante ao verificado em concreto, e uma solução para ele prevista. Assim, o princípio da legalidade não é somente uma exigência de utilização de padrões legais para a qualificação de um facto como merecedor de sanção e para a aplicação de sanção, mas também a exigência de vinculação total do ato de aplicação de uma sanção, no caso concreto, a uma decisão já tomada previamente, com um certo grau de concretização, pelo legislador. Por isso, o princípio da legalidade traduz-se na articulação das duas anteriores máximas com uma outra, nulla poena sine crimen, que significa que não poderá aplicar-se uma sanção penal sem que se verifique um caso para o qual está previamente determinada na lei a aplicação dessa sanção, se se verificarem todos os pressupostos previstos. Historicamente, um tal condicionamento do Direito Penal por este princípio explica-se pelo objetivo de assegurar a liberdade do indivíduo em face do poder do Estado, evitando a possibilidade de ela ser arbitrariamente restringida, como até certo momento tinha acontecido (o princípio da legalidade é uma das grandes afirmações da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789). Consequentemente, o controlo das decisões do poder não se limita ao tribunal, mas começa pelo próprio legislador, como se poderá inferir da citada exigência de leis prévias que prevejam os crimes e as correspondentes sanções. O legislador vincula-se a não criar leis penais retroativas (artigos 2.º CP e 29.º, n.º4 CRP). O modelo de lei e de decisão que o princípio da legalidade pretende instituir funciona até certo ponto, mas tende a criar algumas ficções. Se pensarmos nas razões históricas do princípio da legalidade, torna-se claro que o modelo do sistema penal por ele pressuposto cria segurança ante o Direito e limita fortemente a possibilidade de decisões arbitrárias. Mas também é verdade que um tal processo de aplicação da lei penal, meramente subsuntivo, não é viável em absoluto, porque entre o caso da lei e o real não poderá haver mais do que uma semelhança ou analogia. O condicionamento da decisão limitase a exigir que se considere essa possível analogia e que se demonstre uma certa similitude entre o caso da lei e o real. Aquilo que, na verdade, se passa não é a automatização do ato de decidir, visto como sotaposição lógica de um caso real ao legal (subsunção), mas a vinculação do ato de aplicação da pena a uma demonstração ou justificação (argumentativa) de que a lei quereria aplicar-se ao caso concreto. A proibição da analogia, corolário lógico do princípio da legalidade, deve, assim, ser 4

Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 compreendida num sentido mais profundo do que proibição da utilização de raciocínios analógicos contra reo na operação de decidir. Deve ser entendida como a proibição de que se faça uma assimilação do caso concreto pelo da lei, sem que determinados argumentos sejam possíveis. A expressão relativamente simbólica da lei cria no intérprete a imagem de um caso típico, que é o modelo lógico da figura abstrata descrita como ofensa grave, violência, etc., e que, na maior parte dos casos concretos, o processo de decisão jurídica só pode ser a revelação da essência ou razão de ser do modelo no caso real. Mas demonstrará a natureza dos raciocínios jurídicos próprios da interpretação da lei penal que o princípio da legalidade só tem uma aparente função de controlo da atividade das instâncias judiciais competentes para a decisão do caso concreto, escapando pelas malhas dos múltiplos raciocínios analógicos a segurança jurídica ou, por outras palavras, o mecanismo de controlo e seleção social da criminalidade? Com efeito, é muitas vezes a ficção de interpretação da lei criada pelo princípio da legalidade que permite, em caso em que a norma não é suficientemente precisa, que o intérprete siga apenas a sua intuição e prescinda até de um raciocínio de tipo analógico. O princípio da legalidade pode criar, deste modo, duas situações extremas: a fixação rígida às palavras da lei e, no outro extremo, a libertação do condicionamento das palavras, e a conclusão de que cabem, na expressão vaga e simbólica d alei, situações em que não existe verdadeira igualdade material. O que há então que concluir é que a função de controlo da aplicação da lei, desempenhada pelo princípio da legalidade, se exprime em termos mais complexos do que os constantes das proposições que têm sido utilizadas para a formulação deste princípio. Uma tal função de controlo pressupõe, sobretudo, que a aplicação d alei resulte de um processo lógico identificável dirigido à descoberta do sentido da lei (isto é, à delimitação dos valores positivo e negativos que explicam a incriminação de um determinado comportamento).

2. Princípio da culpa: o princípio da culpa não é objeto de uma formulação legal tão transparente como o da legalidade. Ao nível da Constituição, ele é deduzido da essencial dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade (artigos 1.º e 27.º CRP). No Código Penal, só é expressamente indicado como fator de determinação da medida da pena (artigos 72.º, n.º1 e 73.º, n.º1 CP), mas a doutrina tem-no utilizado como fundamento de outras consequências mais profundas, que o tornam um dos mais debatidos argumentos a que se refere a problemática da legitimação do Direito Penal. Atualmente, o princípio da culpa costuma assumir um tríplice significado: a. Como fundamento da pena: o princípio da culpa não é hoje unanimemente aceite como fundamento da pena. O argumento principal que se opõe a uma tal função resulta de o princípio da culpa pressupor uma ideia de responsabilidade penal alheia aos fins do Estado de Direito democrático e social. Segundo este argumento, é irracional atribuir à culpa, como desvalor ético-social derivado da prática de certo comportamento, a função de legitimar a realização de fins do Estado, como a proteção de bens jurídicos ou a efetivação de prestações sociais. Não é assim racional que se puna a prática do mal, mas somente a provocação de um dano que, de algum modo, afete os objetivos da Sociedade representada pelo Estado. Com esta proposição do problema da racionalidade está pressuposta, muito claramente, uma ideia: a de que o Direito Penal é

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 instrumento do poder estatal e, portanto, da sua política. Mas este plano de justificação racional do Direito Penal não esgota toda a questão da sua legitimação. Um Direito Penal não é já legítimo porque as suas normas realizam os objetivos da sociedade representada pelo Estado, mas porque os seus comandos e proibições, assim como o processo que conduz à sua aplicação, realizam ideias culturais de justiça que enformam as expectativas dominantes na sociedade. É neste segunda dimensão que o princípio da culpa ainda encontra o seu lugar como fundamento do Direito Penal, apesar de parecer inadequado a vários padrões de racionalidade. A afirmação de que o princípio da culpa só pode ser fundamento da pena no pressuposto da realização de um princípio de justiça implica, no entanto, uma questão óbvia: o que tem o princípio da culpa a ver com a ideia de justiça? A resposta parece orientar-se em duas direções: a mera censurabilidade ético-pessoal não torna o homem instrumento da sociedade ou do poder (dignidade da pessoa humana) e só a censurabilidade ético-pessoal permite a discussão do acusado com o poder. A primeira ideia corresponde à máxima kantiana de que o homem tem de ser tomado como um fim em si mesmo. A segunda assenta na conceção da realização da justiça através de um processo em que sociedade e o acusado se defrontam como partes de um conflito. Segundo este entendimento, o princípio da culpa passa a assumir uma função de segurança jurídica, delimitadora da intervenção penal baseada em fins utilitários do Estado – torna-se um princípio restritivo; b. Como fator de determinação da medida da pena: o princípio da culpa é dominantemente aceite como critério de determinação da medida da pena. Não é, sem dúvida, o rigor quantitativo do que seja mais ou menos em matéria de culpa que justifica a possibilidade da sua utilização como medida, mas a maior possibilidade de chegar a comparações entre comportamentos e agentes através da referência à ideia de culpa do que através de outros critérios, como os que são próprios da prevenção geral; c. Como princípio da responsabilidade subjetiva: o princípio da culpa é o produto de uma longa evolução da construção jurídica da responsabilidade penal, que levou à rejeição de princípios como a versari in re ilicita, segundo o qual seriam imputáveis a um agente todas as consequências do seu ato ilícito. A essa solução primária contrapõe-se hoje a solução complexa de limitar a responsabilidade ao âmbito do domínio da vontade humana. A crença na liberdade e no poder de ação causal do homem é o seu pressuposto.

3. Princípio da necessidade da pena: costuma apontar-se como um dos grandes princípios orientadores do Direito Penal a necessidade da pena ou a intervenção mínima do Estado em matéria penal. Este princípio traduziu historicamente a ideia de que a utilização pelo Estado de meios penais deve ser limitada, ou mesmo excecional, só se justificando pela proteção de direitos fundamentais. Tratou-se pois de uma reação contra a utilização discricionária das penas pelo poder político, ao serviço de quaisquer fins. Na sua origem ideológica, o princípio da necessidade da pena pretendeu ser um limite substancial do Direito Penal,

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 relacionado com a ideia de contrato social, segundo a qual só se justificaria a restrição da liberdade quando, de alguma forma, as liberdades – para cuja proteção teria sido instituída a sociedade política – estivessem em causa. No entanto, o conteúdo do contrato social tem-se alterado com a evolução da realidade e das ideologias políticas da sociedade democrática: não só à proteção das liberdades, mas também à realização de múltiplos fins sociais, como a saúde, a educação, o bem-estar, a cultura, etc., se entende hoje que é destinada a sociedade política. Da ideia primitiva de contrato social, aquilo que parece restar é a aceitação de que o poder político se justifica pelo serviço aos membros da sociedade. O princípio da necessidade da pena assume quase sempre uma perspetiva social do Direito Penal. O alcance do princípio da necessidade da pena revela-se não só na discussão da legitimidade da incriminação mas também em problemas de determinação da responsabilidade penal. Na discussão sobre a legitimidade da incriminação, o apelo ao princípio da necessidade surge na discussão sobre a carência de proteção penal do bem jurídico, sobre a falta de alternativas à penalização da conduta e, finalmente, sobre a eficácia concreta da incriminação. A primeira será contrariada quando se tratar de um mero valor moral sem expressão num bem jurídico determinado, como a vida, a integridade física, a liberdade, a honra ou o património; a segunda não se afirmará quando os meios penais não forem absolutamente indispensáveis, existindo outros meios sociais capazes de evitar determinados comportamentos; finalmente, a eficácia concreta da incriminação não se verificará quando o Direito Penal não evita a prática de certas condutas e chega a ter um papel criminógeno. Quanto à intervenção do princípio da necessidade na determinação da responsabilidade penal dois aspetos são assinaláveis: a conformação do conteúdo de certos conceitos valorativos ou critérios dos quais depende a responsabilização penal e a influência na medida da pena. 4. Princípio da igualdade penal: a igualdade, consagrada no artigo 13.º CRP, orienta profundamente as soluções do sistema penal, apesar de ser princípio específico do Direito Penal. Para além de proscrever a discriminação entre pessoas é a igualdade que subjaz à ideia de proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e da pena e é a igualdade que sustenta a mediação da pena pela culpa. A proporcionalidade implica que os factos de menor danosidade social sejam sancionados, necessariamente, com penas mais leves. Da proporcionalidade não se deverá extrair, porém, qualquer exigência automática de parificação das penas, onde os princípios da culpa ou da necessidade da pena recomendarem que certo facto seja punido menos gravemente apesar de a sua danosidade ser idêntica à de outros mais severamente punidos. Assim, a proporcionalidade justifica que um pequeno furto não possa nunca corresponder a pena mais elevada do furto qualificado (artigo 297.º, n.º3 CP). Mas já não exige automaticamente que a pena do aborto (artigo 139.º CP) seja superior à do furto qualificado. A proporcionalidade não é expressão da lei taliónica, mas sim da

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 garantia constitucional de que ninguém pode ser punido mais severamente do que outrem por um facto menos grave. Já o princípio inverso – o de que ninguém pode ser punido menos severamente do que outrem por factos idênticos ou mais grave – não se deduz, rigorosamente, da garantia constitucional da igualdade. A igualdade só se expressa na igualdade de direitos ou na igualdade de deveres se esta última for necessária à satisfação de direitos alheios. Ora, não é concebível um direito a quem outrem seja mais gravemente punido como expressão do princípio da igualdade. A proporcionalidade é, aliás, um princípio formal, cujo conteúdo é preenchido pelos outros princípios constitucionais de Direito Penal, como a culpa e a necessidade da pena. Assim idêntica necessidade de punir idêntica culpa justificarão idênticas penas – ou, pelo menos o direito a que não seja mais gravemente punido. A diferenciação entre as penas dos crimes contra as pessoas e dos crimes contra outros bens jurídicos é também uma manifestação do princípio da proporcionalidade, na medida em que a máxima danosidade social se articula com a máxima gravidade ética – a lesão de bens da pessoa do outro. Para além das manifestações da igualdade através do princípio da proporcionalidade, a igualdade justifica a seleção de novos bens jurídicopenais, que poderíamos designar como bens da igualdade. A proteção em geral dos mais fracos na estrutura social conduz à agravação de crimes clássicos devido à qualidade da vítima e à criação de novos crimes em função da essencialidade da não discriminação no Estado de Direito Democrático e Social. 5. Outros princípios: Humanidade do Direito Penal e das sanções criminais e sociabilidade: novas ideias jurídicas têm sido descobertas como emanações do Estado de Direito Democrático e Social. A doutrina refere-se ao princípio da Humanidade como expressão da ideia de responsabilidade social pela delinquência e disposição de respeitar e recuperar a pessoa do delinquente. Tal princípio justificaria a rejeição de sanções atentatórias do respeito pela pessoa humana como a pena de morte, a prisão perpétua, a tortura e as penas cruéis e degradantes (artigos 24.º, n.º2, 25.º, n.º2 e 30, n.º1, 4 e 5 CRP). A Humanidade é, deste modo, expressão da dignidade da pessoa humana, ideia ética muito antiga exaltada pela cultura renascentista e retomada contemporaneamente pelo discurso ético-político. Apela-se ao princípio da Sociedade ou da Solidariedade numa perspetiva de orientação do sistema penal não contemplada pelos fins tradicionais da política criminal e que explicará que a lógica impiedosa e vertical do sistema punitivo ceda a soluções que a flexibilizam por causa da noção de uma supremacia social de certos interesses individuais aos quais outros interesses se deveriam sacrificar. É um tal princípio que justificará, por exemplo, causa de exclusão da ilicitude como o direito da necessidade (artigo 34.º CP) e uma orientação geral sobre as penas que inclua a solidariedade social como a vítima e com o criminoso, reinserindoo socialmente.

Delimitação do Direito Penal: o Direito Penal recorta-se perante os outros ramos do Direito pelo modo de legitimação específico da sua criação e aplicação. A gravidade das suas ações, como vimos, exige uma específica legitimação constitucional (de tipo material). Esta legitimidade constitucional distingue o Direito Penal dos outros ramos do

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 Direito: na sua criação há um especial controlo do sistema de fontes e da interpretação das normas e da integração de lacunas (princípio da legalidade). Mas, como assinalámos, também o conteúdo das normas penais e os fins da sua aplicação (conceito material de crime e fins das penas) estão sujeitos à observância de exigências materialmente identificáveis. Este último sistema de controlo do Direito Penal manifesta-se numa teia de princípios, já identificados sucintamente. A par desses princípios, consagrados constitucionalmente, encontram-se exigências de consenso, proteção de bens jurídicos e relevo ético prévio das condutas, como argumentos legitimadores da incriminação. A relevância prática da qualificação de um preceito legal como Direito Penal traduz-se, naturalmente, na sua subordinação aos princípios referidos. Por outro lado, são aqueles próprios princípios que orientam a indagação sobre o caráter penal de uma norma ou a qualificação de um facto como ilícito penal. O Direito Penal é a expressão do ius puniendi do Estado, delimitando os fundamentos e as condições de uma intervenção estatal na esfera dos particulares que se caracteriza, especificamente, no exercício do poder punitivo. O facto de o Direito Penal prever como crimes factos que lesam os bens jurídicos de que as pessoas são titulares, intervindo na regulação da intersubjetividade, não confere ao interesse do ofendido nem à sua posição jurídica perante o agressor a qualidade de objetos da norma penal. Na verdade, o objeto do Direito Penal é a relação jurídica punitiva, pela qual os indivíduos que praticam certos factos ficam sujeitos à aplicação de uma pena pelo Estado. Tal como em qualquer outro ramo do Direito Público, é o princípio da subordinação, e não o da igualdade entre os sujeitos da relação jurídica, o que caracteriza o Direito Penal. Porém, sendo o Direito Penal um ramo do Direito Público, os seus princípios não se confundem com os de outros ramos do Direito Público em que se manifesta a prevalência do interesse público sobre os interesses dos particulares e a atribuição de uma posição de sensível superioridade ao Estado. A especificidade da função implica a atribuição de garantias especiais aos destinatários das normas penais, tanto ao nível substantivo como no plano processual (artigo 32.º CRP). O Direito Sancionatório Público não se esgota, todavia, no Direito Penal. O Direito Disciplinar da Função Pública e o Direito de Mera Ordenação Social são verdadeiras manifestações de um Direito Sancionatório Público não penal. O Direito Disciplinar da Função Pública distingue-se do Direito Penal na medida em que visa a boa execução pelos funcionários e agentes da Administração das suas tarefas e, consequentemente, se manifesta pela sanção da violação dos deveres estabelecidos para a realização destes fins. O ilícito disciplinar consiste na violação da confiança interna da Administração no funcionário, enquanto o ilícito penal, relativamente a factos congéneres, se traduz numa perturbação externa da autoridade do Estado. Os mesmos factos podem suscitar, simultaneamente, a responsabilização penal e disciplinar, mas esta ocorrência derivará, necessariamente, da violação de distintos deveres: o dever de não lesar bens jurídicopenalmente protegidos e o dever de respeitar as obrigações funcionais. Como, na realidade, os deveres funcionais são construídos muito amplamente e se considera que o bom comportamento da funcionário é sempre quebrado pela prática de um facto criminoso, o ilícito penal cometido no exercício de funções públicas implicará sempre o ilícito disciplinar. Mas a proibição constitucional de que as sanções disciplinares sejam 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 efeitos automáticos das penas (artigo 30.º, n.º4 CRP) leva a que a sanção disciplinar baseada na prática de um crime no exercício de funções dependa de um processo autónomo tendente a concluir qual é a sanção disciplinar concretamente aplicável. Não deverá suceder, naturalmente, que um facto que suscite responsabilidade penal não atinja o merecimento disciplinar, se realizado por um funcionário no exercício das suas funções, por força da chamada subsidiariedade do Direito Penal. Como o ilícito penal se restringe às lesões mais graves dos bens jurídicos mais importantes e o Direito Penal apenas intervém por estrita necessidade, não será pensável que um facto que não seja justificável ou desculpável segundo os critérios da responsabilidade penal o possa ser disciplinarmente. Do Direito Sancionatório Público faz parte também o Direito de Mera Ordenação Social. O ilícito de mera ordenação social consubstancia-se na figura das contraordenações, oriunda da expressão germânica Ordnungwi-drigkeiten; e a sanção respetiva designa-se coima. A qualificação de um facto como crime ou contraordenação suscita, igualmente, a subordinação a diferentes princípios ou, pelo menos, a uma diferente manifestação dos princípios e garantias do Direito Penal. Tais consequências explicam-se pela diferente natureza do ilícito e das sanções respetivas. A diferente natureza do ilícito e das sanções respetivas. A diferente natureza do ilícito foi relacionada no início do século por Goldschmidt e Wolf, com diferentes funções do Estado. Investido do poder punitivo, o Estado pretenderia proteger passivamente bens jurídicos de atividades lesivas; pelo Direito de Mera Ordenação Social perpassaria antes a função de promoção do bem estar e de outros objetivos públicos. Com o progressivo desenvolvimento de um Direito Penal Secundário desvirtuou-se aquela distinção, de modo que verdadeiras normas penais tutelam hoje a atividade intervencionista e fomentadora do Estado, através do Direito Penal Fiscal ou do Económico. Segundo a doutrina mais recente, a distinção entre o Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação Social reside fundamentalmente na menor gravidade do ilícito de mera ordenação social – e, portanto, num critério quantitativo, derivado do princípio da subsidiariedade do Direito Penal. O critério quantitativo implica, todavia, a consideração de que, a partir de um certo quantum da gravidade ética e social, certos factos adquirem dignidade punitiva. Se não forem detetados critérios qualitativos, a distinção entre os dois ilícitos tornar-seá indeterminada e deverá considerar-se inconstitucional o Direito de Mera Ordenação Social na sua generalidade, na medida em que não lhe sejam atribuídas todas as garantias do processo penal. A procura de um critério qualitativo torna-se, assim, impostergável. A um critério qualitativo contrapõem-se, contudo, dois grandes obstáculos: a falta de um único parâmetro do legislador na autonomização do Direito de Mera Ordenação Social, que obscurece uma lógica material identificadora das suas normas; e a dificuldade de identificar um critério científico que caracterize intrinsecamente a infração contraordenacional, devido á mutação funcional dos poderes do Estado e à extensão do Direito Penal a novas realidades. A primeira dificuldade é ultrapassável pela não cedência ao positivismo legalista como método de definir o Direito. A única premissa positiva a respeitar é a da natureza e dos fins das coimas: o ilícito de mera ordenação social terá de se adequar a eles pela sua natureza e gravidade. Já a descoberta dos critérios identificadores do ilícito, na sua materialidade, 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 independentemente da variedade de critérios legais, condicionará a constitucionalidade de certas normas do Direito de Mera Ordenação Social. A segunda dificuldade é a via cruxis da doutrina penal desde Goldschmidt e Wolf. Os critérios qualitativos são, geralmente, insuficientes para a delimitação do Direito de Mera Ordenação Social perante o Direito Penal. Um critério próximo dos daqueles autores aponta para uma específica função do Estado na definição e aplicação do Direito de Mera Ordenação Social. Não contempla, todavia, uma progressiva subordinação da atividade administrativa ao princípio da legalidade e a critérios de justiça e a própria inserção no Direito Penal de critérios de oportunidade justificados político-criminalmente. Por seu lado, o critério da neutralidade axiológica do ilícito da mera ordenação social em face da imediata relevância ética do ilícito penal assenta, fragilmente, na convicção de que os bens protegidos pelo Direito Penal são individuais e valiosos em si mesmos, enquanto os bens tutelados pelo Direito de Mera Ordenação Social são sociais e só pela decisão normativa adquirem dignidade. A ideia de que a relevância ética, no segundo caso, deriva da violação de deveres jurídicos (fazendo do ilícito de mera ordenação social um ilícito de desobediência) desconhece, no entanto, a dimensão social de todos os bens jurídico-penais, incluindo os individuais, e esquece ainda que o Direito Penal integra muitos ilícitos de mera desobediência. Um outro critério, que se norteia pelo diferente desvalor da ação no Direito Penal, independentemente da natureza do bem tutelado, não reflete a tradicional inclusão no Direito Penal de ilícitos de menor gravidade, como algumas lesões patrimoniais de pequena importância. A sua degradação em Direito de Mera Ordenação Social levaria a uma diminuição de garantias e ao abandono políticocriminal dos seus agentes. O impasse a que a procura de critérios qualitativos conduz parece ter, naturalmente, um de dois desfechos em alternativa: a renúncia ao critério qualitativo, aceitando-se uma distinção segundo a oportunidade, ou a renúncia (por inconstitucional) ao Direito de Mera Ordenação Social, devido às suas limitadas garantias processuais. A intenção normativa que presidiu à criação de um Direito de Mera Ordenação Social exclui, no entanto, qualquer destas soluções. A atribuição à autoridade administrativa de competência para aplicar certas sanções públicas, cujos fins são apenas de reordenação da vida social, permite remeter para o Direito de Mera Ordenação Social condutas que reúnam simultaneamente as seguintes características: a. Não tenham um significado negativo segundo as normas éticas de primeiro plano e consensualmente aceitas pela sociedade; b. Correspondam a modos de ação ou violação de deveres de gravidade menos intensa, por não exigirem uma decisão da personalidade contra a Ordem Jurídica; c. Não atinjam diretamente os bens individuais pertencentes ao núcleo constitucional de bens jurídicos que suportam a dignidade da pessoa humana ou os bens coletivos que fundamentam a conservação e o desenvolvimento da sociedade.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 Em síntese, menos desvalor ético prévio da conduta, menos desvalor da personalidade ética que fundamenta o ilícito e menor importância na ordem axiológica constitucional do objeto direto da ação são características que formam um conjunto de argumentos invocáveis para qualificar o facto como ilícito de mera ordenação social.

O Direito Penal Secundário: a configuração de um Direito Penal Secundário resultou do alargamento do núcleo liberal primitivo dos bens essenciais relacionados com a pessoa a novas realidades, que passaram a condicionar aspetos fulcrais da vida coletiva, como, sobretudo, a organização económica da sociedade. O caráter secundário deste Direito Penal não deriva da sua menor relevância ética, mas sim de os bens que tutela e os comportamentos que proíbe não serem idênticos aos dos crimes clássicos. Algumas características identificam o Direito Penal Secundário: a. A sua inserção em legislação avulsa; b. A sua relação com a atividade económica e financeira que o Estado protege; c. O caráter fundamental social dos bens que tutela; d. A natureza técnica, não materialmente lesiva dos bens, das condutas incriminadas, que são necessariamente concebidas a partir da lesão de deveres jurídicos ou de ordens; e. A aptidão das pessoas coletivas para, enquanto tais, praticarem estas condutas; f. A necessidade de sanções penais específicas adequadas à eficaz intervenção na área económica e financeira. Um problema afim do da delimitação do Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação Social é o que resulta da eventual autonomia do Direito Penal Secundário. A questão central traduz-se em estabelecer a fronteira entre as violações de deveres jurídicos ou ordens que apenas se insiram no Direito de Mera Ordenação Social e as que alcançam a dignidade penal. Em certos casos, porém, a distinção é mais problemática, sobretudo se o Direito Penal Secundário incluir a mera infração de deveres jurídicos ou ordens sem referência a um evento lesivo ou a um dano para um bem jurídico claramente identificável.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 II – Fontes do Direito Penal: A teoria da lei penal As fontes do Direito Penal: dos artigos 29.º CRP e 1.º a 3.º CP resulta que os modos de revelação do Direito Penal – as suas fontes – são estritamente vinculados no nosso sistema jurídico. O princípio geral é o de que só a lei pode ser fonte de Direito Penal, estabelecendo-se uma reserva relativa de competência da Assembleia da República no artigo 168.º, n.º1, alínea c) CRP. Assim, só a Assembleia da República ou o Governo munido de indispensável autorização legislativa, sob pena de inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Lei que aprovar, têm competência em matéria penal. Este princípio só é afastado pelo artigo 29.º, nº.2 CRP, que admite a legitimidade da punição, nos limites da lei interna, das ações e omissões que no momento da sua prática sejam consideradas criminosas segundo os princípios gerais do Direito Internacional comummente reconhecidos. Significa esta exceção que o costume internacional também pode ser fonte do Direito Internacional Penal: a convicção generalizada na sociedade internacional sobre o caráter criminoso de certas condutas é bastante para que, nos limites da lei interna, uma conduta seja punida sem lei prévia à sua prática. Uma tal exceção à reserva de lei tem origem na experiência histórica deste século, em que a perversão do poder político gerou uma legalidade permissiva da perpetração de factos lesivos de direitos fundamentais. O fundamento da reserva de lei – a segurança democrática – não impede que uma tal exceção (prevista no artigo 29.º, n.º2 CRP) seja legitima. À segurança como valor formal contrapõe-se uma segurança fundamentada no respeito pelos valores humanos essenciais: as expectativas de não se ser incriminado ó adquirem validade quando não são fundamentadas numa legalidade criminosa. É claro, porém, que a aplicabilidade do regime do artigo 29.º, n.º2 CRP suscita dificuldades. Os princípios gerais do Direito Internacional não contêm, por definição, normas penais completas e precisas – que, nomeadamente, cominem a penalidade aplicável ao crime. Esta lacuna deve ser integrada através do recuso aos limites da lei interna: valerão, em primeiro lugar, os limites gerais das penas estabelecidas no Código Penal (artigo 40.º e 46.º CP); e as penas concretas serão determinadas, necessariamente, por raciocínios de analogia com crimes identicamente graves previstos na lei, tendo-se sempre presente a exigência de proporcionalidade entre o crime e a pena.

Formulação, âmbito e fundamento do princípio da legalidade : a conformação constitucional mais explícita do Direito Penal deriva do princípio da legalidade. Este princípio, que a expressão latina nullum crimen, nulla poena sine lege plasmou doutrinalmente (introduzido por Feuerbach em 1801), é a base mínima e essencial da adequação do Direito Penal ao Estado de Direito democrático. O princípio da legalidade é, aliás, mais do que uma ideia geral do Direito, como costumam ser outros princípios, cuja violação só se verifica através de lesões particularmente intensas. O princípio da legalidade exige do legislador e do intérprete um cumprimento estrito, como sucede com qualquer comando que constitua a estatuição de uma norma jurídica. Dos artigos 29.º CRP e 1.º a 3.º CP resulta que as instâncias de criação e aplicação do Direito Penal têm o seguinte regime:

a. Em primeiro lugar, só a lei pode, em princípio, ser fonte de Direito Penal, prevendo-se, como se disse, uma reserva relativa de competência da Assembleia da República, no artigo 168.º, n.º1, alínea c) CRP;

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 b. Em segundo lugar, o próprio conteúdo das normas penais terá de revelar um elevado grau de determinação, na descrição das condutas incriminadas e das suas consequências (artigo 29.º, n.º1 e 3 CRP);

c. Em terceiro lugar, há um condicionamento do intérprete da lei penal a quem está vedada a analogia e, eventualmente, a própria interpretação extensiva de normas incriminadoras (artigos 29.º, n.º1 e 3 CRP e 1.º, n.º3 CP);

d. Em quarto lugar, está consagrada a proibição de retroatividade das normas penais (artigo 29.º, n.º1 e 3 CRP e 1.º, n.º1 CP);

e. Finalmente, consagra-se o princípio da retroatividade das leis penas de conteúdo mais favorável ao arguido (artigos 29.º, n.º4 CRP e 1.º, n.º2 e 4 CP). Todos estes comandos e outros que o texto constitucional não explicitou só serão compreendidos e formulados corretamente a partir do princípio da legalidade da Constituição. O princípio da legalidade é uma decorrência do Estado de Direito Democrático, integrando-se no elenco dos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Tal como estes, é expressão da autolimitação do Estado perante os cidadãos e da sua função primordial de proteção da pessoa. Mas, mais intensamente do que estes, o princípio da legalidade exprime o modo constitucional de realização da máxima segurança individual. Ideia central do princípio é, assim, a de que a segurança dos indivíduos frente ao Estado só se realiza através do controlo da criação e aplicação do Direito Penal pelos órgãos de representação democrática. E um tal controlo democrático da lei penal não é um valor puramente formal, mas ainda o meio mais adequado racionalmente para a concretização da igual dignidade da pessoa humana. São estas ideias que explicam a extensão do princípio e, nomeadamente, a sua aplicação à previsão dos crimes, e não só à cominação das penas: a proteção das expectativas individuais e a indicação do ilícito criminal acresce à garantia de só se ser punido com pena prevista em lei anterior à prática do facto. Resulta nitidamente da separação dos poderes e do controlo democrático das interferências na liberdade individual que a nulla poena sine lege se complete com o nullum crimen sine lege. Também é o princípio democrático que explica a articulação entre o nullum crimen e a nulla poena sine lege, através da máxima nulla poena sine crimen. A articulação justifica-se, precisamente, para evitar que os órgãos de aplicação do Direito estabeleçam em concreto uma certa conexão entre crime e pena que não tenha sido definida pelos órgãos legislativos (a este princípio se refere já Eduardo Correia, no seu ProjCP 1963). E, para dar outro exemplo, é o princípio do controlo democrático do Direito Penal que justifica que as medidas de segurança só sejam aplicáveis se os respetivos pressupostos estiverem fixados em lei anterior. Verificada a relação entre o fundamento constitucional do princípio da legalidade e o seu âmbito, poderemos agora formular as consequências do referido princípio, através das seguintes máximas, que se alargarão a todas as reações criminais:  Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta (reserva de lei);  Nulla poena sine crimen (princípio da conexão);  Nullum crimen, nulla poena sine lege certa (princípio da tipicidade);  Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia (proibição de retroatividade). A relação entre fundamento e âmbito do princípio da legalidade conduz-nos, assim, à análise dos seus corolários. 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 Reserva de lei e Direito Penal: âmbito: aplicar-se-á o princípio geral da reserva de lei apenas às normas ou, mais amplamente, às normas incriminadoras que geram ou agravam a responsabilidade – as normas penais positivas – ou quaisquer outras normas penais – as negativas (que determinam a exclusão ou a atenuação da responsabilidade) – merecerão o mesmo controlo na perspetiva da segurança e das liberdades individuais? O fundamento do princípio da legalidade impõe que as normas penais que ampliem a incriminação, ao afetarem a segurança e as liberdades individuais, sejam aprovadas pelo Parlamento ou, pelo menos, pelo Governo, mediante delegação de competência. O artigo 168.º, n.º1, alínea c) CRP refere-se, porém, apenas à definição dos crimes, penas e medidas de segurança e respetivos pressupostos. Perguntar-se-á, deste modo, se as circunstâncias que agravam a responsabilidade ou as circunstâncias eximentes ou atenuantes se incluirão nesta previsão constitucional, segundo aquele fundamento. As circunstâncias agravantes definem o concreto facto criminoso, sendo abrangidas pela previsão da alínea c) do n.º1 do artigo 168.º. Isto sucede nitidamente no caso das circunstâncias modificativas, que alteram o tipo fundamental suscitando uma nova medida legal da pena (artigo 132.º CP). Mas também no caso das circunstâncias agravantes simples (que não alteram a medida legal, mas somente a medida concreta da pena), o facto criminoso, de ilicitude ou culpa agravadas, é sempre diverso daquele em que a ilicitude ou a culpa são menos graves. As razões justificativas da reserva de lei favorecem, seguramente, a aplicação da alínea c) do artigo 168.º, n.º1 CRP a todas as circunstâncias agravantes. No entanto, o artigo 72.º CP não consagra a tipicidade das circunstâncias a ponderar na determinação da pena concreta. Ora, esta tipicidade parece ser incompatível com a reserva de lei, por postular a criação jurisprudencial de novas circunstâncias. Porém, uma tal criação de circunstâncias apenas pode valer para o caso concreto. O caráter exemplificativo do artigo 72.º CP não obsta a que a previsão abstrata de circunstâncias agravantes (embora gerais) esteja submetida à reserva de lei. A previsão de uma nova circunstância agravante à revelia de reserva de lei restringiria o peso das circunstâncias atenuantes a considerar pelo julgador, modificando sempre o artigo 72.º CP. Quanto às circunstâncias eximentes ou atenuantes da responsabilidade criminal, o problema é bem mais delicado. Uma lógica simplificadora dirá que elas não estão submetidas à reserva de lei por não afetarem as expectativas de segurança e a liberdade individual dos destinatários das normas penais. Deste modo, por considerarem permitidos factos que de outra forma o não seriam, ou desculpáveis os seus agentes, aquelas circunstâncias não exigiriam um controlo direto pelos representantes da vontade democrática. Contra esta perspetiva, no entanto, poderse-á dizer que as circunstâncias eximentes da responsabilidade podem alterar a delimitação dos direitos dos cidadãos entre si. Assim, no que respeita às causas de justificação do facto ou de exclusão da ilicitude, a liberdade criada pela permissão de certas condutas diminuirá a liberdade de todos os que se pretenderem opor às mesmas. O problema que resulta desta exemplificação não pode ser resolvido num plano formal, mas pela análise da natureza da própria circunstância eximente. Há, na realidade, eximentes que, ao permitirem certas condutas, que em geral são proibidas, abrem uma exceção, de modo que a sua previsão afeta as expectativas gerais e diminui a liberdade e a segurança dos cidadãos. Em outros casos, a permissão prevista decorre de uma ideia geral, de um princípio geral da Ordem Jurídica, sendo, por isso, de direito geral. Neste último caso, já a reserva de lei é dispensável, pois o legislador ordinário nada mais fará do que corporizar direitos latentes no ordenamento jurídico. Este critério, que a doutrina já invocava para a temática da proibição da analogia, será mais compreensível se tivermos em cona que onde a analogia não é proibida não deverá valer a reserva de lei. Também quanto às circunstâncias atenuantes da responsabilidade penal é desnecessária a reserva de lei. A atipicidade das atenuantes gerais resulta da fórmula genérica do artigo 72.º CP e tais 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 circunstâncias, influindo apenas na determinação da pena, não são suscetíveis de promover uma restrição indireta dos direitos das vítimas de crimes.

Reserva de lei e tipicidade das normas penais. O problema da interpretação da lei penal: o respeito pela reserva de lei não pode concretizar-se sem uma subtração das normas penais às técnicas legislativas que conduzam à pura criação jurisprudencial do Direito, no momento da sua aplicação. A reserva de lei penal origina, deste modo, uma especial conformação da técnica legislativa e da interpretação, de modo a permitir que as normas penais se apliquem estritamente de acordo com a sua definição legislativa. A decorrência destas proposições é o chamado princípio da determinação das normas penais incriminadoras, tanto no que respeita ao preceito primário como no que respeita ao preceito secundário. Segundo tal princípio, todos os pressupostos da incriminação e da responsabilidade pena têm de estar descritos na lei, não sendo admitidas as leis penais em branco. Este conteúdo das normas penais implica que estas sejam descrições de figuras ou tipos, isto é, determinações do conteúdo de certas imagens sociais relativamente concretas de comportamentos humanos, que prefigurem com exatidão o âmbito do proibido e a respetiva consequência (sanção). O princípio da determinação das normas penais implica o máximo preenchimento possível das figuras (ou imagens dos factos proibidos) através de verdadeiros conceitos de espécie. O mesmo princípio justifica o desmembramento do ilícito criminal através das várias figuras de infrações criminais, os chamados tipos legais de crime. A principal implicação desta técnica legislativa é a chamada tipicidade, categoria irrenunciável na determinação da responsabilidade penal. Assim, nenhum comportamento humano pode ser considerado criminoso se não corresponder a um tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito legal. A tipicidade é exatamente essa exigência de adequação do facto a um tipo legal de crime. A organização lógica das consequências da reserva de lei, em torno das ideias de determinação da lei penal e de tipicidade, assenta, porém, numa relativa mitificação da separação dos poderes e do princípio do controlo democrático. Pressupostos dessa mitificação são os dogmas do juiz autómato e da natureza concetual dos tipos legais de crime. A ideia do juiz autómato não é já, todavia, sustentada pelo pensamento jurídico. A sua rejeição justifica-se por ela não se adequar aos desígnios de realização da justiça que incumbem à função judicial (e que imporão a correspondência valorativa entre o caso legal e o real) e por ser irrealista a descrição da atividade lógica da norma ao caso concreto como uma pura subsunção. Constata-se, na verdade, que no processo de aplicação do Direito se recorre, necessariamente, à comparação, à analogia, entre a imagem legal e o caso concreto. Nessa comparação, decide-se fundamentalmente se um certo facto corresponderá ao tipo de ilícito que constitui a essência da norma incriminadora. Os conceitos típicos são, deste modo, funcionais relativamente à imagem global da violação do Direito que se pretende retratar. Exemplo semelhante, no Direito Penal português, é fornecido pelo conceito de substância venenosa ou de natureza análoga, relativamente ao crime de envenenamento (artigo 146.º CP), em que deverão caber todas as substâncias em si mesmas não tóxicas, mas que surtem o mesmo efeito sobre o organismo humano, se forem ministradas em conjunto com outras, ou em certas quantidades, ou contra pessoas particularmente débeis. A violação dos princípios da determinação e da tipicidade não se dá, consequentemente, logo que o legislador utiliza conceitos menos precisos ou que o intérprete excede um sentido puramente lógico-formal das palavras. Tal violação dá-se quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal de crime deixa de existir. Na verdade, a norma que previsse a incriminação de qualquer conduta antidemocrática, sem mais, seria inconstitucional pois ofenderia indiretamente a reserva de lei do artigo 168.º, n.º1, alínea c) e o artigo 29.º, n.º1 CRP por não

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 ser controlável o seu conteúdo. Mas, disposições legais como o artigo 137.º e o artigo 171.º CP utilizam conceitos normativos suscetíveis de um razoável consenso na linguagem jurídica, ética e social. De qualquer modo, também neste ponto a inconstitucionalidade depende do grau de imprecisão do conteúdo da norma, do nível de artificialismo dos conceitos e da sua inserção na linguagem vulgar. A violação da reserva de lei começará onde a linguagem normativa permitir a total manipulação do conceito para fins incontroláveis e onde for impossível uma perceção da descrição legal pelos seus destinatários coincidente com os resultados de uma interpretação teleológica. Uma outra concretização da reserva de lei verifica-se na própria interpretação da lei penal. O artigo 1.º, n.º3 CP proíbe, expressamente, a analogia quanto às normas de que resulta a qualificação do facto como crime, a definição de um estado de perigosidade e a determinação da pena ou medida de segurança correspondentes. O fundamento desta proibição reside, igualmente, na exclusividade da competência do Parlamento na formulação de normas incriminadoras. Se os tribunais pudessem utilizar a analogia, formulariam normas incriminadoras que deixariam de ser objeto de controlo democrático. Por outro lado, o caráter fragmentário do Direito Penal impede que comportamentos análogos aos expressamente previstos, na perspetiva da lesão do bem jurídico violado, tenham o mesmo merecimento penal. A seleção da conduta incriminada é uma decisão legislativa inimitável pelo julgador através do recurso à analogia. A proibição de analogia não deve, porém, ser confundida com a proibição de raciocínios analógicos na aplicação da lei penal. A delimitação entre a analogia proibida e outras técnicas de interpretação tem sido formulada a propósito das fronteiras entre interpretação extensiva e analogia. O problema tem surgido através de três perguntas:

1. O que distingue a interpretação extensiva da analogia? 2. A interpretação extensiva é igualmente proibida? 3. Quais os critérios gerais que delimitam o permitido e o proibido na interpretação do Direito Penal e como se relacionam com eles fórmulas como a interpretação extensiva e a redução teleológica? A categoria da interpretação extensiva baseia-se, no plano teórico, na possibilidade de referir um certo caso não expressamente considerado pela letra da lei ao seu pensamento. Diferenciase da analogia, na medida em que o caso real é meramente semelhante aos casos considerados pela lei, sem, no entanto, ter sido pensado por ela. Assim, quando o legislador tenha apenas exprimido imperfeitamente a intenção de regular o caso haverá interpretação extensiva. Todavia, essa distinção concebida pela doutrina tradicional assenta numa perspetiva da interpretação jurídica como subsunção, segundo a qual seriam separáveis os momentos de pura investigação do sentido e âmbito da lei e da sua aplicação aos casos concretos. Um tal modelo admite uma interpretação jurídica não constitutiva o não criativa e a própria analogia é subtraída ao pensamento inspirador do caso legal, como se a integração das lacunas não se socorresse afinal de um fundamento jurídico derivado da própria lei que abrange casos semelhantes. Acresce que este modelo se baseia na existência prévia ou predeterminante de um sentido literal que se impõe à interpretação, visando a interpretação apenas esclarecer a coincidência com aquele sentido dos elementos não literais. Todavia, é discutido se esse sentido literal poderá ser o ponto de partida da interpretação e não terá de ser apenas o produto da interpretação. A crítica aos pressupostos metodológicos do pensamento jurídico por que se orientam os conceitos de interpretação extensiva e de analogia tem desferido um golpe profundo na viabilidade científica dos mesmos, tornando-se necessária a interpretação jurídica

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 da proibição legal da analogia com todos os instrumentos do pensamento jurídico que permitam compreender a sua ratio e a sua possibilidade. Quando se descobre a razão de ser de tal proibição na segurança jurídica e no controlo democrático da aplicação da lei penal, compreende-se, igualmente, que a distinção entre interpretação extensiva e analogia não permite traçar rigorosamente as fronteiras da interpretação que não ofende a segurança jurídica. Na realidade, a própria interpretação extensiva, embora atribuível num plano lógico e objetivo ao pensamento do legislador, pode não corresponder já a um entendimento juridicamente aceitável das palavras. E, por outro lado, não é de excluir que se ultrapasse o pensamento do legislador, na sua formulação histórica, interpretando-se a norma de acordo com um significado plausível e juridicamente válidos das palavras. A categoria da interpretação extensiva não tem, em si mesma, força suficiente para resolver o problema da fronteira da interpretação permitida, devendo procurar-se um critério fundamentado na racionalidade da proibição de analogia e desligado destas categorias tradicionais. Antes de se tentar uma superação das categorias tradicionais da interpretação extensiva e da analogia poderemos questionar se a ultrapassagem das dificuldades se obtém, sem mais, pela proibição da interpretação extensiva. Uma resposta afirmativa remeteria a fronteira da interpretação permitida para a delimitação entre interpretação declarativa e extensiva e permitiria o cumprimento do principio da legalidade consagrado no artigo 1.º, n,º.3 CP. O artigo 1.º, n.º3 CP porém, não proíbe expressamente a interpretação extensiva. E, por outro lado, não se poderá inferir da proibição da analogia in malam partem pelo n.º3 do artigo 1.º CP a permissão da interpretação extensiva, através de um raciocínio a contrario sensu. Na verdade, este raciocínio postularia apenas a analogia in bonam partem. Aplicando os critérios tradicionais de interpretação jurídica, a proibição de interpretação extensiva só pode ser retirada do artigo 1.º, n.º3 CP por analogia com a proibição da própria analogia. Porém, a norma que proíbe a analogia no Direito Penal circunscreve excecionalmente, no conjunto da Ordem Jurídica, a atividade interpretativa: a analogia só é proibida, em geral, quanto às normas excecionais, que podem, no entanto, ser objeto de interpretação extensiva (artigo 11.º CC). Uma limitação da atividade interpretativa mais ampla do que a do artigo 11.º CC só se justificaria na medida em que os princípios constitucionais do Direito Penal o impusessem indiscutivelmente – isto é, na medida requerida pela legalidade e pela reserva de lei. Ora, a interpretação extensiva, tal como é definida tradicionalmente, como expressão do pensamento da lei revelado pelos elementos não literais da interpretação, não contende, necessariamente, com estes princípios. Não se poderia, por conseguinte, considerar proibida toda e qualquer interpretação extensiva, no Direito Penal, apenas porque é difícil praticamente delimitá-la da analogia à luz dos critérios tradicionais da interpretação. Esse fundamento não seria sistematicamente admissível para justificar uma conclusão por analogia com a própria proibição da analogia. Não se deve também deduzir a proibição de interpretação extensiva do preceito constitucional que exige a expressa cominação legal das penas e medidas de segurança (artigo 29.º, n.º3 CRP), visto que se poderia ainda entender que a interpretação extensiva se refere a um pensamento expresso, embora imperfeitamente. De tudo isto, resulta que a interpretação extensiva não é necessariamente proibida ou permitida em Direito Penal, tudo dependendo da enunciação de outros critérios, derivados diretamente da ideia de segurança jurídica inerente ao princípio da legalidade e recondutíveis, em última instância, ao princípio do Estado de Direito democrático. As dificuldades metodológicas da delimitação entre interpretação extensiva e analogia e a insuficiência desta distinção para realizar plenamente os valores jurídicos que justificam o próprio princípio da legalidade conduziram a uma fase problemática ainda não ultrapassada. Tal fase problemática caracteriza-se pela dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprir o princípio da legalidade tal como ele se formula pela 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 proibição da analogia e, simultaneamente, na imprescindibilidade de manter o controlo e a segurança jurídicas impostos pelo princípio da legalidade. As respostas a este problema passa, todas elas, pela superação da distinção entre interpretação extensiva e analogia, conduzindo o pensamento jurídico para uma fronteira mais profunda entre interpretação permitida e proibida. Diversificam-se, todavia, os novos modelos de abordagem da questão conforme as perspetivas sobre o Direito, sobre a interpretação em geral, que surjam como a pré compreensão do problema. São referíveis, basicamente, dois modos de abordagem: o pensamento antipositivista, valorativo, teleológico e pragmático com inspiração filosófica em Heidegger e Gadamer e a perspetiva positivista com inspiração na filosofia analítica, mais logicista e menos pragmática. A resolução do problema da proibição da analogia e do cumprimento do princípio da legalidade é alcançada, pela primeira posição, desvinculando a interpretação permitida e a significação jurídica da análise semântica do tipo legal, orientando e controlando a interpretação jurídica por critérios extra literais reveladores do significado fundamental da norma no sistema jurídico. Nos segundos autores, os limites da interpretação permitida são ainda controlados fundamentalmente por critérios de significação (e de validade da interpretação) de índole linguística, de modo que o cumprimento do princípio da legalidade se verifica até ao ponto em que se não ultrapasse o sentido possível das palavras. O que se discute, fundamentalmente, é se o princípio da legalidade pode ser cumprido sem uma pré-determinação essencial da norma por limites linguísticos extra jurídicos definidos em abstrato e vinculativos da concretização do Direito no caso. A primeira perspetiva relativiza de tal forma essa pré-determinação semântica abstrata que concebe que o texto jurídico deixou de ser, em absoluto, objeto da interpretação (esfumando-se o elemento literal) para, em seu lugar, colocar a norma (a definir) do caso concreto, cuja descoberta só é pré-determinada por um jogo de condições de validade. Castanheira Neves propõe quatro condições de validade como critério distintivo entre a interpretação proibida e a permitida em Direito Penal:  a condição legal: necessidade de o concreto juízo incriminatório ter fundamento efetivo numa norma criminal positiva, isto é, ser secundum legem;  a determinação dogmática dos fins: corresponde à necessidade de os tipos legais serem construídos pelo legislador de tal modo que seja possível apreender o núcleo axiológico-normativo fundamentante, com apreciável relevo para o bem jurídico tutelado, não bastando uma conceitualização lógico-formal e genérico-abstrata. O tipo legal deve suscitar no pensamento jurídico modelos normativos-racionais de compreensão sistemática e a interpretação permitida terá de referir-se a um desses modelos, pois só assim o juízo decisório será controlável pela Ciência do Direito e pelas instituições judiciais;  a adequação sistemática: exclui a incoerência sistemática, de modo a que a interpretação adotada para o caso possa ser generalizada relativamente a outros casos sem prejuízo para a coerência do sistema;  garantia de cumprimento do nullum crimen: deve haver uma garantia institucional – a garantia jurisprudencial da unidade do Direito, que compete ao Supremo Tribunal de Justiça. As condições propostas por Castanheira Neves referem a interpretação permitida às possibilidades de controlo legal e do conteúdo material do ilícito, a um nível sistemático e jurisprudencial. A interpretação permitida será, assim, não só aquela que caiba no sentido

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 logicamente possível das palavras da lei, mas também a que revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir e seja compatível com outros valores do sistema e com a unidade do Direito definida pelas instâncias que a devem assegurar. A perspetiva proposta por Castanheira Neves converte, todavia, o controlo da reserva de lei (modelo democrático-parlamentar) num controlo institucional-jurisprudencial da lei penal (modelo jurisprudencial dogmático), ultrapassando a racionalidade liberal que está na origem da proibição da analogia. Enquanto apela à coerência sistemática e à unidade do Direito definida pela jurisprudência, o autor remete a definição dos critérios da interpretação da lei penal para a definição de instâncias menos diretamente controladas pelos cidadãos. A própria definição de adequação sistemática não é, contudo, um problema de conhecimento dos valores estáticos do sistema, mas depende de redefinições atualistas, que só estão ao alcance das instâncias de discussão pública e parlamentar. E é discutível que a máxima segurança não dependa diretamente do modelo de consenso democrático, de modo a que a interpretação proibida não seja, sempre e tão só, a que fere o consenso constitucionalmente instituído. Por outro lado, a unidade do Direito que Castanheira Neves atribui ao Supremo Tribunal de Justiça é uma tarefa só realizável através de um juízo de constitucionalidade e consequentemente própria do controlo de constitucionalidade efetuado, em última instância, pelo Tribunal Constitucional. Por outro lado, as duas últimas condições formuladas por Castanheira Neves (sistemática e institucional) referem o problema da interpretação proibida a uma questão mais geral, autónoma da proibição da analogia: a mera inconstitucionalidade da interpretação de determinada norma. Na verdade, a aplicação de uma norma por analogia não se pode confundir com uma sua interpretação contrária à unidade material do Direito que resulta dos princípios constitucionais. E, em certos casos, a aceitação de analogia concordante com os princípios gerais do sistema afetaria a garantia previsibilidade da incriminação. A possibilidade de distinguir o sentido comunicado pelo legislador na norma do plano da sua validade é uma garantia básica de segurança jurídica, pois subtrai o âmbito do proibido aos possíveis subjetivismos valorativos. Esta sensibilidade contrária ao institucionalismo e ao subjetivismo normativista afasta-nos, consequentemente, da metodologia oferecida por Castanheira Neves. Mas a crítica que a solução proposta por Castanheira Neves nos sugere contém, implicitamente, uma divergência quanto ao ser da interpretação jurídica. A interpretação é, em geral, entendida por Castanheira Neves como «momento da concreta e problemática decisória realização do direito», o que implica uma redefinição do objeto tradicional da interpretação – o texto jurídico. O objeto da interpretação deixará de ser, como se disse, o texto, para se tornar os critérios jurídicos, apreensíveis nos textos legais, da decisão dos casos concretos. Haverá, consequentemente, uma total relativização dos momentos tradicionais da investigação hermenêutica sobre o conteúdo dos textos normativos. A interpretação passa a assumir-se, exclusivamente, como decisão dos casos pela aplicação de critérios jurídicos emanados da norma e do sistema em que esta se insere. Esta norma, porém, não se confunde cm a sua expressão, o seu texto, mas é necessariamente a norma de decisão do caso concreto: o critério de decisão jurídica solicitado pela problematicidade concreta do caso decidendo e que seja adequado a um sentido normativo essencial, correspondente a uma intencionalidade de dever ser relativa a uma multiplicidade de casos. A supressão, na interpretação, de um momento determinante de compreensão do significado do texto normativo enfraquece o processo lógico de fundamentação da decisão jurídica. O respeito pelas garantias dos destinatários das normas não dispensa aquele momento. Não é, aliás, desejável encontrar a norma do caso sem investigar, previamente, a norma de um conjunto de casos hipotéticos a que mais evidentemente se aplica a norma. A descoberta do sentido literal e comunicacional do texto jurídico corresponde à obtenção dessa regra válida 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 para os casos hipotéticos imediatamente apreensíveis, que possibilita a igualdade das soluções e aquele raciocínio analógico (e não subsuntivo) de que Arthur Kaufmann fala a propósito do modo de ser da adequação do caso concreto à norma jurídica. A divergência com o modelo de interpretação jurídica que Castanheira Neves propõe não implica, no entanto, a aceitação do modelo positivista subsuntivo tradicional, mas apenas uma perspetiva menos subjetivista e menos normativista sobre o conteúdo do raciocínio fundamentador em que consiste a interpretação das normas jurídicas. Tal raciocínio fundamentador da interpretação não prescindirá nunca da relevância do texto jurídico, como ente autonomamente significativo, devido ao valor comunicativo e de garantia que ele confere. A transposição desta análise para a da interpretação permitida em Direito Penal implica, obviamente, que o sentido possível das palavras no texto jurídico seja necessariamente fundamentante da decisão e critério jurídico inultrapassável da norma do caso. Haverá, portanto, uma vinculação relativa ao texto, em si mesmo, na apreensão da norma. Enquanto para Castanheira Neves, na sua inspiração platónia, as ideia jurídicas não são moldadas pelas palavras, mas meramente indiciadas por elas, na perspetiva agora referida as palavras são constitutivas das ideias. As palavras são o limite do mundo5. A perspetiva do positivismo lógico-analítico, que subjaz à referência da proibição da analogia ao sentido possível das palavras, surge, consequentemente, como polo de atração da crítica anterior através do predomínio que na interpretação deve ser concedido ao texto jurídico. No seu enquadramento filosófico, esta outra perspetiva não dilui o Direito nas intencionalidades normativas ou no subjetivismo do sistema, mas antes o absorve na constituição objetiva do mundo através da linguagem e sobretudo da linguagem da comunicação – a linguagem comum. A convicção primeira desta perspetiva é a possibilidade de obtenção do significado válido do texto independentemente de um contexto subjetivo ou de uma intencionalidade particular que ao mesmo seja atribuído pelo seu autor. Isto implica a possibilidade de determinação do sentido ou dos limites do sentido do texto legislativo previamente à das suas referências sistemáticas ou à descoberta da intenção legislativa. Na raiz de uma tal análise, está uma teoria da significação semântico-formal, segundo a qual a linguagem vale e significa independentemente das intenções e ideias dos sujeitos, de acordo com o sistema de regras da linguagem – são as prioridades formais das expressões ou as suas regras geradoras que determinam o significado e a validade da linguagem. Menos formalmente do que esta perspetiva enquadradora, a teoria do uso da significação de Wittgenstein concebe ainda que o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem, o qual está comprometido com formas de vida e de sociabilidade. Existiria uma espécie de gramática dos jogos de linguagem que dependeria de uma prática social ou interação. E, ainda com uma referência objetiva mais complexa, Habermas argumentará que o significado linguístico é também constituído comunicativamente. Na medida desta comunicabilidade, o sentido completo de uma asserção depende de uma tripla pretensão de validade – a referência ao estado das coisas existentes no mundo objetivo (pretensão de verdade), a referência ao mundo subjetivo das experiências a que o sujeito que fala tem um acesso particular (pretensão de sinceridade) e a referência ao mundo social normativamente regulado das atuações interpessoais. São estas referências que pressupõem a aceitabilidade de razões ou argumentos por quem é destinatário de um ato linguístico que permitem a compreensão do significado do mesmo. Desde a semântica formal até à teoria da comunicação, a significação da linguagem constrói a sua validade com uma referência à realidade, que não se confunde com as meras 5

Assim, comentando Peirce, diz Habermas que o seu pensamento se confronta com a consequência perturbadora de os limites da linguagem serem os próprios limites do mundo. Para Habermas, todavia, a linguagem é uma projeção vazia que se preenche com a modificação das perspetivas sobre a realidade.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 intenções de quem fala ou com qualquer outra subjetividade (mesmo que este seja, afinal, a dos valores do sistema jurídico). Mas mesmo que se devessem admitir linguagens privadas no Direito Penal, o artigo 1.º CP vedaria essa possibilidade. Há um sentido geral das palavras que se impõe ao sentido meramente jurídico, restringindo-se o voo livre de critérios jurídicos suscitados pelo caso. A perspetiva do sentido possível do texto a que se apelou implica esclarecimentos adicionais. Trata-se do sentido do texto, ou das palavras no texto jurídico, e não das palavras isoladamente. O sentido possível do texto, como limite da interpretação permitida, é o sentido comunicacional percetível do mesmo e não qualquer sentido lógico não sustentável pela linguagem social, pelo menos na sua forma simbólica. O sentido possível do texto delimitase ainda, mas não se alarga, pela adequação do texto à essência do proibido de acordo com as valorações do sistema que a norma diretamente exprime ou pretende exprimir. Em conclusão, o texto jurídico, cujo significado seja determinável pela linguagem comum, torna-se, nessa perspetiva, a condição essencialmente pré-determinante da interpretação permitida em Direito Penal, a que se adicionam, sem dúvida, ainda outras condições. Estas outras condições contribuem para a fixação do sentido jurídico definitivo do texto, para a delimitação da intenção da intenção normativa que ele objetivamente revela, mas não são elas mesmas elementos de fixação ou determinação do texto. É, todavia, possível que esse sentido normativo em que a norma revela a expressão concretizada do sistema seja contrário às normas ou princípios constitucionais. Nesse caso, estaremos, apenas, perante uma interpretação proibida com fundamento na Constituição e não perante a proibição da analogia do artigo 1.º CP.

Proibição de redução teleológica incriminadora das normas que delimitam a tipicidade: a proibição da analogia incluirá a redução teleológica incriminadora? A redução teleológica exclui do âmbito da lei casos em que a sua letra abrangeria, por tais casos não deverem ser abrangidos pelos fins essenciais que a lei prossegue, embora ainda pudesse ser referidos ao pensamento do legislador. A redução teleológica será incriminadora quando essa exclusão de casos se referir a normas que delimitam negativamente a tipicidade. A vinculação ao texto jurídico, como fator pré-determinante de interpretação, conduzirá a uma rejeição da redução teleológica incriminadora, pois também corresponde ao sentido possível das palavras a sua utilização no sentido comunicacional mais amplo, isto é, englobando todas as possibilidades de entendimento. Por outro lado, quem rejeite a interpretação extensiva de normas penais positivas deverá, coerentemente, recusar a própria interpretação restritiva de normas que delimitam a tipicidade.

Não proibição de analogia e de redução teleológica das normas permissivas : quanto às normas permissivas não é proibida necessariamente a analogia, na medida em que tais normas não são descrições típicas das condutas permitidas, mas mero afloramento dos princípios ou critérios gerais de solução de conflitos de interesses ou direitos. Nelas, o texto jurídico não é pré-determinante como nas normas incriminadoras. O recurso à analogia, quando justificado pela necessidade de concretizações diferentes das legalmente previstas dos princípios reguladores dos conflitos de interesses ou direitos, é permitido, mesmo que se ultrapasse o sentido possível das palavras. Todavia, é fundamentalmente a analogia iuris que é admissível, pois a norma permissiva, ao particularizar uma intenção normativa mais vasta, concretiza critérios ou condições de permissividade não abrangentes de outras condutas que merecem ser permitidas segundo o mesmo princípio geral. Por outro lado, a referida analogia iuris, que envolve o apelo aos princípios fundamentais da justificação, como ensina Cavaleiro de Ferreira, é de direito excecional e não de direito geral. Surge ainda a questão de saber se a redução teleológica de normas permissivas é legítima. Também existe um efeito incriminador mediato 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 derivado da redução teleológica de uma norma permissiva. Mas esse efeito não está necessariamente subordinado às garantias que justifiquem a proibição da analogia de normas incriminadoras. Consideremos, por exemplo, uma redução teleológica do artigo 32.º CP que retire do seu âmbito «as defesas necessárias elevadamente desproporcionadas à gravidade insignificante da agressão», com fundamento no princípio geral de que a legítima defesa implica concretizações em que a defesa do direito é menos valiosa do que a preservação da dignidade da pessoa do agressor. Nesse caso, o efeito incriminador não consiste num alargamento da norma incriminadora, mas na limitação do conteúdo da norma permissiva, cuja prevalência sobre a norma incriminadora deixa de existir no caso concreto. O alargamento das possibilidades de incriminação, na hipótese proposta, baseia-se, contudo, na ponderação de valores subjacente à norma permissiva e no conteúdo do direito de defesa que o Direito Penal não pode autonomamente prever, mas que resulta de ponderações de valores do sistema. Somente a consideração das causas de justificação reconhecidas no Direito Penal como direitos impediria raciocínios deste tipo. No entanto, as causas de justificação positivadas não conferem, necessariamente, a partir da sua configuração penal excludente da punibilidade, direitos de intervenção.

O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege6: 1. Função, sentido e fundamentos: o princípio do Estado de Direito conduz a que a proteção dos direitos, liberdades e garantias seja levada a cabo não apenas através do Direito Penal, as também perante o Direito Penal. Até porque uma eficaz prevenção do crime, que o Direito Penal visa em último termo atingir, só pode pretender êxito se à intervenção estadual forem levantados limites estritos – em nome da defesa dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – perante a possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva. A esta possibilidade de arbítrio ou de excesso se ocorre submetendo a intervenção penal a um rigoroso princípio de legalidade, cujo conteúdo essencial de traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). A norma contida no artigo 29.º, n.º2 CRP confere jurisdição aos tribunais portugueses para conhecerem de certos crimes contra o Direito Internacional (os crimina iuris gentium), mesmo que as condutas visadas não sejam puníveis à luz da lei positiva interna. Necessário é porém que se trate de crimes à luz dos «princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos» (artigo 8.º, n.º1 CRP) e a punição só pode ter lugar «nos limites da lei interna», que define os termos do processo e as sanções aplicáveis. A ideia de que o Direito Internacional pode impor diretamente deveres de natureza penal aos indivíduos consolidou-se a partir dos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, onde as potências aliadas julgaram e condenaram membros das foras do Eixo por violações graves do Direito Internacional (crimes contra a paz e a humanidade e crimes de guerra) que não eram punidas pela lei interna desses países. Deste modo, no artigo 29.º, n.º2 CRP parece ter-se adotado a conceção segundo a qual a responsabilidade por crimes contra o Direito Internacional não se encontra sujeita ao princípio da legalidade previsto no artigo 29.º, n.º1, válido apenas para lei estadual. Porém, hoje é seguro que o princípio nullum crimen sine lege constitui um princípio geral de Direito Internacional, embora o seu modo seja 6

Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral, tomo I; Coimbra Editora, 2.ª Edição; Outubro 2012, Coimbra.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 diverso, uma vez que no termo lege se inclui também o Direito (Internacional) Costumeiro; o que não deixa de trazer problemas graves quanto à exigência de determinabilidade das condutas puníveis. De toda a maneira, a importância do problema tem vindo a reduzir-se progressivamente desde o fim da II Guerra por força da cristalização positiva do Direito Costumeiro em várias Convenções Internacionais, cujas normas os Estados vão incorporando no seu Direito Interno. Nesses casos a lei interna deve servir a proteção do Direito Internacional. Dever que se tornou ainda mais claro com o Estatuto de Roma e o princípio de subsidiariedade da jurisdição do TPI em relação às jurisdições nacionais, aí contido, nomeadamente, quando esteja em causa a aplicação extraterritorial das normas de acordo com o princípio da universalidade (artigo 5.º, n.º2, alínea b)). O princípio da legalidade da intervenção penal possui uma pluralidade de fundamentos, uns externos (isto é, ligados à conceção fundamental do Estado), outro internos (sc., de natureza especificamente jurídico-penal). Estre os primeiros avultam o princípio liberal, o princípio democrático e o princípio da separação de poderes. De acordo com o princípio liberal, toda a atividade intervencionista do Estado na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas tem de ligar-se à existência de uma lei e mesmo, entre nós, de uma lei geral, abstrata e anterior (artigo 18.º, n.º2 e 3 CRP). De acordo com os princípios democrático e da separação dos poderes (na sua compreensão atual, onde a separação é pensada nos quadros da interpenetração e da corresponsabilização), para a intervenção penal, com o seu particular peso e magnitude, só se encontra legitimada a instância que represente o Povo como titular último do ius puniendi; donde a exigência, uma vez mais, de lei, e na verdade, entre nós, de lei formal emanada do Parlamento ou por ele competentemente autorizada (artigo 165.º, n.º1, alínea c) CRP). Entre os fundamentos interno costumam apontar-se a ideia da prevenção geral e o princípio da culpa. Com razão. Não pode esperar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do comportamento da generalidade dos cidadãos – seja na sua vertente negativa de intimidação, seja sobretudo na sua vertente positiva de estabilização das expectativas – se aqueles não puderem saber, através de lei anterior, estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente puníveis dos não puníveis. Como não seria legítimo dirigir a alguém a censura por ter atuado de certa maneira se uma lei com aquela características não considerasse o comportamento respetivo como crime. Vale a própria função de prevenção especial positiva ou de ressocialização, no seu entendimento atual, confirma a exigência do princípio da legalidade: o comportamento que indicia a perigosidade não é (não pode ser) apenas sintoma ou índice da carência de socialização e ensejo para que esta intervenha, mas tem de ser co-fundamento e limite da intervenção criminal; nesta medida ressurgindo a exigência de legalidade estrita daquela.

2. Nullum crimen sine lege: o princípio segundo o qual não há crime sem lei anterior que como tal preveja uma certa conduta significa que, por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redação funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos. Neste sentido se tornou célebre a afirmação de Von Liszt segundo a qual a lei penal

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 constitui a «magna Charta do criminoso». Tem-se argumentado que, sendo assim, a lei penal representa uma espécie de carta de alforria para o agente mais hábil, mais refinado e (às vezes) mais rico e poderoso, numa palavra (própria da ciência criminológica), para o agente dotado de maior competência de ação. Será verdade. Mas importa fazer neste contexto duas precisões: a primeira é a de que um ta agente não é, em definitivo, um criminoso se não for como tal considerado por uma sentença passada em julgado; a segunda a de constituir este, apesar de tudo, um razoável preço a pagar para que possa viver-se numa democracia que proteja minimamente o cidadão do arbítrio, da insegurança e dos excessos de que de outro modo inevitavelmente padeceria a intervenção do Leviatã estadual.

3. Nulla poena sine lege: a fórmula «não há crime sem lei» é complementada pela fórmula «não há pena (rectior, não há sanção criminal, pena ou medida de segurança) sem lei». Na interpretação desta fórmula verificam-se todavia algumas dificuldades que devem ser consideradas. Desde logo, cumpre dizer que – diversamente do que sucede em muitas outras ordens jurídicas, onde a conclusão tem de ser alcançada por via interpretativa – entre nós também este segmento do princípio tem expressa consagração jurídicoconstitucional e legal. Nesse sentido afirma logo o artigo 29.º, nº.3 CRP que «não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior». No que toca às penas, estas exigências de lex praevia corresponde à doutrina internacional dominante. Não assim já porém no que toca às medidas de segurança, relativamente às quais se pensava que o seu fundamento de estrita prevenção especial deveria conduzir a que pudesse aplicar-se a medida de segurança vigente ao tempo da aplicação, porque isso seria apenas sinal de um entendimento legislativo melhor para o (sc., mais favorável) ao agente. Uma tal conceção foi reusada pela CRP, como se disse, e , na sua esteira, pelo artigo 2.º, n.º1 CP. Em detrimento da ideia paternalista de que ao legislador pertenceria dizer o que seria melhor para o agente, porquanto só considerações ilimitadas de prevenção especial estariam na base das medidas de segurança, veio a legislação constitucional e ordinária portuguesa dar prevalência a uma consistente proteção dos direitos, liberdades e garantias das pessoas também face à aplicação de medidas de segurança, conferindo assim ao facto uma função de co-fundamento da respetiva aplicação. E, por esta via, veio assegurar-se a extensão do princípio da legalidade às medidas de segurança com âmbito análogo àquele que ele tradicionalmente assume para as penas. Com esta extensão, o CP 1982 e a nossa lei Constitucional deram um passo decisivo – e mesmo pioneiro – numa compreensão moderna e democrática destes instrumentos sancionatórios. O princípio em exame significa, por outro lado, ser completamente vedado ao juiz, seja em bora na base da mais esclarecida e avançada consciência político-criminal, criar instrumentos sancionatórios criminais que se não encontrem estritamente previstos em lei anterior. O princípio da legalidade assume consequências ou efeitos em cinco planos diversos: no plano do âmbito ou da extensão, no plano da fonte, no plano da determinabilidade, no plano da proibição da analogia e no plano da proibição da retroatividade.

4. O plano do âmbito de aplicação: neste plano cumpre assinalar que o princípio da legalidade não cobre, segundo a sua função e o seu sentido, toda a matéria penal, mas apenas a que se traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Sob pena, de outra forma – isto é, se abrangesse também a matéria da exclusão ou da atenuação da responsabilidade – de o princípio passar a funcionar contra a sua teleologia 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 e a sua própria razão de ser: a proteção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão face à possibilidade de arbítrio e de excesso do poder estatal. Por isso, para se avançar apenas com um exemplo, o princípio cobre toda a matéria relativa ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa, mas já não a que respeita às causas de justificação ou às causas de exclusão da culpa. De tal forma é importante esta restrição do âmbito do princípio que ela se estende a todas as suas consequências – seja no plano da fonte (matéria em todo o caso discutível), seja no da determinabilidade, seja no das proibições de analogia e de retroatividade.

5. O plano da fonte: neste plano o princípio conduz à exigência de lei formal: só uma lei da AR ou por ela competentemente autorizada pode definir o regime dos crimes, das penas e das medidas de segurança e seus pressupostos. A este propósito podem todavia suscitar-se alguns problemas que não devem deixar de ser referidos, ainda que só per summa capita. Desde logo, o de que, em rigor, o conteúdo de sentido do princípio da legalidade, ainda aqui, só deveria cobrir a atividade de criminalização ou de agravação, não a de descriminalização ou de atenuação. O que deveria conduzir, por seu lado, a considerar que o Governo possui competência concorrente com a da AR para descriminalizar ou atenuar a responsabilidade criminal. Posto perante a questão, o nosso TC respondeu-lhe negativamente, interpretando a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos no sentido de abranger tanto a função de criminalização (ou de maior criminalização), como a de descriminalização (ou de menor criminalização). Não é impossível excogitar razões jurídicas de política geral, relacionadas nomeadamente com a definição dos círculos de competência de órgãos de soberania dotados de poderes legiferantes, que ofereçam um qualquer fundamento a esta doutrina. O que sempre será errado é invocar, ainda qui, o princípio da legalidade penal na sua teleologia e na sua funcionalidade específicas. Outro problema é o de saber se a exigência de legalidade no plano da fonte deverá abranger só a lei penal sensu stricto ou ainda também a lei extra-penal, na medida em que esta venha a ser chamada pela lei penal à fundamentação ou à agravação da responsabilidade criminal. Para esta fundamentação ou agravação serve-se muitas vezes a lei penal, com efeito de procedimentos de reenvio para ordenamentos jurídicos não penais; ordenamentos estes onde não vale, logo no plano da fonte, um princípio de legalidade equivalente ao que aqui se considera e onde, por isso, o Governo e a Administração têm competência geral, ou mais lata do que em matéria penal, para legislar. O que acaba por fazer crise nas chamadas normas penais em branco, sobretudo abundantes no âmbito do Direito Penal Secundário, que cominam uma pena para comportamentos que não descrevem, mas se alcançam através de uma remissão da norma penal para leis, regulamentos ou inclusivamente atos administrativos autonomamente promulgados em outro tempo ou lugar. Pressuposto, porém, evidente, que a norma penal em branco consta de lei forma, não se veem razões teleológicofuncionais decisivas para considerar em causa, no plano da fonte, o respeito pelo princípio da legalidade. O que fica dito vale também para os casos em que um Regulamento Comunitário (diretamente aplicável na ordem jurídica portuguesa – artigo 8.º, n.º4 CRP) é chamado a preencher, por remissão, o espaço em branco de uma norma penal interna: para este efeito o regulamento encontra-se no mesmo plano dos instrumentos legislativos nacionais não legitimados para criar proibições penais. O problema já não se põe relativamente às diretivas comunitárias e às decisões-quadro,

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 pois estes instrumentos carecem sempre de uma atividade de transposição por parte dos legisladores nacionais, a quem caberá proceder de acordo com o princípio da legalidade.

6. A determinabilidade do tipo legal: no plano da determinabilidade do tipo legal ou tipo de garantia – precisamente, o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixação se torna necessária para uma correta observância do princípio da legalidade –, importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos. Considerar crime as condutas que ofendem o «são sentimento do povo» ou a «ordem dos operários e agricultores» tornaria supérfluo um grande número de incriminações dos códigos penais; mas não cumpriria minimamente as exigências de sentido ínsitas no princípio da legalidade. Do mesmo modo, se e inevitável que a formulação dos tipos legais não consigna renunciar à utilização de elementos normativos, de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais e de fórmulas gerais de valor, é indispensável que a sua utilização não obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos, sob pena de violação irremissível, neste plano, do princípio da legalidade e sobretudo da sua teleologia garantística. Nesta aceção se afirma, com razão, que a lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem de ser uma lei certa e determinada; e se chama muito acertadamente a atenção, nos novos tempos, para que é mais aqui até do que no plano da proibição da analogia ou da retroatividade que reside o grande perigo para a consistência do princípio nullum crimen, que é neste ponto que reside o verdadeiro cerne do princípio da legalidade. O critério para decisivo para auferir do respeito pelo princípio da legalidade (e da respetiva constitucionalidade da regulamentação) residirá sempre em saber se, apedar da indeterminação inevitável resultante da utilização destes elementos, do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de proteção da norma claramente determinados.

Proibição da analogia: toma-se neste contexto o conceito de analogia como aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados: a chamada analogia legis, não a analogia iuris. Depois de quanto ficou dito torna-se evidente que o argumento de analogia, largamente adequado à aplicação da lei, tem em Direito Penal de ser proibido, por força do conteúdo de sentido do princípio da legalidade, sempre que ele funcione contra o agente e vise servir a fundamentação ou a agravação da sua responsabilidade. Esta conclusão já resultaria evidente do texto do artigo 29.º, n.º1 CRP (e também do artigo 1.º, n.º1 CP), porque nestas hipóteses se não pode afirmar que a lei declara punível o ato ou a omissão. Mas o CP entendeu – e bem – reforçar a proibição, estatuindo expressis verbis, no artigo 1.º, n.º3, que «não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou a medida de segurança que lhes corresponde».

Interpretação e analogia em Direito Penal: a proibição de analogia pressupõe a resolução do problema dos limites da interpretação admissível em Direito Penal. Está hoje afastada definitivamente a convicção iluminista de que o princípio da separação de poderes conduziria logo à proibição de qualquer processo de interpretação jurídica e a conceção da função policial que lhe subjazia. E aceita-se, pelo contrário, que praticamente todos os conceitos utilizados na lei são suscetíveis e carentes de interpretação: não apenas os conceitos normativos, mas mesmo

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 aqueles que à primeira vista se diria caracterizadamente descritivos e por isso apreensíveis através dos sentidos. Deste modo se torna inarredável a questão de saber o que pertence ainda à interpretação permitida e o que pertence já à analogia proibida em Direito Penal pelo princípio da legalidade. O critério de distinção teleológica e funcionalmente imposto pelo fundamento e pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade só pode ser o seguinte: o legislador penal é obrigado a exprimir-se através de palavras; as quais todavia nem sempre possuem um único sentido, mas pelo contrário se apresentam quase sempre polissémicas. Por isso o texto legal se torna carente de interpretação (e neste sentido, atenta a primazia da teleologia legal, de concretização, complementação ou desenvolvimento judicial), oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob não importa que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínio da analogia proibida. Um tal quadro não constitui por isso critério ou elemento, mas limite da interpretação admissível em Direito Penal. A doutrina aqui defendida não é, contra o que poderia pensar-se, arbitrária, nem muito menos filha de uma metodologia crassamente positivista. É, pelo contrário, a posição teleológica e funcionalmente imposta pelo conteúdo de sentido próprio do princípio da legalidade. Fundar ou agravar a responsabilidade do agente em uma qualquer base que caia fora do quadro de significações possíveis das palavras da lei não limita o poder do Estado e não defende os direitos, liberdades e garantias das pessoas. Por isso falta a um tal procedimento legitimação democrática e tem de lhe ser assacada violação da regra do Estado de Direito. É claro que, dito isto, não ficam ainda apontados os critérios de que o intérprete se deve servir para eleger, de entre os sentidos possíveis das palavras, aquele que deve reputar-se jurídico-penalmente imposto. Se o caso couber em um dos sentidos possíveis das palavras da lei nada há, a partir daí, a acrescentar ou a retirar aos critérios gerais da interpretação jurídica. O que simplesmente sucede, pois, é que há de facto, em toda a construção – e muito particularmente na aplicação – do Direito Penal um momento inicial de mera subsunção formal, imposta por aquele princípio (da legalidade) e pela função de garantia ou, se quisermos, pelo tipo de garantia que daquele princípio resulta. Ultrapassado porém este momento inicial, correspondente à operação lógico-jurídica a incriminação, toda a posterior construção e aplicação não está submetida àquelas exigências e deve integrar-se completamente nas duas ideias fundamentais da impostação metodológica sugerida. Decisivo será assim, por um lado, que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema. Perante a conceção aqui defendida parecem improceder as objeções que se seja tentado a opor-lhe. E desde logo a velha – mas sempre renovada – objeção segundo a qual não é logicamente possível, nem metodologicamente legítimo distinguir entre interpretação e analogia. Decerto que o processo lógico é o mesmo; decerto que interpretação e integração são momentos, ambos, de um processo metodológico de aplicação fundamentalmente unitário. Mas nada disto ofusca a circunstância de que existem processos hermenêuticos cuja conclusão se mantém no quadro dos significados comuns atribuídos às palavras utilizadas pelo legislador e processos cuja conclusão o ultrapassa: e é isto o essencial para observância do conteúdo de sentido legitimador do princípio da legalidade. Todo o resto acaba por reduzir-se a uma questão terminológica desinteressante, qual seja a de saber se em vez de distinguir a interpretação da analogia não se torna preferível distinguir uma interpretação jurídico-penalmente permitida de uma outra proibida. Não parece, por outro lado, que deva substituir-se a função limitadora que aqui se assinala ao teor literal da norma 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 incriminadora pelo sentido e finalidade da lei, em suma, pelo apelo à ratio legis. Claro que este sentido e finalidade assume na interpretação (também na jurídico-penal, como assinalámos) uma função primordial. Mas, antes de ele entrar em jogo, a interpretação admissível tem de passar a prova de fogo – para a qual pode servir a imagem do funil invertido – da sua admissibilidade face ao teor literal da lei e aos significados comuns que ele comporta. De outro modo esfuma-se a função de garantia da lei penal – a proteção das pessoas perante a lei penal –, não é possível encontrar qualquer especificidade do princípio da legalidade criminal face ao princípio da legalidade tout court e o disposto no artigo 29.º, n.º1 CRP perde inteiramente a sua função e o seu significado. O que acaba de dizer-se não significa porem que deva aceitar-se uma cisão entre o princípio da legalidade e a sua função político-criminal, sujeito a uma compreensão metódica estritamente lógico-formal, de um lado, e a dogmática do crime, orientada por uma consideração substancial, de outro; de tal modo que àquele princípio, uma vez ultrapassado o momento inicial de subsunção incriminatória, não mais houvesse que reverter. Antes o conteúdo e a função político-criminal do princípio da legalidade devem a cada momento estar presentes na construção dogmática do crime. E, antes de tudo, no seu elemento constitutivo que se acolhe sob a epígrafe da tipicidade ou, mais concretamente, tipo de ilícito, sendo neste que se fazem sentir de forma mais intensa e devem portanto encontrar tradução mais cabal as exigências de determinabilidade inerentes ao princípio da legalidade. Temas como os da exigência de uma conexão de risco em matéria de imputação objetiva, de determinação do que sejam atos de execução em matéria de tentativa, ou de preferência pelas doutrinas do domínio do facto em matéria de autoria são só alguns exemplos que esperamos tornarem claro aquilo que aqui se quis significar.

Âmbito da proibição da analogia: face ao fundamento, à função e ao sentido do princípio da legalidade a proibição da analogia vale relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a natureza, que sirvam pra fundamentar a responsabilidade ou para agravar; a proibição vale pois contra reum ou in malem partem, não favore reum ou in bonam partem. Concretamente, a proibição abrange antes de tudo os elementos constitutivos os tipos legais de crime descritos na Parte Especial do Código Penal ou em legislação penal extravagante. Como vale relativamente às leis penais em branco não só no que toca à parte sancionatória (especificamente penal) da norma, mas ainda mesmo na parte em que esta remete pra a regulamentação externa. Coisa diferente só deverá dizer-se relativamente a conceitualizações extra-penais utilizadas pelo legislador penal que, em princípio, este terá querido usar de forma puramente acessória e, por conseguinte, com o sentido que elas possuem no ramo de direito a que pertencem; caso em que se compreende que devam aceitar-se os resultados a que legitimamente se chegue pelos métodos de interpretação permitidos nesse ramo de direito. Também relativamente à matéria das consequências jurídicas do crime vale a proibição de analogia em tudo quanto possa revelar-se desfavorável ao agente, isto é, no fundo, em tudo o que signifique restrição (acrescida) da sua liberdade no sentido mais compreensivo. Por isso não tem hoje razão de ser uma doutrina, outrora dominante, segundo a qual a proibição valeria em matéria de penas, mas já não de medidas de segurança, por estarem aqui em causa finalidades estritas de prevenção especial positiva. O mesmo se diga, de resto, para a parte sancionatória das leis penais em branco. A proibição de analogia vale ainda para certas normas da Parte Geral do Código Penal: para aquelas que constituem alargamentos da punibilidade de comportamentos previstos como crimes na Parte Especial, nomeadamente em matéria de tentativa, de comparticipação, etc. Um problema especial é aqui constituído pelas causas de justificação e pelas causas de exclusão (ou atenuação) da culpa e da punibilidade. Tratando-se nelas de situações que não fundamentam ou agravam a

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 responsabilidade do agente, mas pelo contrário a excluem ou a atenuam, o recurso à analogia é legítimo sempre que o resultado seja o do alargamento do seu campo de incidência; mas já será ilegítimo se tiver como consequência a diminuição daquele campo, se bem que haja aqui razões para determinar de forma mais restritiva os limites da analogia proibida.

A aplicação da lei penal o tempo: a proibição de retroação in pejus7: o princípio geral da não retroatividade das leis assume no Direito Penal a natureza de uma proibição constitucional de retroatividade das normas penais que criem ou agravem a responsabilidade penal. Os fundamentos de tal proibição são, quanto às normas incriminadoras, os princípios da culpa e da segurança jurídica. A possibilidade de uma conduta ser retroativamente incriminada contradita uma responsabilidade penal fundamentada na livre determinação do agente pela norma jurídica – a culpa jurídica – e destruiria a garantia das expectativas dos cidadãos quanto ao que é proibido – a segurança jurídica. Já quanto às sanções criminais a retroatividade afetará sobretudo a referida segurança, permitindo quaisquer abusos do poder, pela alteração a todo o tempo possível das espécies e limites das sanções. A proibição de retroatividade corresponde, assim, à garantia de que o exercício do poder punitivo seja exercido de acordo com critérios e limites conhecidos antecipadamente e não alteráveis por força de um interesse particular ou para resolver um caso concreto antes não previsto. Desta fundamentação da proibição da retroatividade resulta o seu âmbito no Direito Penal; contempladas com a proibição da retroatividade:

a. As incriminações; b. As agravações da responsabilidade criminal; c. As penas; d. Os pressupostos das medidas de segurança; e. As medidas de segurança; f. Todas as normas processuais que afetem diretamente direitos, liberdades e garantias. Pressupostos da retroatividade: a interpretação jurídica e o problema do conceito de retroatividade: a proibição da retroatividade importa que o conceito de retroatividade seja discutido e delimitado normativamente. Desde logo, a retroatividade só existe se o regime previsto numa lei se puder referir a um determinado tipo de situação anterior à sua vigência. Segundo o artigo 3.º CP tal situação é referida ao momento da efetiva prática da ação criminosa ou ao momento em que se produziria a ação que evitaria o resultado típico. Assim, se a lei em causa for anterior à produção do resultado típico, mas posterior à prática da ação prevista já haverá retroatividade. A retroatividade pressupõe que a lei penal se pretende referir, segundo a interpretação jurídica, a certos factos anteriores. Não há, portanto, problema de retroatividade onde o dever ser objetivo e a intenção normativa não se puderes concretizar, de modo algum, naquelas situações. O abandono da conceção tradicional de interpretação jurídica desligada da aplicação da norma reflete-se no conceito de retroatividade. Se, como advoga Castanheira Neves, o texto jurídico deixar de ser o verdadeiro fundamento dos elementos extra literais (histórico e teleológico), a retroatividade de uma lei tenderá a depender também das definições jurisprudenciais do direito relativamente a certas categorias de casos anteriormente 7

Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 decididos. Mas a desvalorização do texto que resulta desta perspetiva tende a implicar que a proibição de retroatividade abranja as próprias mudanças de orientação na jurisprudência incriminadora e punitiva, pois, Como diz Castanheira Neves, «a decisão concreta em que essa mudança se verifique significa decerto a imposição a um comportamento ou a um caso situados no passado de uma solução jurídica que então não estava definida e não se reconhecia». Uma tal conclusão seria, porém, excessiva, pois levaria a que toda a jurisprudência errada se consolidasse. A proibição da retroatividade jurídica seria a única garantia possível contra alterações jurisprudenciais absolutamente desvinculadas do texto jurídico a que a perspetiva de Castanheira Neves, por força do apagamento do texto que propugna, conduz. Uma alteração de jurisprudência que seja somente a correção de uma errada definição do direito não viola a garantia da proibição de retroatividade das normas incriminadoras se o seu critério, ainda que ampliador da incriminação, for o único critério jurídico possível da decisão. Não deverão ser protegidas expectativas de uma menor punição relativamente a condutas para as quais, objetivamente, o texto jurídico conterá um juízo de desvalor idêntico ao de outras reconhecidamente incriminadas.

Retroatividade e medidas de segurança: a subordinação dos pressupostos das medidas de segurança à proibição de retroatividade foi negada, no passado, em consequência de uma conceção de medidas de segurança alheia ao Direito Penal do facto. A perigosidade do agente, entendida como sintoma, era vista, simultaneamente, como fundamento e pressuposto da medida de segurança, de modo que não existiria qualquer retroatividade desde que a lei que criasse ou modificasse uma certa medida de segurança fosse contemporânea de um estado de perigosidade já anterior e duradouro. Enquanto existisse perigosidade no presente, embora já manifestada no passado, não se poderia conceber uma verdadeira retroatividade. Na verdade, esta perspetiva era justificada pela convicção de que a proibição de retroatividade se baseava no princípio da culpa, de modo que, onde se procurasse assegurar finalidades preventivas das sanções penais, não haveria que respeitar o conhecimento pelo agente da existência ou da medida da sanção nem que arvorar quaisquer factos em fundamento da medida de segurança. Embora a perspetiva da retroatividade das medidas de segurança tenha influenciado o Direito alemão, ela é hoje refutada dominantemente pela doutrina, mesmo pela alemã que a sustentou, e foi decididamente afastada pelo artigo 29.º n.º1 e 3 CRP e pelo artigo 2.º CP. O fundamento da proibição de retroatividade não é essencialmente a culpa, mas sim a segurança dos destinatários do Direito própria de um Estado de Direito democrático. Quer a alteração agravante de uma medida de segurança quer a sua criação afetam a segurança, na medida em que permitam uma intervenção sem controlo do poder punitivo na liberdade dos cidadãos. A ausência de limites à intervenção do Estado, mesmo que em nome da prevenção e da política criminal, contendem com a segurança que é fundamento da proibição de retroatividade das medidas de segurança.

Retroatividade e processo penal: do artigo 5.º, n.º1 Código Processo Penal (CPP) resulta a aplicabilidade imediata da nova lei processual penal. O n.º2 do artigo 5.º CPP limita a aplicabilidade imediata, relativamente «aos processos iniciados anteriormente à sua vigência», nos casos de «agravamento sensível da situação processual do arguido» e de «quebra de harmonia e unidade de vários atos do processo». Há, assim, limites à aplicabilidade imediata resultantes diretamente do princípio constitucional da proibição da retroatividade e do próprio

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 subprincípio contido no artigo 5.º, n.º2. O primeiro tipo de limites exclui a aplicabilidade imediata de todas as normas do Processo Penal que não se possam caracterizar como puras normas processuais, mas que sejam de natureza substantiva penal numa conexão fundamentadora da responsabilidade do arguido. A aplicabilidade imediata justifica-se, apenas, relativamente a normas que regulem o modo de proceder dos tribunais na definição concreta do Direito Penal e não já relativamente a normas que se refiram às condições de procedibilidade ou causas de extinção do procedimento criminal, como acontece com as normas que regulam os prazos prescricionais, na medida em que estas delimitem direta e exclusivamente a relação jurídica punitiva. Assim, as normas que dilatem os prazos de procedimento prescricional, embora não afetem verdadeiramente um direito subjetivo dos autores dos crimes a não serem perseguidos após o decurso de um certo lapso, revelam uma alteração da necessidade de punir e uma intensificação da dignidade punitiva comparativamente com a vigente no momento da prática do crime. A aplicação imediata do prazo prescricional revelaria, deste modo, uma apreciação, à luz do presente, da necessidade de punição de um crime praticado no passado. Uma tal solução enfraqueceria a limitação do Estado pelo Direito que criou num determinado momento, não assegurando a auto limitação própria do Estado de Direito. Jakobs afirma que «o princípio da vinculação à lei e consequentemente a proibição da retroatividade atinge tanto quanto seja necessário pela garantia de objetividade». Também é de rejeitar a aplicação imediata da lei que transforma um crime particular ou semipúblico em público, de modo que o facto criminoso cometido no passado contra o qual não foi deduzida queixa possa vir a ser objeto de processo penal. Taipa de Carvalho conclui no mesmo sentido do texto embora com referência exclusiva ao artigo 29.º, nº.1 CRP. Jeschech e Roxin não convergem nas soluções. Roxin, contra a doutrina e a jurisprudência dominantes, defendem a proibição de retroatividade da lei posterior da lei posterior que suprima uma exigência de queixa particular: «se a exigência de queixa é retroativamente eliminada e se pune sem queixa, então só nesse momento é que é constituído um direito de punição do Estado». Neste último caso, não haverá, igualmente, um direito do autor do facto criminoso não ser submetido a processo penal, ou pelo menos um direito subjetivo construído como proteção de um bem em atenção às finalidades da pessoa. No entanto, a aplicação imediata da lei, no caso de não ter sido deduzida queixa antes de ela ter entrado em vigor, não garantiria suficientemente o princípio da objetividade e vinculação do Estado ao seu Direito. A solução deste tipo de casos deve ser, diferentemente, a aplicação pura e simples da lei antiga.. Finalmente, a situação inversa em que o crime é convertido de público em semipúblico (ou até particular) não se equaciona juridicamente nos mesmos termos. Aí o princípio do Estado de Direito não será critério decisivo da solução jurídica, se o referirmos apenas à perspetiva do arguido – isto é, se dele pretendermos extrair exclusivamente garantias de que o Estado se vincule ao seu Direito para não agravar, arbitrária e inesperadamente, a posição do arguido. Também a lógica da proteção da segurança jurídica não é decisiva se apenas for lida na perspetiva do arguido. Todavia, é ainda o princípio do Estado de Direito – como regra de objetividade, de previsibilidade e segurança jurídica geral – que impõe, neste caso, que as expectativas do titular do direito de queixa não sejam defraudadas, dando-se-lhe oportunidade processual de exercer o seu direito após a entrada em vigor da lei nova. Esta solução não parece de qualquer aplicação a este tipo de casos do artigo 5.º, n.º1 CPP, isto é, do critério de aplicação imediata da lei processual penal pois o direito de queixa tem uma valia extraprocessual e até extrapenal. A função do direito de queixa não justifica a referência das normas que o regulam à ratio legis do nº.1 do artigo 5.º - a adaptação do processo a soluções novas mais eficientes, instrumental da realização da justiça. O direito de queixa é influenciado pelo chamado princípio vitimológico, segundo o qual compete ao Direito assegurar a reparação dos danos do crime 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 sofridos pela vítima em toda a sua dimensão jurídica, nomeadamente através da utilização do processo penal. Este princípio pressupõe que a proteção penal de um bem de que alguém é titular, embora relevante para toda a sociedade, deve ser deixado à disponibilidade do ofendido em situações em que o valor da disponibilidade pelo seu titular seja prevalecente. A anterior argumentação demonstra que a lei da qual resultem alterações do direito de queixa não é apenas uma lei penal no sentido do Direito Penal como conjunto de normas direta ou indiretamente incriminadoras e dos seus meios de aplicação processual. A natureza do direito de queixa também não permite referir integralmente as normas que o regulam ao princípio da retroatividade in melius consagrado no artigo 29.º, n.º4 CRP e no artigo 2.º, n.º2 CP. Finalmente, os limites previstos no artigo 5.º, n.º2 CPP, referem-se nitidamente a normas processuais das quais derive um efeito essencial para a posição processual do arguido na relação jurídica punitiva, na sua fase processual. São normas que, embora não afetando a existência da relação jurídica punitiva nem a modificando substancialmente, atingem a possibilidade do comportamento do arguido realizar os direitos que lhe são reconhecidos no processo penal, como por exemplo o direito de defesa.

A aplicação retroativa de lei penal mais favorável: como limite não intrínseco à proibição da retroatividade consagra-se nos artigos 29.º, n.º4 CRP e 2.º, n.º4 CP a aplicação retroativa da lei penal mais favorável. O fundamento da chamada retroatividade in melius é simultaneamente a igualdade e a necessidade da pena. A retroatividade in melius surge assim como um princípio e não apenas como uma exceção à proibição da retroatividade. Se a lei penal posterior suprimir uma norma incriminadora, será injusto que agentes de factos idênticos recebam tratamento radicalmente diferente (punição e não punição), conforme tais factos sejam perpetrados antes ou depois da revogação da norma. A lógica que subjaz ao artigo 2.º, nº.2 CP impõe assim que a revogação da norma incriminadora tenha como consequência a extinção da pena ou do procedimento criminal sem quaisquer limitações. O artigo 29.º, n.º4 CRP parece sugerir, embora não expressamente, que a aplicação retroativa da lei penal mais favorável se detém perante o caos julgado, na medida em que se refere a «leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido». Todavia, uma eventual restrição pelo caso julgado não se adequa ao fundamento do princípio da retroatividade in melius. Uma restrição do alcance daquele princípio não se justificaria senão por uma lógica exterior de segurança e estabilidade das instituições que executam as penas. Por outro lado, a referência ao arguido não é sinónima de caso julgado, na medida em que após o caso julgado a qualidade de arguido persistirá se o processo for reativado. Não seria, no entanto, razoável supor que a estabilidade e a segurança se realizariam, num Estado de Direito Democrático, em contradição com a igualdade e sem qualquer apoio no princípio da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º2 CRP). O texto constitucional não apoia qualquer restrição da garantia emanada do artigo 2.º CP, preceito em que o princípio da aplicação retroativa da lei mais favorável se consagra de modo mais amplo. E, por força do artigo 17.º CRP, a amplitude da garantia é tutelada constitucionalmente, na medida em que o direito à extinção da responsabilidade criminal, resultante da aplicação da lei penal mais favorável desincriminadora após o caso julgado, é de natureza análoga ao direito que se fundamenta expressa e imediatamente no artigo 29.º, n.º4 CRP. Uma outra questão que a aplicação retroativa da lei penal mais favorável suscita é a da abrangência da retroatividade perante leis penais posteriores atenuantes da responsabilidade perante leis penais posteriores atenuantes da responsabilidade penal mas não desincriminadores. Relativamente a estas, já o artigo 2.º, n.º4 CP refere expressamente o «trânsito em julgado» como limitação da retroatividade em favor do agente. Nesse caso, poderia pensar-se que o âmbito do princípio coincidiria com um sentido restrito que

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 parece resultar do texto constitucional. Todavia, também nesta situação se impõe a aplicação retroativa da lei que em concreto estabelece o regime mais favorável, com fundamento na igualdade e na necessidade da pena. A reserva de caso julgado apenas se fundamenta em razões de segurança e estabilidade das instituições penais cujo valor é necessariamente inferior à igualdade e à necessidade da pena. O artigo 282.º, n.º3 CRP também não se refere expressamente ao caso julgado, o que demonstra que o conceito de arguido utilizado, tanto nesse artigo como no artigo 29.º, n.º4 CRP, não impõe uma restrição do princípio pelo caso julgado. A aplicação retroativa da lei penal de conteúdo mais favorável impõe que se determine em concreto o regime mais favorável para o arguido, isto é que se considere qual seria a medida da pena mais favorável, em face de todas as causas de justificação, desculpa, atenuação, agravação e procedibilidade de uma determinada lei. Uma lei posterior que agrave a medida legal da pena poderá, ainda assim, permitir a aplicação de uma pena inferior ao agente e deverá, nesse caso, ser aplicada retroativamente.

Aplicação retroativa da lei penal mais favorável e a delimitação da sucessão de leis no tempo: a retroatividade in melius pressupõe uma verdadeira sucessão de leis no tempo, isto é, que as normas penais sucessivas possam fundamentar a decisão dos mesmos casos, embora de forma diversa. Essa unidade do pressuposto normativo das leis sucessivas exige a previsão de uma factualidade típica idêntica ou referida a condutas humanas idênticas, nas várias leis que se confrontam. Não haverá, deste modo, verdadeira sucessão de leis se o comportamento que é objeto do juízo de ilicitude for parcialmente reproduzido na lei posterior, sendo, todavia, concebível a manutenção da sua punição em concurso efetivo ou até mesmo aparente com a do comportamento previsto na lei posterior. A sucessão de leis depende de o comportamento anteriormente contemplado não implicar, necessariamente, a verificação da conduta prevista na lei posterior, havendo assim, pelo menos uma revogação tácita. Também constitui uma sucessão de leis a situação em que uma lei do direito de mera ordenação social abranja condutas que atentem contra espécies selvagens e outra posterior, com a mesma finalidade de proteção das espécies selvagens, exclua algumas daquelas espécies de proteção conferida. Deve notar-se que a identidade do facto típico não é constituída apenas naturalística ou socialmente, dependendo, igualmente, da essencial intenção normativa das leis. A situação de sucessão de leis precedentemente referida não se verificaria se a lei posterior visasse a proteção de bens jurídicos diversos da anterior. De qualquer forma, a diferente finalidade da lei ou da sua essencial intenção normativa não pode justificar, artificialmente, a autonomia das factualidades típicas. Onde a conduta humana referente não seja socialmente distinta haverá violação do non bis in idem, pela utilização da figura do concurso ideal. O concurso ideal de infrações verifica-se sempre que a mesma conduta (pelo menos em sentido naturalístico) lesa vários bens jurídicos (concurso heterogéneo) ou o mesmo bem diversas vezes (concurso homogéneo). A delimitação da verdadeira sucessão de leis é um pressuposto essencial da resolução dos problemas de substituição da punição de certos factos no âmbito penal pelo seu sancionamento através do direito de mera ordenação social. O problema que se coloca é, basicamente, saber se nesses casos houve uma alteração de regime punitivo, nos termos do artigo 2.º, n.º4 CP, ou antes um fenómeno de desincriminação, com as consequências normais do artigo 2.º, n.º2 CP. Na segunda solução, a conversão dos crimes em contraordenação implicaria a extinção pura e simples de qualquer responsabilidade jurídica, de modo que o desaparecimento da incriminação corresponderia a uma extinção de toda e qualquer responsabilidade pelo facto passado. A segunda solução implicaria, tão só, a substituição de uma forma mais grave e a correspondente substituição de uma pena por uma coima. A solução do dilema não é meramente lógica, mas

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 apela a uma compreensão valorativa da substituição e regimes. Embora numa aparente e estrita lógica formal se pudesse concluir que a diferença qualitativa do ilícito penal relativamente ao de mera ordenação social impediria uma verdadeira sucessão de leis no tempo, pois os critérios valorativos de um ilícito de outra natureza suscitariam um facto jurídico novo e diferente, tal construção desconheceria que o sentido do apelo à autonomia qualitativa do ilícito é apenas evitar a plena utilização dos custos e vantagens dos critérios de responsabilização penal e do respetivo processo e permitir a introdução de critérios de aferição da responsabilidade justificados por objetivos sociais menos centrais e mais instrumentais. É incorreto, deste modo, defender a extinção em absoluto da responsabilidade jurídica em tais situações, quando não existir uma explícita e coerente vontade legislativa da extinção de toda a responsabilidade pelos factos passados. Por outro lado, nestas situações existe, na realidade, um comportamento humano referente essencialmente idêntico, que assegura a unidade do facto e a continuidade normativa. A sucessão de leis que origina a conversão do crime público em semipúblico é uma verdadeira sucessão de leis penais para efeitos da aplicação do artigo 2.º, n.º2 e 4 CP? A pergunta justifica-se, obviamente, por se poder entender que violaria aquelas normas uma não aplicação retroativa da lei penal posterior aos factos que foram cometidos antes da sua vigência, sendo esta última mais favorável. Porém, como se disse, a dimensão normativa dos preceitos que alteram o direito de queixa não é estritamente penal: a normação do direito de queixa não é inequivocamente lei penal no sentido dos artigos 2.º, n.º2 CP e 29.º, n.º4 CRP. Sendo justificada a retroatividade in melius pela igualdade na aplicação da pena e pela necessidade da mesma, o âmbito do conceito de lei penal é aferido por essa ratio legis, de modo que as alterações do direito de queixa não estão necessariamente contempladas. Isto é, a exigência de exercício do direito de queixa para o desencadeamento do processo penal não significa diretamente a diminuição da necessidade de punir relativamente à fase anterior nem pretende necessariamente favorecer a posição do autor do crime, embora esses efeitos possam ser reflexamente produzidos. Com efeito, a despublicização de crimes pode ter um fim de mera proteção da vítima ou então revelar um desinteresse do Estado pela iniciativa processual, devido a razões de política criminal. Nesses casos, a fundamentação normativa do direito de queixa seria negada com uma aplicação retroativa da lei posterior que levasse a um automático arquivamento dos processos e à total impossibilidade do exercício do mesmo direito. Nesse sentido, nunca se poderia dizer que tais casos se submeteriam exclusivamente ao artigo 29.º, n.º4 CRP tem difícil aplicação sua plenitude lógica. Já nos casos em que despublicização revele uma menor intensidade do direito de punir, seria mais compreensivelmente uma decisão segundo o artigo 29.º, n.º4 CRP, sem que, no entanto, essa aplicação pudesse ser absolutamente limitativa dos direitos do ofendido. Assim, tanto nos últimos casos como nos primeiros (em que o artigo 29.º, n.º4 CRP, não estaria em causa) a solução jurídica mais harmoniosa será a da atribuição ao ofendido da oportunidade processual para o exercício do direito de queixa. Nos casos de despublicização para proteção da vítima (que não se submetem plenamente à ratio dos artigos 29.º, n.º4 CRP e 2.º, n.º4 CP), a ultra atividade da lei anterior (crime público) levaria a uma desigualdade entre os arguidos pelos mesmos crimes ates e depois da despublicização, se não se viesse a exigir o exercício do direito de queixa. Noutros casos, em que se divisa um sentido relativamente descriminalizador (uma menor necessidade de punir), a aplicação retroativa da lei que despubliciza implicaria uma desproteção dos titulares do direito de queixa que o artigo 29.º, n.º4 CRP, não pode em rigor produzir, impondo-se uma contenção do seu alcance pelo princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2.º CRP). Por todas essas razões se impõe uma única solução jurídica para estes casos: a atribuição de oportunidade de exercício do direito de queixa. O seu fundamento não decorre direta e exclusivamente do artigo 29.º, n.º4 CRP, mas 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 sim dos princípios jurídicos que a este subjazem – a igualdade e a necessidade da pena –, articuladamente com a proteção da confiança emanada do Estado de Direito Democrático. Justifica-se, simulataneamente, a aplicação imediata da lei nova e a proteção do exercício do direito de queixa.

O problema das leis temporárias e de emergência: a retroatividade da lei penal de conteúdo mais favorável não abrange as leis e de emergência. O artigo 2.º, n.º3 CP prescreve que «quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua ser punível o facto praticado durante esse período», subtraindo, aparentemente, à retroatividade in melius essas situações. Todavia, o conteúdo normativo do artigo 2.º, n.º3, não pretende referir-se a uma sucessão de leis penais em sentido próprio. A doutrina a que o preceito se refere considera que a lei posterior que descriminaliza a conduta (ou que lhe atribui uma pena menos grave) não inclui entre os seus elementos típicos a situação de crie ou excecional, havendo uma alteração essencial no ilícito típico, entre as duas leis temporalmente sucessivas, mas não sucessivas segundo critérios jurídicos. É, na verdade, discutível que a intenção manifestada pelo legislador quanto à vigência temporária de uma lei baste para legitimar a ultra atividade da lei e a não aplicação do princípio da retroatividade in melius. O tempo seria, no caso de tais leis, um elemento típico essencialmente constitutivo do ilícito penal, que orientaria as expectativas dos destinatários para a ultra atividade antecipadamente. A exceção ao princípio da retroatividade in melius determinada pelo caráter temporário das leis não é, todavia, uma restrição, constitucionalmente indiscutível, ao artigo 29.º, n.º4 CRP. O caráter temporário que não esteja associado a uma excecionalidade historicamente objetiva da situação típica prevista pelo legislador não se subtrai pela sua própria natureza aos princípios da necessidade da pena e da igualdade, que delimitam o conteúdo do artigo 29.º, n.º4 CRP. O artigo 2.º, n.º3 CP não pode ultrapassar aqueles princípios constitucionais apenas apoiado na prevalência da intenção legislativa quanto ao caráter temporário de uma lei. Assim como o legislador ordinário – não pode legitimamente decretar que a retroatividade in melius não se aplica quando descriminaliza, também a atribuição de caráter temporário a uma lei, em situação de leis, e situações em que subsista uma verdadeira sucessão de leis, tem de ser disciplinada pelos princípios da igualdade e da necessidade da pena. Por outro lado, em situações de sucessão de leis de emergência, a aplicação retroativa da lei mais favorável deve impor-se sempre que persista como elemento constante do tipo incriminador a mesma situação de excecionalidade. Fora desses casos, porém, a sucessão de leis de emergência cabe na previsão do artigo 2.º, n.º3 CP.

A proibição de retroatividade. O âmbito de validade temporal da lei penal ou problema da aplicação da lei penal no tempo8: 1. Aplicação da lei penal no tempo e princípio da irretroatividade: o plano porventura praticamente mais significativo da refração do princípio da legalidade e aquele que origina problemas mais complexos é o da proibição da retroatividade in malem partem, isto é, contra o agente. Pode suceder, na verdade, que após a prática de um facto, que ao tempo não constituía crime, uma lei nova venha criminaliza-lo; ou, sendo o facto já crime ao tempo da sua prática, uma lei nova venha prever para ele uma pena mais grave, ou qualitativamente ou quantitativamente. O problema da aplicação da lei no tempo é 8

Dias, Jorge Figueiredo; Direito Penal, Parte Geral, tomo I; Coimbra Editora, 2.ª Edição; Outubro 2012, Coimbra.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 resolvido através das normas chamadas de direito inter-temporal. Este direito como que se reduz, no âmbito penal, ao princípio que traduz uma das consequências mais fundamentais do princípio da legalidade: o da proibição da retroatividade em tudo quanto funcione contra reum ou in malem partem. Através dele se satisfaz a exigência constitucional e legal de que só seja punido o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da prática do facto. Com este conteúdo e esta extensão a proibição de retroatividade da lei penal fundamentadora ou agravadora da punibilidade constitui uma das traves mestras de todo o Estado Democrático contemporâneo.

2. Determinação do tempus delicti: pressuposto de atuação do princípio da irretroatividade é pois a determinação do tempus delicti, isto é, daquele que deve considerar-se o momento da prática do facto. O que está longe de ser em todos os casos isento de dúvidas: quer porque o facto pode analisar-se em uma ação, mas também em uma omissão; quer porque nele se pode compreender não só a conduta, mas também o resultado, podendo uma e outro ter ligar em momentos temporalmente (muito) distintos: quer porque tanto a conduta, como o resultado se podem arrastar no tempo. Para obviar a estas dificuldades dispõe o artigo 3.º CP que «o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido». Da referida disposição legal resulta que decisivo para determinação do momento da prática do facto é a conduta, não o resultado. O que bem se justifica à luz da função e do sentido do princípio da legalidade, por isso que é no momento em que o agente atua (ou, no caso de omissão, deveria ter atuado) que releva a função tutelar dos direitos, liberdades e garantias da pessoa que constitui a razão de ser daquele princípio. Fosse decisivo a propósito só o momento em que o resultado, a ser ele jurídico-penalmente relevante (o que nem sempre sucede), tem lugar e estaria aberta a porta ao arbítrio e ao possível excesso da intervenção punitiva do Estado. A segunda conclusão a tirar da regulamentação é a de que ela vale para todos os comportamentos no facto criminoso, venha a sua responsabilização a ter lugar a título de autores ou apenas de cúmplices (artigos 26.º e 27.º CP). Porque tanto aqueles como estes, obviamente, são credores da proteção e garantia que o princípio da legalidade se propõe oferecer. Problema especial é constituído por todos aqueles crimes em que a conduta se prolonga no tempo, de tal modo que uma parte ocorre no domínio da lei antiga, outra parte no da lei nova; e de que é exemplo paradigmático o dos crimes duradouros, também chamados permanentes. A melhor doutrina parece ser aqui a de que qualquer agravação da lei ocorrida antes do término da consumação só pode valer para aqueles elementos típicos do comportamento verificados após o momento da modificação legislativa. E solução paralela parece dever defender-se pra o chamado crime continuado (artigo 30.º, n.º2 CP).

3. Âmbito de aplicação da proibição: tal como vimos suceder com a proibição da analogia – e pelas mesmas razões substanciais –, também a proibição de retroatividade funciona apenas a favor do agente, não contra ele. Por isso a proibição vale relativamente a todos os elementos da punibilidade, à limitação de causas de justificação, de exclusão ou de diminuição da culpa e às consequências jurídicas do crime, qualquer que seja a sua espécie. Em muitas ordens jurídicas vigora ainda hoje a ideia de que a proibição não vale relativamente às medidas de segurança; na base, uma vez mais, de que se trata aí de medidas de prevenção especial positiva comandadas pelo verdadeiro bem do agente. E a ideia teve também curso entre nós até à CRP 1976 e ao CP 1982. Hoje, porém, existem 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 injunções legais, constitucionais (artigo 29.º, n.º1 e 3 CRP) e ordinárias (artigo 1.º, n.º2 CP), que terminantemente afastam uma tal doutrina. Com razão. Também relativamente às medidas de segurança se fazem sentir exigências de proteção dos direitos, liberdades e garantias das pessoas atingidas que substancialmente se identificam com as que se fazem sentir ao nível das penas. De considerar é agora todavia a doutrina diferenciadora proposta por Maria João Antunes: «Se o tocante ao pressuposto “prática de facto ilícito típicos” vale a lei vigente no momento da prática do facto, já quanto ao pressuposto “fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos ilícitos típicos” poderá valer a lei vigente no momento da formulação deste juízo de perigosidade» Por isso, «a medida de segurança só é aplicável se o facto for descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática; a medida de segurança não é aplicável se o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixar de o ser, por uma lei nova o eliminar do número das infrações, ainda que haja decisão transitada em julgado; a medida de segurança a aplicar, em concreto, determina-se pela lei vigente no momento da decisão (o momento do preenchimento do pressuposto da perigosidade criminal do agente), excluindo-se, portanto, a lei vigente no momento da execução; a medida de segurança a aplicar, em concreto, determina-se pela lei vigente no momento da decisão, ainda que a lei vigente no momento da prática do facto ilícito típico não determinasse a mesma medida». Questão interessante é a de saber se submetida à proibição de retroatividade está só a lei ou também a jurisprudência. Deverá admitir-se que uma corrente de aplicação jurisprudencial definida e estabilizada possa ser alterada – mesmo sem alteração da lei – contra o agente? A aplicação da nova corrente jurisprudencial que determina a punição do facto praticado ao tempo da jurisprudência anterior, que o considerava criminalmente irrelevante, não constitui propriamente uma violação do princípio da legalidade; mas – como conclui também Nuno Brandão – não deixa de pôr em causa valores que lhe estão associados, pela frustração das expectativas quanto à irrelevância penal da conduta, formadas com base numa interpretação judicial, entre nós eventualmente publicada no DR, quando se trate de entendimento definido em recurso ordinário para fixação de jurisprudência (artigo 444.º, n.º1 CPP). E na verdade, o que se alterou foi o conhecimento (em direção pressupostamente a um melhor conhecimento) da teleologia e da funcionalidade de uma certa norma jurídica: de outro modo, seria o próprio fundamento da separação de poderes que se poria em causa. Além de que parece ser essa a solução que de iure constituto resulta da lei processual (artigos 445.º e 446.º CPP). Todavia, devem os tribunais ser extremamente cuidadosos (sobretudo onde – o que infelizmente não é o caso de Portugal – existam fortes, seguras e geralmente conhecidas orientações jurisprudenciais fundamentais) na modificação de uma corrente jurisprudencial contra o agente, mostrando-se em tais circunstâncias ainda mais exigentes no respeito pelo círculo máximo de significações que imputem ao texto da lei e não se furtando a um particular ónus de contra-argumentação. Deverá, finalmente, assinalar-se que o cidadão que atuou com base em expectativas fundadas numa primitiva corrente jurisprudencial 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 não estará completamente desprotegido, já que poderá por vezes amparar-se numa falta de consciência do ilícito não censurável, que determinará a exclusão da culpa e, em consequência, da punição (artigo 17.º, n.º1 CP). Questão muito discutida é, por fim, a de saber se a proibição de retroatividade se estende aos pressupostos da punição, positivos e negativos, e aos pressupostos processuais. O problema concretamente mais relevante situa-se em matéria de prazos de prescrição. Urge considerar, por outro lado, que em matéria processual o nosso ordenamento jurídico dispõe, no CPP, de uma norma especificamente dirigida à questão: a do artigo 5.º, que contém o princípio da aplicação imediata da lei nova, mas lhe introduz decisivas limitações quando dele derive – no que ao presente enquadramento interessa – um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.

4. O princípio da aplicação da lei mais favorável: a consequência teórica e praticamente mais importante do princípio segundo o qual a proibição de retroatividade ó vale contra o agente, não a favor dele, consubstancia-se no princípio da aplicação da lei (ou do regime) mais favorável (lex mellior). Esta consequência é de tal modo significativa que assume expressão não só ao nível da lei ordinária (artigo 2.º, n.º4 CP «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado»), como da lei constitucional (artigo 29.º, n.º4, 2.ª parte, que manda aplicar «retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido»). Com isto ganhou o princípio um relevo jurídico adequado ao seu significado para a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias das pessoas. Um relevo tal que, de uma outra perspetiva, faz dele um princípio que, mais do que exceção ao princípio da legalidade, possui natureza autónoma diretamente decorrente do princípio da necessidade. Mas a sua fixação também no texto constitucional trouxe alguns problemas que importa considerar. a. As hipóteses de descriminalização: a primeira situação – e mais radical – será aquela em que uma lei posterior à prática do facto deixe de considerar este como crime (descriminalização em sentido técnico). Uma tal situação cabe em rigor dentro do princípio de aplicação da lei mais favorável e não exigiria portanto a sua consagração expressa; ou porque se diga que a lei mais favorável é aqui a lei revogatória da criminalização, ou porque à conclusão se chegaria através de um argumento de analogia (permitida). Todavia, o Código Penal contempla diretamente o caso no artigo 2.º, n.º2 CP nos termos seguintes: «o facto punível segundo a lei nova o eliminar do número das infrações; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais». De acordo com o que acaba de dizer-se, a primeira parte, que traduz a ideia de a eficácia do princípio de aplicação da lex mellior ser tão forte que, quando se analise em uma descriminalização direta do facto, ela se impõe, no que toca à execução e aos seus efeitos penais, ainda no caso de a sentença condenatória ter já transitado em julgado. O que tudo se compreende considerando que, se a conceção do legislador se alterou até ao ponto de deixar de reputar jurídico-penalmente relevante um comportamento, não tem qualquer sentido político-criminal manter os efeitos de uma conceção

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 ultrapassada. Apesar da sua aparente simplicidade, esta regulamentação deu já entre nós origem a uma série numerosa de dúvidas. b. As hipóteses de atenuação da consequência jurídica: o mesmo que se expôs para as hipóteses de descriminalização deve defender-se para o caso em que a nova lei atenua as consequências jurídicas que ao facto se ligam, nomeadamente a pena, a medida de segurança ou os efeitos penais do facto. Também neste caso a lex mellior deve ser retroativamente aplicada, todavia, de acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º4 CP, com ressalva dos casos julgados. Tem-se pretendido que a diferença aqui existente relativamente à lei descriminalizadora – a de que nos casos agora em estudo o princípio já não atua perante uma sentença transitada em julgado – seria inconstitucional por a restrição não constar do artigo 29.º, n.º4, in fine CRP. Mas esta posição não parece de aceitar. Não só ou não tanto porque também a lei fundamental tem, na sua interpretação, de ser submetida a uma cláusula de razoabilidade – e, no entendimento do legislador ordinário, não seria razoável, por muito dificilmente exequível, que a totalidade das condenações penais cuja execução ou cujos efeitos se mantêm tivesse de ser reformada todas as vezes que uma lei nova viesse atenuar uma qualquer consequência jurídico-penal ligada ao facto. Mas depois porque, de todo o modo, não compete à lei constitucional regular as condições de aplicação dos seus comandos, antes pelo contrário lhe compete deixar ao legislador ordinário o seu âmbito próprio de atuação. Devendo limitarse – como faz expressamente a CRP no artigo 18.º, especialmente no n.º2 – a regular os limites deste âmbito, definindo os requisitos a que devem submeterse as leis restritivas de direitos fundamentais. Não pode dizer-se que a restrição da retroatividade in bonam partem às sentenças ainda não transitadas em julgado diminua o conteúdo essencial do preceito constitucional constante da última parte do artigo 29.º, n.º4 CRP. Nem será inútil lembrar que em outras ordens jurídicas este limite vale mesmo para as próprias leis descriminalizadoras, sem que tenha sido posta em causa a sua constitucionalidade à luz do princípio da legalidade. A conformidade com o artigo 29.º, n.º4 CRP da ressalva de casos julgados prevista no artigo 2.º, n.º4 CP não significa, como é evidente, que a mesma não possa ser eliminada ou restringida, fruto de uma nova opção legislativa. Nesse sentido vai a alteração ao regime do artigo 2.º, n.º4 CP proposta no Anteprojeto de 2007. Nesse anteprojeto a atual ressalva dos casos julgados é substituída por uma outra, menos restritiva, do seguinte teor: «se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior». Desta proposta não resulta uma imposiçãoo de reabertura do processo para nova determinação da pena concreta no quadro da nova moldura penal aplicável, mas somente um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado, que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais favorável. Em todo o caso, de acordo com o novo regime processual proposto para compatibilizar a lei adjetiva (artigo 371.º-A CPP) com esta alteração do artigo 2.º, n.º4, «o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime». Da nova redação proposta para o artigo

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 2.º, n.º4, resulta que a ressalva dos casos julgados só é afastada em caso de execução de uma pena principal e já não de uma pena de substituição, uma vez que só é possível avaliar se o tempo de execução corresponde à pena máxima aplicável pela lei posterior se ambas forem da mesma espécie. Apesar destas cautelas, resta saber se uma tal brecha na ressalva dos casos julgados não constituirá um fator de inibição de futuras reformas legislativas com vista à redução de penas de certas categorias de crimes em que se verifique um elevado número de condenações e se não acabará assim por ter efeitos contraproducentes. c. As leis intermédias: o princípio da aplicação da lei mais favorável vale ainda mesmo relativamente ao que na doutrina se chama leis intermédias; leis, isto é, que entraram em vigor posteriormente à prática do facto, mas já não vigoravam ao tempo da apreciação judicial. Esta solução é completamente coberta pela letra, tanto do artigo 29.º, n.º4, 2.ª parte CRP, como, ainda mais claramente, pela letra do artigo 2.º, n.º4, 1.ª parte CP. E justifica-se teleológica e funcionalmente porque com a vigência da lei mais favorável (intermédia) o agente ganhou uma posição jurídica que deve ficar a coberto da proibição de retroatividade da lei mais grave posterior. d. O regime: não é isento de dificuldades e de dúvidas determinar o que deve exatamente entender-se por regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (artigo 2.º, n.º4 CP). A jurisprudência portuguesa ocupouse insistentemente do tema nos primeiros anos posteriores à entrada em vigor do CP 1982; e os principais resultados a que chegou merecem concordância de princípio. Assim, v.g., deve entender-se que uma pena de multa (mesmo elevada) é em princípio mais favorável do que uma pena de prisão (mesmo leve). No resto, deve aceitar-se que o juízo complexivo de maior ou menor favor não deve resultar apenas, em princípio, da contemplação isolada de um elemento do tipo legal ou da sanção, mas da totalidade do regime a que o caso se submete. Como seguro é que o sopeso da gravidade dos dois regimes não pode fazer-se só na consideração abstrata da lei, mas tem de ser feito depois de conexionada aquela consideração com as circunstâncias concretas do caso. Já é mais equívoca a afirmação de que o regime em definitivo aplicável não pode ser composto pelo juiz com partes da regulamentação emanada da lei antiga e partes emanadas da lei nova, como vem entendendo a jurisprudência dominante, que aponta para a opção por um dos regimes em bloco. Tomada em si mesma, a afirmação pode considerar-se exata. Mas é óbvio que ela não pode obstar a que, considerando-se, v.g., aplicável a lei antiga à apreciação do tipo legal ou (e) da pena, todavia acabe por aplicar-se a lei nova na parte em que considera, diversamente da lei anterior, que o crime está já prescrito. Porque, em definitivo, aquela conduz à responsabilização, esta à irresponsabilização penal do agente. e. As chamadas leis temporárias: uma exceção ao princípio da aplicação da lei mais favorável está consagrada, no artigo 2.º, n.º3 CP, para as chamadas leis temporárias: «quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado durante esse período». Leis temporárias

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 devem pois considerar-se apenas aquelas que, a priori, são editadas pelo legislador para um tempo determinado: seja porque este período é desde logo apontado pelo legislador em termos de calendário ou em função da verificação ou cessação de um certo evento (chamadas leis temporárias em sentido estrito); seja porque aquele período se torna reconhecível em função de certas circunstâncias temporais (chamadas leis temporárias em sentido amplo). Comum é a circunstância de a lei cessar automaticamente a sua vigência uma vez decorrido o período de tempo para o qual foi editada. A razão que justifica o afastamento da aplicação da lei mais favorável reside em que a modificação legal se operou em função não de uma alteração da conceção legislativa – esta é sempre a mesma –, mas unicamente de uma alteração das circunstâncias fáticas que deram base à lei. Não existem por isso aqui expectativas que mereçam ser tuteladas, enquanto, por outro lado, razões de prevenção geral positiva persistem O que deve ser reforçada é a necessidade, a que começou por aludir-se, de interpretação rigorosa daquilo que na verdade constitui uma lei temporária; com a consequência de, em caso de duvida, fazer valer as regras da proibição de retroatividade e da aplicação da lei mais favorável, nos termos gerais. Taipa de Carvalho

Âmbito de validade especial da lei penal:9 1. Universalidade da lei penal: a íntima associação entre o Direito Penal e os valores essenciais da vida em sociedade implica uma tendencial universalidade no espaço da tutela penal. A necessária legitimação do poder punitivo no Estado de Direito Democrático e de justiça impõe uma subordinação do Direito Penal à dignidade da pessoa humana, de modo que um Direito Penal nacionalista é incompatível com a própria ideia de Direito e de Justiça em que assenta tal conceção de Estado. A necessidade de coexistência espacial de diversas ordens jurídicas é, no entanto, uma limitação natural a um desenvolvimento absoluto dos princípios, de modo que no Direito Penal de um Estado a territorialidade tende a ser o critério básico da validade espacial da lei penal, condicionando a apetência para a universalidade. Por outro lado, a relação com os nacionais e com os interesses nacionais amplia a validade espacial da lei penal para além dos limites do território segundo uma lógica ainda não universalista. Mas, num âmbito que aumenta progressivamente, o Direito Penal de um Estado protege valores universais para além dos limites do território e dos vínculos nacionais, cooperando com outras ordens jurídicas e intervindo onde os critérios de validade espacial de outras ordens jurídicas não permitem uma tutela eficaz de certos bens jurídicos. Tal natureza universal da lei penal é o embrião de um Direito Internacional Penal, do qual se distingue o chamado Direito Penal Internacional que corresponde ao âmbito de validade especial do Direito Penal Português fora do território do Estado. Há que distinguir, efetivamente, entre Direito Internacional Penal e Direito Penal Internacional. O chamado âmbito de validade espacial do Direito Penal corresponde 9

Palma, Maria Fernanda; Direito Penal, parte geral; AAFDL; Lisboa, 1994.

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 apenas à aplicabilidade com relevância internacional atingindo factos cometidos no estrangeiro) do Direito interno, ao Direito Penal Internacional. 2. O princípio da territorialidade da aplicação da lei penal portuguesa: o princípio geral da aplicação do Direito Penal português no espaço é o princípio da territorialidade da prática do facto, seja qual for a nacionalidade do agente e salvo convenção em contrário. A aplicação da lei penal portuguesa por força da territorialidade depende do que se entenda por território português e do que se considere praticar um facto em território português. Território Português é o espaço definido como tal pela Constituição (artigo 5.º, n.º1 e 2 CRP) e pela lei, incluindo o espaço terrestre, marítimo e aéreo. São ainda território português s navios e as aeronaves portuguesas (princípio do pavilhão, artigo 40.º, alínea d) CRP). Praticar um facto em território português é, segundo o artigo 7.º CP, «ter atuado (total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação), dever ter atuado (no caso de omissão) ou ter sido produzido o resultado típico em território português». O legislador penal recorre à teoria da ubiquidade, segundo a qual basta que um dos dois elementos essenciais do tipo objetivo (ação e resultado) se tenha verificado em território português para que a lei penal portuguesa se possa aplicar, como emanação da soberania do Estado português através do seu poder punitivo, alcançando-se um vasto âmbito de aplicação da lei penal portuguesa. Compreende-se que o critério estabelecido pela lei penal para a determinação do lugar da prática do facto, baseado no objeto do máximo alcance da soberania punitiva do Estado, seja diverso do que se estabelece para o momento da prática do facto (artigo 3.º), orientado pelo princípio da legalidade. Mas a lei portuguesa não poderá ser aplicada apesar de se ter produzido um resultado típico em território português, quando, por força do critério de aplicação no tempo, o facto não seja punível por não estar previsto em lei anterior à realização da ação em território estrangeiro. OS critérios dos artigo 2.º e 3.º CP, derivados diretamente do artigo 29.º, n.º1 CRP, aplicam-se, assim, independentemente do princípio da ubiquidade que apenas pretende estabelecer a validade espacial da lei penal portuguesa. Exemplo da situação referida é, pois, o de uma sucessão de leis no tempo em que o resultado seja produzido em território português num momento em que passou a vigorar uma lei que vem punir o facto, quando no momento em que o facto foi praticado, no estrangeiro, não era punido em Portugal. Nesse caso, o artigo 7.º determina, ainda assim, a aplicabilidade ao facto da lei penal portuguesa, embora nos termos do artigo 2.º, n.º1 CP e do artigo 29.º, n.º1 CRP, o facto não possa ser punido. A aplicabilidade da lei penal portuguesa nos termos dos artigos 4.º e 7.º CP não dispensa a observância de todos os princípios a que a mesma se subordina (aplicação no tempo, proibição da analogia, etc.). Deve entender-se, igualmente, que o artigo 7.º se basta com a tentativa inacabada, mas não já com a prática de atos preparatórios não puníveis (artigos 21.º e 22.º CP), para a definição do lugar da pratica do facto. Todavia, é discutível se a mera possibilidade da ocorrência do dano em território português é suficiente para a aplicação da lei penal portuguesa ao facto. Como a doutrina penal tem entendido que a tentativa é um crime de perigo concreto e que os crimes de perigo concreto são crimes de resultado caberá no artigo 7.º CP a mera possibilidade da ocorrência do resultado no nosso território, quando toa a ação criminosa se desenrola no estrangeiro. A resposta a esta questão deve ser positiva. O perigo, nos crimes de perigo concreto, é um elemento integrante da factualidade típica, algo que ultrapassa a ação típica e que se imputa objetivamente àquela, significando um acontecimento

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 relevante para o Direito para além da ação típica. O perigo afronta assim a Ordem Jurídica e põe em causa a segurança dos bens e a confiança no Direito, clamando pela soberania punitiva do Estado, do mesmo modo que a ação ou o resultado. Questão que subsiste ainda é a de saber se a mera ocorrência do dano (lesão do bem jurídico) sem que o resultado típico se verifique em Portugal permite considerar praticado em território português o facto. O dano nunca é uma lesão ideal do bem jurídico totalmente desligada de um certo evento contraponível e imputável à ação típica. Embora esse evento não seja necessano para a tipicidade, porque o resultado típico pode corresponder a uma fase menos concretizada e avançada da lesão do bem jurídico, todo o dano pressupõe, nos crimes de resultado, uma manutenção do resultado típico ou a sua intensificação. Apesar de bastar para a definição do local da prática do crime a realização do resultado típico, esse primeiro momento (ou esse momento mínimo) não afasta a conexão com a ordem jurídica portuguesa, quando apenas se relacione com ela a perduração do mesmo resultado. Deste modo, naqueles tipos legais de crimes em que a tipicidade se consuma com um resultado anterior à lesão efetiva do bem jurídico, a produção do dano é elemento de conexão com a lei penal portuguesa, pressupondo uma intensificação ou um desenvolvimento do evento típico. 3. Princípio da defesa dos interesses nacionais: a territorialidade da lei penal não permite estabelecer exaustivamente uma conexão entre o poder punitivo e a defesa de bens jurídicos essenciais à preservação de certas condições essenciais da organização e da segurança da sociedade, sempre que ocorram lesões de bens exteriores ao território português, mas que façam perigar as condições referidas. O artigo 5.º, n.º1, alínea a), indica um elenco de normas que correspondem a essas possibilidades mais frequentes. A realidade de novos espaços extra territoriais de titularidade de interesses nacionais é especialmente notória em matéria ambiental, em que a ação e o resultado são, por vezes, extra territoriais, mas em que o perigo para os bens jurídicos nacionais justificaria imediata intervenção penal. 4. Princípio da universalidade da aplicação da lei penal portuguesa: consagra o artigo 5.º, n.º1, alínea c) CP, o princípio da universalidade, segundo o qual a validade espacial da lei penal portuguesa se delimite pela necessidade de cooperação do Estado português na proteção penal de bens da humanidade de valor universal. Os crimes a que o artigo 5.º, n.º1, alínea c), se refere são alguns crimes, especialmente suscetíveis de não vinculação espacial, contra a liberdade e a autodeterminação sexual, os crimes contra a paz e certos crimes contra a humanidade. O elenco dos crimes contra a humanidade previsto no Código Penal não é todo ele integrado na previsão da alínea c) do artigo 5.º CP. A seleção operada resulta de convenções entre os Estados na comunidade internacional, de um maior grau de implicação da ofensa à comunidade internacional como um todo por certos crimes e da maior facilidade de subtração dos agentes ao poder punitivo de várias ordens jurídicas internacionais em determinadas infrações. O legislador poderia, porém, incluir ainda os outros crimes contra a humanidade em homenagem à esma ideia de ofensa à comunidade internacional através de certas condutas. A interposição de uma eventual legalidade interna de certas condutas ou de situações de guerra entre povos tornaria, por vezes, difícil que o papel punitivo pudesse ser assumido por um só Estado. De alguma forma, a universalidade de certas infrações pressupõe uma transnacionalidade das instâncias punitivas ou pelo menos uma cooperação convencionada entre os Estados na repressão de tais formas de infração. A 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 questão que se coloca é saber até onde a validade espacial das leis internas pode e deve ir sem que o princípio da cooperação entre as ordens jurídicas inerente se adultere, potenciando a conflitualidade entre os Estados. 5. O princípio da nacionalidade: finalmente, o princípio da nacionalidade vem consagrado no artigo 5.º, n.º1, alínea e). A lei penal portuguesa aplica-se a factos praticados fora do território nacional por portugueses (princípio da nacionalidade ativa) ou por estrangeiros contra portugueses (princípio da nacionalidade passiva) , desde que certos requisitos (artigo 5.º, n.º1, alínea e), i), ii), iii), ou alínea b)) se verifiquem. Em geral, o princípio da nacionalidade justifica-se pelo vínculo dos cidadãos portugueses à soberania punitiva do seu próprio Estado (nacionalidade ativa) e pelo dever de o Estado português conceder proteção aos bens jurídicos de que os cidadãos portugueses sejam titulares, ainda que no estrangeiro (nacionalidade passiva). Todavia, o princípio da nacionalidade ativa dá expressão ao princípio da não extradição de nacionais consagrado no artigo 33.º, n.º1 CRP. Na verdade, a contrapartida da proibição da extradição de nacionais, na ordem internacional, só pode ser o dever de o Estado português assegurar a perseguição penal ou o julgamento dos factos criminosos praticados pelos cidadãos portugueses no estrangeiro. A aplicação da lei penal portuguesa a portugueses ou estrangeiros, por força do princípio da nacionalidade, obedece, como se referiu, a certos requisitos. O artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP, indica três requisitos cumulativos, que exprimem, verdadeiramente, condições de punibilidade: i)

Os agentes serem encontrados em Portugal;

ii)

Os factos serem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo;

iii)

Os factos constituírem crimes que admitam extradição e esta não possa ser concedida.

Estes requisitos limitam o âmbito de influência do poder punitivo do Estado português com um duplo fundamento. Por um lado, a aplicação da lei penal portuguesa pressupõe um mínimo de respeito pelas expectativas dos agentes envolvidos e pelo sentido de desvalor (de ilícito) das suas condutas no estrangeiro, bem como pela igualdade entre aqueles agentes e os estrangeiros que a lei penal portuguesa não possa abranger. Assim, os agentes terão de ser puníveis pela legislação do lugar em que os factos foram praticados. Por outro lado, os agentes terão de ser encontrados em território português e não poderão ser extraditados. Deve estar-se perante uma situação em que só o Estado português possa punir aqueles agentes, por razões materiais e jurídico-constitucionais. O Estado português não só terá possibilidades materiais de os punir (presença em território português) como também, por força dos seus princípios constitucionais (artigo 33.º, n.º1, 2 e 3 CPR), estará colocado numa posição em que só ele pode punir. A alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP ainda que alarga o poder punitivo do Estado português às situações em que portugueses cometam factos no estrangeiro contra portugueses, sem que o requisito da punibilidade pela legislação do lugar se verifique, desde que tais agentes vivam habitualmente em Portugal ao mesmo tempo da prática desses factos e aqui sejam encontrados. Esta última manifestação do princípio da nacionalidade reporta-se a situações em que os agentes praticam os factos no estrangeiro para se subtraírem propositadamente ao poder punitivo do Estado português, sem que, no

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 entanto, estejam determinadas pela irrelevância penal das suas condutas, não tendo cabimento assegurar expectativas ou proteger a igualdade na proteção jurídica entre esses agentes e os estrangeiros. A interpretação da alínea e) do artigo 5.º levanta alguns problemas, que terão de ser resolvidos de acordo com a ratio legis e com o próprio teor do princípio da nacionalidade. Assim, pode desde logo questionar-se quais os contornos concetuais e o âmbito da exigência de punição no lugar em que os factos tiverem sido praticados. Perguntar-se-á se será exigida uma punibilidade em abstrato (as meras tipicidade e ilicitude) ou em concreto a inexistência de causas de exclusão da culpa ou da punibilidade reportadas à pessoa do agente. A lógica imanente ao princípio da nacionalidade bastar-se-ia, em rigor, com a tipicidade e a ilicitude dos factos no território estrangeiro, isto é, com a sua contrariedade objetiva à ordem jurídica estrangeira, pois só estas categorias fundamentariam expectativas quanto à irrelevância do facto, ao seu não desvalor. Todavia, uma aplicação da lei penal portuguesa de que decorresse uma punibilidade de factos não puníveis em concreto no estrangeiro (devido a certas condições do agente) redundaria numa violação do princípio da aplicação da lei penal estrangeira mais favorável, expresso (ainda que restritamente e referido às situações do n.º1 do artigo 6.º CP) no artigo 6.º, n.º2 CP. A melhor interpretação do artigo 5.º, n.º1, alínea e), ii) CP, imporá que a lei penal portuguesa seja aplicável, por força do princípio da nacionalidade conjugado com o da aplicação da lei penal estrangeira mais favorável, somente nos casos em que o facto seja em concreto punível no país estrangeiro. A circunstância de o artigo 6.º, n,º.1 CP, impor a aplicação da lei penal estrangeira mais favorável nos casos em que o agente foi julgado no estrangeiro (e se subtraiu à condenação) ou não foi julgado no estrangeiro impõe, por maioria de razão, que onde o agente nem pudesse ter sido julgado no estrangeiro (por força de uma condição objetiva ou subjetiva de punibilidade, ou de uma condição de procedibilidade) ou em que, se fosse julgado nunca poderia ter sido condenado (em virtude de causa de exclusão de culpa, por exemplo), nem sequer deva ser submetido à aplicabilidade da lei penal portuguesa. Outra questão de interpretação que o artigo 5.º, n.º1, alínea b) CP, suscita é saber o que é que deve ser entendido por crime contra portugueses. Apesar de, historicamente, o preceito da alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP ter tido como objetivo complementar crimes como a bigamia e o aborto, pergunta-se, hoje, se este último crime pode ser entendido como crime contra portugueses, sem o recurso a analogia, no caso do aborto consentido previsto no artigo 140.º CP, já que o feto parece não ser, no sentido normal das palavras, um cidadão português. A cidadania não implica, todavia, o reconhecimento de personalidade jurídica nos termos da lei civil, mas a irreversibilidade da aquisição dessa personalidade, como acontecerá durante o parte, antes ainda do corte do cordão umbilical. Ora, apesar de o aborto consentido proibido ter como objeto da ação típica o próprio feto e o bem jurídico protegido ser a vida intra-uterina, são ainda os interesses da sociedade portuguesa como um todo, como em qualquer outro crime, que são afetados. A vida intra-uterina de futuro cidadão português é assim um bem cuja tutela penal se tem que justificar por um interesse objetivo da sociedade. Não há portanto, neste caso qualquer necessidade de recorrer à analogia, entre o conceito de feto e o de cidadão português na medida em que é possível através de interpretação sistematicamente justificada referir o sujeito passivo do crime e toda a sociedade, isto é, a todos os portugueses. Por outro lado, em inúmeras outras infrações há uma mera titularidade coletiva do bem jurídico a justificar a incriminação, como acontece nos crimes contra a vida em sociedade ou contra o Estado. 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 6. Restrições à aplicação da lei penal portuguesa por força da aplicação mais favorável do Direito estrangeiro (artigo 6.º, n.º2 CP): o artigo 6.º, n.º2 CP consagra igualmente uma restrição à aplicação da lei penal portuguesa menos favorável, nos casos em que ela seja aplicável por força dos princípios da universalidade e da nacionalidade, isto é, quando não estejam em causa os princípios da territorialidade e da defesa dos interesses nacionais (artigo 6.º, n.º1 e 3 CP) e sempre que o agente encontrado em território nacional «não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação». Consiste tal restrição na exigência de naqueles casos ser aplicada a lei do país em que o facto tiver sido praticado sempre que aquela for concretamente mais favorável ao agente (artigo 6.º, n.º2 CP). A razão de ser de tal restrição à aplicação da lei portuguesa é a conjugação da subsidiariedade do exercício do poder punitivo do Estado português nesses casos com os princípios da culpa, da igualdade, da necessidade da pena e da segurança jurídica (artigos 1.º, 13.º, n.º1, 18.º, n.º2 e 29.º, n.º1 CRP). Na verdade, nessas situações o Estado português pune porque outro Estado não pôde punir, mas não deixa de conceber a punição de acordo com os seus princípios constitucionais. A punição, em termos mais graves, pelo Direito português não garantiria uma adequação da consciência da ilicitude do agente ao desvalor da ação e à gravidade do ilícito para ele previsível. A ratio do princípio da aplicação da lei estrangeira mais favorável não abrange a alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP, na medida em que, aí, o poder punitivo do Estado português não é de modo algum subsidiário. Resulta assim do próprio artigo 6.º, n.º1 e 2 CP, que as situações contempladas naquele outro preceito não deveriam ser incluídas. Na verdade, o artigo 6.º pressupõe que o facto seja punível em país estrangeiro, enquanto a alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP se baseia, exatamente, em o facto não ser punível no território em que é praticado nem em abstrato nem em concreto ou ser menos gravemente punível. Punição em concreto significará punibilidade efetiva do facto, consideradas todas as circunstâncias da sua ocorrência e até mesmo os aspetos relacionados com a culpa do autor. Deste modo, a falta de uma referência explícita à exclusão do artigo 5.º, n.º1, alínea b) CP não impede que, pro força do próprio elemento lógico da interpretação, se entenda afastada a aplicação do referido princípio naqueles casos. Também a circunstância de o artigo 5.º, nº.1, alínea e), ii) CP, ter sido interpretado com referência ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável, fazendo uma interpretação da punibilidade pela legislação estrangeira no sentido de punibilidade em concreto, não contende com a referida subtração da alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP ao mesmo principio, pois os casos previstos neste último nunca são, por natureza, comparáveis (em termos de igualdade e necessidade) aos factos semelhantes cometidos por estrangeiro no respetivo país. 7. A aplicabilidade da lei penal portuguesa e o princípio non bis in idem: o artigo 6.º, n.º1 CP exprime um condicionamento geral da aplicabilidade da lei penal portuguesa pelo princípio do non bis in idem (artigo 29.º, n.º5 CRP). Assim, pressuposto da efetivação dos princípios da nacionalidade e da universalidade é o facto de o agente, encontrado em Portugal, não ter sido julgado no país da prática do facto ou ter-se subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação. O n.º2 do artigo 6.º CP, por outro lado, prevê, nos casos em que haja efetivamente lugar à aplicação da lei penal portuguesa que a lei penal estrangeira mais favorável em concreto se imponha, sendo a pena aplicável posteriormente convertida numa pena correspondente no sistema penal

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 português ou, se a correspondência não for possível, na pena que estiver prevista para o facto. Questão que imediatamente se levanta é a de saber se, havendo condenação ou o cumprimento parcial da pena, no país estrangeiro, tal facto não deverá impedir o julgamento, em Portugal, pela prática dos mesmos crimes com vista ao cumprimento da pena (total ou parcialmente) em Portugal, por força do princípio non bis in idem. Pressuposto da resposta a tal questão é o próprio âmbito constitucional do princípio non bis in idem. Gomes Canotilho e Vital Moreira referem, todavia, apenas o âmbito literal da proibição constitucional, distinguindo o duplo julgamento da dupla penalização e concluindo que, embora só primeiro seja vedado expressamente pela Constituição, o segundo é abrangido pelas finalidades da proibição constitucional. Ora, essas penalidades não podem ser totalmente esclarecidas pelo sentido histórico do princípio (dimensão da defesa contra o Estado e de obrigação do Estado à definição no caso julgado material), mas terão de ser compreendidas na conexão desta proibição constitucional com a ideia de Estado de Direito (princípio de limitação do poder do Estado pelo seu Direito – objetividade e confiança) e com o princípio da necessidade da intervenção penal. Abrangerá o artigo 29.º, n.º5 CRP o julgamento anterior no estrangeiro pelo mesmo crime ou apenas o julgamento por tribunais portugueses? A resposta a tal questão, no puro plano da constitucionalidade, impõe o reconhecimento de que o princípio non bis in idem é a expressão penal da garantia de que a perseguição criminal mediante o processo penal não é instrumento de arbitrariedade do poder punitivo, utilizável renovadamente e sem limites, mas é antes um modo controlável e garantido de aplicação do Direito Penal. Assim, tanto a repetição do julgamento pelo mesmo crime, de que se foi absolvido ou condenado a certa pena, como a repetição da punição de agente já condenado e punido constituem claras negações do valor geral do processo penal e do direito do arguido a que o Estado se vincule ao desfecho do processo penal que desencadeou. À necessidade de densificação semântica do preceito constitucional de referem Gomes Canotilho e Vital Moreira concebendo-a a partir dos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e do processo penais. Todavia, o conceito de «mesmo crime» tem de se referir a uma unidade factual pré-normativa. Não é a artificial diversificação de factos pela lei e a analítica configuração de bens jurídicos que há-de, legitimamente, definir «mesmo crime». O problema da semântica constitucional resolve o conteúdo jurídico material da unidade de facto e do concurso de crimes e não o inverso. Esta lógica fundamentadora não restringe a aplicação do princípio aos julgamentos realizados por tribunais portugueses. Por outro lado, o poder punitivo do Estado português terá que se justificar pela estrita necessidade de intervir (julgar e punir), nos termos do artigo 18.º, n.º2 CRP. De um modo geral, a necessidade de intervenção do poder punitivo, quando uma pessoa foi julgada e absolvida no estrangeiro ou já aí cumpriu a pena, não existe. Apenas quando a intervenção penal se justifica pela proteção de interesses nacionais é legítima a renovada intervenção punitiva do Estado Português. O princípio non bis in idem surge, deste modo, como uma emanação de duas ideias fundamentais: a vinculação do poder punitivo do Estado de Direito pelo desfecho do processo penal e o próprio princípio da necessidade da intervenção penal. Este horizonte valorativo do princípio non bis in idem assegura-lhe universalidade mas pressupõe, igualmente, uma harmonização dos direitos que não existe na comunidade internacional. Ora, o sentido da expressão «julgado pelo mesmo crime», no artigo 29.º, n.º5 CRP, é conferido essencialmente pelos conceitos de processo penal e de julgamento na ordem jurídica portuguesa, de modo 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 que um julgamento sem quaisquer garantias de independência e imparcialidade do tribunal não pode em rigor impor a aplicação do princípio non bis in idem. A questão de que se partiu sobre se a condenação e cumprimento parcial da sentença estrangeira não obstam a novo julgamento pelos factos em Portugal tem, assim, duas respostas possíveis. Uma resposta moderada, segundo a qual os efeitos (negativos) das sentenças estrangeiras previstos no artigo 6.º, n.º1 CP são a máxima expressão possível e exigível pela Constituição. Tal resposta limita o seu âmbito internacional a julgamentos absolutórios ou em que houve cumprimento da condenação. Uma outra resposta, mais radical, considerada o artigo 6.º, n.º1, in fine CP, incompatível com o artigo 29.º,n.º5 CRP, na medida em que em caso de subtração ao cumprimento da pena se viesse renovar, em Portugal, o julgamento pelo mesmo crime. A inconstitucionalidade dessa parte final do artigo 6.º, n.º1, seria sempre evitada, todavia, pela interpretação do preceito no sentido de que o novo julgamento (pelo qual nunca seria aplicável lei penal menos favorável à que fundamentou a condenação) se limitaria a rever e confirmar a sentença estrangeira à luz da lei penal mais favorável, nos termos preconizados pelo Código de Processo Penal. Porém, a proteção mais absoluta do non bis in idem em situações em que não haveria qualquer acordo internacional sobre a eficácia das sentenças estrangeiras não é exigível pela Constituição, desde que a o novo julgamento preconizado esteja contido nos seus resultados pelo chamado princípio do desconto, isto é, desde que a pena já cumprida seja efetivamente descontada na nova condenação (artigo 82.º CP). Deste modo, o princípio non bis in idem atinge em absoluto um efeito impeditivo de dupla punição, mas não um efeito impeditivo de repetição do julgamento realizado em país estrangeiro. O artigo 6.º, n.º2 CP, estabelece ainda um sistema de conversão da pena aplicável naquela pena que lhe corresponder no sistema português ou que a lei portuguesa previr para o facto. Tal sistema refere-se não só à aplicação do Direito Penal estrangeiro em sentença proferida por tribunais portugueses como também à revisão e à confirmação de sentença penal estrangeira pelos tribunais portugueses. A conversão é não só decorrência de um princípio de praticabilidade como também emanação dos princípios da necessidade da pena e non bis in idem. Do primeiro princípio decorre que só a pena correspondente é necessária. Através do segundo princípio perpassa a ideia de que a pena aplicável nunca poderá, pela conversão, vir a impor uma espécie de segunda punição (ou qualquer punição mais gravosa) do agente que se subtrai total ou parcialmente à execução da pena. É à luz destes princípios que a conversão em concreto se deverá realizar.

Conteúdo e sistema de combinação dos princípios aplicáveis: 1. O princípio básico da territorialidade: a. Justificação e conteúdo: a generalidade dos sistemas legislativos penais dos nossos dias assume como princípio basilar de aplicação da sua lei penal no espaço o princípio da territorialidade, não o da nacionalidade. E é esta a posição tradicional do Direito Penal português. Pode afirmar-se que nesta preferência convergem razões de índole interna e razões de índole externa ou, se quiser serse mais preciso, razões próprias de Direito Penal e de política criminal, de um lado, razões de Direito Internacional e de política estadual, do outro. Começando por estas últimas – as razões jurídico-internacionais e de política estadual –, deve conceder-se facilmente que a assunção do princípio da territorialidade como

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 base do sistema de aplicação da lei penal no espaço é a via que facilitará em maior medida a harmonia internacional, o respeito pela não ingerência em assuntos de um Estado estrangeiro. Se a aplicação espacial da lei penal nacional é rigorosamente demarcada por sobre as fronteiras de cada Estado, e se a generalidade dos Estados aceita este princípio, está então descoberto o melhor caminho para que não se gerem conflitos internacionais – positivos ou negativos – de competência interestadual. Se a generalidade dos Estados aceitar o princípio base da territorialidade, um Estado que aceite o princípio pessoal verse-á a cada passo confrontado com aqueles conflitos e com a acusação respetiva de ingerência. Num momento, como o presente, em que política criminal tende a universalizar-se, a consagração da nacionalidade como princípio básico de aplicação no espaço não pode deixar, por isso, de ser considerada como internacionalmente disfuncional. Quanto às razões jurídico-penais e de política criminal que aqui desempenham o seu papel, deve antes de tudo dar-se ênfase à circunstância de ser na sede do delito que mais vivamente se fazem sentir as necessidades de punição e de cumprimento das suas finalidades, nomeadamente, de prevenção geral positiva. É a comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua paz jurídica por ele perturbada e que exige por isso que a sua confiança no ordenamento jurídico e as suas expectativas na vigência da norma sejam estabilizadas através da punição. A estas razões (que poderiam chamar-se substantivas) acresce (razão processual) que o lugar do facto é também aquele onde melhor se pode investiga-lo e fazer a sua prova e onde, por conseguinte, existem mais fundadas expectativas de que possa obter-se uma decisão judicial justa. O princípio geral da territorialidade encontra-se entre nós consagrado no artigo 4.º, alínea a), segundo o qual «a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente». Torna-se assim indispensável determinar, por um lado, o que é território português e, por outro, qual o locus delicti, é dizer, qual o lugar onde um facto é praticado. Quanto à primeira questão porém ela não releva em princípio do Direito Penal, mas do Direito Constitucional (artigo 5.º CRP). Por isso só a segunda deve ser aqui tratada. b. O problema da sede do delito: para determinação do locus ou sedes delicti – do lugar ou sede do delito – rege o artigo 7.º, nos termos do qual «o facto considerase praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido» (n.º1); dispondo ainda que «no caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido» (n.º2). Diferentemente portanto do que vimos suceder com a determinação do tempus delicti, em que o legislador optou pelo critério da conduta em desfavor do do resultado, aqui ele cumulou os dois critérios no sentido daquilo que doutrinalmente corre como solução mista ou plurilateral. Esta decisão é teleológica e funcionalmente fundada. Dada a circunstância de diversos países poderem assumir nesta matéria critérios diferentes (uns, o critério da conduta; outros, o do resultado), daí derivarem insuportáveis lacunas de punibilidade que

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 uma política criminal minimamente concertada não poderia admitir. Para tanto bastando que o país onde a conduta teve lugar seguisse o critério do resultado típico, enquanto o outro país onde o resultado se verificou aceitasse o critério da conduta. A revisão do CP 1998 veio aditar ao artigo 7.º duas conexões que, em rigor, já não seriam exigidas pela referida solução plurilateral: o local onde se produziu «o resultado não compreendido no tipo de crime» e, em caso de tentativa, o local onde o resultado se deveria ter produzido «de acordo com a representação do agente». A primeira conexão diz respeito, desde logo, aos chamados crimes tipicamente formais mas substancialmente materiais, que atingem a consumação típica sem que todavia se tenha verificado ainda a lesão que, em última análise, a lei quer evitar, proporcionando assim uma tutela antecipada do bem jurídico. Em segundo lugar, ela abrange os chamados crimes de atentado, ou de empreendimento, que, embora pressuponham um resultado que transcende a factualidade típica, se consumam no estádio da tentativa. Enfim, aquela conexão vale também para os resultados ou eventos agravantes nos denominadas crimes agravados pelo resultado. Em todos estes casos, a ocorrência em território português do «resultado não compreendido no tipo de crime» fundamenta a competência da lei portuguesa, assim se retomando, de alguma forma, o entendimento da nossa doutrina já à luz do CP 1886, o qual, como se disse, não regulava expressamente a questão do locus deliti. Duvidosa é a questão de saber se podem reconduzir-se àquela expressão as meras condições objetivas de punibilidade, como pretende a doutrina alemã perante um texto legal muito semelhante, interpretando latamente o termo «resultado». Parece de acolher a formulação segundo a qual é necessário para tanto que tais condições tenham sido causadas pela conduta e sirvam para fixar o sentido antijurídico do facto. O artigo 7.º, n.º2, introduzido pela revisão do CP de 1998, acrescentou uma segunda inovação aos critérios de determinação do locus delicti: local do facto é também, em caso de tentativa, o local onde o resultado deveria ocorrer segundo a representação do agente. Na prática, a grande maioria dos casos regulados por esta norma seria também punível através das regras (com pressupostos mais estreitos, é certo) da nacionalidade passiva e da proteção dos interesses nacionais. De toda a maneira, no plano dogmático, não deixa de ser estranho considerar como local da prática do facto o lugar onde o facto não chegou efetivamente a praticar-se. c. O chamado critério do pavilhão: o princípio da territorialidade sofre um alargamento que se contém no artigo 4.º, alínea b) CP e parifica com os factos cometidos em território português os que tenham lugar a bordo de navios ou aeronaves portuguesas. Fala-se a este propósito de um critério do pavilhão, justificado pela consideração tradicional de que aqueles navios e aeronaves são ainda, se não faticamente, ao menos para efeitos normativos território português. Parece todavia dever entender-se que, sempre que o navio ou aeronave estejam surtos em porto ou aeroporto (rectior, em águas ou espaços aéreos territoriais) de país diferente do do pavilhão, isso não retira competência à lei do lugar em nome do princípio base da territorialidade; o que só favorecerá a necessidade eventualmente imperiosa, de intervenção imediata de autoridades policiais ou

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 mesmo judiciárias. Quando tal suceda dar-se-á, no máximo, um conflito positivo de competências.

2. O princípio complementar da nacionalidade: a. Justificação e conteúdo: a complementariedade do princípio da nacionalidade relativamente ao princípio da territorialidade logo significa que se não pretende, por meio dele, obviar a todo e qualquer crime que possa ser cometido por um português fora do seu país. Apenas se reconhece existirem casos perante os quais, se tudo repousasse no princípio português da territorialidade, poderiam abrir-se lacunas de punibilidade indesejáveis para uma política criminal internacional concertada e eficiente. E isto porque existe uma máxima, aceite pelo Direito Internacional e (pelo menos até há bem pouco tempo) comummente seguida, atinente de forma imediata a toda a matéria da aplicação da lei penal de um país a factos cometidos por um seu nacional no estrangeiro: a máxima da não extradição de cidadãos nacionais. Se os não extradita, então os princípios da convivência internacional devem conduzir a que, uma vez que eles se encontrem de novo no país da nacionalidade, o Estado nacional os puna: dedere au punire (iudicare), o Estado ou extradita (entrega) ou, quando não extradita, pune (julga). Esta é a principal justificação deste princípio como complementar do da territorialidade. O que fica dito corresponde ao conteúdo tradicional do princípio da nacionalidade que, de acordo com o fundamento e a teleologia que lhe foram apontados, surge como princípio da personalidade ativa: o agente é um português. Fala-se, todavia hoje também, a justo título, de um princípio da personalidade passiva, para efeitos de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro por estrangeiros contra portugueses. É óbvio porém que este princípio da personalidade passiva radica num fundamento e numa teleologia que – pode afirmar-se sem exagero – nada tem em comum com aqueles em que vimos assentar o princípio da personalidade ativa. Com efeito, a máxima da não extradição de nacionais não desempenha aqui qualquer papel, uma vez que relevante é a nacionalidade da vítima, não a do agente. O que oferece fundamento ao princípio da personalidade passiva é a necessidade, sentida pelo Estado português, de proteger os cidadãos nacionais; é, dito por outras palavras, a exigência de proteção de nacionais perante factos contra eles cometidos por estrangeiros no estrangeiro e, neste sentido, a proteção de interesses nacionais. O princípio da personalidade passiva possui por isso um fundamento e uma teleologia que o identificam com o princípio da defesa de interesses nacionais, concretamente sob a forma de proteção pessoal (individual) daqueles interesses. Sendo assim, a consideração teórica do princípio da personalidade passiva deveria ser levada cabo, em rigor, no âmbito do princípio da defesa dos interesses nacionais. Se assim não procedermos, antes a sua consideração se faz conjuntamente com a do princípio da personalidade ativa, é porque o mesmo sucede no nosso CP E ainda e sobretudo porque as condições a que a nossa lei submete o princípio da personalidade passiva são exatamente as mesmas de que depende o princípio da personalidade ativa e diferentes das que valem para o princípio da defesa (não individual, mas real) dos interesses nacionais; na medida em que para o princípio da personalidade ativa, mas não para o da proteção real dos interesses nacionais, 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 valem as condições postas nos três apartados da alínea e) do artigo 5.º, n.º1 CP. O princípio da nacionalidade encontra-se consagrado, na forma normal do seu aparecimento – e na verdade tanto na sua vertente ativa, como na passiva – no artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP. De acordo com ele a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional, por portugueses (princípio da personalidade ativa) ou por estrangeiros contra portugueses (princípio da personalidade passiva), sob uma tríplice condição: a de os agentes serem encontrados em Portugal; a de tais factos serem uníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar se não exercer poder punitivo; e a de constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. Português para os efeitos em causa é todo aquele que como tal deva ser considerado, no momento do facto (artigo 3.º CP) e segundo as normas da lei da nacionalidade. b. Condições de aplicação: i. Que o agente seja encontrado em Portugal: a primeira condição (artigo 5.º, n.º1, alínea e), inciso i) CP) explica-se, quanto ao princípio da personalidade ativa, por ser nela que se concretiza a razão que lhe dá fundamento: a não extradição de nacionais; e quanto ao princípio da personalidade passiva por nele se tratar de uma extensão do princípio da nacionalidade justificada por razões de índole muito especial. Tem-se muitas vezes apontado esta condição, na nossa doutrina, como exemplo de uma condição objetiva de punibilidade. Tomada esta expressão no seu teor literal, a afirmação é correta. Como correta se mostra quando com ela se pretende significar que tal exigência não constitui elemento do tipo objetivo de ilícito e não precisa, por isso, de ser abrangida pelo dolo e pela culpa do agente. Dogmaticamente porém ela nada possui de comum com o fundamento e a teleologia das verdadeiras condições objetivas de punibilidade, antes constitui uma condição de aplicação no espaço da lei penal portuguesa. Resta sabe se uma tal condição, em definitivo, se justifica, ou se justifica totalmente, na medida em que ela condiciona, porventura em medida demasiado lata, a proteção penal que o Estado português se dispõe a oferecer aos seus nacionais, isto é, afinal, a amplitude do princípio da personalidade passiva; sobretudo num momento em que a figura do julgamento de ausentes em processo penal regressou (infelizmente) ao sistema legal português (artigos 232.º e seguintes CPP). ii. Que o facto seja também punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado: a exigência de que o facto seja também punível pela legislação do lugar em que tiver sido praticado (artigo 5.º, n.º1, alínea e), inciso ii) CP) é a condição materialmente mais importante de aplicação do princípio da nacionalidade e que mais claramente o converte em princípio subsidiário. Uma tal exigência é, pelo menos em via de princípio, político-criminalmente justificada e teleologicamente plena de sentido. Não é em regra razoável star a submeter ao poder punitivo alguém que praticou o facto num lugar onde ele não é considerado penalmente

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 relevante e onde, por isso, não se fazem sentir quaisquer exigências preventivas quer sob a forma de tutela das expectativas comunitárias na manutenção da validade da norma violada – norma que, em definitivo, não existe – quer sob a forma de uma socialização de que, segundo a lei do lugar, o agente não carece. Pelo menos no que tange o princípio da personalidade ativa. Já considerando o fundamento da personalidade passiva, a exigência torna-se menos clara, uma vez que o que aí está em causa é um propósito de proteção de interesses (pessoais) especificamente nacionais. A lei ressalva desta exigência a hipótese de no loce delicti – justamente porque se trata de um domínio sem senhor – se não exercer o poder punitivo: nesse caso o princípio da personalidade fica simplesmente na dependência da verificação do requisito anterior (artigo 5.º, n.º1, alínea e), inciso i) CP), já que também o requisito que em seguida será tratado perde verdadeiramente campo de aplicação. Uma tal extensão do princípio da nacionalidade é fruto, por um lado, de o princípio da territorialidade não poder aqui ter aplicação e por, apesar disso, se entender que o facto não deve ficar sem punição. Bem podendo afirmar-se que em tais hipóteses o princípio da personalidade (ativa e passiva) deixa de ser princípio complementar ou acessório, para se tornar em princípio único da lei penal no espaço. iii. Que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida: o inciso iii) do artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP põe como última condição de aplicação do princípio da personalidade, ativa ou passiva, que o facto constitua crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. Trata-se aqui claramente de uma reafirmação da conceção do legislador segundo a qual o princípio da territorialidade deve não apenas no conspeto nacional, mas internacional constituir o princípio base, e o princípio da nacionalidade o complemento. Se a extradição fosse jurídica e faticamente possível ela deveria ser concedida e o princípio pessoal deveria regredir: do ponto de vista do princípio base da territorialidade antes dedere que punire. Se estiver em causa o princípio da nacionalidade ativa (sendo o agente português), a extradição só é possível nos apertados limites do regime previsto no artigo 33.º, n.º3 CRP e no artigo 32.º, n.º2 Lei n.º 144/99, 31 agosto. Com efeito, rompendo com uma tradição plurissecular, a Lei Constitucional n.º1/97 introduziu no nosso Ordenamento Jurídico a possibilidade de extradição de nacionais, até então absolutamente proibida pela Constituição: a causa imediata da modificação deveu-se por certo à vontade de dar cumprimento à regra posta pelo artigo 7.º, n.º1 Convenção Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, assinala a 27 setembro 1996. Embora esta norma admitisse a formulação de reservas, o Estado Português optou por abrir o seu direito à extradição de nacionais em certos casos de contados e taxativamente descritos, de acordo com a faculdade concedida no artigo 7.º, n.º2 da Convenção. Assim, o atual artigo 33.º, n.º3 CRP (só) permite a extradição de nacionais desde que se verifiquem os seguintes requisitos (cumulativos!):

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 1. Existência de reciprocidade de tratamento por parte do Estado requerente; 2. Consagração dessa reciprocidade em convenção internacional; 3. Tratar-se de casos de terrorismo ou de criminalidade internacional organizada; 4. Consagração de garantias de um processo justo e equitativo pelo ordem jurídica do Estado requerente. Crime que admita extradição é qualquer um à exceção da infração de natureza ou política ou infração conexa a infração política segundo as conceções do Direito Português e do crime militar que não seja simultaneamente previsto na lei comum (artigo 7.º, n.º1, alínea a) e b) da Lei de Cooperação Judiciária Internacional – L 144/99). Porem, a própria lei retira, no artigo 7.º, n.º2, a natureza política a um extenso leque de crimes, independentemente da motivação que lhes presida. Além disso, há que ter em conta, nas relações com os restantes Estadosmembros da União Europeia, que o artigo 5.º da Convenção de Extradição de 1996 exclui expressamente a natureza política do crime como fundamento da recusa de extradição. Ora, dada a prevalência das normas contidas em convenções internacionais sobre a lei ordinária interna, a eventual natureza política de certa infração não permitirá ao Estado Português recusar a extradição no âmbito de aplicação da referida Convenção. Se o crime é, pela sua natureza, passível de extradição, pode todavia esta não ser concedida, seja porque, pura e simplesmente, não foi requerida, seja por efeito das normas, substantivas e adjetivas, em matéria de extradição. Algumas das quais se inscrevem logo no texto constitucional: justamente a que proíbe a extradição de nacionais fora dos casos previstos (artigo 33.º, n.º3 CRP); a que impede a extradição pedida por motivos políticos (artigo 33.º, n.º 4 CRP); e as que vedam a extradição por crimes a que correspondam certas reações criminais segundo o Direito do Estado requerente: a pena de morte e a pena de que resulte lesão irreversível da integridade física (artigo 33.º, n.º4 CRP). No que diz respeito às duas primeiras proibições de extraditar, elas cessam apenas e o Estado requerente previamente comutar essas penas ou medidas ou se aceitar a conversão das mesmas por um tribunal português, segundo a lei portuguesa (artigo 6.º, n.º2, alínea a) e c L 144/99). A terceira proibição cessa, para além destes casos, se existirem condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional e se o Estado requerente der garantias de que tal pena ou medida não será aplicada ou executada (artigo 33.º, n.º5 CRP e artigo 6.º, n.º2, alínea b) L 144/99). A prevalência da extradição sobre a competência da lei portuguesa em razão da nacionalidade vale também, mutatis mutandis, para a entrega efetuada ao abrigo da Lei n.º 65/2003, 23 agosto, relativa ao mandado de detenção europeu. Assim, a competência extra territorial da lei portuguesa em virtude da nacionalidade (ativa ou passiva) só deve exercer-se na ausência de um 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 pedido de entrega formulado por um Estado da União, ou na impossibilidade de lhe dar cumprimento quando subsista, apesar dela, uma pretensão penal do Estado português (artigo 11.º, alínea d) e e), bem como os casos de ausência das garantias previstas no artigo 13.º daquele diploma). Esta regra não é, todavia, absolutamente rígida, devendo ressalvar-se o fatos de flexibilidade introduzido pelo artigo 12.º, n.º1, alínea b) L 65/2003, que admite a possibilidade, em Portugal, de um procedimento penal, pelos mesmos factos, contra a pessoa procurada. O raciocínio e os resultados expostos valem também para o pedido de entrega formulado pelos Tribunais Penais Internacionais para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, cuja jurisdição das Nações Unidas sobre as jurisdições nacionais, nos termos das Resoluções das Nações Unidas que os instituíram e dos artigos 2.º, n.º1 e 3.º, n.º1 L 102/2001, 25 agosto. O mesmo não sucede porém com a entrega ao Tribunal Penal Internacional (permanente), dado que, nos termos do Estatuto de Roma, o tribunal só pode admitir o caso – princípio da subsidiariedade – quando as jurisdições competentes não puderem ou não quiserem julgar adequadamente os factos em causa. c. Extensão do princípio da nacionalidade: com uma extensão do princípio da nacionalidade depara-se no artigo 5.º, n.º1, alínea b) CP, segundo o qual a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional «contra portugueses, por portugueses que viverem habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados». Extensão que deriva de se não fazerem nesta sede as exigências constantes dos incisos ii) e iii) do artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP. Uma tal extensão foi justificada com a consideração de que importaria impedir a impunidade nos casos em que um português se dirige ao estrangeiro para aí cometer um facto que, se bem que licito segundo a lex loci, constitui todavia um crime segundo a lex patriae, com a agravante de um tal crime ser cometido contra um português; e em que, uma vez o crime cometido, o agente volta a Portugal provavelmente para aqui continuar a viver tranquilamente. Em casos tais – argumentou-se – o agente teria adquirido, se a extensão em causa não existisse, um verdadeiro direito à impunidade através de uma fraude à lei penal. Por isso uma tal lacuna devia ser incondicionalmente preenchida. A ser assim, pode duvidar-se da necessidade político-criminal desta extensão do princípio da nacionalidade. Sobretudo na medida em que, não sendo o facto punível segundo a lei do lugar, isso seja sinal de que a sua incriminação releva mais de conceções éticas discutíveis também para a comunidade nacional, ou se traduz num crime sem vítima ou figura jurídicopenal próxima. A sua justificação – com eventuais consequências no seu âmbito de aplicação – parece pois só poder ser vista na fidelidade do agente da vitima aos princípios fundamentais de uma comunidade a que pertencem e onde o agente habitualmente vive.

3. O princípio complementar da defesa (da proteção) dos interesses nacionais: trata-se, neste princípio complementar de aplicação da lei penal portuguesa, da específica proteção que deve ser concedida a bens jurídicos portugueses, independentemente, por conseguinte, da nacionalidade do agente, de os crimes terem sido cometidos no estrangeiro e mesmo 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 do que a seu respeito disponha a lei do lugar. O que sucede é que, apesar dos esforços, em parte já coroados de algum êxito a nível internacional ou inter-regional, de aproximação e de cooperação entre as diversas leis nacionais, pode compreender-se que muitas delas não punam os factos, ainda que praticados no seu âmbito territorial, exclusivamente dirigidos à lesão dos bens jurídicos próprios de outro país. É o que sucede com a generalidade dos crimes contra o Estado, onde a área de tutela típica cobre apenas os interesses do Estado Português. Foi precisamente a regra enunciada no texto que levou o legislador nacional a rever o regime da punição do terrorismo na Lei de Combate ao Terrorismo (L 52/2003, 22 agosto), passando a incriminar as organizações terroristas que tenham por fim a prática de atos terroristas contra entidades estrangeiras (artigo 3.º) e, naturalmente, o próprio Terrorismo internacional (artigo 5.º). Por isso os estados nacionais se veem na necessidade de fazer intervir a proteção penal dos seus interesses específicos perante factos cometidos no estrangeiro, mas diretamente dirigido à lesão de bens jurídicos nacionais. O bom fundamento de uma tal extensão do ius puniendi nacional reside em que o próprio agente estabeleceu a relação com a ordem jurídicopenal portuguesa ao dirigir o seu facto contra interesses especificamente portugueses. Além disso, o Estado em cujo território o crime foi praticado pode não se encontrar em condições de perseguir os infratores, pelo que o Estado Português deve munir-se dos instrumentos necessários à defesa própria dos seus interesses essenciais. As hipóteses integrantes deste princípio têm a ver com a defesa de bens jurídicos que podem dizerse nacionais segundo a específica natureza. Aqui é pois a substancia do bem jurídico que o torna em interesse nacional, não necessariamente a titularidade, por isso se falando hoje com propriedade, a respeito desta vertente do princípio da defesa de interesses nacionais, de um princípio de proteção real. A lei tem, deste modo, de fazer uma enumeração taxativa dos tipos de factos relativamente aos quais vale o princípio em exame. A ela procede o artigo 5.º, n.º1, alínea a) CP. Assinale-se que, em um certo sentido, o princípio de proteção real prefere ao princípio da personalidade ativa quando ambos sejam convocados no caso concreto, isto é, sempre que um dos crimes a que o princípio real se refere tenha sido praticado por um português: no sentido de que, em casos tais, não se torna necessária à aplicação da lei penal portuguesa a verificação dos requisitos de que o artigo 5.º, n.º1, alínea e) e b) CP faz depender a entrada em função do princípio da nacionalidade.

4. O princípio complementar da universalidade: o princípio da universalidade ou da aplicação universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de proteção internacional ou que, de todo o modo, o Estado Português se obrigou internacionalmente da sedes delicti e da nacionalidade do agente. Não se trata, como é claro, de facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela sua lei interna; o que conduziria à existência de um ius puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador por isso em larga medida de conflitos internacionais de caráter jurídicopenal. Do que se trata é antes – e só – do reconhecimento do caráter supra nacional de certos bens jurídicos e que por conseguinte apelam para a sua proteção a nível mundial. Deste modo aponta Jescheck, com razão, como fundamentos do princípio, «a solidariedade do mundo cultural face ao delito», e a «luta contra a delinquência internacional perigosa». Neste sentido, vai logo o artigo 5.º, n.º1, alínea c) CP, ordenando a aplicação da lei penal portuguesa a crimes que tutelam bens jurídicos carecidos de

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 proteção internacional. Submete, todavia, a aplicação da lei penal portuguesa nestas hipóteses a uma dupla condição: que o agente seja encontrado em Portugal; e que não possa ser extraditado. Tais limitações são compreensíveis, sendo só de suscitar a questão de saber, quanto à segunda, se ela vale apenas para o caso em que a extradição foi requerida, mas não pode ser concedida, ou ainda para o caso de a não concessão derivar de ela não ter sido requerida. A interpretação mais ampla parece ser imposta justamente pela teleologia específica do princípio da universalidade. De resto, a introdução do legislador da a atual alínea f) do artigo 5.º, n.º1 reforça este entendimento, porquanto o legislador fez questão de especificar que a competência da lei portuguesa no caso aí previsto depende da concreta existência de um pedido de extradição que não pode ser atendido. Fonte do princípio pode também ser o Direito Internacional Convencional a que Portugal se tenha obrigado. Nesse sentido dispõe o artigo 5.º, n.º2 CP. Não há aqui quaisquer requisitos erais de que dependa a aplicação do princípio; o que podem evidentemente é existir nos concretos tratados e convenções internacionais em que aquele se plasmo.

5. O princípio complementar da administração supletiva da justiça penal: como se referiu, a revisão do CP 1998, ao introduzir a norma atualmente constante do artigo 5.º, n.º1, alínea f) CP, veio colmatar uma lacuna do sistema de aplicação da lei penal no espaço até aí existente. Com efeito, podia suceder – e efetivamente sucedeu – que um cidadão estrangeiro, tendo praticado um crime, normalmente grave, no estrangeiro, viesse buscar refúgio em Portugal, onde, por um lado, não podia ser julgado, dada a ausência de uma conexão relevante com a lei portuguesa, e de onde, por outro lado, não podia ser extraditado, dadas as proibições de extraditar em função da gravidade da consequência jurídica impostas pelo sistema nacional. Esta lacuna, conjugada com o aumento exponencial da mobilidade das pessoas nos últimos anos, sobretudo dentro da União Europeia, fazia Portugal incorrer no risco de se transformar num valhacouto de criminosos estrangeiros. Indicados o seus fundamentos político-criminais, resta referir as condições dentro das quais, segundo o princípio da administração supletiva da justiça penal, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos por estrangeiros no estrangeiro. Isso sucederá desde que: a. O agente seja encontrado em Portugal; b. A sua extradição haja sido requerida; c. O facto constitua crime que admita a extradição e esta não possa ser concedida. Também aqui se devendo entender que o conceito de extradição, para efeitos desta alínea, abarca, por interpretação extensiva (licita), a entrega aos Tribunais Penais Internacionais e a que resulta de um mandado de detenção europeu, nos termos da Lei n.º 65/2003, 23 agosto. Nos raros casos em que um desses pedidos de entrega não deva ser satisfeito, e não se aplique nenhuma das conexões precedentes, a lei portuguesa é competente para conhecer dos factos em virtude da norma contida no artigo 5.º, n.º1, alínea f) CP.

Condições gerais de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro: o caráter meramente complementar ou subsidiário dos princípios de aplicação extraterritorial da lei penal portuguesa revela-se exemplarmente na circunstância de em todos estes casos a

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 aplicação só ter lugar «quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação» (artigo 6.º, n.1ºCP). Trata-se aqui, antes de mais, de respeitar o princípio jurídico-constitucional ne bis in idem, segundo o qual «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime» (artigo 29.º, n.º5 CRP); até porque uma tal garantia é considerada pela nossa Constituição como valendo para todas as pessoas e para todos os tribunais, que não apenas para os cidadãos portugueses ou para julgamentos levados a cabo por tribunais portugueses. Mas trata-se também de traduzir a ideia segundo a qual o critério da territorialidade deve, segundo a nossa constituição político-criminal, constituir efetivamente o princípio prioritário e todos os outros assumirem a veste de princípios meramente complementares, ou melhor ainda, nesta aceção, supletivos. Trata-se, em suma e só, de prevenir a impunidade que poderia resultar de conflitos negativos de jurisdição. Esta solução pode suscitar algumas dúvidas quanto ao seu fundamento político-criminal no que toca à sua aplicação aos casos em que intervenha o princípio da defesa dos interesses nacionais na sua vertente de proteção real. Pode dizer-se que não deve confiar-se a tribunais estrangeiros a apreciação de ofensas a interesses especificamente nacionais. Mas a validade deste argumento já tem sido posta em causa: porque atrás dele estaria uma inadmissível desconfiança de princípio perante sentenças de tribunais estrangeiros, a qual só pode prejudicar os esforços de incrementação da cooperação judiciária internacional em matéria penal; e porque era esta já a solução contida no CP 1886 e não há noticia de que tenha dado lugar a lacunas intoleráveis na defesa de interesses especificamente portugueses. O que se compreenderia, porque uma de duas: ou os interesses nacionais em causa correspondem também a interesses dignos de proteção segundo a lex loci e deve então esperar-se que esta proteção seja suficiente para assegurar a defesa dos interesses nacionais; ou os interesses portugueses não são protegidos pela lex loci, menos indiretamente e o problema então nem sequer se suscita porquanto o agente não será julgado no país estrangeiro e a lei portuguesa torna-se plenamente aplicável. Prova definitiva do caráter subsidiário dos princípios de extra territorialidade é que, nos termos do artigo 6.º, n.º2 CP, o facto deva ser julgado pelos tribunais portugueses «segundo a lei do pais em que tiver sido praticado sempre que esta seja concretamente mais favorável ao delinquente». Trata-se, por isso, verdadeiramente de aplicação da lei penal estrangeira pelo tribunal português. Solução esta que, se encontra o seu fundamento primário no princípio da aplicação do regime concretamente mais favorável, constitui em último termo uma decorrência da ideia segundo a qual a aplicabilidade da lei portuguesa é subsidiária. Dois problemas, no entanto, costumam suscitar-se ainda neste contexto. O primeiro é o de saber se certas categorias de crimes não devem ser radicalmente afastadas do âmbito de aplicação do princípio. A lei portuguesa vigente, depois de muitas hesitações durante o seu período de gestação, acabou por se deixar convencer pelo bom fundamento da ideia da exclusão, que estendeu a todos os crimes aos quais a lei portuguesa é aplicável em nome do princípio da defesa dos interesses nacionais. Nesse sentido, dispõe o artigo 6.º, n.º3 CP que «o regime do número anterior não se aplica aos crimes previstos na alínea a) e b) do n.º1 do artigo 5.º». Solução que é coerente com a dispensa do princípio da dupla incriminação visada pela alínea b) do n.º1 do artigo 5.º CP. O segundo problema é o de saber como devem resolver concretamente as dificuldades práticas que possam resultar da aplicação da lei penal estrangeira no que respeita à assimilação das sanções previstas por esta. O problema não possui acuidade entre nós. É verdade que o sistema português não admite nem a pena de morte, nem a pena de prisão perpétua; mas precisamente nestes casos a lei estrangeira não se aplicará por não surgir como lex mellior. É nos limites inferiores da escala penal que o problema se pode suscitar; mas nessa zona o CP português consagra uma larguíssima panóplia de penas substitutivas de prisão, de modo que também aí o problema da assimilação não 葡京的法律大学 | 大象城堡

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Direito Penal I | Professora Maria Fernanda Palma 2015/2016 suscitará dificuldades especiais. Em todo o caso, ao menos no plano teórico, o problema persiste. Já se preconizou que para resolver o CP contivesse uma tábua e conversão completa das penas estrangeiras em penas nacionais; ou em alternativa que contivesse uma cláusula geral de conversão d apena estrangeira naquela que dela mais se aproximasse no sistema nacional. Foi esta a última via a seguida pela 2.º parte do artigo 6.º, n.º2 CP, nos termos da qual «a pena (estrangeira) aplicável é convertida naquela que lhe corresponder no sistema português ou, não havendo correspondência, naquela que a lei portuguesa previr para o facto».

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