Diferentes, Desiguais e Desconectados - Canclini

January 8, 2018 | Author: Ana Carolina Marçal | Category: Anthropology, Sociology, State (Polity), Mexico, The United States
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TEORIAS DA INTERCULTURALIDADE E FRACASSOS POLÍTICOS

Perguntamo-nos como encaixar em algo que pareça real, tão real como um mapa, este feixe de comunicações distantes e incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos, que se nomeia como globalização. Setenta canais de televisão acessados por cabo, acordos de livre comércio que nossos presidentes assinam aqui e acolá, migrantes e turistas cada vez mais interculturais que chegam a esta cidade, milhões de argentinos, colombianos, equatorianos e mexicanos que agora vivem nos Estados Unidos ou na Europa, programas de informação, vírus multilingues e publicidade não pedida que aparecem no computador: onde encontrar a teoria que organize as novas diversidades? Estudar as diferenças e preocupar-se com o que nos homogeneíza tem sido uma tendência distintiva dos antropólogos. Os sociólogos costumam deter-se na observação dos movimentos que nos igualam e dos que aumentam a disparidade. Os especialistas em comunicação costumam pensar diferenças e desigualdades em termos de inclusão e exclusão. De acordo com a ênfase de cada disciplina, os processos culturais são lidos em chaves distintas. Para_as^mrop^lo^jaLda diferença, cultura é pertejicimento comunitário e contraste com os outros. Para algumas teorias sociológicas da desigualdade, a cultura é algo que se adquire fazendo parte das elites ou aderindo aos seus pensamentos e gostos; as diferenças culturais procederiam da apropriação desigual-dos

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recursos económicos e educativos. Os estudos comunicacionais consideram, quase sempre, que ter cultura é estar conectado. Não há um processo evolucionista de substituição de algumas teorias por outras: o problema é averiguar como coexistem, chocam ou se ignoram a cultura comunitária, a cultura como distinção e a cultura.com. É uma questão teórica e é um dilema-chave nas políticas sociais e culturais. Não só como reconhecer as diferenças, como corrigir as desigualdades e como conectar as maiorias às redes globalizadas. Para definir cada um destes três termos, é necessário pensar os modos pelos quais se complementam e desencontram. Nenhuma destas questões tem o formato de há trinta anos. Mudaram desde que a globalização tecnológica passou a interconectar simultaneamente quase todo o planeta e a criar novas diferenças e desigualdades. 1

As transformações recentes fazem tremer a arquitetura da multiculturalidade. Os Estados e as legislações nacionais, as políticas educacionais e de comunicação que ordenavam a coexistência de grupos em territórios delimitados são insuficientes ante a expansão das misturas interculturais. As trocas económicas e midiáticas globais, assim como os deslocamentos de multidões aproximam zonas do mundo pouco ou mal preparadas para se encontrarem. Resultados: cidades onde se falam mais de cinquenta línguas, tráfico ilegal entre países, circuitos de comércios travados porque o Norte se entrincheira em barreiras agrícolas e culturais, enquanto se despoja o Sul. As consequências mais trágicas: guerras "preventivas" entre países, dentro de cada nação e também no interior das megacidades. Militarizam-se as fronteiras e os aeroportos, os meios de comunicação e os bairros. Parecem esgotar-se os modelos de uma época na qual acreditávamos que cada nação podia combinar suas muitas culturas, e mais as que iam chegando, num só "cadinho", ser um "crisol de raças", como declaram constituições e discursos. Está por acabar-

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se a distribuição estrita de etnias e migrantes em regiões geográficas, a distribuição de bairros prósperos e carentes, que nunca foi inteiramente pacífica mas era mais fácil governar, uma vez que os diferentes estavam distanciados. Todos - patrões e trabalhadores, nacionalistas e recém-chegados, proprietários, investidores e turistas - confrontamo-nos, diariamente, com uma interculturalidade de poucos limites, frequentemente agressiva, que supera as instituições materiais e mentais destinadas a contê-la. De um mundo multicultural— justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou nação - passamos a outro, intercultural e globalizado. Sob concepções multiculturais, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando sua diferença e propondo políticas relativistas de respeito, que frequentemente reforçam a segregação. Em contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogéneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos. Aos encontros episódicos de migrantes que há pouco chegaram e devem adaptar-se, às reuniões de empresários, académicos ou artistas que se vêem durante uma semana, para férias, congressos ou festivais, somam-se milhares de fusões precárias, armadas, sobretudo, em cenários midiáticos. A televisão a cabo e as redes de internet falam línguas múltiplas dentro da nossa casa. Nas lojas de comida, discos e roupa, "convivemos" com bens de vários países num mesmo dia. Encontramos os melhores jogadores argentinos, brasileiros, franceses e ingleses em equipes de outros países. E as decisões sobre o que vamos ver, ou quem vai jogar onde, implicam não só misturas interculturais: tal como na televisão e na música, no esporte não jogam só Beckham, Figo, Ronaldo, Veron e Zidane, mas também as marcas de roupas e de carros que os patrocinam, os canais que entram em disputa para transmitir as partidas ou já compraram os

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clubes. O que mantém a credibilidade das identidades no futebol, das referências nacionais e locais, quando sua composição é tão heterogénea, projetada como co-produção internacional e com fins mercantis? Será que a aceitação de estrangeiros no esporte dá pistas sobre certas condições que facilitam a aceitação e a integração dos diferentes? É difícil estudar esta vertigem de confusões com os instrumentos que usávamos para conhecer um mundo sem satélites nem tantas rotas interculturais. Os livros sobre estes temas, a maioria escritos em inglês e pensando nos formatos de multiculturalidade existentes nos Estados Unidos, Grã-Bretanha ou suas ex-colônias, concentram-se em relações interétnicas ou de género, mas no horizonte atual se entrecruzam outras conexões nacionais e internacionais: de níveis educativos e idades, midiáticas e urbanas. 2

Este é um livro sobre teorias socioculturais e fracassos sociopolíticos. Uma primeira consequência desta delimitação do campo de análise é que, embora os leitores aqui encontrem discussões filosóficas, interesso-me por elaborá-las em relação com as atuais condições sociais e midiáticas nas quais se verificam os desacertos políticos. Penso que as polémicas entre sistemas de ideias - por exemplo, sobre universalismo e relativismo, ou sobre as vantagens do universalismo como justificação estratégica (Gadamer, Rorty ou Lyotard) ou como opção ética (Rorty ou Rawls) - têm o valor de situar as condições teóricas modernas e pós-modernas da incomensurabilidade, incompatibilidade e intradutibilidade das culturas. Aqui preferi trabalhar à maneira de cientistas sociais, como Pierre Bourdieu e Clifford Geertz, ou filósofos, como Paul Ricoeur, atentos aos obstáculos socioeconómicos, políticos e comunicacionais postos à interculturalidade pela efetiva desestabilização atual dos ordenamentos nacionais, étnicos, de género e geracionais, operada pela nova interdependência globalizada. Observa acertadamente Seyla Benhabib que a ênfase teoricista na "incomensurabilidade nos desvia das negociações epis-

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têmicas e morais muito sutis que ocorrem entre culturas, dentro das culturas, entre indivíduos e também dentro dos indivíduos mesmos, ao lidar com a discrepância, a ambiguidade, a discordância e o conflito" (Benhabib, 2002, p. 31). A atenção a estas ambivalentes negociações tem caracterizado os estudos socioantropológicos. Talvez por isso a antropologia possa registrar melhor, empiricamente, a reestruturação culturalào mundo como chave do final de uma época política. Até há quinze anos - para tomar como data de condensação a queda do Muro de Berlim - , havia uma divisão do planeta na qual Oriente e Ocidente pareciam hemisférios antagónicos e pouco conectados. As nações tinham culturas mais ou menos autocontidas, com eixos ideológicos definidos e duradouros, que regiam a maior parte da organização económica e dos costumes cotidianos. Acreditava-se saber o que significava ser francês, russo ou mexicano. Os países abriam seu comércio e, portanto, recebiam fábricas, objetos de consumo diário e mensagens audiovisuais cada vez mais variadas. Mas, na sua maior parte, estes provinham da região oriental ou ocidental a que se pertencia e eram processados numa matriz nacional de significados. Em poucos anos, as economias dos países grandes, médios e pequenos passaram a depender de um sistema transnacional no qual as fronteiras culturais e ideológicas se desvanecem. Fábricas estadunidenses, japonesas e coreanas instalaram maquiladoras em nações como México, Guatemala e El Salvador, que acreditavam aliviar assim o desemprego insolúvel com recursos internos. A inserção de estilos de trabalho e formas exógenas de organização do trabalho incrementou o estoque de automóveis, televisores e, naturalmente, culturas (Reygadas, 2002). Aqueles que não conseguiam emprego ou que aspiravam a ganhar mais enviavam alguns membros das suas famílias aos Estados Unidos, à Espanha ou a outras sociedades que ainda aceitavam pessoas sem documentos com o objetivo de baratear os custos internos de produção e de competir na exportação.

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Os antropólogos estudávamos a continuidade das tradições de trabalho, línguas e hábitos de consumo, que mantinham identidades territoriais mesmo no desterro. Os sociólogos políticos discutiam se, nos países latino-americanos, devia-se permitir que votassem os migrantes residentes no exterior, e imaginavam os efeitos da influência latina no futuro de zonas estadunidenses onde começavam a representar um quarto da população. Repentinamente, muitas mudanças desfiguram esta paisagem. Quando as ciências sociais lidavam com um mundo mais ordenado, considerar-se-ia como ecletismo apressado reunir num mesmo parágrafo estes fatos: a) muitas maquiladoras saem dos países latino-americanos para a China, aproveitando os salários mais baixos desse país; ou seja, o regime chinês, visto até uma década atrás como o maior inimigo ideológico do capitalismo, gera desemprego e enfraquece economias ocidentais não mediante desafios ideológicos, eficácia produtiva ou poderio militar, mas graças à maior exploração do trabalho; b) na Califórnia, leis como a 187, que privam de direitos à saúde e à educação as pessoas sem documentos, e a eleição de Arnold Schwarzenegger como governador efetivaram-se com boa parte do voto chicano; c) as remessas de dinheiro dos migrantes, dos Estados Unidos para a América Latina, aumentam de ano para ano, a ponto de se converterem no México, com 14 bilhões de dólares em 2003, numa fonte de receitas semelhante à exportação de petróleo e mais elevada do que o turismo; d) as roupas, os celulares, os aparelhos eletrodomésticos e até os adornos de Natal têm em comum etiquetas que anunciam sua fabricação no Sudeste asiático. Vimos bandeiras nacionais agitadas em celebrações da independência da Argentina e do México com a etiqueta made in Taiwan. Estes processos não são facilmente agrupáveis numa mesma série socioeconómica nem cultural, porque implicam tendências diversas de desenvolvimento, às vezes contraditórias. Mais do que generalizar conclusões, mudam as perguntas sobre o local, o nacional e o transnacional, sobre as relações entre trabalho, consumo e terri-

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tório, ou seja, alteram a articulação dos cenários que davam sentido aos bens e mensagens. A rigor, trata-se de um processo que tem mais de 15 anos. Não esqueço que, ao fazer, em fins da década de 1970, a etnografia das festas indígenas e mestiças em Michoacán, nas danças de origem purépecha ou espanhola - todas vividas como signos identificadores de tradição local - , os migrantes para os Estados Unidos, que regressavam ao México para participar, exibiam roupas com frases em inglês e colocavam sua contribuição em dólares no arranjo ritual da cabeça dos dançarinos. A diferença é de escala e intensidade: em Michoacán, não mais do que 10% da população emigravam naquela época; agora, em números redondos, vivem nesse estado mexicano 4 milhões de michoacanos, enquanto 2,5 milhões residem nos Estados Unidos. Uns e outros seguem interconectados não só pelo dinheiro mas também por mensagens afetivas, informação nas duas direções, frustrações e projetos mais ou menos comuns. Podem-se avaliar as diferenças recentes em muitas sociedades latino-americanas e também nos Estados Unidos. As exportações chinesas para este país aumentaram em 40% nos últimos três anos, de modo que a sociedade estadunidense se converteu em destino de 25% do que os chineses vendem ao exterior. Nestas remessas asiáticas chegam milhares de objetos sem os quais é difícil imaginar o que distingue os estadunidenses: os troféus com que se premiam as crianças em competições esportivas, as bolas de beisebol e de basquete, os esquis, aparelhos de televisão e móveis early american. Seria ingénuo pensar que tantas etiquetas com identificações asiáticas, em artigos de consumo estadunidense ou em bandeiras argentinas e mexicanas, atenuarão o nacionalismo destes povos, aproximando-os e facilitando sua compreensão. As^rela^fes_en tre aproximações de mercado, nacionalismos políticos e inércias cotidianas de gostos e afetos seguem dinâmicas divergentes, como se não tivessem se inteirado das redes que reúnem economia, política e cultura em escala transnacional. Esta nova situação das relações s

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interculturais é o que me estimula às revisões teóricas dos trabalhos antropológicos, sociológicos e comunicacionais das décadas recentes. 3

A indagação sobre as possibilidades de convivência multicultural tem certa analogia com a construção de projetos interdisciplinares. Se estamos numa época pose multi, se há tempos é impossível instalar-se no marxismo, no estruturalismo ou outra teoria como se fosse a única, o trabalho conceituai precisa aproveitar diferentes contribuições teóricas, debatendo suas interseções. Depois de utilizar durante anos a concepção bourdieana - ela mesma uma teoria que articula e discute Marx, Weber e Durkheim — para realizar investigações sobre campos intelectuais, consumos culturais e o vínculo sociedade-cultura-política, avalio melhor os limites dos seus enfoques. Ajudam-me, como os leitores logo verão, as críticas de GrignonPasseron e os raciocínios de Boltanski-Chiapello, que oferecem uma visão mais complexa das contradições atuais do capitalismo. Interessei-me, nesta linha, em entender por que Bourdieu reproduziu até as últimas investigações sua máquina reprodutivista e, nos anos finais, quando quis acompanhar protestos contra o neoliberalismo e reencontrar um papel para sujeitos críticos, não superou a repetição mais ou menos sofisticada do anticapitalismo da primeira metade do século XX. Vejo a chave destes limites na dificuldade da sua obra para incluir as formas de industrialização-massificação da cultura e o papel não simplesmente reprodutivista dos setores populares. A atenção que dou às posições que sublinham as diferenças, do etnicismo até a posição de Clifford Geertz, me leva a valorizar criticamente as contribuições daqueles que vêem a modernidade a partir do pré ou do não-moderno. Por outro lado, as opções apresentadas pelo pós-modernismo na antropologia e nos estudos culturais tampouco nos permitem ignorar as incertezas da modernidade. Nem as concepções diferencialistas, que rechaçam o Ocidente, nem

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as pós-modernas oferecem alternativas teóricas ou modelos socioculturais que substituam os dilemas modernos. O interesse em entender, ao mesmo tempo, as teorias socioculturais e os fracassos políticos exige analisar, ao lado daquilo que os autores declaram nos textos teóricos, as polémicas e as relações com instituições, meios de comunicação e movimentos sociais, por meio das quais constroem sua argumentação. Por isso, ocupo-me de vários livros-chave, ao lado de simpósios nos quais cientistas sociais e líderes indígenas discutem sobre as diferenças étnicas e os Estados. Analiso os textos de Bourdieu e também seu modo de atuar na televisão. Nas situações de enunciação e interação, escutamos o que nos textos aparece como pressuposto ou silêncio. Quanto aos políticos, o livro pretende focar seus fracassos culturais não só como resultado de erros ou corrupção, da asfixia que a economia neoliberal impõe ao jogo democrático, mas também como frustrações teóricas. Faltam interpretações sobre o modo errático e não representativo em que deambula a política. Não encontro, sobre estes últimos anos, textos equivalentes àqueles que se escreveram sobre as grandes catástrofes do século XX: o nazismo, o autoritarismo soviético e suas sombras. De modo que, ao nos perguntarmos pela política e pelos políticos, os fracassos de que os jornais falam rotineiramente aparecerão aqui como cenografia, ruído de fundo, perguntas sobre os atuais desentendimentos entre culturas e posições de poder. 4

Talvez estas páginas iniciais já tenham sugerido as razões da mudança de foco que prometem em relação a outros textos sobre interculturalidade. Como se sabe, os estudos anglo-saxões neste campo se concentraram na comunicação intercultural, entendida, primeiro, como relações interpessoais entre membros de uma mesma sociedade ou de culturas diferentes, e, depois, abrangendo também as comunicações entre sociedades distintas, facilitadas pelos

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meios de comunicação de massas (Hall, Gudykunst, Hamelink). Na França e em outros países preocupados com a integração de migrantes de outros continentes, prevalece a orientação educativa que formula os problemas da interculturalidade como adaptação à língua e à cultura hegemónicas (Boukons). Na América Latina, predomina a consideração do intercultural como relações interétnicas, limitação de que vêm escapando autores que circulam fluidamente entre antropologia, sociologia e comunicação (Grimson, Martin Barbero, Ortiz). A intensificação dos cruzamentos entre culturas induz a ampliar o campo destas contribuições. Não se trata de "aplicar" os conhecimentos gerados por estas investigações, na sua maioria restritas à dinâmica interpessoal ou condicionadas pelos objetivos pragmáticos e pedagógicos da integração de minorias, a processos de mediação tecnológica e de escala transnacional. O crescimento de tensões em todas as áreas da vida social, em interações massivas entre sociedades, nas expansões do mercado e nos fracassos da política, está incorporando as perguntas sobre a interculturalidade a disciplinas que não usavam a expressão e reclamam novos horizontes teóricos. Adoto aqui uma perspectiva interdisciplinar, com ênfase nos trabalhos antropológicos, sociológicos e comunicacionais. Divirjo daqueles antropólogos para os quais a particularidade da sua disciplina consiste em assumir inteiramente o ponto de vista interno da cultura escolhida, e penso que grandes avanços desta ciência decorrem de ter sabido situar-se na interação entre culturas. Mais ainda: como explico no primeiro capítulo, Mare Abélès, Arjun Appadurai e James ClifFord, entre outros, estão renovando a disciplina ao redefinir a noção de cultura: não mais como entidade ou pacote de características que diferenciam uma sociedade de outra. Concebem o cultural como sistema de relações de sentido que identifica "diferenças, contrastes e comparações" (Appadurai, 1996, p. 12-13), "veículo ou meio pelo qual a relação entre os grupos é levada a cabo" (Jameson, 1993, p. 104). Esta reconceituação muda o método. Em_^ez_-de--CQmparar culturas que operariam como sistemas^regxistentes e compactos,

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com inércias que o populismo celebra e a boa vontade etnográfica admira por causa da sua resistência, trata-se de prestar atenção.às misturas e aos mal-entendidos que vinculam os grupos. Para entender cada grupo, deve-se descrever como se apropria dos produtos materiais e simbólicos alheios e os reinterpreta: as fusões musicais ou futebolísticas, os programas televisivos que circulam por estilos culturais heterogéneos, os arranjos natalinos e os móveis early american fabricados no Sudeste asiático. Naturalmente, não só as misturas: também as barreiras em que se entrincheiram, a perseguição ocidental a indígenas ou muçulmanos. Não só os intentos de conjurar as diferenças mas também os dilaceramentos que nos habitam. Tampouco se trata de passar da diferença às fusões, como se as diferenças deixassem de importar. A rigor, trata-se de tornar complexo o espectro. Vamos considerar, junto com diferenças e hibridismos, como tenta o capítulo 2, os modos pelos quais as teorias das diferenças precisam articular-se com outras concepções das relações interculturais: aquelas que entendem a interação como desigualdade, conexão/desconexão, inclusão/exclusão. A perspectiva emic, ou seja, o sentido intrínseco que os atores dão às suas condutas, continua a ser uma contribuição maior da antropologia e um requisito ético e epistemológico indispensável para entender uma dimensão chave do social. Mas, numa época em que a investigação antropológica demonstra capacidade para captar, além daquilo que cada um toma ou rechaça dos outros, o que sucede nestas atrações e repulsões em ambos os lados, mesmo em trocas globais, não podemos reduzir esta disciplina, nas palavras de Geertz, a um saber sobre verdades domésticas. 5

Adotar uma perspectiva intercultural proporciona vantagens epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo, leva a conceber as políticas da diferença não só como necessidade de resistir. O multiculturalismo estadunidense e o que, na América Latina, chama-se mais propriamente de pluralismo deram contribuições

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para tornar visíveis os grupos discriminados. Mas seu estilo relativista bloqueou os problemas de interlocução e convivência, assim como sua política de representação - a ação afirmativa - costuma gerar mais preocupação com a resistência do que com as transformações estruturais.

ve cotas de representatividade em museus, universidades e parlamentos, como exaltação indiferenciada das realizações e misérias daqueles que compartilham a mesma etnia ou o mesmo género, entrincheira-se no local sem problematizar sua inserção em unidades sociais complexas de ampla escala.

O multiculturalismo chegou a funcionar em alguns países como interpretação ampliada da democracia. Fez-nos ver que esta significa algo mais do que a rotina de votar a cada dois ou quatro anos: participar de uma sociedade democrática implica ter direito a ser educado na própria língua, associar-se com os que se parecem conosco para consumir ou protestar, ter revistas e rádios próprias que nos distingam.

Por estas razões, este livro trata de escapar dos traços do pensamento teórico pós-moderno: a exaltação indiscriminada da fragmentação e do nomadismo. Permanecer numa versão fragmentada do mundo afasta as perspectivas macrossociais necessárias para compreender e intervir nas contradições de um capitalismo que se transnacionaliza de modo cada vez mais concentrado. Quanto ao nomadismo das décadas de 1980 e 1990, não podemos esquecer que corresponde ao momento em que o livre comércio e a abertura de fronteiras apareciam como recursos para recolocar-se na competição económica; agora vemos por toda parte - sobretudo no Sul - que a desregulamentação também acarreta desamparo trabalhista, descuido da saúde e do meio ambiente e migrações em massa. Conhecemos repertórios e inovações de mais culturas, mas perdemos a proteção sobre a propriedade intelectual, ou os direitos de difusão se concentram em poucas corporações, especialmente no campo musical e digital. Mercados livres? Em vez do livre jogo estético e económico entre produtores culturais, os interesses de empresas dedicadas ao entretenimento ou às comunicações é que influem naquilo que se edita, se filma ou pode abrigar-se em museus. Por isso, dedico os dois capítulos finais a propor uma visão intercultural crítica do mercado cinematográfico e deste outro mercado absolvido das suas posições injustas sob o nome de "sociedade do conhecimento".

No entanto, deve-se também considerar as críticas dirigidas ao multiculturalismo e ao pluralismo, sobretudo na sua versão segregacionista. Objeta-se que a auto-estima particularista conduz a novas versões de etnocentrismo: da obrigação de conhecer uma única cultura (nacional, ocidental, branca, masculina) passa-se a absolutizar acriticamente as virtudes, só as virtudes, da minoria a que se pertence. O relativismo exacerbado da "ação afirmativa" obscurece os dilemas compartilhados com conjuntos mais amplos, seja a cidade, a nação ou o bloco económico a que o livre comércio nos associa. Cumprir as cotas - de mulheres, de afro-americanos, de indígenas — na ocupação de postos pode tornar insignificantes os requisitos específicos que fazem funcionar as instituições académicas, hospitalares ou artísticas. A vigilância do politicamente correto às vezes asfixia a criatividade linguística e a inovação estética. Não é fácil fazer um mapa com usos tão díspares do multiculturalismo. Nem avaliar seus significados múltiplos, dispersos, nas sociedades. É útil, pelo menos, estabelecer a diferença entre multiculturalidade e multiculturalismo. A multiculturalidade, ou seja, a abundância de opções simbólicas, propicia enriquecimentos e fusões, inovações estilísticas mediante empréstimes-temados de muitas partes. O multiculturalismo, entendido como programa que prescre-

Não se impõe, como há anos se temia, uma única cultura homogénea. Os novos riscos são a abundância dispersa e a concentração asfixiante. Concordo com Jean-Pierre Warnier: o problema que as sociedades contemporâneas enfrentam é mais "de explosão e dispersão das referências culturais do que de homogeneização" (Warnier, 2002, p. 108). Mas, simultaneamente, as megacorpora-

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ções tentam controlar amplas zonas desta proliferação mediante tarifas preferenciais, subsídios, dumpinge acordos regionais desiguais. A multiculturalidade, reconhecida no catálogo de muitos museus, de empresas editoriais, discográficas e televisivas, é administrada com um sistema afunilado que se completa em alguns poucos centros do Norte. As novas estratégias de divisão do trabalho artístico e intelectual, de acumulação de capital simbólico e económico através da cultura e da comunicação concentram nos Estados Unidos, em alguns países europeus e no Japão os lucros de quase todo o planeta e a capacidade de captar e redistribuir a diversidade. Como reinventar a crítica num mundo em que a diversidade cultural é algo que se administra nas corporações, nos Estados e nas ONGs? Poucos autores e movimentos sociais percebem as consequências desta nova paisagem. George Yúdice observa que as manifestações fóbicas em relação à globalização, de Seattle e Génova até Cancún e Porto Alegre, oferecem críticas severas à desregulamentação, às privatizações, aos programas de austeridade do Banco Mundial e do F M I , aos efeitos do neoliberalismo sobre a agricultura e o meio ambiente, mas não encaram as questões culturais e comunicacionais, ou, quando o fazem, continuam prisioneiras do rústico "modelo" de macdonaldização do mundo. Carecem de propostas para a circulação democrática ou mais equitativa dos bens simbólicos num tempo em que a multiculturalidade não desaparece, mas é administrada seletivamente segundo a lógica da transnacionalização económica (Yúdice, 2002). 6

Pode-se entender que os deslizamentos interculturais exitosos tenham fomentado os elogios pós-modernos do nomadismo e da fragmentação: alguns poucos atores e diretores de cinema asiáticos, europeus e latino-americanos conseguem atuar em Hollywood, músicas do Terceiro Mundo são aplaudidas no Primeiro. É possível citar alguns migrantes populares que chegam a enriquecer.

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Mas não ajuda a distinguir as lógicas diversas da interculturalidade amontoar desterros, vagabundagens, migrações, tribalismos urbanos e navegações pela internet, esquecendo seu sentido social, tal como ocorre em certos livrinhos franceses e latino-americanos. Um dos seus representantes mais traduzidos, Michel Maffesoli, que já banalizara as formas contemporâneas de desintegração, reduzindo-as a "tribalismos", agora diz que nos uniria a todos - "hippies, freaks, índios metropolitanos", judeus da diáspora, guaranis e Rolling Stones, exilados e buscadores de viagens de iniciação - uma despreocupação dionisíaca "pelo amanhã, o gozo do momento, a acomodação ao mundo tal como é". É preciso esquecer o que as ciências sociais e tantos testemunhos dramáticos dizem sobre a interculturalidade para escrever, em 1997, que "deixa de ser válida a contraposição entre a errante vida elitista - a Ao jet set — e a vida característica dos pobres - a da migração em busca de trabalho ou de l i berdade" (Maffesoli, 2004, p. 142). Quando recuperamos esta função básica do pensamento, que é discernir no amálgama o que é distinto, enfrentamos ásperas frustrações: a maioria dos migrantes são desvalorizados nas sociedades que escolheram com admiração; cineastas argentinos, espanhóis e mexicanos filmam em Hollywood, mas não os roteiros que trouxeram. Por outro lado, também encontramos frustrações que se combinam com resistências e conquistas: Pinochet e dezenas de torturadores argentinos foram absolvidos nos seus países, julgados na Espanha, detidos na Inglaterra ou no México e, finalmente, alguns foram processados nos lugares onde cometeram seus crimes. O que é um lugar na mundialização? Quem fala e a partir de onde? O que significam estes desacordos entre jogos e atores, triunfos militares e fracassos político-culturais, difusão mundial e projetos criativos? O fascínio de estar em toda parte e o desassossego de não estar em nenhuma com segurança, de ser muitos e não ser ninguém mudam o debate sobre a possibilidade de ser sujeito: já aprendemos nos estudos sobre a configuração imaginária do social

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o quanto de construídos ou simulados os processos sociais e os sujeitos podem ter^Talvez esteja começando um tempo de reconstruções menos ingénuas de lugares e sujeitos, estejam aparecendo ocasiões para atuarmos como atores verossímeis, capazes de fazer pactos sociais confiáveis, com alguma duração, em interseções compartilhadas. Por que a arte recente está redescobrindo o sujeito ou busca recriá-lo? Muitos artistas do passado e da atualidade convertemse em ícones das principais exposições, de filmes europeus, chineses e estadunidenses, de interpretações musicais grandiosas. Os editores registram o aumento de vendas de biografias e autobiografias. As identidades pessoais ressuscitam como marcas para reativar os mercados ou há algo mais neste desejo de ser sujeito ou tê-lo como referência? O que pretende, sob os escombros da noção de sujeito, o encontro ritual mais importante dos empresários do mundo, o Fórum Económico de Davos, em 2004, ao chamar um seminário de "Eu S.A."? A novidade não é a sugestão de que "cada qual deve levar sua vida como uma empresa", mas o paradoxo de re-consagrar o eu como sociedade anónima. O moderador do debate disse que, na realidade, há tempos Davos é "a Olimpíada do narcisismo". A metáfora de Jacques Atali - "gerir a própria vida como se fosse uma carteira de títulos" - é pelo menos inquietante, uma vez que conhecemos a instabilidade dos títulos e astúcias inconfiáveis com que se manipulam os movimentos financeiros. Estes empresários e intelectuais, ao recolher os estilhaços da noção de sujeito, vão muito mais longe do que o pós-modernismo, quando os mostrou dispersos ou simulados. Parece urgente discernir aqueles que podem ser sujeitos nesta época de mercados canibais e aqueles que - indivíduos e coletivos (partidos, ONGs etc.) - somos intimados, ao mesmo tempo, a ser flexíveis e a ser alguém na selva das siglas. 7

Diferentes, desiguais e desconectados? Formular os modos da interculturalidade em chave negativa é adotar o que sempre foi a

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perspectiva do pensamento crítico: o lugar da carência. Mas colocarse na posição dos despossuídos (de integração, de recursos ou de lOnexões) ainda não é saber quem somos. Imaginar que se podia prescindir deste problema foi, ao longo do século XX, o ponto cego de muitos campesinistas, proletaristas, etnicistas ou indianistas, de feministas que suprimiam a questão da alteridade, de subalternistas e quase todos aqueles que acreditavam resolver o enigma da identidade afirmando com fervor o lugar da diferença e da desigualdade. Ao ficar deste lado do precipício, quase sempre se deixa que outros - deste lado e daquele - construam as pontes. As teorias comunicacionais nos lembram que a conexão e a desconexão com os outros são parte da nossa constituição como sujeitos individuais e coletivos. Portanto, o espaço inter é decisivo. Ao postulá-lo como centro da investigação e da reflexão, estas páginas buscam compreender as razões dos fracassos políticos e participar da mobilização de recursos interculturais para construir alternativas.

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